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A Fundamentação do Poder Político em Hobbes

Aguinaldo Pavão1
[artigo publicado na Revista Crítica, v. 2, n. 7, 1997, p. 251-292]

Resumo
O objetivo deste texto é analisar o argumento de Hobbes acerca da fundamentação do poder político. Para tanto,
divido em quatro partes a minha exposição. Inicialmente, faço algumas considerações sobre o tipo de tratamento
dado ao objeto em pauta. Em seguida, procuro reconstruir, a partir do estado de natureza, a tese hobbesiana do
contrato. Na terceira parte, trato de entender as bases e os principais predicados do Estado em Hobbes. Por fim,
examino o problema do dissenso dentro do corpo político. Ao longo do artigo são feitos confrontos com
Aristóteles, Locke, Rousseau e Kant.

Palavras-Chave
Estado de natureza; contrato; Estado; poder político; sociabilidade, absolutismo.

1. É perfeitamente razoável afirmar que a teoria do Estado em Hobbes insere-se no contexto


histórico da Inglaterra do século XVII, o qual foi, como se sabe, política e socialmente
tumultuado. No século XVII a Inglaterra viveu intensos conflitos entre o poder real e o poder do
parlamento. Todavia, eu gostaria de me afastar dessa inserção que, por ser tão razoável, pode
levar facilmente a uma improdutividade filosófica. Para os adeptos das contextualizações
históricas torna-se atrativo afirmar que Hobbes procurou legitimar o absolutismo como uma
alternativa à guerra civil da época de Carlos I e Cromwell. Uma vez situado em seu tempo, o
autor do Leviatã apresentaria uma justificação teórica da obediência política absoluta
historicamente circunscrita. É claro que esta interpretação é possível. Porém, ela será, aqui,
simplesmente desprezada. Que Hobbes esteja dialogando com o seu tempo, isso é assumido
pacificamente. Aliás, resulta mais interessante considerar um diálogo de Hobbes com o seu
tempo. Isso significa que ele está dizendo muitas coisas e não apenas ouvindo. A meu ver, tendo
em vista um propósito de análise meramente conceitual, convém selecionar a “fala” hobbesiana,
filtrando as suas pretensões filosóficas, isto é, universais. Por exemplo, pode ser que se esteja
de fato acertando o alvo quando se considera o estado de natureza em Hobbes como sendo
basicamente a descrição dos horrores da guerra civil da época de Carlos I e de Cromwell.
Porém, para ser fecundo o tratamento da questão, exige-se conceder atenção ao que
reivindicam as palavras do Leviatã e do De Cive, a saber, que o estado de natureza significa
uma abstração da vida dos indivíduos sob o poder político (onde, portanto, se supõe estarem
suspensas as obrigações ao cumprimento de leis e contratos).

Naturalmente, o resultado da análise pode oferecer conclusões corretivas às pretensões a-


históricas do texto. Embora eu não concorde com a tese de Macpherson, segundo a qual o
estado de natureza de Hobbes requer suposições sociais que se amparam num tipo específico
de sociedade (que ele chama de “sociedade de mercado possessivo”2), reconheço que, tendo tal
tese uma pretensão cuja validade emergiria de conjecturas não totalmente históricas, mas
também lógicas, a sua interpretação torna-se certamente estimulante. Em suma, o que eu quero
é tão-somente frisar que o procedimento de análise aqui adotado deixará de levar em

1
Professor de Filosofia da UEL.

2
Cf. C. B. MACPHERSON. A Teoria Política do Individualismo Possessivo - de Hobbes até Locke. Trad. de
Nelson Dantas. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
Macpherson afirma que Hobbes “estava, mais ou menos conscientemente tomando essa sociedade (de mercado
possessivo - AP) como seu modelo de sociedade como tal”(p.58). Em que pese eu não tratar de sua
argumentação neste artigo, gostaria de fazer referência a uma crítica a Macpherson que julgo pertinente. Trata-
se da seletiva leitura das causas do conflito entre os homens, referidas no capítulo XIII do Leviatã. Macpherson
concentra a sua análise apenas nas duas das três causas de conflito, a saber, a competição e a desconfiança.
Ele desconsidera a importância da terceira, a busca da glória. Dessa forma fica fácil ler o homem hobbesiano
como um “burguês” (veja crítica a Macpherson nessa perspectiva em Renato Janine RIBEIRO. Ao leitor sem
medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo.São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 17-19.).
2

consideração aspectos externos ao texto hobbesiano, limitando-se à dinâmica interna de sua


argumentação.

2. Hobbes pretende, tanto no Leviatã como no De Cive, apresentar uma justificação racional do
Estado e da obediência política. Ele diz no capítulo XLVI do Leviatã que o seu objetivo é expor o
que for “necessário para a doutrina do governo e da obediência” 3. Fundamentar uma doutrina do
governo (nós poderíamos falar com mais rigor em uma teoria do poder político) em Hobbes se
conjuga, como se percebe na citação, a uma fundamentação dos princípios mediante os quais o
indivíduo pode racionalmente reconhecer a conveniência para a sua autopreservação, de se
sujeitar a um poder comum, garantidor da paz. Para conseguir esse intento de justificação, a
estratégia adotada deve consistir, primeiramente, em considerar como o homem, uma máquina
de calcular em interesse próprio, agiria se estivesse isento das coações estatais. Mais
precisamente o que se trata de saber é qual a condição natural do homem abstraindo-se dela as
interações dos indivíduos próprias de uma comunidade política.

Deve-se observar que, assim delineada, tal estratégia já está visando causar prejuízo a uma
certa visão sobre o homem. Desde que se quer pensar a natureza humana fora dos registros da
esfera política, torna-se inevitável o choque com o “pressuposto ou ... postulado de que o
homem é um animal que já nasceu apto para a sociedade” 4. Realmente, se o homem é physei
politikon zoon como pensa Aristóteles5 temos então de rejeitar qualquer tentativa de justificação
do poder da Civitas de caráter artificialista. Se é assim, a própria questão da obediência política
encontra uma resposta fácil. Se sou por natureza “politikon zoon”, sujeitar-me ao poder político é
algo que se segue necessariamente desde que eu não seja uma besta ou um deus 6.
Solidariamente a isso, temos uma dedução da necessidade do Estado que prescinde mesmo do
esforço de justificação racional deste poder em relação ao indivíduo, pois este só é pensado a
partir daquele. Ora, Hobbes justamente põe a questão num outro sentido. O Estado só pode ser
pensado a partir do indivíduo. Pois, se se trata de buscar o fundamento do poder político é
porque esse poder pode ser posto em questionamento, suspeitando-se que o mesmo carece de
justificação. Portanto, cabe realizar uma espécie de experimento mental capaz de oferecer bons
argumentos para um indivíduo perceber que a instituição do poder comum (do Estado) é algo
requerido não pela natureza ou pelo querer de Deus, mas tão-somente pela razão.

Esse experimento mental se faz construindo um cenário hipotético chamado estado de natureza.
Convém, assim, procurarmos entender em que consistiria um tal estado.

3
Thomas HOBBES. Leviatã, ou, Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. de João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo, Nova Culural, 1988, vol. II, p. 177. Doravante as referências
ao Leviatã serão feitas no corpo do texto com a abreviação Lev., seguida do número do capítulo e página da
edição mencionada.
4
Thomas HOBBES. De Cive. Elementos Filosóficos a respeito do Cidadão. Trad. de Ingenberg Soler. Petrópolis,
1993, capítulo I, parágrafo 2, p. 50. De agora em diante, no corpo do texto: De Cive, número do capítulo,
parágrafo e página da edição citada.
5
Cf. ARISTÓTELES. Política, I, 1, 1253 a. Considerando procedentes as observações feitas por Hannah Arendt
sobre as diferenças profundas entre o político e o social (Cf. Hannah ARENDT. A Condição Humana. Trad. de
Roberto Raposo. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989, especialmente p.31-47), a tradução da Política de
Mario da Gama Kury (Brasília, UnB, 1988, 2a. ed) é infeliz, porquanto traduz “anthropos physei politikon zoon”
por “ o homem é por natureza um animal social”. As traduções de Roberto Leal Ferreira (São Paulo, Martins
Fontes, 1991 - trata-se de uma tradução a partir da versão francesa de Marcel Prelot) e de Nestor Silveira
Chaves (São Paulo, Atena, 1957) acertam. Na primeira lemos: “... animal naturalmente feito para a sociedade
política” (em linhas abaixo “animal cívico”). Na tradução de Nestor Silveira Chaves temos a precisão: “ ...
naturalmente um animal político”. É bom não deixar de registrar que Hobbes não estava atento para esse
problema, até mesmo porque o seu ponto, sendo o de mostrar que a ordem política e condição da sociabilidade,
implica em só considerar o social através do político.
6
Cf. ARISTÓTELES. Política, I, 1, 1253 a.
3

2.1. A primeira coisa a ser consignada nesta “simulação negativa da ordem social” 7 é a
igualdade. Os homens são iguais tanto em capacidade quanto em esperança de satisfação de
seus desejos. Vale registrar que a igualdade de capacidade não significa que os homens sejam
materialmente iguais em poder físico ou intelectual. Evidentemente que encontramos homens
dotados, quanto às “faculdades do corpo”, de mais força que outros. Igualmente em relação às
“faculdades do espírito”. Mas para Hobbes basta admitir a possibilidade da igualdade. “São
iguais aqueles que podem efetuar, um contra o outro, coisas iguais. Ora, os que podem fazer
coisas tão espantosas como matar, podem fazer coisas iguais entre si” (De Cive, I, 3, 52 - itálico
meu). A fundamental igualdade de capacidade está, portanto, em cada homem poder matar
outro homem. Não importa se se é fisicamente mais forte que outro homem; o mais fraco pode
tranqüilamente compensar isso através, por exemplo, de secretas maquinações e alianças.

Mas os homens não são apenas iguais em capacidade, eles também o são na esperança de
satisfação de seus objetivos. Para Hobbes, esse segundo tipo de igualdade deriva do primeiro
(Lev, XIII, 75). Realmente, se os homens se consideram igualmente capazes, eles se julgarão
também igualmente esperançosos quanto ao alcance de seus fins. Ora, dessas duas espécies
de igualdade é impossível evitar um estado de conflito. Pois, resultando da igual capacidade uma
igual expectativa, os homens que em muitos casos têm o mesmo desejo estarão em choque,
porquanto nem sempre é possível compartilhar ou repartir o consumo do que se deseja. Assim, a
impossibilidade do gozo conjunto de algo desejado ao mesmo tempo por dois homens leva um a
querer a subjugação ou a destruição do outro.

Deve-se observar que, se os homens são iguais em capacidade e esperança, eles também têm
de ser iguais em medo, em especial do medo de uma morte violenta em mãos alheias. A
igualdade dos homens como agentes potenciais de uma morte violenta determina a igualdade de
todos como vítimas potenciais de uma morte violenta. Trágico destino da igualdade, cujo fruto,
quando não for a própria morte deverá ser necessariamente a desconfiança recíproca. Ora,
sendo a autoconservação um fim básico do ser humano, impõe-se a exigência de antecipação
através da força e da astúcia. É mediante a força e a astúcia que se pode fazer frente a um
estado em que a ameaça de morte violenta em mãos alheias está sempre presente.

Percebe-se, assim, que o homem é um ser que realmente vive com desconfiança. Mas ele
também vive em competição com os outros. Além disso, ele deseja a glória. Ora, a competição,
a desconfiança e a glória constituem as “três causas principais da discórdia”. O homem, ser
competidor, quer o lucro e, para isso, quer tornar-se senhor das pessoas, quer “mulheres, filhos
e rebanhos dos outros homens” (Lev, XIII, 75). Visando defender isso, ele não pode confiar no
outro e, portanto, deve atacá-lo para obter segurança. Como ser desejante de glória, ele quer a
reputação e, para isso, talvez seja decisivo uma simples palavra, um sorriso, uma opinião
diferente, enfim qualquer sinalização de falta de apreço que atinja a si mesmo ou aos seus,
(Poder-se-ia chamar tudo isso de “ninharias”, mas elas não seriam menos potentes para
provocar o embate de seres tão carentes de reconhecimento).

Desta exposição sobre a “condição natural da humanidade” (natural condition of mankind)


podemos concluir que os homens, quando vivem sem um poder comum que mantenha o
respeito mútuo, encontram-se numa condição de guerra de todos contra todos. Esclareça-se que
esta “guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo
durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida” (Lev, XIII, 75). Estamos,
aqui, diante da famosa tese hobbesiana “bellum omnium contra omnes” como característica
fundamental do estado de natureza. Será útil, antes de se prosseguir na apresentação do
argumento de Hobbes, analisar com cuidado esse ponto.

2.1.1. É conhecida a crítica de Locke à identificação entre estado de natureza e estado de


guerra. O autor do Segundo Tratado avalia que o estado de natureza é um estado em que os
homens vivem “juntos segundo a razão, sem um superior comum na terra com autoridade para

7
A expressão encontra-se em Luiz Eduardo SOARES.A invenção do sujeito universal: Hobbes e a política como
experiência dramática de sentido. Campinas, Unicamp, 1995, p. 109.
4

julgar entre eles”, ao passo que um estado de guerra é um estado em que ocorre a “força ou
uma intenção declarada de força, sob a pessoa de outro” sem que haja “um superior comum na
terra para chamar por socorro”8. No primeiro, os homens vivem pacificamente em igualdade e
liberdade. Eles mantêm aí relações de reciprocidade e a liberdade que possuem não significa
“permissividade”, pois o direito de um é limite para a liberdade do outro 9. Ora, no segundo
(estado de guerra) há inimizade, maldade e destruição, violando-se, portanto, o preceito da
razão que manda não lesar ninguém10. No parágrafo 19 do Segundo Tratado, Locke, embora
não mencione o nome de Hobbes, certamente o tem em vista.

É claro que a distinção que propõe Locke se assenta numa visão mais positiva do homem. Mas
o que me interessa, aqui, é destacar que Locke interpretou mal o estado de natureza em
Hobbes. O autor do Leviatã apenas ponderou que “sem um superior comum na terra” que
garanta a paz, os homens viverão num estado de guerra. Este estado de guerra, Hobbes
esclarece, não significa o conflito empírico11, mas a disposição para tal enquanto não existe
outra garantia de segurança, exceto a força e a astúcia que cada um pode empregar por conta
própria em seu benefício. Portanto, quando se fala em “força, ou uma intenção declarada de
força” não se percebe o essencial que é a insegurança universalmente compartilhada pelos
indivíduos no estado de natureza. É isso que os coloca em disposição para a guerra. A
insegurança que um homem sente é suficiente para colocá-lo em estado de guerra com o outro,
porquanto ele julga que as razões que o deixa inseguro são as mesmas que qualquer outro pode
ter para não confiar nele. A “disposição” para a guerra da qual fala Hobbes não significa uma
“intenção declarada de força”. Não é preciso que alguém me dê a conhecer que usará de força
para subjugar-me, basta que eu saiba o que sou capaz de fazer contra ele para supor o que ele
é capaz de fazer contra mim. Isso me coloca em disposição para a guerra. Ora, a guerra de
todos contra todos é isto: disposição de guerra. Poder-se-ia, portanto, conceber tal guerra sem
uma gota de sangue derramada. Sem embargo de não ser empírica, uma guerra iminente é uma
guerra efetiva.

2.1.2. Com essa crítica à interpretação de Locke acredito que se joga luz à tese de Hobbes
sobre o estado de natureza como estado de guerra. Mas tem um outro ponto interessante ligado
ao belicismo do homem em Hobbes que gostaria de referir. É famosa a frase “homo homini
lupus”. Menos conhecida ao que parece é a tese, também hobbesiana, de que “o homem é um
deus para o homem”. Os homens que agem caritativamente, com justiça, obedecendo as leis de
seu país aproximam-se da “semelhança com Deus” (De Cive, Epístola Dedicatória, p. 275).
Todavia, na condição de lobo, basta ao homem perceber que o outro não segue as virtudes da
paz (justiça e caridade) para se tornar, numa situação em que o direito natural de
autopreservação não é limitado por nenhuma lei, um animal feroz em benefício de sua
segurança. Assim, é fácil cair em erro, detendo-se apenas na primeira frase, isto é, desde que o
“homem é um lobo para o homem”, então o homem seria em Hobbes por natureza mau. Mas

8
John LOCKE. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil - e outros escritos. Trad. de Magda Lopes e Marisa Lobo
da Costa. Petrópolis, Vozes, 1994, capítulo III, parágrafo 19, p. 92.
9
Idem, cap. II, # 4 a 6, p. 83-85.
10
Nesse contexto, parece proceder a crítica de Otfried Höffe a Locke quanto a concepção deste de estado de
natureza. Segundo Höffe, Locke, ao introduzir limites à liberdade interrompe “precocemente a abstração exigida
para o estado de natureza” (Justiça Política - Fundamentação de uma Filosofia Crítica do Direito e do Estado.
Trad. de Ernildo Stein. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 242. Höffe também está se referindo a Nozick, porém retenho
apenas o que toca a Locke). Um estado de natureza aos moldes lockeanos deve ser propriamente chamado de
um “estado de natureza secundário” pois ele envolve, não obstante a inexistência de uma instituição pública de
coerção, algo como “uma comunidade jurídica pré-estatal” (Op. cit., p. 243). Mas é apenas com um “estado de
natureza sistematicamente primário”, o qual, como reconhece Höffe se encontra em Hobbes, que se pode com
radicalidade colocar em questão o fundamento do poder político, pois neste tipo primário de estado de natureza
não intervém nenhum nível de limitação social da liberdade (limitação que carece de fundamentos).
11
Não obstante possa ser considerado como comportando referências empíricas. Por exemplo, a guerra civil e
as relações entre os Estados soberanos. Isso é muito menos do que pensou Locke, para o qual o estado de
natureza tinha referências empíricas amplificadas ( Cf. Segundo Tratado, ## 14 e 15). Como abstração lógica, o
estado de natureza em Hobbes aplica-se tanto ao passado, quanto ao presente e ao futuro.
5

essa conclusão é desautorizada pelo pensamento hobbesiano. Primeiro, porque se cairia em


dificuldades conceder maldade à natureza humana devido ao elemento lupino, ao mesmo tempo
em que se admite ser o homem um deus para o homem. Por certo, com a pouca popularidade
da segunda frase, essa dificuldade nem sequer surge para aqueles, digamos gentilmente,
“leitores” de Hobbes. Em segundo lugar, o prefácio do De Cive é claro: os homens não são maus
por natureza. Eles são tão-somente mecanismos finitos calculantes e desejantes e, como tais,
buscam o melhor para a sua conservação - busca esta que, num estado de guerra, justifica o
uso de qualquer expediente que o indivíduo julgar necessário. Antes do aparecimento do Estado
não há o bem e o mal, nem o justo e o injusto. Tudo o que se faz para evitar a própria destruição
é autorizado por ditames racionais, pois no estado de natureza eu sou o juiz que decide. No
estado de natureza “as noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem (aí) ter lugar”
(Lev., XIII, 77). Assim sendo, pode-se perceber o equívoco do “cidadão de Genebra”. No
Discurso sobre a Desigualdade, ele afirma, depois de sustentar que no estado de natureza os
homens não “poderiam ser nem bons nem maus”, que não se deve “concluir com Hobbes que,
por não ter nenhuma idéia de bondade, seja o homem naturalmente mau”12.

2.2. Agora, admitindo um tal estado bélico, temos de reconhecer que a condição em que nele os
homens vivem só pode ser miserável. De fato, com a inexistência de sociedade, com o
incessante medo de morte violenta “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e
curta” (Lev., XIII, 76). Ora, uma vez que o homem é um ser que procede por cálculos que têm
em vista a sua autoconservação, o estado de natureza não lhe convém. É racional que se
busque a paz, pois se os homens são naturalmente iguais, o estado de guerra não pode terminar
pela vitória de um indivíduo isolado sobre o outro. Assim, a única alternativa que possibilita a
garantia de segurança está simplesmente na negação do estado de guerra. Mas isso é um tanto
curioso. Primeiramente se julga racional, haja vista o fim da autoconservação, adotar estratégias
preventivas, mediante a antecipação do conflito, o que leva o indivíduo pela força e pela astúcia
a subjugar os outros, isto é, aumentar o seu poder. Porém, em seguida, se reconhece, digamos,
a “irracionalidade” de tal estratégia, pois ela se constitui propriamente no que significa o estado
de guerra, o qual deve ser por ordem da razão abandonado. Nessa perspectiva, é com razão
que Balthazar Barbosa Filho afirma que “o estado de natureza é autocontraditório, pois é
engendrado por um fim que ele mesmo anula”13. Dessa forma, se tem o que Balthazar Barbosa
Filho chama de “paradoxo de superfície, onde a razão parece entrar em conflito consigo
mesma”14. Mas, ao lado disso, ocorre também um “paradoxo da composição”, em que “aquilo
12
Jean-Jacques ROUSSEAU. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens.
Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo, Nova Cultural, 1988, p. 56. Convém observar que a noção de
estado de natureza em Rousseau é diferente da de Hobbes não apenas na consideração feita acerca do homem.
Conforme as palavras da introdução ao Discurso sobre a Desigualdade, o estado de natureza resultaria de uma
elaboração hipotética e não empírica. Mas Rousseau não deixa, no entanto, de recorrer à literatura sobre o “bom
selvagem” que ocupa uma boa parte das notas do seu livro. Inclusive esse fato leva Paul Arbousse-Bastide,
responsável, ao lado de Lourival Gomes Machado, pela introdução e notas da edição do Segundo Discurso
citada, a afirmar que um dos temas nas notas de Rousseau diz respeito ao “caráter científico de sua descrição
do estado de natureza” (p. 87). Em relação a esse ponto, Norberto Bobbio julga que “em Rousseau ... o estado
de natureza é ao mesmo tempo um fato histórico e uma idéia reguladora”, os quais se encontrariam “fundidos
conjuntamente” (Norberto BOBBIO. “O Modelo Jusnaturalista”. In: BOBBIO, N. e BOVERO, M. Sociedade e
Esatado na Filosofia Política Moderna. São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 52). Se concedermos a Roussseau o
afastamento de todos os fatos (Discurso sobre a Desigualdade, p. 40) ainda assim o seu estado de natureza não
deixará de ser uma hipótese histórica e não lógica (como quer Hobbes). Também nisso Rousseau entendeu mal
o autor do Leviatã. Rousseau pensou que Hobbes merecia censura por falar do homem selvagem e acabar
descrevendo o homem civil (Discurso sobre a Desigualdade, p. 40 e 56). Ora, Hobbes em nenhum momento
quer falar do homem selvagem e a sua descrição do estado de natureza, sendo uma simulação negativa da
ordem social e não uma exposição do estado primitivo da humanidade, pode muito bem indicar traços
fundamentais do homem civil. Nesse contexto, cabem as palavras de Renato Janine Ribeiro: “... o homem
natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza
do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a vida social” (R. J. RIBEIRO. “Hobbes: o medo e a
esperança”. In: WEFFORT, Francisco (org.). Os Clássicos da Política. São Paulo, Ática, 1991, p. 54).
13
Balthazar BARBOSA FILHO. “Condições de autoridade e autorização em Hobbes”. Filosofia Política, 6, Porto
Alegre, L&PM, 1991, p. 70.
14
Ibidem.
6

que em um primeiro momento é bom para cada um, não pode sê-lo para todos. Portanto, em um
segundo momento, não pode ser bom para cada um (distributivamente considerado)” 15. Assim,
evitar o autocontraditório é, ao mesmo tempo, evitar a autodestruição. É rigorosamente um
preceito racional básico procurar a paz.

2.3. Isso firmado, convém agora entender, com Hobbes, duas noções fundamentais. Refiro-me à
noção de “direito de natureza” e de “lei de natureza”. Por “direito de natureza” devemos entender
“a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a
preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo
aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim”
(Lev., XIV, 79). Portanto, o conceito de direito de natureza, diferentemente por exemplo de
Locke16 , não contém nenhum limite, exceto evidentemente os limites naturais que o poder
humano não consegue ultrapassar. Assim considerado, o direito de natureza, que é bom
registrar, é universalmente válido, significa uma nova dificuldade, porquanto a sua reivindicação
é sempre legítima no estado de naturzea. Dessa forma, temos de admitir que cada indivíduo tem
direito sobre todas as coisas (ius in omnia). De fato, qualquer coisa pode ser um meio para a
autopreservação. Uma vez que um indivíduo, governado por sua própria razão, considere isso
ou aquilo como algo que pode lhe servir para sua conservação, então ele tem o direito a isso ou
aquilo. Sendo assim, um tal direito de natureza não pode senão provocar um estado de guerra.
Ora, a razão está empenhada na negação do estado de guerra, portanto, ela deve impor algum
corretivo ao direito de natureza. Todavia, o direito de natureza não se corrige. Os danos que ele
causa só podem ser evitados por renúncia, a qual requer, como condicionante, uma esperança
de paz.

Muito bem, agora cabe falar sobre a “lei de natureza”. Esta significa para Hobbes “um preceito
ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que
possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que
pense poder contribuir melhor para preservá-la” (Lev., XIV, 78). Percebe-se assim que o sentido
da lei se liga ao de obrigação, em contraste com a noção de direito que se vincula ao de
liberdade. Conforme pensa Hobbes, não existindo impedimentos externos à minha ação, sou
nesse caso livre (Lev., Ibid.). Ora, o direito nada prescreve em relação à minha liberdade, senão
que autoriza qualquer ação. Ao contrário, a lei visa claramente regrar esta liberdade sem limites
(exceto os impedimentos externos). O que Hobbes pretende ao se referir à lei da natureza
consiste em dotar as ações humanas de um nível ainda mais sutil de racionalidade. É necessário
para a minha autoconservação que eu esteja equipado de uma obrigação primordial: buscar a
paz. Pode-se falar, portanto, de um dever que a razão impõe em benefício de uma vida segura.
Mas convém observar que o direito de natureza também é um componente básico da formulação
genérica do preceito da razão. De fato, este “preceito ou regra geral da razão” determina “que
todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e
caso não a consiga pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra” (Lev., XIV, 78).
Quer dizer, se “procurar a paz e segui-la” é uma “lei primeira e fundamental da natureza”,
irrenunciável do ponto de vista da razão, não menos racional é perceber que se tal busca não
lograr êxito estou autorizado a exercer o direito de natureza, através do qual todos os meios
podem ser usados tendo em vista minha defesa. Contudo, esta autorização que a razão concede
está condicionada. O que cumpre ser realizado é a busca da paz. Esta busca é um imperativo,
certamente não categórico nos moldes kantianos, mas talvez não menos imperioso se se julgar a
autopreservação como um fim irrenunciável. A propósito, se tomássemos a distinção de Kant
(imperativos categóricos e hipotéticos), poderíamos formular, de forma naturalmente hipotética, o
seguinte mandamento da razão: Se quero a preservação de minha própria vida, então devo
buscar a paz.

15
Ibidem.
16
Cf. John LOCKE. Segundo Tratado, cap. II, # 6, p. 84: “O ‘estado de natureza’ é regido por um direito natural
que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é esse direito, toda a humanidade aprende que, sendo todos
iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, saúde, sua liberdade ou seus bens”.
7

2.4.1. Chegamos, assim, ao momento crucial da argumentação hobbesiana acerca da


fundamentação da obrigação e do poder político. Estamos na iminência de abandonarmos o
estado de natureza. Cabem, portanto, algumas palavras de despedida. É supremo o horror para
os homens a perspectiva de morte violenta em mãos alheias. Esta perspectiva poderia não ser
mais do que um horizonte de risco. Mas se fosse apenas isso, já seria muito. Vimos que o
estado de natureza, como estado bélico, não precisa ser entendido como dizendo respeito a
embates empíricos entre os homens. Para se estar em guerra com um outro homem não se faz
necessário usar a força contra ele ou declarar a intenção de usá-la como pensou Locke. É
interessante em Hobbes a idéia de que a guerra se realiza, quer dizer, é efetiva, embora não
deixe de ser uma guerra virtual. Guerra virtual que deriva do zelo extremado que os homens têm
com a sua própria conservação. Ora, um tal esmero, o esmero supremo, não pode senão
considerar indesejável a insegurança do estado de natureza.

2.4.2. Deve-se observar ainda que se por paixão, conforme ensina Hobbes, temos de entender a
capacidade de designar finalidades, isto é, o poder de realizar “movimentos voluntários”, não
seria rigoroso considerar que a busca da paz, que a razão impõe como magno dever, se dirija
contra as paixões. Não se trata em Hobbes de opor a razão às paixões para se conseguir a paz.
Pois, sendo a autoconservação a finalidade suprema dos homens, ela se apresenta como “uma
paixão fundamental que resume a economia das paixões”. Ora, as “únicas manifestações” da
autoconservação “são negativas, sob a forma de medo, ou mediadas, sob a forma da razão”17.
Poder-se-ia inclusive dizer que o medo, especialmente o medo da morte violenta em mãos
alheias, não obstante sua negatividade confunde-se com a própria razão. “Forçando um pouco a
elasticidade das categorias hobbesianas, dir-se-ia que o movimento imanente à razão, ao
cálculo, é exatamente equivalente à dinâmica natural autoconservadora, denominada paixão. ....
poder-se-ia ousar sugerir que a razão é, ela própria, uma paixão”18. Ao menos deve-se admitir,
se a preferência for por um tom mais comportado, que o medo é a condição a partir da qual a
razão promoverá, a serviço da paz, um arranjo das paixões geradoras do desregramento que
caracteriza o estado de natureza. Se o medo de morte violenta é a paixão que designa a
finalidade da paz, então a razão não se opõe às paixões, mas apenas as organiza. Falar, assim,
em “razão pura prática”, como quer Kant seria, em termos hobbesianos, emitir um “simples som”,
como “quadrângulo redondo” (Lev., IV, 25).

2.5. Como vimos, a primeira lei de natureza determina “procurar a paz e segui-la”. Ora, tem de
se reconhecer, a partir desse supremo mandamento da razão, a necessidade de uma segunda
lei que diga mais precisamente o que cumpre faz para se conseguir a paz. Assim, deriva-se da
primeira a segunda lei que ordena: “que um homem concorde, quando outros também o façam, e
na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em
renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se em relação aos outros homens, com
mesma liberdade que aos outros permite em relação a si mesmo” (Lev., XVI, 79). Esta lei deixa
claro basicamente dois pontos: (i) deve-se renunciar ao direito natural sobre todas as coisas; do
contrário, a rigor, não se poderia mesmo falar em direito, pois se todos têm direito a todas as
coisas ninguém tem direito a nada (Cf. De Cive, I, 11, 54); (ii) esta renúncia só é racional - tendo
em vista a escala absoluta de racionalidade que é autopreservação - se todos concordarem com
ela, por isso o condicional “quando outros também o façam”. Realmente, seria de todo
imprudente uma renúncia unilateral do direito de natureza, pois isso não resultaria em benefício
do sujeito que renunciou.

Se é apenas através da renúncia do direito sobre todas as coisas que se pode negar o estado de
guerra, então é preciso uma certeza mínima de que essa renúncia será recíproca, pois, como ato
voluntário, a renúncia ou transferência de direito deve visar um bem 19 para aquele que o quer.

17
Luiz Eduardo SOARES. Op. Cit., p. 201.
18
Idem, p. 170. Veja também p. 221, onde Soares fala da razão como uma “modalidade muito peculiar de paixão
autoconservadora.
19
Lev. XIV, 80: “... o objetivo de todos os atos voluntários dos homens é algum bem para si mesmos”. Também
em De Cive, II, 8, 60.
8

Estamos, assim, diante da noção de “contrato” (contract). Para Hobbes, contrato significa a
“transferência mútua de direitos” (mutual transferring of rights) (Lev., XIV, 80). O termo
“transferência” (transferring), ao invés de “renúncia” (renouncing) na definição de contrato parece
não cumprir papel importante. Porém, cabe registrar que transferência significa para Hobbes
uma modalidade de abandono de um direito em que “se pretende beneficiar uma determinada
pessoa ou pessoas” (diferentemente do abandono de direito por renúncia em que “não importa
em favor de quem irá redundar o respectivo benefício”) (Lev., XIV, 79).

A transferência ou renúncia recíproca de direitos na qual pretendem se engajar os contratantes


para evitar o estado de guerra, na medida em que envolve um “crédito de confiança”, chama-se
“pacto” (De Cive, II, 9, 61 - no Leviatã, XIV, 80: pacto ou convenção). O que está em questão é o
sentido da noção de promessa (promise), que traduz a idéia de obrigação, a qual é contraída
mediante o pacto. Está bem claro que existe, portanto, um compromisso mútuo das partes em
abandonar o direito ilimitado que gozavam no estado de natureza. Esse compromisso mútuo se
estriba numa outra lei de natureza, a terceira, que manda “que os homens cumpram os pactos
que celebrarem” (Lev., XV, 86). Agora, pode-se dizer que Hobbes nos instruiu suficientemente
para termos receio disso. Ou seja, como acreditar que o pacto será cumprido, desde que
sabemos como é o homem. Se se tratasse de um contrato cujo objetivo fosse executado logo em
seguida, evidentemente não haveria problemas. Todavia, o contrato em questão envolve uma
expectativa gerada pela promessa de que futuramente serão mantidas as palavras. Ora, “em
estado de natureza são inválidos os pactos feitos em contrato de confiança recíproca” (De Cive,
II, 11, 62). E a razão dessa invalidade é simples: pode-se considerar perfeitamente razoável que
os outros contratantes empenharam suas palavras com a finalidade de, uma vez tendo eu
deposto minhas armas que, legitimamente, empunho no estado de natureza, lançarem-se sobre
mim. Assim, eu estaria entregando-me ao inimigo e abandonando o direito inabdicável de
defender a minha própria vida. Portanto, o estado de guerra, não deixa de perdurar porque as
pessoas prometeram abandoná-lo. Palavras certamente não podem valer muita coisa num
estado de desconfiança generalizada.

Mas é claro que, assim colocado o problema, já se pressente a sua solução. Uma razão instruída
pela suspeita, uma razão que se pode dizer tem sua germinação no medo da morte violenta,
forçosamente concederá assentimento à seguinte proposição: “ ... os pactos sem a espada não
passam de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém” (Lev. XVII, 102).
Portanto, o que cumpre fazer é pensar na instituição de um poder comum que, através da força,
garanta o cumprimento do contrato. Este poder comum, que deve se situar evidentemente acima
dos contratantes, infligirá sanções aqueles que violarem o pacto, de tal forma que fique claro que
o seu rompimento não é fruto de um bom cálculo. O bom cálculo doravante será respeitar o
pacto, porquanto o benefício de violá-lo redundará sempre num custo incomparavelmente
superior. Dessa forma, o contrato tem assegurada a sua validade. De fato, o poder coativo é a
única garantia de que é racional depor as armas, pois, se o outro quiser me atacar, ele terá
necessariamente de pesar um medo não pequeno de ser atingido pela espada de quem jamais
deporá armas, isto é, o poder comum. Este poder, que cuida de impedir que outros com ele
compartilhem da prerrogativa de portar o gládio, pune implacavelmente as transgressões. Nesse
contexto, pode-se afirmar que o medo da morte violenta para ser superado requer o medo do
poder comum. Naturalmente que o segundo medo é o único a garantir a esperança de uma vida
segura e o quanto possível feliz20

Isso considerado, a tarefa seguinte consiste em compreender como se institui e o que significa
precisamente o poder comum

20
Renato Janine RIBEIRO. Ao leitor sem medo, p. 245: “... até haver Estado, o medo é a paixão que melhor nos
define. Depois, porém, contém-se o temor à morte bruta, ao qual não se compara o novo medo, ao soberano:
com ser discricionário, este é discreto, e se levarmos uma ‘vida retirada’ estaremos tranqüilos. O Estado favorece
nossas esperanças”.
9

3. Sendo a pretensão dos homens, com a instituição do poder comum, basicamente a


segurança, que é condição para uma vida satisfeita, o detentor da espada terá naturalmente de
ser incumbido da função de defender os homens “das invasões dos estrangeiros e das injúrias
uns dos outros” (Lev., XVII, 105). Porém, antes de verificar com atenção as suas funções, é
necessário perceber como ele é instituído.

A instituição do poder comum deverá resultar da concessão total da força e do poder dos
contratantes seja a um homem, seja a uma assembléia. Antes de se prosseguir desenvolvendo o
argumento de Hobbes sobre a instituição do poder político, deve ficar claro que, não obstante o
autor do Leviatã preferir a monarquia por razões técnicas, ele não concentra a sua
argumentação nesse aspecto. Isso mostra que Descartes, a exemplo de muitos outros leitores
menos famosos, equivocou-se ao pensar que o objetivo de Hobbes fosse compor um discurso
apologético da monarquia absoluta. Tanto monarquia, quanto democracia ou aristocracia 21,
conforme fica evidente no capítulo XIX do Leviatã e VII do De Cive, são espécies de governo
igualmente válidas do ponto de vista das exigências de um poder comum coercitivo. Quer dizer,
a monarquia não é uma forma de governo necessária para o exercício do poder político em
termos hobbesianos22

Retomando o argumento acerca da instituição do poder comum, cumpre observar que a


concessão total da força e do poder dos contratantes, ao visar reduzir a diversidade volitiva a
uma só volição, como única maneira de se garantir uma estrutura coercitiva garantidora da paz,
vai muito além de um simples consentimento ou concórdia. A redução das diversas vontades a
uma só - que envolve rigorosamente uma “submissão das vontades” (De Cive, VI, 13, 103) -
significa o reconhecimento de que a designação de um homem ou uma assembléia de homens
torna-os representantes das pessoas dos contratantes. Logo, os atos praticados pelo
representante no tocante à paz e a segurança também deverão ser considerados atos daqueles
que delegaram o poder. Com isso se chega a uma verdadeira unidade de todos as pessoas
numa só e mesma pessoa, de tal forma que caberia a seguinte declaração dirigida de um
homem para outro: “cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem,
ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as suas ações” (Lev., XVII, 105). Dessa forma, a multidão, unindo-se
numa só pessoa, constitui o que propriamente deve ser chamado Estado.

O Estado, assim, instituído, recebe o jus in omnia pertencente a cada indivíduo no estado de
natureza. Na realidade, o Estado incorpora um poder fantástico, porquanto é predicado exclusivo
seu o uso da força, o que significa dizer que, abaixo do Deus Imortal, não é possível existir poder
que a ele se compare. Pode-se, portanto, chamar o Estado de um “Deus Mortal”. Poder-se-ia
também, menos reverentemente, chamar o Estado de “Leviatã”, tendo presente a referência que
se encontra no livro de Jó do monstro aquático (há também referência em Isaias). É justamente
com a entrada em cena do monstro “Leviatã” que se cessa, para acompanhar a imagem, a
“monstruosidade” do estado de natureza, um estado abominável onde a perspectiva de morte
violenta é constante, onde a vida é curta, sórdida e solitária.

Para tornar mais claro e rigoroso o que precede, Hobbes nos oferece formalmente a definição da
essência do Estado, a qual consiste nos seguintes termos: “Uma pessoa de cujos atos uma

21
Para Hobbes, termos como tirania e oligarquia, tradicionalmente referidas como formas degeneradas da
monarquia e aristocracia respectivamente, não significam outras formas de governo. Tirania e oligarquia são
apenas os nomes dados para formas de governo quando detestadas. Uma vez que o Estado, como veremos,
deve implicar no exercício ilimitado da soberania, uma distinção aos moldes aristotélicos entre “boas” e “más”
formas de governo é sem sentido.
22
Pierre MANENT. História Intelectual do Liberalismo. Rio de Janeiro, Imago, 1990, p. 53: “... a comparação
entre os respectivos méritos dos diferentes regimes políticos parece basicamente supérflua a Hobbes. Sem
dúvida, podemos de fato distinguir entre democracia, aristocracia e monarquia, mas quer o soberano seja um,
vários ou todos, o importante é que seja o soberano e tenha o direito de exigir total obediência”. Cf. também:
João Paulo MONTEIRO. “Democracia hobbesiana e autoritarismo rousseauniano”. .Manuscrito, vol. III, N. 2,
1980, p. 36.
10

grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como
autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar
conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum” (Lev., XVII, 106). O nome do portador
dessa pessoa é “soberano” (sovereign), o qual possui o que se chama “poder soberano”
(sovereign power), cabendo aos demais a designação de “súditos” (subjects). Assim sendo,
impõe-se a tarefa de analisar as conseqüências dessa concepção de poder político.

3.1. Inicialmente, deve-se chamar a atenção para o caráter artificial do Estado... “... pela arte é
criado aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é
senão um homem artificial” (Lev., Introd, p. 5). Contra Aristóteles, que considera justificada a
pólis por esta representar o vértice do desenvolvimento da sociabilidade natural do homem,
Hobbes fundamenta a obediência civil e o Estado numa convenção. Os indivíduos instituem uma
estrutura de poder mediante um acordo voluntário com vistas a se manterem ao abrigo da morte
violenta. A organização política chamada Estado é uma construção deliberada dos homens. É
importante dar-se conta de que a legitimidade do “Leviatã”, tendo como base o assentimento de
cada um é “essencialmente democrática” como bem assinalou Pierre Manent23. De fato, não
obstante soar estranho em se tratando de Hobbes, um teórico do Estado absoluto, o “modo de
geração e instituição” do poder soberano, não derivando da natureza ou da vontade divina, mas
da anuência dos pactuantes, só pode ser considerado legítimo por se tratar de uma forma de
fundação do poder querida pelos homens. Se Hobbes “fez questão de ser o anti-Aristóteles”24,
também poder-se-ia dizer que ele, embora não tenha se preocupado com o autor do Patriarca,
não deixou de ser também um anti-Filmer (é claro que não como gostaria Locke). Mas não há
dúvidas que Hobbes e Locke - e também Rousseau - concordam quanto a artificialidade do
Estado. É, portanto, arte dos homens a edificação da ordem política.

Nessa perspectiva, o contratualismo de Hobbes - isso vale também para Locke e bem pouco
para Rousseau - pode ser lido, conforme referência feita no início, como uma insurgência
filosófica contra a concepção holista ou orgânica da sociedade, a qual geralmente é considerada
como tendo em Aristóteles o seu grande representante25. Não tem mais validade em Hobbes
uma physis teleologicamente hierarquizada doadora de sentido às interações humanas. A
sociedade política deriva de uma equação cujos dados estão situados numa natureza
mecanicamente entendida. Estes dados da equação são indivíduos, vale dizer, átomos sem
nenhuma identidade garantida, exceto o predicado de máquinas que procuram manter-se em
movimento, isto é, preservarem-se. A sociabilidade, cuja condição de possibilidade reside na
estrutura política, não se garante pela força dos costumes e tampouco pela adesão a uma
finalidade política partilhada. A sociabilidade se funda numa acomodação dos indivíduos em face
de seus interesses elementares. Assim sendo, torna-se mais nítida a razão por que compete ao
Estado basicamente assegurar a paz. O ordenamento político não visa proporcionar aos seus
membros uma vida feliz conforme o modelo aristotélico; o seu fim é tão-somente instrumental,
haja vista que ele funciona como um recurso, o único, para frear o destino potencialmente trágico
dos homens. De fato, um destino trágico, já que estes comportando-se também como lobos e
não simplesmente como deuses, na ausência de um poder comum se destruiriam.

23
Pierre MANENT. Op. Cit., p. 54.
24
Gérard LEBRUN. O que é Poder. São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 37.
25
Eu digo “geralmente”, porque esse ponto, para quem se interessa pelo pensamento do estagirita, não é
pacífico. Se Aristóteles sustenta que o cidadão não pertence a si mesmo, mas pertence à cidade, “pois cada um
é parte da cidade, e é natural que a superintendência de cada parte deva ser exercida em harmonia com o todo”
(Política, VIII, 1, 1337 a, ed. UnB p. 267), ele também sustenta, como muito bem mostram Gauthier e Jolif, que a
Pólis deve ter como finalidade básica assegurar condições para o aperfeiçoamento moral do indivíduo. A partir
disso pode-se afirmar que “la doctrine d’Aristote reste ainsi un individualisme ... et surtout un moralisme: les fins
politiques y sont délibérément soumises aux fins éthiques” (René Antoine GAUTHIER et JOLIF, Jean Yves.
“Commentaire”. In: ARISTOTE. L’Étique à Nicomaque. Tome II. Louvain, Publications Universitaires; Paris,
Béatrice-Nauwelaerts, 1970, p. 904). Eu considero mais produtivos os “momentos” claramente não-holistas
encontrados no final do Tratado sobre a Justiça (Ética a Nicômaco, V) e na crítica à unidade da cidade ideal de
Platão (Política, II). Agora, por certo deve-se admitir que esse não-holismo, importante para distinguir Aristóteles
de Platão, está muito aquém do que um pensador moderno poderia considerar digno de nota.
11

3.2. Na definição da essência do Estado consta que o soberano está autorizado a “usar a força e
os recursos de todos da maneira que achar conveniente”, desde que ele tenha como fim aquele
em virtude do qual ele foi erigido a autoridade máxima, isto é, a paz e a defesa comum. Dessa
forma, está assentado o princípio do estado absoluto. Não precisaríamos de outras citações para
concluirmos que o poder do soberano é ilimitado. Um argumento para demonstrar a força dessa
tese seria o seguinte. Se “quem tem direito a um fim tem direito aos meios” (Lev. XVIII, 109),
então o soberano tem o direito de fazer o que bem entender para alcançar o objetivo que é a
razão de sua existência - de evitar a guerra de todos contra todos. Realmente, o soberano tem
direito ao fim que é a paz; este lhe foi voluntariamente concedido pelos homens como forma de
anular o desregramento inerente ao estado de natureza. Ora, o meio fundamental para se obter
o fim referido é o monopólio do uso da força26. Mas, naturalmente, o exercício exclusivo da
coerção é uma noção genérica e o que Hobbes tem em vista quando argumenta sobre o direito
aos meios para quem tem direito ao fim são os procedimentos múltiplos que se devem adotar
para estabilizar as relações humanas. Portanto, a questão seria perceber que os procedimentos
necessários para a preservação da paz e da segurança não competem senão ao juízo daquele
que detém o poder supremo. Mas isso soa curioso, pois a impressão que se tem é que os
indivíduos, que conferiram ao soberano a tarefa de os proteger das injúrias recíprocas, seriam
incapazes de discriminar os meios necessários para a paz dos meios desnecessários. Porém,
não é esse o ponto de Hobbes. Ele poderia perfeitamente conceder que muitos homens são
capazes de reconhecer o que seria mais conveniente para a paz. Todavia, a questão reside num
dado essencial: os homens pensam diferentemente.

A divergência de opiniões entre os indivíduos é algo inarredável. Dessa forma, alguém poderia
pensar que o argumento dos fins e dos meios, por si só, não é uma boa oferta de razões para o
absolutismo. Inclusive porque se poderia atacá-lo com um contra-argumento muito simples: no
estado civil as pessoas têm direito à felicidade e, portanto, têm direito aos meios através dos
quais elas podem ser felizes, mas certamente não a quaisquer meios que privadamente julguem
convenientes. A questão não se encontraria, então, na força analítica da proposição “quem tem
direito a um fim tem direito aos meios”. Ora, eu pretendo defender que essa frase permite sim, é
claro dentro do contexto da argumentação de Hobbes, justificar o absolutismo. É preciso olhar
com atenção para o sentido do argumento dos fins e dos meios. Contrapor a felicidade, como
direito dos indivíduos, à paz, como direito do soberano, pode ser um lance arriscado. A
felicidade, se admitida pelo Estado como um fim dos indivíduos, exigirá a licença para proceder-
se segundo meios capazes de tornar tal fim viável. Quer dizer, ela jamais poderia ser admitida
como um fim se fossem proibidos os devidos procedimentos de sua exeqüibilidade. O mesmo
acontece com a paz. Só que, neste caso, os indivíduos consentiram em encarregar um homem
ou uma assembléia para dar conta de tal fim. Ou seja, os indivíduos reconheceram-se incapazes
de conquistar a paz sem o recurso a um poder comum, o qual é autorizado por eles mesmos
como a única autoridade competente para a obtenção da segurança que visam. Ora, essa
autorização é justamente feita mediante a outorga de todo o poder que cada indivíduo possuía
no estado de natureza. Logo, a paz como um direito do soberano significa um fim cujos
procedimentos de obtenção requerem poderes absolutos27. Assim, é a própria paz como um fim
que gera a legitimidade do uso de qualquer meio. Deve-se observar que, estando colocados os
termos da questão da forma como estão colocados, só se poderia discriminar os meios
necessários dos desnecessários para a paz se ela fosse um fim outorgado ao soberano depois

26
Esta linguagem lembra evidentemente Max Weber. Em seu texto “A Política como Vocação”, lemos: “O
Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio exclusivo da força física dentro de um
determinado território” (In: Ensaios de Sociologia. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan,
1982, p. 98). É de se notar que esta definição não é rigorosa, porquanto sugere o monopólio da força como um
fim. Mas Weber, conforme percebe-se nas linhas anteriores à citação, fala no uso da força como “um meio
específico do Estado” (Ibidem), o que mostra que ele não tinha como propósito primeiro apresentar, na
passagem referida, uma definição tecnicamente precisa.
27
Sendo a soberania absoluta, o seu poder é indivisível. À mesma pessoa devem pertencer, sob pena de
conflitos desestabilizadores, as espadas da guerra e da justiça, bem como a prerrogativa de estabelecer os
mandamentos para o controle das ações dos cidadãos (Lev., XXIII, 110 e De Cive,VI, 7-9, 104-105).
12

de um certo acordo entre os homens acerca da questão da conveniência ou inconveniência de


certos procedimentos de viabilização da paz. Mas, segundo Hobbes, como vimos, nenhum
acordo tem validade sem o gládio comum. Um possível acordo antes da instituição do Leviatã
com vistas a orientar suas ações é sem sentido. Seriam meras palavras, vento, fumaça.

3.3. Considerado isto, podemos extrair mais um corolário decisivo. Sendo o pacto realizado
apenas entre cada um dos indivíduos e não entre eles de um lado e o soberano de outro, o
soberano jamais pode violar qualquer preceito. Pensar o contrário seria dotar de razoabilidade o
irrazoável, isto é, supor um pacto obrigando o soberano dentro de certos limites, sendo que é
precisamente o soberano que inaugura laços de obrigação. Ele não pode estar sujeito a qualquer
obrigação, pois, para isso, deveria existir antes uma força para obrigá-lo a obedecer a certas
regras.

Isso colide frontalmente com o que Locke depois viria a defender acerca da jurisdição do
magistrado. Se pensarmos em um governo que se erige e se mantém com base na confiança
que nele deposita o povo para que, assim, sejam preservadas as suas vidas, liberdade e bens,
naturalmente poder-se-á alegar em certas circunstâncias que foram deixados de observar os
limites estabelecidos (o legislativo ou o príncipe podem invadir a propriedade do súdito, impor a
servidão, fazer uso arbitrário daquilo que era seu dever proteger). Todavia, isso não pode ser
aceito por quem, como Hobbes, nega um “estado de natureza secundário” 28.

Ademais, Hobbes coloca uma dificuldade, que será também apresentada por Kant, com relação
ao que eu chamarei de “regresso ao infinito do poder limitado” 29. O argumento é o seguinte: se o
poder do soberano “fosse limitado, isso decorreria necessariamente de um poder maior do que
quem está dentro deles confinado. Ora, esse poder limitante ou é sem limites ou é delimitado por
outro ainda maior. E assim prosseguindo, se chegaria a um poder sem outro limite além de si
mesmo” (De Cive, VI, 19, 111 - veja também: Lev., XXIX, 194). Portanto, a única alternativa
razoável seria admitir um termo final capaz de impedir a implosão de sentido de poderes
limitados por outros poderes limitados. Ora, admitir um termo final significa admitir que quem tem
o poder soberano necessariamente tem de ter um poder ilimitado. Não aceitar isso seria, para
Hobbes, supor razoável a idéia de um círculo quadrado, quer dizer, um soberano súdito. Mas ou
se é soberano ou se é súdito; não há conjunção possível para estes dois termos (Cf. De Cive,
XIII, 2, 167).

Todavia, convém perguntar se não estaria Hobbes cometendo uma falácia ao argumentar dessa
forma. Para James MacAdam30, a resposta a esta pergunta é afirmativa. O autor do artigo
“Rousseau e Hobbes” acredita que é um argumento enganador, baseado numa falácia de
ambigüidade, sustentar que se o poder do soberano não for ilimitado ele não será soberano.
Para MacAdam, “o poder soberano pode ser limitado numa das duas maneiras: por outra pessoa
ou pelas leis. Uma pessoa pode ser o soberano de um estado, na primeira acepção, no sentido
de que não existe outra pessoa ou oficial capaz de contestar-lhe as decisões, porém seu poder

28
Sobre a noção de “estado de natureza secundário”, veja nota 1.
29
Para Kant é sem sentido julgar que o súdito tem o direito de se opor às decisões do chefe de Estado. Uma
daz razões é a publicidade requerida como critério de justiça de uma ação. A exigência de publicidade, segundo
Kant, não pode ser satisfeita, por quem quer rebelar-se (Cf. Immanuel KANT. À Paz Perpétua. Trad. de Marco A.
Zingano. Porto Alegre, L&PM, 1989, p. 73-75). A outra razão é a que aproxima Kant de Hobbes. Esta assenta-se
na necessidade de se conceber um árbitro para julgar se o súdito ou o soberano está com a razão quando de um
conflito. Mas um tal juiz teria de ser um terceiro, para não haver julgamento em causa própria. Ora, “seria, pois,
preciso haver ainda um chefe que decidisse entre este e o povo - o que é contraditório” (I. KANT. “Sobre a
expressão corrente: isso pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática”. In: A Paz Perpétua e Outros
Opúsculos. Ed. cit., p. 86). Assim, é preciso que quem decida seja o chefe de Estado, a ninguém cabendo o
direito de lhe contestar a posse da administração da justiça (Cf. Ibidem - veja também: Rechtlslehre, # 49, obs.
geral A ).
30
James MACADAM. “Rousseau e Hobbes”. In: ROSS, Fitzgerald (Org.). Pensadores Políticos Comparados.
Trad. de Antonio Patriota. Brasília, UnB, 1883.
13

estaria ainda sujeito às restrições da lei ou poderia ser por ele anulado”31. Assim, a conclusão de
MacAdam é que Hobbes não conseguiu provar qualquer ilogismo da tese da sujeição do
soberano à lei. Logo, não demonstrou o absurdo da tese da limitação do poder soberano.
Hobbes teria tentado mostrar apenas a carência lógica de um poder soberano acima do
soberano como pessoa, mas não que seria sem sentido um poder soberano impessoal como as
leis limitar o soberano. Contudo, não me parece este um bom contra-argumento. A fim de
apontar o que considero suas falhas, é necessário analisar o que Hobbes compreende por lei.

3.3.1. No capítulo XXVI do Leviatã, Hobbes ensina que uma lei (civil) é uma ordem de autoria do
Estado, imposta aos súditos como “critério de distinção entre o bem e o mal” (p. 160). Em outras
palavras, uma lei civil é uma “proposição definida pela vontade que comanda cada ação a ser
realizada” (De Cive, XIV, 180)32. Portanto, trata-se de um mandamento determinado por quem
tem o poder supremo. Ora, a se concordar com MacAdam teríamos que conceber que quem faz
a lei não a pode revogar, estando a si mesmo obrigado. Entretanto, quem tem o poder de fazer
as leis também tem o poder de revogá-las e, assim sendo, “pode quando lhe aprouver libertar-se
dessa sujeição, revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas” (Lev., XXVI, 162).
Não existe um vínculo de obrigação entre a vontade do soberano diante de outras vontades. E
se a vontade legisladora não se obriga senão a si mesma, na verdade não se obriga perante
ninguém.

Estamos aqui ante a um argumento interessante de Hobbes. Diferentemente de Rousseau e


Kant, para os quais, ainda que em perspectivas distintas, a obediência à lei é liberdade 33,
Hobbes procede a uma oposição dura entre liberdade e lei. Hobbes entende a liberdade como
“ausência de impedimentos externos” (Lev., XIV, 78), sendo, assim, um termo correlato ao de
direito. Já a noção de lei refere-se a um certo constrangimento ao qual estamos submetidos. Daí
decorre a compreensão de Hobbes segundo a qual somente o obrigante é livre e não o obrigado,
porquanto está naquele o poder de liberar este do vínculo que o prende a uma determinada
regra (De Cive, VI, 14, 108). Na hipótese de ser uma mesma pessoa obrigado e obrigante, a
própria idéia de obrigado, para Hobbes, perderia sentido, uma vez que nele mesmo estaria o
poder de desvincular-se da obrigação. Sendo assim, o obrigado não se obrigaria a nada, exceto
ao seu próprio querer. Contudo, temos de novamente encarar MacAdam, pois ele tampouco se
resigna ao argumento da inexistência de obrigação de uma pessoa consigo mesma. Essa
irresignação é útil para testarmos o argumento de Hobbes

31
Idem, p. 136.
32
Tomando-se em consideração a distinção que apresentada Norberto Bobbio no capítulo sobre “Governo dos
homens ou governo das leis”, do seu livro O Futuro da Democracia (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p. 156-
157), segundo a qual a noção de “governo da lei” compreende duas coisas diferentes, a saber, governo sub lege
e governo per leges, pode-se afirmar que Hobbes, quando rejeita o governo das leis, criticando nesse ponto
Aristóteles (Cf. Lev., XLVI, 182), está se opondo não ao governo per leges, mas ao governo sub lege.
Realmente, trata-se para o autor do Leviatã de confutar a tese de que o soberano deve exercer o poder segundo
leis preestabelecidas (governo sub lege), pois isso resultaria em limitar o poder do soberano; mas se o poder do
soberano fosse limitado, para Hobbes, como estamos vendo, não seria poder soberano. Em relação ao governo
per leges a situação é diferente, na medida em que, neste caso, a condição está no exercício do poder mediante
leis. Chevallier, em sua análise do Leviatã, afirma: “... o soberano permanece submetido pela lei que fez
enquanto não resolve ab-rogá-la. Nessa medida, seu poder absoluto não é poder arbitrário e, sem abusar de
palavras, pode-se falar em reino da lei” (Jean-Jacques CHEVALLIER. As grandes obras políticas de Maquiavel a
nossos dias. Trad. de Lydia Cristina. Rio de Janeiro, Agir, 1995, 7a. ed., p. 76). Ademais, a própria noção
hobbesiana de “silêncio da lei”, isto é, de um espaço em que não existindo uma regra estabelecida pelo
soberano, pode-se fazer o que se achar conveniente (tratarei disso adiante), sinaliza uma clara congruência com
um governo per leges.
33
Em Rousseau essa identidade ocorre dentro de um contexto teórico de legitimação do poder político. Já em
Kant, a reciprocidade entre liberdade e lei liga-se ao princípio da moralidade. Veja a esse respeito em: J. J.
ROUSSEAU. Do Contrato Social, I, 8; I. KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, seção II e III (esp.
# 2 da III seção) e Crítica da Razão Prática, ## 5 e 6.
14

MacAdam avalia que se o argumento de Hobbes fosse bom, ele teria ainda de mostrar a não
pertinência neste caso da diferenciação entre pessoa física e pessoa pública34. Quer dizer,
conceder-se-ia a Hobbes a validade de seu argumento em relação apenas aos indivíduos, porém
se questionaria se também ao soberano, como pessoa pública, caberia a posição sustentada.
Com base no capítulo XVI do Leviatã, no qual se mostra ser o soberano uma pessoa artificial
que age por autorização dos indivíduos que compõem a multidão que se transforma, assim,
numa unidade na pessoa do representante (o soberano), MacAdam coloca a seguinte questão:
Suponha-se que o soberano determine leis de proibição do estupro, da difamação, do assalto e
do furto. Isto suposto, pergunta-se: “seguir-se-ia do simples fato de ser o soberano o autor de
tais leis ter ele o direito (ou que o povo assim o entendeu) de cometer a ‘seu bel-prazer’ o
estupro, difamação, assalto e furto?35. É claro que a conclusão de MacAdam será dizer que o
soberano não estaria autorizado, o que bastaria para perceber a insuficiência da tese
hobbesiana, pois se mostraria que a autorização concedida ao detentor do poder supremo não
impede que este se obrigue a si mesmo, quer dizer, às leis que ele mesmo estabelece. Eu penso
que Hobbes não é bem entendido se adotarmos o questionamento de MacAdam. É apressada
uma interpretação tal como a oferecida pelo crítico de Hobbes. E é basicamente nesta atitude
afoita diante do texto hobbesiano que reside o seu equívoco. Em primeiro lugar, não se resolve o
problema apelando para a distinção entre pessoa física e pessoa jurídica. Deve-se perceber que
o poder de ambas é o mesmo em se tratando de obrigações auto-impostas, qual seja, o poder
de delas se desprenderem. Isso evidentemente não viola o consentimento dado ao soberano
para dirigir o poder político. E não viola simplesmente porque o soberano foi autorizado a fazer
uso de quaisquer meios que julgasse convenientes para o fim de assegurar a paz. A se
considerar a suposição apresentada, torna-se muito sedutora a crítica de MacAdam. Cabe,
portanto, examinar o alcance de seu exemplo.

Quem não discordaria de um soberano que proíbe o estupro, mas o pratica por se julgar
autorizado a tanto? Este seria certamente um soberano pouco inteligente, pois geraria com isso
oposição dos súditos, expondo-se inutilmente ao ataque de inimigos internos. Ora, agindo assim,
o soberano não estaria atendendo ao seu dever supremo, que é “a salvação do povo” (De Cive,
XIII, 2, 167)36. É importante observar que por “salvação” Hobbes entende “não a preservação da
vida com qualquer qualidade, mas a garantia de um viver quanto possível feliz” (Ibidem, 4, 168 -
veja também Lev., XXX, 200). Os homens não teriam feito um pacto para saírem do estado de
natureza com o objetivo de garantirem apenas sua sobrevivência biológica. Eles visam a paz e a
segurança porque estas são condições para uma vida agradável 37. Se o soberano frustra a
possibilidade de um viver de maneira aprazível, ele infringe a própria finalidade de sua
existência. O soberano não está isento da sujeição às leis naturais (Cf. Lev., XXIX,194) e tem de
prestar, dessa forma, contas a Deus (Cf. Lev., XXX, 200). Portanto, Hobbes também estaria na
classe daqueles que não aprovariam o soberano do exemplo de MacAdam. Contudo, não se
deve com isso pensar que o governante hobbesiano não esteja de facto sempre justificado.
Positivamente, não existe uma voz que, com legitimidade, possa lhe fazer frente, ainda que ele
cometa os maiores abusos.

34
James MACADAM. Op. Cit., p. 135.
35
Ibidem.
36
Deve-se registrar que Hobbes não percebeu que, em falando de dever do soberano e, mais rigorosa e
amplamente, dos deveres que todos temos para com as leis de natureza (que são “leis morais” - Cf. Lev., XXIV,
173), ele acaba admitindo uma obrigação que, no fundo, é imposta ao indivíduo por si mesmo, quer dizer, por
sua razão (Cf. Lev., XIV, 79: a lei de natureza é um preceito “estabelecido pela razão” (found out by reason)).
Isso evidentemente depõe contra a tese de que ninguém se obriga perante si mesmo.
37
Renato Janine RIBEIRO. Ao leitor sem medo, p. 51: “Viver nunca bastará como meta ao homem ... O indivíduo
não entra em sociedade somente para proteger-se do assassínio; também espera confortos e prosperidade”.
Veja a esse respeito também em: Raymond POLIN. “O indivíduo e o Estado”. In: QUIRINO, Célia Galvão e
SOUZA, Maria Teresa Sadek R. de (Org.). O pensamento político clássico. São Paulo, T. A. Queiroz, 1980, p.
110.
15

3.4. É mister observar que os possíveis abusos cometidos pelo soberano não se constituem em
injúrias para com os súditos (sendo que injúria quer dizer o mesmo que injustiça - De Cive, III, 3,
69-70). Isso eqüivale a afirmar que não procedem quaisquer acusações de injustiça em relação
aos atos do detentor do poder supremo. Hobbes defende que todos os atos do soberano são
justos, não obstante os mesmos poderem ser iníquos (Lev. XVIII, 109). Pode-se listar três
razões, encontradas no Leviatã e no De Cive, para garantir a validade desta tese. (i)Seria
acusar-se a si mesmo de injúria queixar-se de uma injúria cometida por seu soberano, desde
que cada indivíduo, pela instituição do estado, tornou-se autor dos atos do soberano, na medida
em que lhe concedeu voluntariamente autoridade absoluta (Lev. XVIII, 109).(ii) Uma vez que
injúria e injustiça significam “o não cumprimento de um pacto (Lev., XV, 86 - no De Cive, III, 3,
70: “violação de pacto ou palavra dada”), o soberano nunca pode agir injustamente, pois ele não
recebeu, conforme vimos, o seu poder de um pacto. (iii) “Para que as palavras ‘justo’ e ‘injusto’
possam ter lugar, é necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente
os homens ao cumprimento de seus pactos” (Lev., XV, 86). Portanto, mesmo que houvesse um
pacto entre soberano e súditos, o recurso aos termos injustiça e justiça só adquiriria legitimidade
se existisse um outro soberano, o qual, ou seria soberano absoluto e nunca cometeria injustiça,
ou seria também parte de um pacto que exigiria mais um soberano e assim ao infinito,

3.5. Deve-se assinalar, ainda, uma outra conseqüência importante da instituição do Leviatã.
Refiro-me ao fato de que não é necessário o assentimento de todos ao pacto e, por conseguinte,
ao poder do soberano. Certamente que a maioria deve ter querido a instituição do Estado. Se
isto é verdadeiro (e não depende de um fato histórico, pois se trata de uma hipótese racional
para a justificação do poder do Estado38), então a minoria tem de passar forçosamente a
consentir com a decisão majoritária39. A razão é que quem ingressou na congregação
(congregation) da assembléia concordou em se conformar com a resolução da maioria, o que
significa que houve um pacto tácito. Conseqüentemente, se a minoria se recusar a acatar a
decisão da escolha do soberano, ela estará violando o pacto e agindo, assim, injustamente. Por
agir injustamente ela merecerá o devido castigo. Convém registrar que o castigo, que poderá
redundar na própria destruição do infrator, não tem referência apenas aos que participaram da
congregação, mas a qualquer indivíduo “quer seu consentimento seja pedido, quer não seja”
(Lev., XVIII, 109). Aquele que não se submete aos decretos do soberano resta num estado de
guerra e, portanto, se for aniquilado não o será injustamente, porquanto no estado de guerra não
há justiça nem injustiça.

Com base nesta reconstrução do pensamento de Hobbes, pode-se afirmar que Habermas
equivoca-se ao escrever, em seu livro Teoría y Praxis: Estudios de filosofía social, que, para o
autor do Leviatã, “todos” têm de dotar “uma única instância com o monopólio do uso da violência
física, para que essa instância possa obrigar a todos à paz”40 . A meu ver, o que Hobbes procura
mostrar, talvez sem perceber todo o alcance de sua tese, é que se a legitimidade do Estado
dependesse do acordo unânime dos indivíduos, dificilmente seria sustentável o poder soberano,

38
A crítica de Hume acerca do “Contrato Originário” não atinge Hobbes. A objeção de Hume à noção de
contrato é de caráter histórico. Na verdade, o que ele sustenta é que os governos se fundam, com referência às
suas gêneses, na força, na violência. “Quase todos os governos atualmente existentes, ou dos quais algo ficou
registrado na história, assentaram-se inicialmente na usurpação ou na conquista, ou em ambas, sem qualquer
pretensão de legítimo consentimento ou sujeição voluntária do povo” (“Do contrato original”. In: Ensaios morais,
políticos e literários. Trad. de João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora d’Oliveira. São Paulo, Nova Cultural,
1989, p. 175). Ora, Hobbes, numa perspectiva análoga, afirma algo muito próximo disso: “... há poucos Estados
no mundo cujos primórdios possam em consciência ser justificados” (Lev., Rev. e Concl., p. 195). Dessa forma, o
que importa perceber é que, para Hobbes, o ponto fundamental está em tratar da validade do poder político e
não da sua gênese. Tanto um estado por aquisição como um estado por instituição são possuidores dos
mesmos direitos, porquanto é a validade que interessa. E, nesse caso, a validade envolve sujeitar-se ao poder
do Estado como se ele fosse instituído por consentimento.
39
Hobbes fala em maioria (Lev.XVIII, 108). Porém, como se perceberá no desenvolvimento da argumentação
acima, essa cláusula não é necessária.
40
Jürgen HABERMAS. Teoría y Praxis: Estudios de filosofía social. Trad. de Salvador Mas Torres e Carlos
Moya Espí. Madrid, Tecnos, 1987, p. 74.
16

pois é pouco crível que um tal acordo pudesse realmente acontecer entre seres humanos. Seria
necessário conceber um abandono em todos os indivíduos da irracionalidade, algo como um
surto de razão que acometesse a humanidade por inteiro. Acredito que as conseqüências
últimas desse modo de argumentar de Hobbes foram extraídas por Kant. Este sustenta
expressamente a tese de que o contrato é “uma simples idéia da razão” 41, desvinculando
completamente discussões de ordem empírica das tarefas de justificação racional do poder
político. (Mas aqui a analogia entre Kant e Hobbes deve ser circunscrita ao procedimento não-
empírico de dedução da necessidade do Estado. Estes dois autores partem de premissas
profundamente heterogêneas e inclusive suas conclusões não são inteiramente equivalentes.)

3.6. Dada a autoridade inequivocamente absoluta do poder político, cabe indagar como o
Leviatã, que fora fundado sobre o querer racional dos indivíduos, encara a questão da liberdade
dos súditos, se é que, rigorosamente, tem sentido falar em liberdade perante um poder sem
limites. Para Hobbes, tem sim pleno significado a noção de liberdade com respeito aos súditos.
No capítulo XXI do Leviatã lemos: “... todo o súdito tem liberdade em todas aquelas coisas cujo
direito não pode ser transferido por um pacto” (p. 133). Sendo que não tem validade um pacto
em que alguém renuncie a se defender pela força da força, tampouco valendo um pacto em que
alguém é obrigado a se acusar a si mesmo, não tendo garantia alguma de perdão (Cf. Lev.XIV,
84), o súdito poderá legitimamente desobedecer às ordens do soberano quando estas colidirem
com os seus direitos intransferíveis. Isso não quer dizer que a autorização concedida ao
soberano esteja condicionada, mas apenas que não existe uma obrigação de executar todas as
suas ordens. Por exemplo, eu, tendo autorizado todas as ordens do soberano, concedo-lhe a
permissão de matar-me, porém “não fico obrigado a matar-me quando ele mo ordena” (Lev., XXI,
133). Com isso, pode-se afirmar que, no fundo, Hobbes não defende obediência absoluta (uma
obediência absoluta que significasse o acatamento de ordens como a acima referida deixaria
sem sentido a própria existência do Estado, desde que seu fim é a conservação dos indivíduos).
Sendo o sentido da obediência política a proteção, cuja garantia reside no poder soberano, uma
vez que o Estado se mostra incapaz de atender a esse fim, o indivíduo encontra-se na verdade
isento de obrigação. “Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura
enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los”
(Lev.,XXI, 135).

Considerando que “le pacte par lequel j’autorisé toutes les actions du Souverain ne m’obrige
donc pas à executer tous ses ordres”42, pode-se dizer que, da parte dos súditos a obediência
tem limites, não obstante, da parte do soberano, caber a exigência de obediência absoluta. É
interessante destacar que Hobbes também julga justificada a desobediência quando se trata de
matar outro homem. “Ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a
outrem” (Lev. XXI, 133). A razão para isso encontra-se, conforme Renato Janine Ribeiro, no
móvel que leva os indivíduos a ingressarem no corpo político. Este móvel não se reduz
simplesmente ao medo da morte violenta, mas também ao receio de “qualquer envolvimento
com a morte violenta”43. O argumento oferecido por Hobbes assinala que o fato de alguém
recusar-se a executar uma missão perigosa ou desonrosa não prejudica necessariamente o fim
da soberania (Lev., ib.). Quer dizer, o poder político não corre risco em face deste tipo de
desobediência, pois o soberano pode substituir o súdito que teme o perigo (um soldado com
“coragem feminina” (feminine courage - Lev.XXI, 134)), ou aquele súdito que teme a desonra e o
atentado aos seus sentimentos morais (um súdito que recebe ordens para matar um ente
querido). Decerto que “quando nossa recusa de obedecer prejudica o fim em vista do qual foi
criada a soberania, não há liberdade de recusar” (Lev., XXI, 133).

41
I. KANT. “Sobre a expressão corrente...”. In: Op. Cit., p. 82-83. Veja também La Metafísica de las Costumbres
- Rechtslehre, # 44, p. 141 da trad. de Adela Cortina Orts (Madrid, Tecnos, 1994).
42
Gérard LEBRUN. “Hobbes en deçá du liberalisme”. Manuscrito, vol. IV, n.1, 1980, p. 39.
43
Renato Janine RIBEIRO. Ao leitor sem medo, p. 89.
17

Evidentemente que este modelo de desobediência justificada é muito tímido e não permite que
se conceba sequer um esboço da noção de liberdades individuais 44, uma vez que esta requer
uma teoria da limitação do poder soberano, teoria esta expressamente recusada por Hobbes.
Não se deve pensar, porém, que a liberdade dos súditos se reduza apenas aos direitos
intransferíveis. Se o Estado deixa indeterminada certas matérias, isto é, se ele não estabelece
em relação a elas uma lei, então o súdito será neste caso livre para agir ou não. Assim, a sua
liberdade será tanto maior quanto menor for o número de matérias sujeitas a leis (De Cive, XIII,
15, 175). Este tipo de liberdade depende do que Hobbes chama “silêncio da lei” (silence of the
law) (Lev., XXI, 134). Pierre Manent45 destaca a importância desta liberdade em Hobbes: “Onde
o soberano interpõe sua lei, com a ameaça do castigo, ele faz livremente, já que nada o impede
disso, tudo o que quer. A lei promulgada pelo soberano não passa de um artifício que impede os
homens-átomos de se chocarem, e não de se moverem; é semelhante às cercas que impedem o
desvio para o terreno do vizinho, mas não a marcha pelo caminho”46.

Nesse contexto, Hobbes poderia ser considerado como o “fundador do liberalismo”, uma vez que
compreende a lei como um artifício humano externo aos indivíduos que visa garantir uma
coexistência pacífica47. Manent chega a dizer que a lei se restringiria a isso 48. Todavia, Hobbes
não vai tão longe, porque se o fosse ele acabaria tendo de trabalhar com as noções de leis boas
e leis más. Agora, é verdade que encontramos sugestões nesse sentido. Por exemplo, no De
Cive, XIII, 15, onde é abordada a questão da liberdade dos cidadãos, vemos Hobbes sustentar
um limite da legislação ao que for “necessário para o bem dos cidadãos da cidade” (p. 176). Os
governantes têm o dever de procurar apenas determinar as “margens do rio” e não barreiras
para reprimir o curso da água. Para Hobbes, as leis devem ser “criadas não para impedir as
ações dos homens e sim para dirigi-las” (De Cive, XVII, 15, 175). Naturalmente que essas
“obrigações” do soberano procedem da lei natural e, portanto, apenas a Deus ele terá de prestar
contas.

Com respeito ainda à liberdade dos súditos, cabe colocar a seguinte questão: se o soberano
ordenar ao súdito (crente) que este negue Deus ou simplesmente que aja contra os
mandamentos de Deus, o súdito ainda lhe deve obediência? A partir desta questão podemos
ingressar em um outro e importantíssimo ponto do pensamento de Hobbes: a relação entre
Estado e religião, ou a relação entre poder temporal e espiritual.

3.7. Realmente é um problema de relevância primordial para o mecanismo artificial chamado


Estado a influência da religião (cristã no caso). Os conflitos políticos da época de Hobbes diziam

44
Cf.Gérard LEBRUN. “Hobbes en deçá du liberalisme”, especialmente p. 45 a 47.
45
Comparando a posição de Pierre Manent com a de Gérard Lebrun, percebe-se que o primeiro faz uma leitura
mais favorável, do ponto de vista do liberalismo, do autor do Leviatã. Já Lebrun considera questionável que
Hobbes seja o fundador do liberalismo justamente por lhe faltar uma formulação, nem ao menos em bosquejo, da
noção de liberdades individuais. Não é o caso de examinar, aqui, esta questão, mas gostaria de registrar que a
posição de Lebrun não me parece convincente. Inclino-me a julgar a leitura de Manent bem mais fértil.
46
Pierre MANENT.Op. Cit., p. 54. Veja também a sua análise do Leviatã no Dicionário de Obras Políticas (coord.
de François CHÂTELET et alii. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1993), p. 499. Pelo que se pode observar,
os indivíduos do contrato hobbesiano não se dissolvem em uma nova totalidade como sugere o “Contrato Social”
de Rousseau. Não é necessário ( a tentação seria acrescentar nem desejável), para abandonar o estado de
natureza e ingressar no estado civil,que os homens promovam uma transformação em suas naturezas
passionais. O cidadão de Hobbes continua sendo um indivíduo, portanto, o particularismo das paixões e
interesses não precisa ser anulado em benefício da coletividade. A lamúria por abnegação pode ser dispensada.
O Estado para Hobbes, diferentemente de Rousseau, não é uma associação moral. Percebendo que a finalidade
do poder político é bem menos edificante, o autor do Leviatã pode examinar com atenção um ponto não
tematizado por Rousseau, isto é, justamente o problema da liberdade dos súditos, da legitimidade de se estar
isento da obrigação política (veja a esse respeito em João Paulo Monteiro. “Democracia hobbesiana e
autoritarismo rousseauniano”. Manuscrito, vol. III, n. 2, 1980, esp. p. 42).
47
Cf. Ibidem.
48
Cf. Ibidem.
18

respeito em grande medida às colisões entre Estado e Igreja. Nesse contexto, deve ser
encarada a seguinte dificuldade: como tratar as matérias religiosas tendo presente doutrinas
segundo as quais deve-se mais obediência a Deus do que aos homens? Qual deve ser o
procedimento correto do Estado diante de teses que apregoam a supremacia do poder espiritual
sobre o temporal, ou, mais modestamente, a legitimidade da interferência da Igreja em certos
assuntos do Estado? Estando intimamente ligadas a teoria do poder político com a teoria da
obediência política, a resposta que Hobbes dá a essas questões vale como solução ao problema
daquilo que se pode chamar a liberdade religiosa dos súditos.

A meu ver, a tese de Hobbes a esse respeito se funda no que eu gostaria de chamar “teoria da
ação hobbesiana”. Esta teoria considera que uma ação voluntária depende da crença e opinião
do agente sobre o bem e o mal (De Cive, XVII, 27, 256-257). Sendo assim, um indivíduo será
levado à desobediência civil se julgar que com isso cumpre o seu dever para com Deus, o qual
acredita ser quem o concederá a felicidade eterna49. Dessa forma, a matéria religiosa torna-se
geradora potencial de conflitos com as ordens do soberano. Ora, Hobbes não refuta o princípio
de que mais vale obedecer a Deus do que aos homens. Portanto, é forçoso precisar quando é o
caso de aplicar tal princípio, cuidando para que ele se torne incapaz de mobilizar os indivíduos à
resistência ao soberano. A alternativa apresentada consiste em conferir ao Estado não apenas a
espada, mas também o báculo.

A figura estampada no frontispício da edição original do Leviatã mostra claramente a


necessidade tanto da coação propriamente política (espada) como do poder religioso (bastão
episcopal). De acordo com Hobbes é equivocada a tentativa de neutralizar as possíveis colisões
entre o Estado e a Igreja mediante a distinção de suas esferas de competência. Porque, se se
conceder à Igreja a prerrogativa de vis directiva e ao Estado a prerrogativa de vis coativa, as
coisas não melhorariam nem um pouco para o autor do Leviatã, pois aquilo que a vis directiva
estabelecer como crença pode se chocar com as regras do jogo político determinadas pela vis
coativa. Convém, assim, concentrar numa só pessoa o poder espiritual e o temporal. Uma
doutrina religiosa só pode adquirir reconhecimento e, assim, valer como orientação espiritual aos
súditos, se o soberano a julgar compatível com os seus propósitos. Tudo bem que a Deus se
deva mais obediência que aos homens, mas como Deus não fala diretamente aos homens (com
raríssimas exceções registradas na Bíblia), cabe ao Estado autorizar quais são os seus
verdadeiros profetas. Sendo a religião um assunto humano, ela deve necessariamente estar sob
o poder do deus artificial, uma vez que este tem um poder absoluto em relação a tudo o que diz
respeito aos homens. Quer dizer, o Leviatã tem de cuidar não apenas do homem como homem e
como cidadão, mas também do homem como cristão50. Com a espada em uma mão, o monstro
da paz trata de neutralizar as tensões e conflitos entre o homem e o cidadão; com o báculo na
outra mão, ele procura assegurar um acordo entre os imperativos religiosos e civis.

3.8. É claro que todo o zelo do Estado pela segurança dos súditos não pode ser dissociado,
como vimos, de sua impunidade. Esta “inconveniência” por certo não é coisa de pouca monta.
Porém, para Hobbes, é o preço que pagamos por sermos homens. Em nota ao capítulo VI,
parágrafo 13, do De Cive, ele assinala, em relação ao poder absoluto do soberano: “... nada há
de difícil aqui senão o aceitar que as coisas humanas não deixam de ter algum inconveniente”
(p. 287). Na seqüência, Hobbes esclarece que tal inconveniente não deriva do governo, mas dos
homens, os quais não são capazes de viver em paz sem existência de uma força coercitiva
comum. O que Hobbes pretende mostrar é que a “inconveniência” do absolutismo e, por
conseguinte, da impunidade do poder político supremo é um mal comparativamente menor às
conseqüências desagregadoras da desobediência (Cf. também Lev., XVIII, 112-113 e XX, 127).
A resistência ao soberano pode levar à anarquia, ao estado de natureza. Ora, o estado de
natureza é sempre uma possibilidade da vida coletiva, é como um abismo no qual só não se cai

49
Na conclusão procurarei mostrar os limites desse argumento.
50
Pierre MANENT. “Leviatã”. In: Dicionário de Obras Políticas. Ed. cit., p. 491-492: “O Leviatã expõe as
articulações essenciais do problema humano. O homem é triplo: ele é homem, é cidadão e é cristão. Ou ainda:
ele é um corpo natural, é membro de um corpo político e membro de um corpo místico”.
19

porque há uma autoridade a que se deve submissão absoluta. É o risco incontornável que os
homens correm de cair no abismo da desordem que acaba tornando preferível, segundo a teoria
de Hobbes, uma tirania a melhor das anarquias.

É digno de nota, nesse ponto, a posição diametralmente oposta de Locke. Para o autor do
Segundo Tratado, um governo tirânico coloca-se em estado de guerra contra os seus súditos,
pois ele faz uso de uma força ilegal (viola a confiança, nele depositada, para o fim de proteção
da vida, da liberdade e dos bens). Desse modo, a tirania, para Locke, é muito mais nociva do
que a ausência do poder político. No estado de natureza há, além da possibilidade de uma
convivência pacífica, uma dispersão da força a ser mobilizada contra alguém. “O indivíduo
exposto ao poder arbitrário de um único homem que tem cem mil sob suas ordens encontra-se
em uma posição muito pior que aquele exposto ao poder arbitrário de cem mil homens isolados:
ninguém pode garantir que a vontade daquele que detém tal comando é melhor que a aquela de
outros homens, embora sua força seja cem mil vezes mais forte” 51. Certamente a réplica de
Hobbes consistiria em dizer que diante de cem mil homens sob as ordens de um só, ainda que
detentor de um poder absoluto, eu tenho a minha vida garantida, ao passo que na segunda
alternativa sou livre, mas sem qualquer segurança. Alguém poderia censurar esta exposição,
considerando-a muito esquemática, mas parece-me, em última instância, resumir-se a isso a
resposta hobbeasiana ao argumento de Locke.

3.9. Todavia, a despeito de tais divergências, Hobbes e Locke concordam quanto à necessidade
do poder político, em face da condição instável dos encontros humanos na inexistência de um
aparato coercitivo comum. Tal compreensão colide radicalmente com concepções que
reivindicam o fim do Estado (por exemplo Proudhon, Marx e Engels). Em Hobbes temos uma
argumentação muito clara sobre a exigência incontornável do Estado para a vida em sociedade
(a sua argumentação é mais contundente, nesse sentido, que a de Locke). Essa exigência
ampara-se numa antropologia52 que, ao destacar as paixões humanas, nos ensina que a tese da
extinção do Estado é uma idéia muito fácil de se defender, bastando para isso conceder que os
homens não serão mais homens, mas anjos. Porque se os homens continuarem sendo homens,
isto é, seres desejantes de poder, eles ou viverão no estado civil - e poderão, assim, viver em
paz - ou viverão no estado de natureza, em guerra, com um medo elementar a lhes acompanhar
permanentemente (o medo da morte violenta em mãos alheias). Não há uma terceira
alternativa53.

Apelar para o comunismo, como uma sociedade sem classes, não resolve o problema. O Estado
não é ou não se reduz a um instrumento através do qual a classe dominante exerce o seu
domínio. Mesmo que se concedesse caritativamente a Engels que “as classes vão desaparecer,
e de maneira tão inevitável como surgiram no passado”54, não se poderia admitir como corolário
que o Estado também desapareceria. O ponto aqui está, como se pode perceber, na miopia de
Marx e Engels quanto à noção de conflito. Hobbes mostra que a existência do conflito está
enraizada na natureza humana. Assim, a luta de classes não esgota a tendência ao antagonismo
entre os homens. Portanto, mesmo supondo a ausência de diferenças de classes, o Estado seria
necessário, porquanto restariam homens diferentes, com desejos coincidentes de objetos que só
podem ser gozados por um deles. Uma vez que estes conflitos não podem ser abolidos, trata-se,

51
John LOCKE. Segundo Tratado, # 137, p. 166.
52
Na “Epístola Dedicatória” do De Cive, Hobbes assinala como “dois postulados incontestáveis da natureza
humana”, a cupidez e o medo da morte violenta. Destes postulados deriva-se a justificação racional do Estado.
53
Pierre MANENT. “Leviatã”. In: Op. Cit., p. 498: “ou o corpo político existe (os cidadãos vivem dentro da paz
civil), ou ele não existe (os cidadãos se estraçalham)”. Ocorre um deslize na linguagem: Manent deveria ter
colocado entre parênteses a palavra “homem” no lugar de “cidadão”, pois no estado de natureza, a rigor, não
existem cidadãos.
54
Friedrich ENGELS. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. de Leandro Konder. Rio de
Janeiro, Bertrand Brasil, 1991, 12a. ed., p. 196.
20

então, de administrá-los numa sociedade política, caso não queiramos torná-los aniquiladores da
vida humana.

4. Por certo a teoria do poder absoluto em Hobbes é um tanto indigesta para um ambiente
político-cultural predominantemente democrático como o nosso. Penso que Hobbes realmente
oferece uma solução em certos pontos questionável. Para Pierre Manent55, uma vez que a tarefa
de apaziguamento das relações entre os homens foi levada a bom termo, o Leviatã tornar-se-ia
desnecessário - pois a sua “razão de ser” era apaziguar as relações entre os membros da
sociedade. Manent toma aqui a palavra Leviatã como Estado necessariamente absoluto (pois, do
contrário, seria fácil replicar afirmando que o Leviatã demitido significa a lei demitida). Parece ser
essa uma questão interessante: até que ponto um Estado, como o reivindicado por Hobbes, é
necessário em face de contextos onde o dissenso é relativamente bem administrado?

4.1. Kant, embora negasse qualquer direito de resistência, procurou mostrar que o uso público
(öffentliche Gebrauch) da razão56, isto é, o exercício livre da crítica, não resultava num dissenso
desagregador da sociedade política. O homem, como parte do mecanismo social, tem seus
deveres e é obrigado a fazer uso privado (Privatgebrauch) da razão (obediência). Porém, ao usar
publicamente a sua razão, ele se considera também como membro de uma comunidade total, e
até da sociedade civil mundial57. O considerar-se como um cidadão do mundo não implica danos
à estabilidade da ordem política. Ao contrário, Kant pensa que a liberdade de escrever dos
súditos será útil ao próprio soberano, que poderá informar-se e, assim, fazer certas modificações
que sem a crítica ele nem suspeitaria da necessidade58. É claro que essa alegação de Kant não
seria convincente se ela não estivesse ligada à idéia de que o Soberano deve representar a
vontade geral do povo. Como não é meu objetivo, aqui, tratar do pensamento político de Kant,
limito-me a observar que o valor do uso público da razão está relacionado também a um outro
aspecto. Refiro-me ao ponto que Kant toca na parte II da Über den Gemeinenspruch, a saber, da
identificação entre o justo e o legal em Hobbes. Kant sugere que, se sempre o legal fosse o
justo, seria muito difícil a ocorrência de progressos no ordenamento jurídico do Estado, pois
estes dependeriam apenas da percepção do soberano. Mas o progresso é vivificado com a
permissão dos súditos tornarem público os seus pensamentos. Se for concedida aos súditos a
liberdade de protestarem argumentativamente contra as leis que consideram injustas, a
obediência não será prejudicada por isso59. É dever do súdito obedecer a todas as leis,
independentemente delas lhe parecerem injustas. Todavia, cumpre entender como direito que a
ele pertence o de expor o seu ponto de vista sobre os aspectos ao seu ver incorretos das ordens
do soberano.

4.2. Evidentemente que a tese de Kant poderia ser tomada como uma crítica ainda tímida a
Hobbes, pois ela compartilha com este da rejeição ao direito de resistir ao poder político.
Contudo, acredito que Kant foi bem sucedido ao criticar Hobbes. Em acréscimo ao que sustenta
Kant, pode-se dizer que seguir a própria opinião não é uma decorrência necessária de expor

55
Pierre MANENT.História Intelectual do Liberalismo, p. 110.
56
I. KANT. “Resposta à pergunta: que é o Iluminismo?” In: A Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Ed. cit., p. 11-
19.
57
Idem, p. 14.
58
I. KANT. “Sobre a expressão corrente...” (parte II: contra Hobbes). In: Op. Cit., p. 91.
59
O progresso em Kant, portanto, deve ser conquistado mediante reformas e não por revolução. “Por meio de
uma revolução poderá talvez levar-se a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou
dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar” (“Resposta à pergunta: que é o
Iluminismo?”. In: Op. Cit., p. 13). Sobre a teoria da obrigação política em Kant vale registrar o agrupamento
sintético que Norberto Bobbio apresenta em seu livro Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. Bobbio
distingue em três classes as doutrinas da obrigação política. Cito: “1) As leis são sempre justas e portanto é
preciso obedecer a elas (Hobbes); 2) as leis podem ser injustas e portanto surge, no caso de uma lei injusta, o
direito de resistência (Locke); 3) as leis podem ser injustas, mas apesar disso, é preciso obedecer a elas. A
posição de Kant corresponde, sem possibilidade de equívocos, à terceira categoria” (Brasília, UnB, 1992, p. 147).
21

opiniões e debatê-las. É verdade que uma ação voluntária, como quer Hobbes no De Cive (XVII,
27, 256), depende da crença e opinião sobre o bem e o mal. Entretanto, eu posso perfeitamente
julgar que é um bem mudar certa lei, mas um mal desobedecê-la enquanto ela tiver vigência.
Quando Hobbes afirma que “as ações dos homens derivam de suas opiniões, e é no bom
governo das opiniões que consiste o bom governo das ações dos homens, tendo em vista a paz
e a concórdia entre eles” (Lev. XVIII, 109), ele constrói um argumento em que a premissa não
ampara a conclusão. Quer dizer, da derivação das ações de opiniões não se segue a
necessidade do governo das últimas para garantir ações boas. A necessidade de controle das
opiniões supõe que uma determinada opinião sustentada resulta inevitavelmente em uma ação
correspondente. Mas um “bom governo” pode ser apenas um bom governo das ações, embora
isso não signifique que ele deva ser indiferente às opiniões que os súditos mantêm. “Ninguém
pretende que as ações devam ser tão livres como as opiniões. Pelo contrário, m esmo as
opiniões perdem a sua imunidade quando as circunstâncias em que se exprimem são tais que a
sua expressão constitui um incitamento positivo a algum ato nocivo” 60.

Vale referir, aqui, o diálogo platônico Critão. A opinião de Sócrates era de que fora injustamente
condenado a tomar cicuta. porém, não lhe parecia justo desobedecer às leis de sua Atenas. Se
elas determinavam a submissão às sentenças, devia-se acatar as sentenças, ainda que injustas.
A proposta de fuga feita por Critão foi recusada por Sócrates que sustentou um ponto de vista
claramente similar ao de Kant: “Cumpre ou executar as ordens da cidade e da pátria ou obter a
revogação pelas vias criadas pelo direito”61. Portanto, a fuga não cabia. Mesmo que se avaliasse
como um mal serem as sentenças proferidas por um tribunal composto por jurados sem
qualificação, era um mal que só poderia ser criticado e não desobedecido. O reconhecimento do
dever de dar a César o que é de César (Cf. Lev., XLI, 75 e De Cive, XI, 6, 153), que Hobbes
toma como abono bíblico à sua teoria da obediência política, não impede a contestação dos atos
de César. Assim, pode-se dizer que Hobbes dimensionou excessivamente a periculosidade de
idéias dissidentes. A democracia moderna tem se mostrado capaz de conviver com o embate de
opiniões, o que deixa transparecer a possibilidade de soluções mais moderadas para o conflito
político62. Hoje parece mais consensual a idéia de que é possível determinar racionalmente que
certos meios não são pertinentes para o fim da paz e que, portanto, dando razão a Locke, o
poder político deve ter uma jurisdição limitada.

4.3. Se a solução de Hobbes para o conflito político se apresenta questionável quando reivindica
o absolutismo, cabe não esquecer a produtividade de suas lições. Com ele aprendemos que a
vida coletiva dos homens exige o Estado como um momento não superável. Quer dizer, se
queremos a garantia da sociabilidade então não podemos prescindir do “gládio comum”. Ora, a
sociabilidade humana é fundamentalmente política, vale dizer, não natural. Ela requer, assim,
talvez a maior de todas as façanhas humanas, que é precisamente a proeza de evitarmos a
ameaça constante do estado de natureza, da guerra de todos contra todos, da violência
sistemática. Hobbes ensina que “a vida social não é um dado, uma coisa óbvia, mas uma
construção permanente e sempre precária”63. Os costumes têm força, mas não é com essa força
que se garante a sociabilidade; finalidades sócio-políticas comuns são importantes, porém

60
John Stuart MILL. Sobre a liberdade. Trad. de Alberto da Rocha Barros. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 97. Em se
tratando da relação entre ação e opinião, vale lembrar da sobriedade aristotélica. Na Ética a Nicômaco, III, 2,
Aristóteles afirma que a opinião “se relaciona com toda a sorte de coisas, não menos as eternas e as impossíveis
do que as que estão em nosso poder” e que é “por escolher o que é bom ou mau” que somos homens de um
determinado caráter, mas não o somos por sustentar esta ou aquela opinião” (Ética a Nicômaco, III, 2, 1111 b
30-1112 a 2 - trad. de Leonel Vallandro e Gerd Borheim. São Paulo, Nova Cultural, 1987, p. 44). Eu não estou a
dizer, bem entendido, que Aristóteles, com essas palavras, reivindicava a pluralidade que um iluminista
reivindicaria. O ponto da Ética a Nicômaco é outro (trata-se da distinção entre doxa e proairesis). Mas acredito
que na distinção vale para confutar a aproximação excessiva entre opinião e ação sugerida por Hobbes.
61
PLATÃO. “Critão”. In: Diálogos. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo, Cultrix, 1995, p. 130.
62
Cf. Renato Janine RIBEIRO. “A espada do Soberano”. Jornal de Resenhas, FSP, Discurso Editorial, USP,
04.09.1995, p. 6.
63
Idem.
22

tampouco é aí que se funda a vida coletiva dos homens. A concordarmos com Hobbes, devemos
olhar as coisas humanas com um olhar menos edificante e percebermos que é para a
acomodação dos interesses individuais que se constrói o poder político, poder sem o qual o
nosso estar no mundo seria solitário, pobre, sórdido, embrutecedor e curto (cf. Lev., XIII, 76).

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