Você está na página 1de 3

Escola E.B.

2,3 Padre Alberto Neto – Ensino Recorrente – 3º ciclo 2ª unidade

Corrida para as máquinas

À tarde, o Casino Estoril parece um lar de terceira idade. Ali vão afogar-se
mágoas e esquecer solidões

CATARINA CARVALHO

que trazia a mulher, a sogra e um chaveiro


SÃO duas e meia da tarde, 30 minutos para marcar mais máquinas, quando os pré-
antes da hora a que abre o Casino Estoril. rnios estavam altos. É verdade que raramente
Encostada à porta está já à espera uma os truques dão certo, mas nove dos 13 últimos
mulher de meia idade, cabelos com tom caju Jackpots calharam a frequentadores do casino.
de cabeleireiro de bairro. Óculos, uma malinha
de mão, um blusão largo e um guarda-chuva «Eu, aqui, entro noutro mundo»
pequenino, apertado nas mãos.
Dali a pouco chegam duas mulheres À tarde, o Casino do Estoril tem um ar
mais velhas, os cabelos brancos num entre o lar de terceira idade e o sanatório. Só
Carrapito. Trocam-se boas-tardes com lá vai quem tem emprego que o permite, não
intimidade formal. Vêm mais dois homens, tem nada que fazer, ou é viciado. As três
carecas, orelhas grandes, «blazers» xadrez categorias baralham-se. Há um ou dois
que não combinam com as calças. Podia-se figurões que andam de olhos vazios, mexem
transplantá-los a todos para a bicha da caixa muito na carteira, e jogam com ar
de previdência e o quadro provocaria menos desesperado. E há muitas mulheres. Sozinhas.
estranheza. Menos do que ali, à espera da «São cerca de 50% do nosso público», diz
abertura do casino, a falar de dinheiro com Artur Mateus.
despudor desusado. Quando A. começou não era assim.
«Às seis ela começou a dar-me cem «Era raro, e nem o meu marido sabia que eu
contos, se tivesse sido às quatro...», diz a jogava», recorda. Já há cinco horas na roleta,
ruiva. «Eu quando vejo os diamantes fico acabou de perder mais 100 dos 1000 contos
ansiosa», responde a do carrapito. «A mim que apostou no número 23. «Só apostando
não me faz diferença», retorque um dos muito é que me dá gozo», diz. A. Começou a
homens. As luzes já piscam lá dentro. Chegam jogar aos 20 e tal, hoje já passou dos 70.
mais pessoas. Cinquenta. Cem. Apertam-se. «Comecei porque era infeliz. Ninguém joga
Caras fechadas, sem sorrisos. E quando o sozinho por outra razão», diz.
empregado abre a porta, desatam a correr. J ., motorista profissional, concorda.
Agarram-se à máquina escolhida. A mulher do «Eu aqui entro noutro mundo. Esqueço-me
carrapito senta-se à beira do banco da dos problemas. Fico concentrado na
máquina de 20 cêntimos, a mais barata, tira máquina. É como qualquer vício.»
um suminho da mala e chupa pela palhinha. Na sala de jogos tradicionais está um
Com a mão livre mete fichas na ranhura. homem a fazer contas num papelinho
«As pessoas correm porque têm quadriculado. Levanta-se do sofá, decidido, e
fezada. Ou querem ocupar uma máquina em vai para a roleta. Naquela sala, onde só se
que gastaram muito ontem e acham que ela entra com cartão, há um silêncio forte, amplo,
hoje Ihes vai devolver», diz J., 54 anos, de 4000 metros quadrados. De vez em quando
«habitué» do Casino Estoril. Pura ilusão. é interrompido. Um sujeito bem posto, à roleta,
Todos os dias de manhã, os empregados bate no pano verde com a pochete e desaperta
retiram das máquinas as notas e as fichas. a gravata. «Há dias assim, há dias assim».
«Os prémios são controlados Sua. O «croupier» atreve-se a um olhar de
electronicamente, e não por acumulação», soslaio. Nada de novo. O homem joga todos
explica Artur Mateus, da direcção de jogos. os dias e parece sofrer como da primeira vez.
Há quem corra para um grupo de Os «croupiers» são a face humana do
máquinas que tem um bom prémio acumulado. casino. Mas, às vezes, não parecem. De
Conta-se no Casino a história de um brasileiro
costas direitas, concentrados no jogo ou nas num fiIme. E há coisas na vida deles que são
mãos que mexem nas fichas, parece que estão de filme, como o serem obrigados por lei a ter
Escola E.B. 2,3 Padre Alberto Neto – Ensino Recorrente – 3º ciclo 2ª unidade

todos os bolsos cozidos. A regra número um


do «croupier» é não falar com nenhum jogador
se o encontrar na rua. «Ele é que se tem de
dirigir a nós», explica Martinez, «croupier»
desde os 25 anos. Agora que acabaram os
grandes jogadores os que apostavam 40 mil
contos por noite -, os «croupiers» viram as
gorjetas diminuídas.
As personagens mais estranhas no
Casino são os agiotas. Toda a gente os
conhece e aponta. Andam por ali, gastam 40
contos, coisa pouca. Estão mais atentos ao
jogo dos outros. As vezes depositam as suas
fichas no número de outra pessoa. «É muito
difícil apanhá-Ios. O jogo em associação
não é proibido, e quem pede emprestado
não se queixa», diz outro «croupier», José H.
Miguel Carvalho, um ex-viciado de 30
anos, que jogava desde os 16, usou várias
vezes estes serviços. «Da primeira vez foram
duzentos contos. Fichas passadas na casa
de banho por um agiota. A 10% à semana.
Como jogava muito, conseguia pagar , mas
andava sempre nos limites.» No ano
passado Miguel auto-excluiu-se do casino,
juntando-se à lista dos cerca de cem
impedidos de entrar. «Foi depois de ter
estado na Ponte da Arrábida, à beira de me
atirar. Parei para pensar. Gostava que
outros fizessem o mesmo.»

In Expresso, 19 / 10 / 02

Você também pode gostar