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PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E

REABILITAÇÃO URBANA: O CASO DA


ZONA PORTUÁRIA DA CIDADE
DO RIO DE JANEIRO

ELIANA MIRANDA ARAÚJO DA SILVA SOARES


Professora - Instituto Metodista Bennett/RJ
elianamiranda@terra.com.br

FERNANDO DINIZ MOREIRA


Professor - Universidade Federal de Pernambuco/UFPE
fmoreira@hotlink.com.br

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PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E REABILITAÇÃO URBANA: O CASO DA ZONA PORTUÁRIA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

RESUMO
A área portuária do Rio de Janeiro sofreu grandes redefinições que terminaram por dimi-
nuir seu núcleo dinâmico e por tornar seus espaços degradados e obsoletos. Parte da área é ocupada
por favelas e muitos de seus bens arquitetônicos estão abandonados e em avançado grau de degra-
dação. Como em muitas cidades do mundo, a Prefeitura do Rio de Janeiro vislumbra a reabilitação
desses espaços e sua reintegração à mancha urbana. Essa iniciativa resultou no Projeto Porto do Rio,
publicado no ano de 2001. O plano encontra-se em fase de implantação, embora a passos muito
curtos. O presente trabalho visa analisar as características e as estratégias de intervenções promovi-
das pela Prefeitura, identificando os pontos positivos e negativos desta empreitada à luz do conceito
da conservação urbana integrada. Considerando a Zona Portuária da cidade do Rio de Janeiro como
patrimônio cultural a ser preservado para as gerações futuras, o trabalho também procura identificar
os bens construídos existentes e suas formas de proteção e discutir as possíveis formas de inserção
desse patrimônio em uma estratégia de desenvolvimento. Após tecermos considerações sobre os
principais problemas das áreas portuárias, a segunda parte do artigo estuda as transformações ocor-
ridas na paisagem dessa área do Rio de Janeiro. A terceira parte analisa a situação atual da área, identi-
ficando os bens culturais construídos existentes e suas formas de proteção. A quarta parte apresenta
como a zona portuária foi pensada nos diversos planos de intervenção e as premissas do plano em
curso. Por fim, a quinta parte discute os principais pontos negativos do plano e as possíveis formas
de inserção desse patrimônio no processo de planejamento da área.
Palavras-chave: Porto do Rio, reabilitação, patrimônio e conservação urbana

ABSTRACT
The port district of Rio de Janeiro has suffered great transformations leading to the lack
of dynamism and to many degradation and obsolescence of its spaces. Sections of the area are oc-
cupied by shantytowns and most of its built heritage is abandoned and highly degraded. As in many
cities in the world, the Municipality of Rio de Janeiro is focused in the rehabilitation of this district
and its reintegration to the more dynamic sections of the city. This initiative was materialized in the
Projeto Porto do Rio, published in 2001. The plan is under way, but in a very slow pace. This paper
analyzes the characteristics and the strategies promoted by this project, identifying the positives and
negative aspects of this undertaking taking into consideration the principles of integrated urban
conservation. Considering the Port district of Rio de Janeiro as a cultural heritage to be preserved
to the next generations, this paper also identifies the built heritage and the ways of including it in a
strategy of development. After discussing the major problems of port areas, the second section of
this article focuses on the transformations of the landscape of Rio de Janeiro Port District The third
section analyzes the current situation, identifying the major built heritage and the ways of protect it.
The fourth section shows how the port zone was conceived in the diverse plans for the area and the
major principles of the current plan. Finally the last section discusses the major problems of the plan
and the possible was of including the local heritage in the district planning process.
Key words: Port of Rio de Janeiro, rehabilitation, heritage, urban conservation

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ELIANA MIRANDA ARAÚJO DA SILVA SOARES E FERNANDO DINIZ MOREIRA

PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E REABILITAÇÃO


URBANA: O CASO DA ZONA PORTUÁRIA DA
CIDADE DO RIO DE JANEIRO
ELIANA MIRANDA ARAÚJO DA SILVA SOARES / FERNANDO DINIZ MOREIRA

1 INTRODUÇÃO

As grandes cidades litorâneas brasileiras sempre dependeram da modernização de


seus sistemas portuários para sobreviverem no cenário econômico nacional e internacional.
Historicamente, as elites locais sempre apoiaram iniciativas de ampliação, modernização e
expansão dos portos de suas cidades. Essas intervenções foram baseadas em uma ótica ope-
racional que privilegiou a movimentação de cargas. Esse processo levou, até poucas décadas
atrás, a um aumento da área de cais, armazéns e maquinaria, implicando a apropriação de
áreas urbanas dos bairros tradicionais vizinhos aos portos. Como as estruturas portuárias
e as urbanas possuem diferentes formas e lógicas de funcionamento, a ampliação da área
portuária rompeu com a morfologia dos bairros tradicionais e levou a desestruturação destes
últimos. Em várias cidades litorâneas brasileiras, é clara a dificuldade de integração entre as
estruturas portuárias e o tecido urbano, denotando a imagem de uma cidade fraturada. (Llo-
vera, 1999, p.208-210, Silva & Cocco, 1999, p.16).
Diante das novas demandas do tráfego marítimo das últimas décadas, como o au-
mento do número de containers e do calado dos navios, os portos tradicionais viram-se
impossibilitados de cumprir adequadamente suas funções. A instalação de portos maiores
afastados dos limites urbanos como Sepetiba (Rio de Janeiro), Pecém (Fortaleza), Suape
(Recife) e Vila do Conde (Belém) foi uma alternativa que se consolidou desde os anos 70
nas principais cidades brasileiras. Esses grandes portos são ligados a uma rede territorial
mais ampla e seus mecanismos de atuação são relativamente indiferentes à existência de uma
cidade (Silva & Cocco, 1999).
As áreas portuárias tradicionais imbricadas em centros urbanos, como Rio de Ja-
neiro, Salvador Recife e Belém, sofreram grandes redefinições que terminaram por diminuir
seu núcleo dinâmico e sua área de trabalho. Como em outras cidades do mundo, isto resultou
em espaços degradados e obsoletos. No entanto, apesar da decadência dos portos, criaram-se
oportunidades para que esses espaços venham a ser reabilitados e reintegrados à dinâmica
urbana.
Muitas cidades litorâneas brasileiras vislumbram a reabilitação dessas áreas urbanas
contíguas às zonas portuárias. Com grande riqueza cultural, esses lugares são propícios para
o incremento de atividades culturais, além de possuir um grande potencial habitacional e
comercial, por estarem na área central. Para que esses projetos de reabilitação tornem-se
sustentáveis a longo prazo, faz-se necessário interligar os projetos de reconversão das estru-
turas portuárias com o entorno imediato e com a cidade como um todo. Algumas cidades já

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avançaram nos estudos e propostas, mas pouco foi implantado. Dentre estes programas, o
do Rio de Janeiro apresenta-se como um dos mais ambiciosos.
Após sofrer inúmeras transformações na paisagem, a área portuária do Rio de Ja-
neiro encontra-se hoje desvalorizada e desconectada em relação à malha urbana da cidade.
Grande parte da área é ocupada por favelas e boa parcela de seus bens arquitetônicos estão
abandonados e em avançado grau de degradação. Intervenções realizadas ao longo do sé-
culo XX contribuíram ainda mais para esse “isolamento” urbano. A área detém uma grande
complexidade, já que interesses diversos conflitam, como a questão da continuidade das
atividades portuárias – com a carga e descarga dos contêineres – o uso dos antigos armazéns,
a urbanização das favelas, o tratamento das vias de circulação interna e periférica, a implanta-
ção de programas habitacionais e a expansão de empreendimentos comerciais, entre outros
fatores. A área em estudo compreende a costa oeste da Baía de Guanabara, cujos limites são
definidos pela Região Administrativa I RA, a qual engloba os bairros da Gamboa, Saúde,
Santo Cristo e Caju, considerados como Zona Periférica do Centro.
Já há alguns anos, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro vem realizando estudos
para reabilitação e preservação da região. A diversidade cultural e urbana da área também
estimula muitos profissionais e estudantes a idealizarem intervenções inovadoras ou conser-
vadoras. As experiências acumuladas durante os anos serviram para amadurecer as propostas
e melhor estruturar os objetivos a serem atingidos, o que resultou no Projeto Porto do Rio da
Prefeitura, publicado no ano de 2001. O plano encontra-se em fase de implantação, embora
a passos muito curtos.
O presente trabalho visa analisar as características e as estratégias de intervenções
promovidas pela Prefeitura, identificando os pontos positivos e negativos desta empreitada à
luz do conceito da conservação urbana integrada. Considerando a Zona Portuária da cidade
do Rio de Janeiro como patrimônio cultural a ser preservado para as gerações futuras, o
trabalho também procura identificar os bens culturais existentes e suas formas de proteção e
discutir as possíveis formas de inserção desse patrimônio como uma estratégia de desenvol-
vimento.
A segunda parte do artigo estuda as transformações ocorridas na paisagem dessa
área do Rio de Janeiro. A terceira parte analisa a situação atual da área, identificando os bens
culturais construídos existentes e suas formas de proteção. A quarta parte apresenta como a
zona portuária foi pensada nos diversos planos de intervenção e as premissas do plano em
curso. Por fim, a quinta parte discute as principais limitações do plano e as possíveis formas
de inserção desse patrimônio no processo de planejamento da área.

2 AS TRANSFORMAÇÕES DA PAISAGEM AO LONGO DA HISTÓRIA

No início da colonização, a Baía de Guanabara apresentou-se como um local pro-


pício para instalações de portos e fortificações, a fim de consolidar a ocupação portuguesa
e guarnecer a costa contra os invasores. Cidade e porto nasceram ao mesmo tempo e foram
por séculos intrinsecamente ligados e dependentes um do outro. Com o desenvolvimento da
mineração em Minas Gerais, no século XVIII, o porto do Rio torna-se o principal escoadou-
ro das riquezas da colônia e entrada de produtos e escravos, passando a ganhar ainda mais
importância com a transferência da nova sede administrativa para o Rio de Janeiro, em 1763.

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A costa era plena de pequenas baías


e dominada por diversos embarca-
douros e outras estruturas ligadas ao
porto.
A atual configuração da
zona central que engloba a zona por-
tuária pouco se parece com aquela
nos tempos coloniais. Morros foram
demolidos, a exemplo dos Morros do
Castelo e de Santo Antônio, praias,
lagoas e pântanos foram aterrados.
Tais fatos alteraram definitivamente
a paisagem local.
No início do século XX, na
gestão do prefeito Pereira Passos, a
orla da cidade foi alterada, e grandes
avenidas foram abertas, a exemplo Figura 1 - Prainha e Saúde, em 1893. Foto em detalhe de Marc Ferrez.
do que o Barão Haussmann reali- Fonte: Orla Carioca, 2004.
zou em Paris. Uma grande obra foi
feita no porto, devido ao seu crescente movimento. Toda a faixa costeira entre a Praça Mauá
e a Ponta do Caju foi retificada por meio de aterros, em substituição às reentrâncias da costa.
Ao todo dez praias desapareceram, permanecendo somente os nomes, bastante conhecidos:
Prainha, Saúde, Chichorra, Gamboa, Valongo, Formosa, Palmeiras, Lázaros, São Cristóvão
e Caju (GASPAR, 2004, p.128). Nessa época foi construído um novo cais com 3500 metros,
juntamente com 18 armazéns, na avenida recém aberta, batizada de Rodrigues Alves. O novo
cais do porto transformou o Saco de São Diogo na Avenida Francisco Bicalho; a Praia For-
mosa na Rua Pedro Alves; o Saco do Alferes na Rua do Santo Cristo; o Saco da Gamboa na
Rua da Gamboa; o Valongo na Rua Sacadura Cabral; e a Prainha na Praça Mauá (GASPAR,
2004, p.135).
A construção do Elevado
Juscelino Kubitschek na década de
1970, mais conhecido como Aveni-
da Perimetral, obstruiu a visibilidade
dos bairros portuários. Sua exten-
são segue toda a Avenida Rodrigues
Alves, e tem por objetivo ligar a
autopista do Aterro do Flamengo,
a Avenida Brasil, e a Ponte Rio-Ni-
terói, além de outros acessos secun-
dários. Todas estas transformações
acentuaram o conflito entre a área
portuária e a área central da cidade,
com um efeito desarticulador sobre Figura 2 - Píer Mauá no primeiro plano. Foto: S/a. Início dos anos 2000.
a estrutura urbana.

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No âmbito das políticas e


projetos modernizadores da década de
1970, o Governo do Estado promoveu
a implantação do Porto de Sepetiba, no
município de Itaguaí, a fim de atender,
sobretudo, o complexo industrial do
bairro de Santa Cruz, na cidade do Rio
de Janeiro. Porto de Sepetiba foi inau-
gurado em 1982, sob a administração
da Companhia Docas do Rio de Janei-
ro (CDRJ). Com isso, o Porto do Rio
perdeu grande parte de suas atividades,
ficando muitos de seus armazéns obso-
letos. As atividades de carga e descarga
do antigo cais foram deslocadas para o Figura 3 - Foto aérea: Bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo e marcos
referenciais. Fonte: dos autores com base no Google Maps, 2007.
bairro do Caju, próximo à Ponte Rio-
Niterói. Alguns dos armazéns passaram a ser utilizados como galpões para as atividades de produção
das escolas de samba cariocas.
A região foi esquecida por muitos anos, não só pelo poder público, mas pelos cidadãos ca-
riocas, de um modo geral. Com a construção da Avenida Presidente Vargas, na década de 40, o cen-
tro da cidade foi claramente dividido em duas partes, entre o centro de negócios “febril” e o centro
“próximo à zona portuária”, fato que gerou uma segregação social, cultural e econômica. Enquanto
o primeiro recebeu mais investimentos e programas específicos para a preservação e conservação
do patrimônio cultural, como o Corredor Cultural, que será visto mais adiante, o segundo tornou-se
pouco valorizado, entrando em um forte declínio sócioeconômico e em um avançado grau de degra-
dação, com o empobrecimento da população residente. Espacialmente, os bairros portuários foram
cercados pela grande avenida e seu muro de edifícios, e pelo Viaduto da Perimetral, fazendo com
que perdessem a conexão com a cidade e a sua visibilidade, tendo como conseqüência o isolamento
urbano.

3 CONTEXTO: CARACTERIZAÇÃO E SITUAÇÃO ATUAL

O Porto do Rio ainda possui 6740 metros de cais contínuo e um píer de 883 metros de
perímetro (CDRJ, 2006). As instalações portuárias vão desde a extremidade leste, no Píer Mauá,
até a extremidade norte no Cais do Caju, incluindo os cais, ilhas, docas, pontes, píeres de atracação
e de acostagem, armazéns, pátios, edificações, vias internas de circulação rodoviárias e ferroviárias,
além de terrenos ao longo dessas faixas marginais (CDRJ, 2006). O porto ainda é utilizado e detém
importância para a economia do Estado.
Os bairros da zona portuária guardam ainda em muitas ruas a ambiência da sua ocupação,
consolidada no início do século XX. Podem-se encontrar inúmeros sobrados, galpões marcadamen-
te ecléticos, e vilas operárias remanescentes do período industrial, edificações art déco e modernistas,
que se mesclam a conjuntos habitacionais populares e às favelas, conferindo uma enorme diversida-
de à área.
Essa diversidade é expressa através de exemplares arquitetônicos que poucos cariocas
conhecem. A riqueza desse patrimônio é inestimável. Encontramos obras de grandes arquitetos

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Figura 4 - Vila operária de Lúcio Costa e Gregori Warchavchik em 1931 e aspecto atual.
Fonte: LINO, p. 147, 2005. Foto: Eliana Miranda, 2007.

e construtores, que atuaram no final do


século XIX e início do XX, como Antô-
nio Jannuzzi, e modernistas, como Lú-
cio Costa, Gregori Warchavchik, Oscar
Niemeyer e Affonso Eduardo Reidy.
A arquitetura industrial está
representada pelos galpões que se loca-
lizam ao longo da linha d’água e por ou-
tros edifícios espalhados na área, como
o Moinho Fluminense, construído em
1927. Parte do Moinho é voltada para
a Praça Coronel Assunção, antiga Praça
da Harmonia, muito utilizada pelos mo-
radores do bairro, particularmente por
Figura 5 - Um dos edifícios do Moinho Fluminense, projetado e construí-
idosos e crianças. do por Antônio Jannuzzi e Irmão, e trecho da Praça Coronel Assunção.
Com relação aos usos da Foto: Eliana Miranda, 2007.
I–RA, da área portuária em questão, o
uso é predominantemente residencial, à exceção do bairro da Saúde, de acordo com a Tabela 1 a
seguir. Embora as áreas destinadas aos usos não residenciais sejam bem mais expressivas, é preciso
levar em conta que muitos dessas áreas e imóveis estão abandonados, subaproveitados, ou até mes-
mo em ruínas, havendo também vazios urbanos, além do comércio possuir baixa rentabilidade.
Tabela 1 - Os usos de acordo com os bairros da I – RA

Fonte: Dados da PCRJ – Secretaria Municipal de Fazenda – SMF - IPP/ DIG-ALFA, 2000.

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A Zona Portuária I–RA ocupa uma área1 de 850,84 ha, e abriga uma população
de 39973 habitantes, de acordo com o censo de 2000, realizado pelo IBGE. Os bairros em
estudo – Saúde, Gamboa e Santo Cristo – possuem ao todo 316,14 ha e uma população de
22294 habitantes, o que caracteriza uma das mais baixas densidades demográfica/habitacio-
nal da cidade. Os grandes proprietários de imóveis e terrenos, de acordo com o levantamen-
to realizado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PACRJ, 2001, p.12), são: Docas
S.A., a Rede Ferroviária Federal – RFFSA, a União, Exército, CEDAE, Estado, Município,
Moinho Fluminense e Portus.
A partir do final dos anos
70, iniciaram-se as preocupações
em torno da preservação da área
central da cidade, tanto do centro
de negócios como da área portu-
ária. De 1979 a 1984 foi a fase de
implantação do Projeto Corredor
Cultural do Rio de Janeiro,2 que teve
como foco o centro de negócios.
Ao todo foram cerca de 1600 edifi-
cações preservadas pelo plano, hoje
considerado um plano eficaz e bem
sucedido (RIOARTE, 1985, p.6).
Já na área portuária dos
bairros anteriormente descritos, o
impulso para a preservação partiu
de preocupações ambientais. Em Figura 6 - As quatro áreas de proteção do Corredor Cultural e a delimitação da
1998, surgiu então, a figura jurídica APA - SAGAS, destacando-se os morros existentes, Conceição, Livramento,
Providência e Pinto. Fonte: dos autores, com base na foto aérea do Google
da Área de Preservação Ambiental Maps, 2007 e dado da PCRJ.
– APA, regulamentada pelo decre-
to municipal n.° 7.612. Os critérios considerados para a criação das APAs estão contidos em
13 artigos, os quais dispõem sobre um bem, cujas características deverão ser notáveis nos
aspectos naturais ou culturais, cuja ocupação e utilização devem ser disciplinadas no sentido
da valorização do patrimônio ambiental. Naquele mesmo ano, foi regulamentada a Lei que
instituiu como APA logradouros dos bairros da Saúde, Santo Cristo, Gamboa e Centro,
conhecida como SAGAS3. Dentre as principais atribuições da Lei, pode-se destacar:
• a manutenção das características consideradas importantes na ambiência e
identidade cultural da área;
• preservação do bens culturais que apresentem características morfológicas
típicas e recorrentes na área;
• estabelecimentos de critérios para novos gabaritos;
• prévia aprovação para demolições e construções;
• criação de um escritório técnico, para fiscalização e acompanhamento das in-
tervenções.

1
Dados de 2003, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
2
Aprovado pela Lei n. 506 de 17/01/1984, que reconhece o Corredor Cultural como zona especial do centro histórico do Rio de Janeiro.
3
Decreto “N” 7.351 de 14 de janeiro de 1988.

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A Lei de SAGAS protege o


conjunto de centenas de imóveis, que se
espalham em diversas quadras. Na maio-
ria, são sobrados de dois pavimentos,
com comércio no térreo e residência no
pavimento superior. No trecho do Cen-
tro, o comércio se estende aos dois pa-
vimentos. A volumetria da edificação é
preservada, isto é, mantêm-se o telhado
com telhas francesas, as clarabóias para
iluminação e ventilação, e a fachada.
Com o Plano Decenal da Ci-
dade do Rio de Janeiro, instituído pela
Lei Complementar n.° 16 de 1992, foi Figura 7 - Tomada do Jardim do Valongo no Morro da Conceição com
vista para a Rua Barão de São Félix e ao fundo o Morro da Providên-
criada a Área de Proteção do Ambien- cia. Foto: Eliana Miranda, 2005.
te Cultural – APAC, com o objetivo de
proteger as áreas com características ambientais e urbanas de notável interesse para a iden-
tidade cultural da cidade. Estabeleceu-se também a conceituação e a diferenciação entre as
APAs e as APACs. A Secretaria Municipal das Culturas é quem gerencia este instrumento
urbanístico. Como contrapartida para os interesses privados, a prefeitura dispôs em legisla-
ção a isenção de impostos para os imóveis de interesse histórico, arquitetônico, cultural e de
preservação paisagística, tais como:
• Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza – ISS;
• Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU;
• Taxas de Obras em Áreas Particulares – TOAP.
Além do instrumento municipal de preservação, a Zona Portuária possui bens imó-
veis tombados pelas esferas municipal, estadual e federal, que estão classificados na Tabela
2, a seguir. Os tombamentos realizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN fizeram parte da primeira fase da preservação do patrimônio no País,
a qual privilegiava a arquitetura colonial. Portanto, apenas cinco bens, quatro localizados na
Saúde e um na Gamboa, foram tombados logo no ano subseqüente à fundação do IPHAN,
em 1938, sendo o contexto urbano desconsiderado.
Tabela 2 - Bens imóveis tombados na Saúde, Gamboa e Santo Cristo

Fonte: IPHAN, Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – INEPAC, e Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
– Secretaria das Culturas, 2007.

De acordo com o relatório dos subsídios para a revisão do Plano Diretor Decenal
de 1992, a Área de Planejamento 1 (no ano de 2005) é constituída por 15 bairros e 6 regiões
administrativas, representando 4,6% da população e 2,8% do território municipal. As regiões
são: I - Portuária, II – Centro, III – Rio Comprido, VII – São Cristóvão, XXI – Paquetá e

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XXIII – Santa Teresa, as quais formam o


espaço de ocupação mais antiga da cida-
de. Dentre as diretrizes urbanísticas para
essas áreas, destaca-se o estímulo ao uso
residencial de classe média e também da
classe baixa, visando promover uma mul-
tiplicidade de usos e diversidade social.
Está prevista a elaboração de
estudos tanto para a construção de no-
vos imóveis, como para a reconversão
dos antigos prédios existentes para mo-
radia. A Zona Portuária, a Lapa, e a Av.
Beira Mar, no Centro, aparecem como Figura 8 - Igreja de N. Sra. da Saúde, na Gamboa, tombada pelo
grandes eixos de desenvolvimento dos IPHAN. Fonte: Eliana Miranda, 2007.
usos residenciais, culturais e de lazer. A
expansão do uso portuário é creditada
para o bairro do Caju, também pertencente a I – RA.
A predominância do uso residencial nestes bairros (de acordo com a Tabela 1)
pode ser considerada como um fator positivo para a conservação da área, pois atribui ao
local um valor de uso, que deve ser preservado. Isso se reflete diretamente em um valor
econômico que reside não somente na vocação habitacional, mas também cultural e co-
mercial do local, com potencial para crescer e se expandir. As intervenções devem prever,
no entanto, as possíveis opções de uso futuro, a fim de que não ocorra a gentrificação4 pela
especulação imobiliária e a perda da autenticidade do bem, e da identidade cultural.
A região guarda muitas construções e ruas da época de sua formação, o que lhe
confere um valor históricocultural, tornando-se fonte de interesses para estudos, planos e
projetos. As estórias contadas pelos moradores mais idosos, são parte da memória local.
Essa aquisição e transmissão de conhecimento, que consiste em valor cognitivo, não pode
ser esquecida ao se realizarem projetos de reabilitação urbana, para que se possa preservar
a sua identidade cultural e promover projetos sociais.

4 PLANOS DE INTERVENÇÃO NA ZONA PORTUÁRIA

Foram realizados muitos projetos visando a revitalização da Zona Portuária, mas


nem todos foram bem-sucedidos, ou não chegaram a ser executados. Inspirados em mo-
delos como o de Puerto Madero, em Buenos Aires, esses planos tinham como objetivo
reabilitar uma área urbana degradada próxima ao grande centro financeiro da cidade, tendo
como estratégia o estímulo a programas de cunho habitacional, incrementação do comér-
cio e do lazer. Contudo, a área selecionada sofre as conseqüências deste abandono e ainda
espera a implantação desses programas.
No final da década de 70, existia a idéia de transformar a área do porto em um
complexo de avançada tecnologia. A orla também seria renovada, a fim de ampliar o seu
valor imobiliário. Contudo, os moradores dos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo ma-
Elitização da população residente, por meio da substituição dos habitantes por outros de maior poder aquisitivo.
4

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nifestaram-se contrários às intervenções. Foram então realizados estudos, conhecidos como


Projeto SAGAS, que levaram à aprovação de atos legais para a preservação dos bairros (PCRJ,
2001, p.7).
O projeto lançado em 1984 visava à “proteção” e “valorização” do patrimônio cul-
tural dos referidos bairros, a fim de promover a revitalização do local por meio da formulação
de uma legislação específica de proteção. Para tal, bens culturais móveis e imóveis foram in-
ventariados. Quatro anos mais tarde foi criada a APA – SAGAS, explicada no item anterior.
De 1987 a 1996 foi elaborado o Plano de Desenvolvimento Portuário, encomenda-
do pelo Ministério dos Transportes e pela Portobrás – Empresa de Portos do Brasil S.A., para
áreas de propriedade da Cia Docas do Rio de Janeiro. O objetivo era expandir e revitalizar o
Porto, com a redução de custos relativos ao transporte de mercadorias. Em 1989, o Plano foi
desdobrado no Plano de Desenvolvimento Urbano da Retaguarda do Porto do Rio de Janeiro,
(dos bairros de Gamboa, Saúde e Santo Cristo). Passou a incluir a revitalização e renovação.
Constatou-se, no entanto, que não havia área livre suficiente para as operações portuárias para
carga e descarga dos contêineres. Este fato fez com que fosse criado o Plano de Desenvolvi-
mento Urbano para área “não utilizável”, o qual definia a expansão do Centro de Negócios
com a implantação de comércio, serviços, habitação e lazer, nas áreas reservadas aos galpões
e armazéns, além de buscar garantir a adaptação física para as atividades portuárias (MOREI-
RA, 2002, p. 105-106).
A fim de orientar os planos de renovação, em 1992 foi implantado o Plano de Estru-
turação Urbana da Zona Portuária pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente.
Era proposto o tombamento de edifícios históricos, além da criação de áreas para preservação,
e reabilitação, incluindo o incentivo ao uso habitacional, reestruturação do sistema viário e
uso do solo. Estabelecia-se então definitivamente o potencial cultural, social e econômico da
região.
Em 1994, foi criado o Projeto Cidade Oceânica do Rio de Janeiro – Centro Interna-
cional da Água e do Mar. O projeto propunha a criação de um pólo de animação cultural e de
intercâmbios no Porto, com a construção de centros comerciais, de serviço e de convenções,
mas não saiu do papel. Outros projetos foram ainda desenvolvidos para o Píer Mauá, e o ter-
minal de passageiros, mas nenhum, contudo, foi implantando.
Naquele mesmo período foram
realizados estudos para propostas habita-
cionais na região, com o desenvolvimento
do Projeto Oportunidades Habitacionais, a
cargo da Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro e do Instituto de Planejamento
– IPLAN5. O projeto diagnosticou as áre-
as a fim de verificar aquelas com potencial
habitacional e sua viabilidade econômica e
legal. Como resultado, foram iniciadas as
obras, do Projeto Habitacional da Saúde,
em 1996, cuja conclusão ocorreu em 2001,
com financiamento da Caixa Econômica
Federal (MOREIRA, 2002, p. 107-108). Figura 9 - Projeto Habitacional da Saúde. Foto: Eliana Miranda, 2006.

Atual Instituto Pereira Passos.


5

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PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E REABILITAÇÃO URBANA: O CASO DA ZONA PORTUÁRIA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Em 1996 surgiu o Programa Novas Alternativas da Secretaria Municipal de Habi-


tação, o qual perdura até o momento, com o objetivo de fomentar o uso residencial, com a
reabilitação, recuperação e construção de imóveis em vazios urbanos com infra-estrutura no
Centro do Rio. Os imóveis são comercializados pelo Programa Morando no Centro, para a
ocupação de vazios urbanos e prédios em ruínas, incluindo a Saúde, Gamboa e Santo Cristo.
O Programa busca ainda parcerias com proprietários, construtores e empreendedores interes-
sados em vender, reabilitar ou construir imóveis no Centro.
Em 1998 começou a ser desenvolvido o Programa de Recuperação Orientada
– proRIO, para o Morro da Conceição. Tem como princípio básico “a intensificação da
articulação entre os diversos programas da prefeitura, promovendo um conjunto de ações
complementares à organização urbana, que visam reabilitar e valorizar o patrimônio urbanís-
tico, paisagístico e arquitetônico (...)” (SIGAUD e PINHO, 2000, p.13). Constam no projeto
a intervenção nas áreas públicas, a recuperação do parque privado, a revisão das legislações
urbanas e de preservação e o aproveitamento do potencial turístico (SIGAUD e PINHO,
2000, p.14).
Na área ainda consta o projeto do Museu Guggenheim, que seria localizado no
Pier Mauá. Segundo a prefeitura, o museu serviria para integrar a área, ao circuito da Frente
Marítima e ao Aterro, interligando-a pela orla e pelo eixo da Avenida Rio Branco. A proposta
tornou-se bastante polêmica tanto no meio acadêmico quanto para a população carioca.
Questionou-se a viabilidade do empreendimento pelos altos valores de custo de projeto e
obra, além da escassez de recursos que acometeria outras instituições culturais do centro do
Rio já existentes.
Todos esses projetos refletem que o poder público compreende que se trata de uma
zona estratégica, apesar do seu atual estado de degradação. São mais de 30 anos de estudos
sistemáticos, que evoluíram, e permitem que hoje exista um amadurecimento sobre como
trabalhar a área, nos mais diversos aspectos de conhecimento, sendo eles sociais, culturais e
econômicos.

4.1 Projeto Porto do Rio

Em 2001 foi desenvolvido o “Plano de Recuperação e Revitalização da Região


Portuária do Rio de Janeiro” pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. O objetivo geral é
promover “a reinserção dessa área no tecido urbano da cidade, seja ele viário, econômico, so-
cial, cultural ou espacial” (PCRJ, 2001, p.13). Este plano foi feito com base na experiência dos
projetos anteriores, e para alcançar a meta, foram traçadas premissas básicas, que buscam:
• tratar a região como um espaço estratégico de desenvolvimento;
• atrair novos empreendimentos privados (serviços, comércio, lazer cultural, e
habitação para classe média);
• romper o caráter de isolamento dos bairros portuários (melhorias nos siste-
mas de locomoção);
• reintegrar a área à paisagem e ao uso da Baía de Guanabara (lazer, esporte e
contemplação);
• valorizar o patrimônio arquitetônico e urbano local;

112 da Vinci, Curitiba, v. 4 , n. 1, p. 101-120, 2007


ELIANA MIRANDA ARAÚJO DA SILVA SOARES E FERNANDO DINIZ MOREIRA

• criar uma política para o reaproveitamento de imóveis de valor histórico para


fins habitacionais, comerciais ou de serviços;
• instituir um órgão gestor para o desenvolvimento da região.
Das ações propostas pelo plano, constam projetos para reurbanização de logradou-
ros, incluindo as áreas de morro, bem como projetos para abertura de novas vias, incluindo
a ampliação do sistema de ciclovias e a implantação de novo sistema de transporte. Com
relação aos usos, há incentivos principalmente para a habitação e serviços, com a criação de
linhas de microcrédito para a economia local. Novas opções de lazer serão criadas e serão
implantados novos equipamentos culturais.
Para a proposta de reestruturação urbana, foram realizados estudos sobre a poten-
cialidade de renovação, alterações da regulamentação urbana e alterações da malha viária,
visando atender os objetivos elencados. Reconhecem-se ainda os antigos galpões e armazéns
como marcas da paisagem portuária, como deverão ser reciclados para usos ligados ao lazer,
cultura e comércio.
No estudo do potencial de renovação, a PCRJ identificou o que deveria ser manti-
do, o que seria difícil de alterar ou de transformar em espaço público, e definiu as quadras e
terrenos onde a “renovação construtiva e de uso poderia ocorrer sem comprometer a perso-
nalidade da área” (PCRJ, 2001, p.23). As regulamentações urbanas devem sofrer alterações
pelas novas possibilidades de uso e ocupação, e a malha viária deverá também ser re-adequa-
da, com o prolongamento, ou a criação de novos eixos viários, considerando ainda antigos
eixos operacionais portuários.
O programa para recuperação e revitalização do porto está dividido em seis funções: ur-
banismo, transportes, habitação, desenvolvimento econômico, projetos especiais e gestão urbana.
O urbanismo contempla o levantamento da situação física, fundiária e tributária; a modificação da
legislação de zoneamento; a aprovação de novos alinhamentos; e a requalificação paisagística da
Avenida Barão de Tefé e da Praça Mauá/ píer. Em relação aos transportes, está prevista a implan-
tação do sistema de veículo leve sobre trilhos e novas ligações hidroviárias na Baía de Guanabara.
Para a habitação prevê-se a existência de uma política habitacional adequada para a área. Para o
desenvolvimento econômico propõe-se apoio às pequenas atividades econômicas, atração de no-

Figura 10 - Mapa de interesses do Plano de Revitalização e Reestruturação da Zona Portuária. Fonte: Instituto
Pereira Passos – PCRJ, 2006.

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PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E REABILITAÇÃO URBANA: O CASO DA ZONA PORTUÁRIA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

vos investimentos e criação de pólos de desenvolvimento. Como projetos especiais verificam-se


programas para viabilização de grandes equipamentos, para reabilitação de conjuntos históricos e
implantação de melhorias pontuais. A gestão urbana tem como proposição a modelagem institu-
cional e operacional para a execução do plano. (PCRJ, 2001)
O quadro 1 a seguir indica os atores envolvidos no processamento das funções, os pro-
dutos em desenvolvimento.

Quadro 1 - Programa de Recuperação e Revitalização


* Concluído. IPP – Instituto Pereira Passos, SMU – Secretaria Municipal
de Urbanismo, SMO – Secretaria Municipal de Obras, SMTR – Secretaria
Municipal de Transportes, SMC – Secretaria Municipal das Culturas, SMH
– Secretaria Municipal de Habitação, SMF – Secretaria Municipal da Fazenda.
Fonte: PCRJ, 2001, p.28.

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ELIANA MIRANDA ARAÚJO DA SILVA SOARES E FERNANDO DINIZ MOREIRA

Também está prevista para as


obras de revitalização a reforma do Túnel
Ferroviário da Gamboa e da Vila Olím-
pica. Está prevista ainda a reurbanização
e revitalização de várias ruas, incluindo
obras de drenagem, esgotamento sani-
tário, sinalização e iluminação pública.
Como prioridade da obra, a prefeitura as-
sinalou a necessidade de resolver os pro-
blemas de alagamento da região em época
de chuvas.
Desde a década de 70 estão pre-
vistas em lei construções de 18 pavimentos Figura 11 - Apresentação do estudo de verticalização para a recupe-
ração e revitalização do porto. Fonte: PCRJ.
na região, além de quatro pavimentos de
garagem, apesar de quase não se encon-
trarem edifícios desse porte. A legislação
confirma o desejo de expansão do cen-
tro de negócios. Cabe aqui destacar que
este projeto teve como modelo o projeto
de Puerto Madero em Buenos Aires, que
promoveu a reconversão dos antigos ar-
mazéns portuários para abrigar escritórios,
serviços comerciais e culturais, e residen-
ciais, e retomou a ligaçào da cidade com o
rio. O projeto de Puerto Madero procurou
integrar as novas construções, sem abrir
mão do aspecto portuário, que foi conser- Figura 12 - Puerto Madero, Buenos Aires. Foto: Eliana Miranda, 1999.
vado.
Puerto Madero destaca-se pelo seu zoneamento e diversidade de usos implantados,
gerando assim condições de sustentabilidade. No entanto, Rio de Janeiro e Buenos Aires são
muito distintas. Em termos do crescimento da malha urbana, observa-se que o Rio cresceu em
direção à Zona Sul e Oeste, mais especificamente na Barra da Tijuca, que se tornaram os setores
mais dinâmicos da cidade. O centro de Buenos Aires em sua faixa próxima à região portuária
sempre manteve certo dinamismo e isto facilitou a revitalização. Diferentemente do Puerto Ma-
dero, no qual a valorização se deu também pelo estabelecimento de escritórios e hotéis de luxo,
o projeto Porto do Rio deve contemplar também as camadas populares, que ali estão desde o
início de sua ocupação. Grandes empreendimentos correm o risco de ficarem obsoletos como
no restante da cidade, se não houver um estudo claro sobre a viabilidade econômica, cultural e
social do local.
Um grande acerto do projeto foram as obras da Cidade do Samba e da Vila Olímpica
da Gamboa, ambas inauguradas em 2005. A Cidade do Samba localiza-se no antigo pátio ferro-
viário, terreno adquirido pela prefeitura da liquidante Rede Ferroviária Federal S.A. É constituí-
da por 14 galpões que servem para atender as atividades carnavalescas do Grupo Especial, antes
espalhadas pelos galpões da Gamboa, carecendo de infra-estrutura. Com as novas instalações,
os trabalhos são realizados em segurança, além de facilitar e incentivar a visita de turistas.

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PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E REABILITAÇÃO URBANA: O CASO DA ZONA PORTUÁRIA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Figura 14 - Vila Olímpica da Gamboa. Foto: Eliana Mi- Figura 13 - Cidade do Samba. Foto: Eliana Miranda, 2006
randa, 2006

A Vila Olímpica foi instalada em terreno próximo, com aproximadamente 18 mil m²,
com quadras polivalentes, ginásio coberto, pista de skate, áreas de lazer para crianças, anfiteatro,
piscinas, ciclovia, espaço para alimentação, entre outras atividades. No terreno há dois galpões
tombados pela esfera municipal, os quais pertenciam à Rede Ferroviária Federal. O programa
foi criado pela prefeitura em 2001 a fim de “promover e incentivar a prática de atividades
esportivas voltadas principalmente para crianças, jovens e adolescentes (...)”.6 O trabalho é
desenvolvido pela Secretaria Municipal de Esportes e Lazer, que administra os espaços e realiza
projetos, integrando a comunidade por meio do esporte.
Atualmente, alguns armazéns são utilizados como equipamento cultural, já tendo
abrigado grandes eventos. O Armazém 5 encontra-se em constante uso, com incentivo da
Secretaria Municipal das Culturas. A Companhia Docas do Rio de Janeiro também abre os
portões do Armazém 6.

5 CONCLUSÕES

O grande desafio Projeto Porto do Rio, sem dúvida, é transformar um espaço fun-
cional como o porto, em uma área de uso urbano comum, mantendo ainda as suas atividades
e a ambiência local, com a preservação das construções históricas. Tarefas como integração
das favelas, reestruturação urbana e implementação de políticas habitacionais também são
questões complexas que requerem, além de recursos financeiros disponíveis, vontade polí-
tica. Entre os pontos positivos do projeto, está o aumento do estoque habitacional da área.
Com a implantação de linhas de financiamento – uma atitude que deve ser continuada e
incentivada desde que respeitando os padrões tipológicos e morfológicos – e o incentivo
à instalação de empreendimentos imobiliários comerciais e de serviços, como expansão do
centro de negócios, e expansão do comércio vicinal local, com a abertura de linhas de crédito.
As propostas espaciais trazem importantes contribuições para a cidade por abrir uma frente
marítima, ou seja, mais espaços com vistas para a baía, e por prover mais espaços públicos.
No entanto, o Projeto Porto do Rio apresenta alguns pontos negativos que podem
comprometer seu sucesso, visto que:

Disponível em http://www.rio.rj.gov.br. Acesso em 2006.


6

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ELIANA MIRANDA ARAÚJO DA SILVA SOARES E FERNANDO DINIZ MOREIRA

• carece de uma estratégia mais abrangente de gestão e de conservação da área


em questão;
• não apresenta uma sistemática de análise dos elementos formais e tipológicos
da área;
• põe em risco a manutenção da identidade portuária;
• não construiu uma sólida aliança com os diversos atores presentes na área;
• suas propostas de desenho urbano parecem não contribuir para a manutenção
das especificidades locais;
• não possui um processo de monitoramento e controle das ações.
O planejamento e a gestão da área portuária devem ter como objetivo garantir a
manutenção de suas estruturas físicas e sociais, integrando-os com novos e compatíveis usos
e funções. A área deve ser entendida como um sistema, no qual seus elementos, usos, funções
e valores estejam em uma gradual e compatível mudança, dentro de um contexto urbano.
(Zancheti & Jokkilehto, 1997, p.38) De acordo com a Declaração de Amsterdã,
a conservação do patrimônio deve ser considerada como o objetivo principal da planifi-
cação urbana e territorial, e a recuperação de áreas urbanas degradadas deve ser realizada
sem modificações substanciais da composição social dos residentes nas áreas reabilitadas.7
Acreditamos que a revisão da legislação urbana do porto do Rio de Janeiro deve ser feita de
maneira criteriosa, levando em consideração os princípios da conservação integrada, que não
foi abordada no plano.
A análise das formas de uma área de valor histórico, e de seu relacionamento com
o resto da cidade, é fundamental para a identificação de valores que nortearão as decisões e
propostas (Zancheti & Jokkilehto, 1997, p.40). Uma análise mais detida das tipo-
logias e morfologias existentes na estrutura urbana portuária poderia ter dotado o projeto
do Porto de um instrumento mais eficaz para o entendimento da formação e evolução das
partes da área portuária e de suas articulações e com a estrutura urbana. O processo de
valoração deve ser fundado em amplas perspectivas culturais, ou seja, deve ser baseado em
valores históricos, econômicos, antropológicos e, também, aqueles relacionados à memória
local e à tradição artística.
Como foi visto, o modelo portuário tradicional imbricado em centros urbanos den-
sos, e em conflito com estes, não é mais sustentável. No entanto, o deslocamento das funções
portuárias para grandes portos externos são ainda mais danosos para os centros urbanos ao
retiraram parte de seu dinamismo. Se mantidos dentro de certa escala os portos podem fun-
cionar como um importante instrumento de desenvolvimento local. A relação do porto com
a cidade deve ser estimulada, gerando assim benefícios para ambos os lados (Silva & Coc-
co, 1999, p.20). O porto pode encontrar nas redes sociais urbanas recursos empresariais e
competências para aprimorar os serviços que oferta. O desativamento quase total do porto,
deixando apenas as instalações do Caju, pode representar a perda de uma faceta importante
da identidade cultural do Rio de Janeiro, de algo que está identificado com a própria origem
da cidade. Apesar da manutenção dos galpões, acreditamos que o patrimônio portuário de-
veria ter sido mais valorizado, pois suas formas, usos e atividades permitem dar continuidade
entre o passado, presente e o futuro e podem garantir a sustentabilidade do processo ao fo-
mentarem soluções inovadoras, mas compatíveis com as práticas tradicionais de construção
do lugar.
Congresso do Patrimônio Arquitetônico Europeu, realizado em Amsterdã, outubro de 1975.
7

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PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E REABILITAÇÃO URBANA: O CASO DA ZONA PORTUÁRIA DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Programas e planos dessa natureza só podem ter sucesso se forem apoiados pelos
atores que decidem os usos da cidade e que possuem os intrumentos apropriados para a
implementação dos planos. Assim, o projeto em questão deve contar com a construção de
amplas coalizões e parcerias entre todos os atores envolvidos: órgãos públicos de diferentes
estâncias, investidores e promotores, administradores e donos de grandes propriedades, mora-
dores e grupos culturais e sociais locais (Lapa & Borges, 2007, p.11). Nesse sentido, verifi-
ca-se ainda a falta de incentivos a programas de conscientização e de educação patrimonial no
projeto. Observamos ainda que o projeto do Porto do Rio carece de uma maior interação entre
a administração portuária, os órgãos públicos municipais e órgãos de proteção ao patrimônio
cultural.
Em termos projetuais, apesar de o plano possuir ações positivas como o aumento
do espaço público e a abertura da frente marítima, a possibilidade de verticalização com altos
gabaritos, no entorno imediato dos armazéns contribui ainda mais para o isolamento da área,
cercada pela Avenida Presidente Vargas e sua muralha de edifícios e o Viaduto da Perimetral.
Não está prevista no plano alguma forma de atenuar o impacto do viaduto, que certamente
impede toda e qualquer relação espacial e urbana dos antigos bairros portuários com a Baía
de Guanabara, além de contribuir fortemente para a desvalorização imobiliária local. O plano
deveria deixar mais clara a conexão entre atividades portuárias e a atividades comerciais e de
serviços alocadas em sua área de entorno. Em termos de desenho urbano, observamos o
recurso a soluções massificadas que podem ser encontradas em qualquer cidade européia e a
pouca referência à cultura e memória local.
Por fim, o plano não prevê um sistema de monitoramento que controle periodica-
mente as condições da área como forma de mensurar as tendências que causarão impacto no
projeto. O processo de monitoramente deve ser visto como parte do processo gestor com o
objetivo de embasar o planejamento preventivo, na tentativa de reduzir ações emergenciais.

118 da Vinci, Curitiba, v. 4 , n. 1, p. 101-120, 2007


ELIANA MIRANDA ARAÚJO DA SILVA SOARES E FERNANDO DINIZ MOREIRA

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