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Ariane Pereira
Larissa Monteiro
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A promessa da mobilidade urbana
Lançar o olhar sobre as questões da periferia metropolitana foi o ponto inicial deste
projeto. Nas dinâmicas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a periferia
está situada num cenário de dependência econômica, cultural e política do centro
hegemônico. Assim, dois dos maiores desafios urbanos atuais da RMRJ são tanto
a mobilidade baseada em grandes deslocamentos pendulares cotidianos, quanto as
diversas deficiências em seu planejamento e gestão.
A leitura dessas práticas urbanísticas da estrutura centro-periferia mostra que a
resposta que frequentemente vem se materializando apoia-se na ideia de mobilidade
metropolitana a partir da construção de infraestruturas que, sozinhas, não conseguem
lidar com as demandas periféricas. Apesar desse discurso defender o acesso da
população da periferia aos recursos da centralidade metropolitana, reforça-se a relação
de dominação do centro.
A relação centro-periferia
Embora a aposta na mobilidade metropolitana defenda o acesso das populações
periféricas aos recursos da centralidade, diversos estudos (entre eles, um extenso
relatório do Sebrae sobre mobilidade metropolitana na RMRJ, de 2013²) apontam que,
por reforçarem o esquema radial em direção ao centro da metrópole e concentrarem
recursos em pequenas zonas comerciais, reforça-se a relação de domínio do centro
metropolitano, ao invés do fortalecimento distribuído da periferia.
A existência por si só de vias que façam conexões metropolitanas não é garantia de uma
provisão confortável de serviços, lazer, cultura, entre outros programas necessários à
qualidade de vida urbana e ao direito à cidade.
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Estação de metrô da Pavuna Rio de Janeiro.
Foto de Cauê Capillé, 2018.
A estação de Metrô, trem, viaduto da Pavuna e terminal de ônibus
configuram o espaço de maior nó no limite Pavuna/São João de
Meriti. Onde milhares de pessoas transitam diariamente ter acesso aos
recursos da Metrópole.
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Infraestrutura de mobilidade e o caso de São João de Meriti
O mapeamento das infraestruturas demonstra que SJM é cortado por grandes linhas de
transporte, como a Rodovia Presidente Dutra (conexão Rio – São Paulo) e a Avenida
Automóvel Clube. Conta também com duas linhas ferroviárias, sendo a primeira
o ramal de passageiros Belford Roxo (Belford Roxo – Estação Central do Brasil). A
segunda linha de trem é destinada ao transporte de cargas, usada esporadicamente. Na
divisa com a Pavuna (bairro da cidade do Rio de Janeiro) há ainda uma importante
conexão com a estação de Metrô da Pavuna, estação terminal da Linha 2, que faz
transporte até o bairro de Botafogo (e potencialmente até a Barra da Tijuca com um
único bilhete), cruzando o centro do Rio de Janeiro.
Num sentido transversal aos das linhas de transporte metropolitano, é possível perceber
na malha, como se dão as conexões intra e entre municípios. Essas são dificultadas
por diversos fatores. Em SJM a topografia acidentada em uma parte considerável do
município, forma uma série de morros. Além dessas dificuldades naturais, o sentido
de atravessamento das infraestruturas de transporte (rodovias e ferrovias, citadas
acima) e a forma como se implantam no território, faz com que se funcionem como
limites físicos ao atravessamento. Outro fator importante é o custo do deslocamento
intermunicipal. Por conta dos monopólios e da falta de integração nas tarifas.
Pendularidade
Mapa de São João de Meriti
com as infraestruturas
metropolitanas
de atravessamento e dados de
entrada
e saída diária de pessoas.
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Análise dos deslocamentos
O deslocamento na escala metropolitana não é necessariamente algo negativo.
A mobilidade é de extrema importância para o acesso e o direito à cidade e no
fortalecimento das relações urbanas. Entretanto, o estudo de como as variáveis
do deslocamento se dão é muito importante para que possamos entender o quão
pertinentes ou não são essas relações de subordinação, conexão e dependência.
Analisamos esse deslocamento em razão de três fatores: distância, tempo e custo a fim
de avaliar não apenas a qualidade do deslocamento, mas também a necessidade de uma
autonomia de SJM. Para a construção desse gráfico, foram utilizados como parâmetros
os dados de deslocamento do metrô do Rio de Janeiro, apenas como medida referencial,
sendo portanto 30 km (distância) para 1h (tempo), custando R$ 4,30. Em outras
palavras, pagando R$ 4,30, é possível percorrer 30 km em 1h usando o metrô.
Através dessa análise, foi possível perceber que mesmo apresentando um movimento de
massa muito maior, mais distante e mais demorado que os demais o trajeto para a maior
centralidade da RMRJ é de longe a rota que sofre maiores esforços para ser mitigada.
Legenda:
preço
tempo
distância
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Proposta de uma nova linha
Em 2017, foi desenvolvida uma proposta de implantação de uma linha de VLT pelo consórcio Systra/
Tectran (especializado em mobilidade) e o Atelier Parisien d’Urbanisme (Apur). A linha (indicada em
vermelho no mapa), tem seu traçado paralelo ao atual ramal de cargas de Santa Rita operada pela MRS
Logística. Segue por 18 quilômetros entre a Pavuna e o Arco Metropolitano, em Nova Iguaçu. Percebemos
que trata-se de mais uma linha de atravessamento que cortaria o munícipio.
Coelho da Rocha
Éden
Pavuna
500 m
0 500m
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Nossa proposição para o sítio ocorre a partir da elaboração do Plano Diretor, com
o intuito de identificar as possíveis áreas territoriais para desenvolvimento das
subcentralidades e da rede municipal de conexão. Propomos que as novas centralidades
sejam estruturadas nas áreas que foram compreendidas como “enclaves”. Essa
proposta busca contrapor a leitura senso comum da periferia como genérica e em
grid aparentemente aberto. Ao contrário, ao encontrarmos trechos de trama com
particularidades específicas e após integrarmos esses trechos de tecido, foi possível
observar fragmentos residuais com caráter mais fechado em si, semelhante ao que
Albert Pope propõe como ‘ladder’ (‘escada’).
Fissuras
As fissuras no tecido são
configuradas pelos encontros da
malha. Eles são hiatos no grid.
Rios
Os rios Sarapuí e Pavuna são
dois dos limites do município e
áreas de fragilidade ambiental e
ocupações de risco.
Infraestruturas de
atravessamento
cortam o território
fragmentando-o, representam
limites em muitos trechos.
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Leitura do tecido
Desafiando a visão simplória da periferia como tecido homogêneo e isotrópico,
identificamos trechos de tecido apartados dos demais em seu entorno devido à sua
morfologia – recortes urbanos que chamamos de ‘enclaves’. Estas formações emergem
a partir de inúmeros fatores, entre os quais: o processo fragmentado de ocupação
do território; a topografia; e a presença de rios, vias e enclaves industriais; etc. Esses
enclaves fazem com que o território se configure como uma ‘colcha de retalhos de
tecidos urbanos’ que por vezes não se ‘costuram’, quase fechados em si mesmos. O
contexto imediato e os usos em cada ‘fissura’ e ‘retalho’ produzem particularidades
ímpares em cada parte da cidade – desafiando, como dissemos, a visão simplória da
periferia como tecido homogêneo e isotrópico.
Existência de barreiras no tecido que podem ser dadas por infraestruturas, atipicidade na
Limites
trama, entre outros aspectos.
0 – rígidos provocam ruptura brusca dentro da fratura.
1 – articulados diluídos em meio à continuidade estabelecida.
2 - inexistentes não foram identificados elementos com força de interrupção.
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área 11 área 01
área 01
área 04
área 03
área 12
área 05
área 10 área 09
área 13
área 14
área 06
área 08
área 15 área 07
Ocupação
Ocupação
Ocupação
Ocupação
Lim Lim Lim Lim Lim
ites Uso ites Uso ites Uso ites Uso ites Uso
Se
Se
Se
Se
Se
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área área 7 área 8 área 9 área 10
quadra comercial três grandes donos quadra garagem cemitério quadra da casa
Ocupação
Ocupação
Ocupação
Ocupação
Ocupação
Lim Lim Lim Lim Lim
ites Uso ites Uso ites Uso ites Uso ites Uso
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Se
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Ocupação
Ocupação
Ocupação
Ocupação
Se
Se
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l
Enclaves
Compreendidas como zonas de troca, costura e ‘conflito’ entre tecidos,
as fissuras tornam-se áreas potenciais para “poli-nuclear” o município
de São João de Meriti. Centros feitos não pelo “pré-apaziguamento da
sociedade”, mas pela possibilidade de diferença.
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Propostas projetuais
A revisão do trajeto do VLT proposta pela Câmara Metropolitana, que na concepção
original fortaleceria a relação centro-periferia, aqui estrutura uma lógica transversal de
conexão do Parque. E por consequência, do Município.
A abertura de atravessamentos peatonais que promovem espaços de encontro em frente
aos novos edifícios, trazendo áreas de lazer
A interpretação dos enclaves não como barreiras ao atravessamento, mas agora como
lugares-destino como áreas de interesse na cidade.
A possibilidade de indexação de equipamentos públicos tanto nos térreos quanto nas
praças elevadas dos novos edifícios, ressignificando tanto as arquiteturas quanto o
contato entre as diferentes áreas de implantação dos edifícios com o VLT.
Coelho da Rocha
Éden
Pavuna
0 500m
Masterplan
Trata-se da criação de uma rede de transporte que facilite o acesso à toda extensão de São João de Meriti,
de forma mais eficiente quanto à relação espaço versus tempo, a partir da introdução do VLT aos modais
preexistentes. A rede é responsável pela conexão das sub centralidades aqui propostas, articulando uma
espécie de “circuito intramunicipal”. Essa proposta surge justamente em contraposição a um dos projetos
apresentados para São João de Meriti, que cria uma linha de VLT no sentido centro-periferia – mais uma a
ramificar o domínio do centro da metrópole.
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Selecionamos um trecho, que chamamos de ‘fita’, no bairro de Vilar dos Teles, como
o primeiro estudo de caso de aplicação do Plano Diretor. Essa seleção partiu do seu
potencial de articulação e área de contato com o tecido do seu entorno. A área tem uso
predominantemente residencial e tem como pontos principais de articulação a estação
de trem de Coelho da Rocha em uma de suas extremidades e na outra a Prefeitura de
São João de Meriti.
Atravessamentos lentos
Nesse ponto, a análise do parcelamento dessa malha, em especial segundo o andar dos
pedestres, indicou os grandes deslocamentos peatonais dada a extensão das quadras que
constituem a ‘fita’ (de 520 a 600 metros), que acabam funcionando como barreiras. Foi
a partir dessa leitura que identificamos oportunidades da produção de ‘atravessamentos
lentos’, que serviriam como espaços de fortalecimento político – encarando os aspectos
materiais e sócio culturais preexistentes.³
Desenho da área 4
Em destaque a marcação da área
4, a fita. É possível perceber
a extensão das quadras e a
desarticulação que gera no tecido.
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O projeto
O projeto para a fita se resume na incorporação desses ‘atravessamentos lentos’ a um
sistema de espaços livres e públicos, configurando um parque urbano que, fragmentado
e conectado, oportunamente tomando espaços entre quadra e ruas perimetrais da fita.
Essa ressignificação do traçado da malha reforça tanto a separação em ‘fragmentos
de tecido’ (que desafiam a isotropia perimetropolitana, como analisamos), quanto às
possibilidades de trocas através do espaço público das infraestruturas comuns. Esse
edifício pretende dialogar com a ideia do morar/trabalhar, numa tentativa de mudança
de cenário dos conhecidos bairros dormitórios do sistema centro-periferia. Dessa forma
os edifícios flexibilizam suas áreas de térreo, e corpo para que possam receber diferentes
escalas de usos e formas de trabalho. Os térreos recebem tanto equipamentos públicos
como bibliotecas, creches e etc. O corpo do edifício apresenta desde módulos mínimos
quanto módulos coletivos que poderia receber um coletivo de produção, por exemplo.
É importante destacar que apesar de apresentarem uma lógica específica, cada uma das
lâminas é ocupada tanto pelas demandas do sistema, quanto das locais. Não há uma
lâmina tipo.
A implantação dos edifícios dois a dois conforma no vazio entre as quadras cria a
oportunidade de praças ao longo dos possíveis percursos. A potência desses espaços
é explorada no projeto com a sugestão de novos programas associados ao cotidiano
coletivo desses bairros. O contato com esses espaços está muito relacionado ao uso
coletivo, e nesse sentido a construção de argumentos para o encontro, a apropriação e a
identidade.
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Oportunidades no “entre-
quadras”
As aberturas em trechos
estratégicos das quadras extensas,
melhoram a articulação do tecido,
diluindo a quadra. Esses trechos
indicam os locais de implantação
das arquiteturas.
Sistema de mobilidade
O novo sistema de mobilidade
visa conectar todas as
subcentralidades, com um traçado
que dialogue com o desenho e
necessidade de cada enclave.
Na fita, o trajeto do VLT margeia
um dos lados da fita. As estações
ocorrem sempre nos trechos dos
edifícios em dupla, dessa forma é
possível estabelecer uma espécie
de sistema com todas as peças do
projeto.
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Sistema de circulação
Os dois tipos de circulação utilizadas em projeto visam mediar as
formas de acesso aos diferentes espaços do edifício. Elas fazem a
mediação entre a linha tênue do público e do provado no edifício que é
híbrido em seu térreo e na torre.
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circulação externa
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Elementos atípicos
A verticalização pontual,
fomentada pelos edifícios acabam
o qualificando tanto como marcos
na paisagem quanto dos espaços
comuns que eles conformam.
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Os dois prismas
horizontais
Posicionados nos pontos de
abertura das quadras, os prismas,
com suas faces mais extensas, e
seu afastamento conformam as
praças comuns.
Construção da fachada
As escadas, varandas e painéis metálicos funcionam uma camada que
media tanto a entrada de luz quanto os graus de comum e privado do
edifício. A faixa central e opaco marca a torre de módulos coletivos
maiores do edifício. Esse trecho vai até o limite da fachada, enquanto
os módulos menores estão recuados.
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B
A
B
A A
B
B
Planta - térreo
Por essa planta podemos perceber como se á a articulação entre 0 5m 10m 25m
os usos dos térreos so edifícios e a praça de atravessamento. Neste
exemplo, um dos térreos é totalmente construído, com lojas e moradia.
O outro, o com pilotis, funciona como uma extensão coberta da praça.
É possível perceber ainda como se dão os acessos ao edifício a partir do
térreo. 0 5m 10m 25m
Corte A
Corte transversal.
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B
A
B
A A
B
B
Corte B
Corte longitudinal
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Atravessamento lento
A estratégia de implantação do
projeto, associada aos programas
comuns, dão suporte para novas
dinâmicas de uso, que vão além
do ato de atravessar.
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Espaço entre: mediação
público privado
O corredor edifício é aberto
visualmente e com circulações
públicas e privadas. Os rasgos
nas lajes marcam a transição
da circulação semi-pública da
privada.
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01 módulo 02 módulos
Sistema de modulação
Os módulos podem ser
alterados tando a partir de
associações entre eles quanto
pelas possibilidades de divisões
internas
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Indeterminação do
módulo
Em um município onde maior
parte dos moradores precisa sair
de seu território diariamente
para exercer qualquer tipo de
atividade, a indeterminação do
desenho entra como resposta
para direcionar cada parte da
construção não para programas
específicos, mas sim para
diferentes tipos de caráter
programático, onde há uma
liberdade contida na apropriação.
Morar trabalhar
Os módulos apresentam
configurações onde é possível
abrigar espaços produtivos
como escritórios, ateliês de arte
(costura, pintura, etc), áreas de
trabalho coletivo.
O mesmo módulo pode servir
de habitação para os moradores
realocados. A ideia é que seja
possível tanto morar quanto
trabalhar ou ainda morar e
trabalhar e que essas relações
sejam resilientes quanto às
necessidades dos moradores e da
cidade.
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O desequilíbrio, presente na estrutura centro-periferia, é causa da formulação de novas
hipóteses tanto de metodologia analítica quanto projetuais.
Uma atitude possível, dentro desse contexto, é o desenvolvimento do conceito de
subcentralidades e, atreladas a essas, a formulação do espaço público, coletivo e livre
como ferramenta de articulação social. Não se trata de um único gesto ordenador, mas
da sensibilidade analítica que cada escala e espaços apresentam. Foi nesse sentido que o
processo se debruçou.
É desejo que esse projeto não se cerque de respostas, mas que proponha uma nova
possibilidade de debate e projeto de periferia.
Inserções projetuais
“Ao introduzir condições urbanas
visíveis e estabelecer pontos de
humanização, poderá provocar
transformações nessa periferia ao
longo dos anos.” Parecer do júri
do 4º Urban 21
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Notas:
1. C MARA METROPOLITANA DE INTEGRAÇÃO GOVERNAMENTAL, Caderno Metropolitano 2: Centralidades:
Perspectivas de Políticas Públicas, Rio de Janeiro: Câmara Metropolitana de Integração Governamental, 2017.
2. MACHADO, Danielle Carusi; PERO, Valéria; MIHESSEN, Vitor. Mobilidade urbana e mercado de trabalho na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro. Revista da ABET, v. 14, n. 2, 2016.
3. POPE, Albert, Ladders, 2. ed. Houston and New York: Rice University School of Architecture and Princeton
Architectural Press, 1996
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