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espiritualidade e terapia integrativa I

Book · December 2020

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1 author:

Clóvis Ecco
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
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Religião, Saúde e Terapias integrativas
Prof Ms Gil Barreto Ribeiro (PUC GO)
Diretor Editorial
Presidente do Conselho Editorial

Engenheira Larissa Rodrigues Ribeiro Pereira


Diretora Administrativa
Presidente da Editora

CONSELHO EDITORIAL
Dra Solange Martins Oliveira Magalhães (UFG)
Prof Dra Rosane Castilho (UEG)
Profa Dra Helenides Mendonça (PUC GO)
Prof. Dr. Henryk Siewierski (UNB)
Profa Dra Irene Dias de Oliveira (PUC GO)
Prof Dr João Batista Cardoso (UFG)
Prof Dr Luiz Carlos Santana (UNESP)
Profa Ms Margareth Leber Macedo (UFT)
Profa Dra Marilza Vanessa Rosa Suanno (UFG)
Prof Dr Nivaldo dos Santos (PUC GO)
Profa Dra Leila Bijos (UCB DF)
Prof Dr Ricardo Antunes de Sá (UFPR)
Profa Dra Telma do Nascimento Durães (UFG)
Prof Dr Francisco Gilson (UFT)
CLÓVIS ECCO
JAPCY MARGARITA QUICENO
EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS
LUIZ SIGNATES
(organizadores)

Religião, Saúde e
Terapias integrativas
VOLUME I

Goiânia-GO
Editora Espaço Acadêmico, 2016
Copyright © 2016 by Clóvis Ecco et al

Editora Espaço Acadêmico


Endereço: Rua do Saveiro, quadra 15 lote 22 casa 2 Jardim Atlântico
CEP 74343-510 Goiânia Goiás - CNPJ:21.538.101/0001-90

Contatos:
Prof Gil Barreto (62) 81061119 TIM / (62) 85130876 OI
Larissa Pereira (62) 82301212 TIM

Programação Visual: Marcos Digues

B8621
Ecco, Clóvis (org.)
Religião, Saúde e Terapias Integrativas. - Clóvis Ecco, Japcy Margarita
Quiceno, Eduardo Gusmão de Quadros, Luiz Signates (org.). -
Goiânia: / Editora Espaço Acadêmico, 2016

200 p.il.

ISBN:

1. I. Título.

CDU:

DIREITOS RESERVADOS

É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a
autorização prévia e por escrito dos organizadores. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98)
é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
2016
Religião e saúde: o diálogo imprescindível

O s estudos de interface entre religião e saúde buscam recobrir uma


problemática de inusitada importância, no mundo contemporâ-
neo. Herdeiros diretos da modernidade, vislumbramos nos últimos
quatro séculos um desenvolvimento extraordinário das ciências médi-
cas e terapêuticas, cuja repercussão pode ser pressentida em todos os
quadrantes do planeta, seja nos indicadores de longevidade da espécie
humana, seja na constatação das enormes estruturas e sistemas de co-
nhecimento e intervenção soerguidos para encetar a luta do homem
contra a morte e o sofrimento.
Se é verdade que o mundo contemporâneo testemunha de forma
indubitável as consequências irrenunciáveis do procedimento científico,
que alterou para sempre a compreensão e a intervenção sobre o corpo,
aplacando a dor e adiando a morte, é forçoso igualmente admitir que es-
ses sentidos jamais deixaram de ser atravessados pelo sagrado e a religião.
Esta obra busca introduzir o debate dessa interface, cuja relevân-
cia parece indiscutível, a partir das conferências vertidas em forma de
texto pelos Conferencistas do VIII Congresso Internacional em Ciên-
cias da Religião. A temática central deste evento não tinha como ser
mais instigante: “Religião, saúde e terapias integrativas”, e propiciou a
abordagem das mais diversas questões gerais e específicas sobre os terri-
tórios de intersecção entre as áreas médicas/terapêuticas e as religiosas,
dois dos campos simbólicos onde conflitam de modo formidável a ex-
traordinária complexidade humana.
No texto de abertura, “Saúde, terapias integrativas e espirituali-
dade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral à saúde”,
o professor de saúde coletiva, médico e ex-Ministro da Saúde do Brasil,
Ademar Arthur Chioro dos Reis, efetua um percuciente relato histórico
sobre as noções de doença e saúde desde a Antiguidade, para concluir
com a crise do modelo biomédico e a consequente revalorização das
práticas integrativas, num contexto em que as noções de religiosidade
e, sobretudo, de espiritualidade conduzem ao que ele denomina uma
nova concepção de cuidado integral da saúde, capaz de introduzir novos
significados para o binômio saúde-doença.
Na sequência, o antropólogo Raymundo Heraldo Maués sintetiza,
no artigo “Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Ama-
zônia oriental brasileira”, vários aspectos de sua experiência de pesquisa
junto à região do Salgado, no litoral paraense, a partir da qual temati-
za o descompasso entre as cosmovisões dos profissionais da saúde e os
agentes populares da saúde, entre os quais pajés e curadores, xamãs e
parteiras – cujas experiência e cosmologia são desconhecidas, quando
não recusadas e desprezadas pelos profissionais.
Em “Afrontamiento religioso espiritual: uma estratégia de afron-
tamiento ante el dolor y el sufrimiento”, a educadora e psicóloga colom-
biana Japcy Margarita Quiceno efetua copioso escorço sobre a questão
da felicidade e do sofrimento, posicionando o espiritual como estratégia
de enfrentamento dos diferentes grupos culturais no mundo e generosa-
mente indicando as lacunas da pesquisa nessa área de interface.
A problemática do medo, na produção do sentido sobre a doença,
e a sua profunda relação com as culturas religiosas, são a temática do
texto “Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das repre-
sentações da doença”, de autoria conjunta do filósofo e teólogo Clóvis
Ecco e da pedagoga e cientista da religião Carolina Teles Lemos. A na-
tureza social da doença e a incidência da culpabilidade como elemento
estruturante de sua concepção, que vitimizam sobretudo os marginali-
zados, clamam pela reconstrução dos significados, menos punitivos e
mais integradores de tais experiências.
Em seguida, somos brindados, no texto “Crença e cura: a fabula-
ção do corpo de padre Pelágio Sauter”, com a recuperação histórica da
devoção ao padre alemão Pelágio Sauter, em Goiânia, e, especificamen-
te, de uma característica desse clérigo: o ato de benzer ou, mesmo após
sua morte, o de curar milagrosamente – crença que facultou o início do
processo, ainda em curso, para sua canonização. É o texto do professor e
historiador Eduardo Gusmão de Quadros, que nos avisa da importância
de se compreender a centralidade do milagre e sua relação com a corpo-
reidade fabulosa, capaz de interceder junto às bênçãos divinais.
O texto seguinte, da médica e antropóloga Sofia Beatriz Machado
de Mendonça, efetua extensa reflexão sobre a ideia de religião e seus
elementos estruturantes, quais sejam “O sagrado, o cotidiano e o ado-
ecimento entre os Povos Indígenas”, denunciando as conflitualidades e
os avanços na relação entre as políticas brasileiras de saúde e a realidade
cultural e espiritual desses povos.
Uma reflexão sobre a epistemologia das ciências da religião – ou
sobre o especificamente religioso –, no escopo da discussão sobre a in-
terface entre saúde e religião, ou sobre corporeidade e espiritualidade,
constitui o trabalho do professor e pesquisador Luiz Signates. Para este
autor, em “As curas espirituais como problema da ciência das religiões”,
a noção e o fenômeno das curas espirituais, nas práticas do espiritualis-
mo brasileiro, representam desafios de enorme importância, tanto para
os estudos de religião, quanto para o diálogo, imprescindível, entre as
ciências da saúde e o campo de estudos das religiosidades brasileiras.
Numa linha semelhante, situa-se o trabalho “Terapias integrati-
vas: a abordagem transpessoal”, da filósofa, teóloga e educadora Irene
Dias de Oliveira, que empreende um debate epistemológico de elevada
importância sobre os limites e as possibilidades da racionalidade cientí-
fica para dar conta dos fenômenos espirituais. Em seguida, a estudiosa
opta pela abordagem holística da psicologia transpessoal, que enxerga
como rica possibilidade interpretativa para o reencantamento do mun-
do e a emergência de um novo ethos que recomponha o vínculo entre o
homem e a natureza.
E, por fim, o livro se encerra com o breve texto “Religiosidade e
espiritualidade na relação médico-paciente”, da médica infectologista e
professora Luciana Leite Pineli Simões, numa contestação da matriz po-
sitivista das ciências médicas, a partir do reconhecimento da ampliação
dos estudos voltados para as interfaces entre espiritualidade, religião e
saúde. Esta autora considera imperiosas, por razões éticas e técnicas, a
identificação e o apoio às necessidades espirituais dos pacientes, pelos
profissionais da saúde.
Certos de que o conjunto das abordagens desta obra constitui
uma interessante contribuição para a dialogicidade necessária entre es-
ses dois âmbitos imprescindíveis da experiência humana – a saúde e a
religiosidade – desejamos grande proveito em sua leitura.

Luiz Signates
Clóvis Ecco
Eduardo Quadros de Gusmão
Japcy Quiceno
Sumário

5 Religião e saúde: o diálogo imprescindível

11 Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada


da medicina e do cuidado integral à saúde
Ademar Arthur Chioro dos Reis

45 Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da amazônia


oriental brasileira
Raymundo Heraldo Maués

63 Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento


ante el dolor y el sufrimiento
Japcy Margarita Quiceno

113 Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das


representações da doença
Clóvis Ecco
Carolina Teles Lemos

139 Crença e cura: a fabulação do corpo de padre Pelágio Sauter


Eduardo Gusmão de Quadros

153 O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre os Povos Indígenas


Sofia Beatriz Machado de Mendonça
167 As curas espirituais como problema da ciência das religiões
Luiz Signates

185 Terapias integrativas: a abordagem transpessoal


Irene Dias de Oliveira

197 Religiosidade e espiritualidade na relação médico paciente


Luciana Leite Pineli Simões

203 Autores
Eduardo Quadros
11

Saúde, terapias integrativas e espiritualidade:


uma visão ampliada da medicina e do
cuidado integral à saúde

Ademar Arthur Chioro dos Reis

A determinação do processo saúde-doença

M esmo para quem lida com o tema como profissional ou estudioso


da área de saúde não é fácil definir o que é saúde e doença. A mes-
ma dificuldade se observa no tocante a explicação da causalidade das
enfermidades. Os modelos teóricos utilizados para explicar o processo
saúde-doença e seus determinantes resultam em práticas de intervenção
e de controle que a sociedade adota frente ao processo mórbido. Os con-
ceitos e representações de saúde e doença e as várias teorias formuladas
para explicar a sua determinação ganham diferentes contornos ao lon-
go da história, pois a medida que muda o modelo explicativo, altera-se
também o sujeito responsável pelo ato de cuidar e o conjunto de práticas
de intervenção sobre a doença.
Para Hegenberg, “testemunha e vítima do sofrimento, o ser hu-
mano deve, desde logo, ter se debruçado sobre os doentes, com o desejo
de curá-los”1. As civilizações primitivas, há cerca de 10 mil anos,
formadas por grupos humanos nômades de coletores/caçadores, já
se interrogavam sobre a origem das doenças, atribuindo à influên-
cia sobrenatural dos elementos da natureza a responsabilidade pelo
sofrimento e morte advindos das enfermidades. Aos pajés, xamãs,
feiticeiros ou sacerdotes cabia a responsabilidade de operar os sis-
temas ritualísticos, invocar ou controlar a força sobrenatural e utili-
zar-se de produtos naturais para operar a cura das doenças (ou uma
colheita farta, muitos filhos, mais chuva ou qualquer outro evento
12 Ademar Arthur Chioro dos Reis

considerado natural). É o que os estudiosos chamam de teoria má-


gica ou mítica2.
Com o surgimento dos primeiros aglomerados humanos, há 6 mil
anos, a partir do desenvolvimento da agricultura, a doença para a ser
explicada como um ato de desobediência às condutas prescritas pelos
deuses. Esse modelo religioso concebe a doença como pecado, atribuin-
do a responsabilidade pelo sofrimento ao indivíduo ou à coletividade.
Sendo assim, a terapia consistia em rituais conduzidos pelos sacerdotes,
que possuíam o monopólio da mediação entre os deuses e os homens.
Uma das mais antigas teorias, formulada a partir dos preceitos
que deram origem à medicina tradicional chinesa, baseava-se na ideia
de que as doenças eram resultantes da ausência ou supressão de algum
princípio vital. Esta concepção, fortemente influenciada pelo taoísmo e
pelo budismo, resultou não apenas nos sistemas terapêuticos fundamen-
tados na medicina oriental como, recodificada com as bases ocidentais,
no século 18, deu margem a fundamentação filosófica da Homeopatia,
fundada por Samuel Hahneman.
Na Grécia Antiga as primeiras formas de tratamento e de terapêu-
tica são de ordem religiosa. Nos templos de Asclépio, os doentes eram
recebidos, examinados e tratados segundo ritos dos quais a serpente
e o galo permaneceram participantes simbólicos. O desenvolvimento
do pensamento filosófico e as primeiras investigações científicas fazem
com que a doença passe a ser compreendida como um fenômeno na-
tural, introduzindo a ideia de desarmonia dos fatores, desequilibrados
entre si. A doença passaria a existir quando houvesse predominância
de um elemento: úmido-seco, quente-frio, amargo-doce. As proporções
entre os humores do corpo humano (sangue, phlegma, bile amarela e
bile preta) determinariam atributos dos seres humanos a que se associa-
riam os males e as ações dos medicamentos. A saúde passa a ser com-
preendida como o estado de equilíbrio dos elementos e a doença como
seu desequilíbrio. A saúde era a isonomia ou igualdade, dizia Alameão,
no século 4 aC, o primeiro a intuir que o cérebro é o órgão do pen-
samento. Hipócrates aprofundou e tornou mais complexa essa análise,
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 13
à saúde

sem dogmas e sem limites, procurando conhecer a fundo o modo par-


ticular como cada um reage às agressões e ao conceber a investigação
da origem da doença (fundando a clínica) como forma de orientar a
terapêutica adequada.
As obras de Galeano (129-210 dC), fundamentadas nos con-
ceitos da medicina hipocrática, foram estudadas como textos sacros,
por vezes escondida do Santo Ofício3, até o renascimento, já que a
teoria humoral (ou o modelo natural) se manteve vigente até o sécu-
lo 18. Nela estavam contidas todo saber médico e a explicação para
todos os problemas de saúde. Durante o período medieval, entretan-
to, quando os domínios da Igreja Católica se tornaram uma ameaça
ao progresso da ciência e obscureceram práticas que se apoiavam em
explicações naturais, sob a égide de Santo Tomas de Aquino e Santo
Agostinho, a origem da doença passa a ser explicada pela presença
estranha e nociva de corpúsculos de uma matéria peccans, matéria
impura, demônios ou animais perversos4. A doença foi frequente-
mente entendida, nesse longo período da história da humanidade
como sinal diabólico ou como punição divina frente aos pecados hu-
manos, em geral associada à sexualidade. O modelo religioso volta a
predominar, concebendo a doença como pecado e responsabilidade
individual ou coletivo pelo sofrimento. Muda, entretanto, o sujeito
que possui a responsabilidade pelo ato de intervir sobre a doença.
Passa a ser o sacerdote católico, que possuía o monopólio da media-
ção entre o Deus (os dos cristãos) e o enfermo. Não é por menos,
como indica Foucault, que os primeiros hospitais a se constituir são
exatamente as Santas Casas, em um período que a figura do médico é
banida e substituída pelo padre (apoiado pela religiosa), afinal o que
estava doente era a alma.
Até meados do século 19 o hospital não existia para curar, mas
para isolar os enfermos e diminuir o risco de contágio, já que as doenças
que dizimavam as populações eram predominantemente pestilenciais.5,6
O hospital era essencialmente uma instituição de assistência a pobres e
inválidos. Segundo MERHY (1991, p.33.): “Aqui o sentido de perigo tem
14 Ademar Arthur Chioro dos Reis

duplo aspecto: por um lado ele é entendido a partir da concepção de que


o pobre, que é um “indolente”, possa contaminar os que trabalham, e por
outro lado a partir da constatação de que são os pobres os principais por-
tadores das moléstias que levam à doença e à morte em idades precoces.
Ali eram abandonados os portadores de doenças, pois existia a possibili-
dade de contágio. O hospital possuía a função tanto de recolher o pobre,
como de proteger o restante da população - leia-se: abastada - do perigo.
Era lugar de alguém que necessitava de ajuda material e espiritual, afinal
estava morrendo. Eram os religiosos que dirigiam os hospitais, e realiza-
vam a transição entre a vida e a morte” 7.
Subjugado aos ditames da Igreja, só a partir do século 17, ainda
que de forma muito lenta, é que o conhecimento sobre a saúde e a do-
ença voltou a progredir, com Morgagni (anatomia-patológica) e, já no
século 19, com Claude Bernard (fisiopatologia)8. Como analisa Cecílio
(2012), o século 19 assistiu à consolidação da medicina moderna, com
as características que sobrevivem até os nossos dias. A principal e mais
profunda refere-se à verdadeira ruptura que o pensamento médico faz
em relação ao pensamento médico dos séculos anteriores. Como diz o
filósofo francês Michel Foucault (2004), uma ruptura e não uma evolu-
ção do pensamento médico9. Com a medicina moderna, a doença passa
a ser enunciada, localizada, na materialidade dos corpos, mais exata-
mente ao nível dos órgãos e tecidos. A doença adquire uma nova visi-
bilidade para os médicos. Tal mudança de paradigma, uma verdadeira
revolução no pensamento médico ocidental, já vinha sendo gestada des-
de a Renascença, quando os homens começaram a dissecar cadáveres
para estudos mais completos de anatomia, contornando as interdições
religiosas da época. Mas é nos séculos XVIII e XIX, com as grandes
descobertas, como a descrição da circulação sanguínea por Harvey, a
descoberta do microscópio, o triunfo da teoria microbiana das doenças,
os avanços nas técnicas de assepsia e anestesia propiciando uma ver-
dadeira revolução na cirurgia, a descoberta de novos e mais poderosos
fármacos, bem como das vacinas, mas, fundamentalmente a formulação
da teoria celular e dos tecidos e o incrível avanço nos fundamentos da
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 15
à saúde

fisiopatologia e da farmacologia, que a medicina tal qual a conhecemos


hoje triunfa.10
Com a industrialização e urbanização acelerada e o adensamento
de pessoas em bairros operários e fábricas sem nenhuma condição de
saneamento, submetidas a forte desgaste pela carga excessiva de traba-
lho e alimentação inadequada, observa-se grande deterioração das con-
dições de saúde. A situação sanitária, resultante do processo conturba-
do em que se dava a urbanização e que em última instância traduzia a
miséria social que proliferava nas cidades emergentes, era caracterizada
por péssimas condições de higiene, promiscuidade, grandes epidemias,
acidentes de trabalho, desnutrição, enfim, de uma massa de trabalhado-
res muito pobre. Pobreza esta, componente e retrato de uma população
imensa e mendiga, com condições propícias para criar a doença, a de-
linquência, o banditismo, a violência e a prostituição11.
Em virtude do quadro sanitário e epidemiológico vigente, passou
a predominar a teoria dos miasmas, crença compartilhada por grande
parte do saber médico-científico do século 19, que acreditava que as
febres epidêmicas e grande parte das doenças tinha origem na matéria
vegetal e animal em putrefação e nas emanações das águas estagnadas.
Parte dos médicos aderiam à teoria do contágio, muito embora, é im-
portante ressaltar, o significado do mundo dos seres microscópicos só
tenha sido desvendado a partir das descobertas de Pasteur e Koch, em
1870, até então prevalecendo a teoria da geração espontânea.12
Neste cenário, as classes dirigentes europeias, influenciadas pe-
los ideais mercantilistas e preocupadas em aumentar o poder nacional,
tiveram que eleger o trabalho como elemento essencial de geração de
riqueza, tornando necessária a formulação de políticas de saúde que
enfrentassem as grandes epidemias, a doença e a morte, evitando perdas
de produtividade e assegurando o crescimento populacional e o forne-
cimento da força de trabalho; questões centrais para o desenvolvimento
do capitalismo.13
Na França, por exemplo, no período que compreende fins do sé-
culo 18 e a primeira metade do 19, o “movimento higienista” traduziu,
16 Ademar Arthur Chioro dos Reis

de certa forma, a resposta social ao perigo representado pela miséria rei-


nante. As medidas realizadas foram, primeiro, no sentido da efetuação
de vigilância intensa da natalidade (estímulo ao crescimento), sobre a
mortalidade, aos projetos de reclusão, prevenção, assistência aos pobres
e higienização das cidades, principalmente dos cemitérios e matadou-
ros14. Secundariamente, no controle da circulação. Não dos indivíduos,
mas das coisas. Essencialmente da água e do ar, já que a teoria mias-
mática ainda era hegemônica, ocorrendo intervenções na higienização
das cidades, principalmente em Paris. Construíram-se corredores de ar,
avenidas, etc. Mesmo limitada cientificamente, a prática sanitária de-
monstrou grande permeabilidade e aplicação nos programas de preven-
ção, de medidas de engenharia sanitária e saneamento do meio ambien-
te15. A Medicina Social como desenvolvida na França no século XVIII
ou a Saúde Pública desenvolvida na Inglaterra do século XIX, foram
movimentos que se pautaram pela compreensão de que as condições de
vida, os cuidados com o saneamento e a ocupação dos espaços urbanos,
ou seja, as medidas mais gerais de higiene tinham maior impacto sobre
os indicadores de saúde que as práticas médicas propriamente ditas. É
interessante lembrar que grandes reformadores sociais daqueles movi-
mentos foram médicos e que eles próprios se engajavam nas grandes
lutas políticas e sociais de seu tempo16.
Estas intervenções eram realizadas e implementadas pelas Aca-
demias de Ciências (de médicos, químicos e biólogos), tendo o Estado
como grande estimulador das ações em prol da saúde pública, forne-
cendo pioneiramente o atendimento médico - ainda coletivo - àquela
multidão que, até então, não possuía condições de ter orientação mé-
dica individual devido ao seu alto custo e a ineficácia de uma prática
inconsistente e altamente lesiva. Cabe ressaltar que a prática cirúrgica
ainda não havia sido incorporada à prática médica, o que só ocorreu
após o advento da anestesia; já as práticas medicamentosas eram extre-
mamente limitadas, agressivas e iatrogênicas. O cuidado médico indi-
vidual não tinha a saúde como objeto, mas a doença, e por isso foi tido
como limitado, dentro da visão miasmática.
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 17
à saúde

Após a segunda metade do século 19, os Estados europeus já ga-


rantiam uma intervenção em termos de políticas sociais considerável,
representada de um lado, pelo cuidado ao pobre, de outro, pela imple-
mentação de medidas de proteção e controle do ambiente, bem como
das doenças transmissíveis17. A resolução em parte destes graves pro-
blemas, juntamente com o desenvolvimento de um novo referencial
teórico para a explicação da determinação da causalidade do processo
saúde-doença, bem como a perspectiva concreta de intervenção que
proporcionaram, explicam, em parte, o recrudescimento das políticas
sanitárias e a supremacia da assistência individual dai em diante.
As descobertas da microbiologia permitiram “individualizar” a
causa das doenças e produzir uma nova teoria explicativa para a doença:
a teoria da unicausalidade. Para todo efeito era necessário buscar uma
causa. Compreendia-se, a partir de então, que as doenças infecciosas
eram produzidas por microrganismos e não pelas emanações miasmá-
ticas. A medicina ganhava, finalmente, status científico, livrando-se da
“tola prisão religiosa” ou da “fantasiosa e mística” teoria dos miasmas e
dos fluidos vitais. A partir daí era possível conhecer os mecanismos de
transmissão das doenças, formular e implementar medidas preventivas
e higiênicas (profilaxia) para muitas enfermidades infecciosas (peste,
malária, varíola, tuberculose, etc), com impacto considerável sobre cha-
gas que assolavam a humanidade a séculos. O êxito alcançado no final
do século 19 e primeiras décadas do século 20 permitiu imaginar que
seria encontrado solução para todos os problemas de saúde, por meio
de soros, vacinas e medicamentos para combater cada microrganismo.
Segundo Berlinguer (1988), não se levou em consideração, entretanto,
“que cada condição de existência do homem pode igualmente transfor-
mar-se em fonte de doenças. Os mesmos fatores que permitem ao homem
viver (alimento, ar, clima, habitação, trabalho, técnica, relações familiares,
sociais, etc.) podem causar doenças, se agem com determinada intensida-
de, se pesam em excesso ou falta, se agem sem controle”. 18 Desta forma,
um mesmo elemento pode assumir distintos valores, sendo fonte de
saúde ou razão de mal-estar.
18 Ademar Arthur Chioro dos Reis

É inegável o impacto que a intervenção da medicina, o desenvol-


vimento científico e tecnológico e, fundamentalmente, a melhoria das
condições de vida proporcionadas a amplas setores das sociedades ur-
banas, em várias partes da Europa e nos EUA, permitiram importantes
mudanças no perfil demográfico e epidemiológico. O envelhecimento
populacional, a industrialização e a urbanização tiveram impacto con-
siderável sobre o perfil de morbimortalidade. Com o aumento da espe-
rança de vida, passa a ganhar evidência a prevalência de doenças não
transmissíveis, em particular as enfermidades crônico-degenerativas
(cardiovasculares, neoplasias, doenças metabólicas, etc.), assim como
os problemas decorrentes do trabalho (acidentes e doenças ocupacio-
nais) e da violência (acidentes automobilísticos, tentativas de homicídio,
suicídios, etc.). Ao mesmo tempo, observou-se importante diminuição
das chamadas doenças infectocontagiosas.
Nas décadas de 50 e 60 do século passado, uma nova teoria para
explicar a origem das doenças vai se consolidar, permanecendo hege-
mônica até os dias atuais. Trata-se da teoria da multicausalidade, formu-
lada a partir de autores como MacMaholl, Leavel & Clark,19 fortemente
fundamentada na teoria de sistemas, que ganha força nesse período em
todos os ramos do conhecimento científico. Em síntese, procura expli-
car o processo saúde-doença como o “conjunto formado pelos fatores
vinculados ao ambiente, ao agente etiológico e ao suscetível, dotado de
uma organização interna que define as interações determinantes da pro-
dução de doença (um sistema epidemiológico)”20. Esta teoria foi capaz de
adaptar-se às novas exigências teóricas e conceituais. Agente etiológico
foi substituído para a análise das doenças não infecciosas por “fatores de
risco” (álcool, tabagismo, obesidade, stress, dieta, sedentarismo, etc.). A
noção de hospedeiro reformulada para a de suscetível, na medida em
que é possível medir a probabilidade (estatística) de desenvolver deter-
minada enfermidade a partir da utilização da pesquisa epidemiológica
e do uso da informática.
Esperava-se, entretanto, que a partir das consequências práticas
deste modelo, reforçadas com o advento dos medicamentos, exames
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 19
à saúde

complementares cada vez mais sofisticados e serviços terapêuticos que


ampliaram consideravelmente a divisão social do trabalho em saúde,
com o surgimento de novas profissões e modalidades assistenciais, hou-
vesse efetivamente uma mudança no perfil epidemiológico das comu-
nidades. Esse processo efetivamente se deu em países desenvolvidos
da Europa, da América do Norte e no Japão. No restante do mundo,
entretanto, a esperada transição não ocorreu na mesma velocidade e
da mesma forma. Países como o Brasil, ainda que tenham tardiamente
também apresentado a predominância das doenças crônico-degenerati-
vas como principal causa de morte, passaram a apresentar elevação dos
coeficientes de óbitos por causas externas (mortes violentas) e, mesmo
que já não tão significativamente como no passado, a persistência das
doenças infectocontagiosas21. Observando esse quadro, intelectuais da
América Latina formularam ao longo das décadas de 80 e 90 a teoria
da determinação social do processo saúde-doença, a partir da crítica
à teoria da multicausalidade22. Esses autores, a partir da concepção de
social enquanto conjunto de características que compõe o complexo das
relações humanas em sociedade, questionam a linearidade proposta
pelo modelo hegemônico. Para eles, a determinação do processo saúde-
doença deve ser analisada em dois planos: o das condições econômicas,
sociais e políticas, em que ocorre o processo; e, as práticas de interven-
ção e de controle que a sociedade adota frente ao processo mórbido. En-
tendem que as condições sociais gerais e as práticas históricas definidas
de intervenção refletem-se na explicação para o processo saúde-doença,
condicionando o próprio saber, ou seja, a visão teórica do que seja o
tema (e, obviamente, as explicações e práticas dele decorrentes). De-
monstram, utilizando-se para tanto de estudos epidemiológicos, que as
doenças e óbitos prevalecem de maneira distinta nas diferentes classes
socais, produzindo um padrão de iniquidade e injustiça social e que o
estado sanitário de uma população é a expressão da evolução das con-
dições de vida das classes sociais, num dado período. As condições de
vida, por outro lado, são reflexo das condições mais gerais de produção
e distribuição dos bens e do acesso a serviços nessa sociedade. Na prá-
20 Ademar Arthur Chioro dos Reis

tica, a partir desta teoria, os profissionais de saúde e a sociedade são


chamados a responder a conjunturas sociais específicas, pois enquanto
prática coletiva, as ciências da saúde devem intervir no próprio social.
Percebe-se, entretanto, que as teorias são insuficientes para dar
conta da complexa tarefa de apontar a origem e causalidade das enfer-
midades. E que o conhecimento e os valores científicos se alteram com
as mudanças na cultura geral, produzindo mudanças no juízo de valores
da sociedade sobre temas como saúde-doença e sua determinação.

Conceito de saúde e de doença

Usualmente, tende-se a definir saúde e doença por contraposição.


Saúde é a ausência de doença. Doença é quando não se tem saúde. Uma
visão simplista, que não dá conta da complexidade do tema.
Existem modelos, como o biomédico, hegemônico no meio cien-
tífico, que reduzem a doença às alterações bioquímicas que ocorrem
em nível celular. Outras correntes, tratam a doença como alteração ou
desvio do estado de equilíbrio de um indivíduo com o meio. As enfer-
midades podem também ser definidas como a incapacidade dos meca-
nismos de adaptação de um organismo para neutralizar os estímulos
ou solicitações a que está sujeito, resultando em transtorno da função
ou estrutura de qualquer parte, órgão ou sistema do organismo. Alguns
autores tratam a doença como uma entidade específica que é a soma
total dos numerosos expressões de um ou mais processos patológicos. A
causa de uma entidade mórbida e representada pela causa do processo
patológico básico associada a importantes fatores causais secundários.23
Em 1946, no contexto de reconstrução da Europa arrasada pela II
Grande Guerra Mundial e sob forte inspiração da social-democracia eu-
ropeia que se instalara em diversos países no velho continente no pós-
guerra, a Organização Mundial de Saúde, por ocasião de sua instalação,
formulou um novo conceito, o mais vago e subjetivo possível, para defi-
nir o que é saúde24: “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental
e social, e não apenas a ausência de doença” A definição, demasiada-
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 21
à saúde

mente ampla, teve efeitos positivos por certo tempo, na medida em que
ampliou a atenção para aspectos até então negligenciados: a dimensão
mental e social dos seres humanos. Trata-se, entretanto, de um conceito
de difícil expressão prática. E a extrapolação do seu significado, confun-
dindo mal estar mental e social com doença, tem levado a sociedade à
práticas de medicalização. Denomina-se de medicalização da sociedade
ao fenômeno da medicina normatizar cada vez mais a vida, estabele-
cendo os parâmetros do “bom viver”, valorizando uma responsabilidade
individual na manutenção da saúde e, de alguma forma, obscurecendo
o peso que as características mais gerais da sociedade em que vivemos
têm sobre nosso modo de adoecer e morrer25.
Dois modelos sobre saúde passam a ser disputados. Um deles,
alicerçado no sistema de saúde dos EUA e por um número pequeno
de países - embora sua influência seja maior do que se possa imaginar -
trata a saúde como um bem de consumo, como valor de uso e de troca
definidos, a ser regido pelas regras de mercado. Neste modelo, a saúde
e a doença (a vida, portanto) constituem-se em uma mercadoria. Desta
forma, compete ao mercado prover as necessidades de saúde e o acesso
passa a ser um problema a ser resolvido pela lei da oferta e da procura.
Tem direito à saúde as pessoas com recursos para pagá-la por desem-
bolso direto ou seguro privado. As demais são tratadas como indigentes,
como acontecia no Brasil até a criação do Sistema Único de Saúde (SUS)
pela Constituição Federal de 1988, que contavam apenas com o apoio
de benzedeiras, curandeiros, médiuns ou de instituições de assistência
beneficente, como as Santas Casas, por exemplo.
Outros países, por outro lado, influenciados pelos ideais da so-
cial-democracia, do socialismo ou por entenderem que mesmo na lógi-
ca do capital era necessário garantir a reprodução da força de trabalho e
atenuar as pressões sociais mediante a concessão de “políticas públicas”,
passaram a lidar com a saúde enquanto um direito social (com maior
ou menor abrangência, de acordo com contextos específicos). É o caso
do Brasil, que após intensa mobilização social, passa a garantir a saúde
em sua Constituição Federal. Seu artigo 196 preconiza que: “ A saúde é
22 Ademar Arthur Chioro dos Reis

direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e


econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação”.26 Ainda que longe de garantir o acesso e a qua-
lidade esperada, o conceito de saúde passa a ser assumido de forma am-
pliada (enquanto qualidade de vida), na medida que a saúde depende de
condições dignas de trabalho, de renda, moradia, saneamento, proteção
ao meio ambiente, renda, alimentação e nutrição, educação, liberdade,
acesso e posse da terra, transporte, lazer e garantia de acesso às ações
e serviços de saúde. Um direito social universal, de cidadania, que se
confunde com o direito à vida. Desta forma, as ações e serviços de saúde
são caracterizados como de relevância pública e enquanto direito social
(direito à saúde) deve ser assegurado pelo Estado.
É extremamente importante reconceituar saúde-doença pelas im-
plicações objetivas e práticas na vida das pessoas. A partir de um concei-
to mais amplo, como aqui discutido, a assistência à saúde, prestada pelo
Poder Público ou pela iniciativa privada, passa a ser entendida como
instrumento que possibilite à pessoa o uso e gozo de seu potencial físi-
co e mental, reconhecendo e salvaguardando os direitos do indivíduo,
como sujeito das ações e dos serviços de assistência em saúde.
Certas doenças dominaram períodos específicos da história. De-
terminaram a sorte, o apogeu ou a derrocada de certas culturas. Influen-
ciaram até mesmo a política, a cultura, a arte e a arquitetura. Abreviaram
carreiras de gênios e personalidades que poderiam dar outros rumos ou
sentidos a história da humanidade. A peste, no século 14, a tuberculose
no século 19, a gripe espanhola, no início do século 20, assim como
a AIDS, mais recentemente, são exemplos claros e inquestionáveis. A
questão toma outra dimensão, conforme já discutido anteriormente,
quando se consideram as distintas chances de adoecer e morrer, mensu-
ráveis já no momento da gestação, por exemplo, para futuros cidadãos
que tiverem mães com baixa escolaridade ou nível de renda familiar. As
nações, as classes, os indivíduos, são atingidos pelas doenças de forma
muito distinta.
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 23
à saúde

A doença é um fenômeno vital, uma das maneiras que a vida se


manifesta em corpos organizados. Uma definição que não contrapõe a
saúde e a doença diretamente, mas que as tornam aspectos inexoráveis
da vida (mesmo que a doença, de alguma forma, tenha uma noção ne-
gativa). Daí preferir tratá-las, aqui, pelo binômio saúde-doença. Outra
convicção é que a doença é um processo, ação e reação, mediação entre
o conflito, agressão e defesa, uma luta constante entre a homeostasia e o
desequilíbrio. Um incapacidade permanente ou transitória de manter a
homeostasia, o equilíbrio entre as funções, metais ou orgânicas. E que
tem sempre um desenlace: a cura, a cronificação, a sequela ou a morte
física (um início, uma história e uma conclusão, característica de algo
processual) .
Essa concepção permite profundas mudanças no modo de conce-
ber a saúde e a doença. Chega-se a conclusão, entretanto, que nenhuma
das definições acima é suficiente para explicar a complexidade do pro-
cesso saúde-doença, ainda que restrito a sua dimensão bio-psico-social.
A verdade é que a saúde e a doença variam conforme o observador. É
inegável, entretanto, que três componentes estão interligados. Na doen-
ça há um fato objetivo, corporal, uma alteração de algum órgão, apare-
lho, sistema ou função, mais ou menos demonstrável. Isso determina
maior ou menor conhecimento do mal. Por fim, permite uma idéia e
uma medida, derivadas do conhecimento, dos prejuízos, dos interesses
da época. É portanto um juízo de valor, uma interpretação ética, além
de científica.27
Se nenhum conceito é totalmente satisfatório para definir a doen-
ça ou explicar a sua causalidade, talvez seja necessário alargar a discus-
são, abrindo-se novas possibilidades. Pode-se abordar saúde-doença a
partir de outros eixos, outras possibilidades, procurando compreender
como assume diferentes significados e dimensões quando esse binômio
é analisado enquanto sofrimento, diferenças e anomalias, perigos, si-
nais ou oportunidades, a partir dos estímulos que a enfermidade pode
desencadear e o quanto pode influir na vida de um indivíduo, nas suas
relações sociais e na sociedade.
24 Ademar Arthur Chioro dos Reis

A crise do modelo biomédico e a revalorização das Práticas Integra-


tivas

Com o modelo biomédico há uma adequação do modelo expli-


cativo do processo saúde-doença ao pensamento racional moderno.
As bases da ciência racional puderam superar as bases miasmáticas e o
pensamento religioso que até então prevaleciam.28 O modelo racionalis-
ta, mecanicista e dualista, e que mais tarde incorporou o organicismo e
o evolucionismo (que caracterizavam a racionalidade científica e que se
tornou predominante na medicina precocemente), dificultou ou mes-
mo impossibilitou a permanência ou o surgimento de outras verdades29.
Em particular, ao adequar o modelo de saúde ao pensamento racional
moderno, aos interesses do complexo industrial da saúde (e da ordem
capitalista) e ao transformar o corpo e a doença em mercadorias.30
As doenças infectocontagiosas (a maioria epidêmicas) pratica-
mente desapareceram do cenário dos países desenvolvidos. Restrin-
gem-se, atualmente, aos bolsões de pobreza dos países periféricos. As
mudanças observadas na Europa e nos Estados Unidos a partir da Re-
volução Industrial e, mais particularmente, com o desenvolvimento do
processo de urbanização e industrialização em massa, teve forte impac-
to na mudança no perfil de morbimortalidade da população. Alterações
na taxa de natalidade, diminuição da mortalidade infantil e aumento
da expectativa média de vida foi sendo observada, ainda que em ritmos
surpreendentemente diferentes, em todos os cantos do planeta. O de-
senvolvimento da medicina e do arsenal tecnológico disponível para a
assistência à saúde são capazes, como nunca, de intervir sobre a doença
e proporcionar alívio do sofrimento e da dor. Mas tem sido insuficientes
para isoladamente enfrentar novos problemas.
Ao desafio de cuidar das doenças crônico-degenerativas (sín-
drome metabólica, neoplasias, neurodegenerativas, demenciais, osteo-
articulares, auto-imunes, etc.) associa-se a necessidade de enfrentar a
gravidez na adolescência, as DST, a Aids e os problemas relacionados à
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 25
à saúde

violência, ao processo de trabalho, ao meio ambiente, à saúde mental, ao


uso abusivo de álcool e drogas. Ao mesmo tempo, não estão resolvidos,
em âmbito global, questões como a falta de saneamento básico e acesso
à água, destruição do meio ambiente, miséria global e fome. Tudo isso
num contexto marcado por uma injusta concentração de renda, tráfico
de drogas e armas, violência urbana, conflitos armados e intolerância
manifesta por diversas formas (religiosa, racial, política e de orientação
sexual). Vivemos em um mundo ainda marcado por um profundo apar-
thaid social e econômico, profundamente desigual e injusto.
O modelo hegemônico biomédico reduziu o conceito de saúde a
ausência de doença. Hoje já se sabe que apenas o aumento do fluxo de
recursos para serviços de saúde causa pouco impacto nos indicadores
de saúde. Enfrentamos seríssimos problemas decorrentes da incorpo-
ração tecnológica crescente e irracional. Mas a crise do modelo biomé-
dico é parte da crise da modernidade, que não conseguiu cumprir suas
promessas de desenvolvimento. O peso social das doenças, sequelas e
mortes prematuras atuais está cada vez menos vinculado à mudanças e
expansão dos serviços de saúde. Há evidências suficientes de que inter-
venções e mudanças estruturais fora da assistência médica têm maior
potencialidade de alterar tendências epidemiológicas. Segundo a Carta
de Otawa31, amplamente difundida pela OMS, para a produção de saúde
é preciso associar um conjunto de iniciativas, tais como a construção de
políticas públicas saudáveis, a criação de ambientes favoráveis à saúde, o
reforço da ação comunitária, o desenvolvimento de habilidades pessoais
e a reorientação dos serviços de saúde.
A crise do modelo biomédico expressa-se também na crise da
atenção à saúde, caracterizada pela fragmentação do sistema de saúde
e por um modelo de cuidado voltado às condições agudas, centrado no
médico, no hospital e no procedimento médico (exames complementa-
res) que produz enorme insatisfações e um custo insustentável para as
pessoas e as sociedades32. Essa lógica de atenção é forjada já na formação
dos profissionais de saúde, ao valorizar como cenário de ensino-apren-
dizagem exclusivamente o hospital universitário, onde se concentram os
26 Ademar Arthur Chioro dos Reis

casos de pacientes com enfermidades de maior severidade. Entretanto,


esse quadro não representa o conjunto de necessidades da população, já
que em função do novo perfil epidemiológico e demográfico, torna-se
necessário o estabelecimento de vínculo entre o profissional, a equipe
de saúde e seus pacientes em outros sítios e momentos. Exige, portan-
to, a oferta de cuidados continuados, longitudinal, por toda a vida, na
comunidade, no domicílio, em clínicas e em serviços de atenção básica
e ambulatorial, e não apenas no ambiente hospitalar, espaço que por na-
tureza se reserva, hoje, aos problemas mais agudos, severos, complexos,
de curta permanência e que exige maior adensamento tecnológico33.
Outra dimensão crítica do modelo biomédico se apresenta na ex-
periência terapêutica. O médico observa exclusivamente a doença. Na
verdade, uma parte da doença ou do órgão enfermo. Não considera o
doente. Muito menos o sujeito, suas condições de existência, seus va-
lores, seus sistemas de crenças e suas necessidades. É da natureza deste
modelo que seja colocado em segundo plano, sem visibilidade, a pessoa
e seu sistema de crenças. Que seja desconsiderado, ainda, o médico (a
equipe de saúde), suas possibilidades, sua atitude e seu sistema de cren-
ças, assim como não se estabelece uma análise crítica da modalidade te-
rapêutica e seu “sistema de crenças” (ainda que considerada científica)34.
O paradigma do modelo biomédico é que os saberes e valores do
enfermo não fazem parte do conhecimento científico acumulado e que
sua livre vontade não influência na cura, transformando-o em paciente
(de quem se espera “paciência”) e não em um sujeito.
É neste contexto que a espiritualidade, os valores espirituais e as
crenças religiosas são colocadas totalmente a parte no modo como o
processo de cuidado é ofertado e na própria relação que se estabelece
entre os profissionais de saúde (o médico, em particular) e os usuários
dos serviços de saúde. Como desconsiderar, por exemplo, o sistema de
crenças na reencarnação e na vida após a morte, obtidas na Pesquisa de
Valores do Mundo? 35 Em 35 países europeus pesquisados é da ordem de
24,3 e 53,2%, respectivamente, as pessoas que acreditam em vidas suces-
sivas e na vida após a morte. Nos EUA esse contingente é de 26 e 78%,
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 27
à saúde

enquanto no Canadá atinge 31 e 69% da população. Em países como o


México (43/76) e da América do Sul estas crenças atingem expressões
mais significativas ainda (Argentina 39/65; Brasil: 57/71; Chile: 49/82).
Nada comparável, entretanto, com o que se observa nos países asiáticos
não-mulçumanos e não-cristãos: Índia: 91/66 e Japão: 50/51. É possível
cuidar adequadamente e deforma integral sem levar em consideração
essa visão de mundo, fortemente presente entre os usuários dos serviços
de saúde e entre os próprios profissionais de saúde? O cuidado proposto
pelo modelo biomédico é capaz de atender o conjunto de necessidades
de pacientes que convivem com enfermidades crônicas, por anos ou dé-
cadas, que convivem com o dilema da morte, sem dialogar com seus
sistemas de crenças, desconsiderando a religiosidade e a espiritualidade
fortemente presente na maneira de ver o mundo, a saúde e a doença?

Religião, espiritualidade e saúde

Procura-se aqui delimitar o que se entende como religiosidade


e espiritualidade. Religiosidade está relacionada com uma instituição
religiosa e/ou igreja, pelo qual o indivíduo segue uma crença ou prá-
tica, proposta por uma determinada religião36,37 Já a espiritualidade é
uma característica individual que pode incluir a crença em um Deus,
representando a ligação do “Eu” com o Universo e com outras pessoas.
Envolve questões sobre o significado e o propósito da vida.38
A espiritualidade refere-se a preocupações em relação ao signi-
ficado e valores fundamentais da vida39. Aquilo que permite que uma
pessoa vivencie um sentido transcendente na vida (...) uma construção
que envolve conceitos de fé e/ou sentido.40 Fé compreendida como uma
força transcendente superior, não identificada diretamente com Deus,
nem vinculada necessariamente com a participação nos rituais ou cren-
ças de uma religião organizada específica. E sentido como convicção de
que se está realizando um papel e um propósito inalienável na vida, que
se traz consigo a responsabilidade de realizar o pleno potencial que se
tem como ser humano e, ao fazê-lo, ser capaz de alcançar um sentido
28 Ademar Arthur Chioro dos Reis

de paz, alegria ou transcendência41. Uma espiritualidade “naturalizada”,


um “sentido não-religioso, não-institucional, não-teológico, não-baseado
em escrituras, não-exclusivo da espiritualidade, um sentido que não seja
farisaico, que não se baseie em crença, que não seja dogmático, que não
seja anti-ciência, que não seja místico, que não seja acrítico, carola ou
pervertido”, como indica Solomon 42.
A doença leva o ser humano a deparar-se com seus valores e com
questões como a existência e a proximidade da morte. A espiritualidade
(e a religião) é um esforço para significar essa nova demanda, buscando
compreender a própria doença, o sofrimento, a morte e a existência43.
Contribui para a adaptação ao estresse em contextos de saúde, é muito
relevante nos cuidados paliativos e relacionados à dor e também como
fator de prevenção de doenças. Há evidências de redução dos óbitos em
25% entre pessoas espiritualistas/religiosas e impacto sobre várias do-
enças44.
Pesquisa qualitativa com pacientes com câncer e espiritualidade45
identificou como categorias de análise: busca do significado, em 80% dos
entrevistados, em que procuram uma explicação para o que está aconte-
cendo e quanto ao futuro, bem como criar meios para enfrentar a situ-
ação atual; suporte emocional, em 70%, produzindo acolhimento; cura/
transformação da vida e contribuições no tratamento, com 60% cada, em
que os entrevistados designam a um ser supremo ou transcendental o
motivo de uma possibilidade de cura ou melhora e relatam “encontros”
transformadores; e, controle sobre a vida (30%), em que a espiritualidade
permite que lide de modo mais tranquilo com a doença e a perspectiva
da morte. Destaque-se que 100% dos entrevistados apresentam espiritu-
alidade e 50% religiosidade.
A contraposição entre ciência e espiritualidade começa a ser pro-
gressivamente colocada em xeque. Para Gleiser, “a função da ciência
não é tirar Deus das pessoas. É oferecer uma descrição natural cada vez
mais completa, baseada em experimentos e observações que possam ser
repetidos ou ao menos constatados por vários grupos. Com isso, a ciência
contribui para aliviar o sofrimento humano, seja ele material ou de cará-
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 29
à saúde

ter metafísico”.46 Na verdade, como provoca Sloan Wilson, “Há muita fé


na ciência. Eu, por exemplo, não entendo muito bem a teoria da relati-
vidade de Einstein, mas acredito nela. [...] Quando se pensa na enorme
quantidade de descobertas científicas das últimas décadas, conclui-se que
os cientistas, de todas as áreas, precisam ter fé nas teorias uns dos outros
para seguir pesquisando”.47
A espiritualidade pode ter um papel essencial na vida das pessoas.
Mas pode se apresentar de forma “saudável”, se produz um estado de
calma, amor, e senso de pertença, ou “não saudável”: se é moralista e
produz culpa48. Há crescente evidências que apontam para os efeitos po-
sitivos da espiritualidade sobre a saúde, como os estudos do Dr. Harold
Koening, da Universidade de Duke.
O Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA instituiu comissão
específica e financiamento de US 3,5 mi em pesquisas relativas à fé, espi-
ritualidade e saúde. A epidemiologista Llynda H. Powel apresentou con-
clusão, após revisão sistemática de 150 trabalhos, de que os resultados
eram irrelevantes, apontando, entretanto, que ocorre 25% de redução
de mortalidade em pessoas com religião.
Em particular, há interesse crescente em pesquisas e adoção de
estratégias relacionando espiritualidade, cuidados paliativos e enfermi-
dades crônicas, destacando-se o enfrentamento ativo, o planejamento, a
reinterpretação positiva, o suporte social instrumental e o suporte emo-
cional49. Há evidências importantes de obtenção de resultados positivos,
tais como, melhora na saúde mental, redução do estresse, crescimento
espiritual e cooperatividade. Saliente-se, entretanto, que resultados ne-
gativos também são observados: correlação negativa em relação à qua-
lidade de vida, depressão e saúde física, atitude de não adesão ou aban-
dono do tratamento (por acreditar em cura divina)50.

Práticas Complementares e Integrativas em Saúde

Há certa confusão, inclusive entre profissionais de saúde, entre


práticas religiosas e práticas integrativas, que são sistemas médicos
30 Ademar Arthur Chioro dos Reis

complexos e recursos terapêuticos, também denominados pela OMS de


medicina tradicional e complementar/alternativa51. As práticas integra-
tivas caracterizam-se por estimular os mecanismos naturais de preven-
ção e recuperação da saúde, produzindo vínculo terapêutico, integração
do ser humano com meio ambiente e sociedade, uma visão ampliada do
processo saúde-doença, cuidado global e autocuidado.
O Brasil conta, desde 2006, com a Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares no SUS (PNPCI)52, que reconhece e es-
timula a oferta de Medicina Tradicional Chinesa (Acupuntura), Home-
opatia, Plantas Medicinais e Fitoterapia, Termalismo (Crenoterapia) e
Medicina Antroposófica. Deve-se considerar que outros saberes, prá-
ticas e terapias integrativas (ou complementares), como as advindas
da saúde indígena, a cromoterapia, florais, Terapias de Vidas Passadas,
práticas religiosas/energéticas, práticas orientais diversas, entre outras,
não são reconhecidas pela PNPCI, muito provavelmente por não serem
legitimadas pelas corporações profissionais, em particular, pelas asso-
ciações médicas.
As práticas complementares e integrativas consideram, de uma
maneira geral, o indivíduo em sua dimensão global, sem perder sua
singularidade, apontando para uma visão integral da atenção à saúde
e propugnam a necessidade de ampliar a co-responsabilização dos in-
divíduos pela sua saúde. Para elas, o corpo físico nunca está só doente
ou só saudável, já que nele se expressam realmente as informações da
consciência, uma vez que o corpo deve seu funcionamento ao espírito/
consciência que o habita (ou energia vital). 
O princípio mais importante para as práticas integrativas é o con-
ceito de que os seres humanos são sistemas dinâmicos de energia, re-
fletindo padrões evolutivos do crescimento da alma. Quando as várias
funções corporais se desenvolvem em conjunto dentro de uma harmo-
nia, ele se encontra num estado de saúde. Se uma função falha, com-
promete a harmonia do todo e então ocorre um estado de doença. A
doença, assim, é a perda relativa da harmonia, da dimensão energética/
consciência. Do ponto de vista energético, o corpo físico debilitado os-
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 31
à saúde

cila numa frequência diferente. Quando a pessoa é incapaz de alterar o


seu modo energético para a frequência adequada, torna-se necessário
aplicar-lhe certa dose de energia sutil, o que pode fazer com que seus
sistemas bioenergéticos passem a vibrar de forma apropriada.
Para as práticas integrativas, o profissional de saúde não deve ser
apenas um agente promotor da cura, mas também um educador. O pa-
ciente, por outro lado, é o principal responsável pela sua cura. Cada ser
humano é responsável pela busca do seu equilíbrio e da sua harmonia.
Há evidências de que práticas integrativas, espiritualidade e a religião
auxiliam na consciência humana, lhe apresentando novos valores. Mui-
tos pacientes só adotam hábitos mais saudáveis após algum aconteci-
mento traumático ou o diagnóstico de uma doença grave. Nas práticas
integrativas, o profissional procura combinar o conhecimento científico
e o conhecimento espiritual a fim de promover a cura em todos os ní-
veis.
Por tratar de elementos absolutamente dissonantes do modelo
biomédico tradicional (consciência, energia vital, espiritualidade, etc.)
produzem um estranhamento com a fundamentação e o método cien-
tífico tradicional, o que se complica ainda mais quando entra em dis-
cussão a possibilidade de uma existência espiritual, que definitivamente
não é considerado objeto e escopo da ciência.

A ruptura entre ciência e religião

Para entender o difícil diálogo entre a ciência e a religião – e, de


forma similar, entre a ciência e as práticas integrativas e complementares
em saúde - é necessário uma pequena digressão histórica que permita
resgatar o significado do advento do racionalismo científico moderno.
Em detrimento à hegemonia da Igreja, o pensamento racional
passou a produzir novas definições sobre o que é conhecimento, qual
método era científico, quais eram as disciplinas científicas, o que era
verdade científica, quais práticas eram científicas e, assim sendo, que
práticas seriam consideradas legais (por terem chancela científica). Pro-
32 Ademar Arthur Chioro dos Reis

gressivamente, a ciência polariza e interdita a produção de outras ver-


dades e “(...) passa a ser o modo de produção de verdades socialmente
dominantes, substituindo a teologia, operando uma subjetivação do que
se chama mundo natural, por um lado, e do mundo humano, por outro,
dissociando-os do chamado mundo sobrenatural”.53
Isso ocorre porque o objeto de investigação da ciência não é o
mesmo das religiões. As práticas religiosas, até então vigentes, assim
como boa parte das práticas utilizadas para o cuidado em saúde, passa-
ram as ser condenadas ou consideradas não científicas. O “método” ou
“a ausência de método” as tornaram incompatíveis com o método cien-
tífico. Estas práticas, por terem outros referenciais, passaram a ser con-
denadas a priori pela ciência. Sua linguagem não se coadunava, eram
incompatíveis com a científica.
Perante as características básicas do racionalismo científico mo-
derno, nem as práticas consideradas integrativas e muito menos as reli-
giosas podem ser consideradas científicas por não cumprirem nenhum
dos três elementos de síntese comum à realidade científica: o modelo
explicativo (mecanicista), o método (experimentalista e dedutivista) e a
linguagem (matematizante), ainda hoje hegemônicos.
Do ponto de vista da legitimação da verdade, até o século 18
era a Inquisição que julgava os dissidentes das doutrinas oficiais sobre
o mundo, o movimento dos planetas, a composição da matéria e dos
seres humanos, as práticas médicas e de cuidado à saúde, etc. A partir
do século 19, esse espaço será ocupado pelas Academias de Ciências,
que “tomam o lugar de julgar a veracidade ou falsidade das proposições
científicas”54. São elas, corporação dos sábios, instância elitista, apesar
de construída em oposição ao Santo Ofício, que passam a produzir
legitimação teórica e qualificação. Ao Estado compete o controle sobre
os programas de ensino e atribuição dos diplomas. E às universidades
e corporações (controladas pelos acadêmicos) o encargo de definir e
fornecer a normatização da prática e do saber científico. Nestas novas
circunstâncias, sem o julgo secular da Igreja, é que se dá a aprovação
de uma nova teoria, que se coloca sobre ela o selo de verdade, elevan-
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 33
à saúde

do ou desqualificando seu autor junto ao Estado, à sociedade e a seus


pares.
A partir do século 19 nenhuma teoria, conceito ou prática pode
fugir dos limites do desenho do modelo científico, pois é considerada
não científica e, portanto, não verdadeira. É neste momento que surge
também a figura do charlatão, “(...) essa figura de desviante moral e he-
rético da ciência é criação do Século da Razão. Desde este momento, é o
pior epíteto que um cientista pode ouvir, pois implica em desmoralização
e perda de status social e profissional.”55
O conjunto de elementos aqui destacados, ainda que de forma
sintética, ajudam a compreender o problema do racionalismo científico
moderno com a religião, mas também o não reconhecimento das prá-
ticas integrativas ou o próprio estranhamento com as ciências sociais, a
psicanálise e a subjetividade, a pesquisa qualitativa e outras modalida-
des de produção de conhecimento que não se enquadram totalmente
nos preceitos absolutizantes do pensamento racional.

Uma nova concepção de cuidado integral em saúde

Cuidado em saúde pode ser definido como conjunto de saberes,


práticas e/ou intervenções voltado à promoção, preservação ou recupe-
ração da saúde dos indivíduos e da coletividade. O cuidado visa quali-
ficar a vida e/ou proporcionar alivio de um sofrimento ocasionado por
uma circunstância ou patologia, salvar vidas56.
O trabalho em saúde produz o cuidado que as pessoas necessi-
tam em algum momento da vida e contribui para que se possa seguir
com uma vida produtiva e feliz. Vem passando por profundas trans-
formações. A primeira é o processo de especialização e fragmentação
das práticas profissionais, resultando em crescente divisão técnica e so-
cial do trabalho em saúde. Isto coloca novas e complexas tarefas para
se obter um cuidado mais integral para as pessoas, muito em particular
a coordenação do trabalho multiprofissional. A segunda é sua institu-
cionalização crescente, as transformações na gestão e a diminuição da
34 Ademar Arthur Chioro dos Reis

autonomia profissional pela introdução de estratégias racionalizadoras


da vida organizacional.57
Cecílio (2012), ao fazer uma cartografia das necessidades de saú-
de, indica, em primeiro lugar, que as necessidades de saúde são social
e historicamente construídas, isso é, não há necessidades de saúde que
existiram desde sempre e do mesmo modo, pois cada época e cada socie-
dade produzem suas necessidades, tendo em vista, entre outras coisas,
as próprias possibilidades de reconhecê-las, ou seja, nomeá-las como
necessidades e, como desdobramento, atendê-las.58 59 60 Há forte con-
senso de que o modo como vivemos é determinante na maneira como
adoecemos e morremos. A medicina moderna foi se firmando como o
campo de práticas e conhecimentos com poderoso poder para contro-
lar doenças, reduzir os sofrimentos e dores e prolongar a vida, graças
ao avanço da cirurgia, à descoberta de poderosos medicamentos e de
cada vez mais diversificadas e eficazes vacinas, à melhoria da assistên-
cia ao parto e dos cuidados hospitalares, entre tantas outras conquistas
da medicina. Mas é inegável que o homem vive mais e melhor graças,
fundamentalmente, a melhoria da qualidade e da perspectiva de vida
que vem se consolidando desde as primeiras décadas do século passa-
do.61 O aspecto negativo desse triunfo da medicina, foi exatamente, uma
progressiva desvalorização da importância das boas condições de vida
como fator central, determinante mesmo, no modo como as pessoas são
mais ou menos saudáveis, vivem mais ou menos tempo, subordinando
suas estratégias de intervenção, centradas no corpo doente, aos ditames
e racionalidade da medicina moderna62.
Uma segunda ordem de necessidade é a do consumo das tecno-
logias de saúde disponíveis para melhorar e prolongar a vida. Quan-
do adoecemos, envelhecemos ou perdemos funcionalidades, contamos
com um arsenal diagnóstico e terapêutico da medicina tecnológica para
enfrentar os processos de adoecimento e sofrimento. Trata-se de uma
grande conquista da ciência que não queremos abrir mão, mas o con-
sumo de tecnologias também produz “distorções”. A primeira é quando
esse consumo, em particular de atos médicos e procedimentos de todo
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 35
à saúde

tipo, passam a ser vistos como a principal estratégia para se ter saúde,
desvalorizando a centralidade das condições de vida e existência. A se-
gunda é quando confundimos tecnologias de saúde com a utilização
de hospitais de alta complexidade e equipamentos de última geração.
Merhy as denomina “tecnologias duras”63. Mas há outras tecnologias
de saúde que dependem dos saberes próprios das várias profissões de
saúde. São saberes como a epidemiologia, a clínica, a psicanálise, a pa-
tologia, etc e também saberes práticos - saber fazer, saber diagnosticar,
saber prescrever, saber cuidar – aliás, as tecnologias que os profissionais
mais utilizam no seu cotidiano. Mas há outra tecnologia de saúde que
é mais imaterial ainda, que é aquela tecnologia da escuta, da produ-
ção de formas singulares de cuidado, aquela que se dá no encontro do
profissional com cada usuário, a partir das necessidades que apresenta
naquele momento singular de sua vida. Tecnologia de saúde que con-
tém um elemento de improvisação ou de criação, que é dada mais pela
experiência, quando a medicina, ou trabalho em saúde, se revela como
arte. A arte da escuta, do encontro, da troca. Emerson Merhy (2002) é
um autor que denomina de tecnologias duras de saúde aquelas ligadas
aos equipamentos; de tecnologias leve-duras aquelas ligadas aos saberes
profissionais; de tecnologias leves aquelas tecnologias de encontro. Para
ele, o ideal de bom funcionamento dos serviços de saúde seria que as
tecnologias leves comandassem todas as demais. Não há uma separação
nítida entre as várias formas de tecnologia, de modo que elas, na prática
podem se apresentar de modo simultâneo. O grande problema é que
prevalece um “esmagamento” das tecnologias relacionais pelas tecnolo-
gias duras ou mesmo leve-duras64.
Um terceira ordem de necessidade é a de se ter vínculo com al-
gum profissional ou com alguma equipe de saúde (uma tecnologia leve).
O vínculo é um encontro de sujeitos, de empatia e de troca que nem
sempre ocorre. Exige a responsabilização com o paciente e compor-
ta, necessariamente, um componente amoroso, afetivo e de confiança.
Quando um profissional consegue estabelecer uma relação vinculante
com seus pacientes tem mais chance de obter sucesso terapêutico, em
36 Ademar Arthur Chioro dos Reis

particular nas situações de doenças crônicas, que necessitam de adesão


do doente, mudança de hábitos, novos modos de cuidar de si.65
Uma quarta ordem necessidade, para Cecílio, é a de se ter auto-
nomia no modo de andar na vida, para ele a mais importante de todas.
Para muitos autores, a própria definição de saúde se confundiria com a
nossa autonomia de, diante das adversidades, sermos capazes de recons-
truir nossos modos de viver, de termos autonomia no nosso modo de
andar a vida.66 Estar doente não é apenas uma condição medida através
de parâmetros biomédicos, mas tem a ver se somos capazes, ou não,
de nos recuperarmos, recriarmos nossas vidas, retomarmos nossa vida
cotidiana, seja diante de problemas de saúde corriqueiros, ou de adver-
sidades mais graves e incapacitantes. É uma nova maneira de pensar o
binômio saúde-doença67.
O cuidado integral combina o atendimento de todas as necessi-
dades de saúde. Talvez a grande tragédia da biomedicina, a medicina
tecnológica e institucionalizada, seja exatamente a perda do vínculo, da
capacidade de escuta dos profissionais, da relação de confiança entre
profissionais e usuários, a produção de resposta automática e repetida,
mais e mais consultas médicas, mais e mais exames. Uma assistência
cada vez mais cara e menos resolutiva.
Diante disso, Cecílio postula que na gestão do cuidado devem ser
consideradas seis dimensões. A primeira, individual, tem como lógica
a necessidade de cuidar de si, a autonomia, o direito à escolha. A se-
gunda é a familiar, composta não apenas pelos familiares, mas também
pelos amigos, vizinhos e a rede de cuidadores que se forma em torno
do indivíduo. A lógica desta dimensão é o apoio, a proximidade e todos
os elementos presentes no mundo da vida. Uma terceira dimensão é a
profissional, cujos atores são os profissionais de saúde e, em particular, o
médico, e tem no preparo técnico, no vínculo e na ética seus elementos
constitutivos. Há ainda uma quarta dimensão, organizacional, que tem
como protagonistas a equipe de saúde e gerentes, com a responsabili-
dade pela coordenação do cuidado no serviço. Uma quinta dimensão,
sistêmica, campo de atuação dos gestores, é o locus de produção das po-
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 37
à saúde

liticas de saúde, organização, financiamento e coordenação do sistema,


já que um serviço de saúde isolado não é capaz de atender o conjunto de
necessidades. A sexta e última dimensão, a societária, onde atuam o Es-
tado e a sociedade, deve garantir as condições mais gerais de existência
e reprodução da vida.68
A questão que aponto para reflexão do leitor é: caberia acrescen-
tar uma sétima dimensão ao modelo proposto por Cecílio? É possível
considerar o sistemas de crenças, a vivência da religiosidade e, em par-
ticular, da espiritualidade, circunscrita à dimensão individual? Ou se
constitui numa dimensão específica de gestão do cuidado? As práticas
integrativas, a operação de valores da dimensão da espiritualidade/re-
ligiosidade, podem ou devem compor o arsenal de “tecnologias leves”
operado pelos profissionais de saúde? Seria possível a produção de cui-
dado mais integral, vínculo e co-responsabilização entre usuários e pro-
fissionais a partir do reconhecimento desta dimensão espiritual?

Novos significados para o binômio saúde-doença numa perspectiva


espiritualista

É possível fazer uma releitura do processo saúde-doença a partir


de um modelo explicativo que permita conceituar e explicar sua deter-
minação numa perspectiva mais ampla, que possa resultar em posturas
e práticas de intervenção alinhadas a essa corrente de pensamento. É
desta maneira que práticas integrativas e complementares podem e têm
sido utilizadas para produzir mais saúde. De qualquer forma, precisa
partir, antes de tudo, do conceito de fraternidade e justiça social, envi-
dando esforços para promover condições dignas de vida e acesso aos
serviços de atenção à saúde a todos os cidadãos, entendendo a saúde
como uma responsabilidade do Estado, da sociedade e de cada indiví-
duo, a quem cabe empreender mecanismos solidários de cuidado, indi-
viduais e coletivos, inclusive no tocante à proteção da natureza, destina-
dos à promoção da saúde e ao alívio da dor e do sofrimento.
Um modelo ampliado, que contemple a espiritualidade, agrega à
38 Ademar Arthur Chioro dos Reis

nossa estrutura físico-mental a dimensão energética e espiritual. Tra-


ta-se de uma visão ampliada, que permite compreender a vida, a saú-
de, a doença e a morte como processos efetivamente regidos pelas leis
da natureza. Mas pode ser, sobretudo, uma visão ampliada e compro-
metida com a vida, na medida em que propugna agregar à estrutura
físico-mental (formada pelo complexo físico-química e energético) a
dimensão energética e espiritual, onde operam as estruturas psíquicas,
mentais, cognitivas e a vontade. As duas profundamente interligadas,
constituindo o indivíduo.
Abre-se, a partir destas possibilidades, diferentes entendimentos.
A enfermidade pode ser explicada e enfrentada pelas escolhas, atitudes,
hábitos e distintos modos de viver que cada um assume ao longo da vida.
Mas, a medida que a vida, a doença e a morte são compreendidas como
constitutivas da existência, o processo saúde-doença assume diversos
significados que não são excludentes e não se conformam em regras a
serem absolutizadas. A doença pode se expressar em distintas situações,
como sofrimento, diversidade, perigo, sinal, estímulo ou oportunidade.
Por vezes em profundas e complexas combinações.
Portanto, espiritualidade e religiosidade, livres das concecpções
de culpa e castigo, sem se contrapor a visão científica racional, de base
materialista, abrem a possibilidade para a utilização racional de práti-
cas integrativas e cuidados à saúde complementares. Obviamente é ne-
cessário levar em consideração que estas estão sujeitas a ação do efeito
placebo e de outras interferências. Mas há evidências científicas acumu-
ladas que demonstram a sua utilidade, particularmente em associação
terapêutica positiva. Deve-se utilizar todo e qualquer benefício efetivo
que possa satisfazer necessidades, melhorar a qualidade de vida, aliviar
o sofrimento e proporcionar prazer e felicidade. Isto não deve obscu-
recer, entretanto, que a contribuição maior que se pode observar é a
produção de sentido para a vida e a educação para a morte, permitindo
novos sentidos a existência e a vida em sociedade e uma nova dinâmica
de relações sociais.
Neste modelo ampliado, a saúde passa a ser uma capacidade (éti-
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 39
à saúde

co-pessoal) e não um resultado, um estado mais ou menos temporário


de corpo, da mente ou de que quer que seja. Inexoravelmente, coloca
em pauta o tema da autonomia e da responsabilidade de cada sujeito
com o processo de manutenção da sua saúde (física e mental). Dá, ain-
da, novo sentido para a vida e para morte, superando o velho paradig-
ma da medicina clínica no qual o saber do “paciente” não faz parte do
conhecimento científico acumulado (evidência), nem sua livre vontade
influência na cura. Leva-nos, portanto, a conceber o tema a partir de no-
vos referenciais, valorizando a responsabilização e consciência sanitária.
Deve-se preferir a saúde substancial, como diz Berlinguer, do que
a saúde instrumental. Buscar o bem estar, o sentir bem, o estar no mun-
do mais saudável, do que uma vida restrita às pressões com base em
critérios de produtividade ou adaptação. A fragilidade vivida conscien-
temente pelo homem, sua individualidade e seu relacionamento com os
demais fazem da experiência da dor, da doença e da morte uma parte
integrante de sua vida. A habilidade de lidar com essa trinca passa a ser
de fundamental importância para sua saúde. Evidências científicas mais
recentes indicam que quem está enfermo não perdeu necessariamente a
saúde; quem está diante da morte pode enfrentá-la com saúde69.
Desta concepção pode resultar uma nova postura ética, compro-
metida com a ideia de que é melhor acrescentar vida aos anos a serem
vividos do que anos a uma vida precariamente vivida. Permite, a partir
dai, estabelecer novos paradigmas para a saúde, que levem em conside-
ração a necessidade de estabelecer novos estilos de vida, fundamentados
no estímulo a autonomia, a constituição de sujeito e a construção de
cidadania, como postulava Paulo Freire. Mesmo quem está diante da
morte, a partir deste referencial, pode vivê-la com saúde e dignidade.
Sem dicotomizar ou eleger como objeto exclusivo e prioritário do cui-
dado à saúde o corpo (ou seus órgãos). Indo além, permite repensar
as práticas de cuidado, as terapias, a nossa responsabilidade individual,
social (sanitária) e com o meio ambiente. Dimensões que o modelo bio-
médico não ousa abordar.
Nesta perspectiva passamos a compreender a singeleza do concei-
40 Ademar Arthur Chioro dos Reis

to de saúde expresso em Paccha Mama, para quem “a saúde é a relação


harmônica do individuo consigo mesmo, com a natureza e com os demais,
na busca de uma tranquilidade espiritual”. Quando nos preocupamos
com o outro, com a sociedade, nos transformamos. Cuidar do outro nos
revela a nós mesmo. Quando conhecemos o outro, conhecemos a nós
mesmo. Creio que mais do que nunca vale observar os ensinamentos do
Dalai Lama, que questionado sobre o que mais lhe surpreendia na Hu-
manidade, respondeu: “Os homens, porque perdem a saúde para juntar
dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem
ansiosamente no futuro, esquecem do presente de tal forma que acabam
por não viver nem o presente nem o futuro. E vivem como se nunca fossem
morrer... e morrem como se nunca tivesse vivido”.
A sinergia entre práticas integrativas, espiritualidade, religião (li-
vre das dimensões de culpa e castigo) e ciência, sem desprezar a ofer-
ta qualificada de “tecnologias duras” e “leve-duras”, mas valorizando
as “tecnologias leves”, podem proporcionar à medicina do futuro mais
condições para ajudar as pessoas a reconhecerem os fatores emocionais,
energéticos e/ou espirituais sutis que podem predispô-los a determina-
dos estados mórbidos e utilizar-se de práticas integrativas e complemen-
tares no processo de cuidado. Isto independe das religiões. Pressupõe
a compreensão e vivência da espiritualidade e de um novo paradigma
científico. Afinal, como propugna o pacifista e videomaker Alik Shaha-
dah, “Religião é a garrafa com rótulo. Espiritualidade é a coisa dentro
dela. Muitos brigam pela garrafa e poucos desfrutam de seu conteúdo.

Referências

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FIOCRUZ, 1998.
2 SCLIAR, M. Cenas Médicas: pequena introdução à história da Medicina.
Editora da Universidade. 2ª edição. Porto Alegre: 1996.
3 ECO, H. O Nome da Rosa. São Paulo, Record: 1986.
4 BERLINGUER, G. A Doença. Hucitec, São Paulo: 1986.
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 41
à saúde

5 FOUCALT, M. Microfísica do Poder. Graal, Rio de Janeiro, 1986, 6a ed.


6 CREDIDIO, E. Homeopatia: Doutrina e Prática. Ed. Papirus, Campinas,
1987.
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8 ROSEN, G. Da Polícia Médica à Medicina Social. Graal, Rio de Janeiro,
1979.
9 FOUCAULT, M. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2004.
10 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde. Rio de Janeiro: Cebes,
2012.
11 ROSEN, G. Da Polícia Médica à Medicina Social. Op. cit
12 CHIORO DOS REIS, AA. A conformação da Saúde Pública. Revista Estu-
dos – ano 4 – nº 6, p. 109-114. Santos: Ed. UNISANTA, 2004.
13 COSTA, N.R. Lutas urbanas e controle sanitário. Origens das políticas de
saúde no Brasil. Vozes, Petrópolis, 2a edição, 1986.
14 FOUCALT, M. Microfísica do Poder. Op. cit.
15 ROSEN, GEORGE. Uma História da Saúde Pública. 2ª ed. São Paulo: HUCI-
TEC/Ed. UNESP/ABRASCO, 1994.
16 DONNANGELO, M.C.F; PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. São Paulo: Duas
Cidades, 1979.
17 DONNANGELO, M.C.F; PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. Op. Cit.
18 BERLINGUER, G. A Doença. Op. cit.
19 ALMEIDA FILHO, N; ROUQUAYROL, M.Z. Introdução à Epidemiologia.
Medsi, 4ª Ed. Rio de Janeiro: 2006.
20 ROUQUAYROL, M.Z. Epidemiologia e Saúde. Medsi, 6.ed. Rio de Janeiro:
2003.
21 POSSAS, C. Epidemiologia e Sociedade. São Paulo: Hucitec, 1989
22 LAURELL, AC (coord.) Para la investigación sobre la Salud de los Trabaja-
dores. Washington: Organización PanAmericana de la Salud - Opas, 1993.
23 ALMEIDA FILHO, N; ROUQUAYROL, M.Z. Introdução à Epidemiologia.
Op. cit.
24 OMS. Organização Mundial de Saúde. Constituição da Organização Mun-
dial da Saúde. Nova Iorque, 1946.
42 Ademar Arthur Chioro dos Reis

25 BARROS, J.A.C. Processo saúde-doença: a que responde o modelo biomé-


dico? São Paulo: Saúde e Sociedade 11(1): 67-84, 2002.
26 BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. DOU,
5/10/1988.
27 BERLINGUER, G. A Doença. Op. cit.
28 CHIORO DOS REIS, A.A. Magnetismo, Vitalismo e o Pensamento de Kar-
dec. Santos: Ed. CPDoc, 1996.
29 LUZ, M.T. Natural, Racional, Social. Razão médica e racionalidade cientí-
fica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988.
30 FOUCALT, M. Microfísica do Poder. Op. cit.
31 OMS. Organização Mundial de Saúde. Carta de Ottawa. Primeira Confe-
rência Internacional sobre Promoção da Saúde. Ottawa, novembro de 1966.
Disponível em: bvms.saude.gov.br/bvspublicacoes/carta_ottawa.pdf. Acessa-
do em 16 de fevereiro de 2016.
32 MENDES, E.V. As redes de atenção à saúde. Brasília: Organização Pan-Ame-
ricana de Saúde, 2005.
33 MENDES, E.V. As redes de atenção à saúde. Op. cit. Adaptado de EDWARDS,
HENSHER & WERNEKE (1999).
34 DROUOT, P. Cura espiritual e imortalidade. Rio de Janeiro: Record, 1996.
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europeanvaluesstudy.com. Acessado em 30 de março de 2016.
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37 MILLER, W.R. Researching the spiritual dimensions of alcohol and other
drug problems. Addiction, 93, 979-990, 1998.
38 SULLIVAN, W.P. (1993). It helps me to be a wholw person: The role of
spirituality among the mentally challenged. Pshychosocial Rehabilitation
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39 HARDWIG, J. Questões espirituais no fim da vida: um convite à discussão.
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40 BREITBART, W. Espiritualidade e sentido nos cuidados paliativos. O
Mundo da Saúde 2003; 27(1): 45-57.
Saúde, terapias integrativas e espiritualidade: uma visão ampliada da medicina e do cuidado integral 43
à saúde

41 BREITBART, Espiritualidade e sentido nos cuidados paliativos. Op. cit.


42 SOLOMON, R.C. Espiritualidade para céticos: paixão, verdade cósmica e
racionalidade no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
43 HENNEZEL, M.; LELOUP, J.Y. A Arte de Morrrer. Petrópolis: Editora Vozes,
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Pesquisa. Abr-Jun 2010, Vol. 26 n.2, 265-272.
46 GLEISER, M. Conciliando ciência e religião. Folha de São Paulo. Caderno
Mais Ciência. 25 jun 2006: A–28.
47 SLOAN W. Há muita fé na ciência. Veja,. 7 fev 2007: 85.
48 SERVAN-SCHREIBER, D. Curar o stress, a ansiedade, a depressão sem
medicamentyo nem psicanalise. São Paulo: Sá Ed., 2004
49 SEIDL, E.M.F.; TROCCOLI, B.T.; ZANNON, C.M.L.C (2001). Análise
fatorial de uma medida estratégica de enfrentamento. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 17, 225-234.
50 KOENIG, H.G.; PARGMENT, K.I.; NIELSEN, J. Religious coping and helath
status in medically ill hospitalizes older adults. The Journal of Nervous and
Mental Disease, 186, 513-521, 1998.
51 WHO, World Helath Organization. Tradicional Medicine Strategy 2002-
2005. Geneve: WHO, 2002.
52 BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas
e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. DOU seção 1;
4/05/2006.
53 LUZ, M.T. Natural, Racional, Social. Razão médica e racionalidade cientí-
fica moderna. 
Op. cit.
54 LUZ, M.T. Natural, Racional, Social. Razão médica e racionalidade cientí-
fica moderna.
Op. cit
55 LUZ, M.T. Natural, Racional, Social. Razão médica e racionalidade cientí-
fica moderna.
Op. cit
56 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde. Op. Cit.
44 Ademar Arthur Chioro dos Reis

57 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde Op. Cit.


58 DONNANGELO, M.C.F; PEREIRA, L. Saúde e Sociedade. Op. Cit.
59 LAURELL, A.C. “La salud-enfermedad como proceso social”. Revista Latino-
americana de Salud, México, 2, 1982, pp. 7-25. Trad. E. D. Nunes.
60 BUSS, P.M. Promoção da Saúde e Qualidade de vida. Ciência e Saúde Cole-
tiva, v.5, n.1. Rio de Janeiro, 2000. P. 163-167.
61 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde. Op. Cit.
62 LUZ, M.T. Natural, Racional, Social. Razão médica e racionalidade cientí-
fica moderna.
Op. cit
63 MERHY, EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec,
2002.
64 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde. Op. Cit.
65 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde. Op. Cit.
66 CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Tradução de Maria de Thereza
Redig de C. Barrocas e Luiz Octávio F. B. Leite. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002.
67 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde. Op. Cit.
68 CECILIO, LCO & LACAZ, FAC. Trabalho em saúde. Op. Cit.
69 ILLICH, I. A expropriação da saúde. Nêmesis da Medicina. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
45

Aspectos do campo da saúde referentes a


uma parte da amazônia oriental brasileira1

Raymundo Heraldo Maués

Uma breve introdução

P retendo aqui apresentar alguns aspectos ligados ao campo da saúde


numa área específica da Amazônia Oriental brasileira: pequena parte
do nordeste paraense, junto ao litoral, banhada pelo Atlântico, que tem
sido tradicionalmente denominada de “região do Salgado”. Desejo tam-
bém comparar esses dados que venho trabalhando há vários anos com
uma parte do que existe publicado e difundido sobre o vale do Tapajós,
em territórios pertencentes ao município de Santarém e, também, ao mu-
nicípio de Óbidos, duas áreas bem distantes de Belém e do Salgado, bem
como diferentes de outras do interior do Pará. Tudo isso para investigar
um aspecto negativo fundante da questão da saúde em nosso país: trata-se
de um descompasso entre diferentes cosmovisões, a dos profissionais de
saúde e a grande maioria da população brasileira. Como antropólogo, es-
tou voltado para áreas específicas, que são investigadas “até onde alcança
o olhar”: partindo de uma observação intensa de um fenômeno e compa-
rando-o com outras investigações tento entender aspectos importantes
da sociedade e da cultura brasileira. Minha abordagem aqui não é apenas
sincrônica, mas busco também o diacrônico, isto é, o auxílio da história,
que nos permite um olhar mais amplo para a investigação e a análise.
1 Texto apresentado na Mesa Redonda 3: “Curandeiros e o campo da saúde no Brasil” no dia
29/04/2016 durante o VIII Congresso Internacional em Ciências da Religião, com o tema “Religião,
Saúde e Terapias Alternativas”. Agradeço o convite feito pelo organizador do evento, o professor dou-
tor Clóvis Ecco, coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião
da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Agradeço também a cordial acolhida que recebi nesse
importante evento por parte de todos os demais participantes e especialmente aos membros da mesa
redonda da qual participei. Um agradecimento mais especial à professora doutora Irene Dias de
Oliveira, também pertencente à Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
46 Raymundo Heraldo Maués

Na primeira área mencionada (o Salgado) desenvolvi durante vá-


rios anos pesquisas sobre saúde e doença, hábitos alimentares, xama-
nismo e religião, tratando neste último caso mais especificamente das
relações entre catolicismo popular e catolicismo oficial2. Nessas duas
áreas a presença de médicos e outros profissionais de saúde é de grande
importância, mas não estão ausentes – e têm também papel relevante
– agentes populares de saúde, entre os quais pajés ou curadores (xa-
mãs), “experientes”, parteiras treinadas parcialmente por profissionais
de saúde, algumas das quais consideradas “parteiras de dom” por tam-
bém possuírem dotes xamanísticos. Além desses, que são vistos como
mais importantes, encontramos as pessoas que sabem benzer (a maioria
mulheres, chamadas “benzedeiras”).
Em várias localidades dessas áreas agentes de saúde que ali resi-
dem estabelecem relação entre essas comunidades e o sistema oficial de
saúde, sendo em alguns casos também considerados como dotados de
poderes místicos e/ou conhecimentos rudimentares de anatomia ou de
remédios populares, além de se utilizarem das orientações de profis-
sionais de saúde que moram fora de suas comunidades. Esta interação
entre agentes populares e profissionais de saúde pode provocar atritos,
mas em várias situações contribuem positivamente para o tratamento
médico dessas populações. De maneira bem semelhante trabalhos aca-
dêmicos realizados no interior dos municípios de Santarém e de Óbidos
– dos quais tratarei ao final - permitem compreender essa relação que
foi bastante estudada por outros pesquisadores no campo da antropo-
logia.
Nessas duas áreas da Amazônia brasileira é possível observar que,
como já foi dito pela antropóloga Maria Andréa Loyola, há vários anos,
referindo-se a essa questão como um todo: que a eficiência dos serviços
oficiais de saúde não dependem somente da “qualidade desse tipo de

2 No que diz respeito aos hábitos alimentares minha pesquisa foi feita juntamente com a professora
Maria Angelica Motta-Maués, minha mulher, que se dedicava também ao estudo das mulheres, ten-
do sido nessa ocasião (nos anos de 1975 e 1976) uma das pioneiras dos estudos de gênero no Brasil.
Desse estudo resultou sua dissertação de mestrado na UnB (defendida em 1977) que mais tarde foi
publicada em livro (MOTTA-MAUÉS, 1993).
Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Amazônia Oriental Brasileira 47

atendimento”. Nas palavras dessa importante pesquisadora: “fatores de


natureza cultural podem vir a se constituir em obstáculo à ação estatal,
na medida em que a população visada não é receptáculo passivo de po-
líticas ditadas em nível ministerial”. Trata-se muitas vezes não de falta de
recursos econômicos para obter o remédio considerado adequado pelos
profissionais de saúde (incluindo sobretudo os médicos), ou de igno-
rância, mas sim de uma questão cultural, de uma cosmologia ou visão
de mundo diferente, que nem sempre é considerada pelos profissionais
de saúde (médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas, assistentes
sociais e outros), salvo nos dias de hoje, em que já aparecem algumas
exceções. Nas palavras dessa antropóloga, publicadas há vários anos, no
final da sétima década do século passado:

Da incompreensão desse fato decorrem as tentativas de so-


lução do problema através de medidas drásticas como a
perseguição dos agentes vinculados à “medicina popular”
(curandeiros, rezadoras, etc.) quando a rigor trata-se de não
reprimir, mas de compreender a função social que cumprem
esses agentes (LOYOLA 1978:225).

E mais, citando um importante evento nesse campo, a V Confe-


rência Nacional de Saúde (agosto de 1975), que definiu o Sistema Na-
cional de Saúde como “algo que pretende provocar mudanças em um
sistema existente”, Andréa Loyola cita parte bastante relevante do docu-
mento dessa mesma Conferência:

“(...) no campo concreto da saúde o que existe são dois sub-


sistemas de saúde [meu grifo, RHM]: - um que se desenvolve
graças a ações empírico-místicas, sem respaldo institucional
legal, v. g., medicina de folk, curandeirismo etc.; e um subsis-
tema que se desenvolve graças às ações empírico-científicas e
com respaldo institucional-legal. O desconhecimento dessa
dupla realidade sistêmica, com suas múltiplas relações de co-
48 Raymundo Heraldo Maués

municação e controle, pode levar a ideias simplistas de que a


superação do primeiro subsistema seria alcançada por uma
simples ação de “polícia sanitária”. Se isso fosse possível de
realização rápida e eficiente, o resultado seria uma tal sobre-
carga no subsistema empírico-científico que o desqualificaria
de imediato, provocando, cessada a ação repressiva, o reapa-
recimento do subsistema empírico-místico” (apud LOYOLA
1978: 226; os grifos são meus, R.H.M.).

Mesmo assim, reconhecida a importância dessa prática “empí-


rico-mística”, muitos anos depois da divulgação desse documento, o
reconhecimento da importância de outras formas de medicina (além
da “empírico-científica”, isto é, a biomedicina) tem sido precário, não
indo muito além dos antropólogos e sociólogos que estudam essa te-
mática.
Mais recentemente tenho encontrado também essa preocupação
entre profissionais da enfermagem, especialmente pós-graduados (mes-
tres e doutores) que têm realizado estudos sobre formas de tratamento
popular, trabalhando com textos publicados pela importante enfermei-
ra e antropóloga americana Madeleine M. Leininger. A título de exem-
plo, cito aqui uma parte dessa preocupação em artigo que relaciona a
enfermagem transcultural a partir de prática terapêutica destinada a
uma população cigana.
Nela, a autora enfatiza os seguintes aspectos: a cultura da popula-
ção, “valores, crenças, normas de comportamento e práticas relativas ao
estilo de vida, aprendidos, compartilhados e transmitidos por um grupo
especifico, que orientam o pensamento, as decisões e ações dos elemen-
tos pertencentes ao grupo”; a visão de mundo, “modo como os indiví-
duos percebem seu mundo e o universo, e nele inserem sua perspectiva
de vida”; e a estrutura social, “processo dinâmico e de natureza interde-
pendente, compreendendo elementos estruturais ou organizacionais da
sociedade e o modo como esses interatuam e funcionam”, incluindo “os
sistemas religioso, familiar, político, econômico, educacional, tecnoló-
Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Amazônia Oriental Brasileira 49

gico e cultural, delimitados pelo contexto linguístico e ambiental” (Cf.


BRAGA, 1997: 501)3.
No Brasil o estudo dessa medicina popular, sobretudo entre os
antropólogos sociais ou culturais, surge mais frequentemente nos dias
de hoje com o nome de Antropologia da Saúde ou mesmo Antropologia
da Saúde e da Doença. Em outros países que nos precederam nesse es-
tudo ela surge como Antropologia Médica, Antropologia da Medicina,
Medicina de Folk (Estados Unidos da América) e Antropologia da Do-
ença (França). No caso dos Estados Unidos da América, antropólogos
que estudam essa temática têm considerado a biomedicina ocidental
também como uma forma de etnomedicina da sociedade ocidental (cf.
entre outros BUCHILLET, 1989; FOSTER, 1987; IBÁÑEZ-NOVIÓN,
1983; LAPLANTINE, 1986; e LOYOLA, 1978).

Uma breve digressão teórica, mas necessária

Essa questão pode ser discutida até hoje se considerarmos um


dos mais importantes clássicos da antropologia cultural que é Claude
Lévi-Strauss, a figura mais importante do estruturalismo antropológico
que, morto há poucos anos, sobrevive ainda, mesmo no período que se
sucedeu e no qual desenvolveu-se, ainda em vida desse mesmo antro-
pólogo, o chamado pós-estruturalismo. Não é o caso aqui de entrar em
muitos detalhes sobre essa questão. Mas é inegável que o estruturalismo
linguístico, inspirado pela escola sociológica francesa, que teve também
vários desdobramentos desta mesma escola - entre eles a École des An-
nales numa importante vertente dos estudos históricos no início da pri-
meira metade do século XX -, influenciou profundamente a nova forma
de pensar no âmbito da antropologia sociocultural. Mas não é este o
aspecto mais importante para o qual devo chamar atenção.
Gostaria de falar aqui um pouco mais detalhadamente de uma
entre várias obras de Lévi-Strauss, que foi publicada em seguida ao pe-
3 Também na Universidade Federal do Pará algumas dissertações de mestrado em enfermagem têm
trabalhado nessa perspectiva. Destaco, entre outras, a dissertação de Suanne Coelho Pinheiro (Cf.
PINHEIRO, 2014).
50 Raymundo Heraldo Maués

queno livro chamado Totemismo Hoje e que se constituiu, de alguma


forma, numa espécie de “prefácio” ou introdução para esse livro tão im-
portante, chamado em francês de La Pensée Sauvage. Traduzido no Bra-
sil com o nome de O Pensamento Selvagem, essa obra foi muitas vezes
interpretada de forma ligeira como se fosse simplesmente um estudo
sobre o “pensamento dos selvagens”. Essa é uma interpretação equivo-
cada pois a palavra pensée que está no título do livro em francês tem
dois significados na sua tradução para o português: significa ao mesmo
tempo pensamento e também designa uma flor muito conhecida, a qual
é produzida pela planta que conhecemos aqui como amor perfeito e que
se apresenta sob duas formas: silvestre ou cultivada. E também significa
pensamento (selvagem ou cultivado) em português.
A primeira edição brasileira desse livro nos mostra na capa e
num anexo final o desenho e comentários populares e poéticos so-
bre essa planta. Esta é uma chave para entendermos melhor o livro,
que trata não apenas do “pensamento dos selvagens” como se pode
entender pelo título do mesmo. Ele porém não aborda somente o
pensamento dos selvagens, mas sim o pensamento humano como um
todo. Já no primeiro capítulo, intitulado “A ciência do concreto”, Lévi
-Strauss nos mostra que o pensamento humano é um só, mas dividido
em duas formas ou partes, como a flor. Existe em cada um de nós
– sejamos “selvagens” ou “civilizados” – sob duas formas, mas ao se
juntarem em cada um de nós transformam-se numa única forma de
pensamento, porém dividido em dois, tanto selvagem como cultivado.
Isso nos proporciona formas de pensar em circunstâncias distintas:
através da ciência do concreto (que é fundamentalmente baseado no
simbolismo) e da ciência que ele chama de “moderna” (a qual trabalha
com experimentação, análise e formulação de leis, podendo ser ainda
teórica ou prática [para alguns, aplicada]).
Inspirado na época pela antropologia cognitiva ou etnociência,
Lévi-Strauss mostra a capacidade de pensar, classificar, observar e pro-
duzir ao mesmo tempo através dessas duas formas de ciência. Uma,
fundamentada no simbolismo, na magia, na arte, no mito, na religião, a
Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Amazônia Oriental Brasileira 51

chamada “ciência do concreto”; outra, fundamentada na ciência, que ele


chama de “moderna”, mas que já existe nos seres humanos desde a Re-
volução Criativa do Paleolítico Superior, entre aproximadamente 45 mil
e 80 mil anos atrás (quando pelo que se sabe agora - isto não é dito por
Lévi-Strauss - o Homo Sapiens adquiriu a capacidade de simbolização)4.
Quem primeiro mostrou que os chamados selvagens eram capa-
zes de produzir ciência foi Bronislaw Malinowski, observando os Tro-
briandeses a trabalharem na construção de suas canoas para enfrentar
o oceano em longas viagens de comércio (tanto a troca de mercadorias
como a troca de presentes). Lévi-Strauss incorporou essa conquista da
ciência antropológica, sugerindo que os chamados homens “primitivos”
também possuíam uma espécie de ciência que sempre teve a mesma
natureza daquela que mais tarde foi aperfeiçoada pelos chamados “ci-
vilizados”. Desejo acentuar aqui que, para Lévi-Strauss, todos os seres
humanos são iguais em inteligência e na capacidade de adquirir conhe-
cimentos, produzir mitos, assumir diferentes formas de religião, de ritu-
ais, de arte, de literatura oral ou escrita, conforme o seu grau de avanço
prático e cultural nesse mesmo conhecimento (cf. AZZAN JR., 1993;
LEVI-STRAUSS, 1970; MALINOWSKY, 1976; TAYLOR, 1976).

4 Sobre essa Revolução vale lembrar que este fenômeno está descrito em dois artigos científicos pu-
blicados no Brasil: um deles na Revista de Antropologia da USP (RAPCHAN & NEVES, 2005) e
outro em Estudos Avançados, também da USP (NEVES, 2006). Nesses dois artigos são abordados
o fenômeno evolutivo que ocorreu no cérebro do Homo sapiens permitindo que essa única espécie
do gênero homo adquirisse a capacidade de simbolização. Isto proporcionou a linguagem que temos
hoje, a qual transformou essa espécie humana na única espécie animal com o dom da palavra. Isto
fez com que o ser humano se transformasse num ser de linguagem e pudesse a partir daí conquistar
todo o planeta e, partindo da África, povoar todos os continentes. Nesse processo precisou haver
uma adaptação a todos os climas e ambientes, provocando com isso mudanças morfológicas que de
fato não caracterizam novas raças. Entre as mudanças extraordinárias que ocorreram com esse fenô-
meno está também o surgimento da religião, atestada por arqueólogos e outros estudiosos através do
aparecimento, a partir daí, de túmulos com evidências de símbolos religiosos, antes não existentes.
Esse fenômeno também pode ter resultado no desaparecimento de todas as outras espécies humanas
embora aparentemente ainda não se saiba realmente como se deu esse desaparecimento. Talvez o
Homo sapiens seja o único gênero e a única espécie animal hoje existente em nosso planeta. Além
disso, embora nós seres humanos na maioria não saibamos, mas pertencemos todos à ordem dos
primatas. E também somos uma espécie que não possui raças: há diferenças morfológicas entre os
seres humanos, resultantes da adaptação a seus ambientes, mas nenhuma delas chega a constituir
uma raça.
52 Raymundo Heraldo Maués

“Curandeirismo” e o campo da saúde no Brasil

E aqui posso voltar mais de perto ao tema escolhido para apre-


sentar nesta mesa. Uma das diferenças entre a biomedicina ocidental
que foi se constituindo na antiga Grécia - desde Hipócrates e Galeno e
que se aperfeiçoou mais ainda na Europa dos séculos XVII e XVIII - e as
demais formas de medicina, incluindo as medicinas populares no Brasil
e alhures, é que ela se caracteriza pela quase absoluta rejeição às crenças
e práticas mágico-religiosas. Isso estava em sintonia com o avanço do
capitalismo e a reforma dos cursos de medicina nas diferentes Universi-
dades daquele continente (Cf. ABREU, 2011).
Existem atualmente exceções da parte de profissionais da saú-
de que também são adeptos de práticas místicas e religiosas como por
exemplo cirurgiões que assumem também a identidade religiosa de es-
píritas kardecistas e afirmam exercer sua prática médica tendo ao lado
um espírito protetor que os orienta em suas ações; ou aqueles que acre-
ditam que as orações são capazes por diferentes interpretações – mís-
ticas ou não místicas – de obter a cura mais rápida de seus pacientes,
como por exemplo médicos adeptos da Renovação Carismática Cató-
lica, que também promovem orações de cura com seus pacientes. Isto
não parece acontecer em lugares longínquos, mas também por exemplo
em cidades como Belém e Salvador (cf. MAUÉS, 2010; e MOTA, 2003).
E será necessário também constatar e insistir na presença do
xamanismo não indígena na Amazônia desde pelo menos o início da
segunda metade do século XVIII. Em primeiro lugar, deve ser lembrado
que essa forma de xamanismo não se confunde com as práticas xamâ-
nicas das diferentes populações indígenas amazônicas, tanto no Brasil
como em nações limítrofes que possuem parte de seu território na cha-
mada Pan-Amazônia. Os estudos iniciais sobre esses cultos são anteci-
pados por denúncias encontradas no Livro da Visitação do Santo Ofício
ao Grão Pará, descoberto por acaso na Torre do Tombo, publicado e
comentado pelo historiador Amaral Lapa (1978). A Visitação ocorreu
no período de 1763 a 1769, logo após a expulsão dos jesuítas de Por-
Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Amazônia Oriental Brasileira 53

tugal e de todas as suas colônias, sob a direção no Pará do inquisidor


Giraldo José de Abranches. Uma das primeiras ações desse personagem
ao chegar em Belém foi cumprir a ordem de prisão do bispo da diocese
do Grão-Pará, D. Frei João de São José e Queiroz, que ficou em Portugal
aprisionado num convento, até a morte.
Sobre esse bispo existe a seguinte notícia na internet, no Portal
da Arquidiocese de Belém: “Nasceu em Matosinhos, próximo à cidade
do Porto, Portugal, a 12 de agosto de 1711. Era beneditino. Veio para o
Pará em 1760 e aqui passou apenas quatro anos. Criou a paróquia da
Vigia e inaugurou a igreja de Sant’Anna. Caiu no desagrado do gover-
no português, devido a seus escritos críticos e, por isso, foi desterrado
para Portugal, falecendo no dia 15 de agosto de 1764 no convento de
São João de Pendurada, mosteiro triste, empinado nuns rochedos que
se debruçam sobre o Douro”. Com o desterro de Dom João, o bispado
ficou sede vacante durante 6 anos”. (texto disponível em: http://www.ar-
quidiocesedebelem.org.br/interno/preview_abrir_sub1_noticia). Suas
visitas pastorais foram escritas e transformadas mais tarde num célebre
livro prefaciado por Camilo Castelo Branco (Cf. QUEIROZ, 1808).
Seu livro constitui importante fonte para o conhecimento da
Amazônia colonial e, ao mesmo tempo, indica parcialmente as razões
da prisão do bispo que, rigoroso com os desmandos do clero, era ao
mesmo tempo um homem esclarecido e além de sua época que, entre
suas ações, mandou liberar do Aljube (prisão eclesiástica) da cidade de
Belém do Grão Pará uma mulher acusada de “familiaridade com o dia-
bo”, por ter tido um ataque de eclampsia, confundido na época de sua
prisão com possessão demoníaca (ALMEIDA PINTO, 1906, p. 70). Esse
ato (a prisão do bispo) permitiu também que o inquisidor assumisse a
função de secretário geral da diocese e, consequentemente, acumulasse
as funções exercidas pelo bispo, aumentando seus poderes.
Outra ação do inquisidor, assim que se instalou no palácio epis-
copal (antigo Colégio dos Jesuítas de Belém, anexo à imponente igreja
barroca de Santo Alexandre), foi a de publicar aviso segundo o qual no
prazo de um mês todos aqueles que tivessem confissões de atos pratica-
54 Raymundo Heraldo Maués

dos contra as normas eclesiásticas deveriam fazê-lo, ficando, com isso,


isentos de qualquer constrangimento ou castigo. Não houve confissões,
mas choveram denúncias. Uma das mais denunciadas foi a índia Sabi-
na, importante xamã acusada, entre outras coisas, de curar “feitiço” que
tinha sido feito contra um dos governadores do Estado do Grão-Pará e
que ela teria descoberto oculto numa das paredes do Palácio do Gover-
no. Essas informações podem ser encontradas no que nos diz Amaral
Lapa na apresentação que escreveu sobre o Livro da Inquisição (AMA-
RAL LAPA, 1978).
Algumas denúncias registradas no Livro da Inquisição descrevem
sessões religiosas semelhantes ao que atualmente encontramos no xama-
nismo indígena ou caboclo, inclusive com a utilização de elemento ritu-
al importante, o cigarro chamado “taquari” (tauari). Mas os primeiros
estudos sobre aquilo que denomino de pajelança cabocla foram feitos
por folcloristas, a partir do século XIX. A dissertação de mestrado, mais
tarde publicada em livro, do historiador Aldrin de Moura Figueiredo
(FIGUEIREDO, 2009), conta-nos essa história: buscando investigar e
analisar a constituição do campo de estudos sobre pajelança cabocla na
Amazônia, Figueiredo vai buscar as notas e a bibliografia utilizada por
Eduardo Galvão em seu livro Santos e Visagens (Galvão, 1955).
Esses folcloristas são os pioneiros em que se inspirou Eduardo
Galvão para traçar o mapa da pajelança como parte da “religião do ca-
boclo amazônico”. Há todo um mapa cognitivo construído por esses
personagens, que constitui um conjunto de crenças e práticas em que
estão mescladas antigas tradições de origem tupi, com elementos fun-
damentais do catolicismo de fontes ibéricas e medievais trazido pelos
portugueses e, também, alguns traços de concepções e práticas de raiz
africana, bem como traços nos quais se pode notar em anos mais recen-
tes uma leve ou mais acentuada influência kardecista.
Não se trata, evidentemente, de uma igreja ou seita: é um culto xa-
mânico que possui, sobretudo, finalidades terapêuticas. O xamã caboclo
(“curador” ou mais raramente “surjão da terra”), considera-se um bom
católico, como observei em minhas pesquisas, e não considera seu culto
Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Amazônia Oriental Brasileira 55

como contraditório em relação ao catolicismo popular que pratica. Para


ele, as expressões pajelança ou pajé não são utilizadas comumente, a
não ser o termo pajé, que não se refere a ele, mas aos outros, sobretudo
quando deles deseja falar mal. Nas sessões de culto, recebe seus guias ou
caruanas, que não são pensados como espíritos, mas como encantados,
isto é, seres humanos especiais – muitos deles príncipes ou princesas,
atestando uma influência portuguesa; de índios ou caboclos; e, mais ra-
ramente, negros – que não morreram, mas se encantaram, vivendo em
lugares chamados de encantes.
Estas são moradas que existem no fundo da terra ou das águas:
muitas delas, são “ilhas encantadas”, possuindo na superfície pedras e/
ou belas praias do mar, também com muitas pedras. Algumas dessas
pedras são mesmo identificadas com encantados bem conhecidos, entre
eles o famoso Rei Sabá. Trata-se de D. Sebastião, antigo rei português
que desapareceu durante a batalha de Alcácer-Quibir, no século XVI:
ele é considerado o mais importante encantado do litoral dos estados
do Pará e Maranhão, também cultuado nas religiões de matriz africana.
Durante o trabalho ou sessão xamanística, o pajé ou curador incorpora,
uma a uma, diversas entidades (encantadas) que são chamadas de “ca-
ruanas” nessa ocasião, porque se manifestam de forma invisível.
Existem duas outras formas de manifestação, quando suas deno-
minações são diferentes: “bichos do fundo”, ao aparecerem sob a forma
de animais aquáticos (botos, peixes, cobras, jacarés); “Oiaras” (Iaras,
forma portuguesa mais difundida), quando surgem como figuras hu-
manas, de ambos os sexos, nas praias e nos mangais (manguezais) bus-
cando atrair pessoas comuns para seus lugares de morada (encantes);
e “encantados da mata” (Anhangas e Curupiras) que podem também
se manifestar como caruanas, incorporando-se raramente nas sessões
xamanísticas, mas que mais frequentemente exercem uma espécie de
controle nas florestas, castigando os caçadores que cometem abusos
contra os animais.
É nesse “trabalho” que o curador trata de seus pacientes, utili-
zando diferentes técnicas corporais, dançando e cantando, fumando o
56 Raymundo Heraldo Maués

cigarro tauari (com que defuma seus consulentes) e receitando banhos


especiais e outros remédios. A principal técnica curativa é a incorpora-
ção de entidades que, segundo a crença, são aquelas que efetivamente
curam ou receitam remédios para os pacientes do pajé. Mas este tam-
bém pode se comunicar com seus caruanas de forma mais direta, em ca-
sos especiais, não praticando o conhecido voo xamanístico (cf. ELIADE,
1998), mas viajando pelo fundo das águas, quando visita a morada dos
encantados a fim de aprender novos conhecimentos e técnicas terapêu-
ticas. Nessa condição, alguns desses xamãs são chamados de “sacacas”.
Nesse caso, correm riscos, pois não devem aceitar os alimentos
que lhes são oferecidos, sob pena de encantar-se e não mais poderem
voltar à convivência dos outros seres humanos como eles. Não é o caso
aqui de prolongar esse tema, oferecendo outros detalhes, pois o que me
interessa, sobretudo, é acentuar os aspectos místicos da pajelança cabo-
cla que, como toda forma de xamanismo, implica numa aproximação
extrema do ser humano com as entidades sobrenaturais (embora no
caso os sobrenaturais sejam também pensados como humanos, só que
humanos “encantados”).
Nessa forma de mística, o xamã está o tempo todo – como acon-
tece com outros xamãs – sendo possuído por suas entidades, que ele
também possui, as quais o controlam e são por ele controladas, embo-
ra os momentos de êxtase e possessão ocorram somente em ocasiões
especiais e programadas. Isso envolve um longo processo de iniciação
que implica num rigoroso aprendizado, geralmente proporcionado por
um “mestre”, isto é, outro pajé que pode adotá-lo como discípulo. Pode
levar mais ou menos tempo, mas culmina, nos casos mais sofisticados,
com uma cerimônia de iniciação chamada de “encruzamento”, em que
o novo pajé precisa morrer ritualmente para renascer como xamã. E, a
partir daí, seguir vários preceitos, que incluem a obrigação de realizar
sessões xamanísticas periódicas e de se abster de determinados alimen-
tos considerados “reimosos” para seu permanente estado liminar como
“sacerdote inspirado” que é.
A condição de curador ou pajé é pensada mais frequentemen-
Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Amazônia Oriental Brasileira 57

te como masculina. Existem mulheres xamãs em várias comunidades


amazônicas e algumas delas podem ser famosas. A mais conhecida é
a senhora Zeneida Lima, residente na cidade de Soure, na ilha do Ma-
rajó, autora de livro que é uma espécie de autobiografia, republicado
em numerosas edições, mas que também descreve e teoriza a respeito
de sua arte (LIMA, 2002). Sobre ela existem menções em alguns traba-
lhos acadêmicos e, mais importante ainda, uma dissertação de mestrado
em ciências da religião (FARO CAVALCANTE, 2012). Além disso, vale
mencionar que, excepcionalmente, alguns pajés ou curadores dizem-se
formados por seus próprios caruanas, sem precisar do concurso de um
mestre.
Em muitas situações, inclusive no caso de Zeneida Lima, essas
mulheres vivem uma situação de forte ambiguidade, sendo às vezes
pensadas como bruxas ou feiticeiras. Essa situação, entretanto, parece
não ser aplicada a todos os casos, haja vista o trabalho já desenvolvido,
também na ilha do Marajó, pela antropóloga Patrícia Cavalcante (CA-
VALCANTE, 2008), que estudou várias mulheres xamãs nessa ilha.

Para concluir: algumas observações e comentários que também in-


cluem outra parte da Amazônia paraense

Antes de abordar sumariamente algumas crenças e práticas se-


melhantes encontradas por outros pesquisadores no interior dos mu-
nicípios de Santarém e Óbidos, gostaria de lembrar uma forma de defi-
nição – entre outras - da medicina popular no Brasil, de acordo com a
antropóloga Elda Rizzo de Oliveira. Essa autora se refere assim a partir
de suas observações e pesquisas no Sudeste do Brasil. Trata-se de um fe-
nômeno complexo e, por isso, só podemos entendê-lo por partes. Trans-
crevo a seguir, resumidamente, uma parte de seu texto:

é uma prática que resiste política e culturalmente à medicina


acadêmica [que] oferece respostas concretas aos problemas
de doenças e sofrimentos vividos no dia-a-dia [e] conside-
58 Raymundo Heraldo Maués

ra que as crenças nas doenças, males e mazelas e o modo de


doenças e sofrimentos vividos no dia-a-dia [sendo também]
uma prática de cura concreta que, ao realizar-se, mostra aos
médicos, biólogos, enfermeiros (os profissionais da medicina
erudita) que, no campo da saúde, não há um único modo de
se fazer ciência. [Além disso se] considera que as crenças nas
doenças, males e mazelas e o modo de enfrentá-los [...] é vi-
vido somente pelas populações pobres, iletradas, que moram
nas regiões do interior do Brasil [...]. Esta visão preconceituo-
sa [...] nega qualquer contribuição que parta desta população
para construir novas formas de pensar as doenças e as curas.
[Trata-se a medicina popular como] resquício de um passado
longínquo, onde somente aqueles que não conhecem a medi-
cina erudita a utilizam. [Sendo assim], para esta concepção,
toda a prática de cura que não seja feita em nome da ciência
[a biomedicina] ou apoiada pela mesma pode ser vista como
uma cópia, uma reprodução parcial, infiel e imperfeita da ci-
ência (OLIVEIRA,1985: 9-12).

O mesmo tema foi pesquisado também por alguns antropólogos


no interior do Pará, especialmente no vale do Tocantins. Menciono três
deles: Mark Cravalho, de nacionalidade norte americana, estudou essa
temática em suas pesquisas no município de Óbidos sob o enfoque da
antropologia psicológica e, especialmente, o trabalho de um xamã que,
além de seus dons xamanísticos, sofria de epilepsia. Um de seus artigos
publicados no Brasil se intitula “De doente a encantado” e nele descreve
e analisa as atividades desse xamã nessa área da Amazônia, que pro-
vavelmente faleceu afogado num lago onde costumava pescar sozinho.
Seu corpo nunca foi encontrado. Por isso, surgiu a explicação adequada
à visão de mundo daquela população: ele não teria morrido, mas sim
se transformado numa entidade encantada, um “encantado do fundo”
(CRAVALHO, 1998).
Outro antropólogo, de nacionalidade britânica, é Mark Harris,
Aspectos do campo da saúde referentes a uma parte da Amazônia Oriental Brasileira 59

trabalhando mais especificamente no vale do Tocantins, para produzir


sua tese de doutorado, já publicada em livro. Nesse livro o autor faz uma
etnografia onde se detém também no campo da religião e da saúde, es-
tudando as populações rurais com as quais trabalhou. Além disso publi-
cou vários artigos e capítulos de livros sobre essa temática (Cf. HARRIS,
1998 a, 1998 b, 2000, 2006).
E um terceiro, de saudosa memória, tendo falecido precocemen-
te, que foi João Valentin Wawzyniak. Sua tese de doutorado, escrita de-
pois de Mark Harris, enfocou sobretudo questões centrais dos conceitos
populares de doença na mesma região do Tocantins, mas trabalhando
ao mesmo tempo com populações rurais não-indígenas e também com
índios, alguns passando pelo processo de etnogênese (WAWZYNIAK,
2008). Publicou também importantes artigos em periódicos. Após a
sua morte foi publicado um número especial da revista Mediações em
sua homenagem, no qual também publiquei artigo (Cf. MAUÉS, 2012).
Nesse número da revista foi incorporando também um artigo já pronto
e ainda não publicado desse pesquisador (Cf. WAWZYNIAK, 2012).
Todos esses trabalhos citados, além de vários outros artigos pu-
blicados em periódicos, mostram, com algumas pequenas diferenças,
uma cosmologia bem distinta da que predomina no mundo ocidental,
onde se criou a biomedicina. Apesar do tempo relativamente distante
do período em que desenvolvi principalmente meus estudos sobre esse
tema na região do Salgado, não encontrei grandes diferenças desses es-
tudos mais recentes – que existem somente em poucas situações –, o
que parece demonstrar que essas estruturas de pensamento se mantêm
por muitos anos, talvez por pelo menos alguns séculos, como aparece
no célebre conceito forjado pela École des Annales, - as estruturas de
longa duração - a partir de Fernand Braudel, com sua tese de doutora-
do (BRAUDEL, 1995). O não reconhecimento da cosmologia inventada
por nossas populações rurais e que se transferem também às cidades
– não só da Amazônia – com a crescente urbanização pela qual está
passando o Brasil, exigem o conhecimento da parte dos profissionais de
saúde não só da biomedicina ocidental, mas também dessas concepções
60 Raymundo Heraldo Maués

populares que, em boa parte dos casos são desconhecidas e desprezadas


por esses profissionais.

Referências:

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63

Afrontamiento religioso espiritual: una


estrategia de afrontamiento ante el dolor y el
sufrimiento

Japcy Margarita Quiceno

Introducción

L as personas en el camino de la vida no solo para sobrevivir deben


satisfacer sus necesidades básicas y luchar contra el estrés diario,
sino que el otro desafío, es la lucha interna contra polaridades como la
felicidad versus sufrimiento/dolor, necesarios pero no suficientes para
darle sentido a la vida.
Según Palomera (2009) “la felicidad está constituida por tres di-
mensiones: emociones positivas, emociones negativas y satisfacción vital.
La felicidad es el resultado del grado en que las experiencias de afectividad
positiva superan las experiencias de afectividad negativa y del grado en el
que una persona percibe que sus metas y motivaciones están resueltas”
(p. 273). Para Lyubomirsky (2008) es una “experiencia de alegría, satis-
facción o bienestar positivo, combinada con la sensación de que nuestra
vida es buena, tiene sentido y vale la pena” (p. 48). De acuerdo con Se-
ligman (2005) hay dos tipos de felicidad, la momentánea y la duradera.
La momentánea hace referencia a las circunstancias triviales de la vida
como comer un dulce, ver el mejor programa de televisión o darse un
regalo, entre otros. Mientras que la felicidad duradera hace referencia a
la ecuación F= R+C+V. Donde F es el nivel de felicidad duradero igual a
la suma entre R que es el rango fijo y genético de felicidad (50%), más C
que son las circunstancias de la vida (10%) y más V que son las cosas que
se controlan voluntariamente (40%) (Lyubomirsky, 2008). En sus estudios
64 Japcy Margarita Quiceno

Sonja Lyubomirsky ha encontrado que los mitos como, creer que la feli-
cidad está afuera (exterior), que se requiere modificar las circunstancias
de la vida y que sé es o no feliz, no permiten experimentar la felicidad. De
hecho nacemos para ser felices. Entonces ¿por qué a veces sentimos que
la felicidad se nos va y no es duradera? y ¿se abre la puerta para entrar al
sufrimiento, la tristeza y percibir el dolor con mayor intensidad?
De acuerdo con Seligman (2005) las pérdidas reducen mucho la
felicidad y los éxitos-logros o sucesos significativos la aumentan poco.
Este planteamiento puede ser visto como desalentador, pero esto de-
muestra que estamos hechos con sabiduría. ¿Qué sería del hombre si
estuviera en un estado de permanente felicidad? o ¿qué pasaría si nos
habituáramos a la felicidad? El mundo sería un total caos, nadie tra-
bajaría por conseguir sus metas, seriamos egoístas o en caso extremo
perderíamos la noción de realidad como en el optimismo ilusorio, la
idea sería regirse por el “principio de Pollyanna” (novela de Eleanor H.
Porter del año 1913). El que la experiencia de felicidad dure poco indica
que la felicidad es un “regalo” que se deriva del fruto constante del traba-
jo personal que se debe realizar para conseguirla, y así evitar o aminorar
el sentir lo contrario, tristeza, depresión, sufrimiento o hasta el dolor.
Ahora bien, esta polaridad entre felicidad y sufrimiento no es del
todo negativa, a veces hay que sentir el dolor y llegar al sufrimiento o
percibir que se acercan para buscar la felicidad, la salud y la calidad de
vida o el bienestar completo (ausencia de dolor según la Organización
mundial de la Salud -OMS) o incluso el placer. Y aquí es donde la per-
sona se vale de múltiples recursos y estrategias para paliarlo, combatirlo
y aminorarlo, y entre esas estrategias están las religiosas y espirituales.

Dolor versus Sufrimiento

El dolor y el sufrimiento son factores inherentes de la condición


humana y ninguno está exento de experimentarlo. El dolor y el sufri-
miento aunque se pueden presentar juntos (no siendo una condición
necesaria) se manifiestan de forma distinta.
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 65

La palabra dolor proviene de la palabra latina “Poena” que significa


dolor generado por un castigo, Poena fue una diosa de la mitología romana
(Grimal, 2010). En la literatura no es consistente en afirmar si el dolor es
una emoción o una sensación, pero es más común encontrarlo como una
“sensación”. En los fundamentos teóricos sobre Claudio Galeno de Galeno
(130 - alrededor del año 200 dC), clasifica al dolor (acuña el dolor referido)
como la forma más baja de sensación y al corazón como el órgano central
en la sensación de dolor; mientras que para el filósofo francés René Descar-
tes (1596 -1650 dC), el dolor es una sensación que se percibe como caliente
y fría. Además, para Aristóteles es comparado a una emoción semejante
a la alegría, que contrario puede destruir la naturaleza (Ahmad, Raza &
Akhtar, 2015). Una de las teorías más influyentes en el dolor es la “teoría de
la compuerta” de Ronald Melzack y Patrick David Wall, esta teoría comien-
za a mencionar los factores psicológicos (emociones, pensamientos) como
elementos integrales para la comprensión en la experiencia de dolor (Ace-
vedo, 2012). Según Ahmad et al. (2015) algunos filósofos hay considerado
al dolor y al placer como antagónicos pero inseparables, como por ejemplo
Santo Tomás (1478-1535 dC), Epicuro (341 a 270 aC), Platón (428 a 348
aC), Sócrates (470-399 AC), El Marqués de Sade (1740-1814 dC), Imma-
nuel Kant (1724-1804 dC) e Ibn Sina (980-1037 AD), entre otros.
El dolor también es un mecanismo de defensa (protector) o un
predictor, ya que es una señal de daño o alarma sobre algo que sucede en
el organismo y un monitor de salud (Kerns, Sellinger & Goodin, 2011),
es un fenómeno de causa más frecuente en consulta médica (Díaz, Ma-
rulanda & Sáenz, 2009), es una experiencia personalizada y de experien-
cia emocional desagradable (Sánchez-Herrera, 2003).
Para Marie Francois Bichat (1.771 a 1.802 dC), es considerado
como un “lamento de la vida” (Moscoso, 2012). René Leriche (1879-
1955 dC), indicó que “el dolor físico no es solo cuestión de un simple
impulso, viajando a una tasa fija a lo largo de un nervio; es el resultado
de un conflicto entre un estímulo y todo el individuo. Es como una tor-
menta, que difícilmente admite evaluación, una vez que se ha termina-
do” -Sociedad Internacional de Cirugía- (Proot & York, 2014, p. 5).
66 Japcy Margarita Quiceno

Para la Asociación Internacional para el Estudio del Dolor


(IASP) “el dolor es una experiencia sensorial y emocional desagrada-
ble asociada con lesiones tisulares real o potencial, o que se describe
como ocasionada por dicha lesión” (Merskey, 1979) -definición aún
vigente, actualizada en octubre 6 de 2014-. Pero según Ahmad et al.
(2015), Andrew Wright en el año 2011 no estuvo de acuerdo con esta
definición de la IASP por su carácter excluyente, poco clara para ser
respondido en un auto informe con personas menores de edad o con
alguna limitación, no considera la experiencia de dolor si se valora en
un auto informe y la relación con el dolor da a entender que aplica
solo a una alteración en los tejidos, y para esto propone la siguiente
definición: “El dolor es la sensación desagradable que ha evolucionado
para motivar el comportamiento que evita o minimiza el daño tisular
o promueve la recuperación”.
Ahora bien, dependiendo del origen del síntoma del dolor se pue-
de clasificar en dolor físico, psicológico y espiritual.

Dolor físico

La tipología del dolor físico viene dada por su duración de presen-


tación clasificándose como agudo y crónico y la fisiopatología subyacen-
te que clasifica al dolor en nociceptivo y neuropático.
De acuerdo a la duración de presentación con relación al dolor
agudo (nociceptivo) hay una asociación marcada entre intensidad del
dolor y la patología que lo subyace, la enfermedad aquí puede disminuir
con el tiempo y la mejora con la curación (medicamento o cirugía). Su
duración es más o menos de tres meses. Este tipo de dolor es un me-
canismo de defensa protector fisiológico que alerta sobre algo que está
sucediendo en el organismo y se puede dificultar el movimiento de la
zona lesionada (tejidos), promoviéndose en la persona la búsqueda de
prevención. Este tipo de dolor está asociado a emociones negativas de
ansiedad. De otro lado, está el dolor crónico, el cual se configura entre
tres meses a seis meses, puede aparecer por periodos de tiempo (meses o
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 67

años) o estar relacionado a una patología prolongada. Dura toda la vida


y requiere tratamiento. Por lo general hay una adaptación del organismo
y poco se dan respuestas fisiológicas. Este tipo de dolor está asociado a
emociones negativas de desesperanza, impotencia, trastornos del sueño
(Brannon & Feist, 2001; Guevara & De Lille, 2008). Otros tipos de dolor
son el dolor crónico maligno que se relaciona a una enfermedad termi-
nal de carácter progresivo y el dolor oncológico
De acuerdo a la fisiopatología subyacente con relación al dolor
nociceptivo se presenta por lo general daño en tejidos corporales dado
por una agresión que puede ser una enfermedad, una lesión, un proce-
so inflamatorio o infeccioso o una intervención quirúrgica, pero no se
presenta afectación alguna en el sistema nervioso, y la intensidad del
estímulo que desencadena el dolor presenta relación con la percepci-
ón de este. A su vez el dolor nociceptivo se clasifica en dolor somático
que hace referencia a algún daño en los tejidos del cuerpo o a una
estructura anatómica (músculos, huesos, piel, etc.), este es localizable,
definido y punzante, de descripción variable; mientras que el dolor vis-
ceral consiste en algún daño en un órgano interno (por inflamación,
estiramiento, colecistitis, patología, pleura o apendicitis), es de anotar
que el cerebro, hígado, pulmón y los ovarios no son tan sensibles al
dolor, este se puede manifestar en cólico (víscera hueca), es mal loca-
lizado, sordo, profundo, agotador, difuso y se irradia en otras áreas y
se pueden dar síntomas vegetativos o respuestas autonómicas como
salivación, sudoración, hipotensión, náuseas, vómitos. Respecto al do-
lor profundo el síntoma es percibido en un lugar del cuerpo diferente
a la zona lesionada o de inicio. Y en cuanto al dolor neuropático, es
un dolor “patológico” dado por una lesión o trauma sobre los nervios
periféricos, los receptores nociceptivos o el sistema nervioso central
(se detecta con pruebas diagnósticas). Se manifiesta como un dolor
punzante, quemante, lacerante, hormigueo, presión, descarga eléc-
trica, espasmo, pinchazos, picazón, golpeado, profundo, dolor al frío
(Brannon & Feist, 2001; Guevara, 2015).
68 Japcy Margarita Quiceno

Dolor psicógeno

De otro lado, está el dolor psicógeno funcional, aunque no tiene


un origen orgánico (nociceptivo, neuronal) es un dolor que se resiste a
los tratamientos y que se percibe real, es más psicosomático, presentán-
dose más en personas con vulnerabilidad patológica a nivel psiquiátrico
(ansiosos/depresivos, neuróticos, etc.) se evidencia una maximización
de un dolor que no corresponde con la gravedad de un diagnóstico
médico ya que las personas por lo general tienen una alta sensibilidad
ante estímulos menores, exagerando o distorsionándolos. Fue definido,
en principio, en el Manual Diagnóstico y Estadístico de los Trastornos
Mentales (DSM) versión III, más adelante en el DSM-IV se llamó tras-
torno por dolor (agudo o crónico) o somatomorfo y en el DSM-V viene
adherido a los trastorno de síntomas somáticos (Vallejo, 2014), mien-
tras que en la Clasificación Internacional de Enfermedades (CIE-10) se
le denomina trastorno por dolor persistente (Pérez, Arilla & Vázquez,
2008).

Dolor espiritual (o sufrimiento)

El dolor espiritual se caracteriza por un dolor profundo (hondo),


no físico que tiene tres connotaciones: un conflicto intrapsíquico, una
pérdida interpersonal o conflicto en relación con un poder más alto -di-
vino- (Mako, Galek & Poppito, 2006). El dolor espiritual es un entra-
mado de factores que se entrecruzan y que incluyen la conciencia de
pérdida de relaciones, de sí mismo, de un propósito forjado, del control
frente a la vida y la conciencia de muerte (Millseaugh, 2005). Puede
definirse además como un dolor que proviene por la percepción que
tiene la persona de extinción de su ser y el significado del yo, valorando
su temporalidad, las relaciones y la autonomía (Murata, 2003). El no
experimentar vínculos, la ausencia de equilibrio/armonía, el no sentirse
integrado, los sentimientos de desesperanza, son señales del dolor es-
piritual, mientras que los sentimientos de culpa son indicadores de un
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 69

dolor religioso, que hace referencia a la falta de vínculo con el presente


y un poder más alto o un Dios visto con rasgos autoritarios (Kearney,
1990). El dolor espiritual se ha concebido como metáfora al sufrimiento
(McGrath, 2002), donde la pérdida de la autonomía, la baja autoesti-
ma y desesperanza son los elementos característicos (Morita, Tsunoda,
Inoue & Chihara, 2000), y donde se expresa a través de las conductas,
las emociones y las decisiones de tratamiento en caso de enfermedad
(Chochinov, 2006). En otras palabras es un dolor que hace referencia a
la desdibujación lenta, paulatina, sistemática, inexorable e incontrolable
del ser.
Cabe anotar que el umbral de dolor es diferente en cada perso-
na (mínima intensidad ante la percepción de un estímulo doloroso)
como su nivel de tolerancia (intensidad máxima soportada y aceptada)
(Ahmad et al., 2015). En la percepción del dolor juega un papel relevante
la fuerte interacción de factores como el cognitivo-evaluativo con el mo-
tivacional-afectivo y estos con los componentes sensoriales-discrimina-
tivos. El componente cognitivo-evaluativo hace referencia a los valores
y creencias socioculturales y religiosas, la autoeficacia, la percepción de
control y la evaluación de las consecuencias sobre el dolor, el significa-
do de este en experiencias previas y la búsqueda de las estrategias para
afrontarlo. El componente motivacional-afectivo enfatiza en la experien-
cia subjetiva de dolor, sufrimiento, desagrado, reacciones emocionales y
la tendencia a la huida y escape. Y el componente sensorial-discrimina-
tivo hace referencia a los mecanismos anatomofisiológicos implicados y
de los aspectos espaciales y temporales del dolor (duración), su inten-
sidad, calidad, ubicación y su cualidad -discriminación entre un dolor
opresivo, urgente, entre otros- (Magee, Zachazewski & Quillen, 2007).
A nivel de género las mujeres reportan baja tolerancia y umbral
de dolor con respecto a los hombres, de otro lado los reportes clínicos
de dolor son más frecuentes en mujeres y la duración y gravedad es más
marcada que en los hombres, ante un mismo proceso de enfermedad
hay diferencias en la sintomatología entre sexos, ante una misma enfer-
medad las mujeres son consistentes en el reporte de niveles de dolor (le-
70 Japcy Margarita Quiceno

siones en tejidos) y emplean mayor número de analgésicos que los hom-


bres; además se ha encontrado una relación directamente proporcional
entre dolor y emociones negativas que aumentan la percepción de dolor
en las mujeres, es por tanto que, la experiencia y percepción emocional
tiene un peso relevante en el tratamiento ante el dolor independiente del
sexo (Ahmad et al., 2015).
El dolor puede ser físico que es genuino y real (una enfermedad) y
no físico y puede tener comorbilidad con más emociones como la rabia
y la tristeza o la ansiedad y la depresión que son las emociones más aso-
ciadas a este síntoma. El dolor se puede calmar incluso con tratamiento
medicamentoso (analgésicos) en más del 90% de los casos o puede de-
saparecer -sin olvidar que a menudo causan efectos secundarios-, pero
si este trasciende o toca la esfera emocional afectiva la intervención se
hace más difícil, implicando más costes a nivel bio-psi-social y espiritual
en la vida de la persona ya que se requieren de más recursos y estrategias
de intervención (Sánchez-Herrera, 2003).
Ahora bien, en ¿qué momento se pasa del dolor al sufrimiento?
Para responder y entender este interrogante primero se define el sufri-
miento el cual ha sido estudiado desde siglos pasados pero que reciente-
mente ha tomado un auge en el área de cuidados paliativos (CP). Según
el planteamiento de Cassell (1992) este es visto como un estado de ma-
lestar inducido por la amenaza de la pérdida de integridad (intactness)
o desintegración de la persona, con independencia de su causa. Es decir,
el sufrimiento es un sentimiento multicausal (dolor, síntomas físicos,
psicológicos, sociales, culturales y espirituales) (Woodruff, 2004) que
puede invadir toda la esfera bio-psico-social y espiritual de la persona
e inhabilitar su funcionamiento normal, es experimentado casi como el
“dolor total” -término referido por Cicely Mary Saunders- ya que afecta
toda la integridad humana (Goebel et al., 2009). En el sufrimiento la
integridad se ve amenazada ya que la persona se siente impotente para
afrontar las situaciones estresantes porque evalúa que no tiene los recur-
sos de afrontamiento personales y psicosociales para hacer frente a la
amenaza de manera adecuada, o que estos están agotados, es por tanto
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 71

que el sufrimiento es un estado donde operan factores afectivos, cogni-


tivos de carácter negativo (Chapman & Gavrin, 1993). En definitiva el
sufrimiento aparece en dos momentos, cuando se percibe amenaza o
daño (física o psicosocial) y cuando los recursos de afrontamiento están
aminorados (Bayés, Arranz, Barbero & Barreto, 1996). Para Le Breton
(1999) el sufrimiento “es una experiencia subjetiva de un evento que es
percibido como doloroso, vivencia que se configura dentro de un con-
texto social y cultural” por lo tanto es difícil de medir. Para Van Hooft
(1998) el sufrimiento emerge al frustrarse, en otras palabras, el sufri-
miento equivale a frustración de los propósitos y tendencias, plantea
una visión más holista y menos dualista (sufrimiento versus dolor) del
sufrimiento donde se interrelacionan las dimensiones del ser. De otro
lado, las perspectivas existencialistas sobre el sufrimiento lo equiparan
como un dolor de tipo espiritual/existencial donde hay una evaluación
de desintegración del ser y su valor haciendo relevancia entonces al
sentido de vida, la necesidad de representación de un Dios y la cone-
xión, pero de otro lado tienen en cuenta el peso de aspectos religio-
sos como de exterminio, las pérdidas y la culpa (Kearney, 1990). En el
ámbito clínico cuando se está procesos de enfermedad, de pérdida o
ante cualquier evento de la vida, el sufrimiento puede ser visto como
una experiencia personal y la oportunidad para dar significado a una
experiencia determinada (Kahn & Steeves, 1995). Respecto a las pers-
pectivas fenomenológicas el sufrimiento es visto como la dinámica en
las relaciones del hombre consigo mismo, los demás (cuidadores, la fa-
milia) la temporalidad y el mundo. Y puede ser visto como un proceso
multidimensional único y no un estado, el cual la persona va teniendo
cambios hasta lograr el equilibrio y el bienestar (Dildy, 1996). En defini-
tiva el sufrimiento humano se puede clasificar en espiritual que enfatiza
en el significado/valor de la vida y las disyuntivas morales y éticas, en
físico que enfatiza en el dolor y las patologías somáticas y en psíquico
que hace referencia a la enfermedad mental y las supresiones, es por tan-
to que, se considera como hipótesis que un sufrimiento psíquico hace
referencia a los padecimientos mentales con los espirituales, pero la va-
72 Japcy Margarita Quiceno

lencia del sufrimiento tiene funciones positivas y negativas tanto en la


personalidad como en la existencia de una persona promoviendo o no
su desarrollo (Makselon, 1988). El sufrimiento tiende a solaparse con el
malestar emocional (distrés) pero se diferencia en que en el distrés es
una respuesta emocional única desagradable a un suceso específico que
es demandante y estresante porque excede sus recursos para afrontarlo,
y puede ser de carácter social, psicológico o incluso espiritual (Kelly,
McClement & Chochinov, 2006), tiene causas simultaneas, mientras
que el sufrimiento aunque es también de experiencia única, es más in-
tegral, holístico, responde a más situaciones que son percibidas por la
persona como amenazantes, es decir incluye múltiples factores de la es-
fera bio-psico-social y espiritual (Chapman & Gavrin, 1993), causas
interdependientes. El distrés es un componente del sufrimiento pero no
es el todo.
Ahora bien, dependiendo de la percepción o valor ante el sínto-
ma de dolor que se manifiesta como angustia (u otra experiencia) se
llegaría al sufrimiento (Gómez & Grau, 2006), aunque no siempre se
da una relación directamente proporcional entre dolor y sufrimiento,
puede coexistir el dolor sin el sufrimiento o el sufrimiento sin el dolor,
es decir, solo cuando el síntoma de dolor es experimentado como una
amenaza y la persona percibe incertidumbre por lo que implica, hay
un desconocimiento de la causa, percibe incierta la curación, que este
tiene un significado fatal, o que este puede prolongarse o intensificarse
en el tiempo sin contar con unos adecuados recursos de capacidad de
control, se puede llegar al sufrimiento (Bayés, 1988). El sufrimiento es
entonces una respuesta emocional negativa (psicológica) que no nece-
sariamente tiene un origen físico sino que este puede ser también no
físico como las experiencias emocionales negativas (miedo, ansiedad)
o pérdidas o por estados psicopatológicos (Loeser & Melzack, 1999). A
diferencia del dolor que se puede controlar médicamente, el control del
sufrimiento es algo propio de la persona y depende fundamentalmente
de la percepción de un estado de indefensión de parte de éste (Sancho y
Grau, 2006). El sufrimiento puede ser opcional e incluso duradero y el
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 73

estado de sufrimiento depende del significado que la persona le da al su-


ceso doloroso o traumático (Abrera-Adan, Lluch-Bonet & Casas-Olaza-
bal, 2008). En el estado de sufrimiento la persona puede incluso obtener
beneficios secundarios al optar por un rol de víctima (manipulación).
En definitiva, ante el sufrimiento y el dolor la persona emplea los
recursos de afrontamiento que le han sido funcionales en su vida y a ve-
ces son las estrategias religiosas o espirituales las que pueden darle una
respuesta ante la sensación del dilema dolor y sufrimiento.

Afrontamiento espiritual religioso

Según Lazarus y Folkman (1984, p. 141) definen el afrontamiento


como los esfuerzos cognitivos y conductuales constantemente cambian-
tes que se desarrollan para manejar las demandas específicas externas
y/ o internas que son evaluadas como excedentes o desbordantes de los
recursos del individuo (Lazarus, 2000).
Desde los modelos cognitivos de la emoción no son en sí las situ-
aciones las desencadenantes de las respuestas emocionales sino la inter-
pretación y valoración que la persona le da a un determinado estímulo
amenazante o estresante. En el proceso de afrontamiento interactúan
tres tipos de evaluación cognitiva como son la evaluación primaria, la
evaluación secundaria y la reevaluación.
En la evaluación primaria las situaciones o eventos que son
evaluados como estresantes son los que implican cambio como situ-
aciones de daño o pérdida, de amenaza y de desafío. El daño o pérdi-
da consiste en recibir un perjuicio (por ejemplo, la pérdida de un ser
querido); la amenaza hace referencia en situaciones donde se prevén
daños o pérdidas, aunque éstos no hayan ocurrido y se pueden solu-
cionar o afrontar de manera anticipada, y el desafío implica la revisión
anticipada de situaciones de daño o pérdida, como la amenaza, pero
a diferencia de ésta se acompaña de la valoración de que existen re-
cursos o habilidades suficientes para afrontarlas con éxito y obtener
ganancias. La evaluación secundaria se refiere al análisis que el sujeto
74 Japcy Margarita Quiceno

hace de las conductas, los recursos o las habilidades de las cuales se


dispone para enfrentar la situación. Cuando en el proceso de valua-
ción encuentra que no dispone de estos o que son insuficientes, se
desencadena la respuesta de estrés (psicofisiológica y emocional), ade-
más de las categorías de evaluación expuestas; por eso es fundamental
considerar otras dos clases: la percepción de anticipación y la percep-
ción de control de la situación. Este último se refiere a que la persona
descubra que una situación depende de él y la puede manejar con los
recursos de que dispone. La anticipación, por su parte, es prepararse
para un suceso, junto con su carácter positivo o negativo, deseable o
no deseable (López & Gil, 2004). Estos dos factores son fundamenta-
les en el estrés, puesto que se ha encontrado que los sucesos percibidos
como incontrolables o impredecibles son los que tienen impacto sobre
la salud (Sandín, 1999). Finalmente en la selección de las respuestas, el
organismo selecciona las posibles a las demandas percibidas y decide
cuáles debe utilizar.
La revaloración se da cuando el problema no se ha afrontado y
sigue el sentimiento de malestar emocional, el cual es positivo (“tiempo
fuera” del estrés) en el sentido que la persona plantea nuevos objetivos
y abandona aquellos que no puede sostener, comienza a darle sentido y
valor/beneficio a la situación (Folkman & Greer, 2000).
Ahora bien, en determinadas situaciones la persona elige optar
por un empleado tipo de estrategias ya sean defensivas o para resolver el
problema, lo que implica que el afrontamiento es un proceso cambiante
que depende de la relación del sujeto con el entorno y estas pueden ser
adaptativas (a largo termino promociona la salud y aminoran el estrés)
o desadaptativas (a corto termino se aminora el estrés pero a la larga la
salud se ve afectada). Además, las personas no solo emplean estrategias
para paliar una situación, es decir procesos concretos que pueden va-
riar en concordancia de su desencadenante (Felipe & León, 2010), sino
que detrás de estas están los estilos de afrontamiento que son aquellas
“predisposiciones personales para hacer frente a las situaciones y son los
responsables de las preferencias individuales en el uso de unos u otros
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 75

tipos de estrategias de afrontamiento, así como de su estabilidad tempo-


ral y situacional” (Fernández-Abascal, 1997, p.190).
Los estilos de afrontamiento se dividen en tres componentes que
le dan su carácter y definición como son -en las primeras aportacio-
nes- el método empleado (afrontamiento activo o de evitación) y la “fo-
calización de la respuesta” (focalizado en la evaluación de la situación
inicial, dirigido al problema o a la emoción) y más adelante surge el
afrontamiento centrado en la “naturaleza de la respuesta” que puede ser
de tipo conductual o de tipo cognitivo (Gantiva et al., 2010). Tanto los
estilos como las estrategias pueden complementarse ya que los estilos
tienen un carácter estable y solido ante el afrontamiento al estrés y las
estrategias de afrontamiento son acciones y conductas concretas ante
una determinada situación (Pelechano, 2000).
Susan Folkman y Richard S. Lazarus a partir de sus trabajos desar-
rollaron un instrumento (Ways of Coping, WOC) que mide ante even-
tos estresantes los pensamientos y acciones de las personas para paliar
la situación, este contiene 8 estrategias unas centradas en la solución del
problema (confrontación y planificación), otras en la regulación emo-
cional (distanciamiento, autocontrol, aceptación de responsabilidad,
escape-evitación, reevaluación positiva) y una en ambas (búsqueda de
apoyo social). Aunque se cuenta con variedad de instrumentos no todos
son afines en las mismas estrategias, en otros se cuenta por ejemplo con
conductas como rezar, el humor, las conductas de autocuidado, pero las
estrategias que son consistentes en diversidad de instrumentos son el
apoyo social/información, escape/evitación (pensamientos ideales, con-
sumo de drogas, alcohol, etc.) y de reevaluación positiva (Whittemore,
2009).
Entre las estrategias de afrontamiento se ha considerado la bús-
queda de la religión y la espiritualidad como un camino para afrontar el
estrés y la adversidad. La religión se refiere a creencias y prácticas rela-
cionadas a lo trascendente (un Dios), que puede o no estar organizada
en una comunidad, comprende reglas que guían el comportamiento de
los hombres y doctrinas sobre el antagonismo de la vida y la muerte.
76 Japcy Margarita Quiceno

Mientras que la espiritualidad en cambio, desde las perspectivas mo-


dernas se refiere a aquellas personas que son profundamente religiosos,
quienes no son tan profundamente religiosos y quienes no lo son como
los humanistas seculares, la espiritualidad ha tomado un carácter de au-
todefinida, ya que cada quien le da el valor o significado que le quiere
dar, es la búsqueda de cada persona para darle sentido y propósito en la
vida (Koenig, 2015). De otro lado, la espiritualidad puede incluir o no la
creencia de un poder más alto, y manifestarse a través de la apropiación
y admiración por el arte, la música, la naturaleza, las relaciones inter-
personales, es un conjunto de creencias filosóficas personales (Sulmasy,
2002). La espiritualidad ayuda a comprender las situaciones negativas
como lo es la enfermedad y la forma elegida para afrontarla (MacLean
et al., 2003).
Al respecto, Pargament (1997) un psicólogo judío desarrolló su
teoría a finales de los años 80s (Siglo XX) sobre afrontamiento religioso
considerando el modelo de Lazarus y Folkman (1984) sobre afronta-
miento al estrés, que consiste en “aquel tipo de afrontamiento donde se
utilizan creencias y comportamientos religiosos para prevenir y/o ali-
viar las consecuencias negativas de sucesos de vida estresantes, tanto
como para facilitar la resolución de problemas” (Quiceno & Vinaccia,
2009).
Kenneth Pargament hace énfasis en tres estilos de afrontamiento
religioso relacionados con el locus de control (Pargament et al., 1998),
de acuerdo con el nivel de pasividad o actividad que una persona adopta
para hacer frente a los problemas. El estilo autodirigido, la persona es
activa y Dios es pasivo, se tiene mayor confianza en sí mismo más que
en un Dios en la resolución de los problemas, la persona tiende a tener
más alta competencia personal, autoestima y autonomía, este estilo ha
sido efectivo para la abstinencia en el consumo de alcohol y mejores
resultados en salud física y mental. El elusivo o evitativo, la persona no
toma medidas activas, espera que Dios resuelva las dificultades, la res-
ponsabilidad personal se deja en la voluntad divina, la persona tiene una
actitud pasiva con bajo sentido de competencia personal, autoestima,
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 77

habilidad de solución de problemas y mayor intolerancia a las diferen-


cias interpersonales, este estilo es el más empleado, donde hay percep-
ción de pérdida de control ante situaciones de crisis como violencia y
trauma, duelo y pérdida, y enfermedades de alto impacto, entre otros,
aunque el valor positivo de este estilo que ha sido más criticado en el
ámbito de la psicología, está en que -no en todos los casos- promueve la
esperanza. Es de anotar que en este tipo de afrontamiento en situaciones
donde la persona percibe un poco de control (CP), posiblemente hay
una disminución de la agitación y un aumento de la paz interior (Parga-
ment, Ano & Wachholtz, 2005).
Y el colaborativo -afrontamiento basado en lo espiritual-, tanto la
persona como Dios son activos e interactúan en el proceso de afronta-
miento, en colaboración con otros, para resolver los problemas, la per-
sona tiene un alto control personal y autoestima, y bajo sentido de con-
trol por las circunstancias o el azar (Muñoz, 2003; Muñoz & Moreno,
2003), se promueve la salud a nivel físico y mental, la persona percibe
menos síntomas de enfermedad, y de ansiedad y culpa por los propios
pecados, dándose una actitud de gracia y perdón hacia uno mismo.
Tanto el autodirigido como el colaborativo son asociados con mejores
medidas de salud física y mental (Pargament, Koenig, Tarakeshwar &
Hahn, 2004). Se cuenta además con un cuarta forma desarrollada por
Phillips, Pargament, Lynn y Crossley (2004), llamada el “abandonado”
donde la persona cuida y se hace responsable de su propia salud porque
su poder más alto lo ha dejado solo (abandonado), es decir, la persona
entra en lucha con su fe y tiene la creencia que Dios posiblemente no
le colabora porque es un pecador o no digno, así que la persona siente
que le toca por obligación defenderse sola. Esta forma de afrontamiento
presenta resultados más desfavorables con la salud, y mayor morbilidad
y mortalidad.
Ahora bien, hasta ¿qué punto la religión puede ser vista como
positiva o negativa? Pargament (1997) plantea que la religión puede ser
empleada como mecanismo de evitación ante el afrontamiento de si-
tuaciones presentes o para asumir una actitud de pasividad ante una
78 Japcy Margarita Quiceno

divinidad con la esperanza de soluciones maginas -asunto concebido


por otros profesionales- ya que Sigmund Freud la concebía como una
defensa ante la realidad. Sin embargo la religión y la espiritualidad (R/E)
en esencia busca la reflexión hacia polaridades como la vida y la muerte
y su significado entre lo referente a situaciones de sufrimiento/dolor,
enfermedad, duelo, se centra en la búsqueda de una actitud ética y mo-
ral del hombre, y en dar respuesta a aquello donde la ciencia a veces no
tiene explicaciones (Pargament y Park, 1995).
Aunque según Koenig, McCullough y Larson (2001) los movi-
mientos religiosos (ortodoxos o fundamentalistas) pueden llegar a ser
negativos al promover distorsiones a nivel emotivo-cognitivo y conduc-
tual en sus fieles en la manera de ver y asumir la realidad, no solo facili-
tando un afrontamiento pasivo donde un poder más alto es la solución
sino por ejemplo no facilitando la adherencia a los tratamiento a cambio
de aceptar solo las prácticas religiosas como única solución o considerar
un evento vital estresante como un castigo divino o un pecado, etc., o
que los problemas son fruto del diablo no facilitando la búsqueda de
ayuda profesional. De otro lado, Pargament plantea que en situaciones
de crisis la religión en sí no es la negativa sino que posiblemente la falta
de que los lideres o sus miembros brinden respuesta oportunas y el poyo
requerido en sus fieles que están pasando por una situación en crisis
puede promover una percepción de que la religión no es genuina y los
ha dejado solos justo cuando más los necesitan y su clamor se extien-
de incluso a su poder más alto donde la percepción y valoración de su
deidad termina distorsionada aumentando la creencia de que los está
castigando por alguna falta, por tanto la salud emocional y mental y el
afrontamiento ante los problemas se ven vulnerados. Y de esta forma se
desprende dos tipos de afrontamiento, uno positivo y otro negativo de
cómo las personas perciben las adversidades.
Las personas que utilizan un afrontamiento positivo la repre-
sentación de un poder más alto es benevolente, colaborador, de con-
fianza, buscan y dan apoyo social E/R en la comunidad (conexión y
apoyo espiritual con otros) y emplea estrategias como la oración, las
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 79

súplicas (plegarias) y el perdonar y pedir perdón a los demás, hay una


reevaluación benévola de la religión, donde imperan los modelos es-
pirituales para afrontar los problemas, este afrontamiento representa
un sentido de espiritualidad y promueve la creencia de que hay sig-
nificado en la vida. Este tipo de afrontamiento se asocia además con
mejores niveles de autoestima, de calidad de vida y ajuste psicológico
y espiritual y menor estrés. Mientras que quienes utilizan un afronta-
miento negativo la representación y reevaluación de un poder más alto
es como ausente, perciben no tener vínculos y la relación con Dios es
deficitaria, lo encuentran castigador (enfermedad), y el demonio for-
ma figura ante problemas de salud, etc., hay un descontento espiritual,
tienen una visión pesimista del mundo, se enfrentan a sentimientos
de pena y de lucha religiosa sobre la búsqueda de significado en la
vida (Wachholtz & Pearce, 2009). Este tipo de afrontamiento se asocia
con síntomas de depresión, estrés emocional e insensibilidad, proble-
mas de salud física, con una pobre percepción de calidad de vida y de
capacidad de afrontamiento ante los problemas (Pargament, Smith,
Koenig & Perez, 1998). Koenig et al. (2001) encontró en una exhaus-
tiva revisión de estudios sobre religión y salud ocho aspectos donde
las prácticas y las creencias religiosas pueden tener aspectos negativos
a nivel de adherencia a los tratamientos como suspensión de medica-
mentos importantes para la vida de una persona, en la búsqueda de
atención médica, interfiriendo en la inmunización infantil, en la aten-
ción prenatal, en el parto asistido por un médico y en las trasfusiones
de sangre, y a nivel psicosocial ignorando o promoviendo el maltrato
infantil, promoviendo el fomento de abuso religioso y permitiendo la
sustitución en la atención en salud mental. En definitiva, estos dos
tipos de afrontamiento tienen un impacto positivo o negativo sobre la
salud física (hospitalización, mortalidad, síntomas, etc.), mental (bie-
nestar, eficacia en el afrontamiento empleado, emociones negativas
como ansiedad/depresión) y E/R (re-significación de la vida y en la
relación con un poder más mayor) (Pargament y Brant, 1988). Para
medir el afrontamiento R/E se cuenta una serie de escalas como se
80 Japcy Margarita Quiceno

aprecia en la Tabla 1. Para mayor información sobre escalas de medida


en el área véase la revisión de Quiceno y Vinaccia (2009).
Ahora bien, la relevancia no está en las estrategias empleadas por
la persona o si hay una única y especial estrategia que otras para afrontar
las situaciones de la vida, ante situaciones de adversidad, la importancia
radica en si la estrategias empleadas y los recursos con se disponen y
eligen se dirigen a dar un curso positivo a la vida y paliar la situación
estresante, esto favorece en una mejor salud mental, en una menor per-
cepción ante el dolor y el sufrimiento que puede tornarse como un me-
dio de oportunidad y desarrollo personal para encontrar el significado
al evento doloroso (Pargament, 1997).
Independiente de la forma de las estrategias de afrontamiento
religiosas (individual o colectiva) estas pueden promover la adapta-
ción a través de la relación íntima con un poder más alto que provee
esperanza en situaciones de crisis y adversidad (Koenig, 2002). A su
vez, las prácticas religiosas facilitan el crecimiento espiritual continuo,
apoyo psicológico, propósito en la vida e interacción social (Quice-
no & Vinaccia, 2009). Las estrategias de afrontamiento están de cierta
manera ligadas a experiencias de la infancia, la manera de afrontar
el presente depende no solo de cómo se haya afrontado situaciones
similares en la infancia (por ejemplo pérdidas) sino de la exposición
a experiencias donde el afrontamiento debe desarrollarse. La falta de
estrategias de afrontamiento puede desencadenar depresión en la per-
sona, al verse vulnerados sus capacidades siendo ya adulto ante una
situación (Parkes, 1998).

Tabla 1. Escalas de medida en afrontamiento R/E


INSTRUMENTO QUE MIDE
El RCI es un cuestionario con tres ítems,
diseñado para personas con enfermedades
Religious Coping Index -RCI- físicas y mentales. Mide el grado en el cual
(Koenig et al., 1992). los participantes confían en sus actividades y
creencias religiosas y como éstas le ayudan a
afrontar su situación.
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 81

Esta escala ha sido utilizada originalmen-


te con personas de la tercera edad y sus seis
Escala de Afrontamiento Re- ítems evalúan el conjunto de estrategias em-
ligioso ante la Soledad -ARS- pleadas por la persona en el afrontamiento de
(Montero-López, 1999). sus sentimientos de soledad, caracterizadas
por un centramiento en sus creencias y prác-
ticas religiosas y espirituales.
Esta escala comprende dos dimensiones que
evalúan las estrategias de afrontamiento re-
Spiritual Coping Strategies ligioso y las estrategias de afrontamiento no
-SCS-, (Baldacchino & Buhagiar, religioso. Fue desarrollada originalmente con
2003). enfermos cardiacos, aunque se puede utilizar
con población en general o que tenga otro
tipo de enfermedades.
Esta escala evalúa el afrontamiento religioso
en personas con enfermedades físicas y men-
tales, y está dividida en dos dimensiones que
miden el afrontamiento religioso positivo y el
RCOPE (Koenig, Pargament & afrontamiento religioso negativo.
Nielsen, 1998; Pargament, Koe-
nig & Perez, 2000). Se cuenta la El positivo hace referencia al apoyo religioso
versión breve el Brief-RCOPE espiritual, el estilo colaborador, y la resignifi-
(Pargament et al., 1998). Tambi- cación positiva con la religión, mientras que
én se cuenta con una adaptación el negativo hace referencia al desagrado hacia
para México, la Escala de Pa- el grupo, pares y líderes de la comunidad reli-
trones positivos y negativos de giosa, y una resignificación religiosa negativa,
métodos de afrontamiento reli- los ítems están focalizados a dar respuesta so-
gioso, Brief-RCOPE (Rivera-Le- bre aspectos de frustración, dolor espiritual y
desma & Montero-López, 2005). malestar. Otra dimensión se centra en evaluar
la resignificación del evento crítico como cas-
tigo o no, las plegarias como medio de retri-
bución divino la satisfacción con la iglesia y
su Dios

Las creencias religiosas son un medio potencial que permite un


afrontamiento de tipo cognitivo para tener prueba de realidad ante una
situación dolorosa o de sufrimiento dando sentido a la vida. Las creen-
cias son altamente influyentes sobre los afectos, en cómo se valoran las
situaciones y las decisiones de la vida y por ende promueven el acerca-
miento a la realidad y brindan seguridad y confianza ya que ante situ-
aciones de crisis y casos extremos donde está en un extremo la vida y
82 Japcy Margarita Quiceno

en el otro la muerte son los soportes que protegen la salud emocional


(las personas de forma simbólica sienten compañía). Es de anotar que el
acercamiento a lo religioso no siempre necesariamente tiene que venir
de una crisis personal, hay personas que son creyentes y fieles a su credo
y en la ausencia de respuestas puede alejarse de Dios dándose una in-
versión del afrontamiento religioso, ya que este no le es efectivo, donde
la persona puede renegar, desconfiar y alejarse de su congregación, su fe
y su Dios, otras por el contrario pueden retornar y fortalecer más su fe
después de un tiempo de haberse alejado o incluso buscar otros grupos
religiosos (Yoffe, 2015).

Dolor versus Sufrimiento y salud

Se cuenta con más de 3.300 estudios desde antes del año 2010,
respecto a situaciones de crisis como divorcio, con muestras de cuida-
dores de enfermos crónicos (Delgado-Guay et al., 2013), en el área de la
salud física, mental y emocional; y significativamente en los últimos 20
años es donde ha cobrado más fuerza la investigación (Koenig, 2015),
mostrando los estudios consistentemente relaciones positivas de la reli-
gión/espiritualidad con estas variables (Koenig et al., 2001; Moreira-Al-
meida, Lotufo & Koenig, 2006).
Ahora bien, el dolor y el sufrimiento han sido temas abordados
por diferentes disciplinas, pero en el campo de la salud es retomado
por un área especial dentro de los servicios médicos llamada cuidada
paliativos (CP). En momentos de enfermedad aunque se pueda paliar el
dolor con tratamiento médico, los efectos secundarios de estos acarrean
otros costes para la calidad de vida de la persona. Es por tanto que, fren-
te a este escenario los pacientes buscan alternativas para controlar más
el dolor y es aquí donde se llega a las creencias y prácticas espirituales
y al afrontamiento religioso y espiritual (R/E) (Astin, 1998). De igual
manera el sufrimiento cobra relevancia en escenarios donde la persona
lucha con sus enfermedades de carácter crónico y progresivo, especial-
mente al final de la vida (Krikorian, Limonero & Maté, 2011).
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 83

Las estrategias de afrontamiento R/E que le han sido útiles a las


personas en situaciones de adversidad, ante el dolor y el sufrimiento
varían según la condición, para la psiquiatría y el área de la salud la
religión cobra importancia cuando la persona está en una situación lí-
mite donde busca un poder más alto que le permita dar paz y le ayude
a trascender, la religión provee otros recursos o modos para sobrellevar
-incluso anticipadamente- las situaciones difíciles sirviendo como mar-
co de protección y para mitigar el dolor, el sufrimiento y el malestar. Es
por tanto que, las estrategias de afrontamiento empleadas dependerá en
parte de todos los medios religiosos y espirituales que tenga la persona
en un determinado momento y de su sistema de creencias, estos le da-
rán orientación y sentido y capacidad de paliar los sucesos estresantes y
la misma vida (Pargament, 1997).
Más específicamente la investigación sobre R/E y dolor ha sido
poca, a pesar de la relevancia de la espiritualidad para las creencias so-
bre el dolor y el sufrimiento a través de la historia en pacientes con en-
fermedades crónicas (Harrison et al., 2005; Unruh, 2007). Aunque ha
sido difícil definir y medir la espiritualidad se encuentra en la literatura
su importancia para la supervivencia en pacientes oncológicos especial-
mente ya que las creencias religiosas/espirituales (R/E) influyen en la
toma de decisiones de los pacientes con respecto al tratamiento (Peteet &
Balboni, 2013). Al respecto, se ha encontrado en diferentes estudios que
tanto las creencias religiosas como las actividades asociadas pueden lle-
var a una reducción en la percepción de dolor por que mejoran el estado
de ánimo. Yates, Chalmer, St James, Follansbee y McKegney (1981) rea-
lizaron un estudio con 71 pacientes con cáncer avanzado y encontraron
que las creencias se correlacionaron positivamente con la satisfacción
con la vida y la actividad religiosa y una disminución del nivel de dolor
percibido en pacientes religiosos, y las conexiones se correlacionaron
significativamente con la felicidad y la satisfacción con la vida. En ge-
neral, los pacientes mostraron poco cambio en las creencias religiosas
con el tiempo. Las creencias R/E por si solas no son suficientes para re-
ducir el dolor, pero las creencias y prácticas se han asociado con mayor
84 Japcy Margarita Quiceno

decremento en los niveles de dolor percibido, estudios longitudinales


plantean que el afrontamiento R/E puede favorecer en la capacidad para
afrontar el dolor en pacientes que padecen de esta condición -dolor cró-
nico diario- (Keefe et al., 2001).
Moreira-Almeida y Koenig (2008) plantean que variables religio-
sas poco son asociadas con dolor aunque el afrontamiento de tipo reli-
gioso es bastante utilizado para paliar el dolor, a pesar que la oración es
una de las variables más empleadas en condiciones médicas y que espe-
cialmente la oración de petición se relaciona con más niveles de dolor,
sin embargo las asociaciones positivas de la religión y la espiritualidad
están más dadas con otras variables como afecto positivo y bienestar
y negativamente con depresión y ansiedad. Los estudios no son con-
cluyentes respecto a las relaciones entre afrontamiento R/E y dolor y al
parecer variables mediadoras juegan un papel relevante en esta relación.
Al respecto, en un estudio realizado por Abraido-Lanza, Vasquez
y Echeverria (2004), los aspectos religiosos no se relacionaron con el
dolor o la depresión en una muestra de 200 pacientes con diagnóstico
de artritis reumatoide latinos, se empleó solo 3 ítem de 6 sobre afronta-
miento religioso de la dimensión Rezar/Esperanza del Coping Strategies
Questionnaire -CSQ- (Rosenstiel & Keefe, 1983) y se empleó la dimen-
sión “Uso de la Religión” (3 ítems de 4): “Busco la ayuda de Dios”, “He
puesto mi confianza en Dios” y “Trato de encontrar consuelo en mi reli-
gión”, no se empleó el ítems “Yo oro para que el dolor se detenga” de The
Vanderbilt Multidimensional Pain Coping Inventory (VMPCI; Smith,
Wallston, Dwyer & Dowdy, 1997). De igual manera Vinaccia, Quiceno y
Remor (2011) no encontraron relaciones entre dolor (MOS SF-36) con
el afrontamiento espiritual religioso, las creencias espirituales religiosas
y el apoyo social religioso en tres muestras de pacientes crónicos con
diagnóstico de artritis reumatoide, enfermedad pulmonar obstructiva
crónica e insuficiencia renal crónica.
Por el contrario, Dunn y Horgas (2004) realizaron un estudio con
200 adultos mayores residentes quienes reportaron que su dolor era mo-
derado y las extremidades inferiores eran los lugares del cuerpo más do-
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 85

lorosos. Encontraron que las personas mayores empleaban estrategias


farmacológicas y no farmacológicas para controlar el dolor crónico. Las
mujeres mayores y las personas mayores de origen racial minoritario re-
portaron el uso de estrategias religiosas para controlar el dolor con más
frecuencia que los hombres mayores de origen caucásicos. Las mujeres
mayores también reportaron el uso de la diversión y el ejercicio signifi-
cativamente más a menudo que los hombres mayores. Además en situa-
ciones de dolor se encuentra una inversión en los estilos de afrontamiento
religioso empleados por los pacientes. Cuando la persona está en medio
de un dolor agudo es más propensa a utilizar un estilo autodirigido el
cual se invierte cuando está enfrentada a un dolor crónico donde em-
plea más el colaborativo. Según Wachholtz y Pearce (2009) los estudios
indican diferencias entre intensidad y tolerancia al dolor respecto a las
estrategias de afrontamiento R/E empleadas, ya que los pacientes repor-
tan niveles similares de dolor que quienes no optan por recursos R/E,
pero si muestran diferencias en cuanto a la tolerancia al dolor; el acce-
so al afrontamiento E/R es más frecuentemente relacionado con mejor
tolerancia al dolor y menos con la reducción en la intensidad del dolor
en pacientes con diferentes diagnósticos de dolor como dolor crónico
y agudo, artritis, enfermedad de células falciformes -ECF-, migrañas,
entre otros, posibilitando que los pacientes puedan tener su vida habi-
tual y realizar sus actividades como de costumbre a pesar de los niveles
elevados de dolor.

Estrategias de afrontamiento E/R y dolor


Respecto a las estrategias de afrontamiento E/R que emplean los
pacientes para sobrellevar el dolor/sufrimiento son diversas, pero la
oración es la más usual. Aukst-Margetić et al. (2009) realizaron un es-
tudio con 115 mujeres con cáncer de mama con la escala de Santa Cla-
ra Strength of Religious Faith Questionnaire (SCSORF) y encontraron
que la afirmación “la enfermedad disminuyó mi fe” se asoció con una
pobre calidad de vida y menos bienestar, más dolor, pobre salud física,
y un mayor esfuerzo en el afrontamiento, peor fatiga y menos satisfac-
86 Japcy Margarita Quiceno

ción general, mientras que la afirmación “la fe me ayuda en la enferme-


dad” se asoció con un mayor apoyo social. Al respecto, Stewart, Adams,
Stewart y Nelson (2013) realizaron una revisión de 49 artículos donde
hallaron que la fe religiosa es una importante estrategia de afrontamiento
para pacientes con serias enfermedades donde practican la religión e
interactúan con Dios por el estado de su enfermedad, y esta espiritu-
al interacción les brinda confort, les incrementa el conocimiento sobre
la enfermedad, facilita la adherencia a los tratamientos y la calidad de
vida. Rezar es una estrategia positiva para la mayoría de las enfermeda-
des pero no mucho para personas con enfermedad cardiovascular.
Tepper, Rogers, Coleman y Malony (2001) evaluaron la prevalen-
cia del afrontamiento religioso con el Religious Coping Index (Koenig
et al., 1992), en 406 pacientes de un centro del condado de Los Ángeles
diagnosticados con enfermedades mentales persistentes y su relación
con la severidad de los síntomas y el funcionamiento en general. Encon-
traron que un poco más del 80% empleaban estrategias para afrontar
las frustraciones y dificultades diarias, los pacientes devotos empleaban
más de la mitad de su tiempo a prácticas como orar, siendo esta la más
frecuente actividad. La oración o la lectura de la Biblia se relacionaron
con la severidad de los síntomas, la frustración y mayor deterioro. Lo
anterior es afín con revisiones de literatura con pacientes de dolor cró-
nico donde el uso de la oración ha sido la primera e incluso la segunda
estrategias -activa- más empleada para tratar el dolor (Koenig, 2001; Ri-
ppentrop, 2005) y no está necesariamente relacionada con la estrategia
de afrontamiento más pasiva de la esperanza como se pensaba antes
(Bush et al., 1999) donde más del 60% la utilizan en respuesta al dolor.
De otro lado el 40% informan incrementos en su R/E después de la apa-
rición de la enfermedad dolorosa, ya que la oración aparte de ayudar a
reducir la percepción de dolor está asociado con bienestar psicológico y
afecto positivo (Wachholtz & Pearce, 2009). Lo anterior se convierte en
un círculo vicioso donde a mayor presencia de síntomas de dolor mayor
búsqueda de la oración y a mayor uso de la oración mayor necesidad
E/R.
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 87

Harrison et al. (2005) realizaron un estudio con 50 pacientes


afroamericanos ambulatorios con enfermedad de células falciformes y
después de controlar la edad, el sexo y la gravedad de la enfermedad
encontraron que la asistencia frecuente a la iglesia se asoció a menores
experiencias sensoriales y afectivas de dolor, y a menor intensidad de
dolor en los autorreportes, así como a un menor número de síntomas
de somatización, depresión y ansiedad. La oración/estudio de la Biblia
y la religiosidad intrínseca no se relacionaron significativamente con el
dolor. Los autores concluyeron que la participación religiosa probable-
mente juega un papel importante en la modulación de la experiencia
del dolor.

Afrontamiento R/E positivo y negativo y dolor


En algunas escalas de calidad de vida se cuenta con dominios de
dolor y manejo de síntomas que se entrelazan con R/E (Balboni, 2013).
Al respecto, Steinhauser et al. (2000) en una muestra aleatoria con 340
pacientes con enfermedad avanzada encontraron que la espiritualidad
mejora la calidad de vida porque provee paz con Dios y control del do-
lor especialmente al final de la vida. En otros estudios por el contrario
se ha encontrado que la angustia o la lucha por las preocupaciones espi-
rituales (sentirse abandonado por Dios) es frecuente entre los pacientes
con cáncer avanzado (Samuelson, Fromme, Thomas, 2012). Las estra-
tegias de afrontamiento empleadas no parecen tan relevantes como la
valencia de estas, ya que las estrategias de afrontamiento E/R positivas
como por ejemplo, la búsqueda de apoyo espiritual o reevaluación reli-
giosa benévola, se asocian positivamente en pacientes con dolor crónico
(Keefe et al., 2001).
Pargament, Koenig, Tarakeshwar y Hahn (2001) realizaron un
estudio longitudinal de cohortes entre 1996 a 1997 con 596 pacientes
mayores de 55 años pertenecientes a los servicios de hospitalización
del Centro Médico de la Universidad de Duke o el Centro Médico de
Veteranos de Durham, Carolina del Norte. Encontraron que mayores
puntuaciones de lucha religiosa al inicio del estudio fueron predictores
88 Japcy Margarita Quiceno

de un mayor riesgo de mortalidad. Tres ítems de la dimensión afronta-


miento negativo de la escala de Brief RCOPE fueron predictores de un
mayor riesgo de mortalidad como: “preguntarse si Dios lo ha abando-
nado”, “interrogarse sobre el amor de Dios” y “Considerar que el diablo
hizo que esto sucediera”. Según los autores ciertas formas de religiosidad
pueden aumentar el riesgo de muerte, especialmente en personas mayo-
res con alguna enfermedad donde experimenten una lucha religiosa con
su enfermedad, aunque se controle la salud física, mental y aspectos de-
mográficos.
Rippentrop, Altmaier, Chen, Found y Keffala, (2005) desarrolla-
ron un estudio sistemático con 122 pacientes con dolor crónico muscu-
loesquelético donde evaluaron el afrontamiento R/E positivo y negativo
y su relación con el dolor persistente. Encontraron que el afrontamien-
to R/E positivo se relacionó con una mejor salud mental; el perdón, la
adaptación religiosa negativa, experiencias espirituales diarias, el apoyo
religioso, y auto-clasificación sobre la intensidad religiosa/espiritual
predijeron significativamente el estado de salud mental, mientras que el
afrontamiento R/E negativo, por ejemplo sentirse abandonado y casti-
gado por Dios, se relacionó con una desfavorable salud física y mental,
inclusive fue riesgo de mortalidad. Paradójicamente las prácticas reli-
giosas privadas como la oración, la meditación, el consumo de medios
de comunicación religiosos, fueron predictores de una desfavorable sa-
lud física, como forma de afrontamiento cuando se percibe que se está
en estado precario de salud.
Reynolds, Mrug, Hensler, Guion y Madan-Swain (2014), reali-
zaron un estudio longitudinal (2 años) donde analizaron las relaciones
entre afrontamiento espiritual (Brief RCOPE) y el ajuste psicológico en
128 adolescentes con enfermedades crónicas de fibrosis quística y dia-
betes (media=14 años), se encontró que afrontamiento positivo predijo
más bajos síntomas de depresión y menos afrontamiento espiritual ne-
gativo en el tiempo, mientras que los síntomas depresivos predijeron
altos niveles de afrontamiento espiritual negativo y condujo a proble-
mas en el tiempo. Estos resultados no variaron según la enfermedad. El
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 89

afrontamiento espiritual positivo puede amortiguar en los adolescentes


con enfermedad crónica el desarrollo de depresión y del uso estrategias
de afrontamiento desadaptativas.

Estrategias de afrontamiento R/E y sufrimiento


Por otro lado, la dimensión psicológica y emocional debe ser consi-
derada en pacientes con alguna enfermedad ya que el sufrimiento puede
tener implicaciones por los estilos de vida, cambios corporales, pérdida de
años de vida, de autonomía y de actividad y empleo y desarrollo de emo-
ciones negativas (desesperanza, la tristeza, la culpa) (Abraham, Kutner &
Beaty, 2006; Wilson et al., 2007). Al respecto, Pasman, Rurup, Willems y
Onwuteaka-Philipsen (2009) realizaron un estudio con 10 pacientes que
solicitan de forma explícita la eutanasia pero que no les fue concedida y
encontraron que no todos los pacientes consideraban el sufrimiento como
insoportable, aunque deseaban morir, percepción que tuvieron igualmen-
te los médicos, los pacientes consideraban el dolor como un componente
de su sufrimiento. Para los pacientes parece que el sufrimiento tiene én-
fasis en aspectos psicosociales, como la dependencia y el deterioro, mien-
tras que para los médicos se refiere más a menudo al sufrimiento físico,
por el comportamiento de los pacientes que aun leían libros y que era
incompatible con el insoportable sufrimiento.
Chochinov et al. (2009), desarrollaron un estudio donde evalua-
ron 253 pacientes de CP con el inventario de autorreporte de dignidad
del paciente PDI (self-report Patient Dignity Inventory), para evaluar
el panorama espiritual sobre “la angustia en los enfermos terminales” y
encontraron una correlación inversamente proporcional entre el “senti-
do de significado” y “la intensidad de la angustia”. Wittmann et al. (2009)
realizaron un estudio cualitativo con entrevistas semiestructuradas a 12
pacientes con diagnóstico de lupus eritematoso sistémico y encontra-
ron en las respuestas de los pacientes que la enfermedad siempre estará
con ellos, pero el sufrimiento no siempre lo estará, indicando que el
sufrimiento es un proceso psicológico provocado y sostenido por una
amenaza a la condición humana.
90 Japcy Margarita Quiceno

Bentur, Stark, Resnizky y Symon (2014) realizaron entrevistas


a profundidad a 22 pacientes con cáncer en etapa avanzada que resi-
dían en una clínica de oncología y encontraron que para afrontar las
preocupaciones existenciales y espirituales emplearon cinco estrate-
gias de afrontamiento y supervivencia como son, actitud de apertura
y decisión de enfrentar la realidad, la conectividad y la importancia
de la familia, la búsqueda de significado, el sentido del humor y una
actitud positiva y por último la conexión del cuerpo, mente y espíri-
tu que hacía referencia a la conexión entre los síntomas emocionales
y la mente donde reportaban la pérdida de la dignidad humana, la
diferencia entre la voluntad y la capacidad, y la necesidad de sentirse
bien mentalmente con el fin de sentirse bien físicamente, un ejemplo
de esto es la frase “Quiero ganar y el cuerpo dice: Espere un minuto,
señora, yo pongo las reglas aquí, no tú”. Por otro lado González-Barón,
Lacasta-Reverte, Ordóñez-Gallego y Belda-Iniesta (2006) en España
realizaron un estudio con 73 pacientes oncológicos y encontraron que
el 66% de estos empleaban estrategias de afrontamiento como tener
un pensamiento positivo, seguir la vida habitual, vivir intensamente,
aceptación y lucha por las situaciones, aceptación a las sugerencias
médicas y búsqueda de apoyo informacional, apoyo familiar (hablar),
seguir la vida habitual, meditar y pensar reflexivamente, usar la rela-
jación y entretenerse (activas), y no ver la enfermedad como grave y
resignarse (pasiva). De otro lado, se encontró que los pacientes que
reportaron un gran sufrimiento son los que tenían mayor dolor, mien-
tras que los pacientes con menos sufrimiento y un mayor bienestar
son los que utilizan estrategias para hacer frente a su situación.
Según Krikorian et al. (2011) más de la mitad de los pacientes
con cáncer avanzado experimentan sentimientos de sufrimiento y la
enfermedad presenta comorbilidad con emociones negativas como
depresión, ansiedad y miedo, con el tiempo los pacientes perciben
pérdida de control frente a su vida y a sus síntomas físicos que se
pueden ver intensificados, por tanto aumenta el sufrimiento y los
niveles de emociones negativas, que por sí solas ya implican disca-
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 91

pacidad funcional, requiriendo estos intervención psiquiátrica y psi-


cológica, lo que suma los costos y adiciona una cuota más al proceso
de sufrimiento. En el proceso de muerte los pacientes pasan por di-
versas fases incluyendo crisis existencial que se expresa con ansiedad
a morir; en fases de negación (tiene tres veces más alta prevalencia
con la depresión) aumenta el sufrimiento ya que el afrontamiento es
pasivo, pero en otros casos puede mitigar la ansiedad a la muerte. Es
por tanto que, esto va ligado a consideraciones éticas y culturales,
mientras las culturas latinas se rigen por el principio de beneficencia
las anglosajonas y del norte de Europa se rigen por el de autonomía y
esto tiene implicaciones en los tratamientos y la manera de afrontar
la condición de enfermedad, el sufrimiento implicado y la muerte
incluso (Krikorian et al., 2011).
En definitiva, según Whitman (2007) los estudios no son
afines respecto a las relaciones dolor y afrontamiento E/R ya que por
un lado algunos muestran relaciones con altos niveles de dolor, otros
por el contrario con bajos niveles de dolor, otros no se relacionan
con la intensidad del dolor, ni con el estrés al dolor ni con la inter-
rupción de las actividades diarias, esto obedece a múltiples factores
como el tipo y severidad del síntoma y la cultura/etnicidad; las diver-
sidad de mediciones para R/E y su clasificación como activa/pasiva,
positiva/negativa; el tipo de diseños de los estudios, como los trans-
versales que poco dan cuenta de los cambios en niveles de dolor y
sobre detalles en la participación religiosa en el tiempo, es por tanto
que, el afrontamiento religioso como única variable es insuficiente y
se hace necesario es identificar qué potencialmente es útil o no en el
proceso de afrontamiento, y qué otros mecanismos operan directa o
indirectamente. La mayoría de las religiones están aún en su etapa
inicial acerca del entendimiento de cómo sus principios y prácticas
afectan la salud, ya que hay pocos estudios que científicamente ana-
licen las creencias y tradiciones de la mayoría de las religiones en lo
que respecta al manejo del dolor.
92 Japcy Margarita Quiceno

Intervención afrontamiento espiritual religioso

Según Balboni, Puchalski y Peteet (2014) “lograr la integración de


la medicina y la religión es aún un reto, por razones históricas, éticas,
prácticas y conceptuales”. Sin embargo desde el siglo pasado se han ve-
nido realizando estudios de intervención religiosa espiritual, pero aún
son pocos a pesar que la evidencia empírica demuestra los beneficios de
la R/E en la salud física y mental.
A nivel mental es justificable su participación en la práctica psi-
cológica y psiquiátrica, ya que se han encontrado relaciones entre salud
mental y menor percepción de sintomatología grave y mayor recursos
religiosos, los estudios enfatizan en el desarrollo de actitudes religiosas
como parte activa en momentos de enfermedad mental, lo que deberían
considerarse en el tratamiento y la investigación en esta área (Tepper et
al., 2001). Además en pacientes oncológicos las tasas de sufrimiento son
bastante elevadas, más de la mitad experimentan sufrimiento y presen-
tan comorbilidad con trastornos de depresión o ansiedad (Wilson et al.,
2007).
A nivel de la salud física los pacientes consideran que la espiritu-
alidad no debería quedarse en un plano privado, los estudios recientes
han indicado que el 41% y el 94% de los pacientes aceptan que sus mé-
dicos puedan tratar con ellos aspectos de índole espiritual (MacLean et
al., 2003). McCord et al. (2004) realizaron un estudio con 921 personas
y encontraron que el 83% querían que sus médicos les preguntaran o
discutieran con ellos sobre sus creencias espirituales. En este estudio
los contextos considerados para tratar sobre asuntos espirituales por
parte de los pacientes eran: cuando las enfermedades amenazan la vida
(77%), en condiciones médicas graves (74%) y en momentos de pérdida
de seres queridos (70%) y un 87% consideraban que el tocar estos temas
indicaba una relación de comprensión médico-paciente. Sin embargo,
aunque los médicos aciertan en que es mejor ser respetuosos y aten-
der los compromisos religiosos de los pacientes, dudan en tratarlos en
el ámbito clínico y de tratamiento ya que es un tema complejo. Según
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 93

Kristeller, Zumbrun y Schilling (1999) algunos motivos por los que los
médicos no abordan la dimensión espiritual son falta de formación y
tiempo, dificultad en percibir quienes requieren tratar estos temas, te-
mor a que salga a luz mecanismos de proyección de las creencias perso-
nales, la falta de que haya un médico con creencias R/E, los sentimientos
sobrecargados con demandas que compiten y la suposición de que los
pacientes se autorreferencien.
Según una revisión de estudios en el área se ha demostrado que
las técnicas derivadas del modelo cognitivo-conductual son eficaces
para la intervención R/E (Koenig, 2015). Sin embargo se cuenta con
otras estrategias para abordar programas de intervención y que facilitan
además la movilización cognitiva y emocional. Solo véase la revisión de
literatura de Hawks, Hull, Thalman y Richins (1995) entre los años 1964
a 1994 quienes demostraron en primera medida que las técnicas de ima-
ginería, la meditación y las actividades de apoyo social sirven para tra-
bajar elementos relacionados con la salud espiritual como el significado
y el propósito en la vida, el autoconocimiento y el conectarse consigo
mismo, con los demás y con un poder más alto, aspectos que tienen be-
neficios sobre la salud mental y física y la adherencia a los tratamientos
y reducción de la enfermedad cardiaca y mortalidad en pacientes con
cáncer. Para mayor información sobre programas de intervención véase
la revisión de Quiceno y Vinaccia (2009).
Al respecto Wachholtz y Pearce (2009) proponen algunas estrate-
gias prácticas para el abordaje clínico. Entre ellas está:
1. Mantener una consulta breve lo cual consiste en hacer preguntas
sencillas y cortas sobre R/E que sirvan como medio de evaluación clínica
para identificar fortalezas y los recursos con que se dispone para paliar
el sufrimiento y el dolor y comprender su enfermedad como: ¿Formas
parte de una comunidad de fe? ¿Es la espiritualidad algo que es relevan-
te para su vida o la forma de manejar su dolor crónico? ¿Cuáles activida-
des E/R realiza su comunidad? Kristeller, Rhodes, Cripe y Sheets (2005)
demuestran en su estudio con 118 pacientes oncológicos sobre “inter-
vención espiritual asistida oncológica” (OASIS) que la capacitación a los
94 Japcy Margarita Quiceno

profesionales sobre hacer entrevistas semiestructuradas como medio


para abordar las creencias espirituales para el afrontamiento de la enfer-
medad les brinda seguridad y confianza a estos. Un 85% de los oncólo-
gos reportaron que se sintieron cómodos en la consulta. A las 3 semanas
el grupo de intervención de conversación espiritual en comparación con
aquellos que no la recibieron tuvieron significativamente mejor calidad
de vida y de satisfacción con la atención médica oncológica y más bajos
niveles depresión. El mero hecho de discutir sobre asuntos espirituales
pueden tener un impacto significativo en la salud (Quiceno y Vinaccia,
2009). 2. Conocerse a sí mismo independientemente de que el médico
tenga o no una fe, es importante ser sensible a esta realidad ya que temas
de valor son complejos de abordar y los médicos son figura relevante en
la vida de sus pacientes, pero es necesario mantener los límites claros
de sus creencias respecto a las del paciente, evitando el proselitismo el
cual no es adecuado de ninguna manera y para que el paciente no se
sienta coaccionado. 3. Conocer los propios límites y los recursos locales,
los médicos pueden proponer pero no implicarse ni brindar los recur-
sos religiosos, aunque no se puede desconocer que los pacientes están
en luchas espirituales y que el sufrimiento es parte en las vidas de las
personas que padecen enfermedades crónicas, y solo una rápida y corta
evaluación por el médico tratante puede ayudar a discriminar quienes
son más aptos para beneficiarse de una mayor conversación con el clero
(quienes deben también estar incluidos en el equipo de atención médica
para este tipo de asuntos y quienes están preparados) y el reconocer
los recursos de la comunidad religiosa del paciente sirve como apoyo
social, instrumental e informacional y psico-emocional para paliar el
estrés, es solo motivar pero no implicarse ni proponer. 4. Compromiso
de apoyo a los pacientes en las prácticas espirituales, es solo preguntar
a los pacientes sobre las prácticas espirituales que son relevantes para
ellos y analizar qué tan viables son para su salud y el afrontamiento al
dolor y al sufrimiento prolongado, ya que esto posibilita la conexión con
lo verdaderamente importante para el paciente y su recuperación.
Las implicaciones clínicas deberían incluir la comunicación res-
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 95

petuosa con los pacientes acerca de la espiritualidad y el dolor, la inclu-


sión de la espiritualidad en los programas educativos y de apoyo, la inte-
gración de las preferencias espirituales en el manejo del dolor -cuando
sea posible y apropiado-, la consulta con los equipos de atención pasto-
ral, y la reflexión de las enfermeras sobre la espiritualidad en sus pro-
pias vidas (Unruh, 2007). Según Wachholtz y Pearce (2009) es necesario
saber las formas como se utiliza la fe para afrontar el dolor e incluso el
sufrimiento para la identificación de planes de acción y relevancia hacia
el tratamiento, no es lo mismo un afrontamiento centrado en un poder
más alto y uno negativo que mina la salud física y mental, y proponen el
apoyo de los profesionales especializados en psicología de la religión y la
espiritualidad para el manejo en temas de dolor y sufrimiento, además
de esto sugieren que haya un posicionamiento y empoderamiento en
esta área por los quipos de salud.
No se requiere ser un experto en temas de religión pero si lo mí-
nimo es reconocer y valorar las creencias de los demás en el plano te-
rapéutico ya que no es lo mismo estar frente a una persona devota al
hinduismo que es la tercera más grande comunidad religiosa en el mun-
do que frente a un cristiano y un devoto al Islam. Para el Hinduismo la
devoción, la acción ética, el conocimiento, concentración mental son
vías para lograr los objetivos de vida, los conceptos de aceptación de
dolor y sufrimiento son relevantes, enfatizan en vivir con integridad,
haciendo el bien (no dañar), sin apegos, y avanzar aún más en un cami-
no espiritual viviendo de acuerdo a las directrices/patrones para vivir la
vida -dharma-, conceptos similares a el budismo -pero que son difícil
de comprender en culturas occidentales, donde el desprendimiento y el
desapego no está tan interiorizados-; si un devoto al hinduismo sufre
por una condición médica, las preguntas ¿porque a mí? ¿no es justo?
tendrían otra connotación, el sufrimiento seria visto como algo natural,
justificable para resolver una deuda de una acción negativa pasada -el
karma-y llegar al Moksha -la liberación completa del ciclo de renaci-
mientos- para el hinduismo es obligado sentir dolor físico por el hecho
de estar en este cuerpo, pero el dolor no afecta el alma/yo y por tanto no
96 Japcy Margarita Quiceno

hay necesidad de angustiarse por el sufrimiento, que es temporal, los pa-


cientes visualizan el dolor como condición temporal que no afectaría su
cuerpo, el dolor y el sufrimiento no son visto como un mal, sino como
una experiencia que viene de Dios/el ultimo, si se ve el sufrimiento como
negativo es estrechar la mirada a una cosa, pero el sufrimiento visto de
manera positiva es una forma de crecer espiritualmente y para aprender
algo, la oración a un Dios por apoyo a los problemas es la creencia para
ser aliviado del sufrimiento, pero como en todas las religiones los nive-
les de afrontamiento religioso pueden variar en el tiempo por condicio-
nes de enfermedad como la severidad del dolor, los recursos con que se
cuente; un medio para abordar el dolor y el sufrimiento es a través de las
estrategias de aceptación que ayuda al desprendimiento, que consiste en
sentir las emociones y sensaciones del cuerpo plenamente y sin evadir
los pensamientos intrusivos (Whitman, 2007).
De otro lado la terapia de aceptación y compromiso (ACT) ha
sido utilizada en varios trastornos e incluso ha sido exitosa en compa-
ración a otras técnicas de afrontamiento para el manejo y adaptación en
el dolor crónico porque redirecciona la energía y ayuda a las personas a
prestar atención en una vida más positiva a pesar del sufrimiento (Hayes
& Batten, 1999). La aceptación por parte del paciente y del profesional
en salud puede ser vista como pasivo o un afrontamiento evitativo de
depresión y resignación, pero si se trabaja desde una mirada positiva los
resultados pueden ser promisorios. Al respecto en estudios como el de
McCracken (1999) con una muestra de 160 adultos con dolor crónico
se encontró que una mayor aceptación al dolor se asoció más bajos ni-
veles de dolor, de ansiedad, evitación, depresión y discapacidad física y
psicosocial y una mejor estado para el trabajo. Los análisis de regresión
mostraron que la aceptación del dolor predijo un mejor ajuste en todas
las demás medidas de la función del paciente, independientemente de
la intensidad del dolor percibido. De otro lado, en una muestra de 270
pacientes oncológicos en tratamiento de su salud mental (equipo de en-
lace de psiquiatría), se encontró que quienes tenían menos trastornos a
nivel de la salud mental, mejor adherencia al tratamiento y estrategias
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 97

de afrontamiento estaban en la fase de “aceptación” del duelo en compa-


ración con las personas que estaban pasando por la fase de ira/agresión
(Grube, 2006). Estudios similares en pacientes con cáncer han encon-
trado que ha mayor aceptación menores niveles de emociones negativas
y de sufrimiento (moderado a severo) (Thompson et al., 2009).
Por otro lado el abordaje del sufrimiento en pacientes con en-
fermedades crónicas debe también considerarse con cuidado y dete-
nimiento, ya que el sufrimiento tiene una cualidad subjetiva, única, lo
que lleva a la dificultad en su medición, y muchas veces los pacientes
no saben incluso que sufren. De otro lado, los equipos de CP pueden
abordar el sufrimiento adoptando el modelo de jerarquía de necesida-
des de Abraham H. Maslow (psicólogo Americano fundador de la psi-
cología humanista) donde cada miembro del equipo asuma un rol en el
alivio del dolor y el sufrimiento (Wachholtz & Makowski, 2012), es decir
“zapatero a sus zapatos”. Max Harvey Chochinov un psiquiatra en CP
contemporáneo se centra en sus estudios en el modelo del médico judío
Viktor Emil Frankl (fundador de la logoterapia) y propone trabajar en
la exploración de la “búsqueda de significado” en los pacientes a través
de la narrativa para trascender el dolor y el sufrimiento.

Conclusiones

Desde hace 130 años varios estudiosos se han preocupado por las
relaciones entre religión y mortalidad (Lucchetti, Lucchetti & Koenig,
2011), sin embargo la mayoría de las investigaciones en el área de R/E
son de origen norteamericano o europeo (judeo-cristiana) y son mino-
ritarios los estudios en otros grupos que tiene gran relevancia R/E como
son las provenientes de cultural asiáticas e incluso latinoamericanas
(Krikorian et al., 2011). Sin embargo, es de resaltar las investigaciones
desarrolladas en México por los médicos Armando Rivera-Ledesma,
María Montero-López Lena y José de Jesús Almanza Muñoz, y en Bra-
sil por Alexander Moreira-Almeida y Giancarlo Lucchetti y sus grupos
de investigación, entre otros. A nivel del sufrimiento es de resaltar los
98 Japcy Margarita Quiceno

trabajos desarrollados por Max Harvey Chochinov, un psiquiatra de CP


del Canadá y Amy B. Wachholtz una psicóloga americana.
En algunos estudios y grupos culturales no se aprecia una dife-
rencia entre religión y espiritualidad mientras que en otros si hay tal
distinción. La religión es un medio para llegar a la espiritualidad en los
pacientes, es por tanto que el efecto positivo de la religión está sobre el
bienestar espiritual y no en si en la actividad religiosa, lo que lleva a que
la espiritualidad sea una variable mediadora que promueve la adapta-
ción en momentos límites de la vida (Nelson, Rosenfeld, Breitbart &
Galietta, 2002).
Los estudios no son concluyentes en las relaciones dolor versus
estrategias de afrontamiento E/R. Posiblemente hay factores que me-
dian o se solapan en esta relación cuando son medidos, como las emo-
ciones positivas, el bienestar psicológico, la resiliencia, la aceptación, la
esperanza, apoyo social, entre otras, la felicidad, que promueven una
mejor percepción de calidad de vida y sentido de vida. De otro lado
están los diferentes tipos de mediciones que tienen conceptos diversos.
Los estudios sobre dolor especialmente se centran en medir sus
niveles (intensidad, frecuencia y duración) y han sido desarrollados con
escalas tipo EVA (Escala analógica visual). Mientras un factor impor-
tante en la relación con el dolor es la capacidad de tolerarlo el cual no
ha sido suficientemente estudiado. A pesar que las prácticas R/E positi-
vas impactan más la tolerancia al dolor agudo y crónico (Wachholtz &
Pargament, 2008) que la sensibilidad (Wachholz & Pargament, 2005).
Lo que sugiere estudios longitudinales donde se analicen los niveles de
tolerancia en el tiempo tanto del dolor agudo como crónico y su relaci-
ón con el afrontamiento R/E positivo negativo para tener una medida
de screening hacia el camino del sufrimiento, al respecto se cuenta con
un estudio como el de Rippentrop et al. (2005). Esto me lleva a proponer
la siguiente ecuación para responder al planteamiento anterior TD=+N-
t
D… donde TD significa tolerancia al dolor que es igual a la suma (+)
de los niveles (N) en el tiempo (t) del dolor (D), cuando los niveles en el
tiempo no disminuyen son un marcador de riesgo hacia al sufrimiento.
Afrontamiento religioso espiritual: una estrategia de afrontamiento ante el dolor y el sufrimiento 99

Se hace necesario estudios transculturales para comparar las es-


trategias de afrontamiento E/R según diferentes credos y culturas, con-
siderando cohortes de edad y de tiempo de religiosidad y espiritualidad
tanto en población sana o con alguna patología, especialmente crónica
sea física o mental. Lo anterior con el fin de poder encontrar patrones
comunes en las estrategias de afrontamiento E/R positivas o negativas
en todos los credos que apunten al desarrollo de programas de inter-
vención que se puedan generalizar en contextos clínicos y hospitalarios.
Lucchetti et al. (2011) realizaron un análisis de 28 meta análisis (25 en
salud y 3 con R/E) publicados entre los años 1994 al 2009 y encontraron
que la R/E eran tan importantes en la reducción de la mortalidad y para
la salud de las personas tanto como una dieta rica en frutas y verduras
y/o un estilo de vida saludable.
De otro lado se hace necesario estudios que evalúen las estrategias
de afrontamiento R/E en los pacientes a medida que progresa la enfer-
medad (oncológica) dentro de las diferentes fases del duelo como la ne-
gación y aislamiento, la ira, la negociación, la depresión, y la aceptación
(Kubler-Ross, 2009) para saber que etapa puede estar más afectada o
no con la experiencia de dolor y paliar posteriormente el sufrimiento, y
para ajustar los procesos de intervención.
Por otro lado, la literatura plantea que el afrontamiento espiritual
como la oración, la contemplación, el yoga, qi gong, el tai chi, el bu-
dismo zen, la meditación trascendental, la relajación, la visualización,
escuchar música y hacer contacto con la naturaleza, entre otras técni-
cas, tienen un impacto positivo en la salud (Quiceno & Vinaccia, 2009).
Como se aprecia en la literatura se ha venido desarrollando programas
de intervención en el área pero poco se ha trabajado con otros construc-
tos o variables positivas que serían caminos para promover la religión y
la espiritualidad, como lo sería trabajos centrados en resiliencia, que ha
sido una de las variables que han tenido a nivel de investigación asocia-
ción con la religión y la espiritualidad. La resiliencia es una variable que
de igual manera ha tenido un impacto positivo en las mejoras de dolor y
sufrimiento y sería una variable importante para trabajar la tolerancia al
100 Japcy Margarita Quiceno

dolor y para amortiguar el sufrimiento futuro. Tanto la resiliencia como


la espiritualidad promueven el sentido de vida, véase estudio de Qui-
ceno, Vinaccia y Remor (2011). La psicología positiva sería un recurso
para potenciar factores salutogénicos y las fortalezas personales como la
espiritualidad en pacientes que viven con una enfermedad.
En momentos límites de la vida y cuando se percibe amenaza a la
integridad personal las estrategias R/E (existenciales) cobran relevancia
y serían las más efectivas para el abordaje clínico, de otro lado, es impor-
tante considerar la vasta literatura sobre las relaciones afrontamiento
E/R y sufrimiento, en la literatura científica se menciona con facilidad
en los títulos de algunos artículos sufrimiento y dolor como si no fueren
antagónicos, cuando se revisan estos, se encuentra que el sufrimiento es
sinónimo de dolor, lo que hace difícil la comparación y discusión de los
resultados entre estudios. De otro lado expertos en el área concuerdan
que los médicos especialmente presenta dificultades para diferenciar el
dolor del sufrimiento (Wachholtz & Makowski, 2012).
Por último se hace necesario más estudios con población adoles-
cente y joven sobre afrontamiento R/E y su relación con dolor y sufri-
miento. Los estudios son vastos, demostrando el valor de la religión y la
espiritualidad para la mejora de la salud mental en esta población, espe-
cialmente de los síntomas de depresión, para los procesos de adaptación
positiva y aumento de la capacidad de resiliencia.

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Religião e Saúde: o medo como elemento


constituinte das representações da doença

Clóvis Ecco
Carolina Teles Lemos

Introdução

A relação entre religião e saúde é muito estreita desde os primórdios


da civilização. A religião tem se constituído como um elemento
integrante da forma como as pessoas percebem, experienciam e repre-
sentam a doença e a saúde. As formas de sentir e de expressar a dor são
regidas por códigos culturais e a própria dor, como fato humano, consti-
tui-se a partir dos significados conferidos pela coletividade, que sancio-
na as formas de manifestação dos sentimentos. Em pesquisas anteriores
(LEMOS, 2002, 505-6) percebemos que independentemente da forma
que tomam as diferentes expressões religiosas e os rituais de cura pre-
sentes no campo religioso brasileiro, todos relacionam a doença como
algo indesejado por Deus e fora de seus planos, portanto, coisa muito
mais próxima dos atos realizados pelos espíritos do mal ou de acordo
com a vontade deles. Nesses casos, a doença se apresenta como fator
de desordem, de caos assustador, de algo que necessita ser retirado da
realidade da existência humana para que esta volte a se tornar compre-
ensível. Em resumo, as doenças são o resultado de fatores biopsíquico-
social-espiritual que denotam ruptura com o ser e a natureza, o ser e o
emocional e com o ser e a razão, em síntese com o ser e a sua totalidade,
gerando, dessa forma, as feridas simbólicas representadas pelos trans-
tornos de ordem física, emocional, psíquico ou espiritual.
O que teria levado as pessoas a experienciarem a doença dessa
forma? Que processos socioculturais ocorreram, que acabou por repre-
sentar-se a doença tão negativamente?
114 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

Entende-se que houve, sim, uma longa construção de represen-


tações negativas em relação à experiência da doença e da morte. Tal
construção recebeu grande impulso na Idade Média, na Europa, devido
à necessidade de encontrar repostas e sentidos à experiência de grandes
epidemias, como a peste, que assolava a região. Veremos, a seguir, mais
detalhadamente como ocorreu tal construção.

1. O medo enquanto elemento constituinte do preconceito presente


na construção da concepção da doença

O ser humano se entende como nascido para a vida. Para ele tudo
o que conduz na direção de vida abundante, saudável, faz sentido, pois
se insere nessa visão de mundo. Sendo assim, o que não faz sentido é a
doença, pois levaria o sujeito em direção contrária a seu objetivo de per-
manecer vivo, o colocaria diante da possibilidade do desconhecido. Para
Berlinguer (1988, p. 38), a representação negativa da doença iniciou-
se em relação às doenças contagiosas e aos doentes que a portavam.
Isto porque a doença, enquanto sofrimento na vida das pessoas, tende
a causar, naturalmente, perda do poder físico e da dignidade humana.
O autor (p. 51) alerta que, mesmo na atualidade, enquanto as diversi-
dades (doenças contagiosas) são vistas pela sociedade como anormali-
dade, desvio ou mesmo inferioridade pela grande maioria da popula-
ção, a sociedade ainda está reforçando socialmente o aspecto negativo
da doença. O fato de se apontar a doença como negativa, como perigo
para a humanidade, tem incentivado a segregação dos doentes desde a
Antiguidade como se fazia com os leprosos e a peste negra, e como se
vem fazendo na atualidade com os portadores de doenças como o HIV/
AIDS, por exemplo. Para se entender tal forma de comportamento, um
dos pontos de partida é entendermos o medo e a relação deste com a
concepção de doença e morte.
Para Elias (1993a, pp.456-459; 1993b, pp.199-202; 1997 p.73),
medo pode significar pavor, terror, mas também pode significar angús-
tia em relação ao desconhecido, ao que está por vir. A intensidade do
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 115

medo está, portanto, relacionada com o nível de conhecimento do ho-


mem sobre aquilo que lhe causa o medo, indo desde o medo imediato
das ações de outros homens, medo de sofrer violência física imediata,
pavor, terror, passando a um tipo de angústia em relação ao desconheci-
do. Essa relação torna-se mais visível quando o homem depara-se com
os perigos advindos da natureza não humana.
Em perspectiva semelhante à de Elias, Delumeau (1989, p. 25)
afirma que a psiquiatria separou, no plano individual, o medo e a an-
gústia, “outrora confundidos pela psicologia clássica”. Medo e angústia
são “dois polos em torno dos quais gravitam palavras e fatos psíquicos
ao mesmo tempo semelhantes e diferentes”. O temor, o espanto, o pa-
vor ou o terror devem ser considerados como medo; já os sentimentos
de inquietação, de ansiedade e de melancolia devem ser considerados
como angústia. A diferença está em que o medo possui “um objeto de-
terminado ao qual se pode fazer frente”, pois se refere a algo conhecido.
Já a angústia não possui, nem conhece esse objeto, sendo “vivida como
uma espera dolorosa diante de um perigo tanto mais temível quanto
menos claramente identificado: é um sentimento global de insegurança”
(DELUMEAU, 1989, p. 25).
Pelo que se pode apreender da leitura dos autores acima, a his-
tória do ser humano é uma história de embates e diálogos permanentes
com o medo (DELUMEAU, 1989, p. 12), pois a necessidade de seguran-
ça é fundamental e está na base da afetividade e da moral humana; a “in-
segurança é símbolo de morte e a segurança é símbolo da vida” (p. 19).
É, portanto, um erro não levar a análise da angústia até o enraizamento
na necessidade de conservação ameaçada pela previsão da morte. O ser
humano é o único ser que sabe que morrerá e é também o único ser no
mundo a conhecer o medo num grau tão temível e duradouro (p. 19).
Com esta afirmação, Delumeau (1989) faz uma estreita relação entre
o medo, essa “emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa,
provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente
que ameaça, cremos nós, nossa conservação” (p. 23) e a certeza da morte
como aspectos correlatos da condição humana. Sendo assim, a história
116 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

de enfrentamentos e de diálogos com o medo se constitui também em


uma história de enfrentamentos e de diálogos com a morte. Nesse mes-
mo sentido afirma também Bauman:

(...) a maior descoberta feita pela espécie humana, descober-


ta que a tornou tão especial e sua paz de espírito, sua sensa-
ção de segurança, tão difícil de alcançar, foi a da fatalidade
da morte, universal, inevitável e intratável, a aguardar todos
os indivíduos. O ser humano é a única criatura que sabe que
vai morrer e que não há como escapar da morte (BAUMAN,
2000, p. 39).

A experiência real da morte é individual e solitária. O ser huma-


no é o único que pode antever a morte e filosofar sobre ela. É o único
que tem consciência da morte e, por isso, segundo Edgar Morin (1997),
teme a morte por medo da desintegração de sua individualidade. Nessa
individualidade encontramos os nossos desejos, a afirmação do nosso
eu, quem somos, o que queremos, o que fizemos, quem amamos, tudo
aquilo que acreditamos que nos pertence e, portanto, constrói e legitima
a nossa existência. Vivemos em conflito entre a constatação que somos
seres mortais e o desejo da imortalidade. Este conflito, segundo Morin,
gera uma tensão que resulta em angústia: “a ideia da morte surge a par-
tir de uma emoção, de um sentimento, de uma consciência da perda da
individualidade” (MORIN, 1997, p. 33).
Entendemos que cada cultura possui uma forma particular de li-
dar com a perda. Essa forma particular abrange um conjunto de méto-
dos, mais ou menos padronizados que, no entanto, envolve um conjunto
de crenças, ritos e expectativas. A morte é a única experiência social que
nenhuma pessoa pode delegar e transferir a outrem. Nem a ciência e o
cientista conseguem prever com exatidão. É por este motivo que a expe-
riência da morte exige significados religiosos. Como a religião sintetiza
a vida e dá sentido à história do povo, ela vem tentando responder a essa
necessidade humana e social. Quais respostas têm sido dadas por ela?
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 117

As tradições religiosas ao longo do tempo incutiram nas diferen-


tes culturas, de alguma forma, crenças e valores sobre a morte, a con-
siderar que os mortos devem ser colocados em lugares determinados
de acordo com o comportamento em vida. Especificamente, a tradição
cristã propaga que aqueles que foram bons durante a vida irão para um
lugar eterno, e os que se comportaram de uma forma má, aqui na terra,
descem para as profundezas e permanecem pagando pelos seus peca-
dos.
Nesse sentido, Chauí (1987, pp. 36-9), em ensaio sobre o medo,
após elencar os diferentes significados conferidos ao mesmo, afirma que
todos os tipos de medo convergem, em todos os tempos, para o prin-
cipal deles, o medo da morte e “de todos os males que possam simbo-
lizá-la, antecipá-la, recordá-la aos mortais”, e de todos “os entes reais
e imaginários que sabemos ou cremos dotados de poder de vida e de
extermínio”, tais como, a “cólera de Deus”, a “manha do Diabo”, a “cruel-
dade do tirano”, a peste, a fome, o fogo, as guerras (p. 36).
Se a morte se apresenta aos seres humanos como o perigo matriz,
do qual surgem todos os medos e angústias, como se relaciona com esse
medo as concepções de doença e saúde?
No caso de pesquisa empírica realizada por nós durante o pro-
cesso de construção de nossa tese de doutoramento em Ciências da Re-
ligião (ECCO, 2015), para a qual entrevistamos pessoas soropositivas
para o HIV, medo e angústia foram as frases mais mencionadas duran-
te as entrevistas com os participantes da pesquisa. O diagnóstico que
confirma a soropositividade, sem dúvida, coloca o sujeito na porta da
morte, causando muito conflito, angústia, medo, culpa e revolta, além
de ameaçar o próprio futuro. A angústia pela possibilidade da morte é
um fator dificultador e gerador de sofrimento. Todos os participantes da
pesquisa falaram que no princípio da doença não tem como não visuali-
zar a morte. Para Beloqui (1992), quem experimenta a sensação da mor-
te em um futuro mais próximo pode gerar muita dor, medo e angústia,
mas, ao mesmo tempo, pode trazer o sujeito mais para o presente.
Seguindo esta perspectiva, Bauman (2000, p. 39) entende o ser
118 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

humano como a única criatura viva que sabe de sua transitoriedade, ele
tem que imaginar a eternidade, “uma existência perpétua que, ao con-
trário da sua, não tem começo nem fim”, mas que entre ela e a existência
real há uma frágil conexão, contingente e quebradiça “sempre vulne-
rável, a ponto de se romper a qualquer momento”. Continua o referido
autor afirmando que “sejam quais forem os laços e pontes seguros e per-
manentes entre as duas existências, têm ainda que ser descobertos ou
construídos, vigiados continuamente e regularmente servidos” (BAU-
MAN, 2000, p. 39).
A partir do pensamento de Bauman, pensa-se que é nesse pro-
cesso de enfrentamento e de tentativa de criação e de manutenção de
laços de conexão entre a existência real e a eternidade imaginária que se
insere grande parte do pensamento cristão-católico sobre a doença e a
morte. Afirma o referido autor:

(...) a sua forma bruta, o medo existencial que nos torna an-
siosos e preocupados é incontrolável, intratável e, portanto
incapacitante. A única maneira de suprimir essa verdade hor-
ripilante é dividir o grande medo esmagador em pedacinhos
menores e controláveis – reformular a grande questão (so-
bre a qual nada podemos fazer) num conjunto de pequenas
tarefas ‘práticas’ que podemos esperar realizar. Nada acalma
mais o ser pavoroso que não conseguimos erradicar do que se
preocupar e ‘fazer algo’ a respeito do problema que podemos
enfrentar (BAUMAN, 2000, pp.51-52).

De certa maneira, a afirmação de Bauman se aproxima ao que


afirmara Delumeau (1989, p. 32), que o Ocidente, na idade média, en-
controu um inimigo comum, que sintetizava todos os medos: o combate
à peste, que assolava a Europa naquele período. Para Duby (1990), o
combate à peste se constrói nos entremeios das concepções de carne
(corpo) e espírito (alma).
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 119

(...) é preciso acentuar que as atitudes em relação ao corpo


eram governadas pela concepção dualista sobre a qual se
construía toda representação do mundo. Ninguém colocava
em dúvida que a pessoa fosse formada de um corpo e de uma
alma, que fosse partilhada entre a carne e o espírito. De um
lado, o perecível, o putrescível, o efêmero, o que deve voltar
a ser pó, que, no entanto, é chamado a reconstituir-se para
ressuscitar no último dia; do outro, o imortal. De um lado
o que é atraído para baixo pelos pesos, pelas opacidades das
substâncias carnais; do outro, o que aspira à perfeição celeste.
O corpo, portanto, é considerado perigoso: é o lugar das ten-
tações; dele, de suas partes inferiores, surgem naturalmente
as pulsões incontroláveis; nele se manifesta o que depende do
mal, concretamente, pela corrupção, pela doença, pelas puru-
lências às quais nenhum corpo escapa; sobre ele se aplicam os
castigos purificadores que expulsam o pecado, a falta (DUBY,
1990, p. 515).

Nesse sentido, afirmam Corbin, Vigarello e Courtine (CORBIN
et. al., 2008, p. 11), o corpo foi o resultado de uma das várias tensões
vividas na idade média, porque a “dinâmica da sociedade e da civiliza-
ção medievais resultava de tensões”. E uma das principais tensões no
período “é aquela entre o corpo e a alma”. De um lado, o corpo é fruto
da benção e da glorificação, principalmente religiosa (quando se trata
do corpo de Cristo) e, de outro, é “desprezado, condenado, humilhado”.
Ou seja, “o corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado por
essa tensão, esse vaivém, essa oscilação entre a repressão e a exaltação, a
humilhação e a veneração” (p. 13).
Delumeau (1989, pp.32-33) já havia evidenciado perspectiva se-
melhante. Afirma o autor que, uma vez tendo identificado Satã como
o personagem síntese de todos os males que geravam medos fragmen-
tados, derivados do medo matriz (o medo da morte), o discurso ecle-
siástico “reduzido ao essencial foi, com efeito, este: os lobos, o mar e as
120 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

estrelas, as pestes, as penúrias e as guerras são menos temíveis do que


o demônio e o pecado, e a morte do corpo menos do que a da alma” (p.
32). Dessa forma os responsáveis pelos medos foram apontados pela in-
quisição em dois espaços: de um lado, os bodes expiatórios conhecidos
(heréticos, feiticeiras, turcos, judeus); de outro, cada um dos cristãos
que não tomasse cuidado e se tornasse agente de Satã, “daí a necessidade
de certo medo de si mesmo” (p. 32).
Como ter medo de si era, afinal, ter medo de Satã, tal medo pode-
ria ser enfrentado, pois Satã é menos forte que Deus. É nesse contexto
que o conceito cristão de doença foi sendo construído. Em tal contexto,
a doença se constitui como um forte estigma.
A construção do conceito de estigma inicia-se com o trabalho do
sociólogo e antropólogo Erving Goffman, na década de 60. Para Gof-
fman (1981), a palavra estigma está relacionada ao conceito de marca,
sinal distintivo ou impressão. De acordo com a história, o termo estig-
ma foi criado pelos gregos “para se referirem a sinais corporais com os
quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mal
sobre o status moral de quem a apresentava” (GOFFMAN, 1981, p. 5).
A pessoa estigmatizada era aquela marcada, ritualmente poluída, que
devia ser evitada, especialmente em lugares públicos.
Para Delumeau (1989), a primeira reação das pessoas numa rea-
lidade social inexplicável, era o de acusar outrem. A prática de “nomear
culpados era reconduzir o inexplicável a um processo compreensível”
(DELUMEAU, 1989, p. 140). Porém, precisava-se por em ação o remé-
dio para impedir os semeadores de morte de continuar sua obra nefasta.
Era preciso identificar os causadores.

Se a epidemia era uma punição, era preciso procurar bodes


expiatórios que seriam acusados inconscientemente dos pe-
cados da coletividade. Por muito tempo, as civilizações anti-
gas procuraram apaziguar por meio de sacrifícios humanos a
divindade encolerizada (DELUMEAU, 1989, p. 40).
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 121

Afirma o autor (DELUMEAU, 1989), que leprosos foram efetiva-


mente acusados, em 1348-1350, de terem espalhado a peste negra. “O
aspecto horrível de suas lesões passava por ser uma punição do céu” (p.
40). Dessa forma, os culpados potenciais, sobre os quais pode voltar-se
a agressividade coletiva e o estigma, eram em primeiro lugar os estran-
geiros, os viajantes, os marginais e todos aqueles que não estavam bem
integrados a uma comunidade, seja porque não queriam aceitar suas
crenças, ou por serem portadores de doenças infecciosas.
Para Delumeau (1989), por mais chocada que estivesse uma po-
pulação atingida pela peste, procurava-se explicar o ataque de que era
vítima. Para o cristianismo o desafio era encontrar as causas de um mal
e recriar um quadro tranquilizador para a população. Sobre essas causas

a primeira atribuía a epidemia a uma corrupção do ar (...).


A segunda era uma acusação: semeadores de contágio espa-
lhavam voluntariamente a doença; era preciso procurá-los e
puni-los. A terceira assegurava que Deus, irritado com os pe-
cados de uma população inteira, decidira vingar-se. Portan-
to, convinha apaziguá-lo fazendo penitência (DELUMEAU,
1989, p. 138).

No segundo século depois de Cristo, a Europa foi assombrada por


pragas e epidemias contagiosas. Para Ceccarelli (2000), foi exatamente
neste ameaçador ambiente de desespero, terror e morte que o cristianis-
mo oferecia uma esperança nova em relação às outras crenças presentes
na Roma Antiga. O cristianismo oferecia a promessa de ressurreição
após a morte como recompensa eterna para aqueles que de uma forma
sincera se arrependessem de seus pecados. E Delumeau afirma: “Deus,
irritado com os pecados de uma população inteira, decidira vingar-se.
Portanto, convinha apaziguá-lo fazendo penitência” (DELUMEAU,
1989, p. 138). As promessas de vida eterna que o cristianismo prometia
aos convertidos eram vistas, à época, como sinais da intervenção divi-
na que tinham o poder de curar doenças e de desafiar a própria morte
122 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

(CECCARELLI, 2000). Destaca o autor que, na bíblia, o evangelista São


Lucas cita vinte milagres de Jesus e apenas três não são de cura de doen-
ças: o apaziguamento da tormenta (Lc 22,24); a pesca milagrosa (Lc 5,6)
e a multiplicação dos pães (Lc 9,12-17). As outras onze citações tratam
de milagres e de cura de doenças e invalidez. Quatro citações tratam da
expulsão de demônios e outras duas citações são de mortos que retor-
nam à vida. Lê-se: “Convocando os Doze, deu-lhes poder e autoridade
sobre todos os demônios, bem como para curar doenças, e enviou-os a
proclamar o Reino de Deus e a curar” (Lc 9,1).
Nesta perspectiva de análise, afirma Ceccarelli (2000) que o cres-
cimento da igreja católica foi estimulado pela sua missão especificamen-
te médica em um contexto de pragas sucessivas, doenças, sofrimento e
morte de pessoas. Nesse sentido, destaca o autor que formou-se assim
aquilo que se pode chamar do “culto de Cristo o Curador”, pois Cristo
pode ser considerado um dos maiores e mais bem sucedidos fundado-
res de um novo sistema de medicina. Afirma ainda Ceccarelli (2000)
que a partir desta perspectiva do “Cristo o Curador” é possível afirmar
que as pequenas comunidades cristãs transformaram-se. Na metade do
terceiro século, em 313 d.C, no período da oficialização do cristianismo
por Constantino o Grande, a prática da medicina passou para as mãos
da igreja católica.

No império bizantino, médicos e sacerdotes confundiam-se


e os cristãos continuaram a tradição judaica de cuidados ca-
ritativos de pobres e doentes, sob forma de enfermagem. As
primeiras igrejas e os primeiros hospitais seguiam o mesmo
plano arquitetônico: um altar central desembocando em duas
ou quatro longas naves, ou áreas, das quais saíam pequenas
capelas, cada uma dedicada a um santo. Nos hospitais, o tra-
tamento estava nas mãos dos padres, assistidos por voluntá-
rias que se transformariam, mais tarde, nas irmãs de caridade.
As doenças eram combatidas pela evocação de agentes sobre-
naturais (CECCARELLI, 2000, p. 23).
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 123

Ainda para Ceccarelli (2000), o resultado desta concepção da


doença era sem dúvida uma prática de normatização e assimilação da
doença como um castigo que resultava do pecado ou de uma falta na
pureza moral da vida cristã. A cura, se Deus assim o quisesse, segundo
Ceccarelli (2000), só poderia ocorrer por intervenção divina. Tal cura,
porém, não vinha apenas de Deus, mas também pela invocação dos pe-
nitentes e a intercessão dos santos do catolicismo.
Essas concepções da estruturação nas práticas sociais e culturais
da doença como um castigo resultante do pecado, entendem-se como
um processo de socialização e internalização de valores, crenças e nor-
mas que foi sendo introjetada e integrada na cultura humana, tendo
como fator determinado uma prática preconceituosa nas relações so-
ciais e humanas.
Como nos lembra Goffman (1981), fazemos vários tipos de pre-
conceitos e discriminações contra pessoas, por meio dos estigmas que
acabam detonando reações e comportamentos de evitação e repulsa, e
até mesmo reações violentas, “muitas vezes sem pensar, reduzimos as
chances de vida de quem sofre” (p. 8). Nota-se que tal questão é fruto
de um processo social e histórico das relações sociais que se utiliza para
analisar as pessoas consideradas menos valorizadas, criando assim, ró-
tulos que estigmatizam, discriminam e excluem.
Tal fenômeno foi por nós percebido em nossa investigação supra
mencionada (ECCO, 2015), na qual pudemos constatar que as pesso-
as entram em um auto juízo negativo e uma incerteza quanto ao juízo
negativo alheio, em função dessas representações, advindas do precon-
ceito. Vivenciam emoções singulares permeadas de sofrimento dentro
de um contexto repleto de significados, entre os quais: o medo do aban-
dono, de revelar sua identidade social e o julgamento moral, a culpa
pelo adoecimento, a impotência, a fuga, a clandestinidade, originados e
construídos pelo real convívio com o social, que reforça os hábitos e as
expectativas profundamente enraizados numa sociedade preconceituo-
sa, construída e analisada pela moral e, sobretudo, a moral sexual.
124 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

O medo e a ignorância na compreensão da doença, devido à in-


trojeção cultural do preconceito reduzem, de fato, as chances de vida
de quem mais sofre. A análise acima dos entrevistados SPP/HIV/AIDS
nos permitiu observar que o estigma está presente na experiência de
ser soropositivo. O estigma se expressa no controle da informação por
meio do segredo e dos artifícios utilizados para omitir a veracidade da
soropositividade para a sociedade, sendo esta a forma para evitar so-
frimento pela descoberta do HIV/AIDS. O medo de ser descoberto e o
cumprimento da rotina de tratamento foram relatados como fontes de
muito sofrimento.

2. Convivendo com o medo: o caso das pessoas soropositivas para o


HIV

Diante do diagnóstico e da confirmação da epidemia da AIDS,


percebe-se que, para os participantes da pesquisa supramencionada
(ECCO, 2015), não se trata apenas da descoberta de uma doença. As
histórias narradas por esses participantes levam a inferir que para eles,
iniciou-se uma tríplice batalha: destruição dos vínculos sociais e afeti-
vos, exclusão e solidão e o próprio vínculo com a morte.
Depois do tríplice turbilhão sofrido pelo impacto do diagnósti-
co positivo para o HIV/AIDS, vem a necessidade da reestruturação de
suas vidas. Porém, um grande desafio se apresenta: manter em segredo e
sem assumir a condição de soropositivo, pois enfrenta-la significaria ter
várias perdas, inclusive da identidade construída durante toda a vida.
Assim afirma a participante:

A gente fica constantemente com medo de ser rejeitada pelas


pessoas e até por familiares. Eu evito até tocar numa criança
porque eu não sei qual será a reação das pessoas. Eu tenho
uma neta que me ama muito; é tudo o que eu tenho. Levo-a
comigo só quando vou num lugar e tenho certeza que lá não
vai se falar da doença. Ela não sabe e temo a reação dela comi-
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 125

go. Tenho medo de ser rejeitada e desacreditada por ela (CSS/


SP/f/52 anos).

A soropositividade passa a fazer parte de todos os momentos do


cotidiano da pessoa diagnóstica SPP/HIV/AIDS, provocando alterações
em sua rotina e em seu comportamento. Para Goffman (1981), a pessoa
para se sentir bem e segura em relação à sociedade precisa desempenhar
um papel de interação que tenha coerência e reciprocidade com o meio.
A interação é o processo de influência recíproca dos indivíduos sobre as
ações uns dos outros. Quando há uma discrepância entre a identidade
social real de um indivíduo e sua identidade virtual1 é possível que as pes-
soas, sujeitos do preconceito, tenham conhecimento da pessoa estigmati-
zada antes de entrar em contato com ela ou, então, que essa discrepância
do virtual se torne evidente no momento em que o sujeito do preconceito
seja apresentado para a sociedade (GOFFMAN, 1981, p. 38).
Uma das possibilidades fundamentais na vida das pessoas estig-
matizadas, segundo Goffman (1981, p. 38), é a colaboração que presta
àqueles que não sofrem de nenhum preconceito, denominados pelo re-
ferido autor como de “normais”. Estes atuam na sociedade como se a
marca diferencial manifestada (estigma) não tivesse importância nem
merecesse atenção especial. No caso de nossa investigação (ECCO,
2015), alguém diagnosticado soropositivo não tem nenhum suporte so-
cial em relação aos demais. A pessoa diagnosticada, além de enfrentar
todo o preconceito e a discriminação social, não consegue se manter no
emprego e nem zelar pelos compromissos assumidos porque na maioria
das vezes a sua identidade virtual já é do conhecimento do outro. Assim
como afirma um dos participantes da pesquisa: ‘se você estiver numa
entrevista de emprego e souber que você é portador da síndrome HIV,
a entrevista termina aí mesmo e a sua ficha some’ (TSS/sp/m/34 anos).
1 Designa por identidade social virtual o indivíduo estigmatizado cuja identidade social real inclui
alguns empecilhos como: deformações físicas, (deficiências motoras, auditivas, visuais, desfigurações
do rosto) os desvios de carácter (distúrbios mentais, vícios, toxicodependências, doenças associadas
ao comportamento sexual, reclusão prisional), e estigmas tribais (relacionados com a pertença a uma
raça, nação ou religião), que frustra as expectativas de normalidade da pessoa (GOFFMAN, 1981, p.
37).
126 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

Autores como Ferreira e Figueiredo (2006) entendem que a AIDS


pode ser um pretexto para discriminação no mercado de trabalho.
Além disso, no âmbito do trabalho, a AIDS não é entendida ainda como
uma doença igual a outras, sobre as quais as empresas e instituições têm
responsabilidades, enquanto segmentos da sociedade civil. Tal compre-
ensão ainda não está presente, tanto no relacionamento do funcionário
epidemiológico quanto das ausências causadas pela doença. Foi exata-
mente o que mais ocorreu com os participantes da referida pesquisa: o
afastamento definitivo do emprego devido à doença. Apenas uma parti-
cipante se conservou no mercado de trabalho por atuar na esfera públi-
ca. A maioria dos participantes alegou que tentou retornar ao mercado
de trabalho após a normalização da epidemia, porém, sem sucesso.
Assim o entrevistado relatou o seu dia-a-dia:

Há consequências terríveis para o organismo de alguém que


contraiu a soropositividade. O dia-a-dia é determinado pela
doença. Se você falar que é soropositivo você perde o empre-
go e se não falar você começa a faltar muito ao trabalho. A
sociedade não vê isso e muito menos dá atenção. A sociedade
exige de você como se você nada tivesse. Não é fácil a adap-
tação do organismo aos medicamentos. Muitos começam a
tomar os medicamentos e desistem por não conhecerem as
complicações dos medicamentos até o organismo assimilar.
Essas informações são imprescindíveis para o SSP/HIV/AIDS
e também para a sociedade. O corpo é deformado; o corpo é
modificado totalmente. Você levanta de manhã com qualquer
mal-estar e, ao invés de ir normalmente ao trabalho, você pre-
cisa tomar o ônibus e ir ao hospital. Você falta ao trabalho e
logo é demitido. Você não leva mais dinheiro para casa e a
família cobra isto de você. Os medicamentos acabam com o
corpo, o pobre não tem meio e nem dinheiro para cuidar do
corpo, ir à academia, estética e outros, torna-se diferente e
desacreditado pela sociedade (JRS/sp/m/48 anos).
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 127

Entretanto, quando a diferença não está imediatamente aparente


no físico da pessoa e não se tem dela um conhecimento prévio ou, pelo
menos, ela não sabe que os outros a conhecem, ela é, na verdade, ain-
da, uma pessoa desacreditável2 e não desacreditada. É nesse momento
que aparece a segunda possibilidade fundamental em sua vida. Ou seja,
suportar a tensão cotidiana gerada pela necessidade social de ter que
omitir ou manipular cotidianamente o seu drama pessoal da doença.

A questão que se coloca não é a da manipulação da tensão


gerada durante os contatos sociais e, sim, da manipulação de
informação sobre o seu defeito. Exibi-lo ou ocultá-lo; contá
-lo ou não contá-lo; revelá-lo ou escondê-lo; mentir ou não
mentir; e, em cada caso, para quem, como, quando e onde
(GOFFMAN, 1981, p. 38).

Omitir ou manipular cotidianamente a sua história pessoal (so-


ropositividade), gera no dia-a-dia muita angústia e sofrimento. ‘Você se
envolve afetivamente com alguém e ele corresponde e logo você se sente
acolhida e amada. É aí que se inicia o meu drama pessoal e cotidiano.
Revelar ou não revelar para a outra pessoa’ (NMC/sp/f/40 anos). Na
busca afetiva, há sempre dois trágicos caminhos: você conta e ele some
ou você silencia e vai levando o namoro e corre o risco, inclusive jurídi-
co, de ser punida no rigor da lei por omitir uma informação que coloca
o outro em perigo de contaminação do vírus HIV/AIDS.
Esse mesmo drama pessoal acontece quando você busca um novo
emprego. Se você fala, ‘logo a conversa muda e a entrevista logo termi-
na. Se você não fala, você logo é demitida porque a doença vai fazer com
que você falte muito ao trabalho’ (NMC/sp/f/40 anos).
Assim relata a informante sobre o preconceito/medo presente na
sociedade:

2 Uma pessoa desacreditável é quando a diferença não está imediatamente aparente na pessoa e não
se tem dela um conhecimento prévio do seu estigma (GOFFMAN, 1981, p. 38).
128 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

Em relação ao preconceito que há nas pessoas, se percebe


constantemente quando se busca emprego, ou quando você
se amarra em alguém afetivamente. Percebe-se quando você
conhece alguém interessante para namorar. Eu digo que sou
soropositivo, ele some, não quer mais saber. Eu tinha um ra-
paz que eu sei que gostava demais da minha pessoa, daí contei
para ele, foi a mesma coisa do que jogar água no fogo. É muito
difícil para a mulher (NMC/sp/f/40 anos).

A pesquisa de campo constatou que algumas situações de pessoas


com estigmas que foram originados do seu comportamento ou que têm
a possibilidade de modificá-los, a partir de suas próprias ações, podem
receber um tratamento mais severo por parte de quem as discrimina.
Observa-se que pessoas soropositivas podem ser avaliadas pelas
pessoas de sua convivência como mais ou menos responsáveis pela sua
situação. Há graus de descrédito social a partir do histórico social do in-
divíduo diagnosticado SPP/HIV/AIDS. Por exemplo: aos trabalhadores
do sexo, usuários de drogas injetáveis, pessoas consideradas “promíscu-
as”, homossexuais e outros grupos já estigmatizados antes da infecção
sofrem maior ameaça de discriminação do que aqueles que se infectam
a partir de transfusões de sangue ou pela transmissão vertical.

O soropositivo para o HIV/AIDS é muito rejeitado pela so-


ciedade devido o preconceito pela maneira da gente ser, ser
homossexual. Você já carrega a culpa de ser um dos respon-
sáveis por espalhar a doença. A televisão é extremamente pre-
conceituosa quando fala do HIV/AIDS. Há propagandas só
em momentos oportunos - carnaval. A mídia não explica e
nem esclarece a complexidade da doença e, ainda, relaciona a
doença aos grupos de risco (JRS/sp/m/48 anos).

Retomando a teoria de Goffman (1981) sobre o estigma e precon-


Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 129

ceito e remetendo-o à análise dos depoimentos dos SPP/HIV/AIDS, se-


gundo o entrevistado, já há uma predisposição preconceituosa instalada
na própria orientação para a prevenção da AIDS/HIV, relacionando-a
a uma prática social de imoralidade e de irresponsabilidade de quem
contrai o Vírus. Assim, pergunta-se o entrevistado, sobre o preconceito
contra pessoa SPP/HIV/AIDS.

Por que há tanto preconceito contra a pessoa soropositiva


para o HIV? Já que é uma doença mais controlada do que
muitas outras doenças. É uma doença qualquer, não sei por
que de tanta rejeição da sociedade. Vivemos constantemente
na insegurança e na incerteza. (VMS/sp/f/50 anos).

Goffman (1981) afirma que pessoas que vivem numa incerteza


constante sobre a receptividade em relação ao outro, sentem-se inabili-
tada em relação a tudo. O SPP/HIV/AIDS vive exatamente o drama de
não saber o que poderá ocorrer no contato seguinte com o outro, seja na
busca do emprego, no contato afetivo, no olhar do transeunte.

Para a pessoa inabilitada, a incerteza quanto ao status, soma-


da à insegurança em relação ao emprego, prevalece sobre uma
ampla gama de interações sociais. O cego, o doente, o surdo, o
aleijado nunca podem estar seguros sobre qual será a atitude
de um novo conhecido, se ele será receptivo ou não, até que se
estabeleça o contato. É exatamente essa a posição do adoles-
cente, do negro de pele clara, do imigrante de segunda gera-
ção, da pessoa em situação de mobilidade social e da mulher
que entrou numa ocupação predominantemente masculina
(GOFFMAN, 1981, p.15).

Para Neves e Lima (2011, p. 3), é a partir dessa complexidade de


insegurança que o indivíduo SPP/HIV/AIDS se vê frente ao contexto
que deverá enfrentar. Terá que reaprender a cuidar de si. Aprender a
130 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

administrar as reações aos medicamentos. Conviver com as relações so-


ciais de preconceitos.
Para Bury (1982), o SPP/HIV/AIDS precisa adquirir sobre a
vida pessoal e subjetiva um novo aprendizado de sociabilidade com
a sociedade que o autor citado designa como “ruptura biográfica”,
caracterizada em termos de uma fundamental reconsideração da
biografia da pessoa e de seu conceito de si. Ortega (2003) denomina
essa “ruptura biográfica” como um processo de biopolítica no qual o
“eu existe para cuidar do corpo, esta a seu serviço” (ORTEGA, 2003,
p. 69).

3. O reflexo da soropositividade para a HIV/AIDS em relação à so-


ciabilidade

De acordo com Neves e Lima (2001), para os indivíduos SPP/


HIV/AIDS o saber-se portador do vírus é tido como um choque em
suas vidas e um divisor de águas entre o antes e o depois deste conheci-
mento. Isto porque parece se estabelecer uma distinção entre o “eu” e a
corporeidade “doente”.
Todos os entrevistados disseram que a vida nunca mais foi a mes-
ma depois de saberem-se portadores do Vírus HIV/AIDS. Para eles há o
antes e o depois da comprovação da soropositividade.

A vida nunca mais foi a mesma. Foi um choque, nem conhe-


cia HIV, quanto tempo de vida, os riscos. Depois que fomos
entender o que era. Não sabíamos que era morte (médicos).
Você se cuidando vive muitos e muitos anos (JRdeS/sp/m/37
anos).

Compreender, aceitar e nascer novamente. Antigamente era


morte. Hoje é uma pessoa que precisa ter um excesso de cui-
dados (MS/sn/m/19 anos).
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 131

Preconceito, medo, morte, tristeza. – no meu caso – melhor


maneira de viver (S/sp/f/19 anos).

Existe soropositivo em outras doenças? Sim! Então é esperan-


ça, vida, Deus, tratamento, cura (JP/sn/f/62 anos).

Soropositivo, eu venho estudando desde os doze anos. Para


muitos é o fim da vida, é a morte. Quando eu soube da soro-
positividade, morreu o fulano antigo e nasceu um novo fula-
no. Vou procurar me cuidar mais (GS/sp/m/34 anos).

A partir das respostas dos entrevistados, constata-se que


houve em todos eles uma compreensão que a vida não seria mais
do mesmo jeito. Designa-se, portanto, uma ruptura biográfica
que faz emergir em si uma consciência dos limites de seu corpo e
dos limites que passam a ser impostos pela sociedade (NEVES e
LIMA, 2011, p. 4). A condição para viver é aprender a cuidar de
si, ou seja, incorporar a doença na biografia da cotidianidade da
vida. Neste contexto, a incorporação biográfica não tem se dado
sem sofrimento.
Para Herzlich (2005), a doença em seu corpo provoca em sua vida
transformações que vão desde a autoimagem, sentimentos de vergonha
até à dificuldade de integrar-se nos espaços sociais, incluindo as desor-
ganizações e rupturas das rotinas cotidianas.

O estudo minucioso da vida cotidiana com uma doença crô-


nica demonstra na maior parte das vezes uma desestabilização
irreversível: a ruptura das rotinas cotidianas, a necessidade de
reavaliar os comportamentos habituais, os “conhecimentos da
experiência” em que está assente a existência pessoal de cada
um, notadamente da vida em família e no trabalho. (HER-
ZLICH, 2005, p. 200).
132 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

Para Neves e Lima (2011), este afastamento está relacionado ao


processo reflexivo que a doença provoca e da emergência de sentimen-
tos de vergonha, medo e alteração na percepção de si mesmo. Portanto,
todo o caráter negativo e moralizante da doença recai sobre o indivíduo,
responsabilizando-o.
Assim relata um dos informantes da pesquisa:

As pessoas ficariam loucas se soubessem que são portadores


do HIV/AIDS; você não sabe com quem partilhar quando re-
cebe a notícia do médico. Você fica sem chão. Você não sabe
em quem confiar. Você se pergunta o que fazer. Os medica-
mentos são terríveis até acertar a dose exata. Você precisa co-
meçar a vida novamente. Por isso que eu venho aqui nesta
ONG. É muito confortável socializar a doença, por isso, eu
fico quietinho e cuido para não transmitir o vírus para nin-
guém. É mais fácil conviver e partilhar a vida o dia-a-dia com
quem tem a doença porque vivem a mesma situação (JRS/
sp/m/48 anos).

Ainda para Neves e Lima (2011), em contrapartida, temos a di-


mensão do segredo como “obstáculo”, a princípio, devido ao impacto
do sorodiagnóstico para que os indivíduos despontem o interesse
por socializar-se. Mas por outro lado, alguns informantes afirmaram
que durante a vida foram encontrando pessoas que se parecem com
eles e assim foram se adaptando, criando um novo círculo de ami-
zades. A experiência desses sujeitos aproxima-se das afirmações de
Goffman:

Sem considerar o modelo geral ilustrado pela carreira mo-


ral do indivíduo estigmatizado, é interessante considerar-se a
fase de experiência durante a qual ele aprende que é portador
de um estigma, porque é provável que nesse momento ele es-
tabeleça uma nova relação com os outros estigmatizados. Em
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 133

alguns casos, o único contato que o indivíduo terá com os


seus iguais é muito rápido, mas suficiente para mostrar-lhe
que existem outras pessoas iguais a ele (GOFFMAN, 1981,
p. 33-4).

De acordo com Goffman (1981), isto ocorre porque uma pessoa


que possui algum tipo de estigma oculto ou em segredo tende a se afas-
tar do convívio, principalmente das pessoas próximas, por medo de que
estas descubram o seu estigma. Aqui acrescentamos situações de inse-
gurança gerada pelo medo de ser identificado como portador do Vírus/
HIV, dificultando o envolvimento nos espaços de sociabilidade por não
ser os seus iguais. O HIV/AIDS é uma doença extremamente estigma-
tizada por seu caráter estar atrelado a algum tipo de conduta desviante,
de modo que há responsabilização imediata ao indivíduo acometido.
Por esta razão é que surge a importância da utilização do segredo como
estratégia no convívio com o HIV/AIDS.
Neste sentido, percebemos que, dentre as principais queixas que
os informantes da pesquisa elencaram, estava a questão do preconceito:
‘Eu tenho uma neta de quatorze anos que é muito próxima, agora, ela só
me acompanha quando eu sei que naquele lugar não vai se falar sobre
SPP/HIV/AIDS. Ela jamais poderá saber sobre a minha soropositivida-
de’ (VMS/sp/f/50 anos).
Este é sempre tomado como um dos pontos mais críticos aos
que estão sujeitos cotidianamente a conviver com o HIV/AIDS. O pre-
conceito tornou-se, antes do próprio desencadeamento da doença, “o
inimigo mais cruel dos acometidos pelo vírus HIV/AIDS. Isto porque,
com o desenvolvimento dos medicamentos antivirais, os indivíduos não
temem impreterivelmente a morte física, mas antes a morte social” (NE-
VES E LIMA, 2011, p. 6).
Na pesquisa de campo, todos os vinte e cinco entrevistados mos-
traram exatamente a preocupação com a morte social. Deus/religião e a
família foram as palavras mais ouvidas durante as entrevistas. Só depois
vem a preocupação com o tratamento médico. A opção pelo tratamen-
134 Clóvis Ecco, Carolina Teles Lemos

to depende primeiramente em encontrar uma resposta sobrenatural. A


família e as instituições de apoio são suportes para que a pessoa tenha
força para romper com a biografia anterior.

4. Considerações Gerais

Ao longo desta análise, pudemos perceber que as doenças


que se manifestam no corpo, assim como as terapêuticas destina-
das a combatê-las, nunca são meramente individuais, elas também
levam a marca do social, ou seja, cada grupo social faz determina-
dos recortes através dos quais constrói suas representações tanto
da doença como da cura. A doença é uma linha contínua, que tem
a saúde e a doença em cada um de seus extremos. Esta última não
se desenvolve somente no interior da pessoa, mas sim entre ela e o
ambiente. Há uma relação da doença com o social, sendo que por
um lado está a concepção de enfermidade como alteração orgâni-
ca e, de outro, a de doença, significando a resposta subjetiva do
paciente, o significado que o indivíduo confere a esta. Essas duas
denominações ou níveis, embora diferentes, na prática sempre se
apresentam superpostas.
Nas trilhas de Delumeau (1989), inferimos que diante de toda e
qualquer epidemia há sempre um movimento acusatório de maior ou
menor intensidade, variando de acordo com a gravidade. A responsabi-
lidade e a culpa recaem, invariavelmente, sobre as minorias, os diferen-
tes, pobres, fracos e marginalizados, os epidemiológicos, os incapazes
de oferecer resistência ou de se defender. Tais sentimentos são compre-
ensíveis, uma vez que a doença foi constantemente associada à morte e
ao pecado, à punição. É exatamente essa angústia de culpabilidade sobre
si que os informantes de nossa investigação afirmam carregar na sua
trajetória.
A herança dessa mentalidade, que entende a doença como
uma vingança ou castigo divino pelas falhas da humanidade, ain-
da é percebida pelos sujeitos referidos nesta análise. Assim, dian-
Religião e Saúde: o medo como elemento constituinte das representações da doença 135

te da experiência do desconhecido (soropositivo para o HIV), se


produziu representações apoiadas na ideia de doença contagiosa,
incurável e mortal, recrudescendo o conceito de peste, cujo sig-
nificado, na Idade Média, representava uma ameaça extrema à
sociedade, atrelada a atitudes de evitamento daquele que a por-
tava. Tal atitude carregou consigo, de maneira assustadora, e que
se mantém até hoje, os espectros construídos no imaginário so-
cial que, como fios, tecem uma trama de representações e valores
simbólicos sobre o HIV. Uma das consequências da manutenção
dessas representações de doença na consideração do HIV foi a
retirada de tal doença do campo das doenças comuns, transmu-
tando-a para o campo das doenças malignas, onde o SPP/HIV/
AIDS é responsabilizado pela doença. Verifica-se, também, que as
pessoas que convivem com portadores da síndrome, embora uns
sejam estigmatizadas de forma diferenciada e menos intensa que
outros, no entanto, todos levam nas suas experiências vividas um
grande sentimento de tristeza, sofrimento e discriminação. O so-
frimento dos familiares ou pessoas próximas ao paciente também
é motivo de sofrimento para ele.
Ao terminarmos nossa análise, destacamos o imenso desafio que
ainda está posto à nossa cultura atual, aos profissionais da saúde e às
agências religiosas para que todos juntos, façamos um grande mutirão
na construção de novos significados, menos punitivos e mais integrado-
res, às experiências da doença e da morte.

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139

Crença e cura: a fabulação do corpo de padre


Pelágio Sauter

Eduardo Gusmão de Quadros

Toda a matéria é espirito


Fernando Pessoa

É possível pensar a partir do corpo? E um pensamento do próprio


corpo? Em nossa tradição intelectual, e nos referimos especifica-
mente à científica, o ato de pensar não é considerado algo além da na-
tureza somática? Até o termo somatização é comumente utilizado para
indicar uma doença que o pensamento causa no corpo, como se não
fosse algo pertinente à corporeidade...
O problema se complica ainda mais se nosso interesse primor-
dial estiver na relação entre corpo e religião. Afinal, este fenômeno en-
contrado nas sociedades humanas trata do mundo dos deuses, seres
ou forças, a princípio, incorpóreos. Pode tratar, igualmente, do que os
profissionais que pesquisam nos quadros epistemológicos das Ciências
das Religiões gostam de chamar de transcendente. Deste conceito os
professores de Ensino Religioso ainda extraem todo um conteúdo para
as séries do ensino básico e do ensino médio. Mas algo que realmente
transcende ao corpo pode existir? É uma invenção cultural? Uma cria-
ção da sociedade? Ou seria uma produção típica de intelectuais que se
dedicam a estudar o tema? Esse texto investiga a possibilidade de se re-
fletir a partir da imanência das manifestações religiosas, no movimento
concreto do sagrado.
Existe um conflito entre imanência e transcendência traçado
pelos caminhos do pensamento ocidental, ao menos, nos últimos qui-
nhentos anos. Essa é a tese defendida por Michel Hardt e Antonio Negri
140 Eduardo Gusmão de Quadros

quando estudam a formação da modernidade. A “descoberta” do pla-


no imanente, durante as transformações do século XV e XVI, criaria,
conforme os autores, a possibilidade da crítica transformadora típica da
sociedade moderna (2001, p.89).
Desde então, a historia dos movimentos político-sociais se trans-
forma em uma disputa, em um jogo conflitivo, entre a transcendência e
a imanência. A primeira, para os autores estaria sempre ligada ao refor-
ço da autoridade e do status quo; a segunda serviria de base às rupturas
e transformações efetivas ocorridas na historia. A imanência funciona
como um poder instituinte que reforçaria a vida de maneira geral:

Essa modernidade destrói suas relações com o passado e de-


clara a imanência do novo paradigma do mundo e da vida.
Desenvolve conhecimento e ação como experiência cientifica e
define uma tendência à politica democrática, colocando a hu-
manidade e desejo no centro da historia (HARDT E NEGRI,
2001, p.92).

Portanto, o lugar material de reflexão, luta e ação afirmaria a ciên-


cia e a crítica, mais tarde a democracia e, por fim, a utopia que encoraja
o enfrentamento dos problemas vitais. O nível transcendente seria o in-
verso, reforçando os poderes instituídos:

Este é o segundo modo da modernidade, construído para


combater as novas forças e estabelecer um poder para domi-
ná-las. Ele surgiu com a revolução da Renascença para alte-
rar sua direção, transplantar a nova imagem da humanidade
para um plano transcendente, relativizar as capacidades da
ciência para transformar o mundo e, acima de tudo, opor-se
à reapropriação do poder pela multidão (HARDT E NEGRI,
2001, p.92).

Nessa visão, a grosso modo, a religiosidade estaria a serviço dos


Crença e cura: a fabulação do corpo de padre Pelágio Sauter 141

poderes dominantes ao postular um além, algo fora do corpo e eterno.


Mas podemos questionar essa análise ao ressaltar que tal visão de re-
ligiosidade também é abstrata, produzida por intelectuais. Nos meios
populares, se a crença religiosa fosse tão transcendente, de nada serviria
e não contagiaria tanta gente, estando presente em tantas manifestações
coletivas.
Portanto, ressaltamos neste texto que o sagrado deve ser algo útil,
como escreveu Dupront (1987, p.61), inclusive para ser sagrado. Ele
pode, sim, caminhar por rumos transcendentais, algo necessário para o
corpo sofrido, dolorido, destruído pelo cansaço diário. O transcenden-
te, nesta perspectiva, cumpre o papel simbólico de uma rede na qual a
materialidade somática encontra repouso e recobra suas forças. É isto
que veremos através dos ritos e crenças relacionados ao corpo de um
morto considerado santo.

O corpo que cura

Minha história começa do fim. O padre alemão Pelágio Sauter


faleceu em 21 de novembro de 1961 na Santa Casa da Misericórdia em
Goiânia. Nos três últimos anos de sua vida, com o corpo já sem tantas
forças devido sua idade avançada, o velho missionário havia se dedicado
a receber pessoas e ministrar sua benção. Um gesto simples, da liturgia
romana, mas que gerava grandes efeitos.
O ato de abençoar, como se sabe, é um ato regular litúrgico, nor-
matizado pelo direito canônico. Sua função é invocar a proteção divi-
na sobre pessoas, lugares e objetos, consagrando-os. Os leigos podem
abençoar também pelas normas institucionais católicas, mas existe uma
hierarquia nas bênçãos, mais ou menos correspondente à hierarquia
eclesiástica. É costume que somente os bispos, por exemplo, possam
abençoar e consagrar os santos óleos da crisma.
Padre Pelágio realizava essa prática católica normal e corriqueira,
mas ela ganhou outro significado pela população. Este surge da função
de qualquer sacerdote ao ser um intermediário, um mediador, entre a
142 Eduardo Gusmão de Quadros

vontade humana e a divina, ou vice-versa. Neste caso, ainda, note-se a


importância desta prática entre os saberes tradicionais populares, mani-
festa nos atos de benzedura (QUINTANA, 1999). O ministério de ben-
zer, assumido por Pelágio, reforçou culturalmente função que exercia
de intermediário entre o catolicismo oficial e a religião que costumamos
chamamos de popular.
Isso, claro, já ocorria no maior centro regional de romaria e devo-
ção que localiza-se na cidade de Trindade. A Congregação do Santíssi-
mo Redentor, à qual Pelágio pertencia, veio da Alemanha com a inten-
ção primordial de catolicizar a festa do Divino Pai Eterno, que ocorre
até hoje anualmente no inicio do mês de julho. Isso significa que os pa-
dres chegaram para disciplinar os festejos, enquadrá-los na doutrina e
na prática devocional considerada correta pela instituição. O sacerdote
cumpriu bem este ofício, com seu carisma pessoal e suas habilidades no
trato com o povo simples. Mas o ato sacramental de abençoar a quem o
procurava, aproxima-o ainda mais de uma cosmovisão comum àquela
população sertaneja.
Ocorreu um movimento de intercessão entre a função institu-
cional do clero e o mundo devocional, se levarmos em consideração
o sistema de crenças que o permeia. Dá-se destaque aqui às questões
ligadas à saúde, à doença e aos processos de cura. O senso comum di-
verge da medicina científica em muitos aspectos, não apenas integrando
a dimensão espiritual no processo terapêutico, bem como valorizando
intensivamente bem mais a dimensão subjetiva, solidária e a linguagem
simbólica possibilitadora da comunicação entre os sujeitos, sejam eles
divinos ou humanos. Consideramos que Padre Pelágio levava muito a
sério esse aspecto de intermediário dos poderes sagrados pelo cuidado
que tinha com os elementos sacerdotais para ministrar sua benção. Ele
se vestia com a estola e o roquete, utilizando os elementos litúrgicos
água benta e do óleo1.
Apesar de se tratar de um ato oficial, com todas as credenciais

1 Cf. Crônicas da Comunidade Redentorista de Campinas (1955-1959). VI Vol. São Paulo: Aparecida,
1984, p.190.
Crença e cura: a fabulação do corpo de padre Pelágio Sauter 143

institucionais, normalmente o ato de benzer não acarreta muitas exi-


gências. Ela é distribuída até coletivamente, como ocorre na aspersão de
água benta em grandes concentrações2. É provável, pelos testemunhos,
que nosso personagem não administrasse sua benção a todos, pois cos-
tumava conversar com as pessoas que o buscavam e impunha suas mãos
individualmente, mas seu recebimento não implica para os fiéis tantos
aspectos éticos e doutrinários se compararmos com os sacramentos. Po-
de-se afirmar que, em termos sociológicos, este ritual é mais próximo
dos aspectos mágicos do que dos religiosos propriamente ditos.
Claro que a ruptura entre magia e religião, invocada acima, é pro-
fundamente etnocêntrica, bem como ilusória. Os teóricos clássicos dos
estudos da religião reforçaram-na para, de modo indireto, fortalecer as
crenças e rituais sustentados por grupos institucionais legitimados so-
cialmente. Pode-se perceber, portanto, que muitas vezes a igreja e a aca-
demia estão permeadas de afinidades intelectuais. Contudo, para nós,
invertendo peremptoriamente a afirmação de Durkheim (2003, p.29),
só existe igreja mágica. O corolário desta afirmação é que sem crenças e
rituais mágicos, boa parte dos fiéis não estaria participando efetivamen-
te das celebrações religiosas.
Mesmo Marcel Mauss, em seu esboço de uma “teoria geral da
magia”, desconsidera as práticas efetivadas pelos sacerdotes gestos com
poderes mágicos. Essa não seria “uma atitude normal de sua função”,
escreveu (2007, p.60). Decorre sua definição de magia como um “rito
que não faz parte de um culto organizado” (2007, p.61). Já o sacerdote
que abordamos, dedicou-se a ritos eficazes, cotidianamente, nos últimos
anos de sua vida.
Assim, podemos deduzir que a religião estaria para o espiritu-
al, assim como a magia estaria para o somático nas teorias tradicionais
acerca da relação entre crença e cura. E nessa competição “clássica” de
manifestações, há uma oposição destes níveis. Então, a ênfase no corpo-
ral enquanto centro semântico da vida leva a inverter tal hierarquia aca-

2 É comum que os sacerdotes utilizem grandes pinceis para aspergir água no povo enquanto pas-
sam.
144 Eduardo Gusmão de Quadros

dêmica. Isso é fundamental para compreender o que estamos tratando


aqui: um corpo morto que cura os corpos vivos.

A fábula do túmulo

No dia 22 de novembro, um grande número de pessoas acom-


panhou o sepultamento de padre Pelágio. Falou-se em cinquenta mil
pessoas visitando a Matriz de Campinas, onde fora velado. Cerca de
quinze mil acompanharam o cortejo fúnebre até o mausoléu da Ordem
Redentorista no Cemitério de Sant’Ana3. Tal multidão, obviamente, não
deixou de causar alguma confusão. O bispo auxiliar Dom Antônio de
Oliveira, por exemplo, teve muita dificuldade para conseguir oficiar o
ritual fúnebre devido aos “empurrões, o incontido vozerio, (que) não
oferecia o mínimo de silêncio necessário.”4. Espiritualidade, nesta pers-
pectiva, seria sinônimo de silenciamento dos corpos.
Um pouco antes da cerimônia havia acontecido um problema
grave com algumas pessoas do município de Trindade, no qual padre
Pelágio trabalhou por quase quatro décadas. Reunidos para lembrar a
atuação do importante missionário, consideraram ser injusto que o re-
dentorista fosse enterrado em Goiânia. Se dedicara muito mais à paró-
quia do Pai Eterno e às localidades da redondeza. Então, com a ajuda
até do prefeito, planejaram secretamente tomar o corpo e sepultá-lo lá
naquela imponente igreja. O plano foi descoberto e a polícia impediu
a ação. A corporação teve ainda de intervir quando pessoas tentavam
conseguir pedaços da batina do sacerdote redentorista, ou outras relí-
quias, durante o velório. O corpo de Pelágio teve de ficar sob forte pro-
teção até que o caixão fosse realmente encerrado5.
Depois do sepultamento, a procura por padre Pelágio ainda con-
tinuou. O caixão encerrado abriu uma nova forma de existência. Então,

3 Os dados estão, respectivamente, no Jornal Brasil Central de 26 de novembro de 1961, p.1 e no


Jornal O Popular, publicado em vinte e cinco de novembro de 1961, p.1.
4 Jornal Folha de Goiás, 25 de novembro de 1961, p.1.
5 A manchete do jornal Diário do Oeste em vinte e cinco de novembro de 1961, p.1, dá uma ideia
do ocorrido: “Fieis arrancaram relíquias à força”.
Crença e cura: a fabulação do corpo de padre Pelágio Sauter 145

seu túmulo, no cemitério de Santana, passou a ser um lugar de contínu-


as visitas por parte da população. Na prática, o povo goiano reproduzia,
sem saber, um costume secular na história da cristandade: o hábito de
reverenciar a memoria de santos onde estes estavam enterrados6. Os re-
latos de milagre não tardariam a surgir.
O diálogo com o padre redentorista não era mais face-a-face, mas
continuou a ser corpo-a-corpo. Dizemos isso para lembrar o carisma
de Pelágio, especialmente nos últimos anos de sua vida, em tratar dos
problemas de saúde. Sua habilidade, considerada sobrenatural pelos fi-
éis, continuou a operando normalmente após deixar o convívio terreno.
Isso foi reforçado pelo fato de uma água jorrar do túmulo com certa
periodicidade.
O cemitério, então, não fica concebido enquanto um lugar triste,
de solidão, impuro, como o representará a literatura romântica e a me-
dicinal do século XIX. Uma atitude mais antiga de concebê-los como
local sagrado para orações, para a intercessão pela alma dos falecidos
e um lugar para a obtenção de milagres e curas permaneceu viva no
mundo destes devotos. O cemitério é uma fronteira entre os mundos,
estabelecido entre o temporal e o eterno, reunindo corpos imóveis com
o movimento dos corpos vivos em prece.
O corpo também pode ser concebido como uma entidade-fron-
teira, um campo semântico de movimento intermitente. Partindo de
uma abordagem semiótica, Bártolo aponta tal dinamicidade dizendo
não haver “pensamento que não comece pelo corpo tal como não há
sentido que não comece pelo corpo, mas, igualmente, não há corpo que
não seja pensado tal como não há corpo que não seja sentido” (2007,
p.45). Se a religião opera com sentidos e significados para a vida, o so-
mático é a pura fonte dos mesmos.
6 Nas Confissões, Agostinho de Hipona descreve o costume que sua mãe, também
santa, tinha de levar “bolo, pão e vinho para as sepulturas dos santos” (1984,
p.132). Havia o risco desse gesto se assemelhar com os “ritos da superstição
pagã”, mas era uma prática cristã celebrar “nesses lugares a comunhão com
o Corpo do Senhor, pois foi imitando-lhes a paixão que os mártires foram
imolados e coroados” (id., p.133).
146 Eduardo Gusmão de Quadros

Entretanto, possuindo toda essa importância, os sentidos sa-


grados que habitam a corporeidade ainda são um campo de pesquisa
relativamente recente. William Lafleur notava, em um verbete crí-
tico, que o campo de pesquisa teria pouco mais de duas décadas de
existência, com material advindo principalmente da etnografia (LA-
FLEUR, 1998). Os estudos de gênero e, principalmente, o impacto
das obras de Foucault, atraíram o interesse de diversos pesquisado-
res e pesquisadoras para esta temática (cf.TURNER, 1997), mas, a
nosso ver, o impacto desta perspectiva é ainda pequeno nas Ciências
das Religiões como um todo (CANDIOTO e SOUZA, 2012). Nota-
mos ainda que os temas religiosos não figuram como um campo de
pesquisa específico da “sociologia do corpo” descrita por David Le
Breton (2007).
É um elemento material que demonstra a fluidez fronteiriça indi-
cada: a água tumular. As pessoas a recolhiam para passar nas partes do-
entes e outras enchiam garrafinhas para leva-la aos entes queridos. Esta
substância, considerada milagrosa, foi o elemento de continuidade com
os atos e palavras proferidos por Pelágio. Proporcionou uma forma de
comunicação com o poder divino, que oferecia, obviamente, a possibili-
dade de restauração. Esse é o elemento concreto da salvação, que reúne
holisticamente a natureza e o sobrenatural. Afinal, como escrevera Mir-
cea Eliade, o elemento aquático simboliza universalmente a “substância
mágica e medicinal por excelência: cura, rejuvenesce, dá vida eterna”
(ELIADE, 1970, p.227).
As crenças tem esse poder de criar, ou melhor, de des-construir,
inclusive os corpos. No caso, chocaram-se contra o corpo sacerdotal
para reformularem-no, para também liquidificá-lo e amoldá-lo às suas
demandas. Entre estes corpos, que se comunicavam de algum modo,
surge a força que Henri Bergson considerou ser fruto da “função fabu-
ladora”, uma manifestação direta do impulso vital e criador típico da
humanidade:
Crença e cura: a fabulação do corpo de padre Pelágio Sauter 147

Assim se explicaria a função fabuladora. Se ela desempenha


um papel social, deve servir também ao indivíduo, que a socie-
dade tem o mais das vezes interesse em controlar. Pode-se, pois,
presumir que, sob sua forma elementar e original, ela traz ao
próprio indivíduo um acréscimo de força (BERGSON, 1978,
p.99).

A questão básica do crer está em atingir essa força especial. Bus-


ca-se empoderamento no contato com o sagrado, não somente sentidos.
A crença modaliza as percepções, envolvendo o objeto de fé deste cará-
ter que, em texto anterior, denominamos de plusificação (QUADROS,
2013). Esse “a mais” – plus - traveste os objetos de crença, coisas e ideias,
transformando-os em veículos que levam, trazem e manifestam o espa-
ço plausível do desejo.
Os gestos e as palavras de Padre Pelágio foram assim revestidos.
Seu corpo morto tornou-se um lugar privilegiado para a transfiguração
dos tempos, como é comum nos casos de milagre. Pela memória, o po-
der, atenção e carinho, despendidos no passado a tantas pessoas, podia
ser ainda experimentado no presente pelos fiéis. Concretamente, seu
corpo foi transformado também em utopia, na qual serão transubstan-
ciados os sonhos de quem o buscava. O redentorista permaneceu, pas-
toralmente, atendendo as demandas da população, como fizera tantas
vezes em sua vida de missionário pelos sertões. Deste modo, a historia
de Pelágio era reconhecida, incorporada, já que criava um projeto de
futuro melhor para os sujeitos religiosos. O corpo inerte era santo por
movimentar esperanças.
Bom lembrar que isso não é uma grande novidade dentro do ca-
tolicismo. Não exatamente por causa do dogma da plena encarnação da
divindade, mas vemos relação com a centralidade do corpo de Cristo
na missa. Ali, de modo semelhante, há comunhão entre um corpo que
busca a plusificação com um corpo que empodera sacramentalmente,
mesmo sendo uma simples hóstia recebida ritualmente.
148 Eduardo Gusmão de Quadros

A fábrica do espírito

Com o passar dos anos, a devoção ao sacerdote não diminuiu.


Uma reportagem jornalística vinte anos depois da morte de Pelágio re-
gistrava o movimento diário das pessoas no jazigo onde estava enter-
rado. Ali também podiam ser encontradas muitas velas, algumas fotos,
cartas e objetos vários ligados à fé que despertava nas pessoas. Uma des-
tas cartas, que foi transcrita no periódico, trazia a seguinte prece:

Meu glorioso padre Pelágio, pelo nosso (sic) espírito que


achou graça diante de Deus, pelo dom que dele recebeste de
realizar milagres pela pureza de vossa alma, peço-vos que não
separeis de nós. Abençoe-nos a nossa casa, os nossos bens...7

Ali está o corpo sagrado a escutar as orações. Corpo fabula-
do, corpo fabuloso, falado e “feito” para interceder junto às
bênçãos divinais. A centralidade do milagre, da ação sobre-
natural, é afirmada pela comunhão entre as almas e pelo ca-
ráter puro, indene, do santo. Já o/a pedinte requisita um pou-
co deste caráter para si, para seu lar, para a vida material, só
completa se integrada a um projeto maior que transcenda sua
própria existência.

A consagração popular se consolidou, ressaltando este aspecto


terapêutico e taumatúrgico de padre Pelágio. Diante disso, em 2009, a
Congregação Redentorista optou por transladar o corpo do sacerdote
para a igreja matriz de Campinas. Foi encerrado em uma pequena urna,
com uma placa na parede demarcando o local, ao final da nave principal
do templo. Foi o inicio da incorporação da magia aos sacros poderes da
instituição.
Mais dois anos de intercessões e milagres para que a arquidiocese
de Goiânia assumisse a causa, abrindo o processo oficial de canoniza-
7
Jornal Diário da Manhã, 20 de dezembro de 1981. In GOIANIEN, 2005-II, p.637.
Crença e cura: a fabulação do corpo de padre Pelágio Sauter 149

ção em 2011. Com esta incorporação da memória hagiográfica, ocorreu


logo outra mudança: uma pequena capela foi construída em Trindade e
a transposição do corpo de Pelágio foi feita para junto do santuário do
Pai Eterno. No ano de 2014, outro acontecimento consolidava o percur-
so rumo ao controle institucional, quando a cúria romana proclamou
oficialmente Pelágio Sauter como um sacerdote venerável. Este, como
se sabe, é o primeiro passo para o reconhecimento oficial de um santo.
Então, suas virtudes somáticas serão também virtudes espirituais, repre-
sentando simbolicamente a fé, a esperança e o amor8 almejadas pelos
cristãos, segundo a doutrina católica.
A transcendentalização do corpo não é, necessariamente, seu
apagamento. Toda a matéria (também) é espirito, como ensinara o poe-
ta. Acreditamos que há, inclusive, um reforço em sua capacidade de in-
tervir na realidade com este ganho da dimensão transcendental. O cor-
po, afinal, fabrica o espírito para que o campo simbólico opere. Como
se, para falarmos como Guimaraes Rosa (1994), “a terceira margem do
rio” possa interligar os limites. O somático do santo somando, ou mais
ainda, multiplicando as possibilidades de existência íntegra e saudável.
Pois o nosso corpo é também fronteira, lugar de trânsito, e as margens
testemunham o movimento típico do instintivo sobreviver.

Considerações finais

No volume complementar de sua obra magna, Hardt e Negri re-


tratam com certo otimismo a questão corporal diante das forças da glo-
balização em vigor. Eles falam na “carne da multidão” como um fenô-
meno relativamente ambíguo:

Esse ser social comum é a poderosa matriz que constitui um


elemento central na produção e na reprodução da sociedade
contemporânea, tendo o potencial de criar uma nova sociedade

8 As virtudes cardeais são o eixo da construção do processo de canonização, atualmente em curso na


cúria romana, analisado por nós em trabalho anterior (QUADROS, 2011).
150 Eduardo Gusmão de Quadros

alternativa. Devemos encarar esse ser social comum como uma


nova carne, uma carne amorfa que por enquanto não constitui
um corpo. A questão importante a esta altura é saber que tipo
de corpo essas singularidades comuns formarão. Uma possibili-
dade é que sejam arregimentadas nos exércitos globais a serviço
do capital, subjugadas nas estratégias globais de inclusão servil
e marginalização violenta. [...] Uma outra possibilidade, con-
tudo, é que essas singularidades comuns se organizem autono-
mamente através de uma espécie de ‘poder da carne’, de acordo
com a longa tradição filosófica que remonta pelo menos até o
apóstolo Paulo de Tarso. O poder da carne é o poder de nos
transformarmos através da ação histórica e de criar um novo
mundo (2012, p.208-9).

A sensibilidade aqui apontada com as manifestações dos “pode-


res da carne” diante dos processos imperiais da globalização econômica
nos parece importante. Até porque, não se pode entender a criação da
cultura de consumo em vigor sem a consideração dos desejos somáticos
e dos mecanismos biopolíticos correlatos.
Entretanto, nos parece teologicamente equivocado a fixação com
o termo carne. Ainda que o cristianismo tenha como dogma fundamen-
tal a encarnação e o credo apostólico, ainda repetido nas celebrações
hodiernas, afirme a crença na ressurreição da carne, seria mais preciso
falar de corpo. A carne (sarx, em grego) da tradição paulina refere-se
mais à fraqueza, a discórdia, o egoísmo, a ira e as dissenções (Gal. 5:20).
O corpo (soma, em grego) é que tem sentido positivo nos textos de Pau-
lo, podendo ser empoderado pelo Espírito Santo, formar um novo cor-
po fraternal (de Cristo) e alcançar a libertação dos poderes imperiais
(Gal. 5:1).
No caso apresentado aqui, o diálogo ocorria entre corpos singu-
lares recriados a partir da fé. A instituição religiosa tenta, obviamente,
catalisar o poder mágico despertado, mas o movimento entorno de Pe-
lágio surgiu de maneira autônoma. Talvez nós, pesquisadores, mesmo
Crença e cura: a fabulação do corpo de padre Pelágio Sauter 151

tentando compreender essa poética polissêmica, fabulosa e fabuladora,


ainda tenhamos muitas dificuldades conceituais de captar tais lógicas.
Ou seriam as ilógicas do corpo, sempre presente, na busca pela integra-
lidade transcendental?

REFERENCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulinas, 1984.


BÁRTOLO, José. Corpo e sentido: estudos semióticos. Covilha: Livros Labcom, 2007.
BERGSON, Henri. As duas fontes da moral e da religião. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1978.
CANDIOTO, Cesar e SOUZA, Pedro de. Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte:
Autêntica, 2012
CORBIN, A; COURTINE, J; VIGARELLO, G. (Dir.). História do corpo. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2008.
Crônicas da Comunidade Redentorista de Campinas (1955-1959). VI Vol. São Pau-
lo: Aparecida, 1984.
DUPRONT, Alphonse. Du sacré. Paris: Gallimard, 1987.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
HARDT, Michel e NEGRI, Antonio. Império. 7 ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.
HARDT, Michel e NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2012.
LAFLEUR, William R. Body. In: Taylor, M. (ed.). Critical terms for religious studies.
Chicago: The University of Chicago Press, 1998, p.36-54.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Lisboa: Editorial Presença,
1970.
ROSA, João Guimarães. A terceira margem do rio. In: Ficção completa: volume II.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 409-413.
QUADROS, Eduardo G. A devoção como núcleo da religião. In: RAMOS NETO,
João O. Autoridade e poder: estudos interdisciplinares sobre a história do cristia-
nismo. São Paulo: Editora Reflexão, 2013.
152 Eduardo Gusmão de Quadros

QUADROS, Eduardo G. O fato Pelágio. In: MOURA, Carlos A. et ali. Religião,


cultura e política no Brasil: perspectivas históricas. Campinas, SP: Editoria da UNI-
CAMP, 2011, p.209-224.
QUINTANA, Alberto M. A ciência da benzedura. São Paulo: Editora do Sagrado
Coração, 1999.
TURNER, Bryan S. The body in western society: social theory and its perspectives. In:
COAKLEY, Sarah (ed.). Religion and the body. New York: Cambridge University
Press, 1997, p.15-41.
153

O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre


os Povos Indígenas

Sofia Beatriz Machado de Mendonça

G ostaria de começar esta conversa propondo uma reflexão sobre a


palavra “Religião”. Segundo vários autores, a palavra religião vem
do latim “religare”, re-ligar, apontando para uma nova ligação entre os
homens e o sagrado. Entre os Povos Indígenas, em sua maioria, penso
que este termo não se aplica, pois, esta ligação permanece... Ela não foi
rompida. O sagrado, a comunicação entre os seres vivos e encantados,
acontece o tempo todo. Manter a harmonia e o equilíbrio entre estes
planos, entre os seres vivos e o sagrado faz parte do cotidiano e da busca
do bem viver para os Povos Indígenas.
Quando conversamos com eles sobre o significado do conceito
de “saúde”, é sobre esta busca, do equilíbrio entre todos os seres que eles
falam.
É interessante observar que, em cada ação do cotidiano, esta rela-
ção com o sagrado se revela. Por exemplo, quando os homens vão der-
rubar suas roças, na época certa, pedem licença para os donos das árvo-
res para derrubá-las. Alguns povos cantam e rezam para pedir licença.
Outros devem fazer uma festa em homenagem àqueles espíritos. Isso é
importante porque os protege e previne de doenças e outros males.
Na época da plantação, são outros os cantos, a maioria dos povos
têm rezas próprias para os espíritos donos de determinados alimentos.
É preciso fazer essa reza para que a roça produza bastante.

Comunicação entre os seres vivos e os encantados

O tempo, os ventos, as nuvens, a seca, o fogo, a chuva, os raios e


154 Sofia Beatriz Machado de Mendonça

trovões, também tem explicações que se referem ao plano do sagrado


e das relações entre homens e os espíritos. São modos de comunicação
entre eles. Para esta comunicação acontecer é preciso conhecimento e
experiência para a leitura dos sinais. Existem sinais que são percebidos e
interpretados por todos, é de conhecimento comum. Por exemplo, para
alguns povos indígenas, os rodamoinhos de vento que se formam de
vez em quando no centro da aldeia, é sinal de perigo, principalmente
para as crianças. Nestes casos precisam recolher as crianças para dentro
das casas, pois os espíritos brincalhões podem pegá-las e fazer-lhes mal.
Quando acontece o eclipse da lua, é preciso jogar todo o alimento para
fora das casas, fazer muito barulho e jogar flechas para o céu, para evitar
que os mamaés ou espíritos desçam do outro plano para fazer-lhes mal.
Como se um portal fosse aberto entre diferentes dimensões da vida.
Outros sinais, mais sutis, são percebidos pelos sábios e especialistas. E
assim acontece em várias situações.
A comunicação entre os diferentes planos, lugares de viver, de
homens, almas e espíritos, acontece o tempo todo, durante todo o ci-
clo da vida, particularmente em seus momentos de passagem como na
gravidez, nascimento e adolescência. Estes momentos são considerados
de grande vulnerabilidade para o adoecimento e morte. São momentos
que demandam muitos cuidados para garantir a saúde. Durante os ritos
de passagem são usadas várias plantas, folhas e raízes, que podem ser
bebidas em raspas, caldos e infusões, ou usadas em emplastros, banhos
e vapores.
Existem muitas formas de comunicação entre os homens e os en-
cantados. Uma delas é pelo sonho, e esta é extremamente valorizada
pela maioria dos povos. Os sonhos são interpretados pelas pessoas que
sonham, sua família ou pelos pajés. Os sonhos muitas vezes dão pis-
tas sobre o que vai acontecer, sobre as causas de determinadas doenças,
mostram onde está a alma roubada, revelam plantas medicinais, encon-
tram guias espirituais... Os sonhos também são muito importantes du-
rante o tratamento de uma pessoa. Tanto a pessoa que adoece, como o
pajé, podem ter revelações ou soluções por meio da interpretação dos
O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre os Povos Indígenas 155

sonhos. Os pajés também usam o sonho para viajar entre os diferen-


tes planos, seguem viagem até a aldeia dos ancestrais, conhecem novas
plantas medicinais, ampliam sua visão do mundo, encontram os lugares
sagrados.
Outra forma muito comum de comunicação com o sagrado é
pela fumaça do tabaco. Vários povos utilizam o tabaco, seja na forma
de cigarro, charuto ou no cachimbo. Dependendo do povo estes instru-
mentos são muito elaborados como os petygua, cachimbo guarani, feito
em geral de nó de pinho de determinados pinheiros como a araucária,
ou feitos de argila. São usados geralmente por lideranças religiosas, ho-
mens e mulheres. Podem ser compartilhados dependendo do momento
ou do ritual. A descrição que faz Elizabeth Pissolato de uma pajelança
entre os guarani mbya descreve um pouco deste uso do tabaco e sua
fumaça para a cura1.

“Leva-se ao meio um pequeno banco no qual se senta quem


será, então, tratado: um adulto geralmente despido até a cintu-
ra ou uma criança... no colo de sua mãe. Aí opera-se a cura por
sucção com o uso do tabaco. O uso abundante do petygua pelo
especialista e seus auxiliares, além de propiciar a percepção do
xamã, que capta, então, o que Nhanderu lhe mostra ou conta
da doença, favorece a sua movimentação no interior do corpo
até a extração. Sopra-se a fumaça em grande quantidade para
depois retirar, com ele, o objeto-causa da doença.

O uso do tabaco permite a comunicação entre os homens, os sá-


bios e o mundo espiritual. A fumaça é o condutor entre os mundos.
Outras formas de comunicação com o sagrado acontecem com
o uso de outras substâncias psicoativas como o pó yãkõanahi. É um pó
feito com a resina ou fragmentos da casca interna da árvore Virola sp
secados e pulverizados. Dizem que abre o caminho para os espíritos,
para o ir e vir, onde os mundos se comunicam. Também está associado à
1 In A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani) Pg 378.
156 Sofia Beatriz Machado de Mendonça

prática xamânica, seja para tratar um indivíduo ou um coletivo. Duran-


te estes rituais, os especialistas ou iniciados agradecem seus criadores,
recebem orientações e conhecimenos sobre as doenças e o tratamento
de uma pessoa ou sobre o que está acontecendo com aquele povo e o
que deve ser feito.
Para Davi Kopenawa Yanomami:

“O pó do yãkõanahi é a comida dos espíritos. Quem não o


’bebe’ assim fica com olhos de fantasma e não vê nada.
Os xapiripë dançam juntos sobre grandes espelhos que descem
do céu. Nunca são cinzentos como os humanos. São sempre
magníficos: o corpo pintado de urucum e percorrido de dese-
nhos pretos, suas cabeças de plumas brancas de urubu rei, suas
braçadeiras de miçangas repletas de plumas de papagaios, de
cujubim e de arara vermelha, a cintura envolta de rabos de tu-
cano..... Dá alegria de ver quanto são bonitos!....
Os espíritos são tão numerosos porque eles são as imagens dos
animais da floresta. Todos na floresta têm uma imagem utupë:
quem anda no chão, quem anda nas árvores, quem tem asas,
quem mora na água. São estas imagens que os xamãs chamam
e fazem descer para virar espíritos xapiripë. Estas imagens são
o verdadeiro centro, o verdadeiro interior dos seres da floresta.
As pessoas comuns não podem vê-los, só os xamãs.... São ima-
gens dos nossos antepassados...A epidemia dos brancos pode
tentar queimá-los e devorá-los, nunca desaparecerão. Seus es-
pelhos brotam sempre de novo.
Os brancos desenham suas palavras porque seu pensamento é
cheio de esquecimento. Nós guardamos as palavras dos nossos
antepassados dentro de nós há muito tempo e continuamos
passando-as para os nossos filhos. As crianças, que não sabem
nada dos espíritos, escutam os cantos dos xamãs e depois que-
rem ver os espíritos por sua vez. É assim que, apesar de muito
antigas, as palavras dos xapiripë sempre voltam a ser novas.
O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre os Povos Indígenas 157

São elas que aumentam nossos pensamentos. São elas que nos
fazem ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos antigos. (o
pó - yãkõanahi) É o nosso estudo, o que nos ensina a sonhar.
Deste modo, quem não bebe o sopro dos espíritos tem o pensa-
mento curto e enfumaçado; quem não é olhado pelos xapiripë
não sonha, só dorme como um machado no chão”. Narrativa
Davi Kopenawa Yanomami – Sonhos das Origens2.

O uso do cipó, Ayauaska, ou Kamarãpi, pelos Ashaninka tam-


bém tem o sentido de comunicação com o sagrado. Beber o cipó e
cantar permite aos Ashaninka comunicarem-se com os espíritos, agra-
decerem e homenagearem Pawa (o criador). Segundo este povo, é pelo
uso do Kamarãpi que adquirem o conhecimento e aprendem como se
deve viver na terra.
Seu uso está relacionado à formação dos xamãs, Sheripiari, para
ele viajar em outros mundos para adquirir sabedoria para curar os ma-
les e as doenças que afetam a comunidade.
Alguns povos também fazem uso de bebidas fermentadas em ri-
tuais e festas, em oferendas para determinados espíritos. Em geral são
momentos de catarse individual e/ou coletiva, onde se fazem combina-
dos, reparam conflitos e planejam a vida.
Muitas festas são realizadas para garantir o equilíbrio das forças
entre homens e encantados.
Para todos estes procedimentos existe uma continência, um espa-
ço de acolhimento e legitimação. Esta legitimação é fundamental para o
sucesso da intervenção. Levi Strauss nos lembra desta questão quando
fala sobre a Eficácia Simbólica.
Em todos os casos em que se convoca a intervenção do pajé é for-
mulada uma interpretação que, em geral, está ajustada às representações
sociais do grupo social onde ocorre o caso. Levi Strauss reproduz uma
narrativa de um índio Cuna, Guillermo Haya, coletado por Dr. Wassen
e Holmer, sobre uma complicação de parto que revela toda essa ligação

2 http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/narrativas-indigenas/narrativa-yanomami
158 Sofia Beatriz Machado de Mendonça

entre o adoecimento, a pessoa, dentro e fora do seu corpo, e o sagrado. A


parteira vai visitar o Xamã e pede sua ajuda para acompanhar um parto.
O Xamã vai até a parturiente, com seus instrumentos e começa a cantar:

“O objetivo do canto é ajudar num parto difícil... A intervenção


do xamã é, portanto, rara, e ocorre em caso de fracasso, a pe-
dido da parteira. O canto começa por uma descrição da aflição
desta última, sua visita ao xamã, a saída deste em direção à
casa da parturiente, sua chegada e seus preparativos, que con-
sistem em fumigações de feijões e cacau queimados, invocações
e confecção das imagens sagradas, os nuchu. Essas imagens, es-
culpidas em determinadas madeiras, que lhes dão sua eficácia,
representam os espíritos protetores que o xamã emprega como
assistentes, e que pega pela cabeça para leva-los até a morada de
Muu, força responsável pela formação do feto. A explicação do
parto difícil é que Muu extrapolou suas atribuições e se apossou
do purba ou “alma” da futura mãe. Por isso, todo o canto con-
siste numa busca, a do purba perdido, que será restituído depois
de muitas peripécias, como a demolição de obstáculos, a vitória
sobre animais ferozes e, finalmente, um grande torneio entre
o xamã com seus espíritos protetores e Muu com suas filhas...
Vencida, Muu permite que o purba da paciente seja descoberto
e libertado, o parto se realiza, e o canto termina enunciando
os cuidados tomados para que Muu não escape atrás de seus
visitantes”.3

Todos estes procedimentos fazem sentido para as pessoas que


adoecem, têm uma explicação coerente com o modo como veem e pen-
sam o universo.

“A cura consistiria, portanto, em tornar pensável uma situação

3 X A eficácia simbólica – in Antropologia Estrutural, Claude Levi-Strauss – 1985. Ed. Tempo Brasi-
leiro. Pg 202.
O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre os Povos Indígenas 159

dada incialmente em termos afetivos, e aceitáveis, pelo espíri-


to, dores que o corpo se recusa a tolerar. O fato de a mitolo-
gia do xamã não corresponder a uma realidade objetiva não
tem importância pois que a paciente nela crê e é membro de
uma sociedade que nela crê. Espíritos protetores e espíritos
maléficos, monstros sobrenaturais e animais mágicos fazem
parte de um sistema coerente que funda a concepção indígena
do universo. A paciente os aceita ou, mais precisamente, jamais
duvidou deles. O que ela não aceita são as dores incoerentes
e arbitrárias que constituem um elemento estranho a seu sis-
tema, mas que o xamã, recorrendo ao mito, irá inserir num
sistema em que tudo se encaixa”. 4

Portanto, a comunicação entre os homens e o sagrado pode se


dar de várias formas, mas em geral, sempre se dá de forma ritualizada e
legitimada pelo grupo social.

Encontro entre os diferentes sistemas de cura: justaposição ou arti-


culação?

A vivência do adoecimento também remete ao plano espiritu-


al. Existem males que são interpretados e tratados pelo conhecimento
comum e outros que demandam a intervenção de especialistas locais,
como os rezadores, raizeiros, parteiras e os diferentes tipos de pajés.
Mas como estes diferentes modos de pensar o adoecimento con-
vivem? Como acontece o encontro das “medicinas” ou “sistemas de
cura”? Como é a relação entre as práticas da biomedicina e os cuidados
e práticas tradicionais?
Pensando na realidade de hoje, quem são os atores que produzem
saúde nos territórios indígenas?
Hoje em dia, no Brasil, as terras indígenas fazem parte do terri-

4 X A eficácia simbólica – in Antropologia Estrutural, Claude Levi-Strauss – 1985. Ed. Tempo Brasi-
leiro. Pg 214.
160 Sofia Beatriz Machado de Mendonça

tório de um determinado Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI).


O Brasil tem 34 Distritos contemplando todas as áreas indígenas. Cada
DSEI divide sua área de abrangência em polos base, onde ficam as equi-
pes multiprofissionais de saúde, compostas basicamente por médicos,
enfermeiros, odontólogos, técnicos de enfermagem, agentes indíge-
nas de saúde e de saneamento. Além das equipes que atuam a partir
da concepção biomédica, nas áreas indígenas atuam os “especialistas”
tradicionais. Existem as parteiras, os rezadores, raizeiros, benzedores,
cantadores, pajés de várias categorias, como aqueles que conhecem mais
dos espíritos da mata, ou das águas, dependendo dos espíritos que os
guiam e orientam. Existem também os pajés auxiliares, que participam
da pajelança em determinadas etapas e apoiam os pajés principais. São
muitos os especialistas e depende muito de cada povo.
A família também está implicada no processo de adoecimento e
cura. Faz o primeiro diagnóstico do problema. Procura resolver com
seu próprio conhecimento ou segue um itinerário terapêutico que passa
pelos agentes da biomedicina e pelos especialistas locais. Este itinerário
sempre vai depender do problema, de sua evolução e gravidade. Todos
os membros da comunidade, ou da família ampliada, podem participar
do processo de produção da saúde em rituais específicos, em festas ou
em outras atividades.
Assim como o sagrado está impregnado no cotidiano, na nature-
za, e em todas as coisas, de uma maneira orgânica, para os povos indí-
genas todos os processos de adoecimento e cura dizem respeito a todo
esse contexto que se estende desde o indivíduo e segue até o coletivo.
São necessários cuidados especiais para o indivíduo, para sua família e,
dependendo do caso, para toda a aldeia.
Acompanhei um caso interessante, que para nossa medicina, ti-
nha todos os sinais e sintomas de um quadro depressivo. Este sujeito era
uma liderança importante que estava sentindo uma tristeza profunda,
uma grande preocupação com seu povo. Começou a não ter ânimo para
ir à roça, ou ao centro da aldeia para as reuniões dos guerreiros... Passou
a ter pensamentos ruins, principalmente à noite, com insônia ou pesa-
O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre os Povos Indígenas 161

delos... Esta situação foi evoluindo e se agravando com o tempo. Enfim,


um quadro bastante sugestivo de transtorno depressivo. Foram chama-
dos os agentes da biomedicina, médicos e enfermeiros, e os pajés para
interceder no caso. Para o olhar da biomedicina a interpretação era que
o paciente apresentava um transtorno depressivo que, naquele momen-
to, demandava o uso de medicação, ao menos para sair da crise aguda.
A equipe de campo propôs um trabalho conjunto com os especialistas
locais e acompanhou o processo. Para os pajés, uma das interpretações
foi que a alma do doente havia sido roubada... Estava longe dele... e por
isso ele estava se sentindo daquela forma. É muito interessante observar
como existe uma semelhança simbólica, pensando nos conceitos da psi-
cologia analítica, nesta interpretação. Foram realizadas várias seções de
pajelança... com o uso de plantas medicinais em banhos e fumigações.
Durante as noites os pajés trabalhavam em equipe, um deles puxava o
canto, descrevendo o caminho que eles percorriam em busca da alma
perdida... Todos cantavam na sequência de acordo com o que ele dizia..
Ia relatando em que lugar estavam, quem os estava guiando, onde viram
a alma e a chamavam de volta... Durante todo o processo era necessário
ofertar comida aos espíritos, os alimentos que os espíritos gostavam.
Todos da família ampliada participavam da roda de canto, chamando
também pela alma do seu ente querido. Foram várias noites de pajelan-
ça, cantoria, busca... interpretação dos sonhos...
O processo tem o seu clímax quando os pajés finalmente conse-
guem trazer a alma de volta para a pessoa. É um momento muito emo-
cionante e perigoso em que todos participam na cantoria, no chama-
mento, mas os pajés são responsáveis por acolher a alma pelo fio do
algodão, no braço/peneira e devolvê-la ao seu dono.
Durante os outros dias, todos os membros da aldeia foram benzi-
dos e também passaram por uma “limpeza” dos malfeitos atribuídos ao
espírito do gavião que estava zangado.
Em muitas ocasiões, depois de um determinado período, é preci-
so fazer uma festa para aquele espírito que roubou a alma, para ele ficar
calmo e em equilíbrio com o povo da aldeia. E assim foi feito.
162 Sofia Beatriz Machado de Mendonça

Foi interessante pois, de fato, o sujeito em sofrimento melhorou,


voltou a fazer sua roça, voltou a frequentar as reuniões no centro da al-
deia... Foi impressionante perceber o quanto perdemos, na biomedicina,
deste olhar do conjunto, sair da visão do particular, do indivíduo, para o
envolvimento da família e de toda a comunidade. Neste episódio ficam
claras todas as dimensões da doença, a dimensão subjetiva – de como a
pessoa se sente, a dimensão objetiva, biofísica – dos sinais, e a dimensão
social – da percepção e legitimação do processo de adoecimento e cura
pelo grupo social.

Desafios nos dias de hoje...

Os povos indígenas hoje vivem em diferentes situações de conta-


to e conflito com a sociedade nacional. Sua qualidade de vida é reflexo
da relação entre estes e a sociedade nacional. A Constituição Cidadã
de 1988 trouxe muitas conquistas para os povos indígenas do Brasil.
Garantiu o direito à diferença, à viver a vida conforme seus usos e cos-
tumes, o direito à terra, à educação e, em 1999 é promulgada a Lei no.
9.836/99, conhecida como Lei Arouca, que dispõe sobre a atenção di-
ferenciada à saúde indígena. Grandes vitórias do movimento indígena.
Porém, ao longo dos últimos anos, temos acompanhado a di-
ficuldade, a peregrinação e os conflitos para garantir as demarcações
das terras, que continuam ameaçadas pela PEC 215, em andamento no
Congresso Nacional. Temos visto o preconceito e a exclusão por parte
de munícipes e governos, principalmente no entorno das áreas indíge-
nas. Temos acompanhado o aparecimento de novas doenças, soman-
do-se às doenças transmissíveis, como a desnutrição, o uso abusivo de
álcool e outras drogas, as doenças crônicas como hipertensão arterial e
diabetes, ceifando devagar e dolorosamente as vidas nas aldeias. Temos
visto também muitas mudanças no modo de viver, novos papéis sociais,
a monetarização da economia, o sedentarismo das aldeias, novos que-
reres, novos assuntos e a televisão roubando espaços de comunhão de
gerações. Conhecimentos se retraindo, se escondendo...
O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre os Povos Indígenas 163

Na área da saúde, apesar da Política Nacional de Atenção à Saúde


Indígena ter sido formulada a partir de uma construção coletiva, que
aponta para um sistema de saúde especial, que respeita e valoriza os
sistemas de cura tradicionais, articulado ao sistema único de saúde, na
prática pouco se avançou no que se refere à atenção diferenciada a esses
povos. Existe uma alta rotatividade de pessoal nas equipes locais de saú-
de e pouco ou quase nenhum investimento na formação dos próprios
indígenas.
Muitos profissionais de saúde começam a trabalhar na saúde indí-
gena sem nenhum preparo prévio com relação aos povos com os quais
vão trabalhar, sua cultura, suas práticas e cuidados. Nos últimos anos
houve um grande aumento da força de trabalho nesta área, porém isso
não se refletiu na melhoria das condições de saúde destes povos. Cos-
tumo dizer que está ocorrendo uma neo colonização, agora com agentes
da biomedicina, seus instrumentos, exames e medicamentos, muitos
sem a necessária formação, despercebendo e desconhecendo outros sa-
beres sobre a vida e sobre o processo de adoecimento e cura, afogando
as práticas de auto-cuidado e desprezando os especialistas tradicionais.
Infelizmente este é uma realidade na maioria dos Distritos Sanitários
Especiais Indígenas em nosso país.
Apesar deste cenário o movimento indígena se propõe outro,
como índios em movimento, como diz Ailton Krenac, como bicho de
sete cabeças. Uma cabeça/movimento entre os Guarani do Mato Gros-
so, outra cabeça/movimento entre os Gajajara e Awa Guajá, e ainda ou-
tra com os Munduruku e assim por diante...
É importante trazermos à tona, neste e em outros encontros, estas
vozes, estes testemunhos... De que se pode fazer diferente, de que se
pode fazer melhor. De que a vida reverencia e se entrelaça a todo tempo
com o sagrado.
Agora um pouco do pensamento sobre o bem-viver...

“Quando o céu esta fazendo uma pressão muito grande sobre o


mundo, uma parte desses humanos está cantando e dançando
164 Sofia Beatriz Machado de Mendonça

para suspender o céu. Se não fizerem isso, a pressão fica demais


para nossa cabeça e ficamos sem saída. Eu não aceito o xeque
-mate, fim do mundo ou fim da historia. Esse momento difícil
para mim é quando eu mais evoco esse pensamento: cantar,
dançar e suspender o céu... Não posso viver de uma maneira
de que eu falo uma coisa e vivo outra realidade, digo uma coi-
sa e vivo outra. Tem que haver uma harmonia entre o que eu
vivo no cotidiano, e o que eu falo e faço com as outras pessoas.
Essa sintonia é para mim saúde. Significa a expressão que mui-
ta gente tem falado: o bem viver. Para mim, isso tem que ser o
bem viver”- Ailton Krenac5.

“No centro da vida dos povos indígenas está sua espiri-


tualidade e um sentido festivo para o viver. Por exemplo,
quando os missionários do século XVI proibiram os Gua-
rani de realizarem algumas de suas festas, eles deixaram
de plantar suas roças. O modo de vida dos povos explicita
que eles não vivem para produzir, mas produzem e tra-
balham para viver. A espiritualidade é essencial nas suas
culturas e ela se manifesta especialmente através de can-
tos, danças, rituais festivos e de rezas. O mundo dos povos
indígenas é centrado na pessoa e na comunidade, na par-
tilha, na abertura para os outros. Na festa se restabelece
o equilíbrio, a alegria e se partilha a memória ancestral,
o espaço e o tempo. Todos participam e se ajudam, e o
trabalho em conjunto gera abundância. Por isso, quando
pensamos em “um outro mundo possível”, imaginamos
um espaço festivo, no qual se pode sentir e partilhar a ale-
gria e a dádiva que é viver. Para construir as condições de
Bem Viver, precisamos produzir mudanças importantes
no estilo e no sentido da vida ocidental, conforme argu-

5 http://www.cartacapital.com.br/sociedade/201cse-o-bicho-avancar-vamos-encarar-de-pe201d-
diz-ailton-krenak-1118.html
O sagrado, o cotidiano e o adoecimento entre os Povos Indígenas 165

menta Paulo Suess (2010). O Bem Viver pressupõe con-


siderar o ser humano como parte da natureza, envolvido
em tudo o que acontece com a terra, os animais, o meio
ambiente. O Bem Viver requer uma mudança na forma
de organizar. Temos muito a aprender com os povos indí-
genas na vida social, em que os interesses coletivos preva-
leçam sobre os interesses individuais e a solidariedade seja
a base da sociedade, pois a vida é vivida em rede e todos
necessitam uns dos outros. O Bem Viver requer também
uma mudança nas estruturas econômicas e o reconheci-
mento de que o desenvolvimento deve ser pensado para
resguardar e potencializar a vida. Desse modo, não cabem
nele os projetos de exploração abusiva dos recursos natu-
rais nem os que se baseiam na exploração do ser humano.
Por fim, o Bem Viver requer uma mudança política, para
constituirmos uma sociedade fundamentada na justiça,
na partilha e no respeito a todas as culturas e todos os
povos” 6

6 Porantim – encarte Pedagógico X - Dezembro de 2015, pg 4. http://www.cimi.org.br/pub/Poran-


tim/2015/Encarte_Porantim381_dez2016.pdf
167

As curas espirituais como problema da


ciência das religiões1

Luiz Signates

Introdução

O problema da interface entre religião e saúde não é recente, mas ad-


quire, na modernidade, características simbólicas potencialmente
conflitivas e, por tais razões, constitui contemporaneamente uma ques-
tão emergente de enorme relevância para as ciências da religião.
Nesse sentido, a tematização dessa relação pelo VIII Congres-
so Internacional em Ciências da Religião, promovido pelo PPG Ci-
ências da Religião, da PUC-Goiás, representou, a nosso ver, um mo-
mento ímpar na discussão da área, vez que pautou o enfrentamento
de uma problemática, cuja abordagem tem sido feita, de forma epi-
sódica, pelos dois campos de estudos científicos – o da saúde e o dos
estudos religiosos de diferentes enfoques – os quais, até então, pouco
têm dialogado entre si.
Este texto tem a modesta intenção de abordar essa interface, sua
importância e suas consequências, a partir da ótica específica dos estu-
dos do espiritualismo brasileiro, sem a menor pretensão de resolvê-lo.
Busca-se, aqui, então, apenas destacar algumas categorias e pressupos-
tos, bem como indicar caminhos para estudos profícuos que ultrapas-
sem seja uma abordagem reducionista, ancorada no positivismo, que
ignore a religião como fator interveniente para além do sentido negativo
de mera produtora de ilusões, seja uma apreensão apologética, que ig-
1 ∗ As ideias preliminares que deram origem a este texto foram comunicadas no VIII Congresso In-
ternacional em Ciências da Religião, promovido pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, nos
dias 26 a 29/04/2016, na mesa-redonda “Religião, doença e cura: a intervenção do sagrado e o retor-
no da magia”, ocorrida dia 28/04/2016.
168 Luiz Signates

nore as ciências médicas em seus referenciais metodológicos, cuja efi-


cácia na garantia da saúde e da integridade do corpo revelam-se como
conquistas irrenunciáveis da modernidade.
Destarte, este trabalho tratará inicialmente, de modo sintético, da
questão da corporeidade, como mediação simbólica fundamental para
a compreensão da relação entre religião e saúde, para depois conside-
rarmos essa interface como objeto da ciência da religião, pontuando, em
seguida, o espaço aberto pelo espiritualismo brasileiro nessa discussão.
Por fim, avançamos em indagações que nos parecem fundamentais para
o desenvolvimento dos estudos na área.

Corpo e religião

A relação entre religião e saúde, ou, mais especificamente, a cura,


é fundadora da noção de religiosidade, especialmente se considerarmos
o que conhecemos até hoje em termos de história da religião. Desde a
antiguidade, a religião foi o recurso das pessoas para debelar doenças,
aliviar sofrimentos e, sobretudo, inserir a dor e a angústia na narrativa
do mundo.
Com a modernidade e o desenvolvimento das ciências médicas,
operou-se a disjunção epistemológica entre religião e ciência, ou entre
saber e fé, dando início à construção simbólica de uma oposição incon-
ciliável entre a teologia e a medicina. Essa dicotomia, contudo, tem sido
apreendida como um mito, conforme avaliam Stroppa e Moreira-Al-
meida (2008):

“A alegada oposição entre a iluminada medicina e a teologia


obscurantista, assim como entre o médico humanista e o re-
ligioso cruel, são mitos. Na realidade, a história da religião e
a atenção a pessoas sofrendo de doenças físicas ou mentais
têm muitos pontos em comum” (Stroppa e Moreira-Almeida,
2008, p. 2).
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 169

Corroborando esses autores, parece difícil haver uma análise so-


bre práticas ou simbólicas do religioso que não toquem de algum modo
em temáticas que digam, direta ou indiretamente, respeito à conceitos
basilares ou pressupostos fundamentais para as ciências da saúde, tais
como:

- a corporeidade. Parece-nos irrefutável que o conceito de corpo


e de seus atributos, tem valor definidor em qualquer ontologia
religiosa – ainda que para negá-lo. Não teríamos, destarte, as
noções de magia, milagre, ressurreição, reencarnação, ascetis-
mo, mortificação, ritual e outros, sem um vínculo epistêmico
original da corporeidade à concepção do religioso ou do sa-
grado. Pode-se até aditar que a ligação inevitável da religião à
noção de morte é diretamente relacionada à questão do corpo
e da corporeidade, inscrita em sua finitude na duração.
- a saúde do corpo ou do espírito. Tais referências surgem tan-
to de forma integrada, numa apreciação de tendência holística,
para a qual corpo e espírito constituem um todo indissociável;
quanto fragmentada, ao gosto do positivismo ou de mundi-
vidências assemelhadas, para as quais o corpo é uma espécie
de máquina, que pode ser decomposta em partes ou órgãos, e
o espírito uma entidade à parte, que, em algumas formas re-
ligiosas de pensar, pode desembaraçar-se do corpo, proviso-
riamente em certas ocasiões, e definitivamente por ocasião da
morte.
- os processos definidores da doença e, por conseguinte, da
cura. A noção de cura (com ou sem a adjetivação “espiritual”)
pode ser percebida nos momentos originários de praticamente
todas as religiosidades, especialmente aquelas tangidas pelas
concepções mágicas do sagrado, isto é, pelas possibilidades de
intervenção do sagrado sobre a materialidade do corpo.

A própria história da afirmação do cristianismo, que se deu du-


170 Luiz Signates

rante o período da queda do Império Romano, parece ter ligações ex-


traordinárias com o modo pelo qual a religião cristã nascente operava,
no abrigo e atendimento aos pagãos. Paiva (2007), apoiado em McNeill,
define a piedade cristã como um elemento fundamental de produção da
legitimidade dos primeiros cristãos, junto aos pagãos da antiguidade.

“...uma poderosa razão da mortalidade dos pagãos, da sobre-


vivência dos cristãos e da conversão dos pagãos ao cristianis-
mo foi a maneira de os cristãos e os pagãos, respectivamente,
cuidarem ou deixarem de cuidar de seus doentes por ocasião
das grandes epidemias que assolaram o império romano nos
primeiros séculos da era cristã. A caridade, ou seja, o amor
ao próximo induziu os cristãos, diferentemente dos pagãos,
a providenciar para os irmãos de fé cuidados elementares,
como “simples provisão de comida e água que permitem aos
temporariamente enfraquecidos lutar por si mesmos pela
recuperação em vez de perecer miseravelmente” (McNeill,
1976, citado em Stark, 1997, p.88). Esse cuidado, segundo
Stark, não só preservou proporcionalmente muito mais vidas
de cristãos do que de pagãos como encaminhou conversões
de pagãos ao cristianismo (Paiva, 2007, p. 100).

Observe-se, portanto, que religião e saúde não são temáticas que


se estranhem, apesar das determinações hegemônicas da cultura em que
vivemos, de fragmentação dos saberes, no âmbito da mentalidade mo-
derna, que terminou por determinar a disjunção entre religião e ciência.
Tal problema persiste até os dias de hoje. As ciências médicas,
assim que se desengastaram das crenças medievais, passaram a cons-
truir conhecimento dentro dos parâmetros que culminaram do método
positivista, e ainda hoje estabelecem-se não apenas na distância, mas no
fechamento para a consideração de variáveis religiosas, para o entendi-
mento dos processos de doença e cura. Segundo Vasconcelos,
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 171

“os estudos acadêmicos em saúde continuam extremamen-


te fechados à incorporação de aspectos religiosos no enten-
dimento do processo de adoecimento e cura. No Brasil, só
recentemente uma revista científica de renome dedicou um
número especial ao tema (Revista de Psiquiatria Clínica,
2007). O avanço das ciências da religião, na medida em que
possibilitou a criação de conceitos e análises desvinculados
de uma tradição religiosa específica e, assim, de uma lingua-
gem comum, está possibilitando a discussão mais ampla deste
tema, de uma forma que supera parcialmente as usuais e ten-
sas competições entre os vários grupos religiosos” (Vasconce-
los, 2009, p. 324).

Não apenas no espaço das ciências médicas, mas também no das


demais áreas do campo da saúde, inclusive as psicológicas e psicanalíti-
cas, verifica-se a negação da religiosidade como fator relevante para as
considerações de saúde. Segundo Aquino et ali (2009), o caso específico
da psicanálise advém do próprio Freud, que considerou a atitude reli-
giosa um tipo de patologia ou transtorno neurótico.

“No âmbito da saúde mental, por exemplo, alguns autores ma-


nifestam uma visão negativa da religiosidade, como a concep-
ção psicanalítica de Freud (1927/1974, p. 57), que considera a
atitude religiosa uma patologia ou transtorno neurótico. Se-
gundo o autor, “...a religião seria a neurose obsessiva universal
da humanidade; tal como a neurose obsessiva da criança, ela
surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai”.
Assim, Freud reduz o fenômeno religioso a um epifenôme-
no do complexo de Édipo. Entretanto, Allport (1955/1975)
considerou as ideias da psicanálise equivocadas quando con-
cebiam a religião apenas como uma função defensiva do ego,
em vez de concebê-la como núcleo integrador do desenvolvi-
mento do ego” (Aquino et alli, 2009, p. 232).
172 Luiz Signates

Infelizmente, sobretudo nos meios acadêmicos, ainda vige uma


mentalidade que confunde razão com eficácia instrumental, despre-
zando a dimensão humana e subjetiva do sofrimento. Assim como,
em contrapartida, o obscurantismo ainda sobrevive sob o tapete das
dogmáticas das mais diversas religiões, para as quais as ciências da
saúde podem ser simplesmente ignoradas, em vista da superioridade
do sagrado.
Mesmo entre as religiões que mantém uma interação mais próxi-
ma da articulação científica, o conflito não se extingue, nem se resolve
em nenhuma espécie de consenso científico-religioso. Se do lado cientí-
fico prevalece a negação, do lado religioso é a apropriação legitimadora
e, não raro, pseudocientífica, o que se destaca.

“Algumas vezes o que passa por interação entre religião e ci-


ência vem a ser, na realidade, um apelo disfarçado ao prestí-
gio das ciências, com o perigo concomitante de uma perda
do que distingue as tradições religiosas. É sintomática desta
tendência uma torrente recente de estudos sobre crenças e
práticas cristãs que dão a entender que o perdão é bom para a
saúde, que frequentar a igreja aumenta a longevidade ou que
a prece petitória demonstrou ser eficaz em termos médicos.
Tais estudos não são nocivos em certo nível, mas a simples
assunção, embora não mencionada, de que esta pesquisa
empírica tenha implicações religiosas significativas vem de
uma confusão profunda. A promoção de tais programas por
motivos religiosos é indicativa da extensão com que as prio-
ridades atuais ao progresso material e à saúde física vieram
a substituir valores religiosos tradicionais. O Budismo tam-
bém sofreu tendências ocasionais de render sua autonomia
epistêmica para cientistas. Uma das áreas de crescimento de
estudos empíricos no Budismo tem sido a de estudos de esta-
dos meditativos usando aparelhos de ressonância magnética.
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 173

Os resultados de tais estudos – que reportam, por exemplo, a


ativação dos “centros de prazer” dos cérebros dos monges em
meditação – são frequentemente apresentados como justifica-
tivas dos ensinamentos budistas, como se as práticas e crenças
religiosas permanecessem condicionais até receberem o selo
da verificação empírica” (Harrison, 2007, p. 23).

O fato de termos hoje pesquisadores e profissionais da área da saú-


de que ignoram as temáticas religiosas em seus estudos, e de, também,
termos estudiosos das religiões que ignoram as questões específicas da
saúde e da cura, constituem muito mais sintomas de uma racionalidade
fragmentada e instrumental, que teimosamente permanece identifican-
do a cultura ocidental, do que uma formulação teórica e epistemológica
que se sustente.
Trata-se da ausência não simplesmente de eficácia, por um lado,
ou de compreensão social ou humanística, de outro. É certo que tais
problemas existem e são claramente perceptíveis, de parte a parte. A
questão de fundo, que identifico a partir de um olhar, senão mais aguça-
do, ao menos de compreensão complementar àquela dicotomia, é a que
indaga sobre a ausência da dialogicidade cultural, entre a discursividade
racional e instrumental da ciência e a discursividade mítica e mágica da
religião.

Epistemologia da dupla negação

A dicotomia citada não nos conduz a nenhum lugar útil. Lançar


mão de argumentos pseudocientíficos para a legitimação de crenças não
é o que torna o fenômeno da fé um objeto científico respeitável. Ao con-
trário, é adotar, diante da ciência, a mesma perspectiva da religião, isto
é, significa viver religiosamente a ciência, ou um simulacro da ciência,
simbolicamente adaptado. Não que isso não seja legítimo, até porque
às vezes não há outra alternativa ao senso comum e ao senso religio-
so, diante da excessiva complexidade das problemáticas e explicações
174 Luiz Signates

científicas. Mas, definitivamente, esse caminho não nos conduz a uma


ciência da religião.
Por outro, a negação positivista do fenômeno religioso constitui
reducionismo incompreensível no arcabouço dos estudos científicos,
especialmente depois da extraordinária contribuição das ciências hu-
manas e sociais, para além do racionalismo positivista. Não nos parece
que o espaço da religião seja a lacuna da ciência. Se um dia o foi; não
o é mais. Hoje, é possível dizer que o conhecimento científico, ante as
novas exigências da ecologia humana, não irá longe sem a cooperação
religiosa, bastando ver a enorme interferência religiosa em questões vi-
tais como a biotecnologia, a ecologia, a contracepção etc.
Se a articulação do pensamento científico foi capaz de substituir
com enorme competência as explicações antigas e medievais no vasto
campo das ciências naturais, o mesmo não ocorre no âmbito das ciên-
cias humanas e sociais, cujo avanço teórico passa obrigatoriamente pela
compreensão dos modos pelos quais o religioso se instaura e restaura,
no cotidiano das pessoas, dos grupos sociais e das instituições. E, espe-
cificamente, no âmbito imprescindível da intervenção social e política, é
lá onde a ciência fracassa – a mobilização humana em torno de ideias e
ideais – que a religião demonstra ainda uma enorme efetividade.
É nesse campo de interface que parece emergir a área da ciência
da religião, como um broto verde na rachadura do concreto... Campo
de interface, de permuta de sentidos contraditórios, trabalha com um
objeto fugidio, não porque não seja ancestral ou perceptível ou pratica-
mente autoevidente, e sim porque não raro seu tratamento, em ciências
da religião, ocorre a partir de perspectivas das ciências sociais hegemô-
nicas (sociologia e antropologia, principalmente), deixando de perceber
a especificidade de seu objeto – o fenômeno religioso enquanto tal, para
além das explicações da sociologia ou da antropologia, embora sem dis-
pensá-las da interlocução.
O objeto do religioso, contudo, se impõe como tal. Não por efei-
to de constatações científicas, hard core, mas por que a religiosidade
diz respeito ao humano. E o humano, como dizia Emmanuel Lévinas
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 175

(1988), excede o pensamento que o abarca e o domina: “o rosto está


presente na recusa de ser conteúdo” (Lévinas, 1988, p. 173).
Nesse sentido, o religioso brota do científico, não apenas desmen-
tindo as teses da dessacralização e do desencantamento do mundo, mas,
não raro, tornando – como tornou – a ciência uma atividade autentica-
mente devocional (até por ter em seu seio gente que trabalha excessiva-
mente em troca de muito pouco), o que não chega a ser um problema,
mas, também, constituindo a relação entre a ciência e as sociedades pra-
ticamente uma relação de fé. Não deve ser estranho, para o olhar de
um cientista da religião, como pretendemos ser, o postulado de que a
ciência, especialmente e sobretudo a ciência médica, se estrutura como
religião nos dias de hoje.
Sem dúvida, vivemos um mundo em que a ausência da dialogici-
dade entre os dois mundos – o da ciência e o da religiosidade – termina
por proporcionar, de forma arriscada, uma dupla negação do humano
enquanto tal.
A primeira é a negação científica do humano pela concepção do
corpo como máquina ou como sistema de órgãos, reduzindo o sofri-
mento à dor, isto é, à sua percepção química ou fisiológica. Ora, o sofri-
mento é mais do que dor, embora a dor seja a mais corpórea forma de
sofrimento, malgrado não seja, nem de perto, a pior possível. Há muito
mais sofrimento do que dor no mundo.

“A racionalidade tecnológica, expressão mental da lógica in-


dustrial que se expandiu e reduziu a riqueza da vida social
concreta ao dinamismo formalizado e “administrável” do sis-
tema, necessitou desencantar as energias vitais para transfor-
má-las em forças motrizes. A dialética em questão denuncia
que o desencantamento e a negação das vozes vitais do indiví-
duo (suas paixões e necessidades) provocaram o retorno das
mesmas contra a razão dominadora que as oprime, levando
a própria razão a assemelhar-se às paixões cegas e irracionais
que teme. Assim, a fetichização da razão, suas formas reifi-
176 Luiz Signates

cadas, são causa e consequência desse retorno do recalcado.


O “germe” da autodestruição do esclarecimento – que deve
ser buscado no próprio esclarecimento pela crítica imanente
– encontra naquilo que estamos chamando de dupla negação
do corpo – isto é, na expropriação, mutilação e dominação
social e cotidiana do corpo (negação física) e no recalque des-
sa experiência (negação psíquica) – uma realidade empírica e
material” (Ramos, 2004, p. 58).

A segunda é a negação movimentada pelas religiões, a negação


da racionalidade moderna e de sua capacidade de substituir a fé, em
determinadas situações, no aplacamento da dor, como experiência pri-
mordial do sofrimento.
Ambas estas negações são fatores de prolongamento do sofrimen-
to, cada uma em sua trajetória. Tanto o território enregelado das UTIs,
onde às vezes o sofrimento é ampliado em nome da sobrevivência e
onde a morte visita a solidão profunda cercada de equipamentos, quan-
to o território pseudosagrado dos falsos milagres, nos quais a ilusão e
a ignorância promovem a agudização do sofrimento pelo agravamento
das enfermidades decorrentes do abandono dos tratamentos, são luga-
res que precisam ser repensados, ou no mínimo movimentados um em
direção à compreensão do outro, a fim de que o homem seja percebi-
do em sua inteireza, como corpo e como espírito, como racionalidade
e como espiritualidade, num processo que pode e deve ressignificar o
próprio sofrimento.
Um dos modos de superação desse hiato tem sido construído pe-
las próprias ciências médicas, como testemunham Guimarães e Avezum
(2007), em interessante revisão bibliográfica acerca do impacto da espi-
ritualidade na saúde física.

“A influência da religiosidade/espiritualidade tem demonstra-


do potencial impacto sobre a saúde física, definindo-se como
possível fator de prevenção ao desenvolvimento de doenças,
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 177

na população previamente sadia, e eventual redução de óbito


ou impacto de diversas doenças (...).Há tendência à correla-
ção entre a religiosidade/ espiritualidade e a saúde física, mas
por ainda não ser adequadamente robusto em suas provas e
correlações, este constitui, sem dúvida, em amplo e promissor
campo de investigação. Nesse cenário, a necessidade de maior
investigação da relação entre saúde física e espiritualidade,
baseada principalmente no impacto de intervenções de base
religiosa sobre a saúde, faz-se ainda relevante para a compro-
vação desse paradigma. A comprovação definitiva de efeitos
dessas intervenções poderá, em futuro próximo, permitir sua
transposição à prática clínica” (Guimarães e Avezum, 2007,
p. 93).

Seguindo uma linha semelhante, Dalgalarrondo (2007) constata


a presença do religioso como alívio do sofrimento, como doador de sig-
nificados às situações tidas como desesperadoras.

“A presença do religioso no modo de construir e vivenciar o


sofrimento mental tem sido observada por muitos dos pes-
quisadores. Assim é o caso tanto em estudos com contornos
mais qualitativos e etnográficos, como com os mais bem
quantitativos e epidemiológicos. Isso também é constatável
tanto para os transtornos mentais mais leves, como ansiedade
e depressão, como para os quadros graves, como nas psicoses.
A busca por algum alívio do sofrimento, por alguma signifi-
cação ao desespero que se instaura na vida de quem adoece,
parece ser algo marcadamente recorrente na experiência, so-
bretudo para as classes populares” (Dalgalarrondo, 2007, p.
32).

Será no espiritualismo, contudo, que o fenômeno irá exsurgir sem


as proteções da separação entre razão e fé, reconstituindo um tipo de
178 Luiz Signates

diálogo no qual a conflitualidade não desaparece, mas é ressignificada


– embora não o suficiente, deixando amplo espaço para as ciências da
religião.

Saúde e religião, no espiritualismo: as curas espirituais

Nos campo de estudos em que me movimento, o do espiritua-


lismo brasileiro – ambiente de religiosidade urbana que reúne desde o
espiritismo kardecista, fidelíssimo a uma concepção moderna de mun-
do, e a miríade dos espiritualismos de ancoragem pós-moderna, até as
tradições afro-brasileiras, com sua enorme riqueza simbólica de expres-
são étnica e espiritual, – essa carência de dialogicidade ocorre de modo
específico, embora não menos preocupante.
Também nas instituições do espiritualismo brasileiro ocorrem
os casos de abandono do tratamento médico2 que culminam no agra-
vamento de doenças e até no óbito desnecessário dos pacientes, tanto
quanto a esquizofrenia denunciada pelo prof. Ademar Chioro dos Reis
(2016), em sua conferência de abertura do VIII Congresso Internacio-
nal em Ciências da Religião, na qual o materialismo científico coexiste,
não raro, no mesmo indivíduo, com o fideísmo espiritualista, embora
não constituam uma única identidade ou sejam experiências unificadas
ou sequer conciliadas em modelos explicativos coerentes entre si.
Mas, o problema não se restringe a essas intercorrências. Há desa-
fios que têm sido lançados, aqui e acolá, por estudiosos e pesquisadores
do espiritualismo, e que nos indicam caminhos para os quais talvez não
estejamos sequer preparados. Um exemplo desses foi uma citação tra-
zida ontem ao GT Espiritismo e Saúde, pelo doutorando Ricardo Del-
gado, que se dedica ao estudo da mediunidade de João de Deus, o João
2 Há vários estudos na área médica sobre não aderência e abandonos de tratamento, por razões reli-
giosas, que merecem um estudo mais cuidadoso os estudiosos em ciências da religião. Estudos por
exemplo, sobre o abandono de tratamento de pacientes portadores de HIV/AIDS, descrevem um
modo de construção simbólica da fé como um importante fator interveniente. “Nos depoimentos
dos pacientes que abandonaram seu tratamento, o componente de ilusão ou crença com relação
ao seu restabelecimento ou cura se manifestou, frequentemente, relacionado à fé e à religiosidade”
(Schilkowsky, 2008, p. 131). Resultados semelhantes podem também ser constatados em Cardoso e
Arruda (2004).
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 179

de Abadiânia. A citação é, na verdade, um testemunho do antropólogo


americano Sidney Greenfield, de uma cirurgia espiritual feita pelo mé-
dium Antônio de Oliveira Rios, em Palmelo.

“O último paciente foi também colocado numa padiola fora


do centro. Ele antes me havia contado que tinha sido vítima
de um tiro de bala há dez anos e ainda não podia usar suas
pernas. Antônio injetou algo na parte superior das costas do
homem. Com o bisturi fez um corte de dez a doze polegadas
de comprimento e cerca de uma polegada e meia de profun-
didade ao longo da espinha dorsal. Limpou com um pouco de
gaze a pequena quantidade de sangue que jorrava, e cravou
uma tesoura num ângulo da ferida aberta. Com outra tesou-
ra, martelou a primeira mais para dentro, até que a pudessem
ouvir batendo contra o osso. Depois de uma pequena pausa,
repetiu o procedimento. O curador retirou do carrinho o que
pareceu ser uma serra elétrica com uma lâmina de seis pole-
gadas. Os espectadores na rua, entrementes, chegaram mais
perto para ver o que ele iria fazer, quando conectou a serra
a um fio de extensão, que lhe passaram de dentro do prédio
por uma janela lateral. O paciente, enquanto isso, permane-
cia imóvel, aparentemente sem tomar conhecimento da serra.
Antônio ligou o instrumento e inseriu sua lamina rotora na
ferida aberta, percorrendo verticalmente a espinha dorsal.
Uma pequena quantidade de sangue brotava à medida que
a ferida ia se alargando. Os espectadores prendiam a respi-
ração. O paciente, contudo, não se movia nem reagia de ne-
nhuma maneira. Depois de alguns minutos movimentando
a serra para baixo e para cima dentro da coluna vertebral do
paciente, Antônio desligou a serra, removeu a lâmina e as de-
positou sobre o carrinho. Sem parar de olhar para o paciente,
empurrou o carrinho apressadamente pela porta adentro, pa-
rando diante do que parecia ser seu próximo paciente. O ho-
180 Luiz Signates

mem cuja coluna vertebral tinha sido aberta com a serra, en-
tretanto, permanecia sozinho e tranquilo sobre uma padiola
no meio da rua. Alguns minutos depois, a esposa de Antônio
novamente apareceu com uma agulha e linha cirúrgica, para
fechar as costas do paciente e cobrir a área com bandagem.
Antes que eu pudesse me aproximar dele, vários espectadores
já lhe haviam perguntado o que tinha sentido. Ele não tinha
sentido dores, apenas um leve mal-estar quando a lâmina da
serra lhe penetrara as costas. Ao se despedir com os amigos
que o acompanharam na viagem, ele me deu seu endereço
para que o pudesse visitar depois, quando fosse a São Paulo
(Greenfield, 1999, p. 119-120).

O relato assombroso constitui um fenômeno em sua inteireza,


contudo, a construção de um conhecimento válido deve enfrentar o de-
safio do objeto que ele instaura: até que ponto a serra elétrica desafia a
ciência da religião? O copioso trabalho de Greenfield, tanto quanto os
avanços experimentais do prof. e psiquiatra Alexander Moreira Almei-
da, da UFJF, constituem interessantes pontos de partida, para o enfren-
tamento dessa questão. Ambos situam a constituição de fortes contextos
religiosos como operadores sugestivos de anulação da dor e do sofri-
mento, e até de tratamento e cura.
De minha parte, não me movimento no sentido de retornar os
estudos das curas espirituais ao terreno árido do experimentalismo po-
sitivista. A preocupação em saber se “os espíritos existem mesmo” ou se
tais vivências constituem intervenções “autênticas, do ponto de vista ci-
rúrgico ou médico”, não apenas escapa-me por desafiar-me em terrenos
científicos que não domino e sequer pretendo dominar, como parece-
me que não encaminha uma solução do problema ante o qual me coloco
– que é o problema específico da ciência da religião.
Os pesquisadores citados deixam claro em seus trabalhos que o
contexto religioso não cumpre função meramente decorativa na pro-
dução desses fenômenos, mas sim lhes é constitutivo – tanto é que são
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 181

muito raros os casos em que ocorram sem que essas ambiências lhes
precedam. Parece-nos legítimo indagar, portanto, até que ponto o reli-
gioso é pré-requisito para as curas espirituais. Estudiosos de viés cienti-
ficista talvez dissessem que não, mas a experiência social faz-nos pensar
seriamente que sim.

Conclusão inconclusiva: questões em ciências da religião

A vantagem de operarmos tais estudos a partir das ciências da


religião, e não das ciências médicas, é fazer com que a religiosidade
possa ser percebida em sua dignidade própria, longe da necessidade de
negá-la como fator interveniente ou, pior, como produtora de ilusão e
sugestibilidade.
Nesse sentido, tomando a cura espiritual como objeto das ciências
da religião, fazemos emergir algumas indagações, que me parecem ser,
senão novas ou inovadoras, certamente instigantes, curiosas:
- Que corpo é esse, que emerge das intervenções mediúnicas? Sa-
bemos que o espiritualismo moderno concebe o homem a partir de uma
pluralidade de corpos interpenetrados e em contínua interdependência,
o que decorre em várias e ousadas concepções sobre a vida e a morte
(esta, por exemplo, passa a ser considerada extinção de apenas um ou
alguns dos corpos disponíveis para a manifestação da vida). Essa plu-
ralidade, contudo, não se restringe às concepções dos corpos múltiplos
dos indivíduos, mas também remete à mediunidade como interpene-
tração de corpos de indivíduos múltiplos, assim como a reencarnação
consiste na ideia de transmigração de corpos múltiplos na composição
de identidades e subjetividades igualmente múltiplas, sem a quebra da
unidade do individual enquanto essência. A corporeidade espiritualista,
portanto, é complexa e plural, apesar das simplificações às vezes trazidas
pela dogmática espírita e suas assemelhadas.
- Dessa primeira acepção, decorre uma outra indagação: qual é
o conceito de saúde que emerge das intervenções mediúnicas? Nesse
sentido, impressionou-me sobremaneira como os discursos contempo-
182 Luiz Signates

râneos, compreensivos, das áreas médicas e, especialmente, das terapias


integrativas, se aproximam dos conteúdos religiosos que se evidenciam
nos meios espiritualistas (destaco, aqui, o holismo, que tem uma força
específica no centro-oeste brasileiro, mesmo quando decorre nas sim-
plificações da autoajuda e da autocura, não raro mais como bens de
mercado do que como relatos de emancipação espiritual autêntica; bem
como as tradições terapêuticas que se tornaram especialidades médicas,
como a homeopatia ou da acupuntura, cuja origem religiosa é indisfar-
çável; e ainda é digna de citação a rica relação das ciências médicas com
os saberes populares e étnicos, em situação de respeito e articulação, sob
a proteção e o financiamento de políticas estatais a partir do Ministério
da Saúde do governo brasileiro).
- Haverá um retorno da magia, como sugere o título deste painel,
nos episódios intervencionistas movimentados pelo espiritualismo? Eu
diria que não há retorno, mas permanência, dentro, contudo, de um sis-
tema interpretativo complexo, nos quais as noções de sagrado e profano
não se distinguem com nitidez, e, portanto, torna obsoleto o conceito de
“magia”, no sentido clássico, trazido por James Frazer (1982) ou por Me-
negazzo (1994). A noção de intervenção mediúnica não se dá à simples
concepção de intervenção do sagrado no profano, já que esse colégio
de crenças realiza um imbricamento desses sentidos, seja por conferir
sacralidade ao cotidiano, seja por relatar de modo profano os territórios
do sagrado. Espíritos, inclusive os que promovem cirurgias e curas, são,
nesses relatos, apenas seres humanos desencarnados, embora se lhes
atribua não raro qualidades dos santos ou dos demônios – mas jamais
ao ponto de arrancá-los do mundo ou inviabilizar-lhes as possibilidades
do comércio com os sentidos simbólicos dos homens.
- Até que ponto a efetividade desses fenômenos pode ser atribu-
ída à sua especificidade religiosa, sem decorrer em um tipo específico
de pensamento mágico, isto é, sem abandonar a pretensão científica de
nossos estudos? O problema da justaposição entre ciência e crença, ou
entre pesquisa e pertencimento religioso, é sem dúvida um desafio prá-
tico e metodológico que enfrentamos e enfrentaremos na formação em
As curas espirituais como problema da ciência das religiões 183

ciências da religião. O fato do espiritismo, especialmente, manter em


sua dogmática original a exigência – raramente levada às últimas conse-
quências, mas sempre afirmada discursivamente – de coerência confir-
matória entre a religião e a ciência, não raro tem trazido à formação em
ciências da religião adeptos angustiados pela preocupação de “compro-
var cientificamente” seus postulados doutrinários. Nesse ponto, a área
das ciências da religião oferece saídas no mínimo interessantes, que vão
desde a possibilidade do estudo legítimo das literaturas sagradas especí-
ficas, quanto a de adotarem uma visão equidistante e construtiva entre a
crença e a racionalidade, já que o religioso enquanto tal é percebido em
sua dignidade própria e autêntica, sendo exatamente esse o traço dife-
rencial da abordagem das ciências da religião. Assim, as curas espiritu-
ais constituem fenômenos autênticos, justamente por serem fenômenos
tipicamente religiosos, embora não saibamos mensurar sua efetividade
(as curas ocorrem de fato, sob o ponto de vista médico?), nem garantir
o acerto positivista dos sistemas descritivos que são trazidos pelas dog-
máticas espiritualistas (embora esses sistemas descritivos sejam levados
a sério pela pesquisa e profundamente respeitados enquanto tais).
Em outras palavras, a dialogicidade que reivindicamos é o que
funda a ciência da religião, como campo de conhecimento que a torna
possível. E é esse o caminho que temos trilhado, com moderado entu-
siasmo e para o qual convidamos os senhores à interlocução.

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185

Terapias integrativas: a abordagem


transpessoal

Irene Dias de Oliveira


 

1. Psicologia transpessoal: uma riqueza invisibilizada e não reconhe-


cida

E stamos num período em que se exige sempre mais a reorganização


das ciências. No âmbito das ciências, em geral, e também no âmbito
das ciências da saúde multiplicam-se as exigências de objetividade, de ri-
gor científico. Transdisciplinaridade e interdisciplinaridade são critérios
exigidos e postulados pela academia. A transversalidade, a aproximação
das áreas de conhecimento, o alargamento das fronteiras e a pluralidade
são expressões muito ouvidas e presentes no cotidiano das universida-
des. Esse cenário de reorganização do conhecimento não é monolítico e
nem harmônico comporta sempre uma dinâmica tensional e conflitual,
desconfianças, lutas para manter antigos discursos de autoridade e de-
marcar poder. Não são raras as acusações de não-cientificidade, de falta
de rigor e de ausência de comprovação científica (ALMEIDA, 2010).
Também na área da saúde estas acusações são constantes. Existe certa
resistência em reconhecer muitas das abordagens terapêuticas que são
consideradas não confiável e não legítimas. Sabe-se, porém, que as ci-
ências também lidam com os princípios da incerteza, da ambiguidade,
do paradoxo, da simultaneidade, parcialidade e emergência. Estes prin-
cípios hoje problematizam as noções de certeza e verdade tão caras ao
‘grande paradigma do Ocidente (ALMEIDA, 2010). A

legitimidade de qualquer ideia da mais sofisticada à mais


singela supõe e requer diálogo, refratabilidade, proximidade
186 Irene Dias de Oliveira

entre concepções opostas, escolhas, convencimento e recusa;


requer também uma atitude de permanente observação dos
fenômenos que supomos explicados para sempre ( ALMEI-
DA, 2010, p. 32-33).

Hoje se entende que o conhecimento estabeleceu uma separação


entre cultos e incultos, competentes e incompetenes, sábios e ignoran-
tes. Aqueles que são considerados pela ‘ciência’ ‘analfabetos’ dispõem
de um ‘extraordinário capital cultural’ que consiste no conhecimento
dos animais, das plantas, dos remédios e de competências técnicas para
fabricar os seus instrumentos. Infelizmente não nos damos conta que
na maioria das vezes o conhecimento técnico e científico serviu para
“massacrar esses seres humanos superiores e suas civilizações milena-
res” (MORIN, 1998, p. 132). De outro lado devemos ter presente que
a ciência nascida no século XVII sob a designação de ciências moder-
nas, vai, aos poucos se separando de outros saberes como os saberes
milenares que encontravam-se mais próximos à natureza e distantes
do circuito de disseminação do conhecimento científico. Tais saberes
tradicionais foram, em nome da ciência, impedidos de chegar às uni-
versidade e escolas. Se considerarmos o conjunto de saberes constru-
ídos pela humanidade pode-se afirmar que o conhecimento científico
é apenas a parte visível de um iceberg (ALMEIDA, 2010, p. 35). Não
obstante as diferenças, entre o que é científico e não científico, deve-se
lembrar que toda forma de conhecimento é um patrimônio comum,
é um domínio universal mesmo que esse universal se expresse por
objetivações diversas.

Trata-se de um patrimônio comum a todos os indivíduos,


mesmo que em todas as sociedades algumas pessoas ou gru-
pos se destaquem pela maestria em sistematizar, reorganizar
e lapidar as representações que criamos sobre o mundo. Esses
criadores e lapidadores de representações recebem denomi-
nações distintas nas diversas sociedades e tempos históricos:
Terapias integrativas: a abordagem transpessoal 187

xamãs, pajés, curandeiras, conselho de anciãos, sacerdotes,


cientistas. Em algumas culturas eles estão mais próximos do
conjunto da sociedade; em outras, mais distantes do cotidia-
no da população ( ALMEIDA, 2010, p. 49).

São duas faces de uma mesma realidade. Ambas possuem seus


‘intelectuais’. Estes apenas privilegiam estratégias cognitivas, domínio
de referências, modelos mentais condicionados por suas experiências
de vida, métodos mais analíticos ou mais sistêmicos e disseminam seus
conhecimentos pela escrita e/ou através de suas experiências narradas
e gravadas em seus corpos e em suas memórias. Nas duas experiências
e concepção de vida existe uma característica comum ao pensamento
humano: a aptidão mito-lógica (ALMEIDA, 2010). Ambas se comple-
mentam. Não existe oposição. Ambas são válidas. Nelas tanto o sím-
bólico quanto o racional se implicam, e se interlaçam. De acordo com
Bartolomé Ruiz (2004) o mito (simbólico) e o logos (racional) estão co
-referidos e se integram num processo que é ao mesmo tempo integra-
dor e excludente. O ‘logos’ tem a pretensão de denotar objetivamente o
mundo que analisa, mas usa inevitavelmente elementos simbólicos para
conotar os sentidos que produz. Isto é, as construções míticas podem
e devem ser desconstruídas pela racionalidade. Mas o simbolismo não
pode ser anulado ou superado pelo logos, pois está implicado nele. Um
sentido lógico envolve uma construção simbólica. Uma teoria racional e
mesmo científica constitui uma forma simbólica de explicar a realidade,
sendo que toda forma simbólica remete à dimensão mítica do huma-
no. Portanto o logos não supera o simbolismo mitificador, nem a racio-
nalidade desentranha de forma definitiva todos os sentidos simbólicos
(BARTOLOMÉ RUIZ, 2004).
Racionalidade e símbolo estão interligados no humano na pro-
dução de significações sociais. Separar estas duas dimensões significa
excluir grande parte da espécie humana dos bens culturais e patrimô-
nios comuns. Por isso todas as épocas têm seus sábios, seus intelectuais
e seus terapeutas, mesmo que nem todas as pessoas que produziram
188 Irene Dias de Oliveira

conhecimentos relevantes nas diversas culturas tenham tido seus nomes


divulgados e conhecidos (ALMEIDA, 2010).
Mauro Grün (1996) nos esclarece que o desenvolvimento cego e
descontrolado da tecnociência e que a agonia planetária provocadora de
tantas rupturas decorrem de uma associação de várias correntes de pen-
samento da cultura ocidental e vão encontrar sua máxima expressão no
paradigma cartesiano cujas implicações éticas dizem respeito a si mes-
mo, ao outro e à natureza. Este paradigma se baseia na lógica racional,
do progresso a qualquer custo e do tempo linear. Esta mudança teórica
e prática da relação homem/natureza alteraram também a relação ética
e teórica do homem consigo mesmo e com os outros, com a natureza, e
com o sagrado. O dualismo entre matéria e espírito teve profunda reper-
cussão no pensamento ocidental com implicações nas diferentes áreas
do conhecimento. “O exagerado culto ao intelecto, em detrimento das
dimensões do coração e do espírito, vem gerando profundas patologias
dissociativas e de grande significação para a humanidade” (MORAES,
2003, p. 37). Embora a visão cartesiana esteja sendo questionada deve-
mos reconhecer sua importância no que diz respeito ao desenvolvimen-
to científico e tecnológico; pelo surgimento de novos conhecimentos e
áreas do saber. Entretanto os limites da abordagem cartesiana residem
no fato de se considerar a explicação mais completa e a abordagem mais
válida do conhecimento e por se fundamentar apenas na razão para va-
lorizar os aspectos externos das experiências, ignorando as vivências in-
ternas e as emoções dos indivíduos. Segundo Moraes esta abordagem
cartesiana

insensível aos valores, e método reducionista foi se enraizan-


do em nossa cultura levou-nos a um processo de alienação e
a uma crise planetária de abrangência multidimensional, tra-
duzidos por processo de fragmentação, atomização e desvin-
culação. Consequentemente, a cultura foi ficando divididos,
os valores, cada vez mais individualizados, e os estilos de vida,
mais patológicos (MORAES, 2003, p. 43).
Terapias integrativas: a abordagem transpessoal 189

Esta situação apresentada pela autora é uma das causas da des-


truição do meio ambiente, da saúde e da diáspora da pessoa de si mes-
ma. Weil (2003) diria que se trata da normose. Normose é compre-
endida como o conjunto de normas, paradigmas, valores, estereótipos,
hábitos de pensar ou de agir que provocam sofrimento, dor e morte.
Segundo Weil (2003) exemplos de normose podem ser o do culto ao
corpo, as ideologias que levam às guerras, à obsessão exacerbada pela
moda e pelo consumismo incontrolável. Viver sob a normose é viver de
acordo com regras e/ou paradigmas que não nos fazem bem. É algo pa-
togênico e letal, executado pelos atores sem que tenham consciência de
sua natureza patológica. O ser humano desajustado cria uma sociedade
desajustada que destrói a natureza com seu consumismo, expressan-
do um apego coletivo. Polui a matéria, destrói ecossistemas e a própria
vida, intervindo inconsequentemente na informação e na programação
nuclear e genética, ou seja, na programação do próprio universo. Esse
tipo de normose é reforçado pela pressão da mídia, da publicidade e da
propaganda e tudo isso é reforçado pela normose da competitividade
alimentado pelo sistema educativo, onde, desde cedo, as crianças são
educadas a competir (WEIL, 2003). Elas devem tirar as melhores notas,
ser os melhores da sala, os melhores do colégio, para disputar vagas nas
melhores universidades e os melhores empregos. Desta forma, percebe-
se que, em geral todo o processo ‘formativo’ e ‘educativo’ nada mais é
que um longo e intenso processo de competição em que, na maioria das
vezes, não se poupam os mecanismos anti-éticos para conseguir o que se
quer e chegar onde se pretende. Diante desta normose o mundo se torna
hegemônico e totalizante, guiado por uma lógica, perversa, excludente,
preguiçosa e indolente (SOUSA SANTOS, 2012) e patológica. Por isso o
mundo ocidental, homogeneizante se fecha às inúmeras possibilidades
que outras experiências e outras realidades culturais, religiosas, terapêu-
ticas, históricas e sociais podem oferecer. Esta riqueza torna-se ‘invisí-
vel’ e é ‘desperdiçada’ porque não reconhecida, esquecida e não dita.
Tais atitudes podem nos levar ao ‘desperdício’ (SOUSA SANTOS, 2012)
190 Irene Dias de Oliveira

das experiências de outros povos, de outras culturas e de outras áreas


do saber que podem contribuir para uma compreensão diferenciada da
realidade e da pessoa e abrir-se para a inesgotável diversidade epistemo-
lógica do mundo rompendo com as resistências que ainda persistem. E
assim ocorre com a maioria dos médicos e profissionais da saúde que
não admitem e não reconhecem a riqueza e a contribuição que as tera-
pias integrativas podem trazer às pessoas e à sociedade.
A Psicologia Transpessoal e outras formas de saber fazem parte
do patrimônio da humanidade e como tal podem contribuir com um
novo modo de ser e estar no mundo de maneira plena e integradora e se
constituir em um espaço transformador cuja prioridade seja o despertar
para uma consciência plena de si e que favoreça a busca por novas for-
mas de solidariedade e de convivência na sociedade e ao mesmo tempo
desenvolver uma consciência ética, social, um sentimento de compai-
xão universal e uma atitude crítica perante a normose que nos destrói
e nos aflige. É diante deste cenário que a Psicologia Transpessoal vem
se colocando e nos levando a refletir sobre a “insuficiência” de outros
métodos psicoterapêuticos. Esta abordagem psicoterapêutica não raras
vezes é desconhecida e invisibilizada e por isso mesmo ‘desperdiçada’ e
impedida de contribuir com a riqueza de suas experiências e possibili-
dades de encantar e re-encantar a pessoa e o mundo.

2. Encantar-se para encantar o mundo

A perda da espiritualidade em nossas sociedades tem-nos empo-


brecido e alienado. Segundo Grof (2000) a ausência de valores espiritu-
ais leva a estratégias de vida que ameaçam a continuidade de vida em
nosso planeta e por isso faz-se necessário trazer a espiritualidade para a
nossa vida individual e coletiva. Com os novos estudos a física tem de-
monstrado a interdependência entre mente e matéria e como ambas são
manifestações da energia. A nova física consegue demonstrar como é
possível um diálogo entre ciência e espiritualidades. Tanto a física como
Terapias integrativas: a abordagem transpessoal 191

a mística das tradições oriental e ocidental mostram que o mundo ex-


terior e interior são dois lados de um mesmo tecido, no qual todas as
forças e eventos, todas as formas de consciência e todos os objetos estão
entrelaçados numa rede inseparável de relações interdependentes. De-
monstram também a existência de uma unidade essencial entre todas as
coisas e todos os eventos, e que o indivíduo e sua consciência são partes
integrantes dessa unidade, sendo a realidade externa idêntica à realida-
de interna (MORAES, 2003, p.108).
A abordagem transpessoal tem como principal objetivo a reinte-
gração da pessoa com aquilo que é mais puro e autêntico: sua essência. A
transpessoal é uma abordagem terapêutica cuja preocupação é trabalhar
todas as experiências humanas, os estados ordinários da consciência
como também o os assim chamados ‘estados alterados de consciência’
(GROFF, 2000). Esta abordagem se distingue pelo respeito e acolhimen-
to profundo às diferenças; pela amorosidade e pela paciência no sentido
de permitir que cada um possa florescer de acordo com o seu próprio
tempo. Há um trabalho integrado que visa a dignidade humana, semear
o amor no coração das pessoas feridas, mal amadas, maltratadas e ex-
ploradas. Procura-se com que a pessoa tome consciência de si mesma,
de sua realidade mais profunda e que possa amar a si mesma para em
seguida amar o outro.
É a abordagem do CUIDADO. Cuidar de si para cuidar do outro,
da natureza. Sem este cuidado para consigo não se chega às profunde-
zas da alma. Como chegar às causas da dor e do sofrimento se estamos
distantes, fragmentados, dispersos e em diáspora de nosso próprio cor-
po? Como chegar à essência se não entendermos que esta foi abafada,
negada, distorcida (ex.: sou bom = essência; gosto de você para que você
goste de mim = essência deturpada/distorcida)? Atrás da bondade pode
existir o medo de não possuir o afeto do outro para não ser mais ferida
e humilhada. O medo pode gerar crenças e tais crenças vão nos aprisio-
nar, nos limitar e nos ‘encouraçar’.
O trabalho com o corpo como um dos métodos adotado pela
transpessoal possibilita à pessoa alcançar a sua essência. Pois o corpo
192 Irene Dias de Oliveira

é a matriz do Self. O corpo é a dimensão que nos integra ao univer-


so, é consciência, é energia, é microcosmo. Aprende-se na transpessoal
que quanto mais vamos para dentro de nós mais vamos ao encontro
do outro e da outra e do próprio universo pois tudo está ligado a tudo.
Não existe transformação do outro e da outra se esta transformação não
passa pela experiência pessoal de cada um. Este não é um processo fácil
e nem instantâneo. De um lado exige uma grande amorosidade inter-
ligada a uma espiritualidade profunda e muita habilidade do terapeuta
para poder identificar as atitudes de sabotagem do cliente com suas es-
truturas de defesa.
O terapeuta transpessoal acredita que

o amor, como a empatia, como o cuidar do outro e da na-


tureza, não é uma construção psíquica ou uma consciência
mental. É fundamentalmente um estado sensório-motor
que nos habita no nível mais profundo e nos é transmitido
por nossa mãe: nossa mãe biológica e mãe-Natureza. Desta
conjunção maternal nasce em nós uma multidão de cons-
telações sensório-emocionais sem idade, nascidas de poei-
ras de estrelas que viraram átomos, células, coração, ventre,
cérebro, memória implícita, braço estendido para o outro.
O terapeuta (...) através da sua humanidade e de sua presença
universal traz, à consciência física dos seus pacientes, esta-
dos de ser sensoriais e emocionais que são matrizes de vida.
Quando o organismo pulsa, vibra, torna-se luminoso, são bi-
lhões de fótons que dele se desprendem e iluminam por sua
vez os outros, atravessando camadas concêntricas, da mais
próxima onde residem os seus, à mais longínqua onde resi-
dem os ausentes (TONELLA, 2008, s/p).

Parece que a falha de algumas terapias convencionais está exa-


tamente em não assumir a pessoa em sua totalidade. Preocupadas em
resolver os conflitos emocionais esquece-se do corpo e do espírito.
Terapias integrativas: a abordagem transpessoal 193

Por isso, muitas vezes, embora várias abordagens terapêuticas tenham


dado algum alívio; tenham ajudado a pessoa a se conhecer melhor, não
conseguem produzir maiores mudanças na personalidade. Explorar a
si mesmo profundamente através de vivências, dinâmicas com o cor-
po e o trabalho terapêutico resulta num processo de conscientização
e transformação das forças destrutivas da psique humana. Esta toma-
da de consciência é o primeiro passo para que a ‘couraça’, aos poucos,
vá se fragmentando e dando espaço ao fluxo vital até então estagnado.
Experiências transpessoais de morte e renascimento e unicidade com
outra pessoa, com a natureza, com todo o universo e com a consciên-
cia cósmica pode drasticamente reduzir o nível de agressão, aumentar a
compaixão e tolerância levando a pessoa a profundas transformações e
intensa busca interior.

3. Psicologia transpessoal e a busca do elo perdido

A experiência transpessoal leva a pessoa a romper com a sua


couraça que, se de um lado, foi útil porque lhe dava proteção, de outro,
não permitia viver de acordo com a sua essência. Uma vez rompida a
couraça faz-se necessário juntar os ‘cacos’, cada pequeno fragmento
e recompor-se em busca do elo perdido. As mudanças são visíveis.
Acontecem no dia a dia da pessoa: a serenidade emerge no enfren-
tamento do cotidiano, a ansiedade doentia desaparece; há uma pos-
tura diferente diante da vida e dos acontecimentos no sentido de se
reconhecer que não somos vítimas, mas que somos responsáveis por
nossas escolhas e que por isso mesmo nada acontece por acaso. Este
reconhecimento e/ou consciência é extremamente importante pois
nos leva a estarmos mais atentos e conscientes de nossas atitudes em
relação a nós próprios e aos outros. O mais importante é que esta
mudança ocorre de dentro para fora e por isso ela é transformadora e
transformante. A transformação da pessoa é o ponto alto da transpes-
soal. A pessoa volta a adquirir o encanto pela vida e pelas pessoas: se
reconecta consigo mesma, com os outros e a natureza. Ela se torna re-
194 Irene Dias de Oliveira

ceptiva, acolhedora e amorosa, pois está se aproximando de sua essên-


cia. Este aproximar-se, claro, é uma busca contínua e constante. Daí
a necessidade de uma espiritualidade que dê suporte a esta profunda
experiência pessoal. Pois não há integração plena se a dimensão mais
profunda da pessoa não for considerada.
A essência da terapia transpessoal está na energia e na quali-
dade do amor que é manifestado. A psicologia transpessoal procura
estabelecer uma ligação consciente e estimuladora de crescimento en-
tre o cliente e a experiência transpessoal que inclui a inteireza do ser
que pode ser encontrada no coletivo ou no transcendente/espiritual.
A psicologia transpessoal também acredita que forças maiores pos-
sibilitam a cura e o desenvolvimento em todo o indivíduo e que este
pode se abrir para estas forças e potencializar esta tendência (HUT-
TON; ALTO, 1994) e assim encontrar o elo que dá sentido à sua vida.
Neste sentido, a Psicologia Transpessoal tem contribuído muito para
colocar as bases de uma nova forma de ver o mundo demonstrando
a interconexão de tudo com todos e a ligação indestrutível entre rea-
lidade e observador; não há realidade em si, desconectada da mente
que pensa. O universo é consciente. Realidade, matéria e mente são
dimensões de uma mesma realidade complexa (BOFF, 2003, p. 24). A
Psicologia Transpessoal assume o paradigma HOLISTICO e devolve
ao ser humano o sentimento de pertença à família humana, à terra
e ao universo. Surge, portanto um novo paradigma de religação, de
re-encantamento por si mesmo, pela natureza, para com a vida, para
com os outros e para com o Planeta. Instaura-se um novo modo de
ser e estar no mundo. Muitos são, portanto aqueles que começam a
despertar. Sente-se a urgência de um novo ethos que nos permita viver
em harmonia conosco, com a natureza e com a Terra. E a abordagem
transpessoal está contribuindo com este novo ethos que permite a re
-ligação com a essência última e original do ser.
Terapias integrativas: a abordagem transpessoal 195

Referências

ALMEIDA, Maria conceição de. Complexidade, saberes científicos, saberes da tradi-


ção. São Paulo. Livraria da Física, 2010.
BARTOLOMÉ RUIZ, Castor. Os paradoxos do imaginário. São Leopoldo: Unisi-
nos, 2004.
BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante,
2004.
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energia humana. São Paulo: Pensamento, 2006.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas
vivos. São Paulo: Cultrix, 1996.
CAPRA, Fritjof. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. São Pau-
lo: Cultrix, 2002.
CALEGARI, Dimas. Da teoria do corpo ao coração: uma visão do homem a partir
da energia cósmica. São Paulo: Sumus, 2001.
GRUN, Mauro. Ética e educação ambiental: a conexão necessária. CURSO DE ES-
PECIALIZAÇÃO EM EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA. REDE EAD/SENAC, 2006.
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dos outros profissionais da psicologia: um estudo empírico. The Journal of Trans-
personal Psychology, vol. 26, nº 2, p. 139-174, 1994. Texto polifotocopiado.
LOWEN, Alexander. O corpo em terapia. São Paulo: Summus, 1977
LOWEN, Alexander. Bioenergética. São Paulo: Summus ,1982
MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. São Paulo: Papi-
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MORIN, Edgar. A decadência do futuro e a construção do presente. Florianópolis:
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MORIN, Edgar. Ciência comcConsciência. São Paulo: Bertrand Brasil, 1996.
NUNES, Marise Eterna. As defesas de caráter a partir da percepção histórica e ener-
gética: estratégia de defesa rígida. Goiânia: Instituto Serra da Portaria, 2006.
PIERRAKOS, Eva. O caminho da autotransformação. São Paulo: Cultrix, 2007.
196 Irene Dias de Oliveira

PIERRAKOS, Jonh C., Energética da Essência. São Paulo: Pensamento, 1987.


WEIL, Pierre; CREMA Roberto; LELOUP, Jean Yves. Normose: a patologia da nor-
malidade. São Paulo: Verus, 2003.
TONELLA, Guy. Ecologia do corpo, as estrelas, o homem e o vento. II Congresso La-
tino-Americano de Análise Bioenergética: ecologia do corpo, consciência e saúde,
30 de abril -03 de maio. Texto polifotocopiado. Recife, 2008.
197

Religiosidade e espiritualidade na relação


médico paciente

Luciana Leite Pineli Simões

“O médico deve dar exemplo de verdadeiro ecumenismo, res-


peitando as crenças e descrenças de seus pacientes para assisti
-los da maneira mais ampla e integral possível “
Marlene Nobre, apresentação da versão traduzida do livro
“Espiritualidade no cuidado com o paciente “ de Harold G.
Koenig

A maioria dos médicos que hoje atuam no mercado de trabalho bra-


sileiro foram formados em escolas de medicina cujo paradigma era
o da Medicina Científica ou Flexneriana. O relatório Flexner, elaborado
em 1910 pelo educador Abraham Flexner, reforçou a luta pelo ideário
científico da medicina em um contexto relacionado, dentre outros, à
revolução industrial, à urbanização e ao pensamento positivista do final
do século XVIII e início do século XIX. Esse relatório, norteador da for-
mação médica mundial, foi um contraponto ao empirismo terapêutico
e à falta de regulamentação científica das escolas médicas americanas.
A medicina flexneriana ou modelo biomédico, estruturou-se em con-
ceitos como o mecanicismo, biologicismo, individualismo, especia-
lização, exclusão de práticas alternativas, tecnificação do ato médico,
ênfase à medicina curativa e nosocentrismo. Muitos críticos acusam o
relatório flexner de levar a desvalorização do humanismo no contexto
da prática médica, e é certo que Flexner pode ter deixado escapar esse
valor. A importância concedida aos aspectos técnicos da profissão, con-
cebidos como de máxima prioridade à época, relegou a segundo plano
a preocupação com a sensibilidade humana que já era suficientemente
valorizada naquele momento histórico. Muitas vezes, essa sensibilidade
198 Luciana Leite Pineli Simões

estava ligada aos conceitos religiosos e culturais, às crenças e práticas


ritualísticas. Em decorrência dessa diretriz, durante praticamente um
século, vivenciamos o afastamento da fé e da medicina hegemônica. No
Brasil, esse foi o modelo inspirador dos projetos pedagógicos das esco-
las médicas até o ano de 2001, ano em que o MEC divulgou as Diretri-
zes Curriculares Nacionais (DCN) para o curso de Medicina depois de
10 anos de intensas discussões. Tais diretrizes foram responsáveis por
uma transformação objetiva e definitiva no ensino médico brasileiro,
propiciando, por meio da orientação curricular, o desenvolvimento de
egressos autônomos em relação à sua formação, pautados na integrali-
dade do cuidado. O novo modelo, chamado de biopsicossocial, trouxe a
integralidade do ser e das comunidades como foco da atenção da prática
médica. Em uma visão otimista, essa nova geração de médicos tem o
potencial de combinar os imensos avanços tecnológicos do último sé-
culo com uma relação médico paciente baseada em princípios éticos e
humanísticos. Novamente, a fé, a crença, encontra lugar junto à medici-
na, porém em novo cenário político, cultural e social e com a moldura
da medicina baseada em evidências.
E o que a ciência de raízes positivistas (ou não) pode contribuir
para que nos convençamos da importância da abordagem da religiosi-
dade e da espiritualidade na prática médica? Nos últimos anos vivencia-
mos uma progressiva publicação de artigos científicos sobre o assunto.
Se fizermos uma busca simples no PubMed, um dos principais motores
de busca à base de dados MEDLINE utilizado por estudantes da área da
saúde, com as palavras “espiritualidade”, “religião” e “saúde”, notaremos
um aumento de 64 artigos de 1986/1995, para 1121 de 1996/2005 e para
2966 de 2006/2015. Um aumento indiscutivelmente significativo.
Um dos principais autores de livros e artigos na área tem sido
o médico americano Harold G. Koenig. Um de seus livros, intitula-
do “Espiritualidade no cuidado com o paciente”, tem sido usado por
alguns cursos médicos brasileiros como referência para disciplinas re-
lacionadas ao tema. Neste livro, o autor didaticamente nos apresenta
cinco grandes motivos para que abordemos questões de religiosidade
Religiosidade e espiritualidade na relação médico paciente 199

e espiritualidade com nossos pacientes. O primeiro motivo seria que


nossos pacientes são, em grande maioria, pessoas religiosas e a religião,
de alguma forma, ajuda-os a lidar com vários aspectos da vida. Ape-
sar do livro ser americano, essa é também uma realidade brasileira. O
artigo “A religiosidade e a medicina no Brasil: do período colonial aos
tempos do SUS” de Bastos e Griffoni, descreve a importante marca da
colonização portuguesa nas ações populares de cura praticadas pelos
primeiros habitantes do Brasil e as concepções mágico-religiosas das
curas praticadas por índios e afro-brasileiros. A doença e a cura possuí-
am significados específicos, baseados no sincretismo religioso do povo.
Apesar das intensas mudanças no último século, a religião não deixou
de ser uma marca do povo brasileiro, evidenciada em suas práticas in-
dividuais ou coletivas.
O segundo motivo para abordar questões religiosas com o pacien-
te, apontado por Koenig, diz respeito à influência exercida pela religião
nas decisões médicas, especialmente quando o paciente está gravemente
enfermo. Um exemplo clássico é o da realidade dos Testemunhas de
Jeová para quem a transfusão de sangue é proibida e de onde surgem
tantas polêmicas sobre direitos, deveres, autonomia, respeito, ética e
jurisprudência. O artigo “Coping(enfrentamento) religioso /espiritual”,
publicado por Panzini e Bandeira relata que o coping religioso-espiri-
tual (CRE) é especialmente usado em situações de crise como doenças,
envelhecimento, morte, perda de entes queridos e guerras. Neste artigo,
os autores classificam o CRE como positivo quando a pessoa se utiliza
da religiosidade ou espiritualidade para a busca do amor, de ajuda, de
conforto em literatura religiosa e da proteção de Deus; quando busca
perdoar e ser perdoado, quando ora pelo bem estar e quando redefine o
agente agressor como benéfico. São consideradas como CRE negativo,
atitudes como questionar a existência de Deus, delegar a Deus a solução
dos problemas, desiludir-se em relação a membros da instituição reli-
giosa e redefinir a doença ou o estressor como punição ou forças do mal.
Esse conhecimento é importante ao médico, para que possa trabalhar
em prol do CRE positivo, evitando o CRE negativo.
200 Luciana Leite Pineli Simões

Dos inúmeros trabalhos publicados na literatura científica sobre


o tema a maioria estabelece uma ligação entre religiosidade e espiritu-
alidade e saúde física e/ou mental. Esse é o terceiro motivo abordado
por Koenig para justificar a abordagem do tema com os pacientes. Dois
grandes livros também do mesmo autor, intitulados “Handbook of Reli-
gion and Health” e “Handbook of Religion and Mental Health” conden-
sam muitos dos artigos publicados até então, provando, irrecusavelmen-
te, o papel da religiosidade e da espiritualidade na saúde física e mental
das pessoas. As abordagem são múltiplas: epidemiológicas, demográfi-
cas, comportamentais, bioquímicas, laboratoriais, estudos de imagem,
etc. No Brasil, existem vários grupos de estudo publicando extenso ma-
terial de qualidade, fruto de pesquisas bem desenhadas, tanto em saúde
física, quanto em saúde mental. Dentre os pesquisadores muitos deles
são ligados às associações médico-espíritas cujo paradigma coincide
com as necessidades atuais de respeito e apoio às crenças religiosas ou
espirituais das pessoas.
O quarto motivo pelo qual os médicos devem abordar religião e
espiritualidade com seus paciente é justamente porque o paciente assim
o deseja. Muitos estudos tem mostrado que essa temática é desejada
pelo paciente que quer compartilhar suas crenças com seu médico e, em
alguns casos, indicam até que seria útil ter uma oportunidade para orar
com seu médico.
Por fim, Koenig elenca como quinto motivo, a raiz histórica entre
religião e assistência a saúde, não sendo de forma alguma uma novidade
essa abordagem. Se houve, no último século, um distanciamento entre
saúde e religião, é tendência atual reincorporar a visão sócio-antropoló-
gica da pessoa, incluindo religiosidade e espiritualidade nas concepções
relativas ao processo saúde-doença, fazendo ressurgir antigos procedi-
mentos aliados agora, aos recursos tecnológicos modernos.
Uma vez que estejamos convencidos da importância e da ne-
cessidade da abordagem de questões ligadas à fé do paciente, res-
ta-nos questionar como se deve fazê-lo. O trabalho inicial deve ser
a realização de uma história espiritual. Assim como todo médico é
Religiosidade e espiritualidade na relação médico paciente 201

capacitado para fazer a anamnese e exame físico para investigar uma


“queixa principal”, a inclusão da anamnese espiritual como parte
da história clínica qualifica ainda mais a relação médico paciente
além de contribuir com resultados objetivos em termos do proces-
so do cuidado. Várias técnicas tem sido descritas para a realização
da anamnese espiritual. Uma delas de destaca pela simplicidade e
aplicabilidade. Em 2001, Anandarajah e Hight publicaram na revista
American Family Physician o questionário HOPE como uma ferra-
menta prática de avaliação espiritual. Os autores sugerem que a his-
tória espiritual aborde quatro áreas que podem ser lembradas pela
sigla HOPE (esperança em inglês):
H: Fontes de Esperança (HOPE), conforto, paz, amor e conexão.
O: Religião Organizada
P: Espiritualidade Pessoal e Práticas
E: Efeitos nos cuidados médicos e fim da vida (End-of-life issues)

Para fins práticos, os autores elaboraram alguns questionamentos


dentro dessas quatro áreas:
H: Quais são as suas fontes de esperança, conforto e Paz? Ao que
você se apega em tempos difíceis? O que o sustenta e o faz seguir adian-
te?
O: Você faz parte de uma comunidade religiosa ou espiritual? Ela
o ajuda? Como? Em quais aspectos a religião o ajuda e em quais não o
ajuda muito?
P: Você tem alguma crença espiritual que é independente de sua
religião organizada? Você acredita em Deus? Que tipo de relação você
tem com Deus? Quais aspectos de sua espiritualidade ou prática espiri-
tual você acha que são mais úteis à sua personalidade?
E: Ficar doente afetou sua habilidade de fazer coisas que o ajudam
espiritualmente? Como médico, há algo que eu possa fazer para ajudar
você a acessar os recursos que geralmente o apoiam? Você está preocu-
pado com algum conflito entre suas crenças e os cuidados médicos? Há
alguma prática ou restrição que eu deveria saber sobre seu tratamento
202 Luciana Leite Pineli Simões

médico? Se o paciente está morrendo: Como suas crenças afetam o tipo


de cuidado que você quer ter nos próximos dias (semanas, meses)?
Essa ferramenta pode ser aplicada rapidamente, elucida conteú-
dos importantes, tem foco centrado no paciente e é de fácil memoriza-
ção; além disso, foi publicada em revista de credibilidade.
Uma vez identificada a necessidade espiritual do paciente deve-
se oferecer encaminhamentos adequados, como por exemplo, solicitar
apoio de capelães ou voluntários religiosos, favorecer leituras religiosas
e um ambiente propício para práticas religiosas, como uma capela.
É apropriado para os médicos apoiar e encorajar crenças religio-
sas que tragam conforto ao paciente e sobretudo é importante saber que,
às vezes, escutar com respeito e atenção é tudo o que é necessário.

REFERÊNCIAS:

KOENIG, H. K. Espiritualidade no cuidado com o paciente. FE Editora Jornalística


LTDA. São Paulo. 2 edição. 2012.
BASTOS, V. R.; GIFFONI, F. A. A religiosidade e a medicina no Brasil: do período
colonial aos tempos do SUS. Revista de Humanidades – UFRN, 9 (24), 2008.
PANZINI, R. G.; BANDEIRA, D. R. Coping (enfrentamento) religioso/ espiritual.
Revista de Psiquiatria Clínica, 34 – suppl 1, 126-135, 2007.
ANANDARAJAH, G., Hight, E. Spirituality and Medical Practive: Using the HOPE
questions as a practical Tool for Spiritual Assessment. American Family Physicion,
63 (1), 2001.
203

Autores
Dr. ADEMAR ARTHUR CHIORO DOS REIS
Graduado em Medicina pela Fundação Educacional Serra dos Ór-
gãos (1986), com Residência em Medicina Preventiva e Social pela UNESP
(1988). Mestre em Saúde Coletiva pela Unicamp (2001). Doutor em Ciên-
cias pelo Programa de Saúde Coletiva da UNIFESP (2011). Professor-ad-
junto do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Me-
dicina/UNIFESP (área Política, Planejamento e Gestão em Saúde). Profes-
sor de Saúde Coletiva da Faculdade de Fisioterapia (Unisanta) e da Faculda-
de de Medicina (UNIMES), ambas de Santos-SP. Foi Secretário Municipal
de Saúde de São Vicente-SP (1993-1996) e de São Bernardo do Campo-SP
(2009-2014). Foi Presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saú-
de do Estado de São Paulo (Cosems-SP) por três mandatos. Foi Diretor
do Departamento de Atenção Especializada do Ministério da Saúde (2003-
2005) e Ministro da Saúde (2014-2015). Professor-adjunto do Departamen-
to de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina – Unifesp.

Dra. CAROLINA TELES LEMOS


Doutora em Ciências Sociais e da Religião pela Universidade Me-
todista de São Paulo (UMESP), graduada em Pedagogía e Psicologia.
É uma das Fundadoras do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e
Professora Titular.

Dr. CLÓVIS ECCO


Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás, Graduação em Fi-
losofia e Teologia e Especialização em Psicologia. Atualmente é Coordena-
dor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências Sociais e da
Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Professor Titular de
Pós-Graduação (Stricto Sensu) da PUC Goiás, possui pesquisas com livros
e artigos científicos publicados nas áreas de gênero e masculidade; religião
saúde e ateismos contemporâneos. E-mail clovisecco@uol.com.br
204

Dr. EDUARDO GUSMÃO DE QUADROS


Possui a graduação em Historia pela Universidade Católica do
Salvador (1992), é o bacharel em Teologia pelo Instituto Teológico da
Bahia (1996), Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Me-
todista de São Paulo (1998), Doutor em História pela Universidade de
Brasília (2005). É professor efetivo da Pontifícia Universidade Católica
de Goiás e da Universidade Estadual de Goiás - Campus Cora Coralina.
Possui pesquisas em História do Cristianismo e em Teoria da História.
Membro do CEHILA e da ABHR.

Dra. IRENE DIAS DE OLIVEIRA


É teóloga pela Facoltá Teológica dell’Itália Meridionale; gradua-
da em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás; espe-
cialista em Educação Ambiental;   Educação a Distância pelo SENAC
e em Psicologia Transpessoal pelo Instituto Serra Da Portaria (GO). É
professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências
da Religião da PUC Goiás onde desenvolve pesquisas sobre Pluralismo
Religioso, Etnicidade e Multiculturalismo e sobre Religião e Violência.
Possui livros e artigos sobre os temas de suas pesquisas.

Dra. JAPCY MARGARITA QUICENO


Psicóloga, Universidad de San Buenaventura -USB- Medellín.
Doctora en Psicología Clínica y de la Salud por la Universidad Autónoma
de Madrid, España. Cuenta con más de 70 publicaciones en revistas de
psicología y medicina indexadas a nivel nacional e internacional, capí-
tulos de libro y un libro sobre intervención en resiliencia. Su experiencia
profesional ha estado focalizada en el área de la Psicología Clínica y de la
Salud y la Psicología Positiva, donde ha conducido y dirigido estudios a
nivel de pregrado y posgrado tanto en población adolescente como adulta
sobre calidad de vida relacionada con la salud, percepción de enferme-
dad, resiliencia, felicidad, emociones positivas vs. negativas, apoyo social,
autotrascendencia y religión/espiritualidad. Ha sido profesora e investi-
205

gadora en diferentes Universidades colombianas y directora de progra-


mas de posgrado. En el año 2015 la Universidad de San Buenaventura
-USB- Bogotá le otorga premio por excelencia investigativa. Actualmente
es profesora e investigadora de la Universidad de Medellín. Miembro del
grupo de investigación Psychologia Avances de la Disciplina de la USB
Bogotá, del Grupo Psicología y Procesos Clínico-Sociales (GIPPC-S) de
la Universidad de Medellín en Colombia y del Grupo de investigación en
Psicología & Salud en España. E-mail: japcyps@hotmail.com

Dra. LUCIANA LEITE PINELI SIMÕES


Médica Infectologista, Mestre em Medicina Tropical, Infecto-
logista do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital de
Doenças Tropicais Dr. Anuar Auad (Goiânia-GO), Coordenadora do
Eixo de Desenvolvimento Pessoal do Curso de Medicina da PUC Goiás,
onde, também, atua como docente.

Dr. LUIZ SIGNATES


Docente efetivo do Doutorado em Ciências da Religião da Pon-
tifícia Universidade Católica de Goiás e professor associado II da Uni-
versidade Federal de Goiás, junto ao Mestrado em Comunicação. É
Pós-Doutor em Epistemologia da Comunicação (Unisinos), Doutor
em Ciências da Comunicação (USP), Mestre em Comunicação (UnB),
Especialista em Políticas Públicas (UFG) e graduado em Comunica-
ção Social - Jornalismo (UFG). Fundador e membro das Academias de
Letras de Goiânia e de Aparecida de Goiânia, Diretor Geral da Rádio
Universitária/UFG e Sócio Majoritário do Instituto Signates, empresa
de Consultoria, Pesquisa e Editoração. Coordena os Núcleos de Pes-
quisa em Comunicação, Cidadania e Política (UFG) e Comunicação e
Religiosidade (UFG). É pesquisador nas áreas de Ciências da Religião
e Comunicação. Na área de ciências da religião, dedica-se ao estudo do
espiritualismo brasileiro, com enfoques antropológico, sociológico e co-
municacional e da epistemologia das ciências da religião.
206

Dr. RAIMUNDO HERALDO MAUÉS


É bacharel e licenciado em História (1962) pela Universidade
Federal do Pará, mestre em Antropologia (1977) pela Universidade
de Brasília e doutor em Antropologia Social (1987) pela Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro/Museu Nacional. É Professor Emé-
rito da Universidade Federal do Pará, Bolsista 1B do Conselho de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq.), sócio efetivo
da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), do Instituto His-
tórico e Geográfico do Pará (IHGP), da Sociedade Brasileira Para o
Progresso da Ciência (SBPC), da Sociedade Brasileira de Sociologia
(SBS) e da Associação dos Cientistas Sociais da Religião no Merco-
sul (ACSRM). Trabalha como professor voluntário na Universidade
Federal do Pará, sendo professor permanente do Programa de Pós-
Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da mesma Uni-
versidade. Foi recentemente membro do Conselho Diretivo da Aso-
ciación de Cientistas Sociales de la Religión del Mercosur/ACSRM,
durante o biênio 2011-2013, tendo sido eleito em novembro de 2011
em Punta del Este, Uruguai, como um dos dois representantes do
Brasil. Atua na área de antropologia, com ênfase em antropologia
da religião e antropologia da saúde. Em suas atividades profissionais
interagiu com 48 colaboradores em coautorias de trabalhos científi-
cos. Em seu currículo Lattes os termos mais frequentes na contextu-
alização da produção científica são: Amazônia, religião, catolicismo,
catolicismo popular, pajelança, xamanismo, Renovação Carismática
Católica, pentecostalismo e cura.

Dra. SOFIA BEATRIZ MACHADO DE MENDONÇA


Formada em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo
(1983) e mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo (1996). Atualmente é coordenadora do Projeto Xin-
gu da Escola Paulista de Medicina e da formação de pessoas em contex-
tos interculturais. Médica Sanitarista, Antropóloga, Coordenadora do
Projeto Xingu – Programa de Extensão Universitária da EPM / Unifesp.
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