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MANUEL ALEGRE

BIOGRAFIA

Manuel Alegre nasceu em Águeda em 1936. Licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Foi
um ativo líder estudantil, tendo, durante a Guerra Colonial, sido mobilizado para Angola. A sua oposição
ao regime do Estado Novo levou-o a ser preso pela PIDE e, mais tarde, a exilar-se em Argel, onde
passou dez anos. Regressou a Portugal após a Revolução do 25 de Abril, tendo sido deputado e
desempenhado funções no Conselho de Estado.

Trova do vento que passa

Pergunto ao vento que passa


notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

5 Pergunto aos rios que levam


tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas


10 ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas


pede notícias e diz
15 ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa


por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
20 quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos


direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


25 E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem


30 dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
35 vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada


e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
40 nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada


só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

45 Ninguém diz nada de novo


se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro


50 dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo


liberdade quatro sílabas.
55 Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia


dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
60 canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste


em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

MANUEL ALEGRE, Praça da canção [1965], Lisboa, Leya, 2015.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


1. Atente na data da edição original da obra em que foi incluído este poema (1965). Caracterize
brevemente o contexto político de Portugal nesta época.

2. Indique o motivo por que o vento não transmite ao eu notícias do seu país.

3. Identifique o recurso estilístico presente na frase «e os rios […] / levam sonhos deixam mágoas»
(vv. 7 e 8) e explicite o seu valor expressivo.

4. Aponte o sentimento que o sujeito poético manifesta em relação ao seu país. Ilustre a resposta
através de uma citação textual.

5. Indique a razão por que, nos versos 21 a 24, é estabelecido um contraste entre «os verdes ramos»
(v. 21) e «quem gosta de ter amos» (v. 23).

6. Explicite o significado do passo «Vi minha pátria pregada / nos braços em cruz do povo.» (vv. 27
e 28), relacionando-os com os versos 39 e 40.

7. Aponte o motivo por que a pátria se encontra «na margem / dos rios» (vv. 29 e 30).

8. Explique o contraste que é estabelecido através da conjunção coordenativa do verso 57.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


Cassandra e a Troika

Poema inédito de Manuel Alegre inspirado por uma rapariga que apareceu no Largo do Rato com
um cartaz para entregar à Troika.

Então Cassandra apareceu na rua


trazia um cartaz para entregar à Troika
saúde educação dizia ela. E havia
em seu olhar a cólera e a beleza
5 ela era a filha de Príamo aquela
por quem Apolo se apaixonou
nos seus ouvidos passaram as serpentes
e por isso ela ouvia o que ninguém ouvia
tinha vindo para avisar que a Troika
10 é o novo cavalo falso dentro da cidade
os seguranças rodearam-na mas ela falava
seus longos cabelos soltos sob o sol de Lisboa
clamava por justiça e dignidade
ouvissem ou não ouvissem ela era a sibila
e apontava o cavalo dentro da cidade.

MANUEL ALEGRE, 2 de março de 2013,


http://www.manuelalegre.com/301000/1/002898,000014/index.htm

1. Realize uma breve investigação e explique:


a) quem é Cassandra, uma figura da mitologia grega.
b) o que é a Troika.

2. Tendo em conta os resultados da sua investigação, aponte os motivos por que, no cartaz da figura
feminina do poema, estavam escritas as palavras «Saúde» e «Educação».

3. Explicite o aviso que a figura feminina veio trazer aos habitantes da cidade.

4. Indique a forma como esta rapariga foi recebida.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


À sombra das árvores milenares
Passaram muitos anos mas não passou
o momento único irrepetível
o som abafado do estilhaço no corpo
o eco estridente do ricochete no metal
5 o cheiro da pólvora misturado com sangue e terra
o sabor da morte na última viagem de Portugal.

À sombra das árvores milenares ouvi tambores


ouvi o rugido do leão e o zumbido da bala
ouvi as vozes do mato e o silêncio mineral.
10 E ouvi um jipe que rolava na picada
um jipe sem sentido
na última viagem de Portugal.

Vi o fulgor das queimadas senti o cheiro do medo


o silvo da cobra cuspideira o deslizar da onça
15 as pacaças à noite como luzes de cidade
a ferida que não fecha o buraco na femural
no meio da selva escura em um lugar sem nome
na última viagem de Portugal.

Soberbo e frágil tempo


20 intensa vida à beira morte
amores de verão amores de guerra amores perdidos.
Uma ferida por dentro um tinir de cristal
passaram os anos o ser permanece.
Fiz a última viagem de Portugal

MANUEL ALEGRE, Doze naus, Lisboa, Dom Quixote, 2007.

1. No poema, o eu evoca um acontecimento que teve lugar na Guerra Colonial. Proceda a uma breve
investigação sobre esta época da História de Portugal.

2. Explicite que «momento único irrepetível» (v. 2) é evocado pelo sujeito poético na primeira estrofe.

3. Indique a razão por que o veículo cujo trajeto é evocado é caracterizado como «um jipe sem
sentido» (v. 11).

4. Explicite o contraste vida/morte que é estabelecido no poema.

5. Identifique os sentidos convocados neste processo de rememoração.


5.1 Indique a razão por que este processo de evocação é feito através da experiência sensorial.

6. Aponte o motivo por que os acontecimentos evocados são associados à «última viagem de Portugal»
— ideia que é reiterada no fim de cada estrofe.

7. Explicite o significado da última estrofe.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


Soldado desconhecido
Há um soldado desconhecido na frente de batalha
não sei ao certo em que país ou talvez
em todos os continentes devastados. Há um soldado
desconhecido que vem de todas as guerras já perdidas
5 de todos os desastres e de todas as mortes e está
na frente de batalha em um território desorbitado.
Há um soldado desconhecido que já não sabe
por quem se bate. Talvez só por si mesmo ou nem sequer
bate-se por se bater numa qualquer frente de batalha
10 e já não pergunta porquê nem o sentido.
Está numa frente de batalha e sabe que ninguém se importa
algures num país que já não é país
em um combate perdido
nenhum de nós sabe quem ele é e no entanto
15 cada um de nós está nessa frente de batalha
e não tem nome e é
esse soldado desconhecido.

MANUEL ALEGRE, Nada está escrito, Lisboa, Dom Quixote, 2012.

1. Indique o motivo por que o sujeito poético afirma que há um soldado desconhecido «em todos os
continentes devastados» (v. 3).

2. Aponte a razão por que este soldado se encontra «em um território desorbitado» (v. 6).

3. Explicite a intenção crítica que está subjacente na frase «Há um soldado desconhecido que já não
sabe / por quem se bate.» (vv. 7 e 8).

4. Identifique a razão por que o eu afirma que «cada um de nós está nessa frente de batalha / e não
tem nome e é / esse soldado desconhecido.» (vv. 15 a 17).

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana

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