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Por um lado, a solidão parece ser daquelas realidades perten- mensão de uma relação com as coisas, mas é sobretudo aber-
centes a sociedades e a tempos já passados e ultrapassados; por tura ao horizonte da relação com outros homens, encontro com
outro, ela experimenta-se como realidade presente na actuali- a relacionalidade do outro. Essa relação do homem com as coi-
dade. É o paradoxo de se poder conjugar a solidão com a comu- sas e a relação do homem com o outro homem, sendo diferente,
nhão, com a interioridade, com a abertura relacional quando, à caracteriza-se como experiência e encontro, saber e diálogo,
primeira vista, apenas parecem excluir-se mutuamente. respectivamente.
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Uma das fundamentais dimensões da existência humana é o facto O outro revela-se, desvela-se. A sua presença é totalmente dis-
de que ser homem significa existir com outros homens no mun- tinta das coisas e de mim. Está ali, não porque tenha sido pensa-
do. O homem só existe como pessoa e, por isso, não em elevada do por mim, mas porque existe. Não é neutro, nem apenas ser,
distância, fechada solidão ou indiferente afrontamento; o homem mas um existente concreto, alguém que pode ir daqui para ali e
existe em abertura e em relação. vice-versa. Irrompe, portanto, na minha existência, impondo-se
por si mesmo e não apenas como constituído pela minha razão.
É a capacidade de relação activa que diferencia o homem das E eu não posso mais que reconhecer a sua presença. É assim que
coisas. O homem é pessoa. Enquanto as coisas estão destinadas acontece o encontro, uma verdadeira primazia do outro porque a
à autonomia, ou seja, à falta de comunicação e solidão, as pes- relação intersubjectiva nunca é simétrica27. O outro que me con-
soas estão reservadas para a relação, para a existência inter- voca força-me a ser mais eu.
dependente, para uma liberdade que não nasce face ou contra o
próximo, mas sim da aceitação e do acolhimento do outro, igual- Podemos então afirmar que não há consciência de si que não
mente livre e soberano. seja, ao mesmo tempo, consciência do mundo. E não há consci-
ência do mundo que não seja consciência de um mundo habitado,
O ser com os outros pertence, portanto, ao núcleo fundamental ou seja, de encontro com o outro. A consciência humana afirma-
da existência humana26. Fundamentalmente dialogal ou intersub- ‑se, portanto, na reciprocidade do diálogo e do encontro.
jectiva, a estrutura do homem afirma-se como uma existência
em diálogo. Significa que ser homem não se pode resumir à di- Há, contudo, momentos de profundas sombras na compreensão
26
Cf. GEVAERT, Joseph – El problema del Hombre. Introducción a la Antropologia filosófica.
Salamanca: Sígueme, 1974, p. 46.
do homem. Quando se compreende o homem não a partir da rela-
ção, da comunidade, da solidariedade e da entrega ao outro, mas
apenas a partir de si como único, então, encerra-se o homem na
solidão, porque se encerra no mesmo, sem abertura ao infinito.
27
Para Emmanuel Lévinas, esta primazia do outro é indicada normalmente como epifania
do rosto, que significa a presença do outro que se impõe com a sua própria força
quebrando a totalidade do eu e abrindo ao infinito. É o encontro com o rosto do outro,
que destrói a rude casca que muitas vezes faz de cada um apenas um ser para si. Autor
importante, e necessariamente a ter em conta para a antropologia contemporânea da
A sós com Deus relação, Emmanuel Lévinas vai desmitificar uma filosofia do ego para falar do outro e da
sua prioridade. Emmanuel Lévinas nasceu na Lituânia, em 1905. Judeu por nascimento e
herdeiro da rica tradição judaica, a sua obra é, sobretudo, um «humanismo do outro».
Lévinas visa dizer o sentido do humano num mundo que, segundo ele, proscreve essa
ideia. Para ele, a filosofia ocidental encontra-se marcada pela redução do outro ao
mesmo. Trata-se de uma violência que desconhece a experiência essencial de outrem.
A antropologia moderna, a partir de Descartes, havia sido fortemente marcada pela
afirmação do indivíduo. De tal forma que, partindo apenas e absolutamente do cogito se
poderia fechar o homem numa total solidão, encerrando-o em si mesmo e alheando-o
dos outros. Isto, na medida em que o propósito do cogito solitário parece levar a interpor
um ser que se afirma entre o sujeito pensante e os seres que ele pensa, um intervalo,
um vazio ou uma distância, um nada no próprio coração da relação entre si e o outro,
entre si e o mundo. Face a uma antropologia da egologia, na absolutização do eu, orientada
para o conhecimento científico e o domínio técnico do mundo (por um lado, na sua linha
racionalista e idealista, que absolutiza a importância da consciência que pensa o mundo e
minimiza o mundo material; por outro, na linha empirista, que absolutiza o mundo material
e minimiza a importância da consciência) afirmar-se-á com Emmanuel Lévinas uma
antropologia da relação e do diálogo. Dedicada à alteridade irredutível do outro homem, a
obra de Lévinas transmite essa mesma inquietação relacional.
Oração em solidão
28
Cf. FERREIRA, José Manuel – Op. cit., p. 87.
caracterizavam a vida activa; só que, agora, tais efeitos são acrescidos com a 1.2. apaixonado por si mesmo
falta da saúde, o enfraquecimento dos laços familiares, o isolamento, solidão e
incapacidade, cada vez maior, de compaginar com as exigências dos ritmos da Um outro tipo de solidão é a que é experimentada pelo homem
vida moderna, nomeadamente nas cidades.» 29
voltado sobre si mesmo. É a solidão consequência do narcisismo.
Um outro retrato de solidão de situação é a solidão dos deficien- Neste tipo de solidão existe, embora não sempre, uma atitude de
tes. A deficiência, seja motora, física ou mental, pode ser um fuga de si mesmo e fuga dos outros. É a solidão como isolamento
verdadeiro entrave à sociabilidade ou à relação. A experiência voluntário, como separação e como ruptura e que, sendo sinal
de solidão nestes casos aumenta ainda quando, à deficiência em de um amor-próprio exacerbado, se reveste muitas vezes de
si, se junta a dependência de outros para as actividades e ne- expressões de egoísmo, auto-suficiência e atitudes defensivas.
cessidades elementares da vida. Pessoas idosas, deficientes e
doentes tornam-se, muitas vezes, autênticos prisioneiros de um Em termos gerais, e partindo da original condição solitária hu-
ghetto psicológico ou material, onde os muros, mesmo invisíveis, mana que nasce só e morre só, ela pode ser caracterizada como
são reais e agravam a experiência da solidão. Solidão muitas ve- uma ainda incapacidade de amar, na medida em que o egoísmo
zes agravada ainda na não menos dolorosa experiência da con- aí presente consiste em concentrar todos os afectos e todas as
tradição da sociedade, que tenta tudo por tudo para prolongar a inclinações em si30. É como que uma ainda não aprendizagem da
vida, mas que se esquece dos vivos existentes. relação intersubjectiva. Neste contexto, a solidão de condição
sublinha também a experiência da exclusão e é sinónimo de iso-
Outro factor de solidão e isolamento é aquela vasta realidade lamento. Contudo, não é linear afirmar que é um acto voluntário
74 que podemos chamar de inadaptação. Quem diz inadaptação, diz de um sujeito. Ela pode ser activa e passiva, ou seja, procurada
todo um mundo de factores pessoais em confronto com um não ou sofrida.
menor número de factores sociais. Revela-se, sobretudo, como
uma incapacidade de fazer frente à evolução e mutações sociais, O emblema do solitário de condição é a figura mitológica de Nar-
sejam elas, especificamente, económicas ou culturais. ciso. O solitário por isolamento narcísico não ama ninguém por-
que está «apaixonado» por si mesmo e a autocontemplação de si
Neste sentido, a inadaptação pode dar pelo nome de analfabe- basta-lhe. As próprias leis do amor são interpretadas por ele de
tismo, falta de qualificação académica, desemprego, pobreza. uma forma profundamente individualista.
Mas inadaptação pode querer significar a incapacidade de inte-
gração ao nível psicológico e humano nos ritmos da vida quoti- A solidão de condição é um tipo de solidão que poderíamos apeli-
diana e até a incapacidade de amar. dar como «sem partilha». O indivíduo isola-se, quebra as pontes
que o podem ligar a outros, coloca-se numa atitude defensiva e,
Aos vários retratos da solidão de situação já apresentados po- por vezes, mesmo agressiva.
dem ainda acrescentar-se as modernas solidões dos celibatá-
rios (sendo que o celibato aqui expresso não é o celibato reli- Não é simples traçar um retrato deste tipo de solidão dada a va-
gioso, mas um celibato proteiforme, que se afirma apenas como riedade de expressões da mesma. Um toxicodependente ou um
não estar casado), dos divorciados, dos viúvos e até as solidões alcoólico solitários podem ser retratos deste tipo de solidão, mas
conjugais. não é imperativo que o sejam31. Suicídio, por exemplo, ou timidez
obsessiva podem ser outros retratos.
29
COMISSÃO NACIONAL JUSTIÇA E PAZ – Interpelar a Sociedade Hoje. Lisboa: Multinova, 30
Cf. FERREIRA, José Manuel – Op. cit., p. 103.
1993, p. 47. 31
Cf. HANNOUN, Michel – Op. cit., p. 119.
Outra solidão é a que se serve de autênticas e reais próteses à O solipsismo afirma-se como uma doutrina filosófica, que reduz
solidão. À imagem do que referimos sobre os animais, substitui toda a realidade ao sujeito pensante. Nele, podemos distinguir
a relação pessoal a outrem. Poder-lhe-íamos chamar também três níveis diferentes: o solipsismo gnoseológico, metafísico e 75
32
Ibid., p. 141. 34
Cf. DEBARGE, L. Op. cit., p. 254.
33
Cf. BRETON, Philippe – L’Utopie de la Communication. Paris: La Découverte/Essais, 1995,
p. 57.
De certa forma, este tipo de solidão está relacionado com o an- a tranquilidade, a discrição e o silêncio como formas propícias à
terior: o solipsismo também pode denominar-se, quanto à sua meditação e à ascese. A solidão de vocação aparece, portanto,
vertente moral, um egoísmo e, por isso, envolver-se numa pro- como funcional em relação a um fim maior, seja a descoberta da
funda relação com a atitude individualista. verdade do homem, seja a descoberta da verdade de Deus em
relação à humanidade.
Negar todo e qualquer tipo de laço ou de ligação a outrem — tudo
é absurdo e sem Deus — resulta pois num solipsismo que leva Diferente dos anteriores tipos de solidão, aquela que acontece
necessariamente a uma experiência de solidão. por vocação destina-se ao encontro e exprime a vontade de uma
relação mais profunda e verdadeira com a questão do sentido.
Quando o homem nega o estabelecimento de qualquer relação, Tal como o silêncio prepara e recebe a palavra, a solidão pre-
laço ou ligação, fica fechado sobre si mesmo, prisioneiro de si para, recebe e intensifica o encontro. Assim, do ponto de vista
no constante duvidar e relativizar de tudo e de todos. E, estando vocacional, a solidão está na origem da comunhão.
o homem constitutivamente dotado para a relação, o solipsismo
instala-se como vazio onde não há certezas de espécie absolu- Resumindo, a solidão de vocação será mais um estado interior
tamente nenhuma, onde o homem pode ser simplesmente votado do que uma situação ou condição físicas concretas. Os retratos
à errância do sentido, como se a humanidade estivesse empe- desta solidão encontram-se na diversidade de vocações religio-
nhada na sua própria destruição35. sas solitárias, nomeadamente os eremitas e anacoretas.
1.4. Solidão habitada por Deus – uma vocação 2. Solidão, segredo da comunhão
76
O quarto e último tipo de solidão que apresentamos é o da solidão O sentido profundo da solidão como vocação valoriza, sobretu-
como vocação e que difere de todos os anteriores. Agora, esta- do, a finalidade da mesma solidão, o seu «para quê» e não ape-
mos ao nível da solidão como segredo da comunhão. nas a solidão em si mesma. Em si mesma, a solidão seria de-
sinteressante. Mas com uma finalidade e enquanto instrumento
Se nos anteriores tipos fomos deixando em aberto a possibili- de um caminho, a solidão transfigura-se e ajuda a transfigurar.
dade de serem voluntários ou impostos e sofridos, no caso da
solidão por vocação trata-se sempre de um chamamento. Logo, Quando se fala de solidão no quadro da vivência da fé cristã
é uma solidão procurada e voluntária. Dessa forma ele assu- refere-se algo de totalmente distinto da experiência humana de
mirá características muito diferentes não só de toda a solidão estar só, de procurar a solidão ou de sofrer o isolamento. Além
imposta, mas também de qualquer um dos tipos de solidão ante- disso, quando nos referimos ao sentido cristão da solidão esta-
riormente apresentados. Contudo qualquer dos anteriores tipos mos a referir-nos a uma forma de reflexão, de pensamento, de
pode, pelo menos na aparência, apresentar-se dentro do quadro mística e de vida já consagrados pela tradição cristã. São tem-
de uma solidão de vocação. pos e espaços concretos, vividos por pessoas concretas, exis-
tindo em solidão para melhor estarem encontradas com Deus.
Solidão de vocação é o retiro dos ritmos sociais, de uma forma
absoluta ou relativa, em resposta a um chamamento interior, e Nesse sentido, quando referimos o sentido cristão da solidão,
cuja finalidade é sempre do foro da experiência espiritual36. O que ou somente experiência da solidão cristã, estamos a abordar
realiza a solidão é, como em outros tipos, a ausência de outrem, uma forma de solidão voluntária que se revela como funcional
35
Cf. CAMPS, Victoria – Paradoxos do Individualismo. Lisboa: Relógio d’Água Editores,
1996, p. 16.
36
Cf. DEBARGE, L. – Op. cit., p. 254.
37
BRUNO, São – Carta a Raul le Vert, 6.
38
Cf. GUIGO I – Consuetudines Cartusiæ, XIV, 5. Op. cit.
acesso ao conhecimento da verdade de si mesmo. mas um silêncio que é santuário, que é liturgia de comunhão em
amor40. Este é um silêncio fecundo, como o do sepulcro de Cristo
Mas, mesmo não sendo o único a veicular a solidão e o silêncio imediatamente antes da ressurreição.
como vocação, o Cartusianismo repousa, por identidade, sobre
um fundo de silêncio e de solidão. Silêncio e solidão amados e que 2.2. Solidão e presença, silêncio e palavra
são a própria vida quotidiana.
A solidão e o silêncio estão, pois, em função do mistério da Pre-
É sobre este fundo que nasce para cada eremita Aquele que é a sença de Deus. São, fundamentalmente, condições para a Pre-
Palavra eterna. E toda a vocação cartusiana está assente nessa sença de Deus e para a experiência da comunhão.
experiência de, na solidão e no silêncio, escutar Aquele que gera
a Palavra e viver nessa permanente escuta atenta. Um coração disperso na multiplicidade do êxtase material ou
disperso na desarmonia da diversidade de relações não se des-
O Pai — afirmará São João da Cruz — não disse senão uma pala- centra de si mesmo ao ponto de conseguir amar gratuitamente
vra: é o seu Verbo. E disse-a num eterno silêncio. Por isso, é no o outro.
silêncio que a alma a entende39.
A solidão é, portanto, fuga para a comunhão, para a união a Deus.
São Bruno recomendou aos seus irmãos Cartuxos um claro O deserto, imagem bíblica e, depois, monástica do «local» da re-
olhar, cuja pureza fosse capaz de contemplar a Deus. É este claro velação de Deus, é um importante elemento no aprofundamento
olhar, esta límpida visão que cada Cartuxo procura na experiên- do sentido da solidão em função do encontro com Deus. Biblica-
78 cia da solidão e do silêncio. Solidão e silêncio que são tempo, es- mente falando, o deserto é a chave de todos os renovamentos
paço e vida onde o eremita se une a Deus. Enquanto existenciais espirituais. Foi muitas vezes ao servidor solitário no deserto que
humanos, são o lugar e o tempo de uma progressiva e perseve- Deus se revelou e manifestou os seus desígnios.
rante caminhada que vai fazendo o homem abrir-se ao mistério
de Deus e ao mistério do próprio homem. As características externas do deserto dão-nos então a chave
da atitude mística e interior: solidão, silêncio, ausência de pes-
A Palavra emerge no silêncio e cada eremita se esforça por aco- soas, ocupações, distracções, ausência de vegetação e de pai-
lher o seu «princípio». Desta forma, quando se fala de silêncio e sagens como distracção para os olhos, austeridade e pobreza
de solidão não se fala de «vazio» nem de «nada», mas de «ser» de meios. É o lugar do grande despojamento onde se encontra o
na sua plenitude fecunda. O silêncio da vida cartusiana é, por- homem e Deus.
tanto, a comunhão com o contexto e a condição de possibilida-
de de uma Palavra ser dita. É o silêncio em que a Palavra nasce. O deserto resulta, pois, numa experiência do absoluto de Deus,
O eremita é contemporâneo, pelo silêncio, do nascimento de frente ao relativo de tudo o resto que é mediação. De igual for-
cada Palavra que revela Deus. ma, o deserto resulta numa experiência profunda de verdade e
autenticidade. De fora ficam ilusões e as falsas autenticidades.
Aí, a Palavra não pode ser confundida com as palavras, a Pre- O deserto é lugar da conversão do coração. Além disso, o deser-
sença não pode ser confundida com outras presenças. Eis, to faz ainda descobrir o sentido verdadeiro da solidariedade e da
portanto, a razão de se abster das conversações, das relações misericórdia para com os outros.
sociais fatigantes. Este não é, de facto, um silêncio de morte,
39
CRUZ, São João da – Avis.
40
Cf. RAVIER, André – Dom Augustin Guillerand. Un Maître Spirituel de Notre Temps. Paris:
Desclée de Brouwer, 1965, p. 200.