Douglas Eralldo | mestrando Unisc | Bolsista Capes A construção do mito Mário Palmério, André Azevedo da Fonseca, Editora Unesp, 2012 PALMÉRIO, M. Vila dos Confins. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. E muita gente vivendo nos Confins. Gente boa, gente ruim, gente velha, gente nova: homens, mulheres, criançada. gente igualzinha a de toda parte, morando na roça e na cidade. (PALMÉRIO, 2019, p.11).
Não senhor, não consta das cartas. Município novo,
recém emancipado, mas com Prefeitura e Câmara dos vereadores já em funcionamento. Muito falada que foi essa primeira eleição municipal. Entretanto, se a Vila dos Confins não aparece em mapa algum, a despeito de existir o lugarejo desde o tempo das sesmarias, a culpa não é de ninguém de lá. Culpa mesmo do governo, que, afinal, sempre foi e será o culpado de tudo... (PALMÉRIO, 2019, p.11). Jorge Turco já estava de casa arrumada, esperando pelo doutor Paulo, e mandara recado para o pessoal da União Cívica. O deputado vinha para ficar até as eleições, e ia correr o município de ponta a ponta. (PALMÉRIO, 2019, p.18).
(...) e agora a maldita política! Nem mal acabava
uma eleição, inventavam outra… (PALMÉRIO, 2019, p.22).
Com a aproximação das eleições nos municípios
recém-emancipados, a política estadual agitava. Os chefes do interior exigiam prestígio do governo, e nada melhor para manter a autoridade local que a presença de um delegado militar nomeado nas vésperas do pleito. (PALMÉRIO, 2019, p.23). Antes, quando visitava o povoado, as autoridades vinham vê-lo, cercavam-no de atenções; bastou, porém, fundar o diretório da União Cívica - e, o que era pior, aproveitar o Antero e os poucos elementos dele - para que Chico Belo exigisse dos liberais o rompimento de relações com o deputado. Argola-de-laço, o Chico Belo! E vingativo: não perdoaria nunca mais àqueles que se reuniam hoje para apoiar a candidatura de João Soares. (PALMÉRIO, 2019, p.27).
E se perdessem aquela política? Ele, deputado federal,
terminado o pleito voltaria para o Rio, ia cuidar da sua vida… Mal nenhum lhe podia fazer o Chico Belo - Mas, e aos outros? Ainda não era o prefeito, e já mandava e desmandava. Com o pai do Antero fora aquela barbaridade do pasto dos frades… (PALMÉRIO, 2019, p.27) (...) porque o Betico não era deste mundo e deitou fogo nos dois agregados do Sinhô Mariano, cunhado de Chico Belo…
(...) e o resultado? Toda a polícia de Santa Rita e mais o
Filipão e dois outros jagunços dos Belos caçavam agora o rapaz com ordem de apanhá-lo vivo ou morto…
“O doutor Bernadino tomou providência, entregou a
causa para o doutor Augustinho, sobrinho dele. Mas o senhor sabe quem manda no juiz de direito de Santa Rita é o doutor Osmírio…
O Tinoco estava com a razão. Pura política, aquela
perseguição ao Bento Correia: envolviam o filho no processo e depois negociavam… Pai é sempre pai, e não havia mesmo resistir... (PALMÉRIO, 2019, p.28-29). Não. Tinham de reagir, ganhar aquela eleição. A turma era boa, disposta; João Soares, pessoa estimada no município, homem sem defeito. O diretório, bem organizado, com gente escolhida em zonas diferentes: Carrapato, Fundão, serra do Sono, Água Limpa, Riso, Brejo Seco, Mutuca… A falha era só no Brejal e no Bacurizal; mas, se o Nélson e o Neca Lourenço topassem, então é que o Chico Belo estaria derrotado sem apelo. Depois, o voto era secreto! Um trabalho de qualificação benfeito, o esclarecimento de porta em porta, de eleitor em eleitor, bons cabos para ensinar aos novatos, entregar marmitas já preparadas ao eleitorado, fornecer condução à vontade, quartel com fartura de churrasco, e um bom pagode, um comício no largo da igreja, bem na cara do Chico Belo para desmoralizar o bicho... (PALMÉRIO, 2019, p.29). (...) Com os vinte contos que o senhor prometeu, a coisa não chega a sessenta… Dos candidatos a vereador a gente não pode esperar nada: eles já têm as suas despesas com a qualificação, e nessas horas o povo explora mesmo - um ajutório aqui, um abono ali, um dinheirinho emprestado...
(...) Mas, sem dinheiro é perder na certa - com menos de
duzentos contos a gente não toca essa política da Vila dos Confins…
João Soares não se iludia. A luta contra Chico Belo ia ser
difícil: o coronel era vaidoso, rico - podia gastar à vontade. Dinheiro também não faltava aos Rocha, tão interessados naquela eleição como o próprio Chico Belo... (PALMÉRIO, 2019, p.48). (...) Os faróis iluminavam todo o mato do seu lado, e o chofer, mal chegou ao pé da árvore, viu p malfeito: picada recente no mato e, no fundo, o vulto agachado do jagunço...
(...) A ideia chegou de repente. Plano maluco, um
escândalo dos diabos, mas os liberais sairiam desmoralizados. E João Soares ganharia a eleição! Agora, era pôr parte os escrúpulos, combinar tudo com o Aurélio - o tio toparia, se toparia - e executar a coisa com rapidez.
(...) toda a Vila sabia que o deputado ia voltar de Santa
Rita naquela noite, a reunião do diretório marcada há dias já... (PALMÉRIO, 2019, p.195) (...) Naquela manhã, a Vila dos Confins fervia de gente. Dia de domingo, com missa, casamento e batizado na igreja, e mais a reunião nas sedes dos dois partidos. Um povão na esquina da coletoria...
(...) Maldita política de povoado! E agora? Tiroteio na certa!
Era só tempo do capitão reunir o destacamento e vir cercar a venda. Depois do que disser, não havia mais jeito senão resistir à polícia. Sangueira, mortandade… Ali na venda, quantos dispostos a enfrentar a soldadesca, e quantos armados?
(...) o secretário [da Junta Regional Eleitoral] é o Carvalhinho,
a alma danada de todas as violências (...) se mexerá com as burocracias de sempre (...) enquanto isso chega o domingo, faz-se a eleição debaixo dos fuzis e das carabinas soltas dessa jagunçada por aí... (PALMÉRIO, 2019, p.195-201) (...) E os foguetões de rabo subiam alto, cada vez mais alto, a anunciar o resultado da primeira e importante eleição municipal de Vila dos Confins...
(...) Filipão (...) escondido nas furnas, passando fome, levando
vida de bicho…
(...) Mas o patrão ganhara! Por pouco - oito votos só de
diferença - Mas vencera! Que pena não estar na Vila na hora em que a notícia chegou, para estourar meia dúzia de cabeças de negro no quintal do Antero e fazer peneira do telhado da venda do Jorge Turco a tiro de carabina! Mas ia sobrar tempo: por enquanto ainda estava na Vila o delegado novo mandado pelo governo… mas já-já Chico Belo despachava o homem de volta. (PALMÉRIO, 2019, p.278-281) (...) Maldita política!Maldita Eleição! Não fossem os foguetes soltados pelo pessoal do Chico Belo justinho na hora da travessia do gado… E o seu Nequinha Capador? Tanto luxo com a zebuada - e lá se foi perdido, rio abaixo, o bezerro azulego, e mais quatro novilhas cabeceira, tudo raça do Lontra! Tudo engolido pelo rebojo da peroba-rosa… Oito votos de diferença! Miserável Pé-de-Meia! Por causa de 20 contos, vinte notas de conto de réis, cortadas à tesoura pelo Chico Belo, no meiozinho certo, metade das notas entregue a ele, Pé-de-Meia, a outra metade ficada em poder do coronel...(PALMÉRIO, 2019, p.278-281) (...) Há um certo consenso na historiografia segundo o qual o processo histórico brasileiro caracterizou-se por ter sido marcadamente excludente e autoritário. (...) O Estado no Brasil, independente das formas e composições que assumiu nos diferentes momentos e períodos (Monarquia e República; imperial, oligárquico, corporativo, ditatorial, etc.) tem ao longo da história uma características essencial comum: de se impor autoritariamente sobre a sociedade civil. (...) A classe dominante sempre procurou rearticular e reorganizar as formas de dominação política e acumulação de capital para fazer frente aos crescentes antagonismos e contradições sociais que se acumulavam, como, também, para impedir que as classes subalternas subvertessem a ordem vigente e, ainda, para truncar sua participação no processo político (SEGATTO, 1999 pp.201-14) (...) A experiência crua do passado violento e autoritário, incluindo os massacres da inquisição, o escravismo exploratório, a repressão patriarcal, constitui uma série de traumas, no sentido social discutido por Seligmann. Sua constância e complexidade nos coloca, com certeza, diante da perspectiva da realidade da catástrofe, de história como ruína (GINZBURG, 2000, p.50) (...) Além de sua definição mais conhecida, a palavra “fogo” significa “residência de uma família, lar, casa”. “Fogo” também pode ser, conforme se vê nos dicionários, “descarga de arma, fuzilaria”. É nesta acepção que usei os termos “fogo” e “fogos” em algumas passagens deste livro…
(...) nos relatos orais que faziam da história
da cidade [Catalão - GO] constumavam chamar de “fogos” apenas dois tiroteios: 1892 e 1897 (...) ampliei o leque, dando nome de “fogos” a outros dois enfrentamentos (1916 e 1924) (SANT’ANNA, 2012, p.7) (...) Apesar de minhas ligações afetivas, não é uma história da família Sant’anna..
(...) O relato tem como pano de fundo a
colonização do sertão goiano, o genocídio dos índios, a escravidão dos negros e a hegemonia do homem branco, jamais ameaçado pelos nativos, e muito menos pelos africanos, apesar da valentia de certas tribos indígenas e de alguns quilombolas. Mas o livro é sobretudo a história de luta de brancos (e o conceito de branco aqui é bem elástico, por conta da enorme miscigenação ocorrida em Goiás) contra brancos, pelo poder. De uma luta insaciável pelo poder…
(...) Um relato de lutas, de crimes, de ódios,
de paixões, de selvagerias e crueldades, com pouco espaço para o amor. (SANT’ANNA, 2012, p.17)