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Sobre o papel fundamental da autonomia na Educação e no

Ensino de Filosofia: uma reflexão a partir de Kant

Márcia Luísa Tomazzoni1

Em meio ao universo kantiano frequentemente encontramos o lema do Aufklärung do


“pensar por si mesmo” como um dever para o homem. Especificamente na obra “Sobre a
Pedagogia”2, encontramos diversas passagens que evidenciam a necessidade de uma educação
voltada para o desenvolvimento do pensamento crítico. Esta preocupação com o
desenvolvimento do aspecto racional do homem pode ser compreendida a partir das
consequências que Kant traz para o plano da existência humana ao conferir-lhe uma dupla
dimensão. Este plano, caracterizado pela dupla dimensão do homem 3, como ser natural e
inteligível, estabelece como um dever o desenvolvimento da autonomia.

Ainda que em Kant a autonomia assuma uma acepção bastante peculiar,


especificamente relacionada à moralidade, a caracterização do termo utilizada no presente
artigo toma o sentido usualmente empregado na discussão no âmbito da educação. Isto é, uma
acepção que observa tanto a autonomia moral, quanto a autonomia intelectual. De modo geral,
por autonomia entende-se a capacidade que o homem possui, enquanto ser racional, de dar
regras ou normas a si mesmo, de conhecer e de agir segundo leis estabelecidas pela própria
razão. Precisamente por esse motivo o homem distingue-se dos demais seres vivos, que não
obedecem senão à lei da natureza. Contudo, o homem nasce com simples disposições 4 e,

1
Aluna do Curso de Licenciatura em Filosofia da UFRGS e bolsista do PIBID Filosofia/UFRGS.
2
Na pesquisa acerca da obra “Sobre a Pedagogia” nos deparamos com a discussão sobre a autenticidade do
texto, como possivelmente não sendo de autoria exclusiva de Kant. A própria obra apresenta, em seu prefácio
da edição brasileira aqui utilizada, uma breve explicação acerca do modo peculiar de sua elaboração, tendo
sido finalizada e publicada (e provavelmente organizada) por Theodor Rink, discípulo de Kant. O manuscrito
“O problema da autenticidade das preleções de Pedagogia”, de Santos R., nos apresenta uma minuciosa
análise das pesquisas e argumentos existentes em torno do problema, a partir da qual se conclui que não há
qualquer razão para, sem maior acuidade, desconsiderar a obra como parte legítima do conjunto da obra
completa de Kant. É possível identificarmos diversas passagens do texto da Pedagogia com o pensamento
kantiano, identificação que pode ser feita e sustentada por meio da comparação com outros textos que não
apresentam tal controvérsia com relação à sua autoria. No presente escrito, recorremos a este recurso, a fim
de indicar a unidade do pensamento kantiano no que diz respeito ao seu discurso sobre a educação.
3
O homem possui uma “dupla cidadania”, pois deve considerar-se a si mesmo como inteligência, enquanto
pertencendo ao mundo inteligível; assim, por um lado está submetido às leis naturais enquanto ser sensível e
portanto pertencente do mundo sensível e, ao mesmo tempo, como pertencente do mundo inteligível
submetido à leis que independem da natureza, que não são empíricas, mas fundadas somente na razão. (Cf.
FMC, IV: 452. 2005, p.102)
4
Do termo original “Naturanlagen” (Pedagogia, IX). Na edição brasileira utilizada, o termo é traduzido como
"disposições naturais". Entretanto, em virtude da abordagem no presente artigo em termos da “dupla

1
diferentemente dos outros animais, precisa desenvolvê-las pelo seu próprio esforço, uma vez
que a natureza não faz isto por ele 5. Assim, a importante tarefa de desenvolver plenamente as
disposições é designada à educação, que segundo Kant, representa por isso o maior e mais
árduo problema que pode ser proposto aos homens.

Na Pedagogia, Kant apresenta uma teoria da educação que orienta como desenvolver
as disposições físicas e intelectuais do homem, observando os cuidados adequados às
diferentes etapas de crescimento. Apesar de suas especificidades, o estímulo ao pensamento
crítico está presente em todas as etapas, mostrando a necessidade de cultivar-se desde cedo no
homem a capacidade de usar a própria razão6. Como meio de desenvolver o pensamento
crítico, Kant afirma: “no cultivo da razão é preciso praticar o método de Sócrates”7 (Cf.
IX:477. 1999, p. 70). No Manual dos cursos de lógica geral 8, Kant afirma que o método
socrático é o método ideal para o ensino de filosofia. Vemos claramente nesse modo de
conceber a filosofia a sua concepção de que o pensamento filosófico está intimamente ligado
ao pensamento crítico, concepção que é igualmente sustentada na Crítica da Razão Pura e é
ilustrada pelo jargão “não se pode aprender a filosofia (...) só se pode aprender a
filosofar”(CRP, A838/B866). A afirmação é inteligível a partir da perspectiva que aponta a
filosofia como disciplina que só pode ser aprendida pelo próprio exercício da razão; dito de
outro modo, como expressão legítima do pensamento de um ser autônomo.

É a partir deste contexto que pretendemos apresentar um panorama geral permeado


por uma reflexão da visão kantiana acerca da educação e do ensino de filosofia, mostrando
que, para Kant, os objetivos da educação dependem de um ensino competente para promover

dimensão”, foi necessário utilizar somente “disposições”. Isto porque o termo relativo à “natural” em
“Naturanlagen” faz referência às disposições com as quais o homem nasce – portanto, sendo a ele “naturais”
-, enquanto na distinção aqui utilizada entre dimensão natural e dimensão inteligível, o termo "natural"
reporta-se ao aspecto sensível, material, corpóreo. Assim, optou-se por utilizar simplesmente o termo
“disposições” e explicitar de outras formas que estas nascem com o homem e, portanto, são próprias e
originárias dele. Ainda, é conveniente dizer que talvez seria mais fiel à ideia que Kant pretende transmitir
utilizar a noção de “potencialidade”, uma vez que na literatura filosófica o termo “disposição” é usado para
expressar algo atual, enquanto Kant se refere a uma potencialidade, entendida como a capacidade para
desenvolver algo, que, portanto, não é atual. Contudo, para não haver discrepância nos usos do termo, em
meu texto e na tradução disponível, mantive o verbete utilizado pelo tradutor.
5
Cf. Pedagogia, IX:441. 1999, p.12.
6
“(...) não é suficiente treinar as crianças, urge que aprendam a pensar”. (Pedagogia, IX:450. 1999, p. 27)
7
O método socrático é caracterizado por ser uma investigação dialógica, isto é, o tema ou questão em pauta é
investigado por meio de perguntas e respostas mútuas. No contexto da educação, esta investigação dialógica
se dá entre professor e aluno.
8
Kant, I. Manual dos cursos de Lógica geral. Trad. Fausto Castilho. 2. ed. Campinas: Editorada UNICAMP,
2003. Obra que apresenta uma definição de quais seriam os métodos mais adequados para o ensino e
aprendizagem dos diferentes tipos de conhecimento.

2
o desenvolvimento da autonomia, uma vez que esta é condição para o avanço 9 da humanidade
rumo ao esclarecimento e à moralidade.

A concepção kantiana da educação

Nas páginas iniciais de “Sobre a Pedagogia”, Kant anuncia: “o homem não pode se
tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”
(Pedagogia, IX:443.1999, p.15). Não é evidente, à primeira vista, como devemos
compreender a afirmação feita por Kant, que aponta para uma espécie de poder transformador
da educação, um poder tal capaz de formar o “verdadeiro” homem. Contudo, a obra desvela
satisfatoriamente o significado da expressão, colocando a perfectibilidade humana como
ponto de partida para o desenvolvimento da pedagogia. Isto é, a partir da possibilidade de
aperfeiçoamento da natureza humana e de uma identificação das disposições a serem
desenvolvidas é que se deve elaborar um projeto pedagógico para a humanidade. Ao nascer, o
homem possui disposições que não estão nele prontas e que precisam ser desenvolvidas. Mas
uma vez que não nasce imediatamente apto a fazer isto sozinho, o homem necessita da ajuda
de outros10: é precisamente este o papel que cabe à educação. Assim, a pedagogia kantiana
pretende dar conta de uma formação que vai da educação física à educação moral ou prática,
cobrindo as distintas disposições do homem. A educação física trata da dimensão natural do
homem, enquanto a educação moral11 trata da dimensão inteligível.

Enquanto ser natural, o homem não se distingue dos outros animais. Contudo,
distintamente dos outros animais, o homem é capaz de pensar e agir segundo regras. Nas
palavras de Kant, o homem encontra em si mesmo uma faculdade pela qual se distingue de
todas as outras coisas, e até de si mesmo, na medida em que ele é afetado por objetos; essa
faculdade é a razão(Cf. FMC, IV:452. 2005, p. 101) 12. Assim, enquanto racional, o homem
deve educar sua natureza inteligível. Tal dimensão abrange dois aspectos a serem
desenvolvidos: a sua disposição para a sociabilidade e a sua disposição para a moralidade. O

9
Este “avanço” deve ser compreendido a partir da perspectiva do respeito pela dignidade humana. Pode-se
dizer que houve um avanço considerável neste sentido, se observarmos o gradual aumento, na história da
humanidade, da preocupação com o estabelecimento e cumprimento de leis que visam assegurar o respeito
pela vida e pela dignidade humanas.
10
Cf. Pedagogia, IX:441. 1999, p.12.
11
A partir daqui, utilizarei apenas “educação moral”, o que equivale à “educação prática”.
12
Cf. Antropologia, VII:127. 2006, p. 27.

3
desenvolvimento da moralidade é o ponto mais importante, uma vez que esta representa o
destino do homem, enquanto ser racional.

Quanto a este ponto específico, pode-se afirmar que as recorrentes menções na


Pedagogia à “destinação do homem”, ao “destino da espécie humana” e à “perfeição da
natureza humana”, não deixam dúvida: a educação é o único modo pelo qual o homem, como
espécie, pode alcançar um estágio tal em que tenha desenvolvido adequadamente todas as
suas disposições. Em particular, a que lhe torna passível de imputação moral, a saber, a
liberdade, que é intrínseca à sua natureza racional. Grosso modo, para entendermos o projeto
que Kant vislumbra para a humanidade, é necessário ter em mente que é especificamente em
virtude de sua natureza racional que o homem é capaz de agir sob regras ou princípios,
fornecidos pela própria razão (aqui entendida como a faculdade compartilhada por todos os
seres racionais). Isto é o que se entende por autonomia, segundo o que o próprio termo sugere
uma auto-submissão ou auto-imposição de leis. Na verdade, Kant explica a autonomia como
expressando estas duas relações concomitantemente, isto é: ao mesmo tempo em que o
homem está submetido à lei, é ele quem se submete, pelo exercício da própria vontade,
submetida à razão. A moralidade pode, então, ser definida como a liberdade da vontade de um
ser racional, o qual, não fosse racional, teria sua vontade submetida exclusivamente às leis da
natureza.

Na Pedagogia encontramos uma indicação das disposições que devem ser


desenvolvidas pela educação e como ela deve fazer isto. Kant apresenta essa indicação como
etapas ou estágios do processo de educação. São: 1) fazer o homem sair do estado de
animalidade e de selvageria, o que é possível pela disciplina 13; 2) torná-lo culto, através da
instrução e da aquisição de conhecimentos e do desenvolvimento de habilidades; 3)
desenvolver a prudência14, pois esta prepara o homem para tornar-se um cidadão, e; 4)
desenvolver no homem a moralidade, etapa que deve promover o desenvolvimento e
aperfeiçoamento de seu caráter moral (Cf. Pedagogia, IX:449-450. 1999, p. 25-26).

A ordem imposta indica de modo enfático que, uma vez que o homem apresenta em si
mesmo disposições com naturezas distintas, deve-se dar distinto tratamento ao modo de
desenvolvimento destas. Na obra “A Religião nos limites da simples razão” encontramos uma

13
“ A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das próprias
leis”. (Cf. Pedagogia, IX:442. 1999, p. 13)
14
Kant relaciona a formação da prudência com o desenvolvimento de uma aptidão para relacionar-se e
comportar-se em sociedade com civilidade.

4
divisão semelhante:

Da disposição originária para o bem na natureza humana. Quanto ao seu fim, podemos
com justiça reduzi-la a três classes como elementos da determinação do homem: 1°. a
disposição para a animalidade do homem, como ser vivo; 2° a sua disposição para a
humanidade enquanto ser vivo e racional e 3°. a disposição para a sua personalidade,
como ser racional e, simultaneamente, suscetível de imputação. (...) são originárias
porque pertencem à possibilidade da natureza humana. (Religião, VI:26-28. 1992, p.
32-34)

As classificações apresentadas podem ser igualmente compreendidas a partir da


perspectiva da dupla dimensão do homem. Embora os textos da Pedagogia e da Religião
tenham objetivos e temas distintos, uma vez abstraídos os diferentes enfoques pode-se dizer
que ambos utilizam o mesmo critério para a classificação. É conveniente ressaltar que a dupla
dimensão não implica necessariamente em uma dualidade das disposições do homem; o
homem é, ao mesmo tempo, natural e racional. Sob a perspectiva de uma visão unificada e
total do ser humano, é possível afirmar que a interface entre as duas dimensões apresenta
nuances, as quais são devidamente contempladas pelas classificações apresentadas na
Pedagogia e na Religião (que não apresentam apenas duas disposições, mas sim disposições
oriundas de duas naturezas distintas)15.

Assim, Kant apresenta a educação física e a educação moral reportando-se a


disposições de naturezas distintas e, por isto, apresentando modos distintos de ensino. A
primeira é passiva, bastando ao aluno a prática, a disciplina e as orientações do professor.
Distintamente, na educação moral é de suma importância o cuidado para que o educando
aprenda a agir não segundo o hábito ou mera repetição, mas segundo princípios, os quais o
farão praticar o que é moralmente bom pelo motivo do bem em si16. Portanto, o
desenvolvimento da moralidade requer que o homem compreenda o fundamento da ação e
aprenda a agir segundo princípios, os quais lhe são acessíveis na medida em que é racional.

Todavia, podemos considerar a autonomia sob dois aspectos: enquanto relacionada ao


15
É possível reunir os itens 2 e 3 da classificação da Pedagogia sob a 2ª classe da divisão da Religião, pois
ambos referem-se à disposição do homem para a sociabilidade ou humanidade. Retomo a passagem da
Religião para ressaltar a convergência acerca deste ponto: “Se considerarmos as três disposições
mencionadas segundo as condições da sua possibilidade, descobrimos que a primeira não tem por raiz razão
alguma, a segunda tem decerto por raiz a razão prática (…); só a terceira tem como raiz a razão por si mesma
prática, a saber, a razão incondicionalmente legisladora (...)”. (Religião, VI:28. 1992, p. 34)
16
“O hábito retira o valor moral das boas ações precisamente porque prejudica a liberdade do espírito e leva,
além disso, à repetição irrefletida do mesmo ato, tornando-se com isso ridículo”. (Antropologia, VII:149.
2006, p. 48)

5
entendimento e enquanto relacionada à vontade. Intelectualmente livre é o homem que
desenvolveu sua autonomia no campo teórico; enquanto que moralmente livre é o homem que
desenvolveu inteiramente sua autonomia – no campo teórico e prático – uma vez que, para
Kant, a autonomia representa a própria liberdade da vontade de um ser racional 17. Contudo,
ainda que a educação moral expresse o sentido forte de autonomia na educação e, portanto,
deva receber uma atenção mais acurada, o ensino na educação física também deve em certa
medida desenvolver a independência do homem. Para que tenha consciência da necessidade
da autodisciplina e dos limites das próprias forças, deve-se impedir que o homem crie hábitos,
quando estes não são para o próprio bem e em conformidade com as suas disposições
naturais.

Outro texto de Kant que demonstra explicitamente a preocupação com o


desenvolvimento da autonomia é “Resposta à pergunta: que é esclarecimento?”18. No texto, a
saída da menoridade intelectual (ou seja, o esclarecimento) é colocada como um dever do
homem para consigo mesmo:

Um homem sem dúvida pode, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por
algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento [Aufklärung]. Mas
renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa
ferir e pisar nos sagrados direitos da humanidade. (VIII:039. 2005, p. 69).

Se uma época não realiza este passo, estará de alguma forma retardando o processo de
aperfeiçoamento ao qual a humanidade está destinada. A saída da menoridade intelectual na
direção do esclarecimento pode ser compreendida como o desenvolvimento da autonomia
intelectual do homem, já apontada na Pedagogia como fundamental na educação. Essa saída
da menoridade representa a libertação do homem do jugo dos interesses e pensamentos de
outrem; de plena posse de sua autonomia, o homem é capaz de posicionar-se livremente. Na
Pedagogia também há a referência explícita à importância fundamental de cada geração no
aperfeiçoamento da educação:

17
“(...) vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e mesma coisa”. (FMC, IV:447. 2005, P. 94)
18
“Diversos motivos levam-nos a julgar que, sem ser perfeita, a transcrição pela palavra “esclarecimento”
talvez seja de todas a melhor, principalmente porque acentua o aspecto essencial da Aufklärung, o de ser um
processo (...) que a razão humana efetua por si mesma para sair do estado que Kant chama menoridade (…)”.
(Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento?”, 2005. p. 63).

6
Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre
melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições
naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim,
guie toda a humana espécie a seu destino”. (Pedagogia, IX:446. 1999, p. 19)
Talvez a educação se torne sempre melhor e cada uma das gerações futuras dê um
passo a mais em direção ao aperfeiçoamento da humanidade, uma vez que o grande
segredo da perfeição da natureza humana se esconde no próprio problema da
educação. (Pedagogia, IX:444. 1999, p. 16)

Educar é educar tendo em vista este ideal de humanidade 19, cujo ápice encontra-se na
moralidade. Assim, a educação deve guiar todos os seus esforços na construção de uma
civilização orientada na direção desse ideal.

Por fim, podemos dizer que uma educação voltada para a autonomia, é, em última
análise, uma educação para a liberdade. Desse modo, torna-se forçoso investigar se Kant
aponta algum meio ou atividade conducentes ao desenvolvimento da autonomia. Ainda é
possível perguntar acerca da natureza de um conhecimento adquirido de maneira racional, isto
é, a partir de princípios. Partindo da resposta à segunda questão, encontrada na primeira das
Críticas, vamos sugerir que a atividade filosófica, pelo seu universo de investigação e modo
peculiar de aprendizado, representa um meio legítimo de desenvolver a autonomia. Com isto,
não está a se afirmar que só a disciplina de filosofia possa desenvolver essa capacidade, mas
que, uma vez que se pretenda ensinar ao aluno a atividade filosófica – o próprio filosofar -,
isto só pode ser feito pelo desenvolvimento de um pensamento crítico.

A Filosofia como expressão do pensamento crítico é o filosofar

Na “Crítica da Razão Pura” Kant apresenta dois aspectos sob os quais podemos
distinguir o conhecimento: ele pode ser considerado objetiva e subjetivamente. Com esta
distinção, o filósofo pretende chamar a atenção para o modo como é produzido o
conhecimento no sujeito (subjetivamente), particularmente o conhecimento racional (em

19
Para compreender melhor o “ideal de humanidade” para Kant, é importante conhecer o que ele considera por
“Reino dos Fins”. Por “Reino dos fins”, considerando os propósitos do presente artigo, a seguinte citação
deve bastar para esclarecer: “O filósofo de Königsberg é tributário, entre seus feitos, do tribunal da auto-
crítica da razão e da elaboração de um sistema ético que culmina na autonomia moral do ser humano. Este
sistema ético permite pensarmos a humanidade simultaneamente, enquanto um indivíduo que oferece a si
mesmo a lei pela qual regula sua ação e enquanto coletivo de indivíduos que se orientam pelos mesmos
princípios e que, deste modo, abrem caminho para a concretização de uma comunidade ética universal, o que
Kant denomina como Reino dos Fins.” (SANTOS, R., 2007, p. 2).

7
oposição ao histórico) e, mais especificamente, a peculiaridade do conhecimento filosófico.
Mesmo entre os conhecimentos racionais20, a Filosofia apresenta uma peculiaridade no seu
modo de apreensão que resulta naquela caracterização segundo a qual ela é uma disciplina
necessariamente vinculada ao pensamento crítico. É a partir da distinção entre conhecimento
objetivo e subjetivo que tentaremos compreender o célebre jargão kantiano encontrado na
Crítica da Razão Pura, o qual inevitavelmente suscita uma profunda questão sobre o ensino de
filosofia:

(...) não é possível aprender qualquer filosofia (...) Só é possível aprender a filosofar,
ou seja, exercitar o talento da razão, fazendo-a seguir os seus princípios universais em
certas tentativas filosóficas já existentes, mas sempre reservando à razão o direito de
investigar aqueles princípios até mesmo em suas fontes, confirmando-os ou
rejeitando-os. (CRP, A838/B866).

Para compreendermos a distinção estabelecida por Kant e sua perspectiva acerca do


ensino de filosofia, partiremos da objetividade do conhecimento. O aspecto objetivo diz
respeito à origem de seu conteúdo; isto é, o conhecimento é objetivamente considerado,
independentemente da subjetividade do cognoscente. Objetivamente um conhecimento pode
ser racional ou empírico. É racional quando tem origem e sede na razão humana, é a priori,
isto é, sem qualquer apelo à experiência; e é um conhecimento empírico quando é derivado de
algum dado da experiência. Assim, podemos apontar como exemplo: quanto ao seu conteúdo,
a Matemática é uma disciplina racional e a História uma disciplina empírica.

Considerando o aspecto subjetivo do conhecimento, isto é, o modo como o


conhecimento ocorre no sujeito, ele será um conhecimento histórico ou um conhecimento
racional – a respeito de um conhecimento objetivamente racional ou empírico21. O
conhecimento é histórico quando para o sujeito ele é somente um dado externo, uma simples
reunião de informações que lhe foi dada por outrem. Tal é a característica essencial deste
conhecimento, pelo qual se pode facilmente reconhecê-lo: o sujeito não é capaz de extrair
nada além daquilo que foi recebido. Isto porque é impossível reformular um conhecimento
histórico ou utilizá-lo em conexão com outros conhecimentos. Um exemplo disto ocorre
20
Objetivamente um conhecimento é racional quando tem origem e sede na razão humana. Kant define a
Matemática e a Filosofia como conhecimentos racionais.
21
“Da mesma forma que um conhecimento pode ser objetivamente racional e subjetivamente histórico, tal
como o do aluno que memorizou o sistema de Wolff, o conhecimento pode ser objetivamente histórico e
subjetivamente racional: basta que eu confronte a palavra do mestre ou o texto do livro com as exigências da
razão” (PERRIN, “A história das idéias e a didática: dois perigos para o ensino filosófico”).

8
quando alguém memoriza um sistema filosófico e é capaz de recitar todos os seus princípios e
mesmo sua organização interna; contudo, se lhe for solicitada qualquer nova formulação ou
princípio será incapaz de fornecer22.

Distintamente, um conhecimento é racional quando é extraído de princípios, os quais


têm origem na própria razão do sujeito cognoscente. Assim, uma vez que tal conhecimento
não foi recebido pronto, mas foi constituído pelo próprio sujeito, este tem autonomia em
relação a tal conhecimento. Segundo Perrin, a marca infalível da racionalidade de tal
conhecimento é o poder de rejeitar o que foi aprendido. De fato, podemos dizer que o
conhecimento racional é justamente caracterizado pela autonomia que o sujeito possui em
relação a ele, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo – mas, fundamentalmente, caracterizando-se pela
possibilidade de rejeição. Vemos esta caracterização do conhecimento racional na citação de
Kant:

Os conhecimentos racionais que o são objetivamente (ou seja que só podem


inicialmente se originar da própria razão dos homens) podem portar também
subjetivamente este nome só quando provenientes de fontes universais / da razão, ou
seja, de princípios, fontes das quais também pode emergir a crítica e até mesmo o
repúdio daquilo que se aprendeu. (CRP, A836-837/B864-865)

No contexto desta passagem, Kant afirma que a Matemática é a única disciplina que só
pode ser aprendida racionalmente. O conhecimento matemático, pela sua própria natureza,
não possibilita um conhecimento histórico: uma vez que é impossível aprendê-la senão pelo
exercício da razão. Por isso, “dentre todas as ciências racionais (a priori), portanto, só é
possível aprender Matemática, mas jamais Filosofia (a não ser historicamente); no que tange à
razão, o máximo que se pode é aprender a filosofar” (CRP, A837/B865). Essa afirmação pode
ser compreendida a partir da tese que Kant endossa na primeira Crítica, sobre a inexistência
da Filosofia como ciência efetiva. O que existem são diversas tentativas filosóficas, nenhuma
delas tendo se mostrado, até então, correta e duradoura, tal como o sistema de conhecimentos
que constitui a ciência Matemática. De qualquer modo, mesmo que suponhamos a existência
de uma Filosofia única, ainda assim, o conhecimento daquele que a aprendesse não deixaria
de ser um conhecimento apenas histórico (Cf. OBIOLS, 2002, p. 74-75). Nas palavras de

22
“Formou-se segundo uma razão alheia, mas a faculdade imitativa não é a faculdade produtiva, ou seja, o
conhecimento não se lhe originou a partir da razão; embora, é verdade, se trate objetivamente de um
conhecimento racional, subjetivamente não passa de um conhecimento histórico”. (CRP, A836/B864)

9
Kant:

Aquele que quer aprender a filosofar (...) só pode considerar todos os sistemas de
filosofia como história do uso da razão e como objetos para o exercício de seu talento
filosófico. (apud. OBIOLS, 2002, p. 75)

Distintamente da Matemática, o conhecimento filosófico abre a possibilidade para um


conhecimento meramente histórico: tal é o caso de quem aprendeu um sistema filosófico 23.
Contudo, como conhecimento racional de um indivíduo, o conhecimento filosófico já
constitui o próprio “filosofar”. Assim é possível dizer que o próprio processo do filosofar
(compreendido como análise, crítica, reflexão, formulação, aceitação, rejeição de ideias) se
caracteriza fundamentalmente por ser uma forma autônoma de pensar.

Dado isto, podemos dizer que o conhecimento filosófico que na sua constituição é
destituído desta forma autônoma de pensar – isto é, destituído de sua racionalidade -, consiste
em um conhecimento puramente histórico. De modo que a autonomia é condição essencial
para a construção de um saber ou conhecimento filosófico que se pretenda como
conhecimento racional, não meramente histórico. Racionalmente, só nos é possível percorrer
e analisar de maneira crítica cada uma das tentativas filosóficas existentes, o que já constitui
propriamente mais uma tentativa filosófica.

Mas como desenvolver no aluno um pensamento crítico, tal qual o indicado pela
perspectiva kantiana como constitutivo do “filosofar” e qualquer outro conhecimento
constituído de modo racional? Encontramos em pelo menos duas obras kantianas uma
indicação de resposta à questão. No “Manual dos cursos de Lógica geral” Kant define o
método “dialógico” ou “socrático”24 como aquele que envolve aluno e professor num processo
de investigação onde as perguntas se dirigem ao intelecto e não meramente à memória (para
este último o método ideal é chamado “catequético”25). Em “Sobre a Pedagogia” Kant aponta
explicitamente “o método de Sócrates” como o método ideal no cultivo da razão (Cf.

23
Cf. OBIOLS, em “Uma introdução ao ensino da Filosofia”, para Kant não é possível que aprendamos
Filosofia porque para ele não há um saber filosófico aceito, como há um saber matemático; o que existe são
tentativas de saber filosófico em sistemas que não foram duradouras em todas as suas partes. (2002, p. 75)
24
“Com efeito, o diálogo socrático por perguntas ensina o aprendiz a conhecer seus próprios princípios
racionais e aguça sua atenção para eles.” (KANT, MCLG, IX:150. 2003, p. 297)
25
“(...) o método catequético vale tão somente para os conhecimentos empíricos e históricos, ao passo que o
dialógico vale, ao oposto, para os racionais”. (KANT, IX:150. 2003, p. 297).

10
Pedagogia, IX:477). Ainda no Manual de Lógica, Kant aponta o método pelo diálogo
socrático como o método adequado para o ensino dos conhecimentos racionais, a Filosofia e a
Matemática.

Considerações finais

Assim, inspirados em Kant, por duas razões sugerimos a Filosofia - enquanto objeto
de aprendizado – como representando um meio legítimo para o desenvolvimento da
autonomia. Primeiro, uma vez que o pensamento crítico se manifesta na capacidade de
compreender, analisar, saber avaliar e questionar o que foi aprendido mediante critérios
racionais - o que torna possível a nossa aceitação e rejeição de ideias -, infere-se que o próprio
aprendizado de filosofia, como exercício racional, que emerge do próprio uso que o homem
faz da sua razão, exemplifica um genuíno processo de conhecimento caracterizado
essencialmente pela autonomia. Segundo, o universo de investigação da Filosofia se estende
por toda a dimensão da compreensão humana, nas palavras de Kant, podendo ser resumido na
pergunta “o que é o homem?”26. Assim, a Filosofia é capaz de desenvolver a autonomia
teórica e prática do indivíduo. Pelas razões expostas, fica evidente o porquê de a Filosofia –
como disciplina escolar – ser frequentemente chamada à responsabilidade no sentido de
desenvolver um pensamento crítico que não se limite ao campo teórico, mas se estenda ao
campo prático (frequentemente referido na preparação para o exercício pleno da cidadania).

Especialmente no que diz respeito ao erro que consiste em apresentar a filosofia como
algo acabado, o que ocorre no ensino que substitui a filosofia por história da filosofia,
podemos dizer que, para Kant, todo o ensino deveria ter como espinha dorsal o estímulo ao
aprimoramento contínuo visando à produção de novos conhecimentos. As demais disciplinas
além da filosofia também deveriam ser ministradas com um espírito crítico, tornando possível
pela educação, a formação de homens capazes de dar continuidade à ciência e à busca pelo
esclarecimento, viabilizando às próximas gerações sempre um avanço maior que o das
gerações anteriores.

26
“Kant define a Filosofia como um sistema de conhecimentos racionais a partir de conceitos em estreita
relação com os últimos fins da razão humana. A Filosofia, deste modo, deixa-se resumir nas seguintes
questões: “o que posso conhecer?”, “o que devo fazer?” e “o que posso esperar?” e “o que é o homem?”.
Conforme Kant, a última indagação incorpora as anteriores. A pergunta sobre o ser humano é, portanto,
central no sistema filosófico de Kant”. (SANTOS, R.. 2007, p.3)

11
REFERÊNCIAS

KANT, Immanuel. Antropologia de um ponto de vista pragmático. Trad. Clélia Aparecida


Martins. São Paulo: Iluminuras, 2006. 251 p.

______. A religião nos limites da simples razão. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1992.
210 p.

______. Crítica da razão pura. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. 2 ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. 421 p.

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