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organização

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz


Jean Cristtus Portela

SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias
SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias
Unesp – Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Bauru, São Paulo, Brasil

Reitor
Marcos Macari

Vice-Reitor
Herman Jacobus Cornelis Voorwald

Diretor
Antônio Carlos de Jesus

Vice-Diretor
Roberto Deganutti

Organizadores
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz
Jean Cristtus Portela

Comissão editorial
Jean Cristtus Portela
Loredana Limoli
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz
Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Matheus Nogueira Schwartzmann

Revisão
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta
Fouad Camargo Abboud Matuck
Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Matheus Nogueira Schwartzmann

Normalização
Dimas Alexandre Soldi
Fouad Camargo Abboud Matuck
Luiz Augusto Seguin Dias e Silva
Tânia Ferrarin Olivatti
organização

Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz


Jean Cristtus Portela

SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias

Unesp/FAAC
2008
Copyright © 2008 Unesp/FAAC

Projeto gráfico e capa


Diego Pontoglio Meneghetti

DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO


UNESP – Campus de Bauru

302.2 Semiótica e mídia: textos, práticas, estratégias / Maria Lúcia


S474 Vissotto Paiva Diniz e Jean Cristtus Portela (organizadores). --
Bauru: UNESP/FAAC, 2008.
269 p.

ISBN 978-85-99679-11-1

1. Semiótica. 2. Comunicação. 3. Mídia. 4. Práticas semióti-


cas. I. Diniz, Maria Lúcia Vissotto Paiva. II. Portela, Jean Cristtus.
III. Título.

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Brichi Cintra – CRB/8 5046

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”


Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação
Departamento de Ciências Humanas

Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação (GESCom)


http://www.faac.unesp.br/pesquisa/gescom/
gescom@faac.unesp.br

Av. Eng. Luiz Edmundo C. Coube, 14-01


Bauru, SP, CEP 17033-360
Tel.: (14) 3103-6064 / 6036 - Fax (14) 3103-6051
SEMIÓTICA E MÍDIA
textos, práticas, estratégias

Semiótica e mídia: a proposta de integração do GESCom 7


Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz

PARTE I – NOVOS DESENVOLVIMENTOS EM SEMIÓTICA E MÍDIA


Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização 15
Jacques Fontanille
Semiótica e comunicação 75
José Luiz Fiorin
Semiótica midiática e níveis de pertinência 93
Jean Cristtus Portela

PARTE II – JORNALISMO IMPRESSO E TELEVISADO


Cartas na mídia impressa: uma prática semiótica entre leitores e editores 117
Matheus Nogueira Schwartzmann e Mariza Bianconcini Teixeira Mendes
Práticas de direcionamento do fluxo de atenção no telejornalismo 131
Juliano José de Araújo

PARTE III – VINHETAS


Break comercial: estratégia e eficiência 155
Jaqueline Esther Schiavoni
Figuralidade e semi-simbolismo na abertura da telenovela Belíssima 169
Loredana Limoli
O Nu de Boubat e a Globeleza 183
Adriane Ribeiro Andaló Tenuta

PARTE IV – REALITY SHOW E PROGRAMAS DE COMPORTAMENTO


Práticas enunciativas como estratégias de interação: Big Brother Brasil 201
Maria Lúcia Vissotto Paiva Diniz e Sarah Caramaschi Degelo
Práticas passionais na mídia televisiva: programas de comportamento 215
Dimas Alexandre Soldi
PARTE V – NOVAS MÍDIAS
Internet, YouTube e semiótica: novas práticas do usuário/produtor 237
Tânia Ferrarin Olivatti
Rádio e podcast: intersecção das práticas 251
Djaine Damiati Rezende e Matheus Nogueira Schwartzmann

Os organizadores 265

Os autores 267
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 95

SEMIÓTICA MIDIÁTICA
E NÍVEIS DE PERTINÊNCIA
Jean Cristtus Portela

Filosoficamente, toda fronteira absoluta proposta


à ciência é sinal de um problema mal formulado.
Gaston Bachelard (2008: 75)

O LEVANTE MIDIÁTICO EM SEMIÓTICA


Nos últimos anos, sobretudo na França, no Brasil e na Itália,1 países cuja pro-
dução editorial em semiótica sempre se manteve ativa, os estudos semióticos de
inspiração greimasiana aplicados à mídia e a outros fenômenos socioculturais
ligados à comunicação social (a política, a publicidade, a sociabilidade cotidiana,
a cidade, para citar apenas alguns) vêm conquistando um espaço importante nas
publicações especializadas e nos grupos universitários de pesquisa. Na origem
do levante midiático em semiótica estão semioticistas como Jean-Marie Floch e
Eric Landowski, cujas obras pioneiras (Floch, 1985, 1990, 1995, 1997; Landowski,
1989, 1997, 2004) – a do primeiro erigida em torno da reflexão sobre a semióti-
ca plástica, a do segundo, assentada no terreno da sociossemiótica – tomaram
uma distância estratégica dos corpora etnoliterários e literários que imperavam
na primeira fase de elaboração da semiótica, trazendo à luz semiótica objetos de

1 Algumas publicações francesas e brasileiras no domínio da semiótica midiática (em alguns casos, em sua
derivação mercadológica) serão citadas e comentadas ao longo deste artigo. Quanto às italianas, as seguintes
obras constituem uma pequena mas representativa amostra da produção editorial em semiótica midiática na
Itália: Bertetti e Scolari (2007), Pezzini (2006), Marrone (2005, 1998), Rutelli e Pezzini (2005), Semprini (2005)
e Bettetini (1996).
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pesquisa que terminaram por ampliar e redefinir alguns conceitos da teoria.


No Brasil, embora as relações entre semiótica e comunicação não tenham
sempre sido, do ponto de vista institucional, tão amigáveis (ver o artigo de José
Luiz Fiorin, “Semiótica e Comunicação”, de 2004, reeditado nesta coletânea),
muitos são os cursos de comunicação social em nível de graduação e pós-gra-
duação que contam com semioticistas engajados na análise das mídias, como
atestam as publicações recentes de Fechine (2008), Primo et al (2008), Duarte e
Castro (2008, 2007a, 2007b, 2006) e Duarte (2004), sem contar a contribuição
sistemática de publicações seriadas como o Caderno de Discussão do Centro de
Pesquisas Sociossemióticas da PUC/SP, editado por Ana Claudia de Oliveira e
seus colaboradores, a revista Galáxia, a clássica Significação (que deixou de ser
“Revista Brasileira de Semiótica” e passou a se subintitular, a partir do número
27, “Revista de Cultura Audiovisual”) ou, ainda, periódicos como Verso & Re-
verso (Unisinos), Ícone (UFPE) e Comunicação Midiática (Unesp).2
Colocando em prática sua vocação de disciplina aplicada, a semiótica tem-
se prestado à análise dos mais variados tipos de mídia, desde as mídias tradi-
cionais cujo uso consagrou-se no século XX (a imprensa escrita, o rádio e a
televisão) até as chamadas “novas mídias”, como a internet, o videogame e os
aparelhos celulares que, cada vez mais, apresentam uma completa convergência
midiática, ao desempenhar as funções de aparelho telefônico portátil, reprodu-
tor de música e vídeo, terminal de internet e computador pessoal.
No plano do conteúdo, essas análises exploram em sua maioria bem mais
do que os dispositivos clássicos do percurso gerativo do sentido e seus níveis,
procurando encontrar nos textos analisados as relações enunciativas que os
constituem, do ponto de vista tanto dos sujeitos da enunciação que neles in-
teragem quanto dos universos socioculturais nos quais fazem sentido. Assim,
a semiótica do texto, que tanto insistiu em seus primeiros anos na necessidade
de uma análise imanentista, de cunho formal e localista, vê-se, na prática de
análise das mídias e da comunicação social em geral, diante da necessidade de
“semiotizar o contexto”, para usar a programática expressão cunhada por Lan-
dowski (1989: 199) que, no começo dos anos 1980, já defendia a elaboração de
uma “semiótica das situações”.
No plano da expressão, os esforços da semiótica midiática voltam-se para os

2 Todo inventário corre o risco de pecar por inclusões e exclusões obscuras. Preocupei-me aqui em citar, sem
qualquer pretensão de exaustividade, alguns livros recentes e periódicos já consolidados que atestam a ferti-
lidade da pesquisa em semiótica midiática, especialmente em sua vertente greimasiana. Vale lembrar que a
influência da mídia na pesquisa semiótica atual é tão abrangente que chegou até mesmo a revistas como Alfa
(Unesp) e Estudos Lingüísticos (GEL), em que é cada vez mais comum encontrar análises lingüísticas e semió-
ticas da mídia impressa, televisiva, radiofônica e digital.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 97

estudos do sincretismo de linguagens, com o objetivo de estabelecer tanto uma


tipologia estratégica do uso de várias linguagens na concepção de um produto
midiático quanto a construção de uma teoria que explique como as linguagens
hierarquizam-se e combinam-se, resolvendo as heterogeneidades locais em fun-
ção de um todo de sentido orientado. Paralelamente à investigação sobre as lin-
guagens sincréticas, ocorre um aprofundamento dos estudos sobre o semi-simbo-
lismo enquanto elemento primordial na organização dos sistemas semióticos, na
medida em que lhes confere unidade e gerencia efeitos de deformação coerente na
expressão e no conteúdo que dificilmente deixam seu destinatário indiferente.
Tudo se passa como se o semioticista das mídias, honrando a tradição que
dá sentido a seu “projeto de vida” (termo caro a A. J. Greimas e a L. Landowski),
aprendesse a pensar à medida que pensa, analisar à medida que analisa, extrain-
do da prática, da observação direta do fenômeno, a teoria ad hoc de que necessi-
ta (nos moldes, é claro, da epistemologia de base que fundamenta seu trabalho).
Nesse embate cotidiano com o sentido, poucos são aqueles que elevam o olhar
para além de seus objetos e problemas concretos e põem-se a refletir metodica-
mente sobre temas como a segmentação da análise e seus limites e a natureza
fenomenal e formal das semióticas-objeto analisadas.
Essa reflexão, de caráter metassemiótico por excelência, está relacionada à
questão da pertinência (do objeto e da análise) em ciências humanas e sociais
ou, mais especificamente, ao problema dos níveis de pertinência semiótica por
meio dos quais uma disciplina estabelece seu objeto e seu domínio de atuação.
Nas linhas que seguem, procurarei demonstrar a importância do conceito
de “nível de pertinência” em semiótica e analisarei, privilegiando o ponto de
vista da semiótica midiática, a proposta mais recente de que se tem notícia sobre
a matéria: os níveis de pertinências da semiótica das culturas, elaborados por
Jacques Fontanille (2004).3

NÍVEIS DE PERTINÊNCIA E GERAÇÃO DE SENTIDO


Se o princípio de pertinência é respeitado, o trabalho
de pesquisa científica funciona, leva a algo.
Caso contrário, limitamo-nos a brincar como crianças.4
A. J. Greimas (1995: 177)

3 Cf. o diagrama dos níveis de pertinência no artigo de Fontanille traduzido para esta coletânea (p. 18). Aqui, o
diagrama será chamado de “percurso gerativo da expressão”, “percurso da expressão” ou, ainda, “percurso dos
níveis de pertinência”.
4 Essa e as demais traduções de obras sem tradução em língua portuguesa são de minha autoria.
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Essa epígrafe, extraída de uma conferência ministrada em Palermo em


1987, mostra a posição de Greimas em relação ao fazer taxionômico da semi-
ótica. É sabido que o mestre lituano condenava os métodos laxistas (Greimas,
1989), tal qual o poeta americano Robert Frost, para quem fazer versos livres era
como jogar tênis sem uma rede.
A questão dos níveis de pertinência em semiótica encontra-se em germe no
nascimento da própria teoria. A opção inicial da semiótica pela análise textual
em detrimento da análise frásica foi um deslocamento de interesse fundador,
que nada mais é do que uma mudança de nível de pertinência. O mesmo se
pode dizer da passagem da perspectiva semiológica clássica (L. Prieto, G. Mou-
nin e R. Barthes), que se focava no estudo do signo e de seus tipos e arranjos,
para a perspectiva efetivamente semiótica, que prioriza o texto como o lugar de
relações formais explicitáveis pela análise. Foi em torno do nível de pertinência
do texto que a semiótica greimasiana concebeu seu instrumental teórico, fixan-
do-se mais especificamente no plano do conteúdo, que antecede a manifestação
textual propriamente dita. É desse princípio epistemológico que derivam todos
os desenvolvimentos teóricos que resultaram no percurso gerativo do sentido,
como apresentado por Greimas e Courtés (1979).
Desse modo se, por um lado, o programa de pesquisa da semiótica greima-
siana focou-se no nível de pertinência do texto e dos enunciados que o com-
põem, por outro, a semiótica foi considerando, pouco a pouco, a existência de
outros níveis de pertinência semiótica e isso desde muito cedo, se considerar-
mos sua evolução histórica. No começo dos anos 1980 (Bertin, 2007; Landowski
2007), já se faziam pesquisas sobre a natureza estratégica do esquema narrativo,
pesquisas que se serviam do princípio de semiotização do contexto, vital para
uma semiótica das situações, segundo a proposição de E. Landowski. Os anos
1990 testemunharam o surgimento de análises de objetos e práticas cotidianas,
como as análises de Floch (1990) sobre os viajantes do metrô parisiense ou so-
bre a identidade visual e o conceito das campanhas publicitárias, ou, ainda, suas
análises sobre a faca francesa da marca Opinel ou o look de Coco Chanel (Floch,
1995). O último seminário de A. J. Greimas (Fontanille, 2003), que teve como
tema “A Estética da Ética” (1991-1992), já sinalizava mudanças importantes na
maneira como os semioticistas viam à época os níveis de pertinência semiótica
e sua integração. Prova disso é a proposta greimasiana de valer-se das “formas
de vida” cunhadas por L. Wittgenstein para designar uma instância enunciativa
englobante que, condensando um “estilo de vida”, servia de moldura e matriz
para a ocorrência dos enunciados.
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Assim, percebe-se claramente como o percurso gerativo do plano da ex-


pressão da semiótica das culturas proposto por Jacques Fontanille inscreve-se
rigorosamente na tradição greimasiana, na medida em que se serve, para sua
constituição, dos resultados da pesquisa coletiva em semiótica dos últimos 20
ou 30 anos. Além disso, esse percurso apresenta algumas características que
marcaram a reflexão greimasiana: a passagem do simples ao complexo, do pro-
fundo ao superficial, das instâncias virtualizadas às instâncias realizadas. Enfim,
ele tem todas as características do clássico percurso gerativo do sentido, que
começa pelas instâncias inferiores: no caso do percurso do sentido, as estruturas
semionarrativas, no caso do percurso da expressão, o nível de pertinência dos
signos e das figuras.
A primeira vez que Fontanille apresentou à comunidade semiótica seu per-
curso foi no Colóquio “Transversalidade do sentido: pesquisa e confrontação
de modelos”, que ocorreu na Universidade de Paris VIII, no começo de maio de
2004. Ao final do mesmo mês, o texto dessa apresentação é publicado na revista
on-line italiana E/C (Fontanille, 2004). Esse texto foi republicado, com peque-
nas alterações (a única mudança substancial foi a exclusão do último nível de
pertinência, a cultura, que só aparece no texto de 2004), em Fontanille (2005),
em Fontanille e Zinna (2005) e em Fontanille (2006), este último tratando-se na
verdade da publicação tardia das atas do referido colóquio.
No Brasil, o percurso gerativo da expressão e a problemática dos níveis de
pertinência semiótica foram introduzidos por Fontanille em agosto de 2005, no
curso de curta duração “Significação e visualidade: exercícios práticos” que o
semioticista francês ministrou no Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Unisinos (São Leopoldo, RS). Essas informações, assim como
os textos debatidos no curso, podem ser encontrados em Fontanille (2005), obra
lançada concomitantemente à vinda do semioticista francês ao Brasil.
Quando analisado de perto, o percurso gerativo da expressão revela-se como
a intersecção de soluções epistemológicas correntes na semiótica greimasiana,
mas também de algumas concepções teóricas mais recentes, sobretudo no que
concerne à constituição fenomenológica e sensível da significação, à esquema-
tização de propriedades formais/estruturais a partir de propriedades materiais
e sensíveis e, conseqüentemente, à reavaliação do conceito de imanência. Em
linhas gerais, as contribuições inovadoras do percurso proposto por Fontanille
decorrem da adoção de três atitudes fundamentais:

(1) Eleger como pertinentes as instâncias da experiência e da existência semi-


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óticas e relacionar a forma da expressão à substância da experiência e a forma do


conteúdo à substância da existência, definindo um horizonte ôntico de significa-
ção, no qual despontam, irrompem, fenômenos apreensíveis pelos vários modos
de percepção do sensível (tipos de experiência) que podem ser hierarquizados
em diferentes níveis de pertinência de análise (Fontanille, 2004: 1). É nesse sen-
tido que se pode chamar o percurso que sintagmatiza os níveis de pertinência de
percurso gerativo da expressão. Não da expressão em sentido restrito, identificada
geralmente à manifestação material de um fenômeno, mas a expressão da mani-
festação semiótica, baseada na experiência de um sujeito senciente;

(2) Propor uma operação gerativa de “motivação” entre as instâncias in-


feriores e superiores do percurso, de modo que uma instância superior {N+1}
configure-se a partir das propriedades sensíveis e materiais de sua instância in-
ferior {N}. Por exemplo: a instância formal das cenas predicativas constitui-se
segundo as propriedades sensíveis da instância formal dos objetos, o que equi-
vale a dizer que o tipo de experiência da corporeidade é que delimita a extensão
do tipo de experiência prática. Isso fica evidente, por exemplo, pela forma como
os esportistas relacionam-se com as diversas práticas esportivas que dependem
da manipulação de uma bola (futebol, vôlei, basquete, rúgbi, tênis, etc.): a for-
ma, o tamanho, a densidade, o peso, a resistência e a aderência da bola-objeto
participam das práticas somáticas e cognitivas de manipulação, de modo que as
ciências do esporte procuram otimizar a produção das bolas-objeto para otimi-
zar, por conseguinte, a realização das práticas (e estratégias) esportivas;

(3) Estabelecer um percurso de geração de experiências e formas semióticas


que respeita o princípio de imanência, ao mesmo tempo que o amplia. Isso é
possível, como reconhece Fontanille (ver texto nesta coletânea, p. 18), graças a
uma idéia de Jean-François Bordron, que sugeriu a existência de vários “planos
de imanência” que variariam segundo o enfoque dado à semiótica-objeto (se-
gundo o nível de pertinência em questão). O conceito de “planos de imanência”
liberta o semioticista de uma concepção unitária da imanência que está inscrita
na semiótica clássica do texto. Nessa nova perspectiva, haverá tantos planos de
imanência quantos níveis de pertinência houver, na medida em que cada nível
postula um nível-domínio de análise semiótica.

As três opções epistemológicas que acabo de apresentar por si só já justi-


ficariam o interesse do semioticista que trabalha com as mídias pelo percurso
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dos níveis de pertinência semiótica, na medida em que o percurso formaliza


semioticamente o que se considerou por muito tempo como extrapolação do
texto ou violação do princípio de imanência. A seguir, apresentarei o percurso
explicitando sumariamente a origem de seus níveis e as implicações que seu
estudo traz para a semiótica midiática.

OS NÍVEIS DE PERTINÊNCIA FONTANILLIANOS E A MÍDIA


Para mero efeito de clareza e explicitação, propus em Portela (2008: 53) uma
nova sistematização gráfica dos níveis de pertinência fontanillianos (ver Anexo).
O diagrama proposto leva em conta algumas idéias da primeira parte do texto
de Fontanille publicado nesta coletânea, especialmente as passagens em que o
semioticista francês descreve as operações de condensação e desdobramento
do percurso, por meio dos movimentos ascendentes (em direção à cultura) e
descendentes (em direção aos signos). Neste artigo tratarei apenas dos níveis em
uma perspectiva intensa e discreta, realçando suas propriedades constitutivas.
Para uma análise detalhada dos movimentos ascendentes e descendentes (ope-
rações de natureza extensa e contínua) no interior dos níveis de pertinência, o
leitor deverá consultar o texto de Fontanille que inicia esta coletânea.
Por ora, vejamos como, de cada tipo de experiência semiótica particular,
surge um nível de pertinência que pode ser abordado na análise das mídias.

Signos: a experiência da figuratividade

O primeiro nível de pertinência semiótica foi chamado por Fontanille (2004)


de nível dos “signos” ou “signos-figuras” e é considerado, do ponto de vista histó-
rico da semiótica, o patamar que é preciso superar para chegar a fazer semiótica
efetivamente. Da lexicografia à semântica transfrásica, da semiologia à semiótica
de fato, é o domínio das unidades mínimas da significação que se deve abando-
nar para ter uma visão de conjunto do projeto semiótico sobre o sentido.
Entretanto, o nível de pertinência dos signos continua sendo essencial para
que pensemos a nossa relação com o mundo significante, já que esse nível é
construído a partir da experiência da figuratividade. Seja na reflexão saussuria-
na sobre signo, orientada pelo princípio da arbitrariedade, seja na reflexão peir-
ciana, que prevê nuanças no princípio de arbitrariedade do signo em função da
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“distância” que ele mantém de seu objeto, estamos sempre diante do problema
da esquematização e da valoração das unidades de significação e da forma como
nos relacionamos com elas. De uma maneira geral, o que está sempre em jogo
na nossa relação com o mundo dos signos são as questões (1) da abstração e da
figuração, das (2) propriedades intrínsecas e das contingentes e dos (3) valores
de esquema e de uso.
Os signos, mesmo tomados como entidades isoladas, exercem um fascínio
inegável sobre nossa inteligência. O menor ruído, a quase imperceptível osci-
lação da luz, a ínfima variação na temperatura ambiente ou o discreto irrom-
pimento de um gosto ou cheiro desconhecidos convidam o sujeito senciente a
mobilizar sua visada na busca de uma apreensão.
É essa propriedade de espontânea e imediata captação do fluxo de atenção
que dá ao nível de pertinência dos signos uma fértil aplicação no campo da se-
miótica midiática, na medida em que as mídias vivem em busca daquilo que de
forma mais rápida e eficiente toca a sensibilidade do sujeito. O ícono-texto que
é a primeira página do jornal, por exemplo, deixa claro o papel proeminente da
seleção e combinação de signos (formas, cores, contrastes, projeções, volumes).

Os textos-enunciados e sua interpretação

A experiência da figuratividade, passada sua fase de contato imediato, que é


caracterizada por lampejos, insinuações de sentido, desemboca na experiência
semiótica da interpretação. Não basta ao sujeito perceber a existência de um
fenômeno, a questão, no nível de pertinência dos textos-enunciados, é conferir
sentido ao que é percebido, é posicionar-se seja como intérprete seja como pro-
dutor em relação ao que é percebido.
O nível de pertinência dos textos-enunciados é por excelência o nível de
pertinência da simbolização e da racionalização subjacentes aos materiais que
manipulamos para fazer sentido. É esse o nível escolhido pela semiótica dos
anos 1970, para a concretização de seu projeto de teoria geral da significação.
Nessa época, o texto era para a semiótica, independentemente da linguagem
pela qual é manifestado, a perfeita evidência (ou a única evidência!), a prova
material irrevogável da atividade humana de construção do sentido. A ele os
semioticistas tinham que se ater como a uma tábua de salvação, fora da qual não
havia redenção possível. É conhecido – e, hoje, amplamente questionado – o
aforismo greimasiano que parafraseava a máxima “extra ecclesiam nulla salus”,
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atribuída a São Cipriano de Cartago: “fora do texto não há salvação, todo o tex-
to, nada mais que o texto, nada fora do texto” (Greimas, 1974: 25).
O estudo do texto midiático impresso, televisivo, radiofônico e digital pro-
vavelmente jamais será deixado de lado, pois a preocupação com a concreção
dos textos-enunciados, por mais que a semiótica atual coloque-a em questão, é
uma característica fundadora da episteme semiótica greimasiana. No entanto,
na abordagem do texto midiático percebe-se que o problema-chave da análise
não é descrever a enunciação enunciada e o enunciado enunciado simplesmente,
mas recuperar, por catálise, os elementos enunciativos que permitem ao analista
restituir o sentido do enunciado não enunciado.
A problemática da depreensão do enunciado na mídia impressa cotidiana,
por exemplo, passa por algumas questões fundamentais que nos fazem pensar
sobre a natureza e os limites do nível de pertinência do texto: (1) a notícia ou
o artigo são enunciados resultantes de uma demanda contínua e orientada, de-
terminada pela organização das pautas do jornal; (2) esses enunciados têm um
contexto de ocorrência preestabelecido (a página, o caderno, a publicação como
um todo, o grupo de comunicação no comando); (3) eles tratam de narrativas
e valores cuja elaboração quase sempre está inacabada (a produção da notícia,
segundo as várias tendências editoriais, tenta estabilizar, por exemplo, as narra-
tivas políticas, mas o fato é que ela não tem controle – ou não deveria ter – sobre
os acontecimentos políticos).
Assim, fica evidente como o nível de pertinência do texto-enunciado por si
só não consegue sincretizar de forma coerente e satisfatória toda a problemática
da depreensão do enunciado nas mídias. É o percurso da expressão que orga-
niza, então, essa heterogeneidade multimodal (cada modo de funcionamento
equivalendo a um nível do percurso) a partir da introdução e da articulação de
outros níveis de pertinência, sendo este o fenômeno que Fontanille (2005: 32-3)
chama de resolução sincrética.

Corpo, objeto, dispositivo e técnica

A questão do nível de pertinência do objeto, que pertence ao domínio da


experiência corpórea e referencial, não é exatamente nova em semiótica grei-
masiana, não ao menos do ponto de vista teórico (Coquet; Petitot, 1991). No
entanto, no que diz respeito a seu aspecto aplicado, excetuando algumas in-
cursões pioneiras de Floch (1995), é só muito recentemente que o campo de
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estudos sobre o objeto expandiu-se realmente, como provam as obras de Ce-


riani (2008), Cavassilas (2006), Fontanille e Zinna (2005) e Arabyan e Klock-
Fontanille (2005), que tratam, respectivamente, de objetos díspares, como os
celulares de última geração, as técnicas de embalagem, a concepção dos objetos
que povoam nosso cotidiano e as antigas inscrições em tabuletas, que têm em
comum o fato de serem todos fenômenos semióticos inscritos em um objeto-
suporte material e formal.
Esse interesse da semiótica pela corporeidade do sujeito e pelos objetos que
ancoram sua experiência no mundo natural, compreendido como mundo do
“vivido”, resultou em uma semiótica “aberta” (Boutaud, 2007) e “extrovertida”
(Landowski, 2004: 37). Surpreendentemente, a área em que mais se empreende-
ram pesquisas semióticas sobre o objeto, até agora, foi a área de mercadologia
(marketing e concepção de produtos)5, que possui um interesse estratégico no
instrumental heurístico da semiótica como subsídio para a criação6 (Couégnas
et al, 2005; Ceriani, 2003; Bertin, 2002).
O nível de pertinência do objeto é também o nível dos dispositivos (ana-
lógicos e digitais) e das técnicas que os operam, estas últimas compreendidas
como práticas cognitivas otimizadas de manipulação e transformação de obje-
tos semióticos. Assim, tudo que concerne à captação e registro de uma lingua-
gem está relacionado ao nível do objeto: o papel e o modo de impressão, o tipo
de tela-suporte (resolução, cor, brilho, contraste) e a linguagem de codificação/
programação (sinal analógico codificado no caso da televisão, arranjos binários
no caso da imagem do computador ou da TV digital), os sistemas de transmis-
são e aparelhos de recepção em geral.
A reflexão sobre o objeto-suporte material e formal pelo qual um texto é
manifestado pode nos ajudar a compreender melhor a interação entre os avan-
ços tecnológicos e a criação de novos tipos textuais. Isso nos possibilitaria an-
tever o esperado estilhaçamento da narrativa a partir do advento da TV digital
ou, ainda, otimizar a criação de websites adaptados para exibição em celulares
e computadores de mão.

5 O campo mercadológico, tanto pelos objetos que tem analisado (jornal, cartaz, panfleto, música, vídeo, websi-
te e artefatos em geral) quanto por sua tessitura enunciativa (que supõe a primazia do actante coletivo), pode
ser situado no interior do campo midiático, que seria responsável pelo instrumental (os gêneros e os formatos
das diversas mídias) que a empresa, seja organização pública ou privada, dispõe para comunicar-se com seus
destinatários.
6 A esse respeito, é exemplar a frase visionária de Floch (1990: 12): “A semiótica pode ajudar a administrar um
sucesso”.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 105

Cenas práticas

Situando a cena predicativa das práticas como o termo mediador entre o


mundo “palpável” dos objetos e a dimensão pragmático-cognitiva das estraté-
gias, Fontanille certamente avança na construção de uma teoria semiótica que
possa abordar as práticas sem perder o caráter científico de seu projeto como
disciplina, o que é garantido por sua articulação com os demais níveis de perti-
nência. Em uma entrevista de Fontanille a Portela (2006: 181), pode-se encon-
trar uma definição sintética de prática semiótica:

Uma prática é constituída em sua superfície por um conjunto de atos,


cuja significação raramente é conhecida de antemão, e que se constrói
“em tempo real” por adaptações desses atos em relação uns aos outros.
Ela se define também por sua temática principal, que fornece o “predi-
cado” central da prática, ao redor do qual se organiza um dispositivo ac-
tancial que compreende um operador, um objetivo e, sobretudo, outras
práticas com as quais a prática de base interage.

Assim, por meio de uma programação prévia que prevê sucessivas adapta-
ções (ajustamentos) e combinações com outras práticas, a cena predicativa es-
tabiliza o sentido da significação valendo-se de uma narrativização da situação
semiótica, que faz as vezes de “contexto” do texto prático.7
A importância da experiência prática na compreensão da mídia revela-se
pertinente, por exemplo, nos trabalhos de Oliveira (2006a; 2006b) que estudam
o jornal impresso tanto em sua plasticidade quanto na experiência corporal for-
necida por sua leitura. De maneira semelhante, é com a cena predicativa e sua
experiência prática que estamos lidando quando Diniz (2002) reflete sobre as
práticas orais e escritas e seus estereótipos consagrados pelo uso, investigan-
do sua manifestação no telejornal. Ainda no domínio da mídia televisiva, é só
pensar na maneira como o mobiliário de um programa de comportamento e
sua distribuição topológica participam das práticas de troca conversacional do
apresentador com os entrevistados, com o auditório e com os telespectadores
(Soldi, 2008).

7 A semiotização do “contexto” em situação semiótica (Landowski, 1989: 189-99; 2004: 15-37) é amplamente
aceita na semiótica atual, que se preocupa, aliás, em desvencilhar-se da noção de “contexto”, que supõe um
acréscimo exterior ao texto propriamente dito e não uma mudança de nível de pertinência da ordem da conti-
nuidade do fenômeno semiótico. Cf. Fontanille (2008; 2007).
106 | Jean Cristtus Portela

A inteligência estratégica e sua conjuntura

A experiência da conjuntura produz o nível de pertinência da estratégia,


que, segundo Montbrial e Klein (2000: 527), é “a ciência da ação humana aca-
bada, voluntária e difícil”. A ação estratégica é acabada, pois exige uma visão de
conjunto tanto do objeto da estratégia (uma batalha, a inserção de um produto
no mercado, a organização da grade de programação) quanto do plano estra-
tégico (a invasão na calada da noite, a inovação na propaganda, a alternância e
a repetição de determinados programas em detrimento de outros). É também
voluntária, pois, mesmo quando subsumida pelo /dever/, exige um /querer-ser/
e um /querer-fazer/. Em ambos os casos o esforço para a aquisição do objeto é
consciente, orientado e sistemático. E é difícil, porque pressupõe uma disjunção
entre sujeito e objeto, que só um planejamento eficiente (uma estratégia) poderá
reverter. Assim, o caminho ou método que conduz ao sucesso aparece como um
quebra-cabeça, um enigma, um código, um obstáculo que é preciso conhecer,
dominar ou explicar.
Como toda teoria consiste em uma solução/programação racional e efi-
ciente de um problema, a semiótica já se situa, por princípio, como ciência in-
terpretativa estratégica: ela identifica, descreve e analisa as semióticas-objeto,
buscando a estratégia enunciativa e enunciva (Greimas; Courtés, 1979) que lhes
permite existir no âmbito da cultura. Além dessa dimensão estratégica interpre-
tativa, é preciso reconhecer na semiótica uma dimensão estratégica produtiva,
que permite que o semioticista não só classifique a existência semiótica de uma
semiótica-objeto, mas diga algo sobre seu devir e seus usos na cultura, a exem-
plo do manual de webdesign de Pignier e Drouillat (2004), que é inteiramente
embasado em análises semióticas.
Passando a um outro domínio, o das narrativas audiovisuais ficcionais, te-
mos, por exemplo, o problema da oscilação da audiência ocasionada por va-
riações no enredo: a história de amor impossível, mas plausível, aumenta o in-
teresse do público; as personagens de um núcleo de novela que não está bem
entrosado na trama atraem pouco interesse. Nesse caso, valendo-se do pensa-
mento estratégico, é possível conceber novas narrativas que explorem os mo-
tivos já consagrados pelos telespectadores ou, ainda, avaliar o risco assumido
na criação de novos programas e formatos. É o que se pode chamar de aspecto
prospectivo ou preditivo da semiótica estratégica.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 107

Forma de vida e sentido da existência

Concebido para ser o penúltimo patamar dos níveis de pertinência, na po-


sição que antecede à instância formal da cultura, a forma de vida é, na verdade,
o último nível em que se pode operar semioticamente, se se leva em conta que
a cultura em si é uma unidade dificilmente decomponível e analisável, a não ser
pelo exame dos seis níveis de pertinência que ela subsume e sincretiza. Tanto
isso é verdade que em Fontanille (2005), por exemplo, a instância formal da
cultura, que é produzida pela experiência da identidade espaço-temporal coleti-
va, não figura como nível de pertinência, ao contrário de sua proposta original
(Fontanille, 2004), que previa um lugar para a cultura na economia geral do
percurso gerativo do plano da expressão.
Novamente se está diante de um nível de pertinência já conhecido em semi-
ótica, embora pouco praticado em termos de análise desde a sua concepção, que
remonta ao começo dos anos 1990 (Fontanille, 1993), década ao final da qual
o conceito de forma de vida acabou por ser incluído como verbete na espécie
particular de terceiro dicionário de semiótica que é Tensão e Significação (1998),
de Fontanille e Zilberberg (2001: 203-26).
Como se sabe, na origem do conceito de forma de vida está o pensamento
de L. Wittgenstein sobre a integração da significação em uma rede conceitual de
uso e reconhecimento, que ele assim discrimina (apud Fontanille; Zilberberg,
2001: 203):

Expressões → Usos → Jogos de linguagem → Formas de vida

Assim, as formas de vida são o termo resultante (a condensação discursi-


va) de uma operação complexa de esquematização que parte da materialidade
dos enunciados lingüísticos, passa pela realização social de seus usos e chega a
enunciados mais gerais que os condensam na forma de um jogo codificado de
linguagem potencial, característico da práxis enunciativa.
As formas de vida estudadas até o momento – o belo gesto, a armadilha, o
absurdo, a precisão, a marginalidade (todas formas de vida analisadas no núme-
ro da revista RSSI, que Fontanille (1993) apresenta), a parábola (Greimas, 1993),
o jardim (Zilberberg, 1996), a aventura de Tintin no Tibete (Floch, 1997: 196-
208) e as drogas (Alonso, 2006), para citar as mais conhecidas – dão um indício
da diversidade de manifestações que uma forma de vida pode assumir.
108 | Jean Cristtus Portela

No domínio das mídias, a utilidade do conceito de forma de vida surge,


no limite, como uma necessidade real de explicação de alguns fenômenos, tais
como: (1) o comportamento e o ethos dos personagens emblemáticos (astros,
apresentadores, políticos, jogadores e demais heróis de ocasião) e de seus fãs; (2)
o ethos dos apresentadores de tevê, dos radialistas, dos blogueiros e dos podcas-
ters; (3) as formas de vida que presidem a organização dos gêneros e formatos
midiáticos consagrados:8 a forma de vida investigativa ou denunciativa, no caso
dos programas que exercitam o documentário, a forma de vida descomprome-
tida e iconoclasta, no caso de certos programas de humor ou, ainda, a forma de
vida didática baseada na auto-ajuda, exercitada por programas sobre comida,
vida familiar e sexual, cultura geral, etc.

O devir do percurso gerativo da expressão


Há três coisas que eu vejo, investigações que gostaria de empreender e
que eu lego às gerações futuras. Em primeiro lugar, a semiótica discur-
siva resta por fazer [...]. Por outro lado, não esqueçamos que o plano do
significante, da expressão, não foi ainda estudado semioticamente [...].
Portanto, é preciso considerar, de um lado, a semiótica discursiva sobre
o plano do conteúdo e, de outro, o percurso gerativo do plano da expres-
são: fazer algo equivalente ao que existe para o plano do conteúdo. Em
terceiro lugar, há o que eu chamei recentemente de aventura axiológica.
A. J. Greimas (1986: 56-7)

O percurso proposto por Fontanille está, em verdade, longe de ser um


percurso definitivo9 ou de ser tão operacional quanto o percurso gerativo do
sentido, que, além de delimitar os níveis de pertinência de análise, contém as
instruções mínimas da constituição da semântica e da sintaxe de cada nível. Os
níveis do percurso da expressão fontanilliano podem ser analisados, isolada ou
conjuntamente, segundo a grade de leitura do percurso gerativo do sentido. Por
um lado, isso mostra a continuidade e a compatibilidade da semiótica clássica
com os novos desdobramentos da semiótica atual, por outro, uma suspeita justi-
ficada pode tomar de assalto o espírito do semioticista: não seria preciso desen-
volver novos instrumentos teóricos para analisar novos níveis de pertinência? A

8 No caso da televisão, a proposta de organização dos gêneros televisivos de François Jost (1999: 21-34), que
prevê a existência dos modos lúdico, autentificante (real) e ficcional, pode servir de base para uma abordagem
socioletal das formas de vida, em detrimento das abordagens de cunho idioletal que até hoje predominaram.
9 Nesse sentido, são oportunas as críticas que lhe fazem Sémir Badir (2006; 2007; 2008) para quem o percurso
da expressão de Fontanille mistura expressão e conteúdo e não leva em consideração a distinção entre práticas
interpretativas e práticas produtivas.
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 109

pergunta a essa resposta virá certamente com o tempo: tempo de análise e veri-
ficação, tempo de experimentação, partilha e consolidação do saber semiótico.
O devir do percurso gerativo da expressão seguirá de perto o devir da pró-
pria semiótica e dependerá, entre outros fatores, do lugar que a semiótica ocu-
pará em um futuro próximo nas ciências humanas e sociais, na medida em que
a elaboração dos níveis de pertinência de que trata uma disciplina está intima-
mente ligada à maneira como a disciplina recorta o campo científico.
Diante da produção constante e fecunda e de sua penetração generalizada
na elaboração dos novos desdobramentos em semiótica geral, à semiótica mi-
diática caberá provavelmente a tarefa de liderar o projeto que estabelecerá os
limites da atuação da semiótica enquanto aventura axiológica.
110 | Jean Cristtus Portela

ANEXO
Semiótica midiática e níveis de pertinência | 111

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