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Revista Brasileira do Caribe

ISSN: 1518-6784
revista_brasileira_caribe@hotmail.com
Universidade Federal de Goiás
Brasil

Marconatto Marques, Pâmela


Uma janela sobre o Haiti: estórias andantes de uma blanc no Caribe
Revista Brasileira do Caribe, vol. XIII, núm. 25, julio-diciembre, 2012, pp. 209-220
Universidade Federal de Goiás
Goiânia, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=159126963009

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Uma janela sobre o Haiti: estórias
andantes de uma blanc no
Caribe

Pâmela Marconatto Marques


(Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul)

Resumo
O trabalho proposto tem uma estética híbrida: é testemunho de
viagem atravessado por elaborações poéticas de uma brasileira em
sua “viagem de descobrimento” ao Haiti. Aproxima-se, assim, de
uma “contação”, como aquela proposta por Eduardo Galeano na
introdução de seu belo Palabras Andantes como forma sensível
de entendimento entre desconhecidos. Testemunha, assim, o
Haiti que há fora, dando também a conhecer algo daquela que
vê. Poética anterior à pesquisa, integrada a ela ou resultado
dela? Se a estética é ambígua, a ética do trabalho, entretanto,
é uma e bem definida: “contar” um Haiti pouco conhecido dos
brasileiros, menos espetacularizado e, por isso, mais complexo
e mais humano.
Palavras-chave: Haiti, relatos de viagem, cultura afro-americana.
Resumen
El trabajo propuesto tiene uma estética híbrida: es testimonio de
viaje atravesado por elaboraciones poéticas de uma brasileña en
su “viaje de descubrimiento” de Haití. Se aproxima, así, de uma

Artigo recebido em abril de 2012 e aprovado para publicação em setembro de 2012


Revista Brasileira do Caribe, São Luis-MA, Brasil, Vol. XIII, nº25, Jul-Dez 2012, p. 209-220
Pâmela Marconatto Marques

“contación”, como aquella propuesta por Eduardo Galeano en la


introducción de su bello Palabras Andantes como forma sensible
de entendimiento entre desconocidos. Testimonio así, el Haití
que hay afuera, dando también a conocer algo de aquella que ve.
Poética anterior a la investigación, integrada a ella o resultado
de ella? Si la estética es ambigua, la ética del trabajo, mientras
tanto, es una y bien definida: “contar” un Haiti poco conocido de
los brasileños, menos espectacularizado y, por eso, más complejo
y más humano.
Palabras claves: Haiti, relatos de viaje, cultura afro-americana.
Abstract
The essay proposed has a hybrid aesthetic: It is a travel testimony
crossed by poetic elaborations of a brazilian´s “voyage of
discovery” to Haiti. It resembles, thus, a “storytelling” as the one
proposed by Eduardo Galeano in the introduction of his beautiful
Palabras Andantes as a way of sensitive understanding between
unknowns. It witness the Haiti that exists outside, letting also
know something about the inside of that one who sees. Poetics
before the survey? Integrated to it? Or it´s result? If the aesthetics
is ambiguous, the ethic of this work, however, is well defined:
telling a less known Haiti, less spectacularized and, therefore,
more complex and more human.
Keywords: Haiti, Trip Reports, african-American Culture.

Introdução
Em “Las Palabras Andantes”, as belas estórias de
Eduardo Galeano contam com a força das imagens de J. Borges,
um conhecido xilografista brasileiro. Na primeira página do
livro, Galeano relata como se deu essa aproximação, quando
resolveu deslocar-se até o nordeste brasileiro para fazer o convite
ao artista:

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Uma janela sobre o Haiti: estórias andantes de uma blanc no Caribe

Le explico mi proyecto: imágenes de él, sus artes de grabado,


y palabras mías. Él calla. Y yo hablo y hablo, explicando.
Y él, nada. Y así sigue siendo, hasta que de pronto me doy
cuenta: mis palabras no tienen música. Estoy soplando en
flauta quebrada. Lo no nacido no se explica, no se entiende: se
siente, se palpa cuando se mueve. Y entonces dejo de explicar;
y le cuento. Le cuento las historias de espantos y de encantos
que yo quiero escribir, voces que he recogido en los caminos y
sueños míos de andar despierto, realidades deliradas, delirios
realizados, palabras andantes que encontré — o fui por ellas
encontrado. Le cuento los cuentos; y este libro nace. (grifo
nosso)

Como Galeano, temo que a explicação do que ainda


não nasceu torne as palavras sem música e opto, nesse esforço
de comunicação, por contar a experiência vivida no Haiti,
onde palavras, perguntas e sentidos andaram até mim e me
atravessaram, como que pedindo para serem escritos, gritados
e sonhados. Nessa contação, comprometo-me a abrir frestas
de janelas sobre um país ainda desconhecido, visto a partir dos
limites de minha capacidade de estranhamento e aproximação.
Como razão principal dessa janela a ser aberta, está o fato
de que grandíssima parte da cobertura jornalística brasileira sobre
o Haiti tem como principal característica a “espetacularização”
da tragédia haitiana, intensificada com o terremoto que assolou
o país em janeiro de 2010, arrasando sua capital e deixando um
saldo de cerca de 250.000 mortos, 300.000 feridos, 1,3 milhões
de deslocados e 1,5 milhões de desabrigados1. A abordagem
acadêmica, quase inexistente, tem-se dedicado mais ao estudo
da MINUSTAH e da atuação brasileira no comando das tropas
do que propriamente ao Haiti, e, quando o faz, centra-se na
análise histórica de sua independência, escapando à análise
contemporânea.

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Pâmela Marconatto Marques

Preocupada com isso, resultado do atravessamento entre


pesquisa e afetividade, estranhamento e aproximação, esse relato
trata de contar um Haiti mais vivo, mais colorido, complexo e
misterioso.

Uma Blanc no Haiti


“Pati pas di ou rivé pou ça”2. Ao deixar o Haiti, em
Março de 2008, essa frase reverberava em mim com um tom
de desafio. Desde a minha preparação para a viagem, há pelo
menos doze meses atrás, eu vinha ouvindo que o Haiti não se
revelava a principiantes e, temendo ser um deles, passava horas
a fio estudando suas particularidades históricas, antropológicas e
geopolíticas. Se o vaticínio de Michel Onfray (2009) “o viajante
só encontra aquilo que leva” se provasse correto, eu encontraria
um Haiti assolado pela desesperança, lamentando uma posição
geográfica que só podia ser castigo, inviável economicamente e
politicamente ingovernável.
Felizmente, o Haiti que eu levava não foi o único que vi.
Visitei o Haiti como pesquisadora vinculada ao Instituto
canadense IDRC (International Development Research Center),
financiador de projetos voltados ao estudo de países menos
avançados, junto a outros pesquisadores, nosso orientador, e uma
equipe jornalística. Minha agenda por lá comportava uma parte da
estadia na capital Porto Príncipe, onde estavam agendadas visitas
institucionais, e a outra na costa oeste do Haiti, entre Jeremie e
Leon, onde acompanharia o trabalho de freiras brasileiras, duas
delas há mais de vinte anos no país.
Apesar de, naquele momento, estar realizando o
mestrado em Relações Internacionais, meu olhar esteve sempre
contaminado pela antropologia e pelo desafio de aproximar o
exótico e estranhar o comum. Assim é que, inclusive em Porto

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Príncipe, a despeito da importância política da passagem pelos


ministérios e da imponência das mansões de embaixadores,
minha retina colou-se aos haitianos comuns, um colorido teimoso
que se exibia entre os tons de branco e preto que dominavam a
paisagem das ruas.

O som e a fúria haitiana


O solo do Haiti é rico em calcário, matéria prima para a
fabricação de cimento, o que explica as fileiras intermináveis de
casinhas brancas, muito pequeninas e rudimentares, instaladas
na descida dos morros e nas planícies. O contraste é dado pelo
carvão, fonte de energia mais utilizada no país, ante a inexistência
de petróleo, gás natural e/ou condições para instalação de
hidrelétricas ou captação de energia eólica. O colorido, por sua
vez, está nos cabelos das mulheres e meninas, cuidadosamente
trançados e enfeitados com toda a sorte de adereços, nas roupas de
passeio e de trabalho, igualmente bem cuidadas, e nos mercados
de rua, que se prolongam por muitos quilômetros nas regiões
de Pettion Ville e Jacmel, em Porto Príncipe, oferecendo aves,
colchões, bananas, escovas de dente, serviços gerais e muita
conversa, já que é notoriamente dominado pelas mulheres cujas
línguas, segundo outro dito famoso no Haiti, “não conhecem
domingo”.

Figura 1. Imagens colhidas nas ruas de Porto Príncipe


Fonte: acervo da autora

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Entrego-me, enfim, como me teria sugerido Maffesoli


(2008), a olhar o cotidiano, e constato, com este colorido que
se levanta altivo, uma vida que se apoia na sua estetização,
que se faz bonita, vibrante e cheia de emoção partilhada nesses
espaços comumente associados à degradação. Descubro, ainda
na primeira semana, que as casas haitianas são pequenas porque
usadas somente para dormir. Geralmente, uma casinha de um
cômodo abriga mais de cinco pessoas que revezam-se no sono.
Enquanto parte delas trabalha, a outra dorme. Assim, no Haiti, o
dia não envelhece. A noite não tira as mulheres e os homens da
rua, onde vivem, muito além de garantir o sustento. As refeições,
o banho, as conversas, a preparação das crianças para a escola,
até o amor e seus rituais se dão fora de casa, num espaço que é de
todos, mas que comporta a intimidade.
O Haiti “não tem dentro”, como diria Fernando Pessoa
(1993), ele é fora e inteiro nessa mostração, e, nesse caso, usando
o apelo de Van Gogh, “é preciso acreditar sem hesitação que o
que é, é” um eco da sugestão de Nietzsche para se “buscar a
profundidade na superfície das coisas”.
Esse estilo estético revela um ideal comunitário que
é construído e reforçado à medida que é vivido. Tudo isso,
envolvido numa sólida organicidade, como o diria Maffesoli
(1995), lembrando muito seu entendimento sobre o tribalismo,
arcaísmo que volta à tona nas sociedades pós-modernas, onde
o que predomina, “ao contrário do isolamento, próprio do
individualismo exacerbado, é um relacionismo em todos os
sentidos” (MAFFESOLI, 1995, pg 56).
O comércio de rua haitiano é um dos exemplos mais
interessantes da manifestação desse relacionismo baseado
na solidariedade. O pratik, como é chamado, designa tanto a
prática quanto os praticantes de uma rede de troca que admite
desde produtos de necessidade básica, favores, até proteção

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e apadrinhamento de filhos e/ou parentes. Tudo é trocado no


mercado, onde uma outra forma de estar junto, que não é pensada,
mas vivida, ganha contornos. E, num país onde energia elétrica
é privilégio, essa forma de estar junto “não está voltada para o
longínquo, para a realização de uma sociedade perfeita no porvir,
mas se dedica a organizar o presente, que se tenta tornar o mais
belo possível” (MAFFESOLI, 1995, pg.17).
Essa beleza possível comporta inclusive a anomia, uma
certa “bagunça”, um ruído constante que perturba um pouco os
ouvidos ocidentais acostumados ao som e não à fúria. O ruído
haitiano mescla conversas e negociações que se dão aos gritos,
o batuque repetitivo do Rá-Rá , o som constante das buzinas
que governam um trânsito que flui no caos, a cantoria dos galos
prontos para a rinha e o compas, ritmo das cerimônias de vodu,
religião que atravessa todos os segmentos da vida dos haitianos.
É como se a vida se desse no que Maffesoli (1995, pg.22) chama
de harmonia conflitual, harmonia que integra a desarmonia,
ordem que agrega o caos.

O país sem chapéu


Outro elemento interessante da vida haitiana é a
onipresença do “mundo dos mortos” ou “país sem chapéu” como
é poeticamente chamado. O haitiano Dany Laferriére (2011)
conta – entre o chiste e o desafio - a confusão dos agentes do censo
ao tentarem levantar uma estimativa do número de haitianos. Ao
questionarem uma senhora sobre o número de filhos que teria,
receberam a resposta de que teria dez filhos. Perguntou-se, então
onde estavam e ela mencionou que a metade estava na escola.
Quando questionada sobre a outra metade, informou que haviam
morrido, mas continuavam sendo seus filhos.
Outro exemplo da cominação contínua entre vida e

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morte é a pintura haitiana, carregada de cores e cenários oníricos,


que apresentam “outras moradas dos homens” e documentam
poeticamente as cerimônias de vodu.

Figura 2. Exemplos do vodu na arte hai ana


Fonte: acervo par cular. As pinturas são, respec vamente, de Louis Joseph e Raymond
Beauduy.

Esses elementos reforçam a sensação de que os haitianos


compartilham um mistério, que não se apreende a partir de uma
razão instrumental, como adverte Maffesoli, mas apenas de uma
sensível. Esse mistério reforça o elã que os mantêm atados à vida
e uns aos outros.

Um Haiti que é outro e o mesmo


Chegando a Jeremie, cidadezinha circundada pelo Rio
Grande Anse e praticamente isolada do restante do país, encontrei
um Haiti que era outro e o mesmo, como diria J.L.Borges. A
vida rural era fértil, entre rios e árvores. Dividimos o tempo, a
pequena equipe formada por um cinegrafista, uma jornalista e
duas pesquisadoras, entre a cidade e uma localidade encravada
na zona rural, chamada Leon, onde sequer os militares chegavam.
Ali, longe da cartilha das Nações Unidas que determinava

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que bebêssemos apenas água engarrafada, restringíssemos ao


máximo a ingestão de qualquer produto orgânico, que vedava os
passeios sem acompanhamento militar e proibia terminantemente
a entrada em rios, senti-me menos blanc (como eles chamam os
estrangeiros –brancos ou não) entre os haitianos.
Tomei banho de caneca em um tonel de água que deveria
durar a semana inteira, comi os temidos peixes secos ao sol,
como charque, o carreteiro de pombo servido às crianças em
uma escolinha local, e o delicioso coração de palmito, feito pelas
freiras para comemorar a Páscoa. Tudo isso com muito gengibre
e pimenta, para disfarçar qualquer elemento desagradável ao
olfato ou ao paladar.
Participei das atividades diárias das freiras, que pedimos
não fossem modificadas em razão de nossa presença. Assim, assisti
reuniões de grupos de jovens vocacionadas, que aprendiam a ser
lideranças comunitárias e religiosas no sincretismo possível entre
o catolicismo e o vodu. Presenciei reuniões de trabalhadores que
se organizavam em cooperativas informais e de lideranças locais
que ofereciam suas próprias casas para que se tornassem escolas.
Vi crianças que subiam nos telhados, buscando os primeiros raios
de sol da manhã para estudar e outras amontoando-se sob um
único poste de luz, em frente a um posto de gasolina estrangeiro,
com o mesmo propósito.
Ao visitar as escolinhas rurais, vi que pareciam-se
muitíssimo com as nossas, por sua precariedade e um certo ar
de improviso. A diferença estava no fato de que apenas 10% das
escolas haitianas são públicas e que pagá-las, num país onde
80% da população sobrevive com menos de um dólar por dia,
pode ser a diferença entre comer ou não. Ainda que eu sentisse
que a formação do haitiano se dava sobretudo fora da escola,
e que esses ambientes marcados pelo estar junto coletivo eram
extremamente pedagógicos, percebi que a comunidade desejava

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a educação formal. Viam nela uma alavanca para o futuro de seus


filhos, a despeito da pobreza em que viviam.

Figura 3: Escolinhas rurais de Leon


Fonte: acervo da autora4

Nos dias finais, caminhei durante horas sobre o leito


pedregoso de um rio que secou e subi um morro íngreme e
frondoso até alcançar Chonchon, comunidade que vive atrás do
rio, apenas para participar de uma cerimônia religiosa: o famoso
“lava-pés” católico.
Nada disso eu fiz com esforço ou pesar, mas tomada de
uma sensação indescritível de liberdade, ao provar uma outra

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forma de estar no mundo, de apropriar-me dele e deixar-me invadir


por ele. O Haiti em mim tornou-se, em pouquíssimo tempo, um
fluxo de vida e energia impensáveis, uma sucessão de estados
de alma indizíveis, já que “ao falar não só não exprimo o que
sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo”
(LISPECTOR, 2009). Assim, ao deixá-lo, pouco tempo depois,
eu sentia que o tempo cronológico não havia acompanhado as
mudanças profundas que intuía em minha vida interior, onde as
memórias do Haiti permaneceriam, condensadas, pesando sobre
tudo o que viria.
Sobretudo, o Haiti ensinou-me, organicamente, o que
Nietzsche quis dizer acerca da aceitação trágica da existência,
que nada tem de conformismo ou acomodação, mas de um dizer
sim à vida em toda a sua beleza e sua dor. Um país assim não
será apreendido tão facilmente por aqueles que dizem não à toda
vida que não caiba em suas próprias fôrmas. Sobre esse país, que
ao mesmo tempo em que se revela inteiro, é mistério e ironia,
numa ambigüidade que aparece no ditado “nous connin, nous pás
cannin5” Clarice diria que é um mundo todo vivo e, segundo ela
própria, “um mundo todo vivo tem a força de um inferno”.
Quatro anos depois de minha viagem, ao escrever esse
relato eu novamente digo sim ao “inferno” das Antilhas, certa de
que foi porque um dia cheguei, que jamais deixarei o Haiti.

Notas
1
Falar em números no Haiti ainda é muito difícil. O último censo realizado no
país se deu na década de 70 e, em específico sobre o terremoto, as projeções
foram feitas pela Presidência da República e divulgadas rapidamente após a
catástrofe, sem que fosse feito um estudo detalhado sobre o número total de
mortos que estima-se muito maior (NASCIMENTO, THOMAZ, 2010, pg.10).
2
“Só porque você partiu não quer dizer que tenha chegado”. Dito popular
haitiano, em sua língua, o creole. Todos os ditados populares utilizados nesse
relato encontram-se no livro “País sem Chapéu”, do haitiano Dany Laferriere,

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Pâmela Marconatto Marques

cuja referência completa está listada na bibliografia.


3
A expressão Rá-Rá designa tanto o carnaval haitiano quanto o som repetitivo
e hipnótico do batuque tocado nessa ocasião.
4
A primeira imagem desta sequência mostra Madame Moint Claire (que cedeu
sua casa para abrigar a escola) em seu quarto, que ainda mantém. Sobre a cama,
os pãezinhos que compõem a merenda escolar, incrementada pelo carreteiro de
pombo, feito pela cozinheira em uma das fotos que se seguem. A última foto da
sequência mostra crianças e familiares na entrada da escola.
5
Algo como “sabemos e não sabemos”, ditado popular haitiano.

Bibliografia
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. Ensaios e
conferência; Tradução Bento Prado Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 2006
LAFERRIÈRE, Dany. País sem chapéu. Tradução de Heloisa
Moreira. São Paulo: Editora 34, 2011
LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro:
Rocco, 2009
MAFFESOLI, Michel. A contemplação do mundo. Tradição de
Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Editora Artes e Ofícios,
1995
MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 4ª edição, 2008
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo
e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
ONFRAY, Michel. Teoria da viagem. Porto Alegre: L&PM, 2009
PESSOA, Fernando. O Guardador de Rebanhos. In Poemas de
Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de
João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1993.

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