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Quem vai pela primeira vez ao Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecidase im-

DOSSIÊ - BRASIL MULTICULTURAL


pressiona primeiro pelo tamanho monumental do edifício e, ao entrar, se depara com uma arte bela e

Cláudio Pastro: tão diferente da maioria das igrejas. Cláudio Pastro, artista que revestiu a Basílica interiormente usou a
fauna e flora brasileiras e também elementos da arte afro-indígena. Nesse artigo pretendo contar por que
elementos da cultura indígena em seu aspecto simbólico permeiam o piso e alguns aspectos das paredes

A inculturação e a arte indígena no interiores do Santuário Nacional de Aparecida e por que motivos o artista fez essa opção. A Basílica de
Aparecida é o maior Santuário Mariano do mundo e, além do povo brasileiro, acolhe muitos estrangeiros

Santuário Nacional de Aparecida


que se encantam com a beleza que lá encontram.

Profa. Dra. Wilma Steagall De Tommaso1


Altar e baldaquino do Santuário Nacional de Aparecida. Foto Thiago Leon.

MACIEL, José Mauro.


Mãe Aparecida no Brasil: história, devoção e missão.
Aparecida: Editora Santuário, 2018

MORAES, Francisco Figueiredo.


O espaço do culto à imagem da Igreja.
São Paulo: Edições Loyola, 2009.

PASTRO, Cláudio.
Guia do espaço sagrado. (1a Ed. 1993).
São Paulo: Edições Loyola, 2007.

TOMMASO, Wilma Steagall De.


O Cristo Pantocrator: da origem às igrejas no Brasil na obra de Cláudio Pastro.
São Paulo: Paulus Editora, 2017.

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Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Possui experiência nas áreas de Educação e Filosofia, com ênfase em
Arte-Sacra

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pelo menos de indicar em que direção ela deveria bus- o Antigo e o Novo Testamentos como exemplo de
car essa solução. Um bom caminho seria seguir pela vida e morte, nascimento e purificação. Contém toda
ideia de uma inculturação do Evangelho nas linguagens simbologia em si, ocorre no Batismo e na Eucaristia.
da arte. Segundo Pastro, esse sinal deve ser bem explícito no
recinto litúrgico e nas celebrações.
Piso desenhado em zigue-zague - forma indígena de representação da água. Arquivo da autora.

A obra iconográfica de Cláudio Pastro permeada por


traços que remetem à cultura afro-indígena, à fauna Em uma igreja, o altar é fundamentalmente o elemento
e à flora brasileiras, servindo-se da liberdade cria- mais importante e em quase todas as religiões tradicio-

Coluna do baldaquino com a representação do anjo-índio. Arquivo da autora.


dora, sem porém, deixar as fontes, como aquelas da nais ocupa uma posição central para onde espontane-
Igreja primitiva, as que a tradição considera como as amente converge toda a atenção da assembleia. Deve
mais antigas e legítimas da origem cristã,a iconografia ser fixo, o que reforça sua centralidade e por motivos
Bizantina e a arquitetura Românica, bem como a arte bíblicos usa-se a pedra como marco da manifestação
paleocristã, todas ricas em simbolismo. Por meio de de Deus. Na Eucaristia os cristãos celebram também
pinturas chapadas, com pinceladas curtas e marcadas, a Última Ceia, por isso o altar também é a mesa, cele-
intenta uma concepção de arte que se torne signo de bra-se a ceia do Ressuscitado. Aí a Palavra torna-se
um sagrado que se manifesta na vida do fiel, acrescen- carne para vida de cada cristão; no século IV já dizia
tando traços regionais. São Cirilo de Jerusalém: “o altar é Cristo”.

Nas declarações conciliares referentes à arte, os depoi- O presbitério da Basílica é representado por círculos
mentos feitos por Pastro e sua autodenominação como de água, tipo indígena, sai da pedra central e corre
artista “pós-conciliar” de arte sacra ficam transparen- em todas as direções: Norte, Sul, Leste e Oeste. Esse
tes. Podem-se distinguir alguns aspectos referentes à centro foi feito no dia nove de agosto de 2001. A ideia
arte no Concílio presentes na obra do artista tais como do altar é baseada na leitura de Ezequiel (47, 3-6), onde
a volta às fontes, a nobreza da arte, o lugar que ocupa do altar jorrava água para os quatro cantos da Terra e
na fé cristã, a arte como ministério, o serviço à liturgia, fertiliza a terra. É o Espírito que fertiliza a terra.
O Concílio Vaticano II e a inculturação e bela. Ele não compreendia por que em nossa arte a relação entre a liberdade da arte e a inculturação.
O Brasil é país de dimensão continental e com uma
O piso central do presbitério com a representação
indígena da água e o piso entre as arcadas e de todos
na obra de Cláudio Pastro sacra não entrava o elemento negro nem índio, dizia
que a arte barroca sempre foi uma arte branca, salvo população composta ao início por brancos, indíge- os barrados em um movimento de águas indicam a
a latino-americana espanhola que ainda adotou um nase afrodescendentes e ao lado destas etnias foram ação contínua do Espírito Santo que dá vida a este
Cláudio Pastro (1948-2016) artista sacro brasileiro
surgindo os caboclos e mestiços. Pastro, seguindo as espaço, que é um lugar por excelência batismal. Entrar
nascido em São Paulo, Capital, desenvolveu e realizou pouco mais da cultura indígena. Mas na arte de origem
indicações do Concílio Vaticano II, coloca elementos no Santuário é mergulhar no Cristo que é a fonte da
o projeto iconográfico interiordo Santuário Nacional portuguesa, o índio e o negro não entravam.
simbólicos das culturas afro-indígenas nas paredes Vida Nova.
de Aparecida desde o ano 2000. Seu projeto a prin-
do Santuário criando uma arte de beleza ímpar que
cípio causou estranhamento a muitos que estavam O Concílio Ecumênico Vaticano II (1961-1965), no
encanta os milhares de romeiros de todo o Brasil que Há também no piso a referência às águas do Rio Para-
habituados culturalmente à tradição da arte barroca. capítulo VII da Constituição da Liturgia, Sacrosanctum
visitam a Mãe Aparecida. íba do Sul, onde a imagem foi encontrada. Entre as
Cláudio se autodenominava um artista pós Concílio Concilium, estabelece o princípio do reconhecimento
arcadas externas, no piso do adro principal, temos o
Vaticano II, pois se inspirou nos documentos conci- da liberdade estilística dos artistas e correlativamente Os católicos brasileiros veem em Nossa Senhora Apa- brasão da Basílica. A forma indígena de cestaria sim-
liares os quais sugerem que a arte sacra que reveste as o direito de adotar uma arte sacra que fale a lingua- recida, nossa Mãe – Rainha – Padroeira, forte elo e boliza a terra brasileira que recebeu o Mistério cristão.
igrejas deve conter elementos que expressem a cultura gem de sua época e de sua região. Pode-se dizer que a pertença à Igreja. A pequena imagem encontrada nas Cláudio Pastro em depoimento a Zenilda Cunha escla-
de cada povo em sua nação. Igreja Católica renuncia a toda ideia de programação águas do Rio Paraíba do Sul pelos pescadores em 12 rece: “em Aparecida, o espaço nuclear do Santuário foi
ou de regulamento romano da arte e admite que a arte de outubro de 1717 parecia aos olhos dos que a viam, concebido na forma circular, perfeita, indicando-nos
Não foi, portanto, uma extravagância de Pastro, mas a cristã, na Europa como nos ex-países das missões, deve um retrato personalizado da miscigenação brasileira. o Mistério Divino aí celebrado e, nesse ponto central,
compreensão deuma demanda conciliar que o inspirou se adaptar, evoluir, ou mesmo se reinventar continu- Possui traços europeus e está vestida à moda dos bran- tem-se o Altar de granito maciço de forma quadrada, a
a utilizar-se de elementos das culturas afro-indígenas amente, pois uma programação normativa e centrali- cos, com cabelos indígenas e de cor negra. forma humana, limitada. É o Verbo de Deus que se fez
assim como a fauna e a flora brasileiras. zada da arte é impensável e até indesejada. Homem e habitou entre nós; o Cristo, Novo Adão que
Desde o início de sua carreira, o artista dizia que sem- A Água e o Altar da Basílica de Aparecida nos devolveu o Paraíso. Sendo o Cristo o Altar, d’Ele
pre gostou da arte primitiva e desejava mostrar como O Concílio se ocupou, sobretudo, de resolver o pro- parte seu Espírito, movimentando a forma das águas
a arte indígena genuinamente brasileira é primitiva blema da arte de inspiração cristã fora da Europa ou A água, um dos elementos vitais do homem, permeia no piso, o qual está em zigue-zague, forma indígena de

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No baldaquino: o índio e a rã (muiraquitã)

Baldaquino ou cibório são quatro colunas ou a suspen-


são do teto que pode ser quadrado ouredondo que fica
sobre o altar. O monumental baldaquino da Basílica de
Aparecida foi inaugurado em 12 de outubro de 2017 na
comemoração dos 300 anos da aparição da imagem de
Nossa Senhora da Conceição pelos três pescadores.
Nas quatro colunas que sustentam a cúpula central
sobre o presbitério estão representadas a fauna e a
flora das regiões do Brasil: Mata Atlântica; Caatinga;
Cerrado; Floresta Amazônica e Mata de Araucárias. A
presença de quatro anjos indica que o Altar e a Euca-
Muiraquitã. Acervo do Santuário Nacional de Aparecida.

ristia é o centro na fé nos quatro pontos da Terra. Os


anjos representam as raças brasileiras: negro, branco,
mulato e o indígena.

“A rã é símbolo da Ressurreição, em todos os povos


primitivos, porque a rã (tanto nos nossos índios,
como nos astecas, como nos povos africanos), quando
começa vir a seca, ela vai se colocando no barro, na
lama, o que vai sobrando de úmido e ela aguenta até
mais ou menos uns dois anos, ela fica como uma folha
de papel. Na primeira chuvinha, ela renasce. Todas
as culturas primitivas têm a rã.” Nas paredes do Bal-
representação da água; que como um entrelace de ces- daquino estão representados muiraquitãs (rãs) no
taria faz-nos unir com Deus e envoltos pela sua Graça estilo marajoara com tons de verde e azul. Em todos
que nos cobre.Porém, pode-se dizer que o Altar é uma os povos primitivos da América Latina são símbolos
pedra jogada no lago, criando ondas que se espalham da Ressurreição. Correspondem à Terra Indígena que
em toda a Basílica; quanto mais próximos do círculo acolheu o Cristianismo.
do Altar, estamos mais próximos de Cristo, que é Vida,
que torna-nos santos.”O zigue-zague mostra a água em Conclusão
movimento, a presença do Espírito Santo.
Cláudio Pastro afirmava que, a arte indígena, arte
Ao fazer uma água no chão, no piso da Basílica de budista, arte africana são sacras, pois não são conce-
Aparecida com influência indígena, mostrou de uma bidas para o comércio, mas para celebração do rito.
maneira muito sutil e elegante a inculturação, pois É isso que diferencia a arte sacra da arte religiosa. O
inculturação significa a íntima transformação dos artista admirava a arte dos nossos indígenas e sentia
valores culturais autênticos, pela sua integração no muita satisfação ao revestir as paredes das igrejas com
cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas elementos dessa rica cultura.
várias culturas.
O presbitério e o baldaquino do maior Santuário do
Segundo as palavras do artista, a representação indí- Brasil mostram a Palavra de Deus em formas e cores,
gena, assim como a encontrada nos capitéis dos tijolos as raças do povo brasileiro e as belezas da fauna e da
de revestimento interno, é uma homenagem, o respeito flora: tudo converge em comunhão com a majestosa
aos irmãos indígenas que viviam nestas terras e aco- cúpula central de 1800 m2 em mosaico, a Árvore da
lheram o Mistério Pascal, o Cristianismo. Vida que é Cristo, nossa Salvador.

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