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Repertório, Salvador, nº 23, p.145-156, 2014.

CONTRACONDUTA COMO
CRIAÇÃO
JOGOS DE ENUNCIAÇÕES
NA E SOBRE A DANÇA
Flávia Pilla do Valle1
Gilberto Icle2

Resumo: Este trabalho discorre sobre o conceito de Palavras-chave: Contraconduta. Dança. Educação. Cria-
contraconduta, localizando-o na obra de Michel Foucault ção. Michel Foucault.
e extraindo dele elementos para pensar a criação em
dança. Relata, ainda, alguns aspectos de uma pesquisa
realizada com alunos de graduação em Dança, analisan- Abstract: This paper discusses the concept of counter-
do os seus escritos sobre processos de criação coreo- conduct, locating it in the work of Michel Foucault and
gráfica. A contraconduta é compreendida sob dois aspec- drawing out elements to think about the creation of
tos: como prática pedagógica de se conduzir diferente dance. This paper reports some aspects of a research
do conhecido e como exercício de análise dos atraves- conducted with graduate students in Dance, analyzing
samentos discursivos aos quais os corpos estão subor- his writings about the choreography process. The coun-
dinados na dança. Problematizam-se, nas enunciações terconduct is understood in two ways: as a pedagogical
dos alunos, o estatuto do balé clássico e a relação com practice of conduction which is different from known
a dança contemporânea. Analisam-se os fios que cons- and as an exercise of analysis of the discursive cros-
tituem a teia de discursos na qual o jogo da contraconduta sings which bodies are subordinate in dance. Proble-
se forma e emerge por meio das enunciações. Por fim, a matizes in the enunciations of students the status of
noção de contraconduta é apresentada como possibilidade classical ballet and its relationship with contemporary
de multiplicação de discursos, como abertura para no- dance. Analyzing the strands that form the web of dis-
vas possibilidades de criação. courses in which the game of the counterconduct forms
and emerges through the enunciations. Finally, the no-
tion of counterconduct is presented as a possible multipli-
1
Mestre em Dança pela New York University. Doutora em cation of discourses such as openness to new creative
Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. possibilities.
Professora adjunta do curso de Dança da mesma universi-
dade. Membro do GETEPE – Grupo de Estudos em Edu- Keywords: Counterconduct. Dance. Education. Creation.
cação, Teatro e Performance. Michel Foucault.
2
Ator e diretor do grupo Usina do Trabalho do Ator. Grad-
uado em Artes Cênicas, Mestre e Doutor em Educação, pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde é professor
no Programa de Pós-Graduação em Educação. É coordena-
dor do GETEPE – Grupo de Estudos em Educação, Teatro
e Performance e editor-chefe da Revista Brasileira de Estu-
dos da Presença. É bolsista de produtividade em pesquisa do
CNPq.
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Este trabalho toma a ideia de contraconduta para da dança. Isso implicou pensar a coreografia como
pensar a maneira pela qual alunos de graduação em uma escrita do e pelo corpo, e como desencadea-
Dança criam seus movimentos. Há, portanto, duas dora de pensamentos complexos, opostos, múlti-
acepções de contraconduta neste trabalho. A pri- plos, perversos, que podem ser registrados através da
meira, de cunho pedagógico, foi usada em sala de escrita. Os limites frágeis entre escrita e dança já foi
aula. Trata-se de opor (melhor seria dizer escapar) objeto de estudo por Lepecki (2004), que explicita
da conduta conhecida, do padrão de movimentos isso, aduzindo tal característica ao termo “coreo/
sempre usado pelo sujeito que dança. A segunda, grafia”. Ao discutir dança, escrita e feminilidade,
para além dessa tarefa pedagógica, implica a con- ele ressalta:
traconduta no jogo de enunciações que é próprio
do discurso sobre dança. Trata-se de identificar [...] o fluxo de significação, a passagem de movi-
nos corpos os discursos que se materializam, de mento através do tempo, a dissolução do corpo
descrever, naquilo que os alunos dizem, os movi- – tudo propõe que as distinções categóricas, uni-
mentos, as contradições, as ideias, as noções que dades fechadas, fronteiras fortificados são consti-
tuídas menos como mônadas do que um circuito
são veiculadas sobre dança e reconhecer que elas
de troca, espaços de fricção, onde, como Gaston
constituem os sujeitos que dançam.
Bachelard uma vez observou, ‘a oposição formal
Foi a partir dessas “coisas ditas” – escritas em recusa-se em manter calma’. Os espaços de atrito
trabalhos de aula durante três semestres, num cur- constituído pelas inquietas tensões entre corpo
so de graduação em Dança –, que refletimos sobre e texto, movimento e linguagem, indicam preci-
os discursos que atravessam esse campo de conhe- samente a contiguidade ilimitadas entre dança,
cimento e outros campos relacionados, mostran- escrita e feminilidade. (LEPECKI, 2004, p. 124,
do um jogo desses discursos, em seu movimento tradução nossa)3
constante. Para isso, delimitamos o conceito opera-
cional que chamamos de contraconduta. Esse estudo Assim, na esteira da relação entre criação de
tratou, portanto, de analisar a trama por intermé- movimentos e escrita, o conceito operatório de
dio da qual os discursos sobre a dança assumem contraconduta foi tomado, num primeiro momento,
forma nos corpos em formação. para nortear a prática pedagógica de um de nós.
A noção de criação não foi pensada na ampli- Nessa proposta, os alunos eram desafiados a com-
tude de seus significados, e sim, pensada como por uma coreografia, a partir de uma contraconduta
composição coreográfica, improvisada ou memo- pessoal, e escrever sobre essa criação. Nesse senti-
rizada. Foi nesse exercício de compor movimentos do, para buscar uma contraconduta, os alunos preci-
que observamos os alunos e registramos o que eles sariam pensar sobre como se conduziam coreogra-
tinham a dizer sobre sua criação. ficamente, isso é, perguntar-se sobre suas poéticas
Em nossa atuação docente, no ensino superior, da criação. Isso envolveria dar-se conta de hábitos,
parecia evidente que, nos componentes curricu- vícios corporais, passos e estratégias usualmente
lares nos quais trabalhávamos com elementos de tomadas para poder se conduzir de outras ma-
criação de movimento, conhecíamos e nos aproxi- neiras, ou seja, os alunos eram solicitados a fazer
mávamos mais dos desafios em relação às concep- diferente do que faziam, para sair de uma possí-
ções de dança. A criação expunha os alunos, os dava vel zona de conforto. Assim, supomos que seria
a ver mais aos olhos dos outros, mostrava mais os
pontos fortes e as fragilidades, em oposição à disci-
plina da técnica de dança, na qual os alunos imitam 3
No original: The streaming of signification, the passing of move-
certo modelo e não têm muito espaço para trazer ment through time, the dissolution of the body - all propose that categori-
ideias pessoais/corporais. A partir dessa percep- cal distinctions, closed unites, fortified boundaries are constituted less as
ção, a noção de contraconduta da criação entrou para monads than a circuit of exchange, spaces of friction, where, as Gaston
Bachelard once noted, “formal opposition refuses to remain calm”. The
operar como um exercício de pensar o processo
spaces of friction constituted by the restless tensions between body and
de construção da coreografia e, assim, atuar como text, movement and language, indicate precisely a limitless contiguity
uma técnica de autoconstituição de si como sujeito among dance, writing, and femininity.
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preciso, de certa forma, que os alunos se permitis- das vozes e relações é exercitar o impensável e pen-
sem transformar, ceder, desafiar, inquietar, pensar sar na contramão. Não é pensar melhor e sim uma
de outro modo. Esse procedimento nos obrigou, constante problematização dos posicionamentos.
então, a pensarmos a contraconduta, não apenas Não é dizer o que está certo ou errado. O proces-
como oposição ao conhecido, mas como jogo de so da pesquisa dessa linha de pensamento envol-
discursos e disputas de poder, no próprio corpo, e, ve continuamente revisar, construir e desconstruir
ao mesmo tempo, como uma inquietude que po- nosso próprio posicionamento. Foucault, mais que
deria potencializar a criação e torná-la instrumento ninguém, nos ensina que não podemos transpor
de formação na graduação em Dança. teorias e práticas como receitas metodológicas. As
Nesse segundo momento, da contraconduta como metodologias, para ele, são “[...] fogos de artifício a
jogo de enunciações, como movimento discursivo, serem carbonizados após o uso” (SIMONS, 1995
houve um deslocamento para ver o jogo das coisas apud VEIGA-NETO, 2007, p. 17).
ditas e não ditas, nas suas relações que induzem, Para Foucault, não há uma sistemática de pes-
estendem, se mostram, se alteram e se consolidam. quisa ou uma prescrição a ser seguida. Suas teorias
Enfim, a ideia ampliou-se para mostrar esse mo- propõem o exercício de problematização, isto é,
vimento constante dos discursos, nos corpos e na propõem não se assentar em bases seguras e está-
escrita. Para isso, analisamos o material coletado veis. Assim, para esse filósofo, pesquisar é situar-se
durante três semestres (segundo semestre de 2008 num território de incertezas, imprevisões e riscos.
e todo o ano de 2009), que consistiu em registros Riscos de quê? Risco de dizer outras coisas, arris-
do processo coreográfico de solos de dança dos car-se a pensar diferente do que se pensa, transpor
alunos e registros de questionamentos que fomen- os limites e tencionar o que se pensa e o que é dito.
tavam essa prática. Houve, também, em menor É correr riscos de emaranhar-se em outras sujei-
número, registros dos colegas, da professora e das ções. Isso envolve questionar (e questionar-se) os
monitoras sobre os trabalhos. múltiplos modos de ver e reconhecer essa plura-
No percurso de análise do material, buscamos lidade. Dizer outras coisas não é ancorar-se num
multiplicar as vozes e as relações das coisas ditas porto seguro. Por fim, trata-se de dar-se conta de
pelos alunos. Assim, procuramos os atravessamen- que, talvez, “[...] a ironia desses esforços feitos a
tos discursivos que constituíam os corpos dos alu- fim de mudar-se a maneira de ver, para modificar o
nos/bailarinos e as relações com outros campos de horizonte daquilo que se conhece e para distanciar-
saber, pois “[...] multiplicar relações significa situ- se um pouco” tenha, no máximo, permitido “[...]
ar as ‘coisas ditas’ em campos discursivos, extrair pensar de modo diferente o que já se pensava e
delas alguns enunciados e colocá-los em relação a perceber o que se fez segundo um ângulo diferen-
outros, do mesmo campo ou de campos distintos” te e sob uma luz mais nítida. Acreditava-se tomar
(FISCHER, 2001, p. 205). Nesse percurso de aná- distância e, no entanto, fica-se na vertical de si mes-
lise, as coisas ditas pelos alunos foram tornando-se mo” (FOUCAULT, 1998, p. 15).
visíveis em suas recorrências, isto é, uma mesma Este texto, com efeito, procura mostrar nossas
fala ou assunto emergia várias vezes. Nós organi- noções de discurso em relação à dança e a analisa
zamos grupos temáticos, a partir dessa análise. A alguns atravessamentos que encontramos nos ditos
ideia de organizar essas falas em grupos aproxi- de alunos, nas escritas, nos dizeres em constante
ma-se do que Fischer pensa, quando diz que “[...] movimento. Na impossibilidade de tratar aqui de
construir unidades, porém, longe de significar uma toda uma pesquisa que nos tomou muito tempo
operação de simplificação e assepsia de enunciados e que necessitaria muitas páginas, gostaríamos de
desorganizados, contaminados e por demais vivos, compartilhar com o leitor tão somente as possibi-
é um trabalho, [...], de multiplicação dessa realidade lidades de multiplicar os discursos, como recurso e
da coisa dita [...]” (2001, p. 206). como resultado de nossa manobra teórico-prática
As análises resultantes dessa pesquisa têm, as- com a noção de contraconduta.
sim, em Michel Foucault e seus comentadores, a
inspiração metodológica. Pensar a multiplicação
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A contraconduta dos discursos do corpo babilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem


do afrontamento entre dois adversários, ou do vín-
O conceito de contraconduta foi, de certa ma- culo de um com relação ao outro, do que da ordem
neira, parafraseado da obra de Michel Foucault. do ‘governo’ (FOUCAULT, 1995, p. 244).4
Para ele, as contracondutas No caso da contraconduta da criação em dança,
mais do que buscar o governo dos outros, trata-
[...] são movimentos que têm como objetivo outra se de fazer emergir uma espécie de governo de si
conduta, isto é: querem ser conduzidos de outro mesmo. Luto comigo mesmo, no ato de criação,
modo, por outros condutores e por outros pas- pois quero resistir ao hábito, à mesmice, à cópia,
tores, para outros objetivos e para outras formas à simples repetição. Essa resistência se dá acerca
de salvação, por meio de outros procedimentos
de filiações éticas, estéticas e poéticas – que são
e outros métodos. São movimentos que também
filiações compartilhadas com grupos de pessoas.
procuram, eventualmente em todo o caso, esca-
par da conduta dos outros, que procuram definir Nossas escolhas e atitudes não estão isoladas dos
para cada um a maneira de se conduzir. (FOU- outros e do mundo, ou seja, não são processos
CAULT, 2008, p. 256-257) ilhados. Trata-se de filiações estéticas, porque tra-
zem referências a estilos de danças e suas formas
A noção de contraconduta de Foucault foi uma ins- – ou fôrmas, ou mesmo à ruptura e à ampliação dos
piração para pensar a criação em dança. Enquanto limites desses estilos. Trata-se, ainda, de poéticas,
o filósofo francês usou esse termo para falar de porque envolvem a construção de um sentido que
insubmissões e de revoltas específicas de conduta, se dá nas escolhas que compõem a dramaturgia em
em relação a sua noção de governo e poder pas- si. Ao escolher movimentos, figurinos, cenários, lu-
toral, usamos essa ideia para pensar a criação em zes/sombras ou músicas, expomos um modo pró-
sala de aula. A contraconduta da criação em dança é prio de ver o mundo, mas atravessado pelas ideias,
tomada por nós como um processo de resistência a pelas noções e pelos discursos do fora. Trata-se,
uma cultura e saberes hegemônicos dessa arte e de também, de escolhas éticas, pois colocam o ponto
campos diversos – que estão sempre em relação. A
criação seria, assim, um exercício de liberdade em
relação à resistência. 4
Foucault constantemente amplia os campos de análise,
O uso da liberdade para a resistência, segundo agregando sentidos e complexificando termos por ele utiliza-
dos. Tem-se chamado a isso de deslocamentos: “por desloca-
afirma Foucault (1995), pressupõe uma relação de
mentos não entendemos abandonos, mas, sim, extensões, am-
poder. Conforme o autor defende, não existe um pliações do campo de análise” (CASTRO, 2009, p. 189). Dito
poder, mas, sim, relações de poder. Essas relações isso, podemos pensar a noção foucaultiana de governo em dois
não são estáticas e imóveis, e sim, cambiantes. É eixos: o governo em relação a si mesmo e o governo como
importante, com efeito, destacar que, ainda se- relação entre sujeitos. A ideia do governo de si (ou com relação
a si mesmo) tem uma proximidade com a noção do cuidado
gundo Foucault, o poder não é mau, assim como
de si (ver, por exemplo: ICLE, 2010) e aproxima-se da ideia
não há sociedade sem relações de poder. O poder, da contraconduta da criação neste texto. Em relação à ideia de
nessa acepção, não pode ser visto como algo que governo, em Foucault, como relação entre sujeitos, Veiga-Ne-
se possui, mas sim como algo que se exerce. Para to (2005) tem defendido o uso das palavras governamento ou
Foucault, o poder não é uma substância ou uma governamentalidade, uma vez que, na Modernidade, a palavra
qualidade passível de posse, é antes uma relação. governo começa a ser usada para se restringir às coisas relati-
vas ao Estado. Ele sublinha que na perspectiva foucaultiana, as
Assim, as relações de poder são um conjunto de “‘práticas de governo’ não são ações assumidas ou executadas
ações que têm por objeto outras ações possíveis, por um staff que ocupa uma posição central no Estado, mas
operam sobre um campo de possibilidades: indu- são ações distribuídas microscopicamente pelo tecido social
zem, separam, facilitam, dificultam, estendem, li- [...]” (VEIGA-NETO, 2005, p. 21). A governamentalidade, as-
mitam, impedem (CASTRO, 2009). Por isso, um sim, é o “conjunto formado pelas instituições, procedimentos,
análises e reflexões, os cálculos e as táticas, que permitem o
termo que capta as especificidades das relações de exercício dessa forma muito específica, embora complexa, de
poder é o termo conduta. “O exercício do poder poder e que tem como seu alvo a população”. (FOUCAULT,
consiste em ‘conduzir condutas’ e em ordenar pro- 1979 apud ROSE, 1999, p. 35-36)
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de vista do criador, expõem o que acreditamos e mas é produzido no interior de saberes” (VEIGA-
defendemos, a maneira como nos conduzimos em NETO, 2007, p. 44). Esses discursos não partem
dança. Ao criar, em dança, mostro no meu corpo de um indivíduo e, também, não se originam em
minha visão de mundo, mesmo que transitória, e um lugar determinado, em um dia determinado,
crio uma materialidade – mesmo que efêmera – na pois “[...] a ausência é o lugar primeiro do discurso
qual posso refletir: a coreografia (ainda que uma [...]” (FOUCAULT, 2001a, p. 31).
sequência improvisada e não repetível de movi- Ao mesmo tempo, quando diz que
mentos). Atentar-se às filiações e se autogovernar,
resistindo à mesmice, é exercitar o jogo de contra- [...] o sujeito ocupa um determinado lugar na
conduta. Pensamos na contraconduta da criação em ordem do discurso, que ele fala de um lugar e,
dança, para operar um pensamento sobre coreo- portanto, não é dono livre de seus atos discursi-
grafia e sobre si na rede de relações da cultura. vos, Foucault não está negando que as pessoas,
individualmente, possam perceber-se como úni-
Dito isso, pode-se compreender que pensar a
cas, indivisas, senhoras de seu destino e de seus
contraconduta é um modo de visualizar vestígios da menores atos. (FISCHER, 2000, p. 3)
trama dos discursos que se inscrevem no corpo.
Nesse sentido, na coreografia e no próprio corpo Porém, mesmo nos percebendo como únicos,
estão atravessados discursos que, por sua vez, cir- mesmo tendo a sensação de criar movimentos ori-
culam no interior de outros discursos. Mas o que ginais, não deixamos de pertencer a um contexto,
é o discurso? Que trama de discursos buscamos não deixamos de estar atravessados por inúmeros
visualizar? Michel Foucault vê o discurso como um discursos. A ideia de que expressamos algo interior
conjunto de enunciados que provém de um mes- é, nessa acepção, um pouco ingênua. Nós não faze-
mo sistema de formação. Discurso não é a fala de mos nada além de multiplicar os discursos que nos
alguém ou sua oratória e sim algo mais amplo e são exteriores. Entretanto, não se trata de pensar a
que nos permeia, pois “[...] em vez de ser aquele criação em dança como a ausência de um indivíduo
de quem parte o discurso, eu seria, antes, ao acaso autor, como se os artistas da cena fossem totalmen-
de seu desenrolar [...]” (FOUCAULT, 2007, p. 6). te inconscientes de sua criação, da mesma forma, a
Fischer entende o “[...] discurso como o conjunto ausência de uma origem dos discursos não significa
de enunciados de um determinado campo de sa- que existe um discurso oculto por trás do discurso
ber, os quais sempre existem como prática” (2003, manifesto. O discurso é o discurso manifesto, que
p. 84). Assim, se o discurso não parte do sujeito, é um fazer e que se dá no corpo. A coreografia
ele atravessa o sujeito, a criação coreográfica não é, então, assim como a escrita sobre a coreogra-
é tomada aqui como um processo de autodesco- fia, atravessada por discursos. Não há divisão entre
berta. Não somos a origem da nossa criação. Reco- prática e escrita/teoria, ou entre fazer e pensar.
nhecemos, portanto, que somos permanentemente Parece-nos importante colocar que os discursos
atravessados por saberes e culturas. Pensamos, tal da dança são múltiplos e estão entremeados nos
qual Foucault, o sujeito como uma posição vazia, corpos em formação (dos alunos), assim como nos
que é atravessada, preenchida e constituída cons- próprios corpos dos professores e pesquisadores.
tantemente por saberes e discursos. Fischer diz que Esses discursos nos atravessam e são plurais. Para
“[...] o sujeito do enunciado, conforme sua célebre nós, investigar a trama dos discursos não é descobrir
formulação [de Foucault, em A arqueologia do Sa- a verdade definitiva da dança ou da formação em
ber], é ‘um lugar determinado e vazio que pode ser dança ou ainda a suposta realidade dos alunos de
efetivamente ocupado por indivíduos diferentes’” dança, apenas levantamos alguns pontos para pen-
(FISCHER, 2000, p. 3). Essa fratura do sujeito sarmos esses saberes em suas relações de poder.
centrado traz, assim, outra perspectiva sobre o ho-
mem. O homem deixa de ser o centro ou origem O jogo das enunciações
do discurso: “[...] ele não é o produtor de saberes,
mas, ao contrário, ele é um produto dos saberes. A demarcação bem forte dos estilos de dança
Ou, talvez, melhor, o sujeito não é um produtor, nos mostra o quanto cada estilo se associa a certos
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movimentos corporais. Essa identidade é marca- exclui transformações do tempo) parece mostrar
da por certos movimentos, chamados passos, mas um corpo (e um pensamento) menos flexível. Por
também por uma forma de vestir, de pensar, de outro lado, parece-nos que uma visão mais restrita
ser, que, por sua vez, são associadas a questões de da dança, com sua subdivisão em estilos, facilita
gênero, classe, etnia, entre outros. Detendo-nos na um mapeamento dessa sua construção histórica e
questão dos movimentos de cada estilo, é sabido cultural. Talvez essa simplificação seja necessária
que cada estilo de dança desenvolve uma técnica de para depois dar um passo a mais e problematizar essa
como fazer os passos. Esses movimentos são trei- divisão.
nados, repetidos, automatizados. A ideia de técnica O balé, por exemplo, é um estilo bem forma-
como disciplina para um corpo dócil é nítida na tado e reconhecido. De uma maneira geral, ele se
dança, que transforma esse corpo num corpo útil realiza na posição de pé, com leveza, em postu-
e eficiente. Foucault (1987) nos chama a atenção ra vertical e com ênfase no trabalho de elevação.
para o quanto essa disciplina está presente na nossa Faz-se uso das linhas longas e arredondadas, de
sociedade e na organização do nosso tempo e es- um trabalho intenso de pernas e de braços, em que
paço. As disciplinas são “[...] métodos que permi- as pernas atuam por meio de movimentos perifé-
tem o controle minucioso das operações do corpo, ricos ou centrais, e os braços, por intermédio de
que realizam a sujeição constante de suas forças e movimentos periféricos, privilegiando as direções
lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade básicas do corpo ― frente, lado e atrás. Trata-se de
[...]” (FOUCAULT, 1987, p. 126). certas formas de fazer, dentre uma gama de várias
A disciplina da técnica de dança tem sido um outras possibilidades.
importante instrumento no treino de um corpo
preparado para as demandas do movimento efi- Dançarinos começam uma sequência diária pa-
ciente. A conduta da técnica de dança tem sido drão com um braço estabilizando o corpo, se-
aprendida para otimizar o movimento corporal. gurando uma barra. Eles executam movimentos,
Por outro lado, como não condicionar o corpo anunciados (em francês) pelo professor, origi-
nando de, e retornando para, posições básicas ―
a certos modos de fazer? Como não restringir o
primeiro de um lado e, em seguida, trocando os
corpo a uma visão de dança e suas concepções braços na barra, do outro. Os movimentos das
próprias de corpo e beleza? Como não tornar esse pernas trabalham (sempre numa posição de rota-
corpo condicionado a certo repertório e escolhas ção externa do quadril) e, em menor extensão, os
de movimentos, ao invés de um corpo disponível braços para criar variações e enfeites sobre dese-
ao risco da criação? nhos circulares e triangulares. O tronco fornece
Pensar a dança como estilos estanques, por um um centro tenso e geralmente ereto, conectando
lado, nos parece um pouco problemático, pois estes os quatro apêndices e a cabeça. (FOSTER, 1997,
não parecem dar conta de todos os laços, vestígios, p. 243, tradução nossa)5
compartilhamentos, atravessamentos culturais que
tais estilos têm entre si, na contemporaneidade. Na análise do material, a ideia de balé como lu-
Um corpo não pode mais ser visto como resultado gar de formação legítima e verdadeira emergiu com
de um único estilo e experiência, pois um corpo certa força. Mesmo em outros estilos, por exem-
exposto a diversos repertórios de movimentos é plo, na dança do ventre, o balé pode ser conside-
um corpo que borra uma única experiência, é um
corpo híbrido. Louppe (2000, p. 32) fala do corpo
híbrido como “[...] aquele oriundo de formações 5
No original: Dancers begin a standard daily sequence with one arm
diversas, acolhendo em si elementos díspares, por stabilizing the body by holding a barre. They perform movements, an-
vezes contraditórios, sem que lhe sejam dadas as nounced (in French) by the teacher, originating in, and returning to, ba-
ferramentas necessárias à leitura de sua própria di- sic positions ― first on one side and then, switching arms at the barre, on
the other. The movements work the legs (always in a turned-out position)
versidade”. Ao mesmo tempo, um corpo expos-
and, to a lesser extent, the arms to create variations and embellishments
to por um período consistente de tempo a apenas on circular and triangular designs. The torso provides a taut and usually
um estilo bem pré-formatado e rígido (o que não erect center connecting the four appendages and the head.
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rado uma base (ou a base) para outros estilos de como visão de um corpo saudável. Carvalho res-
dança. SGL, uma aluna, diz: “[...] a bailarina que salta que “[...] uma vez que ter ‘boa aparência’ é o
mais admiro entre inúmeras por várias razões é a caminho para um estilo de vida ‘de sucesso’, ‘de
Saída da Argentina. Ela tem base perfeita com base prazer’, as pessoas se veem impelidas a se sujeitar
no ballet” (SGL, 2008/2). a hábitos que muitas vezes não condizem com ‘a
Não é novidade que o balé, desde suas raízes, no promessa’” (1995, p. 126).
século XVI, foi uma arte legitimada nas relações de A referida autora diz ainda que a atividade física
poder da realeza. O Ballet Comique de La Reine, que tem sido considerada como um sinônimo de saúde
pode ser visto como um marco no nascimento do e essa associação foi incorporada tanto pelo sen-
balé, na corte, em 1581, teve como intérpretes os so comum quanto pelos discursos da universidade,
próprios nobres “[...] selecionados no círculo mais das revistas e da mídia em geral. Esses discursos,
próximo e fiel da rainha” (PORTINARI, 1989, p. por sua vez, têm, em estrelas hollywoodianas, globais
62). O balé era parte integrante da vida dos nobres. ou atletas de elite, muitas vezes, o modelo de per-
No reinado de Luís XIV, o Rei Sol, o balé de corte feição. O problema que Carvalho (1995) ressalta é
atinge seu apogeu. que o padrão estético almejado, de beleza, saúde e
conservação do corpo, é um padrão mítico, legiti-
Protegida pelo Rei-Sol, a dança impera no seu as- mado por um modelo “extra-humano”. Ao mesmo
pecto mais refinado e codificado. Convém lem- tempo, sabe-se que o alto rendimento não é sinôni-
brar que a etiqueta da corte de Luís XIV tinha mo de saúde. Na dança – ou, mais especificamente,
muito de dança, de marcação pré-estabelecida, no balé – não é muito diferente.
uma espécie de meticulosa coreografia para o dia-
Foster (1997) fala desse ideal do corpo magro
a-dia. Todas as atividades eram regulamentadas
por um intrincado cerimonial da manhã à noi-
e do sofrimento a que os bailarinos se submetem.
te. Ao aproximar-se do monarca, por exemplo, Ela nota a grande quantidade de tempo que um bai-
um cortesão tinha que obedecer a uma rigorosa larino gasta na formação de seu corpo dançante e
contagem de passos antes de fazer a tradicional ressalta que, apesar de o bailarino ter momentos de
reverência. O gestual era mais ou menos compli- “domínio de movimento” e o “sentimento de inte-
cado de acordo com a posição de cada membro gridade com seu corpo”, a experiência que prevale-
da corte. (PORTINARI, 1989, p. 68) ce não é da sensação clara de melhora e progresso.

O balé como uma técnica perfeita e ideal ainda Dançarinos constantemente apreendem a discre-
se faz bem presente no imaginário de alguns dos pância entre o que eles querem fazer e que eles
alunos estudados. Apesar das muitas transforma- podem fazer. Mesmo depois de atingir a adesão
ções nessa técnica, desde o século XVI, a ideia de oficial na profissão, nunca se tem confiança na
perfeição parece estar sempre presente, de diferen- fiabilidade do corpo. O esforço continua para
manter o corpo em resposta a novos projetos co-
tes formas. Parte dessa perfeição, hoje em dia, se
reográficos e diante das evidências devastadoras
mostra ligada ao ideal de um corpo magro e jovem.
do envelhecimento. O treinamento cria, assim,
O mercado profissional das companhias de balé é dois corpos: um, percebido e tangível; o outro,
de jovens com pouquíssima gordura corporal. Por esteticamente ideal. (FOSTER, 1997, p. 237, tra-
outro lado, se o corpo magro é um ideal presente dução nossa)6
no campo da dança, podemos notar que está pre-
sente também em outros campos. O ideal de um
corpo magro e jovem é um discurso comumente
achado nas capas de revista que clamam o corpo 6
No original: Dancers constantly apprehend the discrepancy between
saudável e estampam modelos e artistas da mídia. what they want to do and what they can do. Even after attaining official
Estudos em áreas como Educação Física e Saúde membership in the profession, one never has confidence in the body’s
Pública, por exemplo, têm ressaltado que a valori- reliability. The struggle continues to develop and mantein the body in
response to new choreographic projects and the devasting evidence of
zação da aparência externa do corpo se sobrepõe à aging, Training thus creates two bodies: one, perceived and tangible; the
manutenção do funcionamento interno do corpo, other, aesthetically ideal.
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O balé não só aparece no ideal de corpo magro, foi então que resolvi que iria seguir com a dança
jovem e saudável. Vemos esse jogo de associações profissionalmente” (CGAG, 2008/2).
do balé também nos discursos do lazer. A origem Vemos que a prática do balé também está, ainda,
aristocrática do balé, por exemplo, é reforçada pela na mídia. No canal de TV a cabo, Discovery Kids, é
indústria do consumo, que vende a Barbie Bailarina veiculado o desenho Angelina Ballerina, no qual essa
com uma coroa, tutu e sobre as pontas. personagem veste rosa, reforçando uma relação
entre cor e gênero. Conforme a fala exposta an-
O balé tem perfeita associação com os contos- teriormente, é comum as mães procurarem o balé
de-fadas. Oferecendo libretos bem conhecidos, para suas filhas, nos seus primeiros anos de vida.
as narrativas permitiam que os coreógrafos se Se não é novidade que a dança – principalmente o
concentrassem nos aspectos formais, espetacu- balé – é associada amplamente ao sexo feminino,
lares da dança. Os movimentos leves e rápidos
na análise dos registros dos alunos, entretanto, isso
da bailarina em sua sapatilha de ponta e seu tutu
traçam um paralelo ideal com a imagem da fada
não emerge com força. Nem por isso esse não dito
e da princesa. (CANTON, 1999, p. 96) é necessariamente uma ausência do dizer. Apesar
dos alunos não terem mencionado a associação en-
Essa ligação ― bailarina e realeza ― é mostrada tre dança e gênero, grande parte dos sujeitos da
em diversos balés do repertório clássico e tem, tam- pesquisa era do sexo feminino, totalizando aproxi-
bém, conforme já mencionado, a ligação da pró- madamente 75% dos alunos.
pria origem do balé com as cortes europeias. Santos Nas escritas dos alunos, as enunciações sobre
comenta que, apesar de passados trezentos anos, o balé, aparentemente, estabelecem uma relação
“[...] as marcas de um comportamento aristocrático com um enunciado oposto, como se houvesse um
seguem sendo inscritas nos corpos de bailarinos e novo corpo legítimo de dança, mas agora de dan-
bailarinas. [...] parece que o desejo de tornar-se prin- ça contemporânea. A aluna sublinha: “[...] não sou
cesa é o que move parte das meninas que procura mais clássica como era, mas também não me acho
o balé como atividade” (2009, p. 40). Em se tratan- contemporânea. Ainda preservo o belo e preciso
do do ensino infantil do balé, vale lembrar que esse entender o que faço, e mais, preciso gostar do que
comumente não trabalha os elementos técnicos do danço (da coreografia)” (CAC, 2008/2).
balé puro, com exercícios de barra, centro e diago- O discurso de dança contemporânea como opo-
nal. Trata-se de uma aula mais lúdica. Mesmo assim, sição ao ballet clássico não deixa de ser curioso. A
reforça, normalmente, as noções do balé em si, que associação da noção de contemporâneo com algo
trabalham com o imaginário de ideais estéticos e que é feio, não linear e não decifrável, constitui,
também éticos. Por exemplo, temos o célebre tra- ao mesmo tempo, o seu correlato, o balé clássico,
balho de pés, passado de geração em geração: fazer a partir da inversão de tais características. O balé
o pé de bailarina (tornozelo estendido) e o pé de seria, assim, segundo essa acepção, belo, narrativo
palhaço (tornozelo flexionado). Esse exercício das e de fácil leitura. Os discursos nunca existem iso-
aulas de dança infantil, assim como outros, nos faz lados, como dizíamos há pouco. Eles circulam nos
pensar na estética do pé estendido – priorizado no corpos, eles coexistem em constante movimento.
balé – como belo, e do pé de palhaço – priorizado Seja na afirmação do balé como beleza, seja
em outras técnicas, como o moderno – como en- na contraposição ao belo, supostamente trazida
graçado. Essas práticas tendem a se perpetuar, pois pela dança contemporânea, essa preocupação se
a prática do aluno mais adiantado de se tornar pro- faz bem presente nas escritas registradas pelas(os)
fessor perpetua esses modelos de ensino, sem mui- alunas(os). Os alunos, em sua maioria, compreen-
to questionamento. Outro aluno, CGAG, descreve dem a categoria beleza como algo fixo e inerente a
exatamente esse processo: “[...] com quatro anos, a determinadas formas de dança. Eles não admitem
minha mãe me colocou no ballet; desde então, cres- que o senso de beleza não esteja dado. Eles não
ceu em mim um amor enorme pela dança. Aos 14 associam a beleza com algo construído de acordo
anos, comecei a dar aulas para turmas de baby class, com um sistema de referências que o sujeito vai
constituindo com o tempo, pouco a pouco, e de
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acordo com o seu grupo de pertencimento. A bele- mente assim. Esse jogo ainda traz outras persona-
za, sobretudo na cena contemporânea, poder-se-ia lidades e personagens, que executam movimentos
relacionar tanto com “[...] a ordem quanto com a cotidianos, esportivos, encenações ou dança em si,
desordem, com a religiosidade ou a obscenidade, no sentido tradicional da palavra. Lepecki comenta
com o tranquilo ou com o caótico. A beleza não é que Le Dernier Spectacle ludicamente se coloca “[...]
pautada em um discurso definitivo, e sim em códi- como uma peça que se desdobra em torno de um
gos subjetivos” (MÖDINGER et alii., 2012, p. 40). trocadilho contínuo sobre relações isomórficas en-
Se, por um lado, essa subjetividade não é reconhe- tre corpo, sujeito, identidade e os caminhos atra-
cida, por outro, ela é também abordada, como no vés dos quais eles são reificados e essencializados
registro de um comentário realizado por uma cole- (numa dupla sedimentação) como imagem” (2005,
ga sobre o trabalho de outro(a): “[...] muito boni- p. 17). Nesse sentido, a dança contemporânea pode
to o teu feio...hahahaha. Não sei se era a intenção, acessar um conhecimento mais raro, mais eventual,
mas no início fiquei completamente irritada” (LIL uma prática menos determinada pelos hábitos e fa-
sobre TNA, 2009/2). A categoria beleza, com efei- miliaridades. Foucault fala sobre isso com relação
to, movimenta-se no interior dos discursos sobre à música.
dança, em diferentes direções: ela pode funcionar
como uma ordem, uma promessa ou mesmo de Uma certa eventualidade na relação com a música
forma paradoxal como um apaziguamento entre as poderia preservar uma disponibilidade de escuta,
tensões – entre o belo e o contemporâneo, como e uma flexibilidade de audição. Mas quanto mais
no exemplo aqui apresentado. essa relação é frequente (rádio, discos, cassetes),
mais familiaridades se criam; hábitos se cristali-
A dança contemporânea tem mostrado diversos
zam; o mais frequente se torna o mais aceitável,
trabalhos que têm desafiado a ideia normatizada e rapidamente o único admissível. Produz-se
de beleza, trazendo outros modos de movimentos uma ‘facilitação’, como diriam os neurologistas.
que implicam um maior estranhamento. Pina Baus- (2001b, p. 394)
ch é um exemplo. Seus bailarinos são escolhidos
por sua personalidade e pelo o que eles têm a dizer,
mais do que por padrões de concurso de beleza. A contraconduta como conceito operatório de
São pessoas altas, baixas, jovens, velhas, magras, criação aparece, também, no estranhamento. Nessa
gordas ou de qualquer etnia. Sobre seu trabalho, relação entre a familiaridade e o estranhamento, vá-
Azevedo chama a atenção que: rias falas dos registros trazem o incômodo causado
pela dança contemporânea. Tal dança, nesse senti-
[...] em suas coreografias percebe-se a liberdade do, afina-se com o estranhamento solicitado pela
extrema de pesquisa, a importância do desenho contraconduta. Um(a) aluno(a) diz: “[...] ainda tenho
exato no espaço, o ritmo obsessivo de gestos que
muita dificuldade em assistir as coisas muito malu-
se repetem e repetem até a agonia. São movi-
cas; assisto, mas não gosto, me incomoda” (CAC,
mentos que se vão tornando automáticos e, ao
mesmo tempo, plenos de sentido. Pode se amar
2008/2). Na fala seguinte, o belo aparece ligado ao
ou odiar obra como essa, no entanto, ela jamais contemporâneo, ou melhor, apesar do contempo-
nos deixará indiferentes: são corpos que gritam râneo: “[...] como coreógrafa, admiro HB. Coreo-
e se torturam (muitas vezes impassíveis) e almas grafar é uma arte, um dom e é para poucos. Apesar
alucinadas em desespero mudo e solitário. (AZE- de contemporâneo, as coisas feitas por ela sempre
VEDO, 2008, p. 86) me tocaram” (CAC, 2008/2).
Se o estranhamento da dança contemporânea
Podemos ainda lembrar Jérôme Bel, com a obra parece aproximar-se da noção de contraconduta da
Le Dernier Spectacle (1998), como um exemplo de criação, como proposta pedagógica, é importante
desestabilização da dança na contemporaneidade. atentar-se para os perigos do que Primo chamou
Nessa obra, um dos bailarinos entra em cena e diz de “material de moda” (2005, p. 113). O que cha-
que é Jérôme Bel. Posteriormente, esse coreógrafo mamos dança contemporânea também nos pro-
entra vestido de André Agassi e se apresenta verbal- duz, como corpos que dançam, ela não deixa de ser
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discurso se movimentando no interior de outros prios modelos sensório-motores-interiorizados, ou


discursos. Sua heterogeneidade, sua multiplicidade seja, “[...] não se trata de buscar o gesto próprio,
e suas contradições podem funcionar, da mesma mas estando nele e sabendo dele, procurar afastar-
forma, como um discurso que nos produz e que se dele” (PRIMO, 2005, p. 119).
nos impõe condutas. Ao mesmo tempo, a dança contemporânea pa-
Primo (2005) fala das práticas alternativas que rece estar solicitando um corpo híbrido, versátil,
têm se legitimado na dança contemporânea. Ela proficiente em diversas técnicas e estilos e capaz de
chama a atenção para o fato de que muitas produ- dar conta das demandas diversas que nosso pró-
ções de dança contemporânea têm sido contami- prio tempo parece impor. Strazzacappa (1999, p.
nadas por um padrão de movimento que transita 165) afirma que “[...] não podemos falar em téc-
entre o natural, liberado de entraves ou organica- nica (singular), mas em técnicas (plural)”. Louppe
mente fluido. Ela diz ainda que “[...] ter consciência (2000, p. 31) diz que “[...] a hibridação é, hoje em
de seu próprio corpo, de seus gestos e movimentos dia, o destino do corpo que dança, um resultado
tornou-se ‘material de moda’” (PRIMO, 2005, p. tanto das exigências da criação coreográfica como
113). Seria fácil pensar que apenas o ballet clássico da elaboração de sua própria formação”. Se essa
produz clichês e que na dança contemporânea es- demanda parece estar presente no que considera-
taríamos a salvo de tal perigo, entretanto, mos o discurso da dança contemporânea, pode-
mos, entretanto, vê-la também na mídia através de
[...] ao mesmo tempo em que na dança contem- programas como So you think you can dance ― reality
porânea a padronização dos movimentos é mais show americano de competição de dança que vai
difícil ― sobretudo pela abertura e pelas hibri- ao ar nos Estados Unidos, no canal FOX e no Bra-
dações de estéticas e técnicas de trabalhos cor- sil na TV a cabo, no qual os participantes dançam a
porais nos quais o corpo assume como um feixe
partir de demandas de uma banca. O mesmo corpo
de forças, movimentando-se segundo estruturas
proficiente e versátil é solicitado pelos jurados nes-
maleáveis e móveis ―, nunca antes houve uma
tão intensa e rápida produção de clichês. Pode- se programa. A versão brasileira do programa, Se
ríamos aqui enumerar uma série de movimentos ela dança eu danço, no canal SBT, não é diferente.
e estéticas comuns na dança contemporânea que Esses atravessamentos constituem, portanto, a
beiram o modismo. É nesse ponto que se faz ne- criação; eles atravessam os corpos em formação,
cessário pensar a subjetividade da dança contem- eles se movimentam no interior do que se diz e do
porânea. (PRIMO, 2005, p. 116-117) que se faz em dança. Com efeito, o discurso da dan-
ça não está isolado dos discursos de outros campos
A contraconduta da criação iniciou, na nossa ativi- de conhecimento. Ao mesmo tempo, o discurso da
dade docente, apenas como um procedimento sim- dança é múltiplo, ou seja, o que esse trabalho pinça
ples de busca pelo diferente, pelo estranhamento, nas “coisas ditas” no material de análise não repre-
pelo desafio. Entretanto, identificar a conduta, para senta a totalidade da dança, apenas algumas de suas
dela escapar, implicou, também, a identificação dos nuanças.
elementos centrais que atravessam o corpo e que o
tornam aquilo que ele é. Tratava-se de identificar os Para concluir: multiplicar os discursos
discursos – aqui compreendidos não apenas como
o que se diz, mas, sobretudo, como a forma se- A dança ensina mais do que passos de dança e
gundo a qual praticamos dança com o nosso corpo modos de mover. Ela ensina comportamentos, con-
–, que produzem corpos singulares e específicos. dutas, regras, estéticas e vontades. Esses elementos
Tratava-se de compreender como cada corpo era não estão apenas naquilo que o professor diz, tam-
atravessado por determinações específicas, para pouco naquilo que expressa o aluno, eles circulam
poder colapsá-las durante a criação. pelos modos de fazer, de se movimentar e, na nossa
Esse desafio é a tarefa das práticas contemporâ- investigação, eles ficaram mais explícitos quando os
neas, ele implica extrair ferramentas capazes de fa- alunos precisavam compor uma sequência de movi-
zer o aluno/bailarino desembaraçar-se de seus pró- mentos, improvisada ou memorizada.
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É possível dar-se conta de como a dança é cerca- Trata-se, também, de reconhecer nossas próprias
da de critérios estéticos, de visões de corpo, de acep- construções de dança, aquela que acreditamos, que
ções de idade, de etnia, de gênero, entre outros. A defendemos. Reconhecê-las e colocá-las à prova.
noção de contraconduta operou como um exercício de Testá-las. Exercitar outros caminhos e exercitar ou-
pensamento no processo de construção coreográfi- tros olhares e pontos de vista. Por fim, reconhecer
ca, isto é, como uma técnica de autoconstituição de que nossos discursos são apenas mais um e parte
si como sujeito da dança. Ela possibilitou duas coi- de outros, numa trama sem fim. Não podemos fa-
sas importantes: 1) fazer os alunos se moverem de zer nada a não ser multiplicá-los.
forma diferente do que eles faziam; 2) desencadear
pensamentos complexos e múltiplos, evidenciando Referências
os atravessamentos discursivos a que cada um está
submetido. Esses dois movimentos não implicam AZEVEDO, Sônia Machado. O papel do corpo no cor-
apenas exercícios, não se resumem a um modo de po do ator. São Paulo: Perspectiva, 2008.
se mover, eles pressupõem, também, uma atitude BEL, Jérôme. Le Dernier Spectacle (1998). Vídeo.
ética. Pensar a criação como contraconduta é ficar Disponível em:
atento à rede de saberes e de poderes que envol- h t t p : / / w w w. j e r o m e b e l . f r / s p e c t a c l e s /
vem os nossos corpos, criando estratégias para não videos?spectacle=Le%20dernier%20spectacle.
cairmos nos perigos da comodidade. Pensar os cri- Acesso em 22/09/2014.
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dos sujeitos da dança e, mais ainda, importante na va dos contos de fadas na educação e cultura. In:
formação desses futuros profissionais que atuarão GREINER, Christine; BIÃO, Armindo. (Orgs.).
na formação de outros. Mais do que resultados con- Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Anna-
cretos na coreografia dos alunos, o avanço está na blume, 1999. p. 95-104.
inquietação despertada sobre as práticas pessoais CARVALHO, Yara Maria. O “mito” da atividade física
desses sujeitos da dança. e saúde. São Paulo: Hucitec, 1995.
Se somos todos atravessados por discursos, por CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um per-
modos de fazer que nos constituem como sujei- curso sobre seus temas, conceitos e autores. Belo
tos que dançam, o que nos resta fazer então? Nada Horizonte: Autêntica, 2009.
mais do que multiplicar os discursos e neles en- FISCHER, Rosa Maria B. O sujeito em Foucault:
contrar modos novos de movimento, novas possi- problematizações contemporâneas. In: III SE-
bilidades. Eis a multiplicidade da criação. A noção MINÁRIO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO,
de contraconduta não é apenas um modo de se opor 2000, Porto Alegre. Anais do III Seminário de Pesqui-
à conduta conhecida, mas, mais do que isso, uma sa em Educação. Região Sul. Fórum Sul de Coordenadores
maneira de multiplicar as possibilidades. Eis o que de Pós-Graduação ANPED. Porto Alegre: UFRGS/
chamamos de criação: multiplicar os movimentos. PPGE, 2000. p. 1-17. CD-ROM.
Assim, podemos nos fazer plurais e múltiplos. Isso FISCHER, Rosa Maria B. Televisão e educação: fruir
não deixa de ser o exercício mesmo da criação. A e pensar a TV. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
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em vários sentidos, nossa liberdade. FISCHER, Rosa Maria B. Foucault e a análise do
Assim, buscar os diferentes atravessamentos discurso em Educação. Cadernos de Pesquisa (CE-
nesses corpos dançantes foi dar-nos conta de que DES). [on-line]. 2001, vol. 114, p. 197-223. Dispo-
certas construções são tão corriqueiras na dança nível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/n114/
que, muitas vezes, são tomadas como naturais. Ou- a09n114.pdf >. Acesso em: 01 ago. 2009.
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trapassadas, por um ambiente acadêmico, ainda se MOND, Jane C. (Org.). Meaning in motion: new
fazem tão presentes no dia a dia do aluno. É pre- cultural studies of dance. EUA: Duke University
ciso, então, aproximar-se do movimento discursivo Press, 1997. P. 235-257.
no qual estamos imersos para des/reconstruí-lo. FOUCAULT, Michel. Corpos dóceis. In: FOU-
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