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Em toda sentença, ... em todo ato infantil [dos dois aos cinco anos de idade] é revelada
uma completa ignorância das coisas mais simples. É claro que eu não cito estas
expressões para desprezar os absurdos infantis. Ao contrário, eles me inspiram respeito,
porque são a evidência do trabalho gigantesco que acontece na mente da criança que,
aos sete anos de idade, resulta na conquista deste caos mental.
Kornei Chukovsky, From Two to Five
Um grupo de crianças de cinco anos de idade estava ouvindo "A sopa de pedras", uma
história do folclore recontada por Mareia Brown. "A sopa de pedras" é a história de três
soldados famintos que fizeram alguns camponeses lhes dar comida, fingindo fazer sopa
de pedras. "As pedras derretem?" pergunta Rose, uma das crianças? A professora
Vivian Paley relata a conversa que seguiu a essa pergunta:
A Sra. Paley sugere pesar as pedras para ver se elas vão perder peso enquanto fervem.
As crianças descobrem que elas pesam um quilo no início. Depois de terem fervido
novamente, acontece a seguinte conversa:
Eddie: Ainda pesam um quilo. Mas estão menores.
Wally: Muito menores.
Professora: Elas têm o mesmo peso. Um quilo antes e um quilo agora. Isso significa que
elas não perderam peso.
Eddie: Elas só ficaram um pouquinho menores.
Wally: A balança não consegue ver as pedras. Ei, uma vez em Michigan havia três
pedras emuma fogueira e elas derreteram. Desapareceram. Nós vimos.
Deana: Talvez as pedras da história sejam mágicas.
Wally: Mas estas não são.
(Adaptada por Paley, 1981, p. 16-18.)
Podemos ver que, quando a Sra. Paley provoca as crianças a ajustar o mundo da história
e o mundo dos seus sentidos, as crianças exibem um padrão de pensamento que é típico
durante os anos de pré-escola - uma mistura de lógica profunda e pensamento mágico.
As crianças acreditam, corretamente, que, quando as pedras são "cozidas", elas ficam
menores e que as pequenas devem ser mais leves do que as grandes. Ao mesmo tempo,
estão dispostas a acreditar que, realmente, existem pedras mágicas que derretem e, por
isso, não entendem a mensagem de "A sopa de pedras". Sua maneira de pensar parece
oscilar de um lado para o outro, entre a lógica e a mágica, a ponderação e a ignorância,
o racional e o irracional.
Ler para crianças pequenas transmite a idéia de que ler é uma atividade agradável;
também serve para revelar uma riqueza de conhecimentos culturais amplamente
arraigados.
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Uma colcha de retalhos similar, composta de competência e incompetência, pode ser
encontrada na capacidade de lembrar dos pré-escolares. É muito comum as crianças
pequenas lembrarem os nomes e as descrições de seus dinossauros favoritos, detalhes
das idas ao consultório do médico, ou a localização do seu brinquedo preferido com
uma precisão que pode surpreender seus pais (Baker-Ward et ai., 1993; De Loache et
ai., 1985). Ao mesmo tempo, elas têm dificuldade para se lembrar de um conjunto de
palavras ou de brinquedos imediatamente depois de serem solicitadas a se lembrar eles,
tarefa que seria fácil para crianças mais velhas e adultos (Schneider e Bjorklund, 1998).
A qualidade dos desempenhos intelectuais das crianças pequenas suscita, de uma nova
maneira, as questões básicas do desenvolvimento. Será que a primeira infância deve ser
considerada um estágio distinto do desenvolvimento? Mas, se trata de um estágio, como
vamos considerar a desigualdade do pensamento das crianças pequenas? Será que as
crianças pequenas são simplesmente inconsistentes? Ou, se seus processos de
pensamento variam de uma tarefa para a próxima, porque estão mais familiarizadas com
algumas tarefas do que com outras? Ou quem sabe suas habilidades variam, porque as
partes do seu cérebro que governam essas habilidades amadurecem em velocidades
diferentes? Na tentativa de responder essas perguntas, os estudiosos do
desenvolvimento devem ser sensíveis à possibilidade de que os pré-escolares possam, às
vezes, parecer ilógicos ou incapazes de se lembrar de eventos apenas porque suas
habilidades de linguagem, ainda frágeis impedem-nos de entender completamente o que
lhes é dito ou de comunicar adequadamente seus pensamentos às outras pessoas.
Começamos nossa discussão sobre essas questões esboçando o relato de Piaget sobre o
desenvolvimento cognitivo na primeira infância, um relato que dominou o estudo do
desenvolvimento mental na segunda metade do século XX. Como no caso da fase de
bebê, as observações empíricas de Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo das
crianças têm sido amplamente repetidas, mesmo quando explicações teóricas de suas
causas tenham sido desafiadas. Sua influência tem sido tão grande que muitos
especialistas que discordam das teorias de Piaget usam o trabalho dele como ponto de
partida para o seu próprio trabalho.
Em torno dos sete ou oito anos de idade, acreditava Piaget, as crianças tornam-se
capazes de realizar operações mentais, "ações" mentais em que elas combinam, separam
e transformam as informações de uma maneira lógica, como fazem, por exemplo,
quando arrumam sua coleção de selos de acordo com o país de origem e o valor
estimado ou montam um brinquedo novo e complexo recém-tirado da caixa. Elas estão
mais capacitadas para formular estratégias explícitas porque conseguem pensar através
de ações alternativas e modificá-las mentalmente antes de realmente agir. Até as
crianças conseguirem envolver-se em operações mentais, seu pensamento está sujeito a
limitações do tipo que era evidente quando a classe da Sra. Paley tentou responder às
perguntas sobre "A sopa de pedras".
Piaget afirmava que as crianças pequenas cometem esse erro porque se concentram em
apenas uma dimensão do problema - nesse caso, a altura da água nas canecas. Elas são
incapazes de considerar a altura e a largura das canecas simultaneamente. Entretanto,
uma vez que sejam capazes de operações mentais, as crianças negam firmemente que a
quantidade de água tenha mudado, presumivelmente porque podem considerar vários
aspectos do problema ao mesmo tempo. Essa capacidade permite a elas coordenar
mentalmente os efeitos relativos das mudanças na largura e na altura. Também lhes
permite imaginar o inverso do processo que testemunharam e, assim, pensar através do
que aconteceria se a água fosse despejada de volta em sua caneca original.
Retornaremos à pesquisa baseada nesses exemplos no Capítulo 12, porque ela também
desempenha um papel fundamental nas discussões sobre a natureza do desenvolvimento
mental na segunda infância.)
No segundo exemplo clássico da incapacidade de coordenar duas perspectivas, é
mostrado às crianças pequenas um conjunto de contas de madeira, a maioria delas
marrons e as restantes brancas. Quando lhes perguntam "o que há mais, contas marrons
ou contas de madeira?", elas respondem que há mais contas marrons. Segundo Piaget,
os pré-escolares cometem esse erro porque se concentram em apenas um nível de
categorização de cada vez. Ou seja, eles conseguem pensar nas contas como divididas
em duas subclasses (marrons versus brancas) e conseguem pensar na classe comum
unida (contas de madeira), mas não conseguem pensar nos dois níveis simultaneamente.
Segundo Piaget, na segunda infância, as crianças podem manter em mente os dois níveis
de categorização e, por isso, não são conduzidas a esse tipo de erro.
Piaget considerava a incapacidade das crianças pequenas para manter em mente dois
aspectos de um problema como o cerne do que ele considerava as três características
mais salientes do pensamento durante a primeira infância: (1) egocentrismo, (2) a
confusão entre aparência e realidade, e (3) raciocínio não-lógico.
EGOCENTRISMO
Fala egocêntrica
A qualidade egocêntrica do pensamento das crianças também aparece em sua fala.
Recorde do Capítulo 8, por exemplo, a tendência das crianças pequenas para se
envolverem em "monólogos coletivos", em vez de verdadeiros diálogos, quando
brincam juntas. Esse comportamento sugeriu a Piaget que as crianças pequenas, devido
à sua incapacidade de descentralizar, nem sequer tentam se comunicar. Essa mesma
qualidade torna-se evidente em experimentos em que duas crianças pequenas estão
sentadas diante de uma mesa e são solicitadas a se comunicar uma com a outra sobre
conjuntos de objetos idênticos dispostos diante delas. Em experiências desse tipo, uma
pequena tela é colocada entre as crianças para que elas não consigam ver uma à outra.
Uma criança é indicada para falar; a outra é o ouvinte. Aquela que fala deve descrever
os objetos que estão do seu lado da tela, um de cada vez e a que escuta deve pegar o
objeto correspondente do seu próprio conjunto de objetos. Uma disposição experimental
típica está mostrada na Figura 9.2. (Yule [1997] faz uma revisão da literatura sobre esse
tópico.)
A maior parte das crianças de quatro e cinco anos de idade, no papel de quem fala,
proporcionam muito pouca informação para o ouvinte conseguir escolher o objeto
correto. Se os objetos são, por exemplo, cachorros, gatos e elefantes de brinquedo,
aquele que fala pode dizer apenas "Este é um cachorro", ou até "Pegue este aqui", não
percebendo que o ouvinte não tem informação suficiente para saber exatamente que
objeto está sendo indicado. Os ouvintes muito pequenos também têm dificuldade com
essa tarefa: quando têm a oportunidade de pedir mais informação, eles não conseguem
fazê-lo. Esses problemas de comunicação persistem até o fim da primeira infância,
como está evidenciado pelos estudos conduzidos na Inglaterra e na Itália, que
descobriram que as crianças de seis anos de idade tinham as mesmas dificuldades. Aos
nove anos de idade, as crianças eram tão boas quanto os adultos em buscar informações
adicionais, quando a mensagem que estavam recebendo era ambígua (Lloyd et ai.,
1995).
FIGURA 9.2
Os pré-escolares freqüentemente experimentam dificuldade com a tarefa de manter na
mente o que é preciso dizer para a outra pessoa, para que ocorro uma comunicação
eficiente. A menina da esquerda precisa descrever os blocos que estão do seu lado da
tela, tomando cuidado para mencionar suas características distintas, para que o menino à
direita os coloque na mesma ordem que ela. (Extraída de Krauss e Glucksberg, 1969.)
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ENREDO: Era uma vez um menininho que adorava doces. Um dia, ele colocou uma
barra de chocolate dentro de uma caixa, em cima da mesa, e se afastou um pouco.
Enquanto ele estava afastado, sua mãe veio, tirou o chocolate da caixa e o colocou na
gaveta de cima da cômoda, onde ele guardava suas meias. O menininho voltou. Estava
com fome e queria seu chocolate.
PERGUNTA: Onde você acha que o menininho vai procurar seu chocolate?
Quando se faz essa pergunta a crianças de três anos de idade, elas respondem como se o
menino que saiu do aposento tivesse a mesma informação que elas têm; dizem que ele
vai procurar na gaveta de cima da cômoda. As crianças de cinco anos de idade,
provavelmente, vão dizer que o menininho vai procurar o chocolate na caixa que está
em cima da mesa; presumivelmente, eles entendem que a criança que saiu do aposento
tem uma falsa crença sobre a localização do chocolate.
No segundo método, as crianças são diretamente envolvidas em uma tarefa em que elas
próprias experimentam uma falsa crença (Gopnik e Astington, 1988; Perner et ai.,
1987). Nessa tarefa, é mostrada às crianças uma caixa coberta de embalagens de balas,
como M & Ms, e lhes é perguntado o que acham que tem dentro da caixa. Todos, é
claro, respondem "Balas". Então, lhes é mostrado que eles estão errados -a caixa, na
verdade, contém outros objetos, como lápis, por exemplo. Em seguida, é perguntado às
crianças o que um amigo que ainda não olhou dentro da caixa acharia que ela contém.
Mesmo que eles tenham acabado de passar pelo processo de eles próprios terem se
enganado, a maioria das crianças de três anos de idade diz que o amigo acharia que a
caixa contém um lápis.
Várias evidências baseadas em dados dessas tarefas indicam que a capacidade de pensar
sobre os estados mentais de outra pessoa, freqüentemente referida como uma teoria da
mente, só aparece quando a criança está com quatro ou cinco anos de idade (Astington,
1993; Flavell e Miller, 1998).
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CONFUSÃO ENTRE APARÊNCIA E REALIDADE
Confusões similares entre aparência e realidade foram relatadas por John Flavell e seus
colegas, que mostraram a crianças pequenas vários objetos que pareciam ser uma coisa,
mas, na verdade, eram outra: uma esponja que parecia ser uma rocha, uma pedra que
parecia ser um ovo e um pequeno pedaço de papel branco colocado atrás de um pedaço
de plástico rosa, de tal modo que o papel parecia ser rosa. Os objetos foram mostrados
às crianças e lhes foi perguntado "O que isso parece?" (a pergunta da aparência) e "O
que é isso na verdade?" (a pergunta da realidade) (Flavell et ai., 1986; Melot e Houde,
1998).
FIGURA 9.3
Um fenômeno que requer que a pessoa que vê distinga entre a aparência e a realidade é
a inclinação da luz que ocorre quando um canudo reto é parcialmente submergido na
água: o canudo parece quebrado, mas sabemos que essa aparência não é a realidade, e
uma ilusão. As crianças pequenas, no entanto, podem acreditar que o canudo realmente
mudou.
FIGURA 9.4
(a)Maynard, o gato, com e sem urna máscara de cachorro, (b) Um gráfico mostrando o
aumento da capacidade de entendimento das crianças, em relação à idade, de que
Maynard permanecia um gato, mesmo que sua aparência fosse modificada para que ele
parecesse um cachorro. (Adaptada de De Vries, 1969).
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1. Crianças chinesas, japonesas e britânicas de três anos de idade experimentam
dificuldades similares (Flavell et ai., 1983; Harris e Gross, 1988).
2. Várias tentativas para simplificar a tarefa não ajudam as crianças pequenas a
superar suas dificuldades (Flavell, et ai., 1987).
3. As tentativas de treinar as crianças pequenas para fazer as distinções adequadas
falharam (Melot e Houde, 1998; Taylor e Hort, 1990).
RACIOCÍNIO PRÉ-CAUSAL
Nada é mais característico dos pré-escolares do que sua paixão por fazer perguntas. "Por
que o céu é azul?" "O que produz as nuvens?" "De onde vêm os bebês?".
Evidentemente, as crianças estão interessadas nas causas dos eventos.
Apesar desse interesse, Piaget acreditava que, pelo fato de as crianças pequenas ainda
não serem capazes de realizar operações mentais de verdade, elas não poderiam
envolver-se no raciocínio de causa e efeito como as crianças mais velhas e como os
adultos. Ele declarou que, em vez de raciocinar a partir de premissas gerais para os
casos particulares (dedução) ou de casos específicos para casos gerais (indução), as
crianças pequenas pensam transdutivamente, de um particular para outro. Como
exemplo, ele descreveu como sua filha caçula perdeu seu costumeiro cochilo certa tarde,
e observou, "Eu não dormi, então não é de tarde". Como conseqüência desse raciocínio,
é provável que as crianças pequenas confundam causa e efeito. Como ele acreditava que
o raciocínio transdutivo precede o raciocínio causal verdadeiro, Piaget referiu-se a esse
aspecto do pensamento das crianças pequenas como pensamento pré-causal (Piaget,
1930).
Nossa própria filha deu uma esplêndida demonstração de como o raciocínio transdutivo
pode levar uma criança pequena a confundir causa e efeito. Quando estava com três
anos e meio, Jenny estava caminhando conosco por um antigo cemitério. Ouvindo-nos
ler as inscrições nas lápides, ela percebeu que, de alguma maneira, as velhas pedras
cobertas de musgo representavam pessoas. "Onde ela está agora?" perguntou ela,
quando acabamos de ler a inscrição em uma lápide.
"Ela está morta", dissemos.
"Mas onde ela está?"
Tentamos explicar que, quando as pessoas morrem, elas são enterradas em cemitérios.
Depois disso, Jenny passou a se recusar terminantemente a ir a cemitérios conosco e
ficava perturbada quando nos aproximávamos de um. Toda noite, ao se deitar,
perguntava-nos repetidamente sobre morte, enterro e cemitérios. Nós respondemos suas
perguntas da melhor maneira que podíamos, mas ela continuava repetindo as mesmas
perguntas e estava claramente perturbada com aquele assunto. A razão do seu medo
ficou clara quando nos mudamos para a cidade de Nova York. "Há cemitérios na cidade
de Nova York?" perguntou ela, ansiosa. Estávamos exaustos das suas perguntas
insistentes e a nossa crença de que deveríamos ser francos e honestos estava
desmoronando.
"Não", mentimos. "Não há cemitérios na cidade de Nova York." Diante dessa resposta,
Jenny ficou visivelmente relaxada.
"Então as pessoas não morrem em Nova York", acrescentou ela alguns minutos depois.
Jenny havia raciocinado que, como os cemitérios são lugares onde ficam as pessoas
mortas, os cemitérios deviam ser a causa da morte. Esse raciocínio a conduziu à
conclusão confortante, porém incorreta, de que, se ficássemos afastados dos cemitérios,
não correríamos o risco de morrer.
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O ESTUDO DO PENSAMENTO DE CRIANÇAS PEQUENAS DEPOIS DE PIAGET
Os exemplos que proporcionamos até agora (resumidos na Tabela 9.1) são apenas uma
amostra dos fenômenos que corroboram a idéia de que há um modo de pensamento
distinto associado com a primeira infância. Mas eles são suficientes para dar uma idéia
dos tipos de evidência coletados por Piaget e outros, para defender a idéia de um estágio
pré-operatório. Nessa idade, o pensamento das crianças é dominado pela incapacidade
de "descentrar", o que as impede de considerar os pontos de vista e as crenças dos
outros, manter a aparência e a realidade separadas e raciocinar de maneira lógica.
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O PROBLEMA DE NÍVEIS DESIGUAIS DE DESEMPENHO
Grande parte das novas evidências com relação à teoria de Piaget indica que o
desenvolvimento cognitivo é bem mais irregular do que a descrição de Piaget parecia
sugerir, e que, em algumas circunstâncias, as crianças mostram sinais de possuir
algumas habilidades cognitivas em um período anterior do que Piaget imaginava. O
próprio Piaget estava bem consciente de que o desempenho de uma criança poderia
variar um pouco de uma versão para outra de um problema, mesmo que os problemas
parecessem requerer as mesmas operações lógicas. Ele se referia a esses casos como
exemplos de décalage horizontal (literalmente, desalinhamento horizontal). Ele,
acreditava que diferenças sutis nas exigências lógicas das diferentes versões de uma
tarefa fossem uma importante fonte de variações no desempenho das crianças naquilo
que parecia ser tarefas cognitivas logicamente idênticas. Ele também estava consciente
de que a técnica de entrevista, a partir da qual grande parte de seus dados derivaram,
podia em si obscurecer o processo de pensamento que estava sendo estudado,
produzindo uma aparente desigualdade no desempenho, especialmente em crianças
pequenas que ainda eram novatas no uso da linguagem verbal (Piaget, 1929/1979).
Entretanto, sua própria obra o convenceu de que ele havia superado os problemas de
entrevistar crianças pequenas e que a sua pesquisa demonstrava com precisão que as
crianças pré-operatórias falham consistentemente em distinguir seu ponto de vista do de
outra pessoa, que são facilmente enganadas pelas aparências superficiais e que ficam,
freqüentemente confusas com as relações causais.
Não obstante, vários estudos têm parecido mostrar que Piaget interpretou mal as
dificuldades especiais causadas por sua confiança nas entrevistas verbais e nas tarefas
planejadas como sua principal fonte de dados. Embora as dúvidas permaneçam, há
agora um corpo de evidências segundo o qual, dependendo dos métodos de teste
utilizados, o desempenho cognitivo das crianças pode variar mais do que Piaget
imaginava, e que métodos de avaliação mais sensíveis revelam maior competência
cognitiva em crianças pequenas do que ele foi capaz de revelar. (Flavell et ai., [1933],
Gelman e Williams [1998] e Wellman e Gelman [1998] reexaminaram as evidências.)
Já vimos que as crianças pequenas, em geral, não têm um bom desempenho nas tarefas
experimentais envolvendo um entendimento de falsas crenças dos outros. Não obstante,
os pesquisadores reuniram ampla evidência de que, em algumas circunstâncias, as
crianças podem apreciar os estados mentais de outras pessoas com muito menos idade
do que Piaget imaginava que elas pudessem fazer.
362
Mudando o papel da criança nas tarefas de falsa crença, de enganado para de enganador,
Kate Sullivan e Ellen Winner descobriram que até mesmo as crianças de três anos de
idade exibem alguma apreciação dos processos de pensamento das outras pessoas
(Sullivan e Winner, 1993). Usando uma variação da tarefa do lápis-na-caixa-de-balas,
Sullivan e Winner criaram uma situação na qual a criança era acompanhada por um
adulto, que era, na verdade, um cúmplice na experiência. Nessa versão, o
experimentador primeiro aplica o truque-padrão da caixa de balas na criança e no
adulto, e depois sai do aposento. Em seguida, a acompanhante adulta sugere que ela e a
criança façam um truque para o experimentador, assim como o truque que o
experimentador aplicou nelas. Representando muito bem o papel de um conspirador que
pretendia fazer o experimentador de tolo, o adulto tira uma caixa de lápis da sua bolsa e
ajuda a criança a tirar os lápis e os substitui por algo inesperado. Finalmente, enquanto o
experimentador ainda está fora do aposento, o adulto, em um tom baixo e conspirador,
pergunta à criança o que o experimentador vai achar que está na caixa de lápis quando
voltar. Nesta situação tipo jogo, 75% das crianças de três anos de idade previram que o
experimentador iria erroneamente responder lápis, indicando que as crianças foram,
pelo menos nessas circunstâncias, capazes de pensar sobre os processos de pensamento
de outra pessoa. Em comparação, somente 25% responderam certo na tarefa-padrão da
falsa crença, um índice que acompanhava os resultados tipicamente relatados. Os
pesquisadores sugerem que sua versão da tarefa engajou as crianças na atividade-
modelo de fazer o outro de tolo, o que instruiu as crianças para pensar sobre os estados
mentais de outras pessoas.
FIGURA 9.5
Modificação de Borke da tarefa das três montanhas para percepção da perspectiva
idealizada por Piaget. Quando um diorama contém objetos familiares, os pré-escolares
têm maior probabilidade de dizer como ele é visto de um outro ponto de vista diferente
do seu.
FIGURA 9.6
Estes desenhos mostram como crianças de diferentes idades e habilidades mentais
percebem a maneira como uma bicicleta funciona, (a) A criança que tem cinco anos e
três meses de idade não tem idéia clara de como as diferentes partes da bicicleta se
ajustam, (b) Uma criança de nove anos de idade, deficiente, captou parte do mecanismo
na ilustração, mas não conseguiu ligar o pedal à roda dentada e à corrente, (c) uma
criança normal de oito anos e três meses de idade consegue representar todos os
mecanismos essenciais. traída de Piaget, 1930.)
363
Raciocínio causal eficiente
Naquele momento, Dan [com cinco anos e nove meses de idade] estava sentado em um
triciclo no jardim, pedalando para trás. Eu fui até ele e disse: "O velocípede não está
andando para frente, não é?" "É claro que não. Eu estou pedalando para trás", disse ele.
"Bem", perguntei, "como ele anda para a frente?" "Oh, bem", replicou ele, "meus pés
apertam os pedais, que fazem a manivela girar, e as manivelas dão a volta" (apontando
para a roda dentada), "e isso faz a corrente rodar, e a corrente gira, e então as rodas
giram- e lá vou eu!" (Isaacs, 1966, p. 44)
Isaacs apresentou essa história como evidência contra a teoria de Piaget de que as
crianças pequenas são incapazes de raciocínio causal. Antes de aceitar uma ou outra
dessas conclusões, a maior parte dos pesquisadores do desenvolvimento requereria mais
informações sobre os dois meninos, sua experiência com triciclos e bicicletas e a
maneira como as entrevistas foram conduzidas. Será que Dan é apenas um pré-escolar
especialmente adiantado? Será que a diferença em seus desempenhos é o resultado de
diferenças na maneira como o problema foi colocado para eles? Respostas sistemáticas
a essas perguntas requerem experiências que, deliberadamente, variam a maneira como
os problemas são apresentados.
Até mesmo crianças de apenas três anos de idade, em geral, dizem que a primeira bola
fez com que Snoopy fosse projetado. As crianças de cinco anos de idade não tiveram
nenhuma dificuldade em realizar a tarefa. No entanto, houve uma diferença marcante
entre os grupos de idade em sua capacidade para explicar o que aconteceu.
364
Muitas crianças de três anos de idade não conseguiram dar nenhuma explicação ou
disseram algo completamente irrelevante ("Ele tem dentes grandes"). Quase todas as
crianças de cinco anos de idade conseguiram dar pelo menos uma explicação parcial do
princípio, segundo o qual a causa precede os efeitos. Esse achado sugere uma razão por
que Piaget pode ter subestimado a competência cognitiva de crianças pequenas: suas
técnicas de pesquisa baseavam-se muito nos problemas verbalmente apresentados e nas
justificações verbais do raciocínio, ambas colocando em desvantagem as crianças
menores (ver o Destaque 9.1).
Nas últimas décadas, várias escolas de pensamento se desenvolveram para lidar com as
falhas percebidas no relato de Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo. Muitos
pesquisadores do desenvolvimento continuam a declarar que a teoria de Piaget continua
correta em seu quadro geral do desenvolvimento e que as evidências aparentemente
contraditórias resultam de experimentação errada ou de um malogro no entendimento da
teoria de Piaget. Orlando Lourenço e Armando Machado, por exemplo, declaram que as
crianças pequenas podem ser mais competentes do que acreditava Piaget, mas a maior
parte dos estudos que têm desafiado seus resultados baseiam-se em "erros
metodológicos e confusões conceituais" (Lourenço e Machado, 1996, p. 146).
Outros psicólogos acham que os problemas da teoria de Piaget são mais sérios. Uma
característica compartilhada por muitos desses críticos é a sua crença de que a cognição
começa como um processo que é específico dos domínios do conhecimento, como a
música, o espaço e o número e se modifica diferentemente em cada domínio. Entretanto,
esses estudiosos diferem na maneira como concebem os domínios e na extensão do que
acreditam que sejam as modificações desenvolvimentais nos processos cognitivos
gerais, como a memória e a atenção, que operam entre os domínios (Case, 1998;
Goswami, 1999).
365
TEORIAS NEOPIAGETIANAS DO DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
366
DESTAQUE 9.1 AS CRIANÇAS PEQUENAS COMO TESTEMUNHAS
A natureza dos processos de pensamento das crianças pequenas torna-se uma questão
social importante quando elas são chamadas para dar testemunho em uma corte legal,
seja como testemunhas de um crime ou como possíveis vítimas de um crime. Os adultos
têm relutado bastante em acreditar na palavra de uma criança pequena. Os psicólogos
têm tradicionalmente encarado as crianças como sugestionáveis (Stern, 1910); incapazes
de distinguir a fantasia da realidade (Piaget, 1926, 1928; Werner, 1948); e propensas a
fantasiar os eventos sexuais (Freud, 1905/1953a). Juizes, advogados e promotores têm
também expressado reservas sobre a confiabilidade das crianças como testemunhas
(Goodman et ai., 1998). As regras legais sobre a admissibilidade do testemunho das
crianças continuam a refletir essas dúvidas há muito estabelecidas. Em muitos Estados,
por exemplo, o juiz determina se uma criança abaixo de uma determinada idade (que
varia de Estado para Estado) é competente para testemunhar.
Devido a uma preocupação crescente com relação à prevalência de abuso sexual e físico
das crianças nos últimos anos, a comunidade legal tem reexaminado a confiabilidade do
testemunho das crianças. Ao mesmo tempo, psicólogos estão tentando determinar
quando e sob que condições as crianças pequenas podem testemunhar de maneira
confiável sobre eventos passados (Ceei e Bruck, 1998; Wright e Loftus, 1998). Duas
questões estão no cerne dadiscussão atual do testemunho infantil: Até que ponto são
confiáveis as lembranças de crianças de várias idades? Até que ponto as crianças
pequenas são suscetíveis a sugestões que podem mudar suas lembranças?
A razão dessa preocupação é proporcionada pelo comportamento das crianças, tanto nos
julgamentos criminais reais quanto em estudos experimentais conduzidos por
psicólogos. Quando os pesquisadores fazem perguntas a crianças pequenas sobre
eventos que tiveram importância pessoal para elas, como se elas tomaram ou não
injeção quando foram ao consultório do médico, é provável que elas proporcionem
respostas corretas (Goodman et ai., 1990). Entretanto, uma série de estudos em que
crianças cujas idades variavam entre três e sete anos foram entrevistadas imediatamente
depois de uma visita ao médico e, depois, novamente em intervalos de um a 12 meses
mais tarde, descobriu-se que, à medida que o tempo passava, a probabilidade de as
crianças menores se tornarem imprecisas em suas respostas (Ornstein et ai., 1997). Esse
achado é importante para os procedimentos legais em que é provável que as crianças
sejam entrevistadas repetidas vezes, sobre o mesmo evento, durante um período de
meses, se não anos.
Stephen Ceei e Maggie Bruck (1998) sugerem que uma razão para as crianças mais
velhas serem mais consistentes que as menores em suas respostas a perguntas estranhas
é o fato de elas terem um melhor conhecimento dos roteiros para as visitas ao médico e
não precisarem puxar por sua memória antes de responder. Elas já sabem que "coisas
como essas" não acontecem no consultório do médico.
Embora não saibamos por que essa criança testemunhou da maneira que o fez, depois de
dizer ao interrogador que achava ter faltado nesse dia, podemos especular que ela pode
ter realmente vindo a se lembrar de uma brincadeira do gato, depois que o interrogador
falou sobre ela. Sua resposta pode também ter refletido o fato de que as crianças
pequenas são mais propensas a acreditar que os adultos sabem mais do que realmente
sabem. Quando estão sendo questionadas em um procedimento legal, como foi essa
criança, podem incorporar as sugestões do adulto em suas respostas para agradar o
adulto, mesmo sabendo que as sugestões do adulto estão erradas. Quando as mesmas
perguntas são formuladas mais de uma vez, elas mudam suas respostas, porque supõem
que algo estava errado com sua primeira resposta (Siegal, 1991).
As crianças não são, de modo algum, as únicas cujas lembranças são vulneráveis às
sugestões das pessoas que as questionam. Os adultos também podem ser desviados em
situações desse tipo (Loftus, 1996; Massoni et ai., 1999). Entretanto, as crianças
pequenas são consideradas especialmente suscetíveis devido à sua capacidade limitada
para se lembrar, à sua falta de experiência com procedimentos legais e à sua tendência a
tentar agradar os adultos.
Amanda Conklin, de três anos de idade, olha para um tribunal superlotado em Van
Nuys, na Califórnia, enquanto o juiz a interroga durante o julgamento de seu pai,
acusado do assassinato de sua mãe.
A Figura 9.8 mostra também a maneira como o fluxo de informação entre o registro
sensorial, a memória de trabalho e a memória de longo prazo é coordenada pelos
processos de controle, que determinam como as informações temporariamente retidas
na memória de trabalho devem ser aplicadas ao problema atual. Os processos de
controle importantes incluem atenção, repetição e tomada de decisão. O software, que é
uma parte fundamental dos processos de controle, determina as informações particulares
que devem ser tratadas, bem como se a memória de longo prazo deve ser sondada mais
profundamente para dar uma resposta adequada, ou bem como se uma determinada
estratégia de resolução de problemas deve ser utilizada. Os processos de controle
também determinam se uma informação da memória de curto prazo deve ser retida, ou
se pode ser esquecida.
Figura 9.8
Principais componentes de um modelo de processamento de informação de ações
mentais (adaptada de Atkinson de Shiffrin, 1968).
Conceitos:
Abordagem do processamento de informação: Uma estratégia para explicar o
desenvolvimento cognitivo baseada em uma analogia com o funcionamento de um
computador digital.
Registro sensorial: Aquela parte do sistema de processamento da informação que
armazena a informação que chega durante uma fração de segundo antes de ela ser
seletivamente processada.
Memória de curto prazo (de trabalho): Aparte do sistema de processamento da
informação que retém a informação sensorial que chega, até que ela seja levada para a
memória de longo prazo ou, então, esquecida.
Memória de longo prazo: A memória que é retida durante um longo período de tempo.
Por exemplo, um estudo realizado por Michelline Chi e Randi Koeske concentrou-se na
memória de um menino de quatro anos de idade para os dinossauros. Chi e Koeske
(1983), primeiro, evocaram os nomes de todos os dinossauros que a criança conhecia
(46 ao todo, para essa criança incrivelmente bem-informada), questionando-a em várias
ocasiões. Em seguida, fizeram duas listas em que constavam os 20 dinossauros que ele
mencionava mais freqüentemente e os 20 dinossauros que ele mencionava menos
freqüentemente. Para estudar como o conhecimento comparativo da criança
influenciava sua memória e seu raciocínio sobre cada grupo, Chi e Koeske leram as
duas listas de dinossauros para a criança, três vezes cada lista, pedindo-lhe que
memorizasse quantos ela conseguisse da lista. O menino se lembrou do dobro de itens
da lista dos dinossauros que ele mais conhecia do que da lista dos dinossauros com os
quais estava menos familiarizado (uma média de 9,7 dinossauros versus 5,0
dinossauros). Os pesquisadores concluíram que, quanto mais se sabe sobre um tópico,
mais fácil lembrar os itens a ele pertencentes.
Até agora a nossa discussão sobre a desigualdade que as crianças pequenas exibem nos
testes de capacidade cognitiva concentrou-se no conteúdo dos testes, na situação social
em que eles são apresentados, nas exigências que as tarefas colocam à memória e às
habilidades lógicas das crianças e ao conhecimento específico do domínio que as tarefas
envolvem. Entretanto, é também possível que a desigualdade nas habilidades cognitivas
das crianças pequenas seja o resultado de processos cerebrais inatos que se desenvolvem
em uma programação ampla da espécie.
O desenvolvimento do cérebro
No início da primeira infância, o cérebro atingiu cerca de 50% do seu peso adulto.
Quando as crianças estão com seis anos, ele já desenvolveu 90% do seu peso total
(Huttenlocher, 1994; LeCours, 1982). Grande parte desse aumento total resulta do
processo contínuo de mielinização, que acelera a transmissão dos impulsos
neuraisdentro e entre as diferentes áreas do cérebro. Consistentes com as evidências na
velocidade da mielinização, os estudos das modificações na atividade elétrica do
cérebro mostram um aumento rápido durante a primeira infância na freqüência geral e
no tamanho das ondas cerebrais quando as crianças estão envolvidas em tarefas
cognitivas (Fischer e Rose, 1996; Thatcher, 1997). (A Figura 4.2 proporciona uma visão
geral das principais áreas do cérebro.)
Módulos mentais
Uma segunda linha de evidência que defende a posição da modularidade vem dos
prodígios - crianças cujo nível geral de desenvolvimento é normal, mas que demonstram
ilhas de brilhantismo. Wolfgang Amadeus Mozart, por exemplo, era compositor e
músico completo ainda muito criança, mas de outras maneiras não era visivelmente
diferente das outras crianças da sua idade. As extraordinárias realizações de Mozart e de
outras crianças-prodígio parecem ajustar-se à idéia dos módulos mentais. Cada uma de
suas realizações cai em um domínio que possui sua própria estrutura distinta - música,
linguagem, aritmética, etc. (Feldman, 1994).
Já vimos evidências de que algo como princípios cognitivos básicos foram encontrados
em suas formas iniciais durante a fase de bebê quando as crianças reagem a estímulos
que envolvem as operações de movimentos físicos diferentes, as correspondências entre
número de sons e número de movimentos do objeto e a imitação de intenções humanas,
para citar apenas alguns. Uma grande variedade de evidências foi coletada nos últimos
anos para ilustrar que crianças de quatro a cinco anos de idade, e às vezes até mesmo de
três anos de idade, revelam um conhecimento rico quando o conteúdo das tarefas que
lhes são apresentadas envolve questões sobre domínios cognitivos fundamentais para os
quais há princípios estruturais inatos. As criaturas vivas proporcionam um exemplo de
um domínio fundamental sobre o qual tem havido muita pesquisa.
A capacidade das crianças para pensar sobre a diferença entre as entidades vivas e não-
vivas é um exemplo notável de como os princípios estruturais subjacentes a um domínio
fundamental podem guiar a aquisição de conhecimento. Quando têm um ano de idade,
os bebês reagem de maneiras diferentes aos movimentos de objetos no seu ambiente que
são autogerados e aos movimentos que são externamente causados (Gergely et ai.,
1995). A distinção entre movimento autogerado e movimento externamente causado
proporciona um princípio estrutural para a aquisição de informações sobre as criaturas
vivas que é essencial à ponderação sobre o mundo.
A maioria das crianças de três anos de idade e quase todos de quatro anos de idade
sabiam que somente os objetos animados podiam subir sozinhos a montanha. Ainda que
os animais mostrados não estivessem em movimento e seus pés, em geral, não
estivessem retratados, os comentários das crianças freqüentemente se concentraram em
pés e pernas. Por exemplo, em um caso em que os pés dos animais não estavam visíveis,
a conversa foi a seguinte (Gelman, 1990, p. 93):
Criança: Ele consegue se mover muito devagar ... tem essas perninhas pequenas.
Adulto: Onde estão as pernas?
Criança: Debaixo da terra.
373
A distinção entre animado e inanimado que se desenvolve a partir de diferentes formas
de movimento é acompanhada por outro conhecimento importante para os domínios das
coisas vivas e não-vivas, como a diferença entre "dentro" e "fora". Quando os
pesquisadores perguntaram a crianças de três e quatro anos de idade sobre os aspectos
internos e externos de várias combinações de objetos animados e inanimados, as
crianças atribuíram tipos diferentes de aspectos internos aos animais. Disseram que os
animais tinham ossos, sangue e "coisas moles", enquanto artefatos como a câmera ou
objetos naturais como uma rocha tinham "coisas duras" dentro, assim como tinham
"coisas duras" fora.
As crianças pequenas também sabem que os objetos animados crescem e mudam sua
aparência, ao contrário dos artefatos, que podem ser desgastados ou quebrados, mas não
crescem. E sabem que os artefatos não ingerem comida. Em seu estudo dos conceitos
iniciais de biologia, Giyoo Hatano e Keiko Inagaki descobriram que a maioria das
crianças de cinco e seis anos de idade declaram que seria impossível manter um coelho
bebê pequenininho. Uma criança exclamou: "Não podemos fazer o bebê ficar sempre do
mesmo tamanho porque ele come! Se ele come, vai ficar maior e maior até ser um
adulto" (Inagaki e Hatano, 1987, p. 1015).
Outro aspecto ainda dos seres animados entendido pelos pré-escolares é que as coisas
vivas têm filhos, e que os filhos herdam características de seus pais; os artefatos não se
reproduzem e não podem transmitir suas propriedades. Gelman e Wellman (1991)
demonstraram esse entendimento entre crianças de quatro anos de idade, contando às
crianças sobre os bebês animais que eram criados por membros de outras espécies - por
exemplo, cangurus que eram criados por gansos. Mostraram às crianças uma foto de um
pequeno ponto distante que eles chamaram de "bebê canguru" e uma foto de um ganso
de fazenda e perguntaram que características teria um bebê canguru que fosse criado
num lugar como aquele. Quase todas as crianças estavam certas de que aquele "bebê"
cresceria com uma bolsa e pularia como um canguru.
A mesma história pode ser contada, como já vimos, para uma teoria fundamental da
física, das pessoas, etc. Quando o conteúdo dos problemas apresentados às crianças
envolve domínios fundamentais, é provável que apareça uma ilha de competência.
Entretanto, como já observamos no Capítulo 6, quando as crianças têm que lidar com o
domínio cultural, ainda têm muita aprendizagem pela frente.
Conceito:
princípios estruturais Princípios específicos do domínio que dão inicio a um processo
cognitivo e proporcione uma direção inicial, mas requerem experiências subseqüentes
para compreender o seu potencial.
374
Em termos de desenvolvimento mental, os nichos desenvolvimentais são os contextos
em que a sociedade torna disponíveis os recursos culturais essenciais para o
desenvolvimento do pensamento e da ação. Entre os mais importantes desses recursos
culturais está a linguagem.
Aos dois anos de idade, a maioria das crianças já "tomou" muitos banhos. A cada vez,
segue-se mais ou menos a mesma rotina, os mesmo tipos de objetos são usados, o
mesmo elenco de personagens participa, e os mesmos tipos de conversa acompanham as
ações necessárias. A água é despejada em uma banheira, as roupas são retiradas, a
criança é colocada na água, o sabonete é aplicado e removido, a criança é retirada da
água, enxugada e vestida. Pode haver variações - um amigo que está visitando pode
tomar banho com a criança ou pode-se deixar a criança brincar com seus brinquedos de
água, depois de se lavar - mas a seqüência básica tem um padrão claro.
Nelson comenta que, como no roteiro de "tomar banho", as crianças crescem dentro dos
roteiros de outras pessoas. Em conseqüência disso, os seres humanos raramente, se é
que alguma vez, experimentam o ambiente natural "como ele é". Em vez disso,
experimentam o mundo, incluindo atividades simples como tomar banho e comer uma
refeição, de uma maneira que foi preparada (cozinhada), segundo os roteiros prescritos
por sua cultura.
375
Nelson e seus colegas estudaram o desenvolvimento do conhecimento dos roteiros,
entrevistando crianças e gravando as conversas de crianças brincando juntas. Quando
Nelson pediu às crianças para lhe contarem sobre a "ida a um restaurante", por exemplo,
ela obteve relatos como o seguinte:
Menino de três anos e um mês: "Bem, a gente come e depois vai a algum lugar.".
Menina de quatro anos e dez meses: "Muito bem. Primeiro, nós vamos a restaurantes de
noite e nós, hum, nós... nós vamos e esperamos um pouco e depois vem o garçom e nos
dá aquele papel com as comidas escritas e, então, nós esperamos um pouquinho, meia
hora ou alguns minutos ou alguma coisa assim, e ... hum, então chega a nossa pizza ou
qualquer outra coisa e ... hum [interrupção] ... [O adulto diz, 'Então, chega a comida.'.]
Então, nós comemos, e ... hum, então, quando acabamos de comer a salada que
pedimos, podemos comer a nossa pizza, quando ela está pronta, porque a salada chega
antes da pizza estar pronta. Então, quando terminamos toda a pizza e toda a nossa
salada, nós vamos embora." (Nelson, 1981, p. 103).
Até mesmo esses simples relatos demonstram que os roteiros representam um
conhecimento generalizado. Por uma razão - as crianças estão descrevendo o conteúdo
geral: elas estão claramente se referindo a mais que uma refeição só, isolada. As
crianças de três anos de idade usam a forma generalizada "a gente come" em vez de
uma referência específica a um momento particular em que ela come. A introdução da
menina ("Primeiro nós vamos a restaurantes de noite") indica que ela também está
falando das idas em geral ao restaurante.
Além de possuir o conteúdo geral, os roteiros são organizados em uma estrutura geral,
similar àquela dos roteiros dos adultos. Mesmo crianças muito pequenas sabem que os
eventos envolvidos em "comer em um restaurante" não acontecem por acaso. Em vez
disso, descrevem uma seqüência: "Primeiro fazemos isso, depois aquilo". As crianças
evidentemente abstraem o conteúdo de um roteiro e sua estrutura de muitos eventos e ,
então, usam esse conhecimento para organizar seu comportamento.
Os roteiros são guias da ação. São representações mentais que as crianças e os adultos
usam para descobrir o que é provável que aconteça em seguida em circunstâncias
familiares. Até as crianças terem adquirido um grande repertório de conhecimento sob a
forma de roteiro, elas precisam usar muito esforço mental para construir roteiros quando
participam de eventos não-familiares. Quando não têm conhecimento do roteiro,
precisam prestar atenção aos detalhes de cada nova atividade. Em conseqüência disso, é
menos provável que distingam entre as características essenciais e superficiais de um
novo contexto. A menina entrevistada por Nelson, por exemplo, parecia pensar que
comer pizza é uma parte básica do roteiro da "ida a um restaurante", enquanto pagar
pela refeição estava inteiramente ausente. No entanto, como a menina captou uma
pequena parte do roteiro do restaurante, ela vai estar livre para prestar atenção a novos
aspectos do local na próxima vez que for lá. Com o tempo, vai adquirir um
entendimento mais profundo dos eventos de que participa e dos contextos dos quais eles
fazem parte.
Uma segunda função dos roteiros é permitir que as pessoas de um determinado grupo
social coordenem suas ações. Essa função dos roteiros torna-se possível porque,
segundo a perspectiva culturalista, o conhecimento do roteiro é um conhecimento
geralmente mantido em comum, incluindo sua incorporação como uma linguagem
comum. "Sem roteiros compartilhados", diz Nelson, "todo ato social precisaria ser
negociado de novo". Nesse sentido, "a aquisição de roteiros é fundamental para a
aquisição de cultura" (Nelson, 1981, p. 109, 110). Quando as crianças vão à, pelo
menos, metade dos restaurantes nos Estados Unidos, elas aprendem que primeiro se
pede uma mesa ao maiter e que depois se recebe uma indicação de lugar. Um roteiro um
pouco diferente aplica-se aos restaurantes/así-/oal Pode haver descoordenação se o
roteiro for violado (por exemplo, se a criança entrasse em um restaurante e se sentasse
em uma mesa de uma pessoa estranha no meio da sua refeição).
Uma terceira função dos roteiros é proporcionar um meio pelo qual conceitos que se
aplicam a muitos tipos de eventos possam ser adquiridos e organizados. Por exemplo,
quando as crianças adquirem roteiros para brincar com blocos, brincar no caixote de
areia e brincar de casinha, elas estão acumulando exemplos específicos de brincadeiras
que elas podem, depois, incluir em uma categoria geral (Lucariello e Rifkin, 1986). (Ver
o Destaque 9.2.)
Uma vez que as crianças deixam os limites de seus berços e dos braços de seus
cuidadores, elas começam imediatamente a experimentar uma grande variedade de
contextos que os impelem a adquirir vários novos roteiros, mesmo que aperfeiçoem seu
conhecimento dos roteiros com os quais já estão familiarizadas. Por isso, é natural,
segundo a abordagem culturalista, que o desenvolvimento durante a primeira infância
pareça tão irregular. O conteúdo e a estrutura de novos eventos em que as crianças
pequenas participam vai depender fundamentalmente dos contextos proporcionados pela
sua cultura e dos papéis que se espera que elas desempenhem nesses contextos. Em
contextos familiares, onde elas conhecem a seqüência de ações esperada e podem
interpretar adequadamente as exigências da situação, as crianças pequenas têm maior
probabilidade de se comportar de uma maneira lógica e em conformidade com os
padrões de pensamento do adulto. Mas, quando os contextos não são familiares, elas
podem aplicar roteiros inadequados e recorrer ao pensamento mágico ou ilógico.
377
Assim como é improvável que as crianças criadas em Seattle ou Singapura sejam hábeis
em seguir o rastro de animais ou encontrar raízes que armazenem água no deserto.
O ambiente social e cultural também proporciona uma fonte geral de apoio para as
crianças, selecionando e moldando suas atividades. Barbara Rogoff (1990, 2000),
importante teórica culturalista, chama o processo geral pelo qual os adultos selecionam
e moldam as ações das crianças pequenas nas atividades cotidianas de participação
guiada. Através da participação guiada, as crianças recebem ajuda na adaptação do seu
entendimento a novas situações, na estruturação das suas tentativas para resolver
problemas e, finalmente, para adquirir domínio sobre eles. Uma forma dessa interação
cooperativa ocorre quando um adulto ou par mais competente proporciona ajuda na
participação de uma criança, oferecendo sugestões sobre como lidar com a tarefa ou
assumindo partes da tarefa quando necessário, permitindo que a criança estenda suas
habilidades além dos limites previstos, se a criança estivesse realizando a tarefa sozinha.
Esse tipo de interação é um exemplo do que Vygotsky chamou de uma zona do
desenvolvimento proximal (ver Capítulo 5).
Eu estava me preparando para sair de casa, quando percebi que começou a correr um fio
no pé da minha meia. Minha filha se ofereceu para ajudar a costurar o fio, mas eu estava
com pressa e tentei evitar seu envolvimento, explicando que eu não queria que a agulha
furasse o meu pé. Comecei a costurar, mas mal conseguia enxergar onde estava
costurando, porque a cabeça da minha filha estava no caminho, enfiada na costura. Logo
ela sugeriu que eu podia colocar a agulha na meia e ela a puxaria, evitando, assim, furar
o meu pé. Eu concordei e seguimos essa divisão de trabalho por vários pontos. (Rogoff,
1990, p. 109)
Outra forma comum de interação casual que proporciona a orientação e o apoio de uma
zona de desenvolvimento proximal é o jogo sociodramático (ver o Destaque 9.2), a
brincadeira de faz-de-conta em que dois ou mais participantes representam vários papéis
sociais.
É uma expectativa geral das abordagens culturalistas que interações que tenham esse
tipo de estrutura de apoio sejam especialmente produtoras de mudança
desenvolvimental e de níveis elevados de desempenho.
FIGURA 9.9
O desenho da figura humana desenvolve-se através de uma seqüência de passos.
Inicialmente, a criança desenha um grande círculo que representa a pessoa inteira. A
representação global que a criança faz de uma pessoa logo evolui para um círculo ou
uma elipse com a face na parte superior e duas linhas que saem da sua parte inferior
(uma "aparência de girino"). Pouco a pouco, o círculo passa a representar apenas a
cabeça e o corpo desce entre as duas linhas verticais. Alguns meses mais tarde, a criança
acrescenta um segundo círculo para apresentar o corpo, com outro par de linhas saindo
dele como se fossem braços, (Extraída de Goodnow, 1977.)
FIGURA 9.10
O desenho de uma xícara feito por uma criança de seis anos de idade. Observe que a
alça está incluída, embora a cora tenha sido mostrada à criança de uma perspectiva em
que a alça não estava visível.
Conceito:
participação guiada As maneiras como adultos e crianças colaboram nas atividades
rotineiras de resolução de problemas para que as crianças recebam ajuda para adaptar
seu entendimento a novas situações, estruturando suas tentativas de resolução de
problemas e, finalmente, adquirindo domínio.
379
O DESENVOLVIMENTO DO DESENHO: APLICAÇÃO DAS
PERSPECTIVAS TEÓRICAS
Cada uma das atuais teorias da cognição na primeira infância proporciona uma
perspectiva distinta, a partir da qual se deve encarar o desenvolvimento. Os relativos
pontos fortes e fracos das visões alternativas podem ser melhor considerados quando as
várias abordagens tentam explicar o mesmo fenômeno. Fazer um desenho - uma
atividade com muitos componentes cognitivos - é um exemplo característico, e todo
ponto de vista teórico tem algo a dizer a respeito. Segundo a abordagem construtivista
de Piaget, o desenho das crianças parece passar por uma série regular de estágios.
Segundo uma abordagem de processamento de informação, as mudanças no desenho
podem, em alguns casos, estar intimamente ligadas à capacidade de captar na mente
vários aspectos de um objeto ao mesmo tempo. No entanto, segundo a abordagem da
modularidade, as crianças cujo desenvolvimento lingüístico, mental ou social é
gravemente deficiente podem desenhar com um alto nível de competência. E, segundo a
abordagem culturalísta, o desenvolvimento da capacidade de desenhar depende das
oportunidades proporcionadas à criança de se envolver nessa atividade e das maneiras
como essas oportunidades são estruturadas pelos adultos.
Em toda cultura em que é dada às crianças uma oportunidade de desenhar desde tenra
idade, seus desenhos parecem passar pelas mesmas seqüências de estágios (Gardner,
1980; Golomb, 1974; Lange-Küttner e Thomas, 1995). No início, elas rabiscam. As
crianças não estão "fazendo desenhos" quando rabiscam. O que parece importar para
elas não é o aspecto do produto, mas a alegria de mover suas mãos e a trilha dos seus
movimentos à qual o rabisco testemunha.
As crianças dão um passo gigantesco além do rabisco em torno dos três anos de idade,
quando começam a reconhecer que as marcas e as linhas que elas fazem podem
representar objetos do mundo. Essa percepção reflete-se desde cedo, quando as crianças
começam a desenhar círculos e elipses que são extraídos das espirais e das linhas que
antes enchiam seus rabiscos. A linha circular encerra uma área interna que lhes parece
mais sólida do que o campo em que ela está, indicando que o desenho está claramente
representando alguma coisa. Esses desenhos iniciais desenvolvem-se em duas
dimensões: começam a incluir mais detalhes nos objetos que descrevem e incluem
relacionamentos espaciais - ambos relacionamentos entre os objetos descritos e entre
esses objetos e a criança que está fazendo o desenho.
As crianças de três e quatro anos de idade parecem representar em seus desenhos o que
elas sabem sobre os objetos e não o que enxergam com seus próprios olhos. Se lhes for
mostrada uma xícara no nível dos seus olhos, de forma que sua alça não possa ser vista,
as crianças, apesar disso, vão desenhar a xícara com uma alça, colocando-a em algum
lugar lateral, porque elas sabem que as xícaras têm alças (ver a Figura 9.10). Entre os
seis e os 11 a 12 anos de idade, as crianças cada vez mais desenham o que realmente
vêem de um objeto. Ao mesmo tempo, seus desenhos começam a representar a
perspectiva a partir da qual o objeto é visto. Finalmente, as crianças começam a
combinar representações de pessoas e objetos para fazer cenas descrevendo
váriasexperiências (ver a Figura 9.11).
380
DESTAQUE 9.2 JOGO SOCIODRAMÁTICO
A brincadeira ocupa um papel importante no desenvolvimento cognitivo das crianças
pequenas, assim como no seu desenvolvimento físico e social. Aos dois anos de idade,
as crianças são capazes de fingir que uma caixa de fósforos é um carro que pode zunir
em torno de um caixote de areia, ou que um bloco é uma ferramenta. Essa brincadeira,
no entanto, é muito solitária, no sentido de que, mesmo quando várias crianças pequenas
estão juntas em um aposento, é improvável que sua brincadeira seja interconectada
(Bretherton, 1984). Na primeira infância, a brincadeira de faz-de-conta torna-se mais
social e mais complexa (Gõncü e Kessel, 1988). Em vez de um faz-de-conta solitário, as
crianças começam a se envolver em um jogo sociodramático - uma brincadeira de faz-
de-conta em que dois ou mais participantes representam vários papéis sociais
relacionados. O jogo sociodramático requer um entendimento compartilhado do que a
situação da brincadeira envolve e que, freqüentemente, deve ser negociado como parte
da brincadeira.
Nos Estados Unidos e em muitos países europeus, a primeira infância pode ser
considerada a "alta estação do jogo imaginativo" (Singer e Singer, 1990). As crianças
ficam com vários brinquedos à sua disposição e o jogo simbólico é encorajado como um
importante contribuinte para o desenvolvimento. Esse tipo de brincadeira é ilustrado
pela cena que se segue, envolvendo várias crianças na idade pré-escolar. Quando
entramos na cena, as meninas do grupo já haviam combinado os papéis que iriam
desempenhar: mãe, irmã, bebê e empregada.
Esses problemas foram apresentados à metade das crianças em um tom de voz trivial.
Com a outra metade das crianças, o experimentador começou dizendo: "Vamos fazer-
de-conta que eu sou de outro planeta", e continuou, apresentando o problema naquele
tipo de voz dramática que normalmente é usado ao se contar histórias.
A capacidade das crianças para resolver esses problemas de raciocínio variou muito de
uma condição de apresentação para a outra. As crianças que foram instruídas em um
tom de voz trivial tiveram dificuldade de raciocinar segundo a premissa do problema.
Elas disseram, por exemplo, que Tot, o peixe, vive na água, e justificaram suas
respostas afirmando o seu conhecimento de onde os peixes vivem. Em compensação, as
crianças que participaram da versão "vamos fazer-de-conta" do problema tiveram um
sucesso muito maior, e a maneira como justificaram suas respostas proporcionaram uma
evidência clara de que haviam entrado na natureza hipotética das tarefas. Justificações
típicas para suas respostas corretas foram afirmações como "Eu disse que Tot mora em
uma árvore, porque nós estávamos fazendo-de-conta que os peixes moram em árvores".
Joanne Farver observou várias diferenças nas brincadeiras de dois grupos de crianças
pré-escolares em Los Angeles, um de origem européia e o outro composto de crianças
coreano-americanas cujos pais haviam emigrado para os Estados Unidos nos últimos
anos farver, 1999). As crianças euro-americanas participaram de muito mais
brincadeiras envolvendo personagens fantásticos e temas de perigo. O jogo
sociodramático das crianças coreano-americanas concentrava-se fundamentalmente nos
papéis familiares e nas atividades do cotidiano. Farver acompanhou essas diferenças em
relação a várias fontes, uma delas sendo as crenças dos adultos. Os adultos coreano-
americanos atribuíam menos valor que os adultos euro-americanos à brincadeira de faz-
de-conta. As pré-escolas que eles organizavam eram muito mais parecidas com a escola,
com as crianças sentando em carteiras e praticando habilidades acadêmicas das quais
elas iriam precisar mais tarde. Outro fator que moldava o nível da brincadeira de faz-de-
conta era a natureza das oportunidades de brincar proporcionadas às crianças. As
diferenças na brincadeira das crianças coreano-americanas e euro-americanas eram mais
visíveis em um ambiente de brincadeira não-estruturado. Entretanto, quando as crianças
recebiam um brinquedo complexo para brincar (um castelo de brinquedo com reis,
princesas, cavalos e outros objetos de brinquedo que poderiam ser usados em um jogo),
as diferenças entre os dois grupos desapareciam.
Seja qual for a sociedade em que vivam, à medida que as crianças crescem, o jogo
sociodramático vai ocupando uma parte cada vez menor do seu tempo. Contudo, isso
não significa que o faz-de-conta desapareça com a idade. Ao contrário, sua forma muda.
Dorothy e Jerome Singer (1990) acreditam que uma vez atingida a segunda infância, a
brincadeira de faz-de-conta "passa a ocorrer às escondidas", porque outras formas de
brincar são consideradas socialmente mais aceitáveis. Douglas Hofstader declara que a
brincadeira de faz-de-conta nunca desaparece, porque, durante suas vidas, as pessoas
constantemente criam variantes mentais das situações que elas enfrentam:
[A invenção dos mundos "como se"] ocorre de maneira tão casual, tão natural, que
dificilmente percebemos o que estamos fazendo. Escolhemos da nossa fantasia um
mundo que seja próximo, em algum sentido mental interno, do mundo real.
Comparamos o que é real com o que percebemos como sendo quase real. Assim
fazendo, o que obtemos é algum tipo intangível de perspectiva da realidade. (1979, p.
643).
Atualmente, não há razões firmes para se afirmar que o jogo sociodramático é essencial
para o desenvolvimento normal. Quer cresçam em uma sociedade que desvalorize a
brincadeira de faz-de-conta e enfatize as responsabilidades de trabalho das crianças, ou
em uma sociedade que se esforce muito para proporcionar às crianças pequenas a
oportunidade de se envolver na brincadeira de faz-de-conta, as crianças, em geral, são
criadas para se tornar membros competentes das suas sociedades.
382
FIGURA 9.11
Uma seqüência de desenhos feitos por uma criança americana.(a) Aos dois anos e meio,
Carrie desenhava linhas de diferentes cores; (b) Aos três anos e meio, começou a
desenhar representações globais de uma pessoa; (c) Aos cinco anos, ela acrescentava
um corpo e pernas às criaturas que desenhava, e colocava sua figura principal em uma
cena. (d) Movimento, ritmo e maior realismo estão evidentes nos desenhos que ela
produzia aos sete anos e meio. (e) Aos 12 anos de idade, ela conseguia desenhar uma
cena realística. (Cortesia de Carrie Hogan.).
383
UM RELATO SOBRE O PROCESSAMENTO DE INFORMAÇÃO DO DESENHO
Nadia pode ter estado operando com um dispositivo computacional mental altamente
poderoso - dispositivo este raramente, se algum dia, explorado por outras pessoas, mas
talvez disponível para pelo menos alguns membros da espécie humana, (p. 186-187)
384
O desenvolvimento incomum de Nadia não é único. Os pesquisadores têm identificado
várias crianças cuja capacidade de linguagem e funcionamento mental geral são
bastante baixos, mas cuja capacidade para criar imagens gráficas é excepcionalmente
elevada (Sacks, 1995). Esses casos ajustam-se muito bem à idéia de que os módulos
mentais, como a linguagem e a percepção, podem desenvolver-se de maneira
relativamente isolada um do outro.
As evidências de casos menos extremos também sugerem que passar pela seqüência
comum dos estágios não é necessária para o domínio. Gardner (1980) relata que as
crianças privadas da oportunidade de desenhar durante a primeira infância podem
"pular" totalmente, os estágios iniciais do desenho quando, finalmente, têm a
oportunidade de desenhar. Se isso é verdade, esse achado se contraporia à posição
piagetiana, segundo a qual os estágios seguem um ao outro em uma seqüência
invariável.
O diálogo que se segue, entre Roslyn e Don, ambos com três anos de idade, registrado
em uma pré-escola dos Estados Unidos, ilustra a natureza rudimentar do entendimento
do desenho pelas crianças pequenas e também algumas das maneiras como esses
entendimentos mudam (adaptado de Gearhart e Newman, 1980, p. 172):
385
As palavras e ações dessas crianças indicam claramente que nenhuma das duas crianças
tem em mente um desenho individual, determinado. Toda a sua conversa se refere a
algo que acabaram de fazer ("Fiz um círculo marrom") ou a algo que estão fazendo
("Estou fazendo"). Fala-se pouco sobre os planos para seus desenhos. Cada criança
imita os elementos introduzidos pela outra, sem um plano geral de como esse elemento
pode adaptar-se ao todo.
A maneira que a professora arranjou para dar um desenho como "acabado" foi também
importante para ajudar as crianças a descobrir o que significa fazer um desenho. Antes
de escrever o nome da criança no desenho e pregá-lo no quadro, ela fez perguntas
abertas sobre o que a criança havia desenhado, mais uma vez se comportando como se a
criança tivesse desenhado alguma coisa em particular.
Professora: Jeff? Fale-me sobre o seu desenho. (Jeffrey aproxima-se e olha para o seu
desenho.)
Jeffrey: Hum, ele tem duas montanhas laranja, dois círculos laranja.
Professora: Dois círculos laranja (enquanto escreve o nome dele no desenho).
(Adaptado de Gearhart e Newman, 1980, p. 182.)
FIGURA 9.13
Nadia, uma pré-escolar autista com apenas uma exposição mínima o modelos, exibia
uma capacidade fantástica para captar a forma e o movimento em seus desenhos. Este
desenho é a sua cópia do quadro de um cavalo. As crianças pequenas aprendem a
representar a realidade em seus desenhos e pinturas em parte devido à maneira como os
adultos interpretam seus quadros depois que eles estão terminados.
Não obstante, a última década testemunhou vários esforços para se chegar a uma síntese
que incorpora as principais preocupações de cada uma das posições teóricas
concorrentes. Ao que parece, um número cada vez maior de psicólogos do
desenvolvimento acredita que essas abordagens concorrentes são mais proveitosamente
encaradas como complementares uma à outra. Observamos neste capítulo vários
movimentos parciais na direção de uma síntese. As abordagens de processamento da
informação são combinadas com a teoria dos estágios piagetiana. A especificidade do
domínio é amplamente aceita como um fenômeno real, embora persistam os argumentos
sobre a maneira precisa como os domínios devem ser identificados e se a sua origem
está na biologia (como módulos ou restrições estruturais) ou na cultura (como atividades
e contextos culturais). Atualmente, há inclusive vários esforços promissores que visam a
proporcionar uma estrutura de explicação abrangente, em que todas as abordagens
concorrentes sejam reunidas em uma única e ampla estrutura (Case e Okamoto, 1995;
Feldman, 1994; Fischer e Biddel, 1998; Gelman e Williams, 1998; Greenfield, 1997;
Siegler, 1996). No entanto, o acordo sobre precisamente como os vários fatores
interagem um com o outro para produzir desenvolvimento cognitivo permanece tão
enganoso para os cientistas maduros quanto um acordo entre os pré-escolares sobre,
precisamente, que efeito a fervura tem no tamanho e no peso das pedras.
RESUMO
Os processos de pensamento das crianças pequenas são caracterizados por uma grande
irregularidade; existem ilhas de competência em um mar de incerteza e ingenuidade.
O RELATO DE PIAGET SOBRE O DESENVOLVIMENTO MENTAL NA
PRIMEIRA INFÂNCIA
388
As teorias biologicamente orientadas enfatizam a organização inata do cérebro no
desenvolvimento do pensamento das crianças pequenas. Segundo alguns, o cérebro é
organizado em módulos mentais que são específicos do domínio, inatamente
estruturados e relativamente isolados um do outro. As habilidades mentais dos prodígios
(crianças que têm um desempenho precoce muito acima do comum em um determinado
domínio) e de algumas crianças autistas corroboram essa hipótese. Segundo outros, a
organização inata do cérebro é restrita a princípios estruturais que devem ser
confirmados pela experiência. A partir dessa perspectiva, tanto o desenvolvimento
diferencial das distintas estruturas cerebrais quanto a experiência diferencial explicam a
irregularidade do desenvolvimento cognitivo das crianças pequenas.
Normalmente, a habilidade para desenhar da criança passa por uma série de estágios.
Como um estágio segue outro, os desenhos da criança representam cada vez mais
aspectos dos objetos desenhados, de acordo com uma abordagem do processamento de
informação.
PALAVRAS-CHAVE
abordagem do processamento de informação, p. 366
décalage horizontal, p. 361
egocentrismo, p. 355
estágio pré-operatório, p. 354
estrutura conceitual central, p. 365
jogo sociodramático, p. 378
memória de curto prazo (de trabalho), p. 367
memória de longo prazo, p. 367
operações mentais, p. 354
participação guiada, p. 377
pensamento pré-causal, p. 359
389
percepção da perspectiva mental, p. 356
princípios estruturais, p. 372
registro sensorial, p. 366
roteiros, p. 374
teoria da mente, p. 357
teoria da modularidade, p. 370