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CRÔNICAS DE UM MALUCO
Autor: Martinho Santos (Sharrawy)
Monólogos Team
Luanda • Angola
Seguiu-se um vasto falatório, ao que parecia Érica era sobrinha da minha prima, e era
a primeira que vinha a Luanda, até então sempre viveu na Huíla outra província dessa
louca pátria a quem chamam de Angola, uma jovem de apenas 19 anos, minha prima
tinha pedido a sua mãe, que a deixasse vir para Luanda para poder fazer o ensino
médio, seus grossos olhos se encontraram com os meus durante poucos segundos,
abriu-me um curto sorriso, me mantive imóvel e olhei para suas tranças, diferente das
que a minha prima tinha, eram feita com seus cabelos, não com cabelo postiço
comprado na praça, estavam todas bem alinhadas para trás da cabeça, tinha
pequenas conchas suspensas nelas que faziam som sempre que ela movia a cabeça.
- Esse aí é o Guedes, é filho da mana Teresa que morreu na guerra, vivia com
a irmã dele, mas ela casou e o marido expulsou ele de casa, ele “não bate bem”, então
lhe evita só, não é agressivo, mas às vezes fala à toa – disse minha tia apontado para
mim
No mesmo momento Érica olhou para outro lado e mudou a sua expressão facial, não
voltou a sorrir para mim, e vi que seu semblante se encheu de medo, não é a primeira
vez que alguém me olhava desse jeito, já tinha me acostumado a muita coisa.
Minha prima disse que passaria a noite em um óbito e que teria que deixar a Érica
com o meu tio e comigo por uma noite apenas, só que ela não sabia que naquela noite
tocaria a música do musseque.
Aonde estão os meus modos? Não me apresentei, chamo-me Guedes, e dizem que
sou maluco.
- Malditos brancos, nunca foi uma boa ideia deixar que eles entrassem no
Kongo – cuspiu Nzinga enchendo o peito – Nós vamos a batalha e deixar que o
sangue e o poder nossos ancestrais nos guiem, agora vão para casa e descansem o
nosso rei conta conosco no campo de batalha.
Os homens se retiravam para seus aposentos, era uma tarde ensolarada de 17 de
outubro de 1665, as relações entre o povo do Kongo e os portugueses tinha chegado
a níveis extremos, pouco restava da amizade comercial que começará com o reinado
de Nimi-a-Lukeni, agora eles queriam dominar as terras desde o norte do Kongo ao
Sul do Reino dos Kwanamas, do mar ao leste do Reino das Lundas, jamais os
congolenses se renderiam sem dar luta.
Nzinga, o general da tropa que se preparava para a batalha de Mbwila andava
apreensivo enquanto se dirigia até seus aposentos, aonde sua mulher Ikir na altura
em estado de gestação de seu quarto filho servia o seu jantar, recebera ordens restrita
de seu rei que treinasse perfeitamente as tropas, o fecho dessa batalha iria anunciar
o destino do Kongo.
Mbali, primogênito de Nzinga era um guerreiro sagaz e tivera sobrevivido a inúmeras
batalhas e era muito popular entre os habitantes do reino, degustava das delicias
preparadas pela mãe quando olha de relance para o semblante carregado de seu pai.
- O que tanto o aflige meu pai? Perguntou Mbali
- Apenas a pensar da batalha, sei que temos que proteger o Kongo pelos
nossos ancestrais e sucessores, mas sejamos sensatos, esses brancos são muito
inteligentes e têm equipamentos mais eficazes que o nosso, além de serem hábeis
soldados, acredito que uma batalha contra eles será um enorme banho de sangue
para o Kongo – anunciou Nzinga
- Como te atreves a dizer isso meu pai, o Kongo é o mais poderoso dos reinos
e tem os melhores soldados, com a protecção de Deus sairemos vitoriosos dessa
batalha – respondeu Mbali batendo os punhos nas coxas
- Tu esperas proteção de um Deus que eles trouxeram, o que tu achas, será
que ele vai proteger a nós ou a eles que são os seus donos?
- Não blasfeme contra o senhor, meu marido – Contestou Ikir após o comentário
rude de Nzinga.
- Amanhã vou expor a minha inquietação com rei, e meu filho durma cedo que
amanhã será um grande dia de treinamento.
(...)
Kambi estava de sentinela naquela noite quando ouviu ruídos vindo de uma vegetação
próxima, inicialmente pensou que fosse um animal que por aí passava, porém, o ruído
era constante e a curiosidade foi maior e então acompanhado de uma lança decidiu
aproximar-se da vegetação.
Seus passos eram lentos e silenciosos, não queria que seja lá o que fosse aquilo
notasse a sua presença, se fosse um coelho podia caça-lo e o comer ao almoço no
dia seguinte, se fosse uma cobra era conveniente que a matasse para não perigar a
vida de nenhum habitante do reino. Os metros entre si e a vegetação se tornaram
mais curtos e numa lançada desesperada Kambi abriu a vegetação e... Nada viu a
não ser folhas, riu-se da figura de parvo que fizera e assim que ele vira é surpreendido
com uma espada que transpassa sua garganta e cai soluçando e sentindo-se afogar
em seu próprio sangue.
Entre as inúmeras piscadelas ele viu uma sombra em pé, da espada pingava gotas
de sangue, era um homem e lentamente ele se inclinou até o rosto de Kambi e ele o
viu, era um branco.
(...)
Nzinga acorda atordoado pelos gritos e choros que correm em todo reino, vê que a
lua ainda brilhava assim que sai de seus aposentos.
Nota uma invulgar concentração de pessoas junto ao portão, com o sono ainda
estampado em seu rosto aproximou-se do portão empurrando as pessoas, e ali
estendido no chão morto, estava seu segundo filho, Kambi.
Tivera sido morto por um branco segundo os relatos que correm entre os soldados
que tinham acabado de o encontrar.
Kambi era um jovem guerreiro estava na tropa do reino a pouco menos de seis de
meses, fazia uma ronda noturna quando foi surpreendido pelo ataque um branco.
Ikir chegou correndo e ao abriu caminho entre a multidão, viu seu filho morto não
conseguiu evitar o grito e caiu em prantos, Nzinga se mantinha imóvel olhando o filho,
até sentir um braço apertando fortemente o seu ombro, era o Rei.
- Veem o que eles fazem! – Exclamou o Rei – eles matam os nossos filhos
enquanto dormimos, não podemos aceitar isso, o sangue desse jovem será vingado
em batalha, esses brancos terão que entender que ninguém pode contra o Kongo.
Ouviram-se gritos de raiva em todo Kongo, com sede de vingança pelo sangue de um
filho do Kongo.
Nzinga suspirou e passou o dedo entre os olhos e saiu para a sua tenda, aonde tinha
deixado o príncipe a descansar protegido por quatro soldado, o outro herdeiro insistiu
fervorosamente que o pai o deixasse partir para linha da frente com os seus primos,
enquanto caminhava calmante em direção a sua tenda um invulgar soldado bateu em
seu peito e continuou andando com o rosto voltado para o chão.
- Ei, soldado pare! – ordenou Nzinga mas o soldado continua a sua caminhada
agora mais rápida sem sequer olhar para ele – eu mandei você parar!
Nzinga pegou pelo braço do soldado e quão grande foi a sua surpresa ao descobrir
que o soldado se tratava da sua terceira filha, Singa.
- Singa, minha filha? Como? O que você faz aqui?
- Eu vim vingar o san... – tentou falar Singa quando foi interrompida pelo pai
- Cala-te imediatamente! Como você se atreveu a deixar a sua mãe sozinha,
menina insolente
- Pai eu...
- Nem mais uma palavra menina, apenas me siga para tenda.
(...)
E foi assim que acabou a batalha de Mbwila que ditou a queda do reino do Kongo, ou
pelo menos é assim que eu acho que acabou, espera aí, eu acho? Talvez, já me
disseram que não foi assim que aconteceram os factos, mas foi, e depois dizem que
eu sou o maluco.
Aonde estão os meus modos? Não me apresentei, chamo-me Guedes, e dizem que
sou maluco.