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Claudio Willer
O episódio é relatado por Roberto Piva no vídeo Uma outra cidade, de Ugo
Giorgetti2: a 28 de setembro de 1966, por volta das 16 h, Piva e Roberto Bicelli
caminhavam pela Avenida Rio Branco no trecho final, próximo ao viaduto sobre os
trilhos, em São Paulo. Viram passar a toda velocidade um caminhão carregado de
móveis e utensílios, encimados por um armário cuja porta, impelida pelo sacolejar do
veículo, abria e fechava, batendo com força. Do móvel saía, esvoaçando, conduzido
pelo vento, um longo lençol branco. Apontando para o conjunto insólito, Bicelli
exclamou: É o fantasma de André Breton! Nem Bicelli, ao identificar desse modo a
sacolejante mudança ao surrealismo, nem Piva, lembraram-se, na hora, desta frase meio
solta no primeiro Manifesto do Surrealismo, em um parágrafo intitulado “Contra a
morte”: “Não vos esqueçais de formular adequadamente vossas disposições
testamentárias: eu, por exemplo, peço que me transportem ao cemitério num caminhão
de mudança”.3 No dia seguinte, leram nos jornais a notícia do falecimento de Breton
naquela data e hora, às 16 h. de 28 de setembro de 1966. O acaso objetivo assim
prestava uma oblíqua homenagem ao seu formulador.
Tratar do acaso objetivo requer uma reflexão sobre a relação surrealista, em
geral, e bretoniana, em especial, com o maravilhoso, o esoterismo e os fenômenos da
ordem do oculto, a flânerie ou deambulação urbana; e sobre as conexões entre a poesia,
o poético e a “realidade”, o mundo exterior ao sujeito.
Conforme examinado em outro ensaio desta publicação, 4 surrealistas, herdeiros
da fascinação romântica, simbolista e decadentista pelo oculto, não estiveram afastados
do estudo sistemático das disciplinas herméticas. Há, contudo, uma vocação esotérica e
1
Em algumas passagens do texto a seguir – no relato de episódios do surrealismo associados ao
sono hipnótico e à consulta à videntes, e nos comentários sobre Nadja e O Amor Louco –retomo
minha narrativa em prosa Volta, Iluminuras, São Paulo, terceira edição 2004.
2
Produção da SP Filmes disponível em vídeo, exibido na TV Cultura de São Paulo e TV
Educativa.
3
André Breton, Manifestos do Surrealismo, tradução de Jorge Forbes, prefácio de Claudio
Willer, Editora Brasiliense, 1985; ou André Breton, Manifestos do Surrealismo, tradução de
Sérgio Pachá, Nau editora, Rio de Janeiro, 2001; esta, mais completa, segue André Breton –
Manifestes du Surréalisme, Jean Jacques Pauvert éditeur, Paris, 1962, incluindo a Lettre aux
Voyantes e Poisson Soluble, ausentes das edições Gallimard e Brasiliense.
4
Surrealismo e esoterismo: a alquimia da poesia, de Maria Lúcia Dal Farra.
2
5
Marguerite Bonnet, André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, Librairie José Corti,
Paris, 1988; e Henri Béhar, André Breton, Le grand indésirable, Calmann-Lévy, Paris, 1990.
6
Detalhes em Vingt ans de surréalisme, 1939-1959, de Jean-Louis Bédouin, Éditions Denoël,
Paris, 1961, com uma substanciosa discussão sobre poesia, surrealismo e alquimia.
7
Conforme a biografia por Henri Béhar, já citada.
8
André Breton, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Editorial Estampa, Lisboa, 1971,
ou André Breton, Oeuvres complètes, org. de Marguerite Bonnet, Bibliothèque de la Pléiade,
Éditions Gallimard, Paris, 1992, vol. II.
9
Breton, Manifestos do Surrealismo.
3
10
O exame do hermetismo e alquimia ocupa uma extensa nota de rodapé, de algumas páginas,
desse manifesto.
11
No já citado Vingt ans de surréalisme.
12
André Breton, Les vases communicants, collection Idées, Gallimard, Paris, 1985; ou André
Breton, Oeuvres complètes, vol. II, Bibliothèque de la Pléiade, Éditions Gallimard, Paris, 1992,
organizada por Marguerite Bonnet.
13
Nadja, Éditions Gallimard, Collection Folio, Paris, 1964; ou André Breton, Oeuvres
complètes, vol. I, Bibliothèque de la Pléiade, Éditions Gallimard, Paris, 1988. Nadja foi
reeditada no Brasil em 1999 pela Editora Imago, na tradução de Ivo Barroso.
14
Na edição brasileira da Nau dos Manifestos do Surrealismo, já citada acima.
4
Madame Sacco: Ao que parece, devo ir à China por volta de 1931, e lá correr, durante
vinte anos, grandes perigos. Duas vezes em duas ocasiões diferentes15 deixei que me
dissessem isso, o que é bastante perturbador.
O que menos importa, argumenta, é o erro das profecias tomadas ao pé da letra.
De certo modo, está na China: Indiretamente, soube também que, antes disso, haveria
de morrer. Mas eu não penso que “das duas, uma”. Tenho fé em tudo o que me
disseram. Por nada nesse mundo resistiria à tentação que provocaram em mim,
digamos: de aguardar-me na China. Tanto mais que, graças a vós, já estou lá.
Instigado pela vidente, via uma China de sonho, signo de uma rebelião, de algo a
perturbar o Ocidente, fonte de um sopro de liberdade capaz de despertar a velha
Europa. O interesse dessa freqüentação não residiria na exatidão e certeza com que
profecias iriam ocorrer, mas em seu valor simbólico e no conseqüente poder para
despertar da inércia e do conformismo, ao levarem alguém a atribuir sentido ao remoto,
enxergando-se em uma revolução chinesa. Na mesma medida, argumentou no Segundo
Manifesto do Surrealismo, pouco importava o alquimista Nicolas Flamel não haver
enriquecido com a descoberta da Pedra Filosofal, diante da fortuna espiritual que
edificara.
Os parágrafos da Carta às Videntes em que Breton comenta sua viagem nunca
feita à China reservam uma surpresa. Para esclarecer o que procura junto às videntes,
declara-se capaz de prever o futuro: O grande véu que tomba sobre a minha infância
não me furta aos olhos senão a metade dos anos estranhos que precederão minha
morte. E eu falarei um dia da minha morte. Dentro de mim, adianto-me várias horas
em relação a mim. Diz que sua meta não é o aprendizado derivado da experiência já
vivida, porém a experiência do que ainda não foi vivido: ... faço muitíssimo caso da
experiência, visto que tento obter a experiência daquilo que não fiz! Subentende,
tomando Rimbaud ao pé da letra, que o verdadeiro vidente é o poeta. Completa com a
seguinte frase: Há pessoas que pretendem que a guerra lhes ensinou alguma coisa: no
entanto, estão menos avançados do que eu, que sei o que me reserva o ano de 1939.
Assim, em um confronto de profecias, uma espécie de relação especular, diante das
previsões sugestivas, porém incorretas, das videntes que freqüentava, respondia com
uma profecia vaga, mas cronologicamente exata, antecipando a catástrofe que sobreviria
em 1939.
15
Em duas consultas: outras visitas a médiuns-videntes, como Hélène Smith, que afirmava
comunicar-se com o planeta Marte, deram resultados semelhantes.
5
- Não (sublinhado).
- Ele estará com Nazimova?
-?
- O que mais você sabe sobre Breton? Fale.
- O barco e a neve – há também a bela torre telégrafo – sobre a bela torre há
um jovem (ilegível).18
Henri Béhar sugere uma interpretação: O leitor que conhece o triste destino de
Nadja é tentado a assimilar esses dois nomes russos, ainda que Nazimova seja aquele
de uma atriz de cinema célebre na época (Alla Nazimova, atriz russa admirada por
Desnos e que atuava no cinema americano, protagonista de Salomé).19 Mas há outra
interpretação possível, que não consta na bibliografia examinada: Nazimova podia ser
uma recepção distorcida de nazismo. Isso dá ao episódio um alcance efetivamente
profético, pois não havia como antever, em l922, a ascensão do nazismo na década
seguinte e as conseqüências de mais uma guerra mundial. Entre outras, a viagem
transoceânica de Breton em maio de 1941, como refugiado, primeiro à Martinica e
depois aos Estados Unidos. Detalhes do diálogo reforçam essa interpretação: seria
impossível “encontrar” Nazimova, e obter resposta sobre a mulher de Breton (não
estaria mais com Simone Kahn, porém separando-se de Jacqueline Lamba). Dos
presentes à sessão, quem acabou como vítima do nazismo foi o próprio Desnos.
Militante da resistência francesa, morreria em um campo de concentração ao final da
guerra.
As experiências com o sono hipnótico foram interrompidas depois de situações
constrangedoras e chocantes, como a insistência de Crevel no suicídio coletivo (viria a
suicidar-se em l935). Desnos ainda as continuou por conta própria. Não consta, nos
estudos sobre o assunto, a seguinte pergunta: Por quê, do material disponível sobre sono
hipnótico e estados de aparente mediunidade, resultado de várias reuniões, Breton
escolheu esse trecho para a publicação em Les pas perdus? Qual critério o levou à
seleção do diálogo sobre Nazimova, profecia impossível de avaliar ou considerar mais
que devaneio? Pode-se falar em dupla premonição. Primeiro de Desnos adormecido,
antevendo tragédias que aconteceriam daí a décadas. Depois de Breton, selecionando o
trecho para figurar em L’entrée des mediums.
18
Essa transcrição pode ser encontrada em Les pas perdus, na biografia de Breton por Béhar, ou
em Oeuvres de Robert Desnos, Gallimard, 1999.
19
Em Béhar, no já citado André Breton, Le grand indésirable. Em Oeuvres de Desnos foram
incluídos comentários sobre cinema, nos quais a atriz Nazimova é mencionada.
7
27
Em La clé des champs, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de Poche, 1979.
28
Pierre Mabille, Le miroir du merveilleux, Les Éditions du Minuit, 1962.
29
Flávia Nascimento, Notas sobre o mito literário de Paris: de Restif aos surrealistas, em
Agulha, revista de cultura # 25 – Fortaleza, São Paulo – junho de 2002, em
http://www.revista.agulha.nom.br/ag25nascimento.htm
10
Também nisso, Apollinaire foi precursor imediato, por sua intensa relação com
Paris,30 resultando nos topônimos em sua poesia: Ponte Mirabeau, Saint-Merry e outros.
Em Zone,31 uma caminhada dessas - Agora andas sozinho na multidão de Paris... -
equivale a percorrer sua própria vida e a história da humanidade em 24 horas. A
metrópole é o lugar de encontro da biografia pessoal e da história da humanidade, do
macro e microcosmo, em um cruzamento de coordenadas temporais e espaciais.
Contudo, surrealistas foram além nessa relação. Paris é inteiramente onírica em
La liberté ou l’amour! de Robert Desnos.32 Em O Camponês de Paris, de Aragon, a
passagem da Ópera e o parque das Buttes Chaumont são pórticos para suas iluminações
profanas através do “erro” e da errância em lugares eleitos. Conforme sua tradutora, ...
o deslocamento do narrador pela cidade também apresenta uma estrutura binária que
opõe dois espaços diametralmente opostos: primeiramente [...] a passagem da Ópera,
lugar fechado, quase poderíamos dizer subterrâneo, que se localizava num bairro
central da cidade; e depois o grande jardim, devassado, alto, da periferia. Este lugar
aninha, segundo Aragon, “o inconsciente da cidade” e assume na narrativa os ares de
labirinto iniciático dos surrealistas. [...] Errar pelo jardim em plena noite funciona
como técnica alucinógena cujo objetivo é fazer aflorar o que há de mais primitivo no
homem; e percorrer esta topografia equivale a percorrer os caminhos sinuosos do
inconsciente.33
Essa relação com Paris se intensifica e exacerba em obras de Breton como
Nadja, Les vases communicants, O Amor Louco e Arcano 17. Em Nadja, a estátua de
Étinenne Dolet, Praça Maubert, o atrai e lhe provoca mal-estar, e a Praça Dauphine o
faz sentir langor e opressão. Em O Amor Louco e no poema Vigilance,34 a Torre Saint-
Jacques, ponto de partida das peregrinações a Santiago de Compostela, 35 é o centro
irradiador do maravilhoso, assim como seu entorno onde, no século XIV, habitara
Nicolas Flamel, culminando, no final de Arcano 17, na ...exaltação que, de longa data,
a torre Saint-Jacques me causava e que comprovam vários dos meus textos ou
30
Bem examinada por Marie-Claire Bancquart em Paris “Belle époque” par sés écrivains, A.
Biro, Paris, 1997.
31
Edição brasileira em Escritos de Apollinaire, tradução, seleção e notas de Paulo Hecker Filho,
L&PM editores, Porto Alegre, 1984.
32
Ed. Gallimard, coleção L’Imaginaire, 1986, ou no já citado Oeuvres.
33
Louis Aragon, O Camponês de Paris, Imago, 1998, tradução e prefácio de Flavia Nascimento.
34
Em Le revolver a cheveux blancs, por sua vez na coletânea Clair de terre, coleção Poésie,
Gallimard, Paris, 1966.
35
Em francês, São Tiago é Saint-Jacques.
11
conversas anteriores. É verdade que meu espírito sempre rondou em volta dessa torre,
para mim poderosamente carregada de sentido oculto.36
Outro lugar mágico de Paris, para Breton, foi a Ilha da Cité. Está em Peixe
Solúvel,37 e acabou por revelar-se entrada para o inferno em um episódio dramático de
Nadja. No texto intitulado Pont-Neuf38 (a ponte que une a ilha às margens do Sena),
Breton reconheceria que a lassidão e imobilidade que o atacavam na Praça Dauphine, ali
localizada, correspondiam a um sentimento de abandono diante do significado do lugar
onde, em 1313, haviam sido queimados os dirigentes da Ordem dos Templários,
acusados de magia e satanismo. Seu formato triangular o levou a chamá-la de sexo de
Paris, incandescente até hoje, o ponto pivotal de uma cidade não apenas
antropomorfizada, mas erotizada: o segredo do seu prestígio [...] reside inteiramente na
atração erótica que esse belo corpo oferece, lascivo até na expressão de sua lassidão.
Vale, para essas designações de lugares, o comentário de Ferdinand Alquié sobre
Peixe Solúvel, em Philosophie du Surréalisme:39 O paraíso reencontrado deve ser
aquele da vida cotidiana, da vida cotidiana transfigurada. É, em Peixe Solúvel, aquele
de Paris, e de uma Paris transformada, incessantemente, na mais maravilhosa, na mais
luminosa das câmaras do amor. [...] Para os surrealistas, a verdadeira vida está lá.
“Eu sempre me proibi de pensar no futuro”, diz Breton: Paris substitui portanto
Veneza e as florestas da América, o presente revela ao homem a totalidade dos seus
poderes.
No verbete Promenade do Dictionnaire Général du Surréalisme et de ses
environs,40 também é comentado um itinerário iniciático realizado ao nível do
cotidiano: através da diversidade do espetáculo urbano, o poeta, sob os impulsos
complementares do acaso e da sua imaginação, na verdade procura melhor definir sua
própria identidade, interrogando os diversos “enigmas” encontrados – objetos,
situações ou seres – como outros tantos sinais que lhe faz seu próprio desejo. É nas
prosas de Breton que essa concepção da caminhada encontra sua expressão mais
acabada: a realização última da busca, o encontro da mulher amada, é aqui
igualmente uma grande porta aberta para esses segredos do mundo – suas leis e suas
36
André Breton, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas e Rosa Maria Boaventura,
Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.
37
Na já citada edição Nau dos Manifestos do Surrealismo.
38
Publicado na coletânea de ensaios La clé des champs, já citada.
39
Ferdinand Alquié, Philosophie du surréalisme, Flammarion Éditeur, Paris, 1977;
40
Dictionnaire Général du Surréalisme de Adam Biro e René Passeron, Office du Livre,
Lausanne, 1982
12
41
Traduzi promenade por “caminhada”, mais próprio, neste contexto, que “passeio a pé”.
42
Sigo Marguerite Bonnet em Nadja – Réception de l’oeuvre, Vol. I de Breton, Oeuvres
complètes, e Patrick Née em Lire Nadja, Dunod, Paris, 1993.
43
Traduzi assim o Qui vive? do original, o chamado das sentinelas quando alguém se
aproximava, pedindo que se identificasse.
13
Amor Louco, lugares e personagens podem ser outros, mas essas situações e encontros
irão repetir-se, às vezes em versões mais complexas. Isso resulta de uma relação sui
generis entre vida e obra em Breton, com sua propensão, mais evidente em O Amor
Louco, mas também presente em outros textos, de referir-se a acontecimentos, ou
sugeri-los, antes de ocorrerem, ou sincronicamente a eles, assim introduzindo o que está
sendo ou irá ser vivido no escrito e projetando o escrito na vida.
A parte central de Nadja tem forma de relatório, anotações diárias do que
aconteceu entre 4 e 12 de outubro de 1926. Três anos depois de haver escrito as frases
de abertura de Les pas perdus sobre disponibilidade, continuava a caminhar pelas ruas
ao sabor do mesmo vento do eventual. Enquanto percorria a Rua Lafayette, no centro de
Paris, em um fim da tarde, teve seu interesse despertado pela mulher que caminhava na
direção oposta à da multidão na calçada, de cabeça erguida, ostentando, diz, um sorriso
quase imperceptível. Imediatamente, dirigiu-lhe a palavra. Sua aversão ao relato realista
deixou-nos sem saber muito sobre a aparência dessa mulher, além dos detalhes que mais
chamaram sua atenção: cabelos claros (cor de aveia, observa) e despenteados, rosto
maquiado pela metade, vestida de um modo pobre e descuidado, acentuando o aspecto
frágil. Do rosto, conhecemos a fotografia publicada, na qual estão apenas os olhos. Foi o
que mais o atraiu - seus olhos exageradamente sombreados, que exibiam, ao mesmo
tempo, uma obscura miséria e um luminoso orgulho, levando-o a declarar: Eu nunca
havia visto olhos assim.
Breton nunca identificou essa mulher, mesmo referindo-se a seu modo de vida
(ou de problemática sobrevivência) em Paris. Sabemos, através de Marguerite Bonnet, 44
que seu nome verdadeiro era Leona D, nascida em Lille em 1902, internada em 1927 ao
entrar em surto. Morreria de câncer em 1941, depois de passar o resto da sua vida em
instituições psiquiátricas; e, ainda segundo Bonnet, nunca chegou a ver o livro que
protagonizou.
Nesse primeiro encontro, ambos sentados em um café, Breton ouviu-a comentar
a vida que levava e as dificuldades que enfrentava. À pergunta sobre seu nome,
respondeu que escolhera chamar-se Nadja por ser esse, em russo, o começo da palavra
esperança, e por ser apenas seu começo.45 Descreveu-se: sou uma alma errante. Ao se
despedirem, disse a Breton que o via caminhar em direção a uma estrela: Você não pode
deixar de alcançar essa estrela, insistiu. Enquanto o ouvia falar, senti que nada o
44
Em suas notas para Oeuvres Complètes de Breton, vol. I, pg. 1.509 e segs
45
Não exatamente, pois esperança, em russo, seria Nadedja.
14
impedirá - nada, ninguém, nem mesmo eu... Você nunca poderá ver essa estrela como
eu a vejo. Você não compreende: ela é como o coração de uma flor sem coração.
O estranho da aparência e o enigmático da conversa bastaram para que quisesse
voltar a vê-la. Marcaram para o dia seguinte. Breton trouxe consigo os já publicados
Manifesto do surrealismo e Les pas perdus. Apresentava-se através de seus livros;
inscrevia aqueles encontros, situações e diálogos, em sua continuação.
No terceiro encontro – nascido de um desencontro, pois, tendo marcado para as
cinco horas, encontraram-se por acaso às quatro – Breton observou que Nadja havia
cortado as dobras das páginas de um trecho de Les pas perdus, a breve crônica intitulada
L'Esprit Nouveau (referindo-se ao ensaio de Apollinaire L'Esprit nouveau et les poètes,
sobre a modernidade, mas contradizendo-o implicitamente), relatando como uma moça
atraíra a atenção dele, de Aragon e do pintor André Derain, na região de Saint-Germain-
des-Près. Os três, separadamente, haviam passado por ela em diferentes lugares do
bairro, enquanto vinham, cada um, ao encontro do outro. Adolescente, de uma
desconcertante beleza, detinha-se para perguntar qualquer coisa aos passantes com
quem cruzava. Percorrendo novamente o bairro, não conseguiram achá-la para descobrir
quem era e que perguntas fazia. Admirou-se por Nadja escolher primeiro, de todas as
partes do livro, a que mais poderia ser entendida como antevendo-a.
Margueritte Bonnet comenta essa passagem: Passante real e fugitiva, trazida e
recolhida pelo remexer-se vivo da rua, a desconhecida da rua Bonaparte dá uma
primeira figura ao enigma extraviado, extraviante, que aflora no cotidiano. Em sua
pessoa, anuncia Nadja, a quem a intuição guiará em Les pas perdus rumo a esse texto,
assim como o caráter da relação anuncia o diário dos encontros com Nadja pela
preocupação de circunstanciar cuidadosamente os fatos e a neutralidade proposital do
tom. A inadequação aparente do título transforma o relato em manifesto implícito onde
o não-dito se torna ostensivo: não é a exaltação das mudanças introduzidas na vida
corrente pelas descobertas da ciência que pode constituir o espírito novo; há que
procurá-lo do lado das disposições sensíveis que tornarão o homem capaz de espreitar
e de captar os sinais singulares da existência, tão subitamente interrompidos quanto
emitidos.46
Nadja captava esses sinais singulares da existência e adivinhava que seus
encontros e diálogos comporiam um livro futuro. Comentou, no sexto de seus
encontros: André? André?... Você escreverá um romance sobre mim. Eu o garanto. Não
46
Marguerite Bonnet em André Breton – Naissance de l’aventure surréaliste, já citado
15
negue. Preste atenção: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que permaneça algo
de nós... Ao dizer isso, talvez soubesse que nesse livro estaria o episódio da Praça
Dauphine, impressionante pelo modo como nele se confundiram magia e loucura.
Breton e Nadja chegaram à praça triangular de plátanos e antigas fachadas na Ilha da
Cité, lugar de fundação da cidade, da Catedral de Notre-Dame e outras edificações
históricas, conduzidos por Peixe Solúvel, que ela acabara de ler, onde é mencionado um
hotel, o City Hotel, onde Breton havia morado. Pretendiam ir adiante, até a Ilha de
Saint-Louis, adjacente, também mencionada naquele extenso poema em prosa, e
ficaram no caminho, pararam na Praça Dauphine.
Ao chegarem à praça e se instalarem em um café, iniciou-se a noite marcada por
qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver fantasmas, mortos circulando pela
vizinhança, com o rumor do vento - o vento e o azul, o vento azul, dizia - transformado
em vozes anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios.
Apontando para a janela de uma das casas da praça, negra na escuridão, afirmou que em
um minuto esta se iluminaria e sua cor seria vermelha: em um minuto, a luz do quarto
da janela acendeu-se, exibindo cortinas vermelhas. Em seguida, a rememoração de
cenas de outros séculos: alucinada, Nadja agarra-se à grade do Palácio da Justiça e
insiste em que já havia estado lá, e que dali saía um túnel secreto que se comunicava
com outro palácio. Segundo Béhar,47 escavações arqueológicas de 1963 revelaram que
esse túnel existe; contudo, também constava em uma das narrativas do Fantômas de
Leroux.
Prosseguindo a caminhada, Nadja enxergou uma mão em chamas pairando no
Sena, signo terrível, pois remete à mortífera main de gloire do conto A mão encantada
de Gérard de Nerval (que persegue quem dela se apoderou e acaba por estrangulá-lo). A
noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam diante de
um chafariz. Ela observou que suas águas, elevando-se, separando-se em dois jorros,
desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma força, e assim indefinidamente,
simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se com esse comentário, pois
Nadja citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta da edição de
1750 do terceiro dos Três Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley, com a seguinte
legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um chafariz
idêntico ao das Tuileries (conforme as reproduções no livro). A tradução seria,
aproximadamente: A força impele as águas para o alto e ao mesmo tempo move a
47
Na já citada biografia de Breton por Béhar, André Breton, -Le grand indésirable.
16
no frêmito de relvas loucas de suas barricadas, no sonho das cortinas de seus quartos,
onde um homem e uma mulher continuarão indiferentes a se amar.
Nesse trecho de poesia em prosa há um intertexto com Baudelaire e sua visão do
efêmero associado à modernidade. Conforme observa Flávia Nascimento, 49 citando o
trecho correspondente de O Cisne, de As Flores do Mal50 (e subentendendo o que
Walter Benjamin escreveu sobre ruínas da modernidade em Parque Central),
Baudelaire já constatara, antes deles, que a forma de uma cidade muda mais
rapidamente que o coração de um mortal, o que faz com que tudo transmude
incessantemente em amontoados de ruínas, em alegorias.
Nas páginas finais de Nadja, os acontecimentos relatados passam a ter o sentido
da predição. Breton dirige-se a uma nova companheira: Sem o fazer de propósito, você
se substituiu às formas que me eram mais familiares, assim como a muitas figuras do
meu pressentimento. O amor é invocado e metaforizado por uma beleza especial, feita
de sobressaltos. É a força que anima o coração humano, belo como um sismógrafo (em
uma referência aos “belo como” de Lautréamont). Breton encerra proclamando que a
beleza será CONVULSIVA, ou então não será.
Assim, Nadja, história de um encontro antecipado em textos que falavam de
outros encontros, por sua vez anuncia novos encontros, respostas ao Quem vem aí?
Aponta para um livro futuro sobre o acaso objetivo e a beleza convulsiva, que viria a ser
O Amor Louco. Entre essas obras, como texto de transição, está Les vases
communicants. Breton esclarece o significado desse título, citando uma passagem de Le
Surréalisme et la Peinture:51 Tudo o que amo, tudo o que penso e sinto, me inclina a
uma filosofia particular da imanência segundo a qual a surrealidade estaria contida na
própria realidade (não lhe sendo nem superior, nem exterior). E reciprocamente, pois o
continente também seria o conteúdo. Tratar-se-ia quase de um vaso comunicante entre
o continente e o conteúdo.
Ensaio e autobiografia, Les vases communicants também funde os gêneros.
Seguindo Freud em A Interpretação dos Sonhos, Breton analisa dois de seus próprios
sonhos. Mas tenta dar um passo além ao mostrar, através do que chama de psicanálise
da realidade, como esses sonhos não apenas reaproveitam o que houve, aquilo que
49
Em seu prefácio para O Camponês de Paris de Aragon.
50
Em tradução livre e literal: De uma cidade a forma muda mais depressa que um coração
infiel.
51
Em uma prière d’insérer transcrita por Marguerite Bonnet, Breton, Oeuvres Complètes, vol.
II.
20
estava perdida para ele o arrasta a uma busca de substituição, sem objetivo real. Com
seus amigos, aposta que dirigirá a palavra a dez mulheres, à exclusão das prostitutas,
entre o Faubourg Poissonière e a Ópera. De oito, cinco aceitam marcar encontro.
Outro dia, assim como Philippe Soupault dez anos antes, caminha com uma bela rosa
vermelha na mão, que oferece às transeuntes. Nada esperando em troca, teve toda a
dificuldade em achar uma que quisesse aceitá-la.
Nesse livro da busca para não chegar a lugar algum, de encontros que não se
realizam, é como se convertesse o texto em ritual propiciatório. Diz, de uma das
mulheres a quem abordou: Seus olhos (eu nunca soube dizer a cor dos olhos; aqueles
permaneceram para mim apenas olhos claros), como me fazer entender, eram daqueles
que não se revê jamais. Eram jovens, diretos, ávidos, sem langor, sem criancice, sem
prudência, sem “alma” no sentido poético (religioso) da palavra. Olhos sobre os quais
a noite deveria cair de um só golpe. Multiplica assim o encontro com Nadja. Até um
homem, a quem dera dez francos, também se torna profeta. À semelhança de Nadja, diz:
Senhor, não sei quem é, mas peço-lhe que faça o que deve fazer e o que pode fazer:
algo de grande. Frase idêntica à de um livro, Le vieux baron anglais, que Breton estava
lendo, assim como Nadja repetira a frase de Berkeley diante do chafariz, quase em uma
paródia da narrativa anterior. Também reencontra parceiros de aventuras passadas:
relata diálogos com André Derain, que o acompanhara na busca da moça misteriosa de
L’esprit nouveau.
Contudo, esse ritual tem um sentido e apresenta conseqüências. Nos sonhos que
narra, nas suas interpretações e nos relatos de como se projetavam na vigília, Breton é
antecipatório sem percebê-lo. Anuncia O Amor Louco. Um dos episódios, real,
reapareceria no primeiro dos sonhos relatados: em um bar de saguão de hotel, uma
moça na mesa ao lado escrevia versos em um papel, assim como em seu primeiro
encontro com Jacqueline Lamba, daí a quatro anos. Outro foi com girassóis, a flor que
desempenharia um papel central em O amor louco.
Para sua crise, microcosmo de uma crise da sociedade, do mundo da
desigualdade e exploração, só havia uma saída: a equiparação de vigília e sonho.
Inverter as relações entre esses dois mundos foi uma de suas obsessões; daí seu filme
predileto ter sido Peter Ibbetson,55 história de amantes que só podem encontrar-se em
sonhos, o que mantém vivo, por longos anos, o protagonista encarcerado. E, na primeira
55
De Henry Hathaway, estrelado por Gary Cooper, de 1936, com o título traduzido no Brasil
como Amor sem fim.
22
página de Les vases communicants, conta a história do homem que quis proceder a essa
reversão, fazendo da vigília um prolongamento do sonho: O Marquês de Hervey-Saint-
Denys, tradutor de poesias chinesas da época dos Tang, e autor de uma obra anônima
publicada em 1867 sob o título Os Sonhos e os Meios de dirigi-los - Observações
práticas, obra que se tornou rara a ponto de nem Freud e nem Havelock Ellis, que a
mencionam ambos, terem conseguido tomar conhecimento dela, parece ter sido o
primeiro homem a achar que não era impossível – sem para isso recorrer à magia,
cujos meios, em seu tempo, só conseguiam se traduzir por algumas receitas
impraticáveis - vencer em seu proveito as resistências da mais amável das mulheres, e
obter rapidamente que esta lhe concedesse seus mais recentes favores. [...] Foi assim
que a sucção de uma simples raiz de íris, que, durante a vigília, teve o cuidado de
associar a um certo número de representações agradáveis cuja origem está na fábula
de Pigmalião, valeu-lhe durante o sono, uma vez deslizada essa raiz entre seus lábios
por uma mão cúmplice, uma aventura tentadora.
Nesta passagem, Breton se aproxima de um autor metafisicamente (e
politicamente) tão oposto a ele quanto Jorge Luis Borges. Mas com uma diferença
fundamental: em Borges, inversões e projeções do sonho, como em As ruínas
circulares, são o tema de narrativas de ficção. Breton, para expô-las, foi buscar um
personagem histórico. De modo conseqüente, vê o sonho como crítica do “real”: assim
fazendo, por meio do sonho, o processo do conhecimento materialista, [...] sendo,
penso, admitido que o mundo do sonho e o mundo da realidade não fazem senão um,
ou, dito de outro modo, que o segundo não faz outra coisa, para constituir-se, que
verter-se na “torrente do dado”. Indaga se a distinção entre “realidade” e sonho é
fundamentada em todos os pontos, e de onde vem ao homem, a esse respeito, a
faculdade de discriminação que permite seu comportamento social normal.
Por isso, critica Freud pelo dualismo, a seu ver variante do platonismo, ao
separar dois mundos que, sob o ponto de vista materialista, deveriam ser um só: ... mais
desolador ainda é que o monista Freud tenha se permitido chegar finalmente a essa
declaração no mínimo ambígua, a saber que a “realidade psíquica” é uma forma de
existência particular que não se deve confundir56 com a “realidade material”. E
questiona o criador da psicanálise por considerar o sonho exclusivamente a satisfação de
um desejo. Isso equivaleria à falta quase completa de concepção dialética, pois o “real”
56
Uso itálicos nas citações; por isso, passagens grifadas por Breton, impressas em itálico nos
originais, vão em redondo nas minhas citações.
23
da vigília está submetido à censura, enquanto o sonho, não; por isso, é o território da
liberdade, do possível, da utopia: ...uma parte do sonho, considerada eminentemente
não-sonhável, tem por objeto fazer de uma coisa que não foi – mas que foi sentida
violentamente como podendo ter sido, em seguida como podendo e devendo ser - uma
coisa que foi, que é portanto em todos os pontos possível e que deve passar, sem
choque, à vida real como toda-possibilidade.57 Daí que ...Freud ainda se engana, muito
certamente, ao concluir pela não-existência do sonho profético.
Argumenta com fatos. Acontecimentos do dia-a-dia obedecem aos mecanismos
do sonho. Por exemplo, na série de mulheres que vai encontrando, para depois perdê-
las. Trata-se de deslocamentos: Um personagem, assim que é dado, é abandonado por
um outro, - e, quem sabe, esse mesmo, por um outro? Para quê, então, esse trabalho de
expor? Mas o autor, que parecia haver-se disposto a nos apresentar algo de sua vida,
fala em um sonho! – Como em um sonho.58
Há mais em Les vases communicants: uma interpretação do Omega do poema As
Vogais de Rimbaud, remetendo por cabala fonética a uma atraente Olga que acabara de
conhecer, além de outros encontros casuais com mulheres, das quais invariavelmente
descreve os olhos.59 O autor da carta com observações inteligentes sobre o Segundo
Manifesto é Sanson, Sansão (Georges Sanson, pacifista a quem conhecera durante a
guerra e que reaparecia, enviando-lhe a carta), e isso o remete à moça com quem havia
marcado encontro aquele dia, cujo olhar lhe havia lembrado a Dalila de Gustave
Moureau, um de seus pintores prediletos. Ainda por associação, lembra o episódio
burlesco ocorrido no mesmo dia, no cabeleireiro. Admite: Que isso possa, para alguns,
frisar o delírio de interpretação, não vejo inconveniente nisso, tendo insistido, como o
fiz, sobre as razões do meu pouco equilíbrio de então. Seria possível até mesmo ir
adiante nessa argumentação desenfreada, paranóico-crítica: por exemplo, associando as
menções a Sansão (e Dalila, por extensão) e ao cabeleireiro à longa cabeleira,
extravagante para a época, parecendo uma juba, do próprio Breton.
Mais que delírio interpretativo, preparação do método paranóico-crítico de Dali,
há, nesse e em outros ensaios de Breton, um primado do pensamento analógico, da
associação de coisas e símbolos distintos por contigüidade ou afinidade. Escrevia
ensaios do mesmo modo como criava poesia. O mecanismo do sonho pode não ter
tomado conta da realidade, mas dirigiu seu modo de pensar: Deve ser impossível,
57
Grifo de Breton.
58
Grifo de Breton.
59
Cabe lembrar o chavão os olhos são a janela da alma e sua origem em Platão.
24
considerando o que precede, não se chocar com a analogia entre o estado que acabo
de descrever como tendo sido o meu naquela época e o estado de sonho, tal como
concebido geralmente.
A carta que havia recebido de Georges Sanson podia ser um comentário à
discussão da noite anterior, sobre o misticismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e
uma religiosidade disfarçada no âmbito do surrealismo: ...repito que entre nós essa
discussão havia acontecido na véspera, à noite. Vê-se como os fatos dessa ordem
podiam encadear-se em meu espírito. E é isso que é taxado de misticismo em mim. A
relação causal, vêm me dizer, não poderia se estabelecer nesse sentido. Não há
nenhuma relação sensível entre aquela carta que lhe chega da Suíça e tal preocupação
que poderia ser a sua nas vizinhanças do momento em que essa carta foi escrita. Mas
isso não é, pergunto, absolutizar de uma maneira lamentável a noção de causalidade?
Não é deixar passar a palavra de Engels: “A causalidade não deve ser compreendida
senão em ligação com a categoria do acaso objetivo, forma de manifestação da
necessidade”?
É desse modo que aparece na obra bretoniana a expressão acaso objetivo,
associada a um Sansão, seu duplo, mas atribuída a Engels. No entanto, como bem
demonstrou Marguerite Bonnet, ela não se encontra em lugar algum na obra de Engels:
Espanta que o problema da fonte dessa “categoria” assim atribuída a Engels –
e por conseqüência do exato alcance dos termos – não tenha sido levantado na
abundante literatura que Breton e o surrealismo já suscitaram. No pensamento de
Engels aparece com freqüência uma representação do acaso como fenômeno de
superfície, ocultando a necessidade escondida. [...] Mas a palavra “objetivo”, cujo
sentido suscita uma interrogação, não aparece. [...] As obras de doutrina de Plekhanov,
de Bukharine, de Fréville, e tampouco a imprensa revolucionária que examinamos,
nada nos revelaram sobre essa questão. [...] Quanto ao termo objetivo, sublinhemos em
primeiro lugar sua tonalidade marxista. O objetivo é independente da vontade e da
consciência do homem, ele pertence às leis da natureza exterior, mas ninguém duvida
que em Breton ele está carregado das ressonâncias que toma ao final do Curso de
Estética de Hegel, tal como lhe revelou a tradução Bénard – nessa passagem para ele
tão decisiva, onde é definido o humor objetivo, culminação final da arte romântica, que
marca, ele mesmo, o fim da arte. [...] Se o marxismo, através da caução de Engels,
assim dá ao acaso uma base infinitamente mais sólida do que o poderia fazer para
Breton uma teoria como aquela de Cournot (duas cadeias causais que se encontram
25
acidentalmente), é a leitura pessoal e poética que ele fez das páginas de Hegel sobre o
humor objetivo que projeta sobre a idéia do acaso todo o frêmito da vitalidade
concreta e do sentimento agudo do moderno.60
De fato, em uma palestra de 1935, Situação surrealista do objeto,61 Breton
voltaria a falar do acaso objetivo, mas, desta vez, sem remetê-lo a Engels, porém apenas
ao humor objetivo de Hegel, exemplificado através de poemas de Rimbaud, Apollinaire
e Jarry: A atenção que, em todas as oportunidades, me esforcei , de minha parte, por
chamar para certos fatos perturbadores, para certas coincidências desnorteantes, em
obras como Nadja, Os Vasos Comunicantes, e em diversas comunicações ulteriores,
teve como efeito o levantar, com uma acuidade inteiramente nova, o problema do acaso
objetivo, ou, por outras palavras, dessa espécie de acaso através do qual se manifesta
ao homem, de modo ainda muito misterioso, uma necessidade que lhe escapa, muito
embora ele a sinta vitalmente como necessidade. Esta região do acaso objetivo, ainda
quase inexplorada, é, creio eu, a que mais merece, no momento presente, que nela
demos prosseguimento a nossas investigações. É totalmente limítrofe da região que
Dali escolheu para nela exercer a atividade crítico-paranóica. Ela é, por outro lado, o
lugar de manifestações tão exaltantes para o espírito, nela se infiltra uma luz tão
próxima de passar pela luz da revelação, que o humor objetivo se despedaça, até
segunda ordem, contra suas muralhas abruptas.
Mas o que faz que realidade e consciência se subordinem ao sonho? Em Les
vases communicants, Breton dá a resposta. É o desejo: Muito mais significativo é
observar como a exigência do desejo em busca do objeto de sua realização dispõe
estranhamente dos dados exteriores, tendendo egoisticamente a só reter deles aquilo
que pode servir a sua causa. A vã agitação da rua tornou-se pouco mais incômoda que
o movimento das cortinas. O desejo está lá, cortando o tecido que não muda com
rapidez suficiente, depois deixando correr seu fio seguro e frágil entre os pedaços. Ele
não cederá a nenhum regulador objetivo da conduta humana.
Se, de um lado, faz crítica marxista à psicanálise freudiana ao questionar seu
dualismo, de outro procede à freudização do marxismo, ao colocar não só o
comportamento humano mas o mundo todo sob a regência de Eros. Sobrepondo-se ao
estudioso de Hegel e Marx, bem como de Freud, está o hiper-romântico.
Da edição Nau, já citada, dos Manifestos do Surrealismo, bem como de Breton, Oeuvres
61
63
As citações são da edição da Estampa de O Amor Louco, já mencionada.
64
Ver as notas por Marguerite Bonnet, no volume II de Oeuvres Complètes de Breton.
28
Ver, a respeito, o ensaio Surrealismo e esoterismo: a alquimia da poesia de Maria Lúcia Dal
65
Farra, já citado.
29
dominou), por oposição ao instinto sexual que, uns passos mais à frente, iria encontrar
satisfação com a descoberta da colher. Assim se confirma, o mais concretamente
possível, a proposição de Freud: “Esses dois instintos, tanto o sexual como o da morte,
comportam-se como instintos de conservação, no sentido mais estrito da palavra, pois
tanto um quanto o outro tendem a reinstaurar um estado que o aparecimento da vida
veio perturbar.” Tratava-se, porém, de ser de novo capaz de amar, e não só já de
continuar a viver!
Portanto, há, nesse episódio, em cuja interpretação se confundem psicanálise e
magia, um complexo jogo de encontros e desencontros, achados e perdas. Breton
encontrou na realidade o que Cinderela perdera na fábula. Por sua vez, era observado,
encontrado ao acaso, por Suzanne, a mulher que havia perdido. Uma trama dessas
fortalece a interpretação psicanalítica sugerida por Jean-Luc Steimetz 66 para a
associação da colher-sapato à Cinderela e ao modo como essa lenda povoava as
fantasias de Breton: a perda de Suzanne Muzard fora o avesso da história da Gata
Borralheira. Mas esses encontros cruzados não foram apenas escritos, sonhados ou
imaginados: aconteceram. Trata-se de psicanálise, não só do texto, do simbólico, mas
da realidade, extrapolando a esfera do psíquico, de modo conforme ao que Breton
propôs em Les vases communicants.
O Amor Louco vai além do relato de encontros e descobertas de objetos e
símbolos. Seu tema é o acesso à revelação: É como se, de repente, fosse desvendada a
profunda noite da existência humana, como se, tendo a necessidade humana aceito
formar um só todo com a necessidade lógica, todas as coisas adquirissem uma total
transparência, tudo se ligasse entre si como uma cadeia de vidro à qual não faltasse
um só anel. Trata de nada menos que a descoberta da lei de produção do misterioso
intercâmbio entre a matéria e o espírito. É, portanto, um livro sobre magia, embora
Breton não use a palavra ao tratar do modo como o sujeito, movido pelo desejo, altera,
inverte ou subverte a causalidade e a temporalidade.
No encontro, seja com a colher-sapato ou com a amada, resolve-se a tensão entre
a espera e a descoberta, o desejo e a realização. Um curto-circuito quando é abolida a
sensação do tempo, com a embriaguez da sorte. Cresce, diz ele, a consciência de que
existe esse homem vivo que, alguma vez, tentou, ou tenta ainda re-equilibrar-se sobre o
traiçoeiro trapézio do tempo. Assim manifesta-se o acaso objetivo, através de
66
Steinmetz, Jean-Luc, André Breton et les surprises de l’amour fou, Presses Universitaires de
France, Paris, 1994
30
67
Utilizo a tradução de Luiza Neto Jorge, na edição citada de O Amor Louco.
32
Breton mostra como o poema antecipa sua caminhada com Jacqueline, pela
coincidência das referências urbanas no texto e lugares por onde haviam passado
naquela noite. Na frase inicial, a travessia de Les Halles pela viajante que, dançarina,
caminha na ponta dos pés. E que, adiante, parece nadar: a dançarina-mergulhadora. No
final, a estátua de Etienne Marcel na praça ao lado do Hôtel de Ville; o Pont-au-Change,
que leva ao Cais das Flores e ao Quartier; a Rua Gît-le-Coeur, no caminho do Quartier,
vindo pelo Pont-au-Change. Além das correspondências de trechos do poema com
etapas da caminhada, há outras, como na menção aos pombos-correio. O primo de
Jacqueline que já conhecia Breton e lhe indicara seus livros era André Delons: 68 na
época, prestava serviço militar e estava ligado a um centro columbófilo, uma criação de
pombos-correio. Breton acabara de receber uma carta dele, em um envelope timbrado
com o carimbo desse centro columbófilo.
Essas são as correspondências mais flagrantes. Mas Breton vê mais: referências
a seus estados de espírito na época, o desespero, torpores, a sensação de ser um joguete
de forças desconhecidas. Observa que, caminhando lado a lado, só podia ver Jacqueline
de soslaio, da forma como está no poema. Relaciona imagens à prática da alquimia à
sombra da Torre Saint-Jacques e à emblemática figura de Nicolas Flamel. Associa o
grilo do poema a outro, figurante em Os Cantos de Maldoror (no Canto VI, aunciando a
68
Cf. Marguerite Bonnet nas notas para Oeuvres Complètes, vol. II, e Jean-Luc Steinmetz, já
citado.
33
pouco sobre nossas cabeças, até acabar por ser tragada; ou então fomos nós que, a
esses mil e quinhentos metros de altitude, fomos de repente sorvidos por alguma nuvem.
Nuvens são um lugar do encontro entre desejo e realidade: levantar os olhos
daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais
íntimos desejos. E mais: é perceber que toda a questão da passagem da subjetividade à
objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada, pois a surpresa não é mais
que a fusão do natural e do sobrenatural no seio de um mesmo objeto. Leonardo da
Vinci, lembra Breton, pedia a seus alunos que olhassem as manchas em uma parede e
copiassem as formas que viam desenhar-se nelas. Nuvens de Orotava ou manchas na
parede são as telas em que se projetam imagens do desejo: O homem só poderá ser
senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor, aceitar reproduzir, com a máxima
fidelidade, aquilo que uma tela apropriada tiver sabido mostrar antecipadamente a
esses mesmos atos. Ora, essa tela existe. Qualquer existência comporta um todo
homogêneo de fatos aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria encararmos
mais fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.
Breton ainda lembra Baudelaire, que, no poema A Viagem, final da primeira
versão de As Flores do Mal, também associa nuvens ao desejo e ao acaso: As maiores
regiões, a mais pujante aldeia,/ Não continham jamais os encantos secretos/ Dessas
que o acaso com as nuvens delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!71
Essa projeção do desejo é magia, invocação do acaso objetivo: Uma vez
vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso encontro - se tiver valido a
pena interrogá-las - as forças do acaso objetivo, que nada querem saber de
verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende saber se encontra escrito nessa tela
em letras fosforescentes, em letras de desejo.72 [...] Onde poderei eu estar melhor que
no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo,
único rigor que o homem deve se impor?
O final do capítulo é uma apoteose: em mais uma das aproximações bretonianas
de opostos, evoca Almani, personagem da Nouvelle Justine de Sade, masturbando-se no
topo do Etna para misturar seu esperma à lava incandescente; e, na página seguinte, o
Pico de Teide é o diamante, Deria-i-Noor e Koh-i-Noor, equivalente à pedra filosofal.
O Amor Louco se encerra com uma carta de Breton para sua filha Aube, a ser
lida em 1952, quando ela tivesse dezesseis anos. Texto para o futuro, exalta o amor
71
Conforme a tradução no já citado Charles Baudelaire, Poesia e Prosa.
72
Os negritos são do próprio Breton.
36
único e declara a esperança de que viesse a ser loucamente amada. Mas a história dos
encontros de Breton com Jacqueline e das intervenções do acaso objetivo termina,
depois da homenagem ao desejo entre as nuvens de Orotava, com um capítulo sombrio,
onde a tônica dominante é a morte.
A complementaridade de Eros e Tanatos está presente no início do livro, com a
história do par de objetos encontrados, a máscara militar e a colher-sapato, e em seu
final, com o episódio da "casa das raposas". Mudando de estilo, ou de registro, passa da
fusão de reflexão filosófica e poesia em prosa a um relato descritivo. Conta como ele e
Jacqueline, já em 1936, passavam alguns dias no litoral da Bretanha, em Lorient, terra
de origem de sua família e de seu sobrenome. Em uma tarde de mau tempo, caminham
por uma praia deserta e perdem-se na desolação. Sentem que não conseguirão mais sair
dessa extensão sombria. Tomados por uma crescente depressão e uma sensação de
pânico, são incapazes de falar-se: De nada servia esperarmos um pelo outro: impossível
trocarmos uma palavra que fosse, passar um pelo outro sem desviar a cabeça e estugar
o passo. O mal-estar chega ao máximo ao passarem por uma casa desabitada. Vê-a
cercada de grades metálicas. Atravessam um riacho que dá em um costão de praia, um
monte de pedras e, logo adiante, uma antiga fortaleza abandonada. À medida que se
afastam da casa e do desvio com o riacho, a paisagem se abre e passa a sensação
opressiva que os possuíra. Ao refletir sobre o ocorrido, percebe que o mal-estar e a
ruptura eram delirantes. E fica sabendo que a casa por onde haviam passado fora o local
de um crime famoso. Seu dono, Michel Henriot, a quem pertencia o trecho até o velho
forte, havia assassinado sua mulher, para ficar com o dinheiro do seguro. Retornando ao
lugar, Breton reparou que a casa era rodeada por um muro alto de cimento, e não,
conforme havia visto pela primeira vez, por uma rede metálica, o cercado das raposas.
Subindo no muro, viu as redes metálicas que guardavam as raposas: Foi, portanto,
como se no dia 20 de julho (quando passou por lá a primeira vez) esse muro se me
tivesse apresentado transparente.73
Como leituras para a temporada no litoral norte francês, Breton e Jacqueline
haviam trazido dois livros emprestados por um amigo. Um deles, A Raposa de Mary
Webb;74 o outro, A Mulher Transformada em Raposa de David Garnett. A crise no
relacionamento deles não se encerrou ao saírem dos domínios da casa das raposas, como
é dado a entender em O Amor Louco. Logo teriam uma separação prolongada, para
73
Aqui, e na citação seguinte, os negritos são de Breton.
74
Mais tarde, seria filmado, protagonizado por Jeniffer Jones. É a história de uma mulher que se
identifica com raposas e acaba morta pelo marido, um caçador.
37
o que impulsiona o homem, e, por extensão, a história, é, para Breton, algo bem
material, o desejo. De modo coerente, politiza sua busca romântica do amor único. É a
sociedade burguesa, regida pela mercantilização e instrumentalização das relações
humanas, que conspira contra o amor. Encontros que se realizam e culminam na
consagração do amor único, com Jacqueline em O amor louco ou Elisa em Arcano 17,
são acontecimentos políticos, vitórias da poesia, amor e liberdade.
Ainda assim, há ambigüidade no poeta que trafega na zona cinzenta entre
misticismo e materialismo, recusa do transcendentalismo e religiosidade herética.
Misticismo da imanência, sim, e religiosidade sem Deus, mas que permite a Breton
dizer, em O Amor Louco, que enxerga o símbolo da busca surrealista, a síntese do
racional e do real, em uma folha de sempre-viva. É uma visão semelhante à de Jacob
Böhme enxergando o universo em um prato de estanho, e a tantos outros vislumbres de
iluminados que viram o macrocosmos no microcosmos, o todo em uma das partes.
Claro que seu misticismo é herético: Nunca houve qualquer fruto proibido. Só a
tentação é divina.77 Mas leva a paradoxos como, no Segundo Manifesto, sugerir a
permanência física de Nicolas Flamel poucas páginas depois da enérgica profissão de fé
no materialismo dialético, e declarar-se fantasma, entidade equivalente à sombra na
caverna de Platão, no início de Nadja.
É possível enxergar em Breton uma deriva do marxismo para o misticismo? A
fundamentação enfática em Marx e Engels de Les Vases Communicants já não está
presente em O Amor Louco. A tensa relação com o PC explodiria de vez em 1935, com
as denúncias em Posição política do Surrealismo, mostrando a equivalência do regime
soviético com aquilo que a sociedade burguesa tinha de mais retrógrado.
Concomitantemente, o apoio a Trotsky, a traduzir-se no manifesto Por uma arte
revolucionária independente, de 1937. Mas em 1942, em Prolegômenos a um terceiro
manifesto do surrealismo ou não,78 Breton expressaria restrições ao racionalismo de
Trotsky, ao sustentar idéias como a dos Grandes Transparentes e do homem não mais
como centro do universo, porém como parte de um todo.
Em Arcano 17, a simbologia hermética desempenha papel central, a começar
pelo título, referência à carta 17 do Tarô, a Fortuna. Nesse relato, Breton substitui Marx
e Engels por Gérard de Nerval, seu interlocutor imaginário. E em Prolegômenos a um
terceiro manifesto do surrealismo ou não, volta-se novamente contra o que denomina
77
Também em O Amor Louco.
78
Também em Manifestos do Surrealismo, ed. Nau, assim como as citações a seguir.
40
79
Na tradução de Contador Borges no prefácio da edição já citada de Aurélia.
80
Gallimard, coleção Poésie, 1975.
41
Mas, entre a origem a ser recuperada dos místicos e esotéricos, ou a utopia que
irá acontecer dos políticos, entre passado e futuro, Breton dá uma terceira resposta: é o
agora, aqui, no presente. As cenas e episódios reais de O amor louco também
pertencem à ordem do onírico, do sonho, ou, na passagem da casa das raposas, do
pesadelo. O paraíso recuperado está em Orotava, no Pico de Teide, no Cais das Flores e
no restante do percurso entre Montmartre e o Quartier Latin, na Gaspésia de Arcano 17,
e em todos os lugares e momentos em que acontece o encontro e, através dele, se realiza
o desejo. Então, o mundo se confunde com o sonhado.
Nessa perspectiva, não se pode propriamente falar em profecia e antecipação, a
propósito de O Amor Louco e de tantos outros registros na crônica surrealista e em sua
criação literária. Há, isso sim, uma atemporalidade, uma supressão da série cronológica.
O símbolo é recuperado em sua plenitude, e supera nossas categorias de espaço e tempo,
quando a espera se completa no encontro, quer seja de objetos mágicos, de signos, da
pessoa amada, ou de todas essas instâncias, interligadas.
A prosa poética de Arcano 17 pode ser lida como fechando a série de relatos
poéticos, anunciada em Les Pas Perdus, composta por Nadja, Les Vases Communicants
e O Amor louco.
Em outro registro (e outro contexto, pois escrevia exilado nos Estados Unidos),
Breton, em Arcano 17, volta a celebrar a realização amorosa como grande síntese,
superação das antinomias, equivalente ao êxtase, ao estado de graça, à iluminação. O
corpo do livro se encerra com reflexões sobre o sentido de uma frase de Éliphas Lévi,
ao proclamar que Osíris é um deus negro. Termina saudando a publicação do ensaio de
Auguste Viatte sobre o diálogo entre Éliphas Lévi e Victor Hugo, e comentando o modo
como ambos, o mago e o poeta, equipararam Lúcifer, o anjo rebelde – que, ao nascer,
negou-ser a ser escravo, dando à luz duas irmãs, Poesia e Liberdade – à estrela da
manhã, signo da liberdade e do conhecimento, equivalente à própria revolta, a única
revolta criadora de luz; uma luz que só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade
e o amor.
E, no final de Arcano 17, em um apêndice escrito em 1947, os encontros
adquirem mais nitidamente o caráter de uma aventura intelectual. Não são mais as
mulheres, desconhecidas com olhos e olhares fascinantes, que vêm a seu encontro
movidas pelo acaso, porém obras, informações, mesmo quando trazidas por pessoas. Já
de volta a Paris, relata a experiência de plenitude ao finalmente entrar na Torre Saint-
Jacques. Um de seus amigos lhe envia uma mensagem: O maravilhoso. – Atenção,
42
reflexão, lógica não me ajudam em nada. Não me possuo mais. Eu sou, plenamente.
Encontra um desconhecido. Segue-se um enredo através do qual chega a suas mãos o
livro de Jean Richer, Gérard de Nerval et les doctrines ésotériques. Nele foi publicado,
pela primeira vez, o retrato de Nerval com sua frase, manuscrita, Eu sou um outro,
acompanhada por signos cuja decifração é proposta por Breton. Os episódios desses
dias de abril de 1947 o fazem convencer-se de que estivera de fato em companhia de
Gérard de Nerval e de Nicolas Flamel, nas imediações da torre. Os mais familiarizados
com simbologia hermética reconhecerão o sentido da subida à torre Saint-Jacques: é a
entrada no castelo iniciático onde está o cálice do Graal, que equivale à pedra filosofal.
Como interpretar o acaso objetivo, e as idéias e acontecimentos que o
acompanham? O mais produtivo, evitando campos do conhecimento que não interessam
diretamente à literatura, é tomá-lo em seu valor simbólico. Mais precisamente, como
metáfora da poesia e da sua relação com o mundo. Isso, dando atenção ao modo como
se inverte a relação entre signos e coisas, textos e acontecimentos, na obra de Breton. E
à universalidade dessas aventuras intelectuais, buscando superar o abismo entre palavras
e coisas, símbolos e acontecimentos, imaginação e realidade.
Sabe-se que previsões, antecipações e profecias ocorreram na vida e obra de
muitos poetas, surrealistas ou não, como que realizando o que Rimbaud havia dito na
Carta do Vidente. Pode-se distinguir dois níveis da sua ocorrência. Um deles é o do
macrocosmo, dos grandes acontecimentos históricos e períodos temporais, como em
William Blake e seus Poemas Proféticos, ou em Baudelaire, antevendo a modernidade e
descrevendo como seria a vida nas metrópoles, bem como em Walt Whitman, com
relação aos Estados Unidos de hoje, ou no brasileiro Sousândrade vendo de modo
antecipatório Manhattan e uma utopia panamericanista. Exemplos não faltam, e a
constatação de Freud, de que poetas já conheciam o inconsciente, é caso particular de
todo um histórico de previsões e antecipações, no plano dos acontecimentos ou das
idéias.
A imaginação e intuição em poesia e as descobertas em outros campos do
conhecimento são muito mais próximas e interligadas do que supõe o desprezo
cientificista com relação a poetas. Certamente, relacionam-se com a própria natureza da
linguagem: sendo esta ativa, criadora, e não apenas um reflexo do mundo das coisas, é
capaz de produzir realidade, conforme admitem estudiosos da linguagem e do signo que
lhe dão precedência com relação à consciência e à estruturação do real (a exemplo da
“tese de Whorf-Sapir”, entre outras). Textos transgressivos, de ruptura, avançados para
43
Centeno, A Regra do Jogo Edições, Lisboa, 1985. A ortografia foi atualizada na citação.
44