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I.

NEGRO, MACUMBA, MAGIA NEGRA

A
identificação dos três termos acima é

uma das heranças de nosso relativa-

mente recente passado escravocrata e da luta

do escravo pela liberdade, contra os senhores

brancos. A idéia muito ocidental de magia ne-

gra, desenvolvida na Europa medieval, passou

a ser identificada como magia não só volta-

da para a prática de malefícios, mas como ma-

cumba, coisa de negro.

De fato, jornais dessa época, desde 1854 até a Abo-

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LÍSIAS NOGUEIRA NEGRÃO

MAGIA E RELIGIÃO
NA UMBANDA

LÍSIAS NOGUEIRA
NEGRÃO é professor
do Departamento de
Sociologia da
FFLCH-USP e diretor
do Centro de Estudos
da Religião Duglas
Teixeira Monteiro. É
autor de Entre a Cruz
e a Encruzilhada
(Edusp).

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lição (1), dão conta de práticas rituais de ori- por ocasião das “batidas” policiais, em que
gem africana e de reações dos setores aparecem os búzios ao lado das cartas de jo-
hegemônicos de então frente a elas. Em meio gar, imagens de santos ao lado de orixás e de
a notícias de fugas de escravos, de capturas objetos de uso universal da magia, tais como
de negros fugidos, e de advertências contra pedras, cabelos, bonecos, punhais, roupas,
o perigo das revoltas contra o cativeiro, há ossos, terra, etc. Ao mesmo tempo em que o
referências a feiticeiros negros e seus “hor- europeu e seus descendentes adotavam ele-
rorosos crimes”: roubos, raptos, estupros, as- mentos dos cultos negros em seus rituais, o
sassinatos. Conforme Yvonne Maggie (2), o inverso também se dava, com a incorporação
medo do feitiço caminhava junto ao medo de crenças e práticas mágicas de extração
real do negro. européia em seu universo mágico-religioso.
Proclamada a Abolição, o medo da revolta Com a Revolução de 30 e especialmente
negra deixou de existir e o medo da feitiça- com o advento do Estado Novo, que se pre-
ria quase que desapareceu. As denúncias tendia moderno e que, em nome da
desde então até 1930, divulgadas pelos jor- modernidade, perseguia os “arcaísmos”, a
nais, são majoritariamente contra práticas repressão contra estas práticas mágicas e
de origem européia, exercidas por imigran- cultos sincréticos não só recrudesceu mas
tes portugueses, espanhóis, italianos e ale- tornou-se particularmente dirigida contra os
mães. Foram eles portadores não só de suas cultos de origem negra: nas portarias dos
crenças cristãs, mas de práticas mágicas órgãos públicos responsáveis pela
imemoriais. Ao longo desse período foi tam- moralidade e segurança públicas, as “ma-
bém introduzido o espiritismo em sua ver- cumbas” e os“candomblés” são nominal-
são kardecista, sob a forma inicial de ciência mente citados como alvos das proibições, ao
e filosofia e posterior de religião, cultivado lado das genéricas práticas de “feitiçarias,
pelas elites: era o “alto espiritismo”, como o necromancia, quiromancia e congêneres”.
designava a imprensa, protegido pelo Esta- Dá-se início a um intenso combate contra
do e legitimado socialmente, inspirado nos eles, com a apreensão de objetos rituais e
nobres princípios da caridade e envolvendo prisão de pais e filhos-de-santo e a instala-
pessoas instruídas e de elevada extração so- ção de inquéritos e processos em que foram
cial. Nas camadas populares, ao contrário, enquadrados como réus.
prevaleceria o “baixo espiritismo”, com Apenas com a redemocratização de 45, a
suas práticas de sortilégios, curandeirismo relação do Estado para com esses cultos, sob
1 Os dados relativos às notí-
cias jornalísticas desse pe- e feitiçaria enquadráveis no Código Penal, a pressão da retomada do processo eleitoral e
ríodo e dos que o seguiram
podem ser vistos em deta- despido de moralidade e motivado por inte- o florescimento do populismo característico
lhe em nosso livro Entre a
Cruz e a Encruzilhada (São
resses escusos, envolvendo pessoas do período, se inverte: de perseguidos pas-
Paulo, Edusp, 1996). desclassificadas socialmente e ignorantes. sam eles a ser favorecidos e os antigos algozes
2 Yvonne Maggie Alves Ve- É óbvio que entre tais curandeiros e feiti- transformam-se em protetores (4). No entan-
lho, Medo do Feitiço: Rela-
ções entre Magia e Poder ceiros estavam os ex-escravos e seus des- to, logo a polícia encontra seu substituto, a
no Brasil, Rio de Janeiro,
Arquivo Nacional, 1992. cendentes, praticando seus rituais de ori- Igreja: ao longo da década de 50 a CNBB
3 Roger Bastide, “A Macum- gem africana, aos quais mesclavam cren- desenvolve extensa campanha liderada por
ba Paulista”, in Estudos
Afro-brasileiros, São Pau-
ças espíritas e práticas mágicas européias. frei Boaventura Kloppenburg contra o espiri-
lo, Perspectiva, 1973. Roger Bastide (3), na década de 50, já tismo, especialmente de umbanda, que vinha
4 Para detalhes, ver: Diana havia percebido a presença marcante do eu- crescendo intensamente como revelara o re-
Brown, “Uma História da
Umbanda no Rio”, e Lísias ropeu no que chamou de macumba paulista. censeamento de 1940 (5). Antigas e novas
N. Negrão e Maria Helena
V. B. Concone, “Umbanda: De fato, a indefinição das notícias dos jornais acusações lhe são feitas e pairou sobre a ca-
da Repressão à Coop-
tação”, in Umbanda e Polí- da época com referência aos tipos de práticas beça dos católicos que freqüentassem seus
tica, Rio de Janeiro, Iser-
Marco Zero, 1985. relatadas, referidas confusamente como de terreiros a ameaça da excomunhão.
5 Ver Renato Ortiz, “Da
bruxaria, feitiçaria, espiritismo e Teriam tais cultos que esperar pelo Pon-
Inaceitação à Aceitação
Social da Religião”, in A
curandeirismo, já refletia um sincretismo tificado de João XXIII para novamente se-
Morte Branca do Feiticeiro incipiente. O mesmo pode-se dizer das listas rem tolerados pela Igreja, e pelo golpe de 64
Negro, São Paulo, Brasi-
liense, 1991. das “bugigangas” apreendidas nos “antros” para tornarem-se o grupo religioso preferen-

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cial das relações do Estado. Mesmo assim, II. MAGIA E RELIGIÃO NA
recomeçaram a ser antagonizados sistemati- ABORDAGEM SOCIOLÓGICA
camente a partir da década de 80, agora pelos
grupos neopentecostais que, em sua guerra O debate sobre a religião, em termos de
espiritual, os tomaram como alvos preferen- suas origens, papéis e conseqüências sociais,
ciais, desqualificando-os enquanto é sabidamente uma questão presente na
adoradores do demônio (6). sociologia clássica. Não obstante a negativa
Os estigmas sociais contra o negro e sua marxista em reconhecer seu estatuto
religião e as renovadas acusações mais do ontológico, sua importância enquanto fenô-
que seculares de que foram vítimas culmina- meno estratégico para a explicação e a com-
ram com a atitude ao mesmo tempo de hosti- preensão da realidade é ponto central das
lidade e de medo que até hoje inspiram. É análises de Durkheim e Weber. Esses autores
exemplar deste caso o vocábulo macumba: não cuidaram apenas da religião, preocupa-
de termo genérico para todas as religiões bra- ram-se também com a magia, demonstrando
sileiras de origem negra, ou então de as continuidades e rupturas entre elas e seus
nominativo de uma delas em especial, a de sentidos diferenciados.
origem banto, desenvolvida no sudeste do Ainda que não se possam minimizar as
país, especialmente em São Paulo e Rio de diferenças teórico-metodológicas que con-
Janeiro a partir de fins do século XIX, passa trastam as concepções mais genéricas dos
a ser vista depreciativamente como sinônimo autores, há que se salientar as inúmeras afini-
de superstição de negro, como magia negra dades entre eles no caso específico da análise
que se despreza e se teme a um só tempo. Não da magia e da religião. Em primeiro lugar, a
foi por acaso que, para fugir dessas conotações semelhança entre os conceitos durkheimiano
pejorativas, o 1o Congresso Nacional de de sagrado (9) e weberiano de carisma (10),
Umbanda realizado em 1941 no Rio de Janei- que supõem ambos uma atribuição valorativa
ro (7) adotou este novo nome para se de qualidades extra-empíricas aos objetos por
autodesignar oficialmente. A partir de então eles contemplados. Em segundo lugar, o ca-
as lideranças da religião nascente empenha- ráter individualizado da magia frente à reli-
ram-se no sentido de sua institucionalização gião: tanto para um como para outro, a magia
e legitimação, mediante o seu enquadramento liga-se prioritariamente à manipulação do
legal e a absorção dos valores vigentes, exor- sagrado/carisma para fins utilitários e pesso-
cizando de seus rituais práticas tidas como ais, enquanto a religião mantém suas preocu-
bárbaras (sacrifícios sangrentos, uso ritual da pações relativas aos interesses coletivos que
pólvora e de bebidas alcoólicas, “despachos” expressa. Se para Durkheim a confraria má-
de Exu) e controlando os terreiros através de gica não realiza a comunhão religiosa da Igre-
sua vinculação a federações (8). Seu sucesso ja, para Weber o mago é visto como um em-
foi apenas relativo, pois um número muito preendedor individual face ao caráter
6 Ricardo Mariano, Neo-
grande de terreiros, mesmo que filiados para institucionalizado da congregação e do sa- pentecostalismo: os Pen-
tecostais Estão Mudando,
garantir uma certa legalidade de seu funcio- cerdócio. dissertação de mestrado,
FFLCH-USP, 1995.
namento, permaneceu avesso às exigências Ainda, a magia era vista por eles como
7 Roger Bastide, “Nascimen-
das federações e continuou com suas práticas expressão historicamente superada. Se to de uma Religião”, in As
Religiões Africanas no Bra-
tradicionais. Durkheim generaliza os resultados de seu sil, cap. 6, 2o vol., São Pau-
Este breve escorço histórico das relações “experimento” sobre a religião, feito com base lo, Pioneira/Edusp, 1971.

entre cultos afro-brasileiros e a sociedade empírica de sociedades primitivas, não pro- 8 Idem, ibidem.

inclusiva conduz às interpretações sociológi- cede da mesma maneira com a magia, a qual 9 Émile Durkheim, As Formas
Elementares da Vida Reli-
cas sobre o sentido de sua preservação e trans- não teria o atributo da universalidade. Se giosa, São Paulo, Paulinas,
1991.
formações sofridas ao longo do tempo. Antes Weber confere a esta última o caráter da
10 Max Weber, “Tipos de
disso, porém, passaremos a discutir certos manifestação do carisma em sociedades cam- Comunidad Religiosa
(Sociología de la Re-
aspectos da conceituação sociológica sobre ponesas, predominantes até a época medie- ligión)”, in Economía y
os fenômenos mágicos e religiosos, que po- val, vai associar o mundo moderno desencan- Sociedad, México-Buenos
Aires, Fondo de Cultura
derão melhor esclarecer tais interpretações. tado à plenitude das religiões éticas. E, sobre- Económica, 1964.

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tudo, do ponto de vista que mais nos interessa sociais. Identificamos nela expedientes de que
nestas reflexões, para ambos a religião é vista lançam mão indivíduos marginalizados soci-
como um fenômeno eminentemente moral almente, mas também aqueles integrados à
frente à amoralidade da magia. Para o clássi- sociedade, mesmo que em seus degraus infe-
co francês aquela expressaria a superioridade riores, além daqueles de outras extrações
moral da consciência coletiva sobre a carên- sociais, cultural e economicamente privilegi-
cia moral das consciências individuais. Para ados, todos eles em seus momentos de crise
o sociólogo alemão, a magia seria um obstá- pessoal. Como já perceberam outros autores
culo a ser vencido no processo racionalizador – Fry e Howe (17), Brumana e Martínez (18) –,
e moralizador que se inicia com as religiões trata-se de técnicas de resolução de aflições
éticas. do cotidiano, amplamente reconhecida como
A sociologia dos fenômenos mágicos e eficazes.
religiosos teria que esperar pelas reflexões de Tal forma de encará-la não tem a preten-
Georges Gurvitch (11) para reabilitar a ma- são de contrapor-se à análise clássica. Esta
gia quanto à sua função social. Este autor a foi produto da reflexão sobre outros contex-
percebeu não mais como uma apropriação tos histórico-sociais e com intenções mais
individualizada do sagrado, com finalidades abrangentes ligadas à interpretação da mo-
também pessoais e, portanto, despida de ética derna sociedade ocidental. Mesmo os acon-
e de controle social por parte de grupos mais tecimentos mais recentes que atestam a
amplos, mas como expressão dos interesses “revanche do sagrado” na pós-modernidade
dos grupos minoritários e dominados no inte- são posteriores às análises dos clássicos. Es-
rior de sociedades primitivas ou tradicionais. tes, mesmo assim, continuam a fornecer pis-
11Georges Gurvitch, “La
Produzidos e reproduzidos socialmente, cren- tas para a compreensão dos fenômenos mági-
Magie, la Religion et le ças e rituais mágicos não se caracterizariam cos onde quer que eles se dêem. Não obstante,
Droit”, in La Vocation
Actuelle de la Sociologie, mais, nessa interpretação, pela ausência de nossas considerações estão circunscritas a um
Paris, PUF, 1956.
preocupações de caráter ético, mas por uma tipo de prática mágica dentro do campo reli-
12 Georges Balandier, Anthro-
pologiques, Paris, PUF, moralidade de aspiração diversa da gioso brasileiro e contemporâneo, devendo,
1974.
moralidade estabelecida ou convencional. pois, exprimir suas especificidades.
13 Marc Augé, Symbole, Expressariam eles a busca de autonomia por
Fonctions, Histoire, Paris,
Maspero, 1974. parte de grupos submetidos no contexto soci- III. MAGIA E RELIGIÃO NO
14 Jean Ziegler, O Poder Afri- al e político. CONTEXTO DOS CULTOS
cano, São Paulo, Difel,
1972. Trabalhos mais recentes produzidos por AFRO-BRASILEIROS
15 Edward E. Evans-Pritchard, autores ligados à chamada “sociologia das
Bruxaria, Oráculos e Magia
entre os Azande, Rio de mutações”, entre os quais Balandier (12), É, sem dúvida, Roger Bastide o nome de
Janeiro, Zahar, 1978.
Augé (13), Ziegler (14), têm seguido esta maior expressão no que se refere ao estudo
16 Luc de Heush, Pourquoi,
l’Epouser, Paris, Gallimard,
última linha interpretativa, privilegiando o desses cultos. Sua obra, contraditada por
1971. nível instituinte do mágico no qual prevale- outros autores em alguns de seus aspectos, é
17 Peter Fry e D. Howe, “Duas cem formas de contestação social sobre o nível ponto de referência obrigatório que não pode
Respostas à Aflição:
Umbanda e Pentecos- instituído do religioso, tendente a manter o ser ignorado. No entanto, conforme acredita-
talismo”, in Debate e Críti-
ca, no 6, São Paulo, 1975. equilíbrio e a ordem. Contribuições de estu- mos já ter demonstrado alhures (19), sua po-
18 Fernando G. Brumana e
dos etnológicos têm também reforçado tal sição metodológica diante da realidade ob-
Elda G. Martínez, Mar- visão da magia, desde os trabalhos de Evans-
ginália Sagrada, Campinas,
servada, fortemente ancorada na distinção
Editora da Unicamp, 1991. Pritchard sobre os azandes (15) e de Luc de magia/religião de Durkheim e em suas afini-
19 Lísias N. Negrão, “Roger Heush sobre os bantos (16), que demonstram dades pessoais com o candomblé, fez com
Bastide: do Candomblé à
Umbanda”, in Ceru (org.), a existência da dicotomia magia branca e negra que este fosse tomado, como bem notou
Revisitando a Terra de Con-
trastes: a Atualidade da inclusive nestes contextos sociais primitivos. Duglas T. Monteiro (20), como paradigma da
Obra de Roger Bastide, São
Paulo, Ceru-FFLCH-USP, Na análise a que procederemos, sobre a religião autêntica frente a outras formas
1986.
magia no contexto umbanda, estaremos mais descaracterizadas magicamente (a macumba)
20 Duglas T. Monteiro, “Roger próximos à interpretação dos autores recen- ou ideologicamente (a umbanda).
Bastide: Religião e Ideolo-
gia”, in Religião e Socieda- tes, sociólogos e antropólogos, que nela vêem Há, por parte do sociólogo francês, uma
de, n o 3, Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1978. mais do que simples práticas anômicas e anti- condenação moral explícita da antiga macum-

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ba, por ele considerada uma forma degradada tendo com o secular e se acomodando aos
de cultos africanos ancestrais, condizente com interesses materiais e ideais predominantes.
a condição de marginalidade social a que os Nem se pode esquecer que toda teologia é
negros foram relegados após a Abolição. Isso também ideologia religiosa (23).
sobretudo nos grandes centros urbanos, onde Se para Bastide a questão da inserção do
sofreram a influência decisiva, no sentido de negro na sociedade e da religião como seu
sua descaracterização, das práticas mágicas elemento identificador foi o “fio de Ariadne”
trazidas pelos imigrantes europeus. que o conduziu em suas pesquisas, Cândido
Nossos estudos e os de Liana Trindade Procópio Ferreira de Camargo (24), ao con-
(21) têm nos conduzido a uma interpretação trário, encontrou no kardecismo – espiritis-
diversa. Sem negar a existência da macumba mo europeu racionalizado em consonância
individualizada e envolvida com a com o discurso científico e moralizado de
criminalidade de inícios do século, sobretudo acordo com os cânones cristãos – contraponto
em São Paulo e no Rio de Janeiro, conforme da umbanda por ele analisada: seriam estas
demonstrou Roger Bastide, houve na mesma duas formas de espiritismo, segundo ele, os
época terreiros de macumba com distinções pólos de um “continuum mediúnico” que as
hierárquicas internas e culto organizado e incluiriam e combinariam em graus variáveis
controlado (22). Se as práticas denunciadas as suas características particulares, constitu-
pelo estudioso francês revelavam a situação indo assim formas originais em cada terreiro
anômica vivida pelas populações negras da específico. Como resultado final, seu estudo
época, a presença dos terreiros por nós cons- é antes sobre o pólo branco e cristão do que
tatada revela também que estas contrapu- sobre o negro e afro-brasileiro.
nham-se à anomia, lutavam no sentido de li- Outra antítese da interpretação de Bastide,
mitar seus nefastos resultados. Contudo, embora contrapondo-se a ela em outra dire-
identificadas ambas as formas aos olhos da ção, surge no trabalho de Georges Lapassade
repressão (e inclusive da análise sociológica e Marco Aurélio Luz (25), O Segredo da
de então), foram igualmente estigmatizadas e Macumba. Inspirados na sociologia das mu-
perseguidas. tações e operando dentro de um referencial
No que se refere à umbanda, não pode- marxista, selecionam a macumba como a
mos também aceitar o rótulo de ideologia que forma de culto afro-brasileiro com o qual se
lhe foi atribuído pelo mestre francês, em identificam. Vêem nela uma expressão
decorrência de suas afinidades com o pro- contracultural do negro dominado na estrutu- 21 Liana Maria S. Trindade,
Construções Míticas e His-
letariado negro em formação a partir da déca- ra de classes e sua constituição como decor- tória: Estudos sobre as Re-
presentações Simbólicas e
da de 30. A atitude do negro socialmente in- rente da memória de eventos da resistência Relações Raciais em São
Paulo do Século XVIII à
tegrado, de buscar a compatibilização de suas negra à escravidão, sobretudo Palmares. Por Atualidade, tese de Livre
crenças com a sua nova condição social, pode via psicanalítica, através das identificações Docência, São Paulo,
FFLCH-USP, 1991.
antes ser vista como uma forma de entre a repressão sexual e a aceitação da au-
22 Lísias N. Negrão, “A Ges-
aggiornamento religioso do que como toridade, tal como apregoada por W. Reich, tação da Umbanda na Óti-
ca do Outro: do Império à
descaracterização ideologicamente condu- chegam ao papel político da macumba: Exu, República Velha”, in Entre
a Cruz e a Encruzilhada,
zida. Envolve, sim, ocultações de caráter ide- seu herói dionisíaco, que combate os apolíneos op. cit.
ológico e atitudes motivadas politicamente, pretos-velhos e caboclos umbandistas liga- 23 Pierre Bourdieu, “Análise
do Campo Religioso”, in A
mas não mais do que o próprio candomblé, dos à preservação da ordem, ao mesmo tem- Economia das Trocas Sim-
com sua rejeição de elementos sobrevenientes po que liberta a sexualidade, contrapõe-se às bólicas, São Paulo, Pers-
pectiva, 1974.
e tentativas de preservação da memória afri- vigências culturais e políticas.
24 Cândido Procópio F. de
cana. São apenas soluções diversas para uma Embora Renato Ortiz (26) tenha sido dis- Camargo, Kardecismo e
Umbanda, São Paulo,
situação semelhante, preservacionista esta e cípulo de Bastide, dele distanciou-se ao não Edusp/Pioneira, 1961.
integracionista aquela, porém ambas igual- fazer a leitura dos cultos afros a partir da pro- 25 Georges Lapassade e
Marco Aurélio Luz, O Se-
mente ideológicas. Não se pode desconhecer blemática do negro. Seu ponto de vista é o da gredo da Macumba, São
que toda mensagem religiosa original se trans- atuação da sociedade branca sobre tais cul- Paulo, Paz e Terra, 1972.

forma em contato com a diversidade social tos, a ponto de provocar “a morte branca do 26 Renato Ortiz, A Morte Bran-
ca do Feiticeiro Negro, op.
envolvente, de alguma forma se comprome- feiticeiro negro” no caso da umbanda. Não cit.

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obstante incorporar basicamente as interpre- te chamados de “santos” ou ainda “orixás”,
tações de seu mestre sobre a tríade destes que lhes são característicos: espíritos estere-
cultos – a marginalidade da macumba, a otipados que representam em sua maioria ti-
integração da umbanda e a preservação do pos sociais característicos da sociedade bra-
candomblé –, não compartilha com ele de suas sileira.
avaliações valorativas sobre os mesmos. Com a exceção de numerosos tipos de
O modelo da umbanda é, para Ortiz, a espírito que aparecem muito pouco nos ter-
própria sociedade brasileira, racionalizada e reiros e com grande indefinição de suas ca-
moralizada, que torna inexorável a adaptação racterísticas, tais como ondinas, sereias, gui-
da religião negra às vigências culturais. O as hindus, estrelas de guia, padres, enfermei-
candomblé pode se manter em nichos, onde ros, anjos e almas, entre outros, são doze as
permaneceria, como diria Bastide, “em con- suas categorias mais freqüentes, em ordem
serva”. A macumba pode permanecer enquan- decrescente: caboclos (índios), pretos-velhos
to o processo de integração de populações (escravos), baianos (nordestinos, que podem
marginais não se completar, mas pertence ao ser também cangaceiros), exus (espíritos de-
passado em diluição. Não admite, contudo, moníacos), pombas-giras (prostitutas), crian-
seu caráter contracultural tal como propõem ças, boiadeiros, marinheiros ou marujos,
Lapassade e Luz; seria antes resquício tradi- oguns (o orixá africano, identificado a São
cional que atitude moderna, politicamente Jorge), Zés Pilintras (malandros), ciganos e
canalizável. O futuro pertenceria à umbanda, médicos.
essencialmente branqueada apesar de seu Há infinitos espíritos individuais em cada
“empretecimento” (não “enegrecimento”) em uma destas categorias (por exemplo: o Cabo-
aspectos secundários, assimilada e domesti- clo Urubatão, a preta-velha Mãe Joana, o
cada. O discurso dos intelectuais umbandistas baiano Gerônimo, etc.), além de espíritos
aponta o caminho a ser trilhado, apesar de individuais de categorias mistas, como a pom-
resistências eventuais. ba-gira cigana, o exu-mirim, o preto-velho
Os autores citados delineiam o quadro baiano, entre outros. Com a exceção dos oguns
dentro do qual a magia na umbanda será a e eventualmente de outros orixás que só se
seguir discutida. São trabalhos mais antigos, incorporam para ser homenageados, os de-
de maior ou menor fôlego, mas que mapeiam mais espíritos “descem” para trabalhar em
as principais posições interpretativas sobre suas “giras”, quando são invocados pelos seus
ela e seus congêneres. Outros trabalhos mais “pontos cantados” ao som dos atabaques ou
recentes e importantes também para a discus- de palmas ritmadas. Dão “passes” (espécie
são, já mencionados ou ainda a serem, sobre de benzimento em que as más influências
questões relevantes tais como a cura mágica espirituais são afastadas) e “consultas” (ou-
ou a figura mítica de Exu, serão também uti- vem e aconselham), além de indicar “traba-
lizados e presentes à discussão, dadas suas lhos” (procedimentos mágicos) e banhos
relevantes contribuições. purificadores com ervas.
A constituição das chamadas sete linhas
IV. DIREITA E FRENTE; da umbanda foi uma tentativa de ordenar hi-
ESQUERDA E COSTAS erarquicamente esse panteão. São divisões do
mesmo, comandadas por um orixá identifica-
Os terreiros ou tendas são unidades dis- do a um santo católico, que incluiriam um
cretas e independentes do culto umbandista, conjunto mais ou menos homogêneo de gui-
centralizadas na autoridade de seus “pais-de- as. A definição destas sete linhas e sua hierar-
santo” que reúnem em torno de si número quia variam, contudo, de terreiro para terreiro;
variável de “filhos-de-santo” ou médiuns, que o máximo de unanimidade que se conseguiu
atendem a uma clientela tanto fixa quanto foi a relativa às duas primeiras delas: a de Oxalá-
eventual. Constituem-se eles nos locais de Jesus e a de Iemanjá-Nossa Senhora.
sua produção e reprodução mítica, em que Uma outra ordenação muito mais simples,
são gerados os “guias”, também genericamen- pela sua natureza binária, porém muito mais

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significativa pelo seu caráter moral, é a que capazes de atuar maleficamente. Não são “Ponto riscado”
contrapõe os espíritos em termos de direita e propriamente o diabo, apesar da catequese de Ogum Megê em
esquerda. Os orixás-santos, caboclos, pretos- católica ter feito essa identificação, já que sua que sobressaem os
velhos e crianças, apesar de suas característi- iconografia africana o representa com chi-
símbolos guerreiros:
cas diferenciais – os primeiros ociosos e quase fres, tridente de ferro e com falo evidente,
espadas cruzadas
inacessíveis, os segundos sérios, altivos e além de ter no fogo o seu símbolo. Quando
autoritários frente à meiguice e humildade aceitam a identificação com o diabo recusam e flechas
dos terceiros e à alegria e ingenuidade dos o seu caráter intrinsecamente mau, como já
últimos –, são inequivocamente da direita. havia notado Liana Trindade (27). Mas têm
Somente fazem o bem e atendem apenas aos um evidente caráter diabólico, pois são vistos
pedidos de seus clientes que não conflitem como espíritos de mortos, “eguns” ou
com a moralidade vigente nem causem da- “quiumbas”, que em vida foram assassinos,
nos a outrem. ladrões, etc. Ficaram vagando até serem re-
Os exus e suas mulheres, as pombas-gi- colhidos por Lúcifer, que os colocou a seu
ras, ao contrário, aceitam qualquer pedido de serviço. Aparecem nos terreiros rastejando,
seus clientes, independentemente de preocu- bebem pinga jogada no chão; se eretos têm o
pações de ordem moral, desde que pagos para andar cambaleante e as mãos retorcidas como
isso – os famosos “despachos”, que incluem garras. Chegam a matar animais com seus
seus pratos prediletos: carne crua, galinha próprios dentes e mesmo a querer comer cri- 27 Liana Maria S. Trindade,
preta, bode e aguardente. Por isso são de es- anças que não tenham sido batizadas. São Exu – Símbolo e Função,
São Paulo, FFLCH-USP/
querda. Os primeiros são vistos como perigo- identificados com os cemitérios (um dos seus CER, Col. Religião e Soci-
edade Brasileira, vol. 2,
sos ou ao menos como potencialmente maus, lugares prediletos ao lado das encruzilhadas), 1979.

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daí seus nomes relacionarem-se fre- são ainda exus e pomba-giras, sempre tenta-
qüentemente com a morte: exu caveira, sete dos a um chiste ou palavrão, benevolente-
catacumbas, etc. mente tolerados, mas convém sempre estar
Já as pombas-giras são representações de alerta para evitar excessos. Apesar de mora-
prostitutas ou de mulheres de comportamen- lizado, é muito raro um exu tornar-se o guia
to moral duvidoso (se dizem mulheres de sete principal do terreiro; em nossas pesquisas
maridos), desde as mais desclassificadas como encontramos apenas um caso.
Maria Mulambo, até as cortesãs como Maria Dessa maneira e paradoxalmente através
Padilha. Bebem falso champanhe e fumam, de sua reinterpretação kardecista, os exus
provocam os homens com seus maneirismos recuperam sua condição ambígua original
e olhares e, salvo estas últimas, que “têm clas- (29): não são nem bons nem maus em si
se”, falam freqüentes palavrões. Os exus em mesmos, mas podem realizar benefícios ou
geral e particularmente as pombas-giras, es- malefícios conforme sejam manipulados.
tas atendendo preferencialmente clientela Passam a ser vistos não como intrinsecamen-
feminina (são os “guias das moças”), tratam te imorais, mas como amorais; se “estão nas
sobretudo do relacionamento sexual, arran- trevas”, podem “ganhar luz” desde que acei-
jam namorados, amantes e esposos e fazem tem praticar exclusivamente o bem e evoluir
as “amarrações” de pessoas amadas, mesmo até tornarem-se guias de direita, quando, en-
que casadas com outros. tão, deixariam de ser exus.
É evidente que as federações e intelectu- Enquanto mantêm esta condição, contu-
ais de umbanda tentaram extirpar os exus e do, continuam sendo sempre potencialmente
suas mulheres das giras. Mas são muito raros perigosos. Sem deixar de sê-lo, não obstante,
os terreiros em que não estejam presentes, de podem estar à direita, quando doutrinados.
alguma forma. Geralmente têm sua casa na Nessa nova condição, tornam-se os agentes
entrada do terreiro, a “trunqueira”, onde são preferenciais da contramagia: não podem
colocadas suas imagens e oferendas. De to- fazer o mal contra inocentes, mas podem fazê-
dos os guias são talvez os únicos que têm lo retornar contra pessoas maldosas e mal-
giras especiais, normalmente mensais, na intencionadas que iniciaram a agressão má-
primeira ou última sexta-feira do mês, já que gica, pelos umbandistas denominada “deman-
são identificados às entradas e saídas. Mas da”, através dos exus pagãos. Esse “trabalho
há os terreiros que as realizam toda sexta; sujo” não pode ser realizado pelos orixás,
após as giras da direita, à meia-noite dá-se santos, pretos-velhos, caboclos e crianças, por
“a virada”: uma cortina separa os santos do ser incompatível com sua alta condição espi-
“congá” (altar) do espaço ritual, com a exce- ritual. A estes não é permitido, pelo mesmo
ção de São Jorge-Ogum que, patrulheiro, motivo, entrar nos cemitérios e encruzilha-
permanece vigilante. das, territórios dos exus pagãos em que rea-
Se as federações e os intelectuais não lizam suas maldades. Obedecendo as ordens
conseguiram banir os exus, foram melhor dos guias de direita, os exus batizados, dada
sucedidos na tentativa de seu controle. Rena- a sua ambigüidade, podem fazê-lo, e assim
to Ortiz, em seu citado trabalho, já havia combater o mal no mesmo lugar em que é
mencionado o batismo dos exus como técni- engendrado, o que é considerado essencial
ca de domesticação utilizada nos terreiros para a eficácia do rito defensivo.
(28). Batizados, deixam de ser pagãos e não Estes guias, inquestionavelmente de di-
aceitam mais realizar malefícios nem se com- reita ou esquerda, não esgotam, contudo, o
portam primitivamente. Revelando uma gran- panteão umbandista. Há os demais, cuja po-
de influência kardecista, os pais-de-santo sição é dúbia, sobretudo os baianos, festivos,
freqüentemente se referem a seus exus como falastrões e desbocados, os marinheiros,
28 Renato Ortiz, “Da
Ambivalência: Exu-Pagão/
“doutrinados”: não permitem que rastejem, mulherengos e bêbados, os Zés Pilintras
Exu Batizado”, in op. cit, pp. bebam pinga no chão ou sejam inconvenien- malandros e marginais, e os ciganos apega-
137-44.
tes com seus palavrões e comportamento dos aos jogos de cartas e práticas divinatórias.
29 Ver os textos indicados nas
duas notas anteriores. agressivo. Embora batizados ou doutrinados Não são exus, embora muitas vezes os Zés

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Pilintras com eles sejam confundidos, e ape- mais, intermediários entre os dois, têm de ser
sar de todos conviverem melhor e mais ami- posicionados atrás, como guardiões, guarda-
úde com os mesmos; nem “santos”, de direi- costas que são. Os ataques sofridos pelas
ta, devido às suas características pouco mo- pessoas por parte dos exus demandeiros são
ralizadas. São também eguns e quiumbas que sempre pelas costas, já que na frente elas es-
podem fazer o mal da mesma forma que os tão bem defendidas pelos guias de direita.
exus, mas que são mais facilmente moraliza- Uma inversão desse posicionamento, com os
dos e conseguem evoluir espiritualmente com exus atuando à frente, pode causar sérios pro-
maior facilidade, porque também não são de blemas aos filhos-de-santo. Das moças volú-
esquerda. Os pais-de-santo tendem a veis que mudam freqüentemente de parcei-
identificá-los como pertencentes à “meia es- ros sexuais, ou não os têm fixos, diz-se que
querda”, à “linha mista” ou “intermediária”. suas pombas-giras tomaram a dianteira dos
Direita e esquerda não são categorias neu- orixás e guias moralizados, explicando-se
tras mas carregadas de valor, como metáforas desta forma seu comportamento leviano.
da lateralidade do corpo humano a que se Recorre-se, nesses casos, aos pais-de-santo
recorre com freqüência para explicá-las: dois para reposicioná-las corretamente, corrigin-
olhos, duas orelhas, dois braços, duas pernas, do-se assim o erro e readquirindo-se o com-
não apenas existentes mas necessários em seu portamento tido como socialmente aceitável.
conjunto para bem se ver, ouvir, trabalhar e Esta identificação da lateralidade do cor-
andar. Assim, nos terreiros, salvo nos casos po humano a virtudes e fraquezas morais não
daqueles extremamente moralizados que pres- é um atributo exclusivo da umbanda. Ela
cindem da esquerda, e nos casos estritamente acompanha as religiões desde suas formas
mágicos da chamada quimbanda que dispen- mais primitivas até seus desdobramentos mais
sam a direita, ambas estão de alguma forma contemporâneos. As oferendas são entregues
presentes em seu imaginário e prática ritual. aos deuses com a mão direita, com ela tam-
Mesmo naqueles em que há uma forte influ- bém se transmite as bênçãos e se persigna. Os
ência do evolucionismo espiritual kardecista deuses estão à direita do homem e o próprio
e de seus ideais de caridade, a esquerda é vista Cristo está à destra do pai; nas suas
como necessária. Sem ela se tornariam fracos iconografias, sua mão direita aponta para o
e vulneráveis pois não teriam defesa contra as céu e a esquerda o inferno. Nessa direção, é
demandas, já que são os exus, mesmo que clássico o ensaio de Robert Hertz, “A Pree-
doutrinados, que se incumbem de defender minência da Mão Direita: um Estudo sobre a
os pais e filhos-de-santo, e mesmo a cliente- Polaridade Religiosa” (30). Demonstra ele
la, contra os malefícios reais ou virtuais de como a mão direita, identificada às virtudes
seus concorrentes, desafetos e inimigos. A do sagrado, opõe-se à mão esquerda, profana
virtude é vista como necessária e sua e associada tanto à ausência dessas virtudes
concretização o objetivo a ser alcançado, mas como dotada de contravirtudes profanadoras
sem a força da esquerda ela torna-se daquele. A esquerda é a sinistra e o seu opos-
inoperante. Apenas a presença dos espíritos to o correto, o legal, o direito. Das mãos a
da esquerda, ao contrário, confere o poder metáfora se estende ao corpo humano em sua
que, sem a presença da virtude, torna-se ex- totalidade e ao espaço envolvente: “[...] para
clusivamente malévolo. a direita é a idéia do poder sagrado, regular e
Esta, embora a mais importante e genera- benéfico, o princípio de toda atividade afetiva,
lizada, não é a única metáfora corporal exis- a fonte de tudo que é bom, favorável e legíti-
tente na umbanda. Os guias “de luz”, de ele- mo; para a esquerda, esta concepção ambígua
vada condição espiritual, não devem apenas do profano e impuro, o fraco e incapaz que é
30 Robert Hertz, “A Preemi-
situar-se à direita. Dada sua preeminência, também maléfico e temido” (31). nência da Mão Direita: um
Estudo sobre a Polaridade
devem estar também à frente, na parte nobre Informa o mesmo autor que a frente tende Religiosa”, in Religião e So-
ciedade, n o 6, CER-Iser,
do corpo. Os espíritos ainda em evolução e a ser, também, o lugar correto dos deuses e Rio de Janeiro, Tempo e
apegados ao material, como os exus e pom- espíritos benignos. Identificam-se à luz que Presença, 1980.

bas-giras especialmente, mas também os de- vem do leste, do nascer do sol, para o qual 31 Idem, op. cit., p. 111.

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devem os fiéis tornar suas faces em suas pre- dem sem especulações desta ordem. Os exus,
ces e estar voltados os altares dos templos; as pombas-giras, os baianos, ciganos e Zés
enquanto atrás, no poente, estão os demônios Pilintras estão sempre prontos a favorecer
e espíritos das trevas. aqueles que lhes paguem as oferendas, sem
maiores questionamentos. Além das giras
V. A REINTERPRETAÇÃO destes guias serem mais movimentadas,
UMBANDISTA DAS VIGÊNCIAS espetaculosas e alegres, o que atrai uma cli-
MORAIS entela maior, eles mesmos estão muito mais
próximos das debilidades humanas, para
Através da incorporação da doutrina compreendê-los e ajudá-los em suas necessi-
kardecista da evolução espiritual e dos prin- dades e conflitos. Em muitos terreiros, tais
cípios morais cristãos, a umbanda reelaborou práticas duvidosas do ponto de vista moral, que
as raízes negras de seu universo simbólico. implicam danos a terceiros, são tranqüilamente
Ao fazê-lo, contudo, não abdicou de sua con- aceitas: “quando tenho algo que não presta a
cepção religiosa fundamental: a idéia de que fazer, rodo a baiana mesmo, e rodo com a es-
os relacionamentos sociais são perigosos; os querda”, admitiu uma mãe-de-santo. E normal-
outros, por disposições naturais, inveja ou mente cobram pelos serviços prestados.
simples maldade, são capazes de causar da- O perigo está nos outros, que podem com-
nos ao sujeito em sua sanidade, em suas con- prometer sua situação e seus projetos para o
dições econômicas e seu relacionamento futuro neste mesmo mundo. A solução en-
afetivo e familiar. O caráter fragmentado da contra-se, porém, acessível através da mani-
vida social nas grandes cidades, com o isola- pulação mágica dos poderes espirituais. No
mento que acarreta e a competição como seu máximo alguns deveres rituais têm que ser
processo social predominante, culmina por cumpridos e pagas algumas despesas supor-
reforçar esta percepção, ao invés de táveis, já que os pais-de-santo têm a sensibi-
ultrapassá-la, por efeito dos fatores lidade de adequá-las às possibilidades do in-
racionalizadores e moralizadores também aí teressado, e a defesa lhe está assegurada, bem
operantes. As demandas contra os rivais, como o contra-ataque mágico que puna o
desafetos e pessoas maldosas estão presentes agressor. Há no discurso dos pais-de-santo,
na vida real e são transpostas para o plano quase que invariavelmente, a afirmação de
simbólico através da prática mágica. que os seus guias apenas desfazem os
Diversamente das religiões cristãs, o pe- malefícios que os exus pagãos ou outros gui-
rigo não está no próprio indivíduo, nas suas as não-moralizados causaram aos seus clien-
culpas e pecados que possam afastá-lo do tes. Mas como a maior parte dos males que os
caminho correto e da promessa de salvação. atingem é interpretada dentro dos quadros da
É bem verdade que alguns pais-de-santo mais prática de feitiçaria, todo pai-de-santo é um
moralizados apregoam que o mérito pessoal feiticeiro em potencial aos olhos de seus pa-
para se alcançarem graças é imprescindível res e da clientela em geral. As suspeitas e
e que os guias de direita não atuam em bene- acusações mútuas constituem a regra.
fício senão depois de “correr uma gira” e Não obstante o poder e a eficácia dos exus
constatar a integridade do caráter do interes- e de outros demandeiros pouco moralizados,
sado e a legitimidade de seus interesses. Para a preeminência da direita é universalmente
Na outra página, eles, o dever da caridade como princípio moral reconhecida, mesmo por parte daqueles que
Zé Pilintra com básico contrapõe-se à prática mágica; admi- trabalham preferencialmente com a esquer-
seus trajes típicos te-se apenas a contrademanda desde que com- da. Tal superioridade é sobretudo moral, con-
provada a situação de vítima por parte do forme vimos, mas ela se revela mais do que
de malandro
cliente. Há pessoas mal-intencionadas e peri- isso nas metáforas sociais utilizadas por pais-
gosas, é justo, portanto, defender-se e contra- de-santo para explicarem a relação direita/
32 Yvonne Maggie Alves Ve-
lho, Guerra de Orixá: um
atacá-las. esquerda. Baseados na mitologia africana em
Estudo de Ritual e Conflito, Mesmo quando a iniciativa da agressão que cada orixá tem um exu à sua disposição
Rio de Janeiro, Zahar,
1975. parte do cliente, há os outros guias que o aten- para comunicar-se com seus iguais e mesmo

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com os homens, os exus são classificados
como “escravos”, “empregados”, “capangas”
e “capachos” dos santos, sobretudo dos cabo-
clos. Estes não fazem o trabalho “pesado” e
“sujo”, mandam os exus fazê-lo. Um pai-de-
santo foi bem explícito: os caboclos seriam
os engenheiros das construções e os exus os
peões.
Se o panteão umbandista procede a uma
inversão simbólica na qual os segmentos mais
pobres e oprimidos são alçados à condição de
deuses (negros, índios, nordestinos, prostitu-
tas, marginais), conforme há tempo percebeu
Yvonne Maggie (32), nele próprio também
não há igualdade. Os santos da direita tendem
a ser vistos como comandantes, ilibados
moralmente, dotados de grande conhecimen-
to e ociosos em alguma medida; quando ati-
vos fazem o trabalho leve e limpo. Os da es-
querda e intermediários já são comandados,
não dotados de consciência moral ou com a
mesma apenas em início de formação, sem
grandes conhecimentos, o que os condenaria
ao trabalho pesado e sujo. Esta transposição
da hierarquia do plano real para o plano mítico
encontra no primeiro a fonte de legitimação
do segundo e parece ser uma indicação de seu
caráter conservador, de aceitação da ordem.
Sem negar este caráter de reprodução ideoló-
gica da subalternidade, que a leitura do uni-
verso simbólico umbandista propicia, há,
contudo, nuances a realçar.
A grande maioria das intervenções dos
guias na vida daqueles que procuram por sua
ajuda refere-se a questões de saúde. Tanto
assim que não existem guias que delas não
cuidem, todos são curadores. Existem ainda
os “médicos do espaço” que, reunindo o sa-
ber médico ao saber esotérico, são
especializados em curas, realizando inclusi-
ve as “operações espirituais”. A grande mai-
oria das intervenções envolvendo saúde, por
sua vez, refere-se a males não diagnosticados
pela medicina oficial ou então diagnostica-
dos mas não resolvidos pelos tratamentos
médicos. Embora possa haver situações de
complementaridade entre as duas formas de
terapia, quando o tratamento espiritual é en-
tendido apenas como um reforço da cura dos
males do corpo e da mente, o caso mais fre-
qüente é o da oposição: a medicina não tem

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competência para curá-los pois são males de então, a consecução de um cargo ou emprego
origem espiritual: “encostos” de espíritos já ocupado por outrem? Muitas vezes, quan-
obsessores (eguns, exus), “trabalhos” de do há disputa entre pretendentes, o mérito do
macumba realizados contra o doente, cliente pode justificar a vitória; argumenta-
mediunidade não assumida ou não desenvol- se que o perdedor não foi prejudicado, apenas
vida. não foi favorecido. Considera-se que aquilo
Dois trabalhos mais antigos (33) e outro que é bom para um necessariamente é mal
mais recente (34) bem colocaram as questões para outro.
mais relevantes sobre as terapias em contexto Em suma, a lógica da prática mágica
umbandista. Paula Montero demonstrou como umbandista acomoda diferentes ordens de
as causas das doenças devem ter seus sinto- exigência. Atende aos valores ideais da ca-
mas diagnosticados não em sensações orgâ- ridade cristã filtrados pela ótica kardecista
nicas, mas na totalidade da vivência da pes- ao, em princípio, negar-se a praticar
soa enferma. Através do ritual mágico dar- malefícios a quem quer que seja e só auxiliar
se-ia a passagem de uma situação sentida vivos e mortos em suas carências e aflições.
como de desordem, a doença, para uma Mesmo que na prática tais valores sejam
reordernação da vida do doente em sua tota- desrespeitados, há justificativas moralmen-
lidade, qual seja, a cura. A moléstia e seu te aceitáveis para fazê-lo: a justiça, o mérito.
tratamento ultrapassam o quadro médico res- Satisfaz também à cosmovisão de suas raízes
trito, para ganhar significado diante de sua religiosas negras, ao fornecer os elementos
biografia e do imaginário religioso. A atua- simbólicos necessários para enfrentar e su-
ção dos homens e dos guias explica e, por via perar os perigos representados pelas rela-
simbólica, cura. ções sociais. Por último, é compatível com o
Embora a cura seja sempre vista como meio social envolvente, hierarquizado e
uma efetivação do ideal da caridade, em que conflitivo, em que subalternos, marginais ou
se pratica inquestionavelmente o bem, os integrados, porém sempre de alguma forma
meios utilizados podem ser questionados carentes, têm que sobreviver. Não em razão
quanto a este ponto de vista. Afinal, em cer- do conjunto de suas crenças e práticas ter
tos casos, os exus foram utilizados para de- assumido um caráter contracultural, como
mandar contra a pessoa identificada como quiseram alguns (35), ou revolucionário como
causadora do mal e esta foi contra-atacada, supeitaram outros (36), mas porque foram
tendo possivelmente recebido de volta os efei- capazes de incorporar vigências culturais (a
tos nefastos de sua ação. Mas isso não impor- moralidade cristã) sem o que não se legitima-
ta: o princípio da justiça, que implica o casti- riam, ao menos o suficiente para manter-se e
go do agressor, legitima a utilização da es- expandir-se, como culto religioso. Não só
querda e dos seus poderes. Caridade e de- incorporá-las, mas também reinterpretá-las,
manda, embora antagônicos enquanto valo- compatibilizando-as com os requisitos de suas
res, na prática se reconciliam. raízes religiosas negras e com o ambiente so-
Quanto aos demais problemas que são cial a que vieram integrar-se.
levados pela clientela aos guias, aos quais A umbanda não é, como poderia inferir-
33 José Guilherme Magnani, solicitam solução, também revelam carên- se de seu caráter predominantemente mági-
Doença e Cura na Religião
Umbandista, São Paulo,
cias de ordem econômica (emprego, dinhei- co, apenas uma somatória de relações
mimeo., 1980; Paula
Montero, Da Doença à De-
ro, moradia) ou desajustes profissionais (re- clientelísticas ligando os guias, pais e filhos-
sordem – a Magia na lacionamento com chefes e colegas) e afetivo- de-santo e interessados em solucionar pro-
Umbanda, Rio de Janeiro,
Graal, 1985. familiares (maridos, esposas, amantes, filhos, blemas vivenciais. Os terreiros são constitu-
34 F. G. Brumana e E. namorados). Nesses casos, embora a ação ídos por redes de relacionamento que con-
Martínez, op. cit.
pregressa e danosa dos envolvidos com os trolam o comportamento individual, muitas
35 G. Lapassade e M. A. Luz,
op. cit.
clientes possa ser também invocada como vezes assentados em grupos de parentesco,
36 Paula Montero, op. cit.; e “A
legitimadora da contramagia, nem sempre é de vizinhança ou de amizade que lhes são
Cura Mágica na Umbanda”, esse o caso. Como justificar o pedido de precedentes. Não são, também, vazios de
in Comunicações do Iser,
no 20, Rio de Janeiro, 1986. “amarração” de alguém bem casado? Ou, conteúdo moral. Os terreiros de classe mé-

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dia, em sua maioria, adotam a versão mora- sentes em sua memória, e das exigências de-
lizada dos intelectuais umbandistas e das correntes da inserção social dos adeptos. Bus-
federações com as quais se identificam, re- ca-se prioritariamente o reforço simbólico
alizando os tradicionais despachos de exu das tentativas empíricas de aquisição, pre-
nos inícios das giras, e algumas sessões pri- servação ou incremento das condições de
vadas de contramagia em que exus doutrina- vida, sempre dentro de uma ótica individu-
dos desmancham os trabalhos feitos contra alista. Não se rejeita o mundo competitivo e
seus clientes. Embora identifiquem nos pro- hostil fora dos limites do terreiro e do lar,
blemas destes a agressão mágica de tercei- numa atitude de não-participação ou de pro-
ros, não os nomeiam aos seus clientes, pre- testo simbólico. Ao contrário, seu caráter é
ocupando-se em diminuir a tensão e aliviar aceito e sua essência individualista e
os sofrimentos. Nesse sentido os pretos-ve- concorrencial/conflitual transmuta-se no ima-
lhos são indispensáveis: põem “panos quen- ginário religioso em demandas e cobranças
tes” nos conflitos e exortam os agredidos a nas quais homens e deuses estão envolvidos.
retribuir com o bem os malefícios sofridos. O jogo mágico incute ânimo e pertinácia
No máximo, a impessoal “lei do retorno” na luta cotidiana contra os percalços da vida
espírita propiciará o castigo. e das condições de existência social desfavo-
Quanto aos terreiros de periferia freqüen- ráveis. A sobrevivência e a melhoria das con-
tados sobretudo por marginalizados, trabalha- dições de vida dos adeptos e clientes é o ob-
dores braçais ou de classe média baixa, o ideal jetivo. Os meios estão em posse dos orixás,
da caridade está sempre presente, porém su- com quem deverão negociar, e são obtidos
bordinado aos princípios da justiça, do mérito mesmo que isso represente dispêndio econô-
e da segurança obtida através das propiciações mico e eventuais prejuízos para terceiros. Não
aos orixás por parte daqueles que a eles ape- se trata de ausência de ética, mas de uma moral
lam. Praticá-la é necessário dentro de um pragmática ao mesmo tempo conformista – na
ambiente de tantas carências: “Ajudar, não medida em que aceita as determinações soci-
existe terreiro sem ajudar, nada vale a pena ais dominantes – e inconformista – na medida
sem ser ajudado”, como afirmou uma mãe-de- em que impulsiona os indivíduos à luta contra
santo. Mas continuou: “Se você for besta, só suas precárias condições existenciais.
fizer bondade, bondade, aí também não dá”. Apesar do controle grupal exercido pe-
Em situações de escassez e concorrência los terreiros, a perspectiva individualista pre-
pelas eventuais vantagens, não há como pais- dominante na sociedade os penetra e deter-
de-santo e médiuns deixarem de apoiar seus mina tentativas sempre dispersas e isoladas
clientes nas disputas e manipular os guias de resolução dos problemas. A ausência de
em favor dos mesmos, independentemente uma ótica social mais ampla os condena a
das exigências da moralidade estabelecida. uma espécie de liberalismo subalterno dis-
Seria fatal para sua condição, pois fugindo tanciado de quaisquer práticas coletivas.
das demandas seriam considerados fracos e Toda tentativa de participação política mais
sem poder, afastando-se deles a clientela. O ampla tem sido vista, independentemente de
que seria desastroso também do ponto de vista sua orientação partidária ou ideológica, como
econômico, pois esses trabalhos são sempre desviante e ilegítima do ponto de vista reli-
pagos. Reconhece-se a autoridade do bom gioso. Mesmo as obras sociais de sentido
patrão ou chefe, mas demanda-se contra o ruim. assistencialista, tais como a manutenção de
Trata-se bem o colega, mas mobiliza-se os exus creches, hospitais, escolas, tão freqüentes
contra ele quando se torna um concorrente. entre kardecistas, não animam os
Quando o amigo se transforma em rival, há umbandistas. Talvez por viverem em condi-
receio em lhe “fechar os caminhos”. ções de restrição econômica que inviabilize
Não se abandonam os princípios da cari- os possíveis projetos nesta direção, e com
dade cristã-kardecista, mas foge-se de seus certeza porque seus horizontes são de um
rigores, reinterpretando-a com base nos va- mundo amplamente encantado, das trocas
lores da cultura religiosa negra ainda pre- mágicas entre homens e deuses.

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