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Capítulo 11:

Análise teológica599

1.0 - Introdução
Consultando diversos manuais de exegese, nota-se que a maioria deles
não reserva um capítulo à parte para a interpretação teológica. Geralmente
terminam com recomendações sobre a análise redacional ou análise histórico­
traditiva. Este procedimento tem suas razões de ser, como veremos logo a
seguir, mas também encerra um problema, pois a exegese feita sem análise
teológica tem a tendência de dissociar-se de outras disciplinas teológicas,
como a teologia bíblica e a teologia sistemática. Além disso, ela corre o perigo
de separar o texto em estudo da riqueza evangélica apresentada pelo conjunto
da Escritura, sem cuja visão a exegese isolada poderia facilmente incorrer em
juízos arbitrários ou parciais.
Dentro do corpo da exegese, a tarefa da análise teológica já foi parcial­
mente proposta por ocasião da análise redacional, na parte reservada ao
estudo do "contexto do escrito" ou "contexto integral". No entanto, a análise
redacional procurava destacar apenas as ênfases teológicas do redator do
escrito. Agora se trata de correlacionar textos em que opções ou posturas
idênticas tenham sido tomadas pelo próprio Jesus ou então se encontrem
testemunhadas em outras partes da Bíblia, seja do NT ou do AT. O e a
intérprete, ao realizarem esta análise comparativa, colocam o seu texto particu­
lar no horizonte maior da pregação e ação de Jesus, ou da mensagem bíblica
em geral, adquirindo desta maneira melhores subsídios para a articulação da
teologia do próprio texto em estudo.
O princípio que rege a análise teológica pode ser expresso com palavras
de John Bright. Segundo este autor, a exegese teológica se caracteriza por ser
uma exegese que não se contenta meramente em extrair o significado verbal
preciso do texto, mas que vai mais além para descobrir a teologia que informa o
texto. É uma exegese que busca descobrir não meramente o que a antiga lei
exigia, mas também a teologia expressa na lei; não somente os abusos atacados
por Amós, mas a teologia que o induziu a condená-los; não somente as diretrizes
dadas por Paulo a esta ou aquela igreja, mas a teologia que o impelia a dá-las.
Todos os textos bíblicos expressam teologia no sentido de que todos estão
animados, mesmo que às vezes indiretamente, por uma preocupação teológica.
Cabe ao intérprete tratar de descobrir qual era esta intenção. Fazer isto não
constitui nenhuma violação dos sãos princípios exegéticos. E, isto sim, a consu­
mação da tarefa exegética.600
2.0 - Modo de procedimento

São três os passos a serem dados para realizar-se uma análise teológica:
D Em primeiro lugar, é necessário um estudo de correlação601 • Para ser possível
avaliar a teologia de um texto, é necessário determinar ou descobrir inicial­
mente outros textos que tratam da mesma temática.
D Em segundo lugar, devemos tentar enquadrar o conteúdo de nosso texto
dentro de temas e doutrinas teológicas fundamentais, como nô-lo apresen­
tam a dogmática e teologia sistemática, procurando avaliá-lo à luz do
testemunho mais amplo da Escritura sobre o evangelho de Deus. Exemplos
destes temas fundamentais são: a compreensão bíblica sobre a criação, a
redenção ou salvação, o juízo de Deus, a lei e seu cumprimento, a ação e presença
do Espírito Santo, os carismas do Espírito, o pecado, a natureza da fé, as
características do ser Igreja, a palavra de Deus e os sacramentos, a pessoa deJesus
Cristo, o reino de Deus por ele pregado, a aliança estabelecida ou prometida por
Deus, etc. Assim, se o nosso texto tematiza o amor de Deus pelas suas
criaturas, poderemos enquadrá-lo - inicialmente - dentro do assunto da
"graça divina". A seguir, deveríamos expor de que maneira fala este texto
sobre a graça de Deus e como esta sua maneira de tematizar o amor divino
se relaciona com os modos de exposição usados pelos outros textos sobre o
assunto dentro do testemunho bíblico como um todo.
Dentro da teologia, essa reflexão do texto à luz do evangelho como um
todo e da tradição dogmática da Igreja traz uma s érie de vantagens. Em
primeiro lugar, evita que enunciados bíblicos isolados adquiram importân­
cia exagerada. Em segundo lugar, contribui para que intérpretes se dêem
conta da pluralidade e diversidade com que uma mesma fé em Deus
respondeu a desafios semelhantes, mas em situações e épocas diferentes. E,
por último, implica a possibilidade de crítica teológica ao texto da exegese,
ou seja, permite distinguir entre a letra do texto, cuja função é dar testemu­
nho do evangelho, e o Espírito de Cristo, efetivamente presente no conteúdo
analisado602•
D Por último, a teologia do texto pode ser avaliada na medida em que
procurarmos nos inteirar das suas conseqüências práticas. A pergunta a
fazer aqui seria: que conseqüências para o agir humano está a reclamar a fé
cristã articulada no texto sobre um determinado assunto? Que compromis­
sos requer esta fé para o nosso agir e pensar como cristãos?
Destes três passos propostos para a análise teológica, o segundo é o mais
difícil, pois pressupõe estudos de teologia sistemática e dogmática, bem como
uma boa capacidade de síntese. Por essa razão, dificilmente estudantes dos
primeiros semestres do estudo teológico estarão em condições de realizar esse
tipo de análise.
Diante disto, cada curso de teologia deveria ponderar se é ou não
aconselhável, numa primeira exegese, solicitar a realização de uma avaliação
teológica dentro dos parâmetros acima expostos. Como o primeiro passo
descrito sugere a busca por textos paralelos que tematizem o mesmo assunto-
talvez se pudesse solicitar ao menos esse passo, seguido de uma breve avaliação
teológica. A análise teológica, dentro desta proposta, compreenderia, pois:
O A identificação de passagens paralelas quanto ao conteúdo teológico.
O Breve avaliação teológica do texto.

1) Identificação de passagens paralelas


Para escolher ou descobrir textos com assuntos iguais ou similares, pode-se
usar como critério a identidade de termos e expressões ou, então, de uma maneira
mais genérica, de conteúdo como um todo603• Vejamos alguns exemplos:
Para a análise da quinta bem-aventurança ("bem-aventurados os misericordi­
osos, pois alcançarão misericórdia" - Mt 5.7), temos um excelente paralelo na
parábola do credor incompassivo em Mt 18.23-35. Pode-se chegar a este
paralelo pelo uso de uma concordância ou, eventualmente, pelos textos de
referência às margens externas das Bíblias em português ou grego. A mesma
teologia já se encontra presente no AT (p. ex., Pv 14.21: "O que despreza o
seu vizinho peca, mas o que se compadece dos pobres é feliz") e também em
outros escritos do NT, a exemplo de Tg 2.13: "porque o juízo é sem
misericórdia para com aquele que não usou de misericórdia".
• Os paralelos de conteúdo para uma parábola (p. ex., a do filho pródigo em Lc
15.11-32) dificilmente poderão ser encontrados com o recurso a uma Chave
ou Concordância Bíblica. Nestes casos, somos remetidos à classificação desta
parábola dentro das monografias sobre o assunto. Consultando esta literatu­
ra, veremos que vários autores relacionam Lc 15.11-32 entre as parábolas que
tratam da misericórdia e do amor de Deus. Nesta perspectiva, pesquisadores
como J. Jeremias, A. F. Anderson, G. Gorgulho e O. A. Miranda são
unânimes em afirmar que, como paralelos mais estreitos para Lc 15.11-32 se
apresentam as parábolas da dracma e da ovelha perdidas (Lc 15.4-10) e dos
trabalhadores na vinha (Mt 20.1-16), entre outras. Todas elas tematizam,
através de narrativas distintas, o mesmo conteúdo da imerecida bondade
com que Deus presenteia as pessoas.
Caso semelhante se dá com as narrativas de milagres. Também aqui os
paralelos mais estreitos são geralmente encontrados dentro dos textos enqua­
drados no mesmo subgênero das narrativas em estudo. Assim sendo, os
paralelos mais próximos à narrativa de exorcismo em Me 1.21-28 são as
outras histórias classificadas como exorcismos, como Me 5.1-20; 7.24-30;
9.14-29 e Mt 9.32-34 (cf. At 16.16ss e 19.13-17).
Casos como o de Me 12.13-17 (a questão do tributo a César) requerem uma
visão mais acurada, já que as versões da Bíblia não oferecem indicações de
paralelos diretos. Nos evangelhos, apenas Lc 23.1-2 tematiza ainda essa
questão. Nestes casos, contudo, poder-se-ia comparar a perícope com textos
que abordam a relação de Jesus com autoridades e o poder estatal, como Me
10.41-45.

C)QQ
2) Breve avaliação teológi,ca
Esta vai depe nder, em grande medida, do grau de aprofundamento
teológico-sistemático que se p ossa alcançar em relaçã o ao (s) tema(s) em evidên­
cia no texto. A natureza e as exigências do texto também vã o determinar de que
maneira esta análise teológica pode ser estru turada. Assim sendo, é possível
avaliar teologicamente o texto de Me 2.15-17 sob vários âng ulos, c omo, p. ex., o
da açã o de acolhimento de J esus, o do escân dalo por ele provocado, o da
n ovidade que representava a comensalidade aberta e o do compromisso que ela
acarretava. Cada e xegeta deve e ncontrar, neste particular, o seu próprio cami­
nho para a realizaçã o desta análise .
Como sugestã o, apresentamos um modelo simples e conciso para a realiza­
çã o de análises teológicas, suscetível de ser aplicado também em textos diferen­
tes de Me 2.15-17, mesmo que nã o e m todos. Este modelo orienta-se pelo texto
de 1 Co 13.13: "Agora, p ois, permanecem afé, a esperança e o amor... " e explora
604
o texto dentro de stas três dimensõe s teológicas fundamentais •

Em relaçã o à fé, as p erg untas que caberia formular ao texto sã o as


seg uintes:
• Como é e xpressa pel o texto a fé em Deus,Jesus ou no Espírito Santo? Com
que i déias, práticas ou valor es D eus,Jesus ou o Espírito sã o associados?
Há imagens u sadas para a represe ntaçã o do d ivino no texto e o que
pretendem destacar?

As dimensões de amor no texto procu ram torná-lo transparente para os


compromissos e as respostas concretas q ue reclama a fé em Deus. A orientaçã o,
neste _cas<:, P<?de se� tirada d� 1 Jo 4.20: "Se alg uém disser: Amo a Deus, e odiar
a seu irmao, e mentiroso; p01s_ aq:1:le que nã o ama a seu irmã o, a quem vê, não
pode am�r a Deus, a quem nao ve. As perg untas que poderiam ser levantadas
ao texto sao:
• Q�e dime nsõ�s de amor como e xpressã o da fé em Deus e xplora O te xto?
Ha compromissos de ord em pessoal, ecl esial ou social reclamad os pelo
texto?

_Muitos texto� exploram simultaneamente uma dimensã o de esperança, de


futundade e _P�rvir. Eles � fazem, ora dan do as razões e os fun dame ntos da
e sperança cnsta, or � relanonando fé e açã o no prese nte c om vi da no futuro.
Perguntas que poderiam ser formuladas em relaçã o a este aspecto sã o:
Há dimensões de esperança tematizadas no texto? Quais são?
Como relaciona o texto vi da presente com vida no p orvir?
Como subsídios para este passo exegético sã o indicados:
Comparações de conteú do com outros te xtos, com o recurso a chaves ou
concor dâncias bíblicas·
Comparação com text�s de gêneros ig uais;
Monografias específicas sobre a te mática do texto;
Teologias bíblicas;
Teologias do Novo Testamento;
Dicionários bíblico-teológicos;
Manuais de Teologia Sistemática ou Dogmática;
Comentários.

Observação: A análise teológica oferece uma boa oportunidade para


examinar os títulos que os textos recebem nas modernas versões da Bíblia. Estes
títulos muitas vezes representam uma síntese teológica do texto na perspectiva
dos editores dessas versões. É oportuno verificar se os títulos propostos inter­
pretam corretamente a mensagem teológica do texto. Não raro, eles revelam a
posição teológica, ideológica, classista ou de gênero dos editores.
Como exemplos sejam citados dois textos: Lc 7.36-50 e Mt 17.24-27. Para o
primeiro texto, alguns dos títulos encontrados nas modernas versões em portu­
guês são: ''.Jesus e a pecadora"; "A pecadora que ungiu os pés de Jesus"; "A
pecadora perdoada" e ''.Jesus em casa de Simão, o fariseu". É interessante
observar como os vários títulos empregados para esta narrativa concentram-se
na relação entre Jesus e a mulher pecadora. O fariseu da história dificilmente é
lembrado no título. Será isto uma casualidade? Um exame atento mostra que a
maior parte da história não tematiza o diálogo entre Jesus e a mulher, e, sim,
justamente entre Jesus e o fariseu, homem: 7.36,39-471 A história é um misto de
exaltação ao comportamento da mulher e de crítica ao comportamento do
homem. Não seria, pois, mais adequado um título que procurasse corresponder
a estes dois momentos realçados na narrativa? A mulher é apresentada como
pecadora (v. 37). Mas o homem igualmente é tido como tal (vv. 44-46). Assim
sendo, não parece justo destacar unicamente a mulher como pecadora no título
da narrativa.
Para o segundo texto, Mt 17.24-27, encontramos os seguintes títulos: "O
imposto do templo"; "O tributo para o templo pago por Jesus e por Pedro";
''.Jesus e Pedro pagam o imposto"; ''.Jesus paga o imposto" e "Os filhos são
livres". Os três primeiros títulos induzem o leitor a pensar que Jesus (e Pedro)
eram fiéis pagadores de tributos ao templo. Mas não é isto que o texto parece
destacar. O texto diz que Jesus propõe pagar o imposto para evitar escândalos
(v. 27). Trata-se, portanto, de uma solução emergencial, de uma concessão. Sua
verdadeira posição se encontra no v. 26: "Logo, estão livres os filhos!" O título
dado pela Edição Pastoral é, seguramente, aquele que melhor corresponde ao
conteúdo da narrativa: Osfilhos são livres!

3.0 - Exercício: análise teológica de Me 2.15-17


Seguindo a proposta anteriormente feita, subdiv idiremos noss� a:,i álise
teológica em duas partes: apreciação de passagens paralelas e avahaçao da
teologia do texto.
3.1 - Paralelos teológicos a Me 2.15-17

Ao consultar as margens externas ou as notas de rodapé das Bíblias em grego


e português, verificamos que a menção de passagens paralelas às vezes é feita só no
texto de Mt 9.10-13, não se repetindo mais em Me 2.15-17 nem em Lc 5.29-32. Em
alguns casos, verificou-se também que algumas Bíblias destacavam paralelos
diferentes nas versões sinóticas do texto. Destes dois fatos depreendemos a
necessidade de consultar sempre todos os paralelos sinóticos do texto em estudo!
As indicações mais freqüentes relacionadas com Me 2.16 apontam para o
murmúrio dos fariseus em Lc 15. ls ("este recebe pecadores e come com eles!") e
da multidão em Lc 19.7 ("Todos os que viram isto murmuravam, dizendo que
ele se hospedara com um homem pecador"). A Bíblia de Jerusalém, em Mt 9.10-
13, remete a Mt 3.17, onde podem ser encontrados ainda outros textos de crítica
deJesus a fariseus (cf. Mt 12.34; 21.25,32 e 13.33). Entre as Bíblias consultadas,
curiosamente só a TEB faz alusão a Mt 11.19/Lc 7.34 (" ...e dizeis: eis aí um
comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores").
Em relação a Me 2.17, Nestle-Aland remetem a Jo 3.17605, onde são
arrolados mais textos, como Jo 10.9 e 12.47606. Uma Bíblia aponta para Lc 15.7
(parábola da ovelha perdida). A Bíblia de Jerusalém remete a 1 Tm 1.15: "Fiel é
a palavra e digna de toda a aceitação: que CristoJesus veio ao mundo para salvar
os pecadores, dos quais eu sou o principal."
Lucas 15.1-2 e 15.3-7 parecem ser os que mais estreitamente se relacionam
com Me 2.15-17. Não há razão para considerar apenas Lc 15.3-7 como um
paralelo de Me 2.17. Como também as parábolas seguintes, da dracma perdida e
do filho pródigo, querem explicar a comensalidade de Jesus narrada em 15.1-2,
todo o trecho de Lc 15.3-32 pode ser considerado similar a Me 2.17 em termos
de conteúdo. Os paralelos deJo 3.17 e 1 Tm 1.15 mostram que, teologicamente,
a comensalidade de Jesus insere-se na temática maior da salvação oferecida por
Deus às pessoas.
Um paralelo teológico não citado nas Bíblias consultadas parece ser
particularmente útil para elucidar o sentido da comensalidade de Jesus: trata-se
do texto de Rm 5.6-8. O versículo 8 afirma: "Mas Deus prova o seu próprio
amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda
pecadores." Em sua comensalidade Jesus quer mostrar exatamente isto, ou seja,
que em sua pessoa o amor e a solidariedade de Deus são oferecidos antes que os
pecadores possam fazer qualquer coisa para merecê-los.

3.2 - Avaliação teológica


Para nossa avaliação teológica, destacamos os seguintes aspectos:
a) As características do agi,r de Deus
A teologia de Me 2.15-17 está estreitamente vinculada à prática de uma
comensalidade "aberta" por parte de Jesus. A prática da comensalidade com
publicanos e pecadores expressava, segundo Mt 11.19/Lc 7.34, a amizade de
Jesus por estas pessoas. A partir destes atosJesus passou a ser conhecido como
"amigo de publicanos e pecadores". Costumava-se associar pecador a uma pessoa
afastada e inimiga de Deus. A teologia do texto advoga uma nova prática, que
faz de pretensos ini-migos de Deus seus a-migas, e que torna pessoas afastadas de
Deus, pessoas próximas a Ele. Haenchen destacou exatamente esta singularida­
de da comensalidade deJesus, a saber, que ele, ao contrário de muitos de seus
conterrâneos, não mais considerou os pecadores como inimigos607•
Muitos estudiosos vêem como inspiração para esta prática um novo
acento que Jesus coloca em sua concepção de Deus. Ao contrário de João
Batista, que acentuava o rigor do juízo de Deus (Mt 3.7-10), em Jesus sobressai
a idéia de um Deus complacente, amoroso e bondoso.Jesus revela uma nova
imagem de Deus como "pai", que não tem prazer em que os pecadores se
percam, e, sim, que sejam reencontrados e reintegrados à fraternidade dos
demais irmãos e irmãs608 • Expressão para este novo "perfil" divino dão
narrativas como Lc 7.36- 50 (a pecadora que muito amava porque muito foi
amada por Jesus), 19.1-10 Qesus e Zaqueu) e parábolas como as da ovelha,
dracma e filho perdidos (Lc 15), do fariseu e publicano (Lc 18.9-14), da
grande ceia (Mt 22.1-14/Lc 14.15-24) e dos trabalhadores na vinha (Mt
20.lss). Todos estes textos mostram não apenas o interesse que Deus tem em
encontrar e achar "ovelhas perdidas", mas testemunham simultaneamente
uma grande alegria por tais encontros. Na parábola do filho pródigo, em
lugar de acusações por ocasião do retorno do filho, o pai corre ao seu
encontro, com abraços e beijos. Este é o novo perfil divino queJesus pregou e
v iveu em sua comensalidade. Assim como Deus se alegrava pela presença do
filho que retornara, Jesus se alegrava quando pecadores aceitavam o seu
chamado para a comunhão e fraternidade ao redor de uma mesa. Com essa
comensalidade,Jesus não queria cobrar fidelidade ou obediência a Deus, mas
chamar e convidar pecadores para sentirem-se como filhos de um mesmo Pai
celeste e como irmãos e irmãs de uma mesma família eleita por Deus.
Pergunta-se: que dimensões teológicas revela este novo "perfil" divino desta­
cado e vivido exemplarmente porJesus em sua comensalidade?
A mais importante dimensão teológica revelada pelo rosto acolhedor de
Deus é, seguramente, a da inclusão. Muitos autores chamam atenção para este fato.
José L. Caravias escreve: "Se todos somos seus [de Deus] filhos por igual,
graciosamente, ninguém é um 'desgraçado'( ... ). Se os )ustos' de Israel querem
excluir alguém, Deus começa por buscar e eleger aqueles que os homens tinham
excluído."609 De forma semelhante explica Pallares: "O tipo de vida que se cria ao
redor de Jesus não admite excluídos. Os que não têm lugar na sociedade
descobrem que no projeto de Deus, feito visível emJesus, há lugar para eles (... ). O
perdão deJesus é o poder de derrubar aquilo que exclui as pessoas." A inferência
que faz a partir disto é: 'Jesus não vem para reforçar as barreiras da sociedade,
mas para derrubá-las."6 !0 Bem neste sentido, a ceia de Jesus é também interpreta­
da por Aurel vonJüchen: "O que significa esta ceia? Não mais nem menos do que
o restabelecimento de um povo dilacerado, em litígio e cindido em puros e
impuros, piedosos e não piedosos, ricos e pobres, privilegiados e difamados( ...).
O povo recuperou a alegria em sua unidade e em sua fé."6l l
Esta dimensão da inclusão pode ser fundamentada de várias maneiras.
Comumente ela é explicada pelo recurso a textos como Mt 5.45, a partir dos
quais se infere: se Deus faz chover e brilhar o seu sol sobre bons e maus,justos e
injustos, não podem as pessoas, como filhos e filhas Suas, agir de forma
separatista ou discriminatória: "A realidade de Deus Pai nasce quando o
homem é capaz de descobrir no outro um filho de Deus e um irmão seu."612
Uma pesquisadora, Luise Schottroff, deriva o agir inclusivo de Jesus de sua
concepção do reino de Deus como soberania universal do Pai sobre o conjunto
de suas criaturas. No entender de Schottroff, Deus quer buscar, encontrar e
congregar a todos e todas, também aos pecadores e pecadoras, para que possa
ser o Senhor e Salvador universal613 • E é justamente com base nesta convicção da
soberania universal de Deus e do seu reino amoroso que as pessoas puderam
ensaiar com Jesus uma comunhão pautada por um não-exclusivismo moral e
religioso. Me 2.15-17 mostra que a opção de Jesus foi por uma comunidade
aberta, cuja força integradora não admitia barreiras, nem mesmo para com as
pessoas mais degradadas e moralmente estigmatizadas na sociedade.
Uma segunda dimensão teológica, decorrente da primeira, é a dasolida­
riedade 614. A comensalidade de Jesus com publicanos e pecadores sinaliza uma
dimensão de solidariedade que vai muito além da solidariedade familiar ou
grupal/corporativista, conhecidas e vividas em maior ou menor escala por
todos nós. A característica desta solidariedade é que o raio de sua abrangência
permanece sempre limitado a uma certa quantidade de pessoas, excluindo as
demais.Jesus defende uma prática de solidariedade que ultrapasse as barrei­
ras convencionalmente impostas. O amor a que conclama não se limita aos
semelhantes ou iguais, mas quer incluir exatamente também aqueles e aquelas
que são desiguais e diferentes,seja em seu status social, moral ou religioso615•
Por último seja referida ainda a dimensão teológica da compaixão. O
primeiro evangelista destaca-a em nosso texto,quando insere entre os dois ditos
de Jesus a citação de Os 6.6: "Ide, porém, e aprendei o que significa: misericór­
dia quero,e não holocaustos" (Mt 9.13). Para Mateus,portanto, a comensalidade
de Jesus é expressão da compaixão divina pelas suas criaturas. E, como enfatiza
Nolan: "Só a compaixão pode ensinar a um homem o que significa solidarieda­
de com outro homem."616

b) Dimensões de compromisso pessoa4 eclesial e social


Na comensalidade de Jesus confirma-se uma característica divina à qual
Paulo deu expressão ao afirmar que Deus escolheu as coisas loucas, fracas,
humildes e desprezadas do mundo (1 Co 1.27-28). A reação dos fariseus em Me
2.16 é expressão de uma perplexidade ou mesmo contrariedade diante desta
maneira de ser, escolher e acolher de Deus que Jesus veio realizar. Não é
necessário que nos escandalizemos com a reação dos escribas: sua pergunta,ou
mesmo protesto,expressa a reação de qualquer pessoa que,diante da inexplicável
bondade de Deus,teme que a boa ordem e as convenções da lei sejam atropeladas
e virem "anarquia"617 .Jesus realmente subverte a "boa ordem" moral e ·religiosa de
sua época: para a normalidade e para a decência religiosa oficiais, Jesus se
marginaliza. E é justamente este seu deslocamento e convivência junto aos que se
encontravam à margem da decência e moralidade da época que encerram as
maiores interpelações do nosso texto.
Pessoalmente, a atitude de Jesus questionou os juízos morais dos escribas
dos fariseus. Ela os interpelava para que não se enclausurassem com pessoas que
viviam um grau mínimo de decência que julgassem tolerável e aceitável, mas
que tivessem a liberdade da fé no Deus acolhedor para comungarem também
com todos aqueles e aquelas que,diante de padrões morais vigentes, eram tidos
e tidas como desprezíveis e intoleráveis.
O texto não formula diretamente uma interpelação eclesial. Indiretamen­
te, no entanto, ele deixa transparecer o que significava, para Jesus, viver
comunidade de fé. O deslocamento de Jesus na direção de pessoas e grupos
moralmente maculados e por isso marginalizados valeu-lhe o agravo e a crítica
por parte dos piedosos e justos de sua época. A proximidade e convivência do
Mestre entre os párias sociais era intolerável para a religião e moral "oficiais". A
prática proposta pelo texto é de integração de todos e todas numa mesma
convivência fraterna. O povo de Deus não pode realizar "segregação moral".
A sociedade da época também construía, a sua maneira, muros e barreiras de
segregação entre as pessoas. Como vimos,aos publicanos era vedado o acesso aos
tribunais na qualidade de testemunhas; além disso,nem eles nem outros pecado­
res notórios eram aceitos na comunhão de mesa dos fariseus. A sociedade da
época isolava e discriminava quem arrecadava impostos e taxas e quem era consi­
derado pecador notório. A prática de Jesus significa, diante disso,uma ruptura
com os valores que regulavam a convivência social. Também a sociedade, quando
segrega, não une o povo de Deus,mas o fracciona em grupos antagônicos!

e) Dimensão de esperança
O texto não tematiza a dimensão da esperança e do futuro. A opção de
Jesus está totalmente concentrada nas tarefas de reintegração dos e das margina­
lizadas no aqui e agora de sua prática de comensalidade aberta.

d) Avaliação dos títulos atribuídos a Me 2.15-17 nas modernas traduções bíblicas


Marcos 2.15-17 recebe os seguintes títulos em algumas Bíblias atuais:
ARA: Jesus come com pecadores
• BdJ: Refeição com os pecadores
BEP:Jesus rejeita a hipocrisia social
BLH:Jesus e Levi
TEB: Acolhimento dos pecadores
O título ''.Jesus e Levi" (BLH) é bastante reducionista,já que a cena dos v v.
15-17 se desenrola entre Jesus e vários outros grupos: discípulos, publicanos e
pecadores. Os títulos da TEB e da BEP reproduzem interpretações do conteú­
do: a TEB destaca na ceia o momento do acolhimento, enquanto que a BEP
interpreta a pergunta dos escribas dos fariseus no v. 16 como expressão de uma
"hipocrisia social" e a resposta de Jesus no v. 17 como "rejeição" da mesma. A
ARA e a BdJ mencionam a refeição com pecadores, sem avaliação: os publica­
nos são ignorados.

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