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Edição 97 > _despedida > Outubro de 2014

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Esse mundo já era


Como viver no Antropoceno
por BERNARDO ESTEVES

Numa sexta-feira de agosto, foram abertas as inscrições para Os Mil Nomes de Gaia, colóquio que
reuniria no Rio de Janeiro pensadores de vários países que vêm refletindo sobre a mudança do clima
e a crise ambiental global. Atraído pelas estrelas acadêmicas de primeira grandeza, o público esgotou
em cerca de uma hora e meia os ingressos para cada um dos cinco dias de programação.

Realizado na terceira semana de setembro, na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, o evento também
teve transmissão pela web. Foi concebido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu
Nacional da UFRJ, pela filósofa Déborah Danowski, da PUC do Rio, e pelo antropólogo francês Bruno
Latour, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, ou Sciences-Po.

Na semana do colóquio, a NOAA, agência federal americana que monitora os oceanos e a atmosfera,
anunciou que a temperatura média da superfície do planeta registrada em agosto foi a mais alta para
esse mês desde 1880, quando as medições começaram a ser feitas de modo sistemático. A continuar
nesse ritmo, 2014 pode se tornar o ano mais quente já documentado, na contramão da suposta
estagnação do aquecimento global alardeada pelos céticos do clima.

O aquecimento da Terra, a faceta mais falada da crise ambiental, integra um quadro de ameaças não
menos perturbadoras, como a acidificação dos oceanos ou a perda acelerada da biodiversidade e da
cobertura vegetal, todos eles processos interligados. A riqueza de detalhes com que a catástrofe vem
sendo descrita contrasta com a inércia de governos, empresas e sociedades civis – um relatório
divulgado em setembro mostrou que em 2013 as emissões de gases do efeito estufa aumentaram
2,3% em relação ao ano anterior.

No ano 2000, o biólogo americano Eugene Stoermer e o químico holandês Paul Crutzen, prêmio
Nobel em 1995, propuseram que se alterasse a linha do tempo com que os cientistas medem os éons,
épocas e períodos geológicos, de modo a refletir as transformações no planeta causadas pelas
atividades do homem. Segundo eles, as marcas da ação humana continuarão visíveis por milênios,
gravadas nas camadas geológicas da Terra. Paleontólogos de um futuro longínquo – ou mesmo de
outra civilização, caso a nossa venha a ser dizimada – provavelmente saberão identificar a alteração
brusca na composição da atmosfera e as demais mudanças ambientais que provocamos, por meio dos
fósseis de incontáveis espécies extintas, rejeitos radioativos, toneladas de plástico e outros rastros da
nossa passagem devastadora pelo globo.

A essa época em que nossa espécie se tornou uma força geológica, Stoermer e Crutzen sugeriram dar
o nome Antropoceno. Numa aula recente, Viveiros de Castro explicou que o conceito marca um
colapso de escalas – a história do planeta e a da espécie humana, antes nas mãos de disciplinas
distintas, agora se confundem. “O capitalismo passa a ser um episódio da paleontologia.”

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Desde que foi proposto, o termo Antropoceno vem sendo apropriado por especialistas de várias
disciplinas. No entanto, a União Internacional de Ciências Geológicas, guardiã da escala do tempo,
ainda não o adotou oficialmente. A ideia esteve na pauta do último congresso da entidade, em 2012,
quando uma comissão discutiu se o sinal da presença humana nas camadas geológicas é forte e
distinto o bastante para justificar a formalização de uma nova época. Discussão inconclusiva, decisão
adiada para o congresso de 2016: até lá, continuamos vivendo no Holoceno, iniciado há 12 mil anos,
ao final da última glaciação.

Não há consenso sobre quando teria começado o Antropoceno. Crutzen vê sua origem na invenção da
máquina a vapor em 1784, marco da Revolução Industrial, mas há quem prefira situá-la no início da
agricultura, na era dos grandes descobrimentos ou no início da era nuclear – cada recorte com suas
implicações políticas. O nome da nova época também é motivo de discórdia. Ao atribuir a
transformação planetária ao anthropos, o termo Antropoceno joga a culpa sobre toda a espécie,
embora uns sejam mais responsáveis do que outros. O sociólogo Jason Moore propôs o nome
Capitaloceno, enfatizando o modo de produção responsável pelas mudanças globais. “Essa opção
focaliza as causas mais que as consequências, mas perde de vista o fato de que é possível sair do
capitalismo, mas não do Antropoceno”, ponderou Viveiros de Castro. “Quando o capitalismo acabar,
o planeta vai continuar registrando, por muito tempo, os efeitos da Revolução Industrial e da
emissão de gás carbônico.”

O dia da palestra de Bruno Latour – o nome de maior projeção dentre os convidados do colóquio –
foi o primeiro a ter as entradas esgotadas. Nascido na Borgonha há 67 anos, Latour se formou em
filosofia e atuou como sociólogo e antropólogo das ciências. Nas últimas quatro décadas, tem
proposto uma nova forma de enxergar a produção do conhecimento científico, rejeitando noções
como o excepcionalismo humano ou o dualismo entre natureza e sociedade, e entre sujeito e objeto.
Conquistou uma legião de seguidores em várias disciplinas, mas também alguns críticos. No ano
passado, recebeu o prêmio Holberg, citado em seu currículo como “o equivalente mais próximo do
Nobel para as humanidades e ciências sociais”. Criado em 2003 pelo governo norueguês, o prêmio já
foi concedido a nomes como Jürgen Habermas e Manuel Castells.

Latour usa óculos de armação grossa e tem os cabelos pretos repartidos de lado, contrastando com o
grisalho das fartas sobrancelhas e do cavanhaque. Durante um almoço na semana do evento, ele
contou que seu interesse pela crise ecológica começou nos anos 90, quando orientou doutorados
sobre controvérsias ambientais, fez um estudo para o Ministério do Meio Ambiente e escreveu
Políticas da Natureza. “Mas foi por volta de 2005 que passei a me interessar por Gaia, incorporando
o termo como figura da atualidade.”

O químico James Lovelock se inspirou em Gaia – deusa mãe da mitologia grega que personifica a
Terra – para batizar a hipótese que descreve o planeta como um sistema complexo autorregulável,
com comportamento semelhante ao de um organismo vivo. Sua proposta, formulada nos anos 70,
projetou a imagem de Gaia, que fez sucesso na cultura pop e entre alguns cientistas, mas nem todos
compraram a ideia. Junto com outros colegas, Latour vem redefinindo o conceito em livros, artigos e
conferências. Na abertura do colóquio, o francês alertou para o risco de um pensamento holístico que
despreze a multiplicidade de Gaia. “Se a tratarmos como uma totalidade, ela será apenas uma
possibilidade de recarregar as formas de modernismo que se esgotaram justamente por causa da
crise ecológica.”

Em suas últimas publicações e conferências, Latour tem mostrado como a crise ambiental é marcada

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por um novo tipo de controvérsia, cuja resolução já não pode ser arbitrada pela ciência. “É fácil
entender por que as pessoas não correm para depositar confiança nos resultados dos cientistas”,
considerou o francês. “Eles anunciam fatos que estão tão bem estabelecidos quanto os fatos mais
bem estabelecidos da história das ciências, mas pedem que você mude sua vida.”

Para Latour, a crise põe em xeque as distinções tradicionais entre fatos e valores, forjadas num
mundo em que a ciência cuida dos objetos, e a política, dos sujeitos. Mas não há como fazer ciência
desinteressada no mundo de Gaia. Latour notou que afirmar que a água ferve a 100 graus
centígrados é uma coisa; constatar que a concentração atmosférica de gás carbônico chegou a 400
partes por milhão, como aconteceu em 2013, é outra bem distinta. “Nenhum climatologista pode
ouvir essa frase e passar a outro tópico”, ele lembrou. “A constatação soa como uma sirene
ensurdecedora.”

E, no caso dele próprio, a gravidade de suas reflexões não o impele à ação? “Sempre desconfiei dos
intelectuais engajados”, respondeu Latour, que acredita ser mais útil fazendo o que faz – dando aula,
mobilizando estudantes e propondo a discussão pública do tema. E, desde 2010, fazendo teatro, que
lhe oferece um meio mais flexível para intervir no debate sobre a mudança climática. Seu projeto
Gaïa Global Circus já deu origem a duas peças, uma das quais coescrita por ele próprio. Do Rio, o
francês embarcou para Nova York, onde armaria o Circo de Gaia na semana em que a cidade recebeu
a Cúpula do Clima da onu e a Marcha do Povo pelo Clima, a maior manifestação já feita em torno da
causa, com 300 mil pessoas.

Latour condenou o desdém de alguns colegas pelo tema ambiental. “Na França e no Brasil, a questão
continua a despertar um sorriso nos intelectuais que, uma vez que leram Foucault e Deleuze e foram
vagamente de esquerda, pensam já ter feito seu trabalho para o resto da existência”, disse o francês.
“Chamo a isso de quietismo ambiental. No fundo, creio que eles estejam mais próximos dos céticos.”

A ideia de reunir pensadores que refletem sobre a crise ambiental surgiu em 2012, na casa de
Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski em Teresópolis, numa conversa com Bruno Latour
e sua mulher, Chloé. O antropólogo brasileiro pretendia estimular um debate que ainda é tímido
entre seus colegas. “No Brasil, é muito pequena a reflexão das ciências humanas e sociais sobre as
mudanças climáticas”, disse. “Essa discussão está pegando fogo no mundo todo, mas a ficha não caiu
aqui.”

Ao lado de Déborah, Viveiros de Castro tem tratado do tema em suas intervenções públicas, seja em
conferências, seja nas redes sociais. Na semana do colóquio, lançaram Há Mundo por Vir? Ensaio
Sobre os Medos e os Fins – um livro que Latour recomenda ler “como se toma uma ducha gelada”,
para nos prepararmos para o pior.

Na abertura do colóquio, o antropólogo brasileiro lamentou que o tema do aquecimento global


estivesse ausente da imprensa e da agenda eleitoral. Assinalou também uma coincidência irônica: na
mesma semana, o Rio de Janeiro sediava outro evento internacional, a Rio Oil & Gas 2014, uma feira
da indústria petrolífera que tinha entre os patrocinadores Petrobras, Shell, Total, Statoil, ExxonMobil
e outros gigantes do setor que mais emite gases-estufa. O evento recebeu dezenas de milhares de
participantes em seus quatro dias, inclusive o vice-presidente Michel Temer, em campanha para a
reeleição. “É eloquente o fato de estarmos dividindo o espaço do Rio de Janeiro com os grandes
responsáveis por boa parte da crise climática mundial”, disse Viveiros de Castro.

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Em sua conferência, sublinhou a importância de o aquecimento global ser discutido pelas


humanidades. “Sabemos muito bem o que está acontecendo e quem é o responsável, o que não
sabemos é o que fazer e como, e isso está inteiramente fora das competências dos cientistas do
clima”, disse. Viveiros de Castro ironizou a proposta que o biólogo americano Edward Wilson fizera
semanas antes, de reservar metade do planeta para os organismos não humanos. “Ele não diz
exatamente onde vai ficar essa metade, e nem em qual metade ficarão os Estados Unidos”, disse,
arrancando risos. “É a típica ideia de jerico de um cientista natural americano. Por isso nós, cientistas
antinaturais, precisamos entrar no jogo.”

O time escalado para o colóquio contou sobretudo com filósofos, historiadores e cientistas sociais,
mas também incluiu pesquisadores das ciências naturais, como o físico Alexandre Costa, professor da
Universidade Estadual do Ceará e editor do blog O que Você Faria Se Soubesse o que Eu Sei? Costa
disse que não estava ali para dar boas notícias. Projetou slides que ilustravam o ritmo inaudito do
aquecimento do sistema climático, o crescimento da forçante radiativa e o risco da emissão na
atmosfera de uma quantidade assombrosa de metano estocada no permafrost ártico. “A besta
climática está acordando”, resumiu.

Quando o microfone foi aberto ao público, uma senhora se disse bouleversée, em sintonia com o
espírito algo francófilo que permeava o encontro. Sua ficha acabara de cair. “Estou extremamente
chocada. Queria fazer uma pergunta ao Alexandre e a todos que detêm esse tipo de conhecimento:
Você tem filhos? Como consegue dormir e ser feliz todos os dias?” Costa sacou da mala duas caixas
de remédio e agitou-as no ar: “Como eu consigo levar adiante?”, perguntou à plateia. “Jogando
dopado!”

Numa conversa no dia seguinte, o físico afirmou que gostaria de provocar reações como aquela em
todo mundo. Mas, além da preocupação, ele deseja mobilização. “Uma década atrás precisávamos da
esperança das pessoas; hoje queremos o desespero.”

Outro nome estrelado do colóquio foi a belga Isabelle Stengers, uma química convertida em filósofa
da ciência que é autora ou coautora de mais de vinte livros e professora da Universidade Livre de
Bruxelas desde 1997. Em 2009, lançou No Tempo das Catástrofes: Resistir à Barbárie que Vem Aí,
uma reflexão sobre a crise ecológica sem edição em português. Propôs ali a imagem da “intrusão de
Gaia” para caracterizar a irrupção irreversível do planeta no primeiro plano de nossas vidas,
chamando a atenção dos colegas para o conceito de Lovelock.

Nascida em 1949, Stengers é uma senhora de olhar vivo e fala envolvente. Numa entrevista no último
dia do colóquio, ela falou sobre a situação inédita com que se deparam as ciências naturais. “Os
cientistas do clima precisam de apoio. Eles devem desconfiar de seus aliados tradicionais – as
empresas e o Estado –, que podem se apropriar completamente do problema com consequências
catastróficas.” Para a pensadora belga, o momento é de cooperação. “As ciências humanas podem
lhes dar a imaginação que a sua formação não lhes deu sobre as consequências que não lhes são
familiares”, afirmou. “Se eles puderem povoar sua imaginação, talvez fiquem menos vulneráveis.”

Escalada para a conferência de encerramento, Stengers fez um balanço das discussões travadas
durante a semana. Em tom grave, observou que no futuro talvez sejamos confrontados por
questionamentos similares aos dos jovens alemães nascidos no pós-guerra, quando descobriram os
horrores do Holocausto: “Vocês sabiam, e o que fizeram?” Ela se disse hesitante entre o pesadelo e a
vergonha. “Daqui a trinta ou quarenta anos seremos a geração mais odiada.”

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