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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

BACHARELADO EM TEOLOGIA

APOSTILA DE DIACONIA

ORGANIZADA PELO PROF. PR. ENILSON FIGUEIREDO MOITINHO

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

I. Conceituação de Diaconia
 Entendendo o termo e seu uso.
O termo “diaconia” tem sido tradicionalmente associado a uma atividade secundária da Igreja. A missão
da Igreja seria a proclamação do Evangelho. Essa tarefa principal teria um cunho espiritual e poderia ser
cumprida, simplesmente, através do discurso. Portanto, a tendência à espiritualização da missão da Igreja
relegou o ministério da prática a um segundo plano.
O termo ―diaconia‖ tem sido também associado a assistencialismo. Quando Igrejas articularam a prática
diaconal, esta, muitas vezes, foi percebida como atividade beneficente acrítica, que apenas teria contribuído para
atenuar conflitos sociais e manter o status quo.

Pelo menos mais uma associação o termo ―diaconia‖ tem evocado: a sua identificação com a prestação de
serviços por parte de instituições de caridade. Nesse caso, a família, a comunidade, enfim, a sociedade delega o
cuidado por seus membros necessitados a instituições especializadas, a profissionais competentes. Essa terce-
rízação da caridade, no espírito neoliberal, individualiza os problemas e as soluções.

Em vista dessas compreensões, a diaconia tem permanecido uma atividade secundária na Igreja. Na
América Latina, também a Teologia da Libertação deixou de desenvolver um conceito contex-tualizado de
diaconia.

Todavia, em tempos mais recentes, a diaconia tem sido tema de alguns seminários, algumas consultas e
algumas publicações. Concílios têm tomado decisões quanto à organização do ministério diaconal. A diaconia
emerge, na América Latina, enfim, como disciplina teológica. Busca seu espaço, sua fundamentação teológica,
sua conceituação.

Este novo momento de busca da diaconia, no contexto latino-americano, é o tema do primeiro capítulo
deste trabalho. Trata-se de um momento de muita luz: perguntas são levantadas, experiências são avaliadas,
novas atividades são projetadas. As iniciativas práticas estão conduzindo à reflexão e a reflexão está conduzindo
a novas iniciativas.
Exercita-se, na verdade, o que é a tarefa própria da Teologia Prática. Por isso, essa disciplina teológica já
está participando do processo de articulação da diaconia. Ela se apresenta, com seu caráter interdisciplinar, como
espaço da diaconia no universo da ciência teológica, espaço imprescindível para a busca da fundamentação
teológica e da conceituação contextualizada da diaconia. Essa é a razão pela qual o primeiro capítulo inclui um
esboço do papel da mediação critica entre teoria e prática, o papel hermenêutico da Teologia Prática. Nesse
sentido, essa disciplina contribuirá decisivamente para a construção e o aprofundamento da teoria diaconal no
contexto latino-americano.
O novo momento da diaconia é também de reação às associa rim que tradicionalmente o termo
―diaconia‖ tem evocado. Publicações específicas sobre o tema ―diaconia‖ no contexto latino-americano foram
consultadas a partir das perguntas que essas associações levantam. Que propostas são apresentadas, nessas
publicações, diante da tendência de espiritualização das tarefas da Igreja, da tendência de se confundir diaconia
com assistencialismo, da tendência da institucionalização do trabalho diaconal? Que elementos de conceituação
essas propostas contêm para a diaconia no contexto da América Latina?
Os resultados desta investigação das publicações sobre diaconia fazem parte ainda do primeiro capítulo.
Constituem, porém, o ponto de partida, de motivação e de norteamento para uma pesquisa dos fundamentos da
diaconia no Novo Testamento, apresentada no segundo capítulo. Trata-se da ênfase em três dimensões da
diaconia: seu caráter prático, profético e comunitário. Além da atenção recebida na literatura específica sobre
diaconia em nosso contexto, essas dimensões podem ser percebidas também com destaque em escritos
representativos da Teologia da Libertação.
Em sua fase emergente como disciplina teológica na América Latina, a diaconia pede urgência para a
tarefa da fundamentação bíblico-teológica. O presente ensaio quer ser, dentro de suas limitações, uma
contribuição para essa tarefa. Em vista de seus objetivos, entretanto, a necessidade da delimitação se impõe:
serão investigados elementos diaconais em ensinamentos e em ações de Jesus. Os evangelhos, portanto, serão o
campo e, ao mesmo tempo, o limite da pesquisa.
Mesmo nos evangelhos, o tema da diaconia é por demais amplopara ser esgotado num trabalho com
espaço tão limitado. Por isso, é nossa intenção enfocar alguns textos e temas representativos do ensinamento e
da prática diaconais de Jesus, como será mostrado a seguir.
A perícope de Mc 10.35-45 servirá como ponto de partida e de referência para toda a pesquisa do
segundo capítulo. A sua escolha deve-se à consistência histórica e teológica da mensagem diaconal que abriga. A
análise do texto se dará na primeira parte do capítulo, mediante a sua localização na estrutura do Evangelho
segundo Macos e no seu contexto. Inclui-lo no bloco de textos que narram a subida de Jesus a Jerusalém,

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juntamente com as suas seguidoras e seus seguidores, tem implicações expressas para a compreensão da ordem
de Jesus, de cunho diaconal, registrada no centro da perícope. O mesmo vale dizer em relação aos textos
antecedentes, cujas mensagens fluem para dentro da referida ordem.
Considerado neste trabalho o texto-chave, Mc 10.35-45 revela sua relevância para a contextualização da
diaconia, especialmente quando lido na perspectiva da pergunta pelas dimensões prática, profética e comunitária
da mesma.
―Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva‖ (Mc 10.43). À luz desta ordem são
interpretados, na sequência, os textos do julgamento final (Mt 25.31-46); do bom samaritano (Lc 10. 25-37) e do
lava-pés, juntamente com o novo mandamento (Jo 13.1-35). A interpretação tem também como pano de fundo a
pergunta pela possível presença dos elementos prático, profético e comunitário da diaconia. Cabe ressaltar que a
escolha destes textos obedeceu ao critério da sua função histórica de fundamentar a prática da misericórdia na
Igreja Cristã de todos os tempos. Com a análise desses textos se encerra a pesquisa dos elementos diaconais em
ensinamentos de Jesus.
A investigação dos elementos diaconais em ações de Jesus prioriza os temas da relação de Jesus com
publicarias, pecadores e pessoas pobres (a partir de Mc 2.15-17), com crianças (a partir de Mc 10.13-16), com
pessoas doentes e com mulheres. O estudo desses temas será também norteado pela pergunta acerca da
possível relevância das dimensões prática, profética e comunitária da diaconia.

Como se pode ver, os dois primeiros temas têm textos bíblicos específicos como referência. Isso se deve
ao desenvolvimento desses temas nos evangelhos em torno de textos básicos. Os dois últimos recebem uma
abordagem mais temática em razão de terem textos
diversos como referência. O estudo temático utiliza literatura com enfoque mais social.
De qualquer forma, os temas escolhidos representam um enfoque delimitado das ações diaconais de
Jesus. Chegou-se a eles levando-se em consideração a ênfase que recebem nos evangelhos: trata-se, em todos
eles, de temas que recebem um tratamento multiplicado. Além disso, todos eles dão atenção a categorias de
pessoas que se caracterizam pela gravidade de suas necessidades. Essas categorias se enquadram naquela dos
últimos e dos menores, referida no texto-chave de Mc 10.35-45. É possível ainda uma ligação com as obras de
caridade de Mt 25.31-46, especialmente aquelas que se referem às pessoas que são doentes e que passam fome.
No que se refere ao estudo de textos bíblicos neste trabalho, cabe esclarecer que não se trata
exclusivamente de um trabalho exegético, nem propriamente de uma pesquisa histórica dos textos, mas de uma
análise bíblico-teológica, baseada em literatura que facilita um enfoque também social dos textos e dos temas
tratados.
O caráter referencial de Mc 10.35-45 requer que, a partir de sua mensagem, sejam traçadas as
rimogênito s para a conceituação da diaconia na perspectiva do contexto latino-americano. Por isso, o final do
trabalho faz esse exercício, levando em consideração as dimensões prática, profética e comunitária da diaconia e
a ordem fundamental proclamada por Jesus à comunidade de suas seguidoras e seus seguidores. Esta última
contrapõe poder e serviço, dado que evoca um outro tipo de associação: do termo ―diaconia‖ com as vítimas do
exercício opressivo do poder, vítimas em número tão elevado, justamente no contexto latino-americano.

Resta-me ainda expressar um especial agradecimento a pessoas e instituições que apoiaram e tornaram
possível a elaboração do presente trabalho: Prof. Lothar Carlos Hoch, orientador da pesquisa; Prof. Uwe Wegner,
orientador da pesquisa exegética; CAPES e Igre r Evangélica Luterana da Baviera, pelo apoio financeiro; Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, pela liberação para o estudo.

 Entendendo o Ministério e sua aplicação bíblica.


O autor destas linhas ―nasceu na igreja.‖ Foi convertido a Cristo aos quinze anos, filhos de pais
evangélicos e membro de igreja desde tenra idade.
Conheceu algumas igrejas por onde tem passado, igrejas de vários matizes denominacionais e nelas exerceu
cargos desde os dias da mocidade. Conhece a ―espinha dorsal‖ de todas elas, suas ―doutrinas‖ e seus métodos de
trabalho.
Em todos esses anos e em todas essas igrejas ditas neotestamentárias. Tenho observado, e com muita
tristeza, como fazem o exercício da beneficência em seus arraiais.
Nesta, a prática da beneficência está extinta; naquela outra, esporadicamente, por um descargo de consciência,
faz-se campanha para angariar ―fundos‖ a fim de atender a necessidade emergencial, de algum pobre, cujo case-
bre desmoronou-se no inverno anterior.
Não se vê nelas, com raríssimas exceções, a beneficência como um mistério. Faia-sp muito também, em
todas elas, em amor, mas não o ―vemos‖ na prática. Amor de palavras, tão somente. Da longínqua ilha de Palmos
ainda podem ouvir, se quiserem as palavras, do velho apóstolo do amor, João: ―FiIhinhos, não amemos de

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palavras, nem de língua, mas de fato e de verdade.‖ (I João 3:18) O amor de palavras é como árvore seca, sem
fruto e sem sombra. Amor expectral.
Um Ministério da Beneficência existe para que o verdadeiro amor seja evidenciado, praticado. Este
ministério é a luz visível da igreja. No Livro Sagrado está escrito: ―assim brilhe também a vossa luz diante dos
homens, para que vejam as vossas boas horas e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus.‖ (Mateus 5:16) Ele é
também a Dispensa da igreja. Está escrito: ―Deus pode fazer-vos abundar em toda graça a fim de que, tendo
sempre, em tudo, ampla suficiência, superabundeis em toda boa obra como está escrito: Distribuiu, deu aos
pobres e a sua justiça permanece para sempre.‖ (Coríntios 8:8-9) Finalmente, o Ministério da Beneficência é o
vínculo da misericórdia e é uma exigência de Deus: ―Ele te declarou, ó homem, o que é bom; e o que é que o
Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça e ames a misericórdia, e andes humildemente com teu Deus?‖
(Miquéias 6:8).
Sabemos que o ministério da beneficência é temporal, mas de magnitude espiritual. Nele se revela a
bondade de Deus pela instrumentalidade dos Seus remidos. Nele a unidade da igreja é vista até por aqueles de
―outros apriscos.‖ É um ―oásis‖ onde o viajor cansado deste mundo adusto, encontra abrigo e hospitalidade cristã.
Na minha visão de leigo em eclesiologia, distingo entre os ministérios da igreja três que são fundamentais:
O Ministério da Palavra, o Ministério do Ensino e o Ministério da Beneficência. As igrejas que tenho primogênito
dão ênfase a vários outros ministérios, inclusive aos dois primeiros acima mencionados; todavia o Ministério da
Beneficência, em muitas delas, é inexistente. Na qualidade de um dos menores ministros da Beneficência, tenho
minha alma angustiada por ver este ministério, tão importante nas igrejas do primeiro século da era cristã, sendo
hoje ―desativado‖ em tantas igrejas do Senhor Jesus.
O leitor, evangélico ou não, com conhecimento de causa mas que este inconspícuo e pobre escriba, pode
opugnar estes escritos afirmando que a igreja de Cristo mudou no tempo e no espaço. Sim, o que não mudou foi o
homem, pois permanece, sempre, carente da graça de Deus e à margem do caminho, qual morfético rejeitado
pela igreja que não lhe dá acolhida e nem ajuda. Se estes rabiscos servirem para ―despertar‖ alguém para a ―bem-
aventurança do dar‖ e levar alguma igreja a ―reativar‖ ou ―criar‖ o Ministério da Beneficência fazendo dele uma
bênção para muitos, toda honra e toda glória hão de ser dados ―Autor da nossa fé‖, ―O primogênito dentre os
mortos‖, ―O Leão da tribo de Judá‖ e ―A Resplendente Estrela da Manhã‖ – Nosso Amável e Querido Salvador –
JESUS!.

Finalizando este prólogo, transcrevo a gratidão desse gigante do cristianismo – Apóstolo Paulo – na Carta
que escreveu aos crentes da Igreja de Filipos: ―Alegrei-me sobremaneira no Senhor porque, agora mais uma vez,
renovastes a meu favor o vosso cuidado; o qual também já tínheis antes, mas vos faltava oportunidade. Digo isto,
não por causa da pobreza, porque aprendi a viver contente em toda e qualquer situação. Tanto sei estar
humilhado, como também ser honrado; de tudo e em todas as circunstâncias já tenho experiência, tanto de
fartura, como de fome; assim de abundância como de escassez; tudo posso naquele que me fortalece. E sabeis
também vós, o filipenses, que no inicio do evangelho quando parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou
comigo, no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros; porque para Tessalônica mandastes não
somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. Não que eu procure o donativo, mas o
que realmente me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito. Recebi tudo e tenho abundância; estou
suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte, como aroma suave, como
sacrifício aceitável e aprazível a Deus. E o meu Deus, segundo a sua riqueza em glória, há de suprir em Cristo
Jesus, cada uma das vossas necessidades.‖ (Filipenses 4:10 a 19).

II. LEITURA BÍBLICA SOB A ÓTICA DA DIACONIA

 Um chamado para servir


Jesus, em sua vida, percorre cidades e aldeias. Ele vê pessoas e a multidão, entende o seu sofrimento,
tem palavras de ânimo e esperança. Ele acolhe, liberta e convida os pecadores ao discipulado (Mt 9.9-13), para
não pecarem mais ( Jo 8.1-11). Liberta e cura os doentes. Ver, ouvir, sentir, perdoar. Apontar para a tarefa, a
missão, faz parte do jeito de ser de Jesus.
Em todas as situações, Jesus demonstra muito respeito, afeto e compreensão para com as pessoas.
Jesus não atropela ninguém. Tem paciência, caminha junto, (Lc 24.13-35).
Para seguir o exemplo de Jesus, é preciso ver, ouvir, conhecer a situação concreta das pessoas, as suas
histórias, o seu modo de pensar, conhecer o contexto que as cerca e que nos cerca.
Deus deu a muitos de nós o potencial para ver, ouvir, sentir, tocar, cheirar, amar, compreender. Como
usamos esse potencial?

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Precisamos reagir como pessoas cristãs. A fé precisa colocar marcas em nosso contexto de vida e
esperança. Se diaconia é a vivência da fé no amor, se é uma forma de comunhão, urge lermos a Bíblia sob o
enfoque diaconal para conhecermos melhor o Cristo-diacono, para que nossas comunidades se tornem diaconais.
Convido para lermos juntos o texto de Lucas 13.10 a 17: A cura de uma enferma. Jesus nos traz este
exemplo porque a mulher da época fazia parte de um dos grupos de excluídos. Como é a realidade da mulher
hoje? O que mudou? O que permanece semelhante?
Queremos enfocar o texto sob três ângulos diferentes:

1. O texto como uma JANELA para o nosso contexto. Em grupos, conversar sobre os assuntos
propostos:
- Que lembranças este texto desperta de nossa realidade?
- Quem anda encurvado neste contexto? Por quê?
- O que leva as pessoas a abaixarem a cabeça, a andarem encurvadas?
- Que desculpas as autoridades dão para não cuidar dos problemas de saúde, educação, de justiça
social da cidade ou país?
- Quem vê e ajuda os encurvados do nosso contexto?
- O que nós, como comunidade cristã, podemos resolver? Que decisões podemos tomar? Que
passos dar?

2. O texto como um ESPELHO:


- Como eu me vejo no texto?
- O que o texto diz para mim?
- Quando eu ando encurvado(a)? Por que eu ando assim?

3. Sinais de ESPERANÇA e LUZ no texto:


- Para que sinais de esperança é vida esse texto aponta?
- Que desafios ele coloca para nós?
- Ele conforta, reanima, desafia?
Jesus coloca a VIDA acima de tudo. Ele questiona as leis sociais e preconceitos existentes quando se
trata de salvar e valorizar vidas. Viver diaconia é seguir o exemplo e o convite de Jesus.

Gisela Beulke, diaconisa, São Leopoldo, RS

 Texto do A.T. - I Reis 17.1-16


1 Elias, o tesbita, um habitante de Galaad, veio dizer a Acab: Pela vida do Senhor, Deus de Israel, a quem sirvo,
não haverá nestes anos orvalho nem chuva, senão quando eu o disser." 2 Em seguida a palavra do senhor foi-lhe
dirigida nestes termos: 3"Vai-te daqui; retira-te para as bandas do oriente e vai esconder-te na torrente de Carit,
que está defronte do Jordão. 4 Beberás da torrente, e ordenei aos corvos que te alimentem." 5 Elias partiu, pois,
segundo a palavra do Senhor, e estabeleceu-se junto ,a torrente de Carit, defronte do Jordão. 6 0s corvos traziam-
lhe pão carne, pela manhã e pela tarde, (ele bebia a água da torrente. 7 Passado algum tempo, secou-se a
torrente, porque não chovia mais na terra. 8 Então o Senhor disse-lhe: 9 Vai para Sarepta de Sidon e fixa-te ali:
ordenei a uma viúva desse lugar te sustente." 10 Elias pô-se a caminho para Sarepta. Chegando à porta da
cidade, viu uma viúva que ajuntava lenha. Chamou-a e disse-lhe: "Por favor, vai buscar-me um POUCO d'água
numa vasilha para que eu beba." 11 E indo ela buscar-lhe a água, gritou-lhe Elias: "Traze-me também um pedaço
de pão." — 12 Pela vida de Deus, respondeu a mulher, não tenho pão cozido: só tenho um punhado de farinha na
panela e um POUCO de óleo na ânfora; estava justamente apanhando dois pedaços de lenha para preparar esse
resto para mim e meu filho, a fim de o comeram, e depois morrermos." 13 Elias replicou: "Não temas; volta e faze
como disseste; mas prepara-me antes com isto um pãozinho, e traze-no; depois prepararás o resto para ti e teu
filho. '14 Porque eis o que diz o Senhor, Deus de Israel: a farinha que está na panela não se acabará, e a ânfora
de azeite não se esvaziará, até o dia em que o Senhor fizer chover sobre a face da terra." 15 A mulher foi e fez o

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que disse Elias. Durante muito tempo ela teve o que comer, e a sua casa, e Elias.16 A farinha não se acabou na
panela nem se esgotou o óleo da ânfora, como o Senhor o tinha dito pela boca de Elias. 17 Algum tempo depois,
o filho desta mulher, dona da casa, adoeceu, e seu mal era tão grave que já não respirava.

 Texto do N.T. - Lucas 13.10-17


10 Estava Jesus ensinando na sinagoga em um sábado. 11 Havia ali uma mulher que. havia dezoito anos era
possessa de um espírito que a detinha doente: andava curvada, e não podia absolutamente erguer-se, 12 Ao vê-
la. Jesus a chamou e disse-lhe: "Estás livre da tua doença", 13 impôs-lhe as mãos e no mesmo instante ela se en-
direitou, glorificando a Deus. 14 Mas o chefe da sinagoga, Indignado de ver que Jesus curava no sábado, disse ao
povo: "São seis os dias em que se deve trabalhar; vinde, pois, nestes diaspara vos curar, mas não em dia de
sábado.15 Hipócritas! disse-lhes o Senhor, não desamarra cada um de vós no sábado o seu boi ou o seu jumento
da manjedoura, para os levar a beber? 16 Esta filha de Abraão, que Satanás paralisava há dezoito anos, não
devia ser livre desta prisão, em dia de sábado? 17 Ao proferir estas palavras todos os seus adversários se
encheram de confusão, ao passo que todo o povo, à vista de todos os milagres que ele realizava, se
entusiasmava.

III. APROFUNDANDO O TEMA


1. Introdução
Iniciamos a jornada de interpretação dos textos assim chamados clássicos da diaconia: o julgamento final,
o bom samaritano e o lava-pés. A tradição atribuiu principalmente a eles a função de fundamentar a ação caritativa
da Igreja. São os textos que, no decorrer da história cristã, mais serviram de inspiração e de apoio às iniciativas de
pessoas, comunidades e instituições na área da assistência fraternal. Por isso, sua inclusão neste trabalho se
justifica por si.
A terminologia diaconal é empregada apenas no texto das obras de caridade da Igreja. Isto facilita uma
conexão direta com o tema da diaconia: dar de comer a pessoas famintas, dar de beber a pessoas sedentas,
vestir pessoas nuas, acolher pessoas forasteiras, visitar pessoas doentes e presas são obras consideradas
diaconais no texto grego original. Trata-se de uma relação de obras caritativas assimilada da tradição judaica e
assumida pelas primeiras comunidades cristãs como ensinamento de Jesus; essa relação reúne seis obras,
representativas de toda a ação de ajuda a pessoas necessitadas.
A interpretação de Mt 25.31-46 recebe ênfases diferenciadas em épocas e contextos diferentes. Três são
as principais linhas interpretativas na teologia. Apresentamos sucintamente as três e desenvolvemos aquela que
nos parece coerente. Na análise, cabe responder principalmente a duas perguntas: no texto, quem são as
pessoas que receberam ajuda e quem são as que ofereceram ajuda? A resposta a essas perguntas constrói
pontes para a conceituação de diaconia hoje.
A ligação dos textos do bom samaritano e do lava-pés com a diaconia se faz através do tema do amor ao
próximo. Em Lc 10.25-37 a narrativa da ação caritativa do samaritano é desenvolvida a partir da pergunta do
intérprete da lei: "Quem é o meu próximo?" A análise do texto mostra que a tarefa de redefinir o "próximo" hoje
necessariamente encaminha à relação do texto com a compreensão de diaconia nos evangelhos.
O texto do lava-pés (Jo 13.1-20) não pode ser separado do tema do novo mandamento (Jo 13.31-35).
Portanto, o que aqui é ensinado como amor ao próximo, ali é demonstrado num gesto concreto de serviço. O fato
de se tratar, no lava-pés, de um trabalho atribuído a escravos, que fazia parte do servir à mesa, o coloca em
ligação com o significado original de diaconia.
Que conexão haverá entre esses três textos e a pergunta pelas dimensões prática, profética e comunitária
da diaconia? Será possível ler os textos clássicos da diaconia na ótica da nova ordem fundamental da
comunidade, de Mc 10.35-45?

2. Mateus 25.31-46 (o julgamento final das nações)

2.1. Três interpretações


O texto de Mt 25.31-46 tem recebido, ao longo dos tempos, principalmente três interpretações. Conhecê-
las pode evitar conclusões precipitadas. Uma descrição objetiva nos é oferecida por Ulrich Luz, a qual passamos a
apresentar de maneira sucinta.

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a) O tipo de interpretação universal defende que o critério no julgamento final de todos os povos será o
das obras de amor e misericórdia realizadas em favor (ou não) de todas as pessoas marginalizadas, pobres e
sofredoras no mundo (tanto cristãs quanto não cristãs), pessoas essas que são identificadas como as mais
pequeninas irmãs e os mais pequeninos irmãos de Jesus. Nesse tipo de interpretação, o não-saber de que as
boas obras feitas aos pobres eram feitas ao Filho do homem é, geralmente, parte constitutiva. Esse é o tipo de
interpretação mais difundido hoje, por causa de suas diversas dimensões de sentido, tornando-se quase um bem
comum; teve o seu florescimento nos inícios do século XIX.
b) O tipo de interpretação clássica restringe os pequeninos irmãos e as pequeninas irmãs da narrativa aos
membros da comunidade cristã; geralmente se pensava em todos os membros da comunidade, sendo mais raro
um estreitamento desse significado até os apóstolos. Quanto à expressão pánta ta ethne (todos os povos), na
maioria dos casos é interpretada no sentido universal, sendo que o papel dos não-cristãos no julgamento ficava
indefinido; mas há também muitos que a entendem como referência a todos os cristãos. Disso resultava um
sentido claro: para os cristãos, o critério no julgamento final eram as obras de caridade que praticavam ou dei-
xavam de praticar em relação a seus irmãos cristãos pobres e sofridos. A intenção dessa interpretação geralmente
é parenética: o texto quer motivar as comunidades para as obras de caridade. O não-saber das pessoas a respeito
de Cristo não tinha uma função clara nessa modalidade de interpretação, sendo usado como expressão de humil-
dade dos justos. Esse tipo era uma interpretação da Igreja, largamente difundida até aproximadamente o ano de
1800.
c) O tipo de interpretação exclusivo não entende a expressão pánta ta éthne como sendo todos os povos, mas
todos os gentios. As cristãs e os cristãos estão ao lado do juiz e não passarão pelo julgamento. Diante do trono
estão, portanto, apenas os não-cristãos e as não-cristãs, que são julgados e julgadas de acordo com o seu
procedimento em relação às pessoas cristãs. Portanto, "os pequeninos irmãos" são aqui interpretados como
sendo as pessoas cristãs e, às vezes, também só os apóstolos e os missionários. Nessa interpretação, o texto não
tem uma função parenética, mas de consolo para os missionários cristãos oprimidos e perseguidos. Esse tipo é
caracterizado por um espírito bem mais estreito, quase sectário, que surge no século XVIII e que esporadicamente
durante o século XIX e principalmente a partir de 1960 ganha cada vez mais expressão.

2.2. A interpretação clássica — uma alternativa


Apesar de que na atualidade o debate gire em torno dos tipos universal e exclusivo, Ulrich Luz opta pelo
tipo que se encontra à sombra, o clássico, com os argumentos que seguem.

2.2.1 Quem são os "benditos" que serviram?


Nos w. 34-36 são mencionadas pessoas que foram declaradas benditas no julgamento por terem assistido
pessoas famintas, sedentas, nuas, forasteiras, doentes e presas. O desafio para a interpretação do texto nessa
forma alternativa é reunir evidências quanto à identidade dessas pessoas, assim como é decisivo desvendar,
adiante, quem são as pessoas assistidas. Ulrich Luz inicia a busca junto às obras caritativas, alistadas nos
versículos mencionados.
A relação das obras caritativas era bem familiar aos judeus, sendo que em suas listagens era mais
frequente a combinação famintos-nus; raro era encontrar menção à visita a pessoas presas. Diante disso, o autor
pergunta se esse tipo de visita não é referência a um traço caracterizador da situação do cristianismo primitivo.
Pois especialmente missionários cristãos tinham que contar com a possibilidade de serem presos. A visita às
prisões era importante pelo fato de os prisioneiros não receberem nenhum tipo de assistência. "Para missionários
cristãos itinerantes, que não podiam contar com a presença de familiares [em caso de prisão], a ajuda através das
comunidades era especialmente necessária.
A partir desse dado, Ulrich Luz começa a construir sua tese de que as pessoas mencionadas nos w. 35s.
são as cristãs e os cristãos de pós-páscoa, surpresas com o fato de terem feito obras de amor ao próprio Jesus,
sem que o pudessem encontrar pessoalmente após a sua morte.
O autor justifica sua afirmação da seguinte maneira: numa comunidade cristã, num contexto de
necessidades, se pensa primeiro nos membros da própria comunidade, que se chamam entre si de irmãs e
irmãos. Os raros documentos da tradição que tratam dos "irmãos de Jesus" apontam, conforme o autor, nessa
mesma direção. Acrescenta ele que, no Evangelho de Mateus, os "irmãos de Jesus" são aquelas pessoas que
:
fazem a vontade de Deus (quer dizer, os discípulos, conforme 12.49s.) . Também na história da Páscoa, Mateus
usa mais uma vez a expressão "meus irmãos", relacionando-a com os discípulos.
A designação de "mais pequeninos" (eluchístoi) se deve, conforme o autor, à intenção de contrastar os
membros da comunidade com o "grande" rei celestial e juiz universal, de acentuar a enorme distância que há entre
as pessoas necessitadas em questão e esse rei e, com isso, elevar grandemente o impacto da surpresa da
identificação do rei com essas pessoas.

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2.2.2 Quem são os "mais pequeninos" irmãos de Jesus?


Quem são, para o autor do texto, os "pequeninos irmãos" (adelfoi elachístoi) de Jesus, mencionados no v.
40, ou seja, as pessoas famintas, sedentas, nuas, doentes, presas, forasteiras? Segundo Ulrich Luz, não se deve
construir o sentido de eláchistos fora do texto de Mt 25; só do conteúdo dos w. 35-39 se deve deduzir em quem as
pessoas ouvintes e leitoras estão pensando. Partindo desse princípio, o autor apresenta sua argumentação, como
segue.
Se as pessoas que promoveram assistência são da comunidade cristã, e se essa assistência tendia
naturalmente a se dar entre irmãs e irmãos, então faz sentido perguntar se os elachístoi representam um grupo
especial dentro da comunidade cristã. O autor está seguro de que, a partir da consulta a muitos textos anteriores
ao de Mateus, deve-se cogitar o grupo dos missionários itinerantes da Igreja cristã primitiva. Vale a pena conferir
alguns textos que apoiam essa tese.
Ulrich Luz continua afirmando que do discurso no qual Jesus envia os discípulos à missão (Lc.IO)
podemos depreender que esses mensageiros eram pobres (Lc.10.4). Eles estavam a caminho; portanto, eram
xénoi (forasteiros), dependentes de ganhar comida e bebida (Lc.10.7s.; compare com Mt 10.42). Possuíam
apenas um vestido (Mc 6.9); se esse se rasgasse, tornavam-se gymnoí (nus). Arriscavam suas vidas (Lc.12.4-7) e
tinham que prestar contas às autoridades (Lc.12.8s.,lls.; compare com Mc 13.9-13), que os podiam lançar à prisão
(cf. Lc.12.11 s.).
Também o apóstolo Paulo, em referência a seu ministério, fala de fome, sede, prisões, frio, nudez (l Co 4.
lis.; 2 Co 6.4s.; 11.23-27) e doença (2 Co 12.7-9).
Com base nesses documentos, Ulrich Luz constata que as obras de caridade enumeradas em Mt 25.35ss.
cabem perfeitamente dentro da situação dos missionários cristãos itinerantes. Acrescenta que o Senhor ressurreto
se identificou justamente com esses mensageiros peregrinos e sua mensagem; eles também sabiam que as
pessoas que os rejeitassem tinham um juízo pior que o de Sodoma e Gomorra pela frente (Lc.10.12, compare com
6). A eles Jesus dizia: "Quem vos ouvir, ouve-me a mim; quem vos rejeitar, rejeita-me a mim'' (Lc.10.16).
Essa sentença fundamental do apostolado da Igreja cristã primitiva corresponde ao direito do mensageiro
judeu e certamente é pressuposta pêlos w. 40 e 45. O apóstolo Paulo aprofunda-a na sua teologia da cruz, em 2
Co 4. IO.
O texto informa que esses missionários cristãos itinerantes foram socorridos por pessoas que ignoravam
estar prestando um serviço ao próprio Jesus com seus gestos concretos de amor. Ulrich Luz pensa que
provavelmente não se deve transportar os motivos do não-saber do mundo do texto para o mundo real; porque
seria difícil explicar de que forma pessoas que nunca ouviram falar de Jesus teriam servido a seus pequeninos
irmãos missionários. Pois pressupõe-se que esses mensageiros não teriam deixado de anunciar-lhes a boa nova
de Cristo.
Por isso, o autor defende a idéia de o não-saber ser um recurso literário, com a função de articular o ponto
alto do texto, no v. 40. Se as pessoas presentes ao julgamento já tivessem, em sua vida terrena, consciência da
identificação de Jesus com os pequeninos irmãos, então o juiz não mais o precisaria expressar; dizê-lo, porém, é a
principal intenção do texto. Por isso, o não-saber possibilita literariamente a construção da ênfase; ele torna a
ênfase impressionante na medida em que as pessoas ouvintes ou leitoras do texto vivenciam a surpresa
juntamente com as pessoas julgadas.
Além disso, o não-saber evita uma compreensão equivocada de recompensa a partir do texto: as pessoas
consideradas justas no julgamento não realizaram obras de amor visando recompensa. Por isso, avalia o autor,
não se deve buscar no mundo extratexto pessoas que nada sabem de Cristo, como se o texto tratasse apenas
delas; o tema da narração não é a descoberta de um caminho especial que conduz a Deus, sem conhecimento e
confissão de Cristo.

2.2.3 A sabedoria da comunidade de Mateus.


Conforme Ulrich Luz, o exposto permite ver que a larga experiência e grande conhecimento da tradição
que as pessoas leitoras do Evangelho de Mateus possuíam, podiam levá-las a identificar os "pequeninos irmãos
de Jesus" com os missionários itinerantes. Essas pessoas devem ter se lembrado da instrução dada por Jesus a
seus discípulos, quando os enviou em missão para o meio de um ambiente estranho e hostil (Mt 10). Ali lhes foi
dito que seriam peregrinos, estrangeiros (10.5s.; compare com 28.19), pobres (10.9s.), dependentes de
hospitalidade (10.11-15), sujeitos aos perigos da hostilidade, dos processos e ameaças à vida (10.17-23,28s.;
compare com 24.9).
Os destinatários do evangelho não se encontram na confortável posição de quem, no juízo, tem suas
reivindicações atendidas, mas naquela da pessoa a quem está sendo perguntado, por exemplo, "se deram de
beber ainda que um copo de água fria a um desses pequeninos, por ser esse o meu discípulo" (10.40-42).

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

Então, certamente se lembrarão que em sua própria comunidade o amor se esfriou, que o liberalismo
tomou conta (24.12; compare com 18.6-9), que em seu meio há traição e ódio (24.10), ambição pelo poder, fato
que ensejava a reiterada insistência de Jesus na necessidade da humildade (18.1-50) e do servir (20.20-28; 23.8-
11).
Devido a isso, o autor pensa que as pessoas das comunidades, ao lerem ou ouvirem o v. 40, não se
identificarão, sem mais, com os "pequeninos irmãos", como se não mais estivessem sujeitas ao juízo. Pelo
contrário, sabem-se desafiadas pela pregação de Jesus da mesma forma que todas as outras pessoas, e sabem
também que a própria comunidade pode estar no campo de ação do diabo, assim como o resto do mundo (cf.
13.38s.). Enfim, também elas fazem parte do pánta ta éthne e serão julgadas pelo mesmo critério de todas as
outras pessoas do mundo.
O autor constata que, no diálogo do juiz com as pessoas condenadas (25.41-45), fica evidente que a
relação com Jesus não pode ser separada da relação com pessoas necessitadas bem concretas (aqui, no caso,
aquelas pessoas da comunidade que o representam). Honrar a Jesus não significa outra coisa a não ser realizar
aquilo que ele ordenou, de levar a sério, acima de tudo, o mandamento do amor. No v. 44, as mesmas pessoas
sintetizam todas as obras de caridade na palavra diakonéo, dando a entender seu reconhecimento de que em sua
vida deveriam ter agido diaconaímente como o Filho do homem agiu (cf. 20.26,28; 23.11).

2.3 As implicações desta interpretação


Esta interpretação de Ulrich Luz se distingue completamente da maioria das abordagens de Mt 25.31-46,
inclusive da proposta por autores da Teologia da Libertação. Gustavo Gutiérrez adere à interpretação do sentido
universal dos "pequeninos irmãos" e trata Mt 25 no contexto da conversão ao próximo, entendendo o próximo
como sendo "todos os necessitados"; com eles Jesus se identifica. Sem dúvida, a interpretação chamada
universal é cativante, principalmente num contexto em que famintos, sedentos, nus, forasteiros, doentes e
encarcerados representam a maioria das populações dos países subjugados, enquanto os mensageiros e as
mensageiras de Jesus não são, por via de regra, pessoas e instituições pobres. Retirar essa possibilidade de
contextualização parece um prejuízo irreparável para a diaconia, que quer articular seus fundamentos bíblico-
teológicos e tem tido justamente nesse texto um de seus principais esteios.
Entretanto, quem sabe esteja nessa outra forma de interpretar justamente a "salvação" da diaconia,
criticada, com razão, pela Teologia da Libertação, de estar sendo "caridade do tipo individualista.
"Salvação" da diaconia, porque essa interpretação desmascara as seguidoras e os seguidores de Jesus que se
colocam numa posição "defronte" às pessoas pobres, como sendo os irmãos e as irmãs sempre mais fortes em
relação aos outros, sempre carentes e, por isso, mais fracos e dependentes da caridade alheia.
No texto, as seguidoras e os seguidores de Jesus são as pessoas pobres, de mãos vazias, dependentes
da solidariedade alheia. Esse dado faz parte da tese principal de Ekkehard Heise sobre o texto em questão: "Os
cristãos pertencem aos necessitados, não estão frente a eles .
Está-se falando, portanto, de uma Igreja que não pode exibir recursos e, por isso, não é movida pelo
sentimento de ser forte e estar sempre em condições de ajudar os pobres: Jesus chama seus seguidores ao
serviço. Porém não pensava em super-homens, ajudantes ininterruptos, salvadores para todos os problemas. Uma
Igreja que sempre adota uma posição "em relação" aos pobres na verdade não consegue se identificar com os
mesmos, promovendo, em consequência, uma diaconia "de cima para baixo", um assistencialismo individualista e
paternalista, que enxerga nas pessoas necessitadas seus dependentes, transformando a diaconia numa forma de
dominação, contrária à proposta de Jesus, em Mc 10.35-45.
É oportuno registrar, com Ekkehard Heise, que "Mt 25 não é um argumento contrário a uma diaconia que
se baseia na irmandade de Jesus com os necessitados e pobres. Não se discute a opção preferencial de Deus
pelos pobres que também se expressa assim. Há uma ampla base de textos em seu favor. Porém Mt 25.31-46
tem sua importância em outro campo da discussão.
Além de se referir a uma Igreja socialmente pobre, o texto de Mateus está expressando que essa Igreja
tem uma estrutura diaconal: ela dá assistência "aos mais pequeninos irmãos" nos casos de fome, sede, nudez,
doença, forasteirismo e prisão. As pessoas condenadas do texto se referem a essas tarefas usando o verbo
diakoneín (v. 44), cujo significado original são todas as providências que viabilizam o atendimento às
necessidades básicas cotidianas das pessoas.
Ressalte-se, mais uma vez, que esse termo é acolhido do universo escravo, do sistema escravista e
patriarcal. Portanto, tarefas como as obras de caridade são, na verdade, trabalhos realizados nos bastidores das
casas (trabalhos de infra-estrutura), considerados indignos e, por isso, convencionalmente não feitos pelo homem
livre, mas pêlos escravos e pelas mulheres.
Luise Schottroff afirma que essa diaconia das obras de caridade tem, por isso, no Novo Testamento, uma relação
especial com o papel da mulher, dona de casa, cristã. Resulta dessa constatação que Jesus, ao identificar-se com
a comunidade pobre, o faz de maneira especial com as mulheres que na comunidade realizam o serviço de

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escravas e escravos para socorrer pessoas em suas necessidades vitais; as mulheres, além de pobres, eram
discriminadas.

2.4 Mateus 25.31-46 e a ordem fundamental


Aqui é possível detectar a ponte que há entre Mt 25.31-46 e o texto de referência do presente trabalho, Mc
10.35-45: a comunidade de seguidoras e seguidores de Jesus é desafiada, em Marcos, a trilhar o caminho da cruz
e não o da glória; isso implica a renúncia a todas as formas de poder que geram a dominação na convivência
comunitária; por isso, Marcos propõe a constante e radical inversão: "Quem quiser tornar-se grande entre vós,
será esse o que vos sirva" (Mc 10.43). Resulta, assim, uma comunidade diaconal, de ajuda recíproca constante
entre seus membros.
Mateus, por seu turno, também "se move contra um exercício do poder-dominação dentro da comunidade
eclesial (23.8-11). Apresenta a comunidade como aquela que não está em situação de dominação, mas exposta à
solidariedade alheia. Para se desincumbir da missão de testemunhar a Jesus Cristo ao mundo, a comunidade
envia seus mensageiros, despojados de toda segurança e sujeitos aos riscos da fome, sede, nudez, doença,
forasteirismo e prisão, condição essa ordenada pelo próprio Jesus por ocasião do envio de seus discípulos à
missão (Mt 10.5-15). Portanto,a dependência de outros é uma característica dos seguidores de Jesus"; tanto em
Marcos quanto em Mateus, "esta necessidade dos cristãos não era uma mera desgraça e má sorte, mas um fato
constitutivo e parte da missão e do serviço cristão.
Em consequência dessa situação da Igreja primitiva, podemos falar em uma diaconia passiva, além da
ativa. As pessoas cristãs sofrem a solidariedade de outras pessoas (seja por parte de membros da comunidade
cristã, seja por parte de "pagãos"). Com isso, estabelece-se uma relação que não é assimétrica, de superioridade
das pessoas cristãs que ajudam e de dominação através do serviço, mas de abertura em relação às outras
pessoas e ao mundo, de parceria no dar e no receber. Dessa forma, "se evita o perigo de uma separação e logo
uma confrontação entre os cristãos (sempre os irmãos fortes) e os necessitados (sempre os outros, os irmãos
mais humildes).
Dá-se a comunicação através do canal do amor (materializado no serviço mútuo) e não do poder. "O
poder do amor possui natureza diversa do poder-dominação; ele é frágil, vulnerável, conquista pela fraqueza e
pela capacidade de doação e de perdão.
As primeiras cristãs e os primeiros cristãos nada mais estavam fazendo, nesse sentido, do que seguir o
exemplo de Jesus, que "renunciou ao poder-dominação; preferiu morrer fraco a usá-lo para subjugar os homens e
fazê-los aceitar sua mensagem. Assim como Jesus, no seu despojamento, aceitou humildemente a ajuda de
pessoas (cf. Lc 8.1-3), suas seguidoras e seus seguidores também se caracterizam pela humildade de receber
ajuda e dar ajuda.
Nessa Igreja fraca, pobre e aberta a todas as pessoas é que se mostra o caráter de universalidade de Mt
25.31-46. O texto se interessa pelo destino de todas as nações, que se decide de acordo com a atitude que
tomam frente aos "meus mais pequeninos irmãos". Ulrich Bach confirma isso em sua tese principal sobre o texto:
"Trata-se da declaração de que não somente o pessoal miserável de serviço de Jesus (...) vá herdar o Reino, mas
também todos os pagãos que (...) aliviaram um pouco os cristãos em sua miséria". As pessoas pagãs que
serviram a Cristo através das pessoas cristãs necessitadas são benditas juntamente com as pessoas cristãs que
também serviram (v. 34). Nesse sentido, a Igreja feita de pobres, que exercita o discipulado na perspectiva da
cruz, não se fecha ao mundo, mas o ganha para o Reino.
Parece que aqui está o ponto de encontro dessa interpretação de Mt 25.31-46 com a eclesiogênese
preconizada pela Teologia da Libertação:
Assiste-se, um pouco por toda parte, ao surgimento de uma Igreja nova, gestada no coração da velha;
comunidades de base, nas periferias das cidades, Igreja dos pobres, feita de pobres (...) É uma Igreja que
renunciou definitivamente ao poder político; o eixo centralizador reside na ideia de Igreja-Povo-de-Deus,
peregrino, aberto à aventura histórica dos homens, participando de todos os riscos e se alegrando com as
pequenas conquistas, com um sentido muito profundo de seguimento de Jesus Cristo, identificado com os
pobres, os tresmalha-dos e deserdados da terra.
Mateus 25.31-46 se refere à Igreja, Igreja despojada, Igreja de pessoas pobres, Igreja de mulheres, de
escravas e escravos. Com ela Cristo se identifica. A Igreja com a qual Cristo se identifica é a Igreja que se
identifica com as pessoas pobres num sentido universal.

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3. Lucas 10.25-37 (o bom samaritano)


3.1 A pergunta pela vida
A pergunta pela vida parece ser a preocupação maior do texto, levantada logo no início: o intérprete da lei
quer saber o que deve fazer para herdar a vida eterna (v. 25). A resposta ele conhece melhor do que ninguém:
amar a Deus e ao próximo (v. 27). Jesus confirma a exatidão da resposta. Há um consenso teológico entre os
interlocutores; entretanto, Jesus faz depender a eficácia dessa teoria acordada do "faz isto". Esse é um texto que
tem a prática como tema. A vida tornar-se-á uma realidade se o mandamento do amor for praticado (v. 28).
Se a prática do amor ao próximo é determinante, então o intérprete da lei exige uma melhor definição de
meu próximo, certamente para evitar que se invista numa prática com alvo equivocado e, em consequência, se
sofra prejuízos na recompensa, que será a vida. Atrás dessa preocupação está a ideia seletiva e excludente:
"Quem deve ser e quem não deve ser considerado meu próximo?.

3.2 Quem é o meu próximo?


A interrogação formulada dessa forma determina o ponto de partida para o agir diaconal na própria pessoa
que pergunta. Podemos ampliar a problemática para o nível eclesiástico e perguntar: a instituição eclesiástica (ou
seu departamento diaconal) pode definir a partir de si mesma a quem quer considerar seu próximo, a quem quer
dedicar seus serviços? O texto denuncia essa atitude como farisaica. Se adotada pela diaconia, reduzi-la-ia a uma
extensão de si mesma.
Na parábola do bom samaritano, Jesus nos mostra a partir de onde devemos articular a diaconia: a partir
da outra pessoa, daquela pessoa que mais necessita de ajuda para viver, que está mais distante da vida plena,
duradoura, perene. Jesus inverte a preocupação inicial do intérprete da lei: muda a pergunta "que devo fazer para
herdar a vida?" em "que devo fazer para que a outra pessoa (cuja vida está ameaçada) tenha vida?.
A mesma inversão é apresentada por Lucas em, pelo menos, outros dois momentos de seu evangelho:
a) Quando João Batista pregava a proximidade do reino de Deus e exigia os frutos da metánoia, as
pessoas também perguntavam: "Que havemos, pois, de fazer [para herdar o Reino]?" (Lc 3.10ss.). João responde:
"Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo". (Aqui aparecem duas
obras de caridade, provavelmente representando as seis, de Mt 25.31-46; no juízo final, conforme o concebe
Mateus, elas também são critério para a entrada no Reino). Portanto, a outra pessoa necessitada determina a
ação no próprio reino de Deus; conversão para o Reino implica, então, mudança de mentalidade e atitude que
coloca a ação misericordiosa em relação às pessoas mais necessitadas como critério fundamental.
b) Jesus confirma a pregação de João Batista, quando literalmente a mesma pergunta do nosso texto,
"que farei para herdar a vida eterna", lhe é dirigida da parte do "jovem rico" (Lc 18.18ss.); a resposta é: "Vende
tudo o que tens, dá-o aos pobres, e terás um tesouro nos céus''. Portanto, alguém torna-se próximo de outra
pessoa por causa da necessidade vital desta. Pois "próximo é aquele que rompeu o círculo de si mesmo e se
debruçou sobre o outro abandonado, que rompeu — para dizê-lo com palavras de Lutero – com o incurvatus in se.

3.3 O paradigma da ação samaritana


Essa redefinição do "próximo" está em coerência com o ministério do próprio Jesus, que tornou-se
"paradigma da ação samaritana da Igreja, por romper sempre o círculo de si mesmo para debruçar-se sobre o
outro abandonado.
Foi, por excelência, o próximo de todos aqueles que a história do seu tempo havia assaltado, expropriado,
e pisoteado (...). O grande desafio para a sua época Jesus parece ter visto no seguinte: era necessário
descobrir o próximo nas pessoas de outros credos religiosos (gentios, samaritanos), classes (pobres),
sexos (mulheres), idades (crianças), ideologias (zelotes, p. ex.) (...) Era ali que a vida plena corria perigo e
era ameaçada.
Por isso, a Igreja encontra o sentido de sua existência no "prolongamento desse serviço de Jesus a todos
os homens, particularmente aos humilhados e ofendidos da nossa história.

3.4 Redefinindo o "próximo" de hoje


Uwe Wegner chama a atenção para o fato de que a necessidade de redefinir o amor e o próximo se impõe
hoje tanto quanto era exigida no século I e constata que continuam extremamente atuais muitos dos desafios da
época de Jesus, pois "há discriminação e ódio por causa da diferença de raça, cor, idade, classe e ideologia‖.
Da mesma forma, Leonardo Boff, preocupado em contextualizar nosso texto, diz: "A parábola do bom
samaritano coloca em termos extremamente concretos qual deve ser a missão da Igreja na América Latina. A

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missão da Igreja significa sempre um serviço aos homens, especialmente como aquele da parábola, homens
caídos e semimortos (v. 30). E, no parecer do mesmo autor, o que vive o continente sul-americano se assemelha
ao que se passa na parábola: Desde sua descoberta depende de outros que o despojam, lhe fazem violência e o
deixam semimorto. (...) um continente inteiro está caído junto à estrada, vítima de secular espoliação.‖
Diante de nossos olhos está colocada, pois, uma realidade da outra pessoa necessitada que se traduz
como povo espoliado, povo feito pobre. Pobreza aqui não significa "uma etapa casual, mas o produto de
determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas. Essa realidade de pobreza recebeu sua
correta definição em Puebla como sendo "o mais devastador e humilhante flagelo. A partir dessa realidade
historicamente concreta, como se fosse a cena do assalto da parábola, a Igreja é desafiada a redefinir
constantemente o seu agir diaconal.
Entretanto, a busca pela redefinição do agir diaconal a partir do outro assaltado, espoliado, empobrecido
estaria incompleta se a restringíssemos ao ser humano colocado nessa situação. E imprescindível ampliar, com
Uwe Wegner, o horizonte dessa busca para o universo da ecologia, já que a pessoa pobre precisa ser vista,
enquanto criatura de Deus, num sentido bem mais amplo, incluindo sua relação com a natureza. O autor parte do
princípio de que, se o tornar-se próximo significa aproximação a pessoas ou grupos para protegê-los e defendê-los
de opressão e injustiça, então "em termos de ecologia não pode haver mais dúvida de quem está — em nosso
século XX — mais à mercê de rapinagem, exploração e assaltos: trata-se da natureza, da criação de Deus. A
poluição e a devastação da criação de Deus são provas, conforme o autor, de que "a civilização ocidental (...) não
soube tomar-se um próximo para ela: tornou-se seu salteador; 'rouba-lhe tudo, causa-lhe muitos ferimentos e,
retirando-se, deixa-a semimorta' (v. 30).

3.5 "Vendo-o, compadeceu-se dele"


Diante da realidade exposta de criatura e criação ameaçadas em suas vidas, a parábola do bom
samaritano oferece ainda duas orientações, que registramos sucintamente a seguir.
a) O texto insiste na importância da visão. Uwe Wegner detecta essa ênfase, observando que o texto
lança mão, três vezes, do verbo ver: um sacerdote, vendo-o, passou de largo (v. 31); um levita, vendo-o, passou
de largo (v. 32); certo samaritano, vendo-o, compadeceu-se dele (v. 33). Analisando a maneira como o verbo é
usado, o autor conclui que ver, por si só, parece não desencadear a ação; porém o ato de compaixão parece
pressupor o ver. Portanto, "sem ver, reconhecer, identificar no caído uma pessoa ferida, roubada e assaltada, não
há ação de misericórdia. O autor se refere ao poder de determinação que está na "leitura" dos fatos: a "visão" que
alguém tem, por exemplo, de uma criança de rua determinará a atitude de ser ou não próximo dessa criança.
Resulta disso para a diaconia o aprendizado de valorizar a visão correia da realidade, a leitura crítica dos
acontecimentos, a perspectiva a partir da qual se interpreta os fatos, o conhecimento de causa, para que a ação
misericordiosa não seja acusada de míope e ingênua.
Para dizê-lo com Uwe Wegner, é necessário desenvolver a sensibilidade para a percepção além do óbvio, pois
nem tudo é visível a olho nu.
b) O texto insiste na ação misericordiosa. Cai na vista, como o constata Wolfgang Wiefel, que a narrativa
se caracteriza pela objetividade até o v. 33. Aí o autor muda o estilo para expor largamente o feito do bom
samaritano, descrevendo-o com detalhes e precisão.
Na percepção de Wilhelm Herbst, o destaque dado ao agir do samaritano se mostra no caráter exemplar
da intervenção: descreve-se uma ação arriscada, corajosa (os ladrões podiam estar ainda por perto), ação cheia
de sacrifício (atraso em sua viagem, gastos pessoais...), assistência qualificada (aplica vinho para desinfetar e
óleo para aliviar a dor e cicatrizar a ferida), ação solidária sem preconceito (não faz perguntas sobre raça ou
confissão religiosa do assistido), ação com preocupação de futuro (assumindo as despesas até o restabelecimento
completo do assaltado).
Uwe Wegner interpreta o interesse de Jesus nessa ênfase descrita como intenção de dizer que tornar-se
próximo de alguém implica investimento em termos de tempo, dedicação, sacrifício, material, dinheiro em favor
daquela causa pela qual optamos por trabalhar. "A verdade é que o samaritano entendeu dever materializar
também financeiramente o seu amor ao próximo. Assim, o texto expõe de forma extremamente clara a dimensão
prática da diaconia.
O ver criterioso e o agir misericordioso do bom samaritano: eis dois desafios para que a Igreja de hoje vá
e proceda de igual modo; assim poderá fazer florescer, para as multidões caídas à beira do caminho, vida plena e
duradoura.

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3.6 O bom samaritano e a ordem fundamental


Sem muito esforço, vislumbramos as ligações da parábola do bom samaritano com o texto de referência
de Mc 10.35-45. Vejamos:
a) A vida plena, duradoura e eterna é o objetivo do servir e da doação da própria vida do Filho do homem,
em Mc 10: ele resgata, já durante o seu ministério terreno, as vidas que foram assaltadas pêlos poderes
escravizadores e o faz, pela cruz, para a eternidade.
b) Assim como os irmãos Zebedeu ambicionavam ser grandes (mégas), o intérprete da lei queria
determinar, a partir de si, quem seria seu próximo (diaconia de cima para baixo). Em ambos os textos, Jesus
inverte a situação, colocando os últimos (eschátoi) como ponto de partida para a estruturação da vida comunitária.
Em ambos os textos a proposta de Jesus é romper com o círculo de si mesmo e debruçar-se sobre o outro
abandonado, transformar o poder-dominação em serviço de resgate das pessoas caídas.

4. LAVA-PÉS E O NOVO MANDAMENTO (JO 13.1-35)

4.1 Estrutura
A narrativa do assim chamado lava-pés se encontra no início da segunda parte do Evangelho segundo
114
João, desenvolvida sob o tema da revelação da glória de Jesus diante da comunidade , abrangendo os capítulos
13 a 20. Num contexto menor, o lava-pés está inserido na despedida de Jesus de seus discípulos (capítulos 13-
17), bloco também denominado de "o testamento de Jesus para seus discípulos. Os w. l a 30 do capítulo 13
316
podem receber separadamente o título de "última ceia de Jesus" , enquanto que a narrativa específica do lava-
pés se restringe a 13.1-20 e recebe de Bultmann o título sugestivo de a constituição da comunidade e sua lei.
A estrutura do próprio texto do lava-pés pode ser dividida nas seguintes partes: introdução (vv. 1-3);
descrição do ato do lava-pés (4-5); diálogo entre Jesus e Pedro e a primeira explicação do ato (6-11); instrução
aos discípulos e a segunda explicação do ato do lava-pés (12-20). A indicação do traidor (vv. 21-30) não será
incluída na presente abordagem. Na sequência, serão considerados os versículos 31-35, que tratam do "novo
mandamento" deixado por Jesus para a sua comunidade.

4.2 O ato do lava-pés


Lavar os pés era um serviço contado entre os mais humildes. Há quem afirme ser esse um trabalho de
escravas e escravos, tão humilhante que não se o exigia do escravo israelita e sim apenas do gentio. Entretanto,
Rudolf Schnackenburg afirma que "não era simplesmente um serviço de escravos, mas fazia parte também dos
deveres da mulher em relação a seu marido, do filho e da filha em relação a seu pai".
Portanto, o ato que Jesus decide realizar durante a última ceia, conforme João, se caracteriza como sendo
de extrema humildade, uma tarefa exigida das pessoas que, na pirâmide social do sistema escravista e patriarcal,
encontram-se nos últimos lugares: a escrava, o escravo, a criança e a mulher. A posição das pessoas eschátoi
(últimas) é também aqui, mais uma vez, assumida por Jesus. E ele o faz como "Mestre" e "Senhor" (v. 13). Uma
vez mais Jesus promove uma inversão radical dos valores vigentes, sendo possível perceber uma clara relação de
sentido do ato do lava-pés com Mc 10.35-45.
O evangelista João investe na valorização dessa inversão, lançando mão dos seguintes recursos
literários: a) no v. 3, registra com ênfase a consciência de Jesus de que "viera de Deus e voltava para Deus" e que
qualquer atitude que tomasse estava respaldada pelo fato de Deus tudo ter confiado às suas mãos; isto significa
que, ao se humilhar até o posto mais baixo, o faz livre e conscientemente como enviado e em nome de Deus;
"justamente esse filho de Deus, que tem tudo aos seus pés, veste-se com roupa de escravo (toalha de linho) e
realiza trabalho de escravo; b) no v. 6, os termos kyrie (senhor) e podas (pés) estão colocados nos lugares de
entonação da frase, no início e no fim, um contraposto ao outro, sugerindo a impossibilidade do ato de um senhor
lavar os pés de alguém; desse modo, aponta-se para a radicalidade do ato de Jesus; c) o evangelista destina o
espaço de seis versículos do texto ao diálogo de Jesus com Pedro, com a finalidade de esclarecer o sentido desse
ato radical de inversão dos valores; d) o ato do lava-pés se dá durante a última ceia de Jesus com seus discípulos;
portanto, está colocado num lugar "tão destacado quanto possível.
Toda essa ênfase explica a reação de inconformidade de Pedro. O mestre que queira manter uma
imagem minimamente digna diante de seus aprendizes não pode humilhar-se a tal ponto de lhes lavar os pés;
esse gesto "não combina com o ser-senhor (,..); é contra todas as regras vigentes (...); só o contrário poderia ser.
Por isso, repercutiu como uma atitude inconveniente, escandalosa e inaceitável.

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4.3 O lava-pés como prefiguração da cruz


Assim caracterizado, fica evidente que o lava-pés não representa um ato isolado na vida de Jesus. A
inversão dos valores discrimi-nadores e opressores da sociedade de sua época é uma constante em seu
ministério: abraça as crianças, como gesto de aceitação (Mc 9.36); partilha a comunhão de mesa com publicarias
e pecadores (Mc 2.15); defende a mulher adúltera (Jo 8.1-11). "Seu agir terreno como um todo não é outra coisa
326
senão um serviço de amor feito em obediência" . Todo o Evangelho é testemunho da disposição de auto-entrega
de Jesus. O caminho em direção a Jerusalém aponta para a necessidade de um servir que exige autodoação em
toda a sua radicalidade. O gesto do lava-pés é um marco nessa caminhada e com certeza encaminha a narrativa
do servir de Jesus para a sua culminância na cruz: "O evangelista (...) entende o agir de Jesus como ação do
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amor auto-humilhante, que alcança o seu ponto alto na cruz" .
Se o lava-pés repercutiu entre os discípulos como escândalo, eles estão, na verdade, pré-vivendo o maior
de todos os escândalos, a cruz. "Nesse lava-pés se prefigura sua entrega à morte. Portanto, na verdade, ―Pedro
se encontra aqui diante do snkàndalon toû staroû (escândalo da cruz, 1 Co 1.23).

4.4 "Nunca me lavarás os pés"


Pedro, de nenhuma forma, quer tolerar que o Senhor lhe lave os pés. Assim como em Mc 8.32 chamou
Jesus à parte para tentar demovê-lo da decisão de seguir o caminho da cruz, aqui quer impedi-lo de realizar esse
gesto de autodoação em serviço, que é um prelúdio da própria cruz.
Jesus o admoesta: "Se eu não te lavar, não tens parte comigo" (v. 8). Com isso, está dito, conforme
Johannes Schneider, que quem não aceita o serviço de Jesus não tem comunhão com ele pelo seguinte motivo: a
autodoação por amor através do serviço às pessoas mais excluídas é o que caracteriza profundamente toda a
missão de Jesus; o lava-pés é a expressão dessa autodoação, que vai até a entrega da própria vida; ter
comunhão com Jesus é compartilhar essa maneira de ser, é adotar para a própria vida o princípio do amor que se
entrega no serviço.
Não aceitar o serviço de Jesus significa afastar-se desse seu agir; assim, "a rejeição do lava-pés seria a
rejeição do servir de Jesus em si. "A gente não pode entrar em comunhão com ele e com o Pai (por ele revelado),
se a gente mesmo não estiver disposto a essa auto-entrega". Enquanto nos fechamos a essa comunhão do
serviço, continuamos centrados em nós mesmos, aceitando os critérios da relação de dominação vigentes no
mundo. Por isso, Rudolf Bultmann afirma: "Aceitar o serviço de Jesus significa crer e estar disposto a deixar
quebrar em si os critérios com que o mundo mede o que é grande e divino. Quem consegue isso, está livre do
mundo e, com isso, 'limpo'.
Deparamo-nos aqui, como em Mt 25, com o conceito diaconia passiva. A diaconia da comunidade cristã
só é possível quando esta se encontra na comunhão com o Jesus-diácono da cruz, ou seja, quando ela partilha,
aceita o serviço que Deus realizou em Jesus Cristo como feito em seu próprio favor. Para poder servir, a comu-
nidade necessita ser servida com os benefícios que unicamente Jesus Cristo pode oferecer, através da cruz, qual
seja, o resgate (Mc 10.45) da condição de pessoas escravizadas por poderes que prendem o ser humano a si
mesmo, ao "eu próprio entronizado".
Johannes Schneider reconhece essa evidente relação do lava-pés com o texto de referência do presente
trabalho: "Certamente o lava-pés é o melhor paradigma para a palavra do Senhor de Mc 10.45: O Filho do homem
não veio pura ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos". E é por isso que Marc Edouard
Kohler afirma: "Diaconia começa com a confissão de nossa culpa", com a "confiança no perdão de Deus".
"Comunidade diaconal começa com o perdão vivenciado (...) porque eu experimentei o que significa ser
necessitado".
Entretanto, o lava-pés nos mostra a diaconia passiva também no seu nível horizontal: as pessoas entre si
são dependentes de ajuda. Isto é um dado humano. Quem, como Pedro, se nega a receber o serviço de outras
pessoas está tentando proclamar sua "independência", manifestando sua arrogância e fechando-se à vida
comunitária. Como em Mt 25.31-46, também o lava-pés ensina que as cristãs e os cristãos não se encontram
frente às pessoas necessitadas (como se fossem sempre os irmãos fortes, diante dos outros, dos irmãos mais
humildes, o que seria uma forma de dominação através da diaconia), mas são necessitadas como todas as
pessoas, "muito provavelmente mais ainda como seguidores do Crucificado". Quebrar o orgulho da superioridade,
disfarçado na falsa modéstia, certamente é a intenção de Jesus no lava-pés.

4.5 "Como eu vos fiz, façais vós também"


Embora o texto referente ao "novo mandamento" forme uma perícope à parte após o lava-pés, a ligação
entre os dois relatos é indiscutível, de modo que o podemos tratar em conexão com os w.
14 e 15: "Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos
outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também".

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

O serviço recebido no lava-pés tem, portanto, também o sentido de ser exemplo que orienta a forma de
vida e convivência dos discípulos, respectivamente da comunidade. "O procedimento de Jesus deve determinar o
procedimento dos discípulos entre si, isto é, de terem a mesma disposição para o serviço recíproco em humildade.
Assim, o serviço recebido compromete: se Jesus, como Senhor e Mestre, lhes lavou os pés, quebrando as
barreiras que separam prôtoi (primeiros) e eschátoi (últimos), então não há mais razões que pudessem impedir o
serviço mútuo entre as pessoas que o seguem. O procedimento de Jesus abriu caminho para que a comunidade
ouse a inversão de valores na sua convivência.
Mais, porém, do que ser uma ação cristã legitimada por Jesus, o servir-se reciprocamente é uma ordem.
O evangelista João usa duas vezes o imperativo nos w. 14 e 15. Conforme Rudolf Bultmann, este não se refere
simplesmente à prestação de serviço análogo ao que Jesus realizou, mas à "disposição de ser igual para a outra
pessoa", assim como também o imperativo não exige retribuição a Jesus pelo que ele fez, mas o "voltar-se à outra
pessoa"; Jesus não deu exemplo para uma imitatio, porém "o recebimento de seu serviço abre para os discípulos
uma nova possibilidade de vida em conjunto.
O imperativo está presente também no novo mandamento: "que vos ameis uns aos outros, assim como eu
vos amei (...)" (v. 34). Essa é uma palavra de despedida de Jesus do seu grupo de discípulos. A hora da
separação está se aproximando. Inevitável é a pergunta: como ficarão os discípulos sem a presença de Jesus?
"Em seu abandono os discípulos devem manter as relações com ele [Jesus], enquanto que, como ele, devem
dirigir sua solicitude para os demais", formula Rudolf Schnackenburg, enquanto Siegfried Schulz complementa: "O
futuro é colocado sob o 'novo' mandamento.
Entretanto, pode o mandamento do amor fraterno (a ação dia-conal) substituir a presença de Jesus? Não
estaria, assim, o futuro da obra de Jesus entregue às próprias mãos dos discípulos? Assim pergunta também
Rudolf Bultmann. Sua resposta é objetiva: "Só quem é amado pode amar". Com isso, ele propõe que o amor de
Jesus, demonstrado durante todo o seu ministério, radicalizado no lava-pés, culminando com a sua auto-entrega
na cruz, esteja vivo entre eles, em primeiro lugar, como presente a eles mesmos; segue-se que esse mesmo amor
estará vivo na convivência comunitária em forma de amor recíproco, no cumprimento do novo mandamento.
Resta frisar que o novo mandamento é um legado, um testamento de Jesus deixado para a comunidade
de suas seguidoras e seus seguidores. Esse registro é importante na medida em que se buscam dados que
fundamentem a ligação da diaconia com a comunidade cristã na sua origem. O novo mandamento, de fato, não é
uma exigência de amor ao próximo num sentido geral, mas um legado para o círculo das pessoas crentes em
Jesus, pois está em jogo a própria existência da comunidade dos discípulos.
O evangelista João não demonstra muito interesse em abordar o tema Igreja, com sua organização e
hierarquia; no entanto, coloca ênfase na existência da comunidade e sua marca essencial, o amor entre seus e
suas integrantes.
Esse sinal da comunidade a diferencia do mundo: "Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se
tiverdes amor uns aos outros" (v. 35). Portanto, o pequeno círculo de crentes, para o qual João escreve seu
3 2
evangelho * , se caracteriza pela sua estranheza no mundo.
―Quando seu amor continua sendo a resposta ao amor de Jesus", a comunidade cristã é colocada diante
do mundo com uma tarefa, sem no entanto, confundir-se com o mundo. Senão vejamos: ela se caracteriza pelo
novo mandamento e esse "novo" não deve ser entendido no sentido histórico (o mandamento do amor já fazia
parte da tradição do povo de Deus), mas no sentido do "fenômeno do novo mundo que Jesus iniciou. O v. 35
testemunha, nesse sentido, que na comunidade o novo mundo se torna realidade. Para quem está fora da
comunidade, o amor fundamentado em Jesus, que caracteriza a convivência comunitária, é critério para a
distinção entre o velho e o novo.
Por isso, Rudolf Bultmann fala da comunidade escatológica. A comunidade diaconal, portanto, na qual o
lava-pés com o seu novo mandamento é atual, é a comunidade escatológica. E ela, como tal, não está fechada
em si mesma; sua tarefa em relação ao mundo é a "desmundanização", isto é, o mundo "velho" ("os governadores
dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade", Mc 10.42) pode deixar
de sê-lo para fazer parte do "novo" mundo ("entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande
entre vós, será esse o que vos sirva", Mc 10.43). "Através da pertença à comunidade escatológica, existe para o
mundo a permanente possibilidade de ser incluído no círculo do agapân".

5. Conclusão
1. Na abordagem do texto do julgamento final (Mt 25.31-46) optamos pela interpretação chamada clássica,
que tem o apoio de Ulrich Luz, Ulrich Bach e Ekkehard Heise, contra a tradicional compreensão que universaliza
as pessoas da narrativa, beneficiadas com as obras de caridade dos benditos.
Convenceu-nos a argumentação de que as seis obras enumeradas se coadunam com as necessidades
dos discípulos enviados em missão ao mundo, assim como, posteriormente, com as necessidades dos

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

missionários e das missionárias itinerantes, enviados e enviadas pelas primeiras comunidades cristãs ao mundo
gentio. Essas pessoas eram acolhidas e socorridas por pessoas estranhas e, mais tarde, pelas novas
comunidades que iam surgindo no mundo estranho, também caracterizadas, num sentido geral, pela sua pobreza.
Em vista desses dados, torna-se quase supérfluo registrar a nítida presença das dimensões prática e
comunitária da diaconia no texto do julgamento final, dada a concreticidade das obras de caridade e a sua
importância na vida das primeiras comunidades cristãs, desde os primeiros momentos.
Na interpretação assumida neste trabalho, Jesus apresenta suas seguidoras e seus seguidores (enviadas
e enviados ao mundo) como sendo pobres e dependentes da ajuda alheia. Essas pessoas sofrem a diaconia de
outros. Isso necessariamente evita que elas se autocom-preendam como vocacionadas para assistirem os pobres,
assumindo uma postura acima dos e alheia aos pobres deste mundo, que dependem da caridade cristã.
Há aqui uma compreensão de comunidade, livre da concentração de poder e de posses. Ela não faz
assistencialismo paternalista. Não divide o mundo e a própria comunidade em dois tipos fixos de pessoas: as que
precisam de ajuda e as que não precisam, as que podem ajudar e as que não podem, as que são bondosas e as
que devem se conformar com a dependência da bondade alheia. As pessoas pobres não são objetos da
assistência da comunidade cristã.
No texto, as obras de caridade são experimentadas pêlos discípulos e missionários pobres; mas, ao
mesmo tempo, são também praticadas por comunidades cristãs pobres (recém-criadas), bem como por pessoas
estranhas. Isso indica a organização do trabalho diaconal a partir das necessidades de outras pessoas e não a
partir da bondade e do poder de ajuda das pessoas cristãs. Por isso, o critério no julgamento final não será a
bondade, mas a ajuda prestada nos momentos da necessidade.
O texto abriga, portanto, a crítica ao assistencialismo que quer manter o status quo. Vemos implícita nesse
dado a dimensão profética que o texto atribui à diaconia.
Constatamos no estudo de Mt 25.31-46 que se concebe a comunidade como organização de serviço
(desprovida de arrogância, de posses, de poder). Essa concepção coincide com a de Mc 10.35-45, em que a nova
ordem fundamental da comunidade é o serviço, realizado sempre em favor das pessoas que se encontram no
último lugar, desafiando sempre as que querem se colocar no primeiro lugar.
Na interpretação adotada de Mt 25.31-46 vislumbramos ainda uma clara relação com a eclesiogênese de
Leonardo Boff: uma nova Igreja nasce em meio ao mundo da miséria e se caracteriza pelo espírito solidário de
seus membros.

2. O segundo dos textos clássicos da diaconia tratado foi o do bom samaritano. Registramos a
preocupação pela vida como tema central de Lc 10.25-37. Diante desse tema, o consenso teológico parece não
bastar. O amor ao próximo se caracteriza pela sua concreticidade. O texto não teoriza nem espiritualiza. Aponta a
necessidade da prática, fato que embasa a tese da dimensão prática da diaconia.
Tratamos de explicitar também que, no texto, não se trata de qualquer prática. Como em Mt 25.31-46, o
amor ao próximo não se define a partir da bondade que alguém sente obrigação de demonstrar, mas da
necessidade em que alguém se encontra. Portanto, o que determina a ação solidária não é quem a pratica, mas
quem dela necessita. Na parábola do bom samaritano, Jesus nos mostra a partir de onde devemos articular a
diaconia: a partir da outra pessoa, daquela pessoa que mais necessita de ajuda para viver, que está mais distante
da vida plena, duradoura, perene. Isto é, na verdade, uma proposta de inversão, tão radical como em Mc 10.35-
45: não os primeiros (que agem a partir de si mesmos, de cima para baixo) devem determinar o programa de ação
da comunidade, mas os últimos.
Com Leonardo Boff procuramos definir que próximo de alguém é aquela pessoa que rompe o círculo de si
mesmo e se debruça sobre a outra pessoa abandonada. Foi isso que Jesus fez. O caminho da cruz demonstra a
sua renúncia de si mesmo (da sua glória e do seu poder) para estar a serviço de Deus. Marcos 10.45 o expressa
assim: "Eu não vim para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos". Romper o círculo de si
mesmo é justamente também o conteúdo da nova ordem fundamental da comunidade: "Quem quiser tornar-se
grande entre vós, será esse o que vos sirva" (Mc 10.43). Por isso, a Igreja encontra o sentido de sua existência no
serviço, particularmente às pessoas mais humilhadas e ofendidas da nossa história.
Entretanto, a busca pela redefinição do agir diaconal a partir do outro assaltado, espoliado, empobrecido
estaria incompleta se a restringíssemos ao ser humano colocado nessa situação. Uwe Wegner nos desafia a
ampliar o horizonte dessa busca para o universo da ecologia. A criação de Deus se encontra na situação de quem
foi assaltado: roubou-se tudo dela, causou-se-lhe muitos ferimentos, deixando-a semimorta.
O estudo do texto chamou nossa atenção para a importância da visão. O ato de compaixão do samaritano
parece pressupor o ver. O texto destaca o poder de determinação que está na leitura dos fatos: a visão que
alguém tem, por exemplo, de uma criança de rua determinará a atitude de ser ou não próximo dessa criança.

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

Assim, a diaconia pode aprender do texto do bom samaritano a necessidade de se valorizar a visão
correta da realidade, a leitura crítica dos acontecimentos, a perspectiva a partir da qual se interpreta os fatos, o
conhecimento de causa, para que a ação diaconal supere a marca da ingenuidade. Lembrando Uwe Wegner,
podemos dizer que, na diaconia, necessitamos de olhos que enxerguem além do óbvio, já que ao nosso redor
nem tudo é visível a olho nu. Parece não haver dúvida de que a percepção além do óbvio é um dom e uma tarefa
profética. Passar de largo, indiferente, equivale a deixar a realidade como está. Enxergar o que se oculta atrás do
estado miserável de tantas pessoas é o primeiro passo da ação profética.
Vimos, finalmente, que o texto insiste também na ação misericordiosa. O samaritano, após ver, investiu
tudo o que podia numa ação eficiente: arriscou-se, sacrificou-se, prestou assistência qualificada, agiu
solidariamente sem preconceitos, mostrou preocupação com o futuro da pessoa ferida, gastou dinheiro. O ver
criterioso (dimensão profética da diaconia) e o agir misericordioso do bom samaritano (dimensão prática da
diaconia): eis dois desafios para que a Igreja de hoje vá e proceda de igual modo.

3. Em terceiro lugar, abordamos o lava-pés (Jo 13.1-35). Foi destacado que mais uma vez Jesus assume
uma postura de identificação com as pessoas últimas na escala da vida social do sistema escravista e patriarcal,
já que o serviço de lavar os pés cabia a escravas, escravos e mulheres. O evangelista João destaca que Jesus, no
entanto, o faz como Senhor, como aquele a cujas mãos Deus tudo confiou, acentuando assim o tamanho do
contraste e a radicalidade do gesto. Nesse sentido, o lava-pés prefigura a radicalidade do acontecimento da cruz.
Constatamos que o lava-pés, como ato inversivo de valores, não foi uma atitude isolada no ministério de
Jesus. Nesse sentido, é possível traçar linhas diretas de ligação com Mc 10.35-45 e todo o seu contexto, em que
Jesus, no caminho da cruz (a via da renúncia do poder próprio), como Messias, desce ao mundo das pessoas
excluídas, identifica-se com elas e proclama a seus seguidores e suas seguidoras uma nova ordem de vida
comunitária na qual "quem quiser ser o primeiro entre vós, será servo de todos" (Mc 10.44). Por isso, reconhece-
se que "certamente o lava-pés é o melhor paradigma para a palavra do Senhor de Mc 10.45.
Também aqui, a resistência de Pedro ao gesto que caracteriza a renúncia de Jesus ao poder e à glória
próprios é comparável à sua tentativa de impedir a paixão de Jesus, no texto de Marcos. Não aceitar o serviço de
Jesus é opor-se ao seu projeto de auto-entrega, que passa pelo lava-pés e se consuma na cruz. Não aceitar o
serviço de Jesus é seguir o caminho da auto-afirmação, do fechamento em si, da arrogância, enfim, da autonomia
e do poder próprio.
Isto, no lava-pés, tem duas dimensões: a) verticalmente, em relação a Deus, rejeitar o seu serviço na cruz
é proclamar-se auto-salvador; b) horizontalmente, fechar-se ao serviço de outras pessoas é fechar-se em si
mesmo e acreditar na auto-suficiência. Quebrar o orgulho da superioridade, disfarçado na falsa modéstia de
Pedro, certamente é a intenção de Jesus no lava-pés.
Destacamos também a ordem de Jesus "como eu vos fiz, façais vós também" (Jo 13.15). O serviço
recebido no lava-pés tem, portanto, também o sentido de ser exemplo que oriente a forma de vida e convivência
dos discípulos, respectivamente da comunidade. O procedimento de Jesus deve determinar o procedimento dos
discípulos entre si. Jesus não deu exemplo para uma imitatio, mas o recebimento de seu serviço abre para os
discípulos uma nova possibilidade de vida em conjunto, baseada no serviço mútuo. Aqui claramente o lava-pés
explicita a dimensão muito concreta e prática da diaconia.
O imperativo expresso no lava-pés está presente também no novo mandamento: "que vos ameis uns aos
outros, assim como eu vos amei..." (v. 34). Essa palavra de despedida de Jesus do seu grupo de seguidores e
seguidoras coloca o futuro destes e destas sob o novo mandamento. O amor de Jesus, demonstrado ao longo de
todo o seu ministério, radicalizado no lava-pés, que alcançará o seu auge na cruz, deverá estar vivo entre eles,
acima de tudo, como dádiva a eles mesmos; essa dádiva tomará corpo na convivência comunitária em forma de
amor recíproco, no cumprimento do novo mandamento.
Seja destacado que o novo mandamento é um testamento que Jesus deixou para a comunidade de suas
seguidoras e seus seguidores. Esse dado é importante porque fundamenta a relação da diaconia com a
comunidade cristã na sua origem. A partir do contexto de sua proclamação, o novo mandamento não é uma
exigência de amor ao próximo num sentido geral e vago, mas um legado concreto e direto para o círculo das
pessoas que seguiam a Jesus. A existência da comunidade dessas pessoas era o que estava em jogo quando
Jesus ordenou: "... que vos ameis uns aos outros" (Jo 13.34).
A vida comunitária sob a marca do mandamento do amor distingue a comunidade do mundo: "Nisto
conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros" (v. 35). Portanto, a comunidade das
pessoas que seguem Jesus se caracteriza pela sua estranheza no mundo. Nela o novo mundo, inaugurado por
Jesus, se toma realidade.
O mundo "velho" (assim caracterizado por Jesus: "os governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e
sobre eles os seus maiorais exercem autoridade", Mc 10.42) pode deixar de sê-lo para fazer parte do "novo"

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

mundo ("entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos
sirva", Mc 10.43).
Portanto, também os textos do lava-pés e do novo mandamento propõem um contramodelo à sociedade
vigente. Isto é, ao mesmo tempo, denúncia de uma convivência social distante do amor e do serviço recíproco
(que Jesus demonstrou) e anúncio da possibilidade real de uma nova forma de vida comunitária. Nesse sentido, a
marca da estranheza em relação à velha sociedade é, sem dúvida, a marca profética da comunidade cristã.

IV. ADAPTANDO A IGREJA AO MINISTÉRIO DIACONAL

 Uma Eclesiologia Encarnada


"Filhos meus, não sejais negligentes; pois o Senhor vos escolheu para estardes diante dele para o servirdes, para
serdes seus Ministros...”.
// Crônicas 29:11
A BÍBLIA E OS POBRES
"O que tapa o ouvido ao clamor do pobre também clamará e não será ouvido”. (Provérbios 21:13)
Existem muitas maneiras de praticar a beneficência no dia-a-dia de cada um de nós; basta querer. Um
sorriso, um aperto de mão; ouvir e se esforçar para minimizar o sofrimento alheio, de algum modo, são formas de
beneficência. Somos responsáveis pelo nosso irmão e não nos esquivemos disto como fez Caim - "Sou eu por
ventura guardador do meu irmão?" - disse o filho primeiro de Adão, ao Senhor.
Nós não teríamos necessitados na grei de Cristo, hoje, se cada irmão ajudasse, dentro das possibilidades
existentes na "dispensa do coração", ao seu irmão carente. Todavia, não é assim que observamos em nossos
arraiais. O que vemos são "dispensas fechadas", não que nelas haja pouco ou nenhum mantimento; é que muitos
de nós perdemos a chave que abre a dispensa, chave essa que se chama amor! E olhe que lemos em uníssono o
texto que reza: "Como é bom e agradável que o povo de Deus viva unido como se todos fossem irmãos!" (A Bíblia
na Linguagem de Hoje) Não existe união quando permaneço insensível aos reclamos das viúvas, dos pobres e
daqueles que não têm onde morar. União é compartilhar, é sentir, é chorar.
Conheço algumas pessoas, entre elas a minha esposa, cujas dispensas estão permanentemente abertas
e os "estoques" sempre renovados, prontas para dar, para repartir. E quando algum necessitado precisa de algo
que nas suas dispensas não tem, mas que há na dos outros, tem sido muitas vezes penoso "fazer" com que o
irmão "abra sua dispensa" e assim atenda o pedido do irmão. São coisas, às vezes pequenas, mas de grande e
urgente necessidade para alguns, como uma receita médica, um óculos, um ou dois sacos de cimento, algumas
telhas usadas, etc, etc.
Tem sido angustiante, para esses irmãos que exercem com profundo amor e admirável compaixão, "pedir"
a alguns irmãos alguma coisa para suprir a necessidade de outrem e receber um sonoro "Não posso ou não
tenho", mesmo sabendo que há nas dispensas deles aquilo que pedem.
Uma senhora que exerceu a diaconia por muitos anos, já cansada, fez esse triste desabafo: "Melhor é dar
aos maus que "pedir" aos bons." Aquela senhora havia concluído, ao longo do seu ministério diaconal, que, quão
trabalhoso é exercer esse ministério nestes dias difíceis, quando os homens, e aí se incluem alguns crentes que
"são amantes de si mesmos..." Desgastou-se . Não era vista com "bons olhos" até por alguns da igreja. Muitos
davam-lhe as costas, fugiam dela. Não foi compreendida, sequer, pela comunidade dos salvos. Sucumbiu.
Assim foi com Jesus também. A Bíblia diz que "Ele andou fazendo o bem e ajudando a todos os oprimidos
do diabo." Jesus se identificou com os pobres e foi contado como um deles. "Não tinha onde reclinar a cabeça,
disse certa vez. O prémio por ter feito o bem foi a morte e morte de cruz.
"Quem dá ao pobre não terá falta, mas o que dele esconde os seus olhos será acumulado de maldição."
(Provébio 28:27) Muitos de nós temos experimentado a veracidade da primeira parte deste provérbio, na nossa
vida particular e nas nossas dispensas. No entanto, muitos têm experimentado fracassos e derrotas na vida
espiritual, muito embora tenham, às vezes, a dispensa farta.
O autor deste e do outro provérbio acima citado foi o filho do rei Davi, o super-inteligente Salomão. Ele foi
um homem rico, o mais rico, provavelmente, do seu tempo. A sua fortuna era fabulosa. No entanto, a viúva, o ór-
fão, o pobre e o necessitado encontraram nele amparo e socorro. A eles o rei dispensou um carinho todo especial,

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

haja vista a menção que deles faz nos seus ensinos e escritos. Creio, firmemente, que Salomão ajudou a todos
quantos estiveram no raio de sua ação benfeitora, direta ou indiretamente. Sua mejestade tinha um coração
magnânimo por isso deu. Repartiu. Ajudou. Não podia ser diferente, "porque a quem muito se lhe dá, muito se lhe
pede." A Salomão foi dado muito.
Na concepção do sábio, filho de Berseba, aquele que tapa os ouvidos aos reclamos do pobre, um dia há
de clamar e ninguém o ouvirá. Já ouvi muita gente clamar a Deus e não ser ouvida; é bom procurar, logo, a "chave
da dispensa" e abrir o coração, quem sabe não reside aí a "chave" do problema?
Quando o rei Lemuel, cujos ensinos ele mesmo diz ter recebido de sua mãe, escreveu o magistral "hino à
mulher virtuosa" registrado no livro de Provérbios 31:10 a 20, verificamos a preocupação "da mulher virtuosa" com
os necessitados. No verso 20 lemos: "Abre a mão ao aflito e ainda a estende ao necessitado." "Abre a mão!" O
que falta em muitos de nós é, justamente, isto: abrir a mão. Nossas mãos estão fechadas, e por isso não damos.
Enquanto não abrirmos os corações as nossas mãos continuaram fechadas. As mãos são os instrumentos da
beneficência; só que elas estão atreladas ao coração, tanto para quem executa quanto para quem a pratica. Quão
formosas são as mãos daqueles que praticam a beneficência! Parodiando os "pés formosos dos que anunciam a
paz..." (Isaías 52:7) Os pés, a Boca e as Mãos, eis neles os três Ministérios representados a serviço de Deus e
dos homens! Os Pés levam a Semente, "andando e chorando". A Boca - "a verdadeira instrução esteve na sua
boca". (Malaquias 2:6) e as Mãos - "abre a mão ao aflito..." (Provérbios 31:20)
No livro "O Cristão e a fome Mundial", pág. 56, o escritor, Dr. Thur-mon Bryant, eminente teólogo afirma:
"Nada é mais claro na Bíblia do que Deus ser campeão dos pobres, dos oprimidos e dos exploradores." Por
consultar 300 referências bíblicas à palavra "pobre", que traduzida de apenas seis termos básicos na língua
original, a gente se convence da preocupação bíblica pêlos pobres. Acrescentando a isso os termos como
"estrangeiro", "órfão" e "viúvas", todos normalmente enquadrados no contexto da pobreza. O número de
referências bíblicas à pobreza é muito grande.
No Velho Testamento nós encontramos o Senhor Deus preocupado com aqueles que passam privações
de ordem material e condena os opressores deles. Os dois pecados mais graves na religião de Israel foram: a
rejeição do culto ao Deus verdadeiro e a opressão aos pobres. No mesmo versículo, Ezequiel fala dos dois
pecados quando condena a pessoa que "oprime ao pobre e necessitado e o levantar os olhos aos ídolos."
(Ezequiel 18 e 12)
No Novo Testamento é igualmente decisivo quando fala sobre os pobres. Todo o contexto histórico e
cultural da encarnação - a circunstância humilde escolhida por Deus para Sua manifestação em carne - tem
implicações teológicas altamente significantes. A autocompreenção de Jesus e o Seu ministério são ligados
expressivamente aos pobres. Na declaração inicial de Sua identificação com o Messias, e do Seu ministério na
sinagoga de Nazaré, Ele citou Isaías 61 e disse: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porquanto me ungiu para
anunciar boas-novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos... para pôr em liberdade os
oprimidos." (Lucas 4:18) Após estabelecer essa ligação com os pobres, Jesus declarou: "Hoje se cumpriu esta
escritura aos vossos ouvidos." (Lucas 4:21)
Jesus não somente condenou os opressores dos pobres, mas também advertiu que tais malignos "hão de
receber muito maior condenação" do que receberiam de outro feito.
Esta ênfase aos pobres continua na igreja apostólica. Ficou resolvido que Pedro, Tiago e João
ministrariam aos da circuncisão, enquanto Paulo e Barnabé iriam aos gentios. Mas, na última e final estipulação
ficava "que eles se lembrassem dos pobres". O antigo carimbo oficial pelo qual se identificava o povo de Deus - o
da circuncisão - podia ser sacrificado, mas a atenção aos pobres, não! Paulo na admoestação de lembrar-se dos
pobres enfatizou: "o que também procurei fazer com deligência." (Gaiatas 2:10) A devoção de Paulo aos pobres
em Jerusalém e a advertência de Tiago quanto ao tratamento dos pobres (Tiago 2:1-7, 15-16; 5:1-6) põem o toque
final: A identificação da igreja com os pobres.
Por que há tanta ênfase aos pobres na Bíblia? A razão é que se não houvesse esforço todo especial para
incluir os pobres, estes seriam deixados de lado e esquecidos. Eles não têm cartaz, não têm força. São
desvalorizados! São expulsos. Banidos. Desterrados. Desprevilegiados. Eles não são incluídos. Têm pouco valor.
A pobreza é olhada como uma doença. Ela carrega um estigma. É ruim passar fome e não ter nada, comtemplar
os queridos passando privações e sofrendo a humilhação causada pela falta de suprimento das necessidades
básicas da vida. Mas o maior estigma é psicológico - a alienação, a desu-manização, a perda da dignidade e do
senso de utilidade, o que nunhuma criatura feita à imagem de Deus deve ser constrangida a sentir. O estigma
esmaga a pessoa. Por entender isto, Jesus manda que focalizemos, como cristãos, o valor do pobre.
Essas verdades ditas acima merecem de todo o povo que se chama pelo nome de Cristo, uma profunda
reflexão. Deus disse a Israel quando este não era ainda uma nação organizada: "Não seguirás a multidão para
fazeres mal; nem deporás, numa demanda, inclinando-te, para a maioria, para torcer o direito. Nem com o pobre
serás parcial na sua demanda." (Êxodo 23:2-3)
A igreja não pode "seguir a multidão" no tratamento aos pobres. A multidão precisa ver, como via aquela
do primeiro século, o tratamento que a igreja dispensava aos seus pobres. "Vede como se amam! Exclamou."

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

Os judeus ortodoxos associavam os males, doenças e sofrimentos de alguém ao fato desta pessoa não
ter se lembrado dos pobres. Observe a história da vida de Jó. Um amigo seu chamado Elifaz contesta a
integridade e probabilidade dele quando lhe dizia: "Porventura não é grande a tua malícia, e sem termo as tuas
iniqüidades? Porque sem causa tomaste penhores a teu irmão, e aos seminus despojaste das roupas. Não deste
água a beber ao cansado, e ao faminto retiveste o pão. As viúvas despediste de mãos vazias, e os braços dos
órfãos foram quebrados." "Por isso estás cercado de laços, e repentino pavor te conturba." No versículo 21 Elifaz
sugere a Jó o seguinte: "Reconcilia-te, pois com Ele, e tem paz e assim te sobrevirá o bem." (Livro de Jó cap. 22)
É interessante notar ao amado leitor que Elifaz não tem evidência alguma, mas supõe que Jó teria
praticado as injustiças que eram possíveis para um homem de sua posição. A maravilhosa mensagem de
reconciliação com Deus proposta por Elifaz não pode ajudar a Jó, pois é baseada na suposição da sua grande
maldade.
O leitor atentou nas palavras do amigo de Jó? Ele cria firmemente que a doença do seu amigo era
resultante da negligência da prática da beneficência.
No Velho Testamento há abundantes passagens que nos mostram a preocupação de Deus para com os
pobres e do Seu cuidado por eles. Prometeu Bênçãos aos que se compadecessem deles e maldição àqueles que
desprezassem os desvalidos e necessitados. Acredito que o Senhor continua com o mesmo desvelo e o mesmo
cuidado com os pobres nos dias atuais, porque o Senhor é o mesmo ontem, hoje e eternamente. "Eu o Senhor
não mudo...", disse Ele.
Grande parte do povo de Deus, além de não socorrer os necessitados, ainda os discrimina. Fazemos
acepção. Tiago mandou um recado duro aos seus contemporâneos; leia-o: "Se, portanto, entrar na vossa
sinagoga algum homem com anéis de ouro nos dedos, em trajes de luxo, e entrar também algum pobre andrajoso,
e tratardes com diferencia o que tem os trajes de luxo e lhe disserdes: Tu, assenta-te aqui em lugar de honra; e
disserdes ao pobre: Tu, fica ali em pé, ou assenta-te aqui abaixo do estrado dos meus pés, não fizestes distinção
entre vós mesmos, e não vos tornastes juizes tomados de perversos pensamentos? Ouvi, meus amados irmãos:
Não escolheu Deus os que para o mundo são pobres, para serem ricos em fé, e herdeiros do reino que Ele
prometeu aos que O amam? Entretanto, vós outros menosprezaste o pobre..." (Tiago 2:1-6)
No comentário do rodapé da Bíblia Nova Vida sobre este texto lemos: "A todo homem são dadas
dignidade e igualdade pela cruz de Cristo, uma vez que Ele morreu por todos. Em consequência, a eternidade
humilhará aquele que se gloriar na sua própria riqueza, e dará aos pobres, mas fiéis, a herança das riquezas
eternas. Por já sermos participantes do reino eterno, cometemos pecados se fizermos acepção de pessoa."
"Aquele que quer levantar alguém precisa descer, como o samaritano, pois a maioria infinita da raça humana
sempre tem sido e ainda é pobre."
(A. N. Graves)

 Uma Fé encarnada
"Quem se compadece do pobre ao Senhor empresta, e este lhe paga o seu benefício."
Provérbios 19:17

BENEFICÊNCIA - A PRÁTICA DE FAZER O BEM


"Não negligencieis a prática do bem; e à mútua cooperação; pois com tais sacrifícios Deus se compraz." (Hebreus
13:16)
Um dos atributos de Deus, conhecidos de todos os seres vivos, é o ser Bom - Deus é bom. O Salmista
Davi conclamava: "Oh, provai, e vede que o Senhor é bom, bem-aventurado o homem que nele confia." (Salmos
34:8) Desta exclamação davídica depreende-se: "Quem quer "ver" deve "provar" e quem "prova", logo passará a
"ver". Deus passa, então, à prova da experiência: quem confia nele, temendo-O e buscando-O não sofrerá falta
alguma." Não é sem razão que o poeta dos hebreus, extasiado diante da bondade de Deus, exclamou com a alma
embevecida: "Como é grande a tua bondade...da qual usas, ... para com os filhos dos homens; para os que em ti
se refugiam!" (Salmos 31:19)

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

Quando somos gerados em Cristo mediante o novo nascimento, recebemos do Senhor, entre tantas
coisas, uma porção da Sua bondade; logo, o ser bom é parte inerente da nossa nova vida. Antes, quando
vivíamos sob os impulsos da velha natureza, toda a nossa bondade e justiça própria eram consideradas sem ou
de pouco valor para Deus, mas agora, depois que a metamorfose espiritual se operou em nós, fomos feitos
herdeiros de um dos atributos mais maravilhosos de Deus - A Bondade! Afirmamos isto tendo por base bíblica o
que Paulo escreveu aos Gaiatas capítulo cinco e verso vinte e dois: "Mas o fruto do Espírito é: amor, alegria, paz,
BONDADE, fidelidade..."
Ora, diremos nós os que nascemos de novo, se o ser bom é uma dádiva de Deus, deve, portanto, calar
profundamente em todos as palavras que Tiago escreveu às doze tribos que se encontravam na Dispersão:
"Aquele que sabe fazer o bem e não faz, comete pecado." (Tiago 4:17) A melhor tradução deste versículo é esta:
"Aquele que sabe que deve fazer o bem e não faz, comete pecado." Por isso afirmamos que todo salvo por Jesus
não somente sabe, mas deve ser bondoso sob pena de incorrer no pecado da omissão.
O sábio Salomão, que foi aquinhoado pelo Senhor com uma vastíssima sabedoria, tanta humana quanto
divina, legou-nos através dos seus escritos no que tange ao exercício da misericórdia, um cabedal de exortações
e lições práticas para o viver diário. Num dos seus famosos provérbios ele assim se expressou: "Não te furtes de
fazer o bem a quem de direito, estando na tua mão o poder de íazê-lo. Não digas ao teu próximo: "Vai, e volta
amanhã, então to darei, se o tens agora contigo." (Provérbios 3:27-28)
É muitas vezes penosa a prática de bem para quem ainda não aprendeu a lição do dar que nos advém do
Senhor, lição de sacrifício. Por essa razão o escritor Aos Romanos nos instiga, mesmo a despeito da aversão do
velho homem pelo bem, a nos esforçar de todo o nosso coração para a prática do bem: "Esforçai-vos", disse ele,
"para fazer o bem perante todos os homens." (Romanos 12:17) O próprio Apóstolo das Gentes, procurava dar âni-
mo aos Gaiatas quando dizia: "Não nos cansemos de fazer o bem." É próprio do ser humano o se enfadar na
prática do bem. Já ouvimos de tantos a frase: "Já fiz tanto a tantos, que cansei!" Há um provérbio libanês que diz:
"Semeia generosamente o grão da bondade na terra agreste que te parece estéril. Cedo, ou tarde, receberá o
bom semeador o fruto da sua semeadura multiplicado além das suas esperanças." William Barker dizia: "A
bondade sempre retribui, mas essa retribuição é sempre mais generosa quando nada se espera dela."
À igreja em Efeso o Apóstolo Paulo afirmava que a prática das boas obras, agradável a Deus, só é
possível quando Ele mesmo nos torna novas criaturas pela lavagem da água e do Espírito. Observe a singeleza e
a profundidade desta acertiva paulina: "Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para as boas obras, as
quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas." (Efésios 2:10) O mesmo Apóstolo, sob inspiração
divina, lembra ao nascido de novo, que toda e qualquer ação praticada deve vir do alto "porque Deus é quem
efetua em nós tanto o querer como a realizar, segundo a sua boa vontade." (Filipenses 2:13) Isto só é possível,
quando vivemos sob a influência do Espírito Santo no nosso viver diário. Cada gesto, cada atitude, cada ação
bondosa que praticamos, não vem de nós mesmos, mas dAquele que em nós opera o Seu querer. Isto é
maravilhoso demais para nós que antes não conhecíamos a profundidade, a altura e nem a largura do
imensurável amor de Deus!
No exercício das boas obras, pré determinadas pelo Senhor, o crente tem o alto privilégio de, através
delas, glorificar o Senhor e de ser conhecido como filho de Deus diante do mundo tão carente das misericórdias
do Criador de todas as cousas. Todo ser humano é essencialmente egoísta. Nada, senão a graça pode manter o
coração amplamente aberto a todas as formas de necessidade humana. Temos de permanecer junto à fonte do
amor celestial se queremos ser canais de bênçãos em meio à miséria moral e espiritual que nos cerca. Deus quer
conceder-nos o raro e excelente privilégio de sermos Seus imitadores. Graça admirável! O só pensar nela enche o
coração de admiração, amor e louvor. Não só somos salvos pela graça, mas permanecemos em graça, vivemos
sob o bendito reino da graça, respiramos a própria atmosfera da graça, e somos chamados para sermos os
expoentes vivos da graça, não apenas para os nossos irmãos, mas para toda a família humana. Não temos de
viver para nós mesmos, pois já não nos pertencemos. Somos do Senhor, Aleluia! Louvado e exaltado seja o
Senhor, para sempre seja louvado! Querido leitor, Deus espera que cada um de nós, onde quer que estejamos, na
família, no campo, no mercado ou na fábrica, na loja ou na casa bancária, todos os que entram em contato
conosco devem ver a graça de Jesus brilhar em nossos modos, nas nossas palavras, no nosso olhar. E então
quando se apresenta um necessitado diante de nós, se nada mais podemos fazer, devemos dizer-lhe ao ouvido
uma palavra de conforto, ou verter uma lágrima ou dar um suspiro de verdadeira e cordial simpatia. O Senhor
permita que todos os que professam ser cristãos, e assim se chamam, possam conduzir-se, em sua vida diária, de
modo a serem uma epístola de Cristo, conhecida e lida por todos os homens.
Convido o caro leitor e a nobre leitora a subirem comigo a ladeira íngrime e sinuosa muitas vezes, e
palmilhar a estrada dos que fizerem o bem, e às vezes sem olhar a quem, narradas nas Escrituras Sagradas. Os
exemplos que mostraremos, há de sacudir de nós, se porventura houver, todo o egoísmo e falta de fé, pois se tais
exemplos não nos incomodarem ruirá por terra todo o nosso esforço nestes escritos aqui exarados.

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

FAZER O BEM – REPARTINDO


Milhares de pessoas em todo o mundo têm exercido a nem sempre tarefa de fazer o bem, REPARTINDO-
O. Repartindo o seu pão com os famintos, repartindo seu tempo, repartindo seu talento, suas habilidades, quiçá
sua própria vida, movidos apenas pelo sentimento nobre e altruístico de servir, imitando o próprio Filho de Deus
que veio a este mundo "não para ser servido, mas para servir!" Quando volvemos os nossos olhares às páginas
do Rolo Sagrado vislumbramos com lágrimas nos olhos por trás de cada gesto, de cada atitude dos exemplos que
mencionaremos, a figura do Cordeiro Pascal neles inseridos. Foram homens, mulheres e adolescentes cujos feitos
ficaram registrados para sempre nos anais da história humana e desfilam ante os nossos olhos para proveito
nosso e louvor ao Grande Benfeitor. Eles fizeram o bem repartindo, chorando, muitas vezes, feridos que foram
pela ingratidão dos beneficiados, cujas recompensas estão guardadas nos céus prestes a se revelar naquele dia.
Dentre os exemplos bíblicos uma figura singular nos chama atenção -A viúva de Serepta. No livro de I
Reis 17:8-16, lemos sobre esta mulher que morava na cidade de Serepta, distrito de Sidom na Fenlncia. Hoje seu
nome é Saída. Naqueles dias houve uma grande seca na terra, decretada por Deus, talvez para punir Jezabcl pelo
seu crime contra os profetas que ela exterminara quase que totalmente. O certo é que "nem orvalho e nem chuva
haverá", segundo as palavras do profeta Elias. Neste ínterim, Deus determinava que Seu profeta fosse à torrente
de Queribe, fronteira do Jordão e ficasse ali. Nos diz o texto que "os corvos lhe traziam pela manhã pão e carne,
como também pão e carne ao anoitecer, e bebia da torrente." Passado os dias, a torrente secou, porque não
chovia sobre a terra.
Essa torrente de Querite, seria provavelmente um pequeno córrego, que só apresentava correnteza em
época de chuva. Devia localizar-se em lugar deserto, para que o rei Acabe não encontrasse o profeta. O certo é
que, com o tempo, não sabemos quanto, o córrego secou e Deus outra vez intervém na vida do Seu servo
dizendo: "Dispõe-te e vai a Serepta, que pertence a Sidom e demora-te ali, onde ordenei a uma mulher viúva que
te sustente. Então ele se levantou e se foi a Serepta; chegando à porta da cidade, estava ali uma mulher viúva
apanhando lenha; ele a chamou, e lhe disse: Traze-me, peço-te, uma vasilha de água para eu beber. Indo ela a
buscá-la, ele a chamou e lhe disse: Traze também um bocado de pão na tua mão. Porém ela respondeu: Tão
certo como vive o Senhor teu Deus nada tenho cozido; há somente um punhado de farinha numa panela, e um
pouco de azeite numa botija; e vês aqui, apanhei dois cavacos e vou prepará-lo para mim e para o meu filho; co-
mê-lo-emos, e morreremos. E Elias lhe disse: Não temas; vai e faze o que disseste; mas primeiro faze dele para
mim um pequeno bolo, e traze-mo aqui fora; depois farás para ti mesmo e para o teu filho. Porque assim diz o
Senhor Deus de Israel: A farinha da tua panela não se acabará, e o azeite da tua botija não faltará, até o dia em
que o Senhor fará chover sobre a terra. Foi ela, e fez segundo a palavra de Elias; assim comeram ele, ela e sua
casa muitos dias. Da panela a farinha não se acabou, e da botija o azeite não faltou."
O leitor há de notar que o Senhor diz a Elias: "Ordenei a uma mulher viúva..." É fácil perceber, naquele
momento dramático na vida do homem de Deus, a mão do Senhor mandando os corvos levarem o alimento
milagrosamente para o Seu servo; mas é preciso reconhecer que Ele na Sua providência e misericórdia, nem
sempre é forçado a lançar mão do sobrenatural. Deus tem o controle do universo nas Suas mãos, todavia para
ensinar a beneficência e solidariedade à raça humana, prefere instrumentos humanos, no caso aqui, uma mulher
viúva.
Essa mulher não era uma judia e segundo a ótica judaica era considerada pagã, não reconheceu o Deus
de Elias como o seu Deus. No entanto a sua obediência ao profeta, e fé que revelara ter na promessa do Deus de
Elias, fez dela, não somente um instrumento de misericórdia divina com relação ao profeta, mas também o
recipiente dos cuidados divinos com respeito a ela mesma e a seu filho, (dar e receber vêm sempre juntos na vida
religiosa) para no fim ela receber a dádiva mais importante de todas: a fé verdadeira na palavra de Deus.
A Bíblia não menciona o nome dessa mulher viúva, nem Jesus Cristo quando fez menção desse fato,
dizendo: "Na verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou por
três anos e meio; reinando fome em toda a terra e a nenhuma delas foi Elias enviado, senão a uma viúva de
Serepta de Sidom." (Lucas 4:25-26) Jesus disse estas palavras na sinagoga da Sua terra natal um dia de sábado
quando por lá esteve por duas vezes durante o Seu ministério. Havia nas palavras do Filho do Homem o amargor
da incredulidade dos Seus conterrâneos, e coloca-se a Si mesmo e a Seus ouvintes na mesma situação que
prevaleceu no ministério de Elias. Ambos foram, em grande parte, rejeitados por Israel que se considerou menos
digno do favor divino do que os próprios gentios.
Caro leitor, você e eu que dizemos ser filhos de Deus por adoção em Jesus Cristo, a lição do Repartir que
aprendemos desta mulher pagã merece de cada um de nós uma profunda reflexão sobre nossa atuação como
instrumentos na execução da vontade divina. Se em cada cristão, pobre ou rico, não houver um coração
disponível e crédulo para Deus "determinar" a Sua vontade e o Seu querer, tanto no repartir quanto no doar, Ele
mesmo usará os "corvos" e as "viúvas pagãs" para o cumprimento da Sua augusta vontade.
Temos visto muitos "domésticos na fé" serem alimentados e assisti-Uos por "outros" que não o povo de
Deus. Causa-me tristeza n'alma observar nos arraiais do Senhor muitos irmãos carentes de bens materiais,
amargarem o viver cristão, tudo porque, muitos de nós, não repartimos "a farinha" da nossa panela nem "o azeite"

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

da nossa botija." Temos sido mesquinhos e avarentos muitas vezes, e dizemos que somos abençoados pelo
Senhor, quando na realidade "são as Suas misericórdias" que nos suportam; e nada mais, e isto Ele derrama
sobre maus e bons.
J.A. Miller afirma: "Quando contemplares a miséria estampada no rosto do teu próximo, permite (tu) que
ele veja a misericórdia em teus olhos." Se Deus usa de misericórdia conosco porque não ser misericordioso na
mesma medida? Que Deus se apiede de nós e nos dê a graça de experimentarmos a "bem-aventurança que há
em ser misericordioso para que no dia da adversidade Deus use a misericórdia para conosco.
Deus operou na vida daquela viúva concedendo-lhe, entre outras coisas, três grandes bênçãos através do
profeta Elias: O sustento da sua casa nos dias da seca, a ressurreição do seu único filho e, a maior delas, a fé no
Deus que não conhecia!
Há um pensamento de Iran MacLaren que convém deixar transcrito para a meditação dos queridos
leitores: "Jesus nunca entra numa vida para empobrecê-la. Quando se compraz em galardoar homens a quem
ama, Suas mãos lhes proporcionam outros dons mais valiosos que a prata e o ouro." (Do livro 7 Mil Ilustrações e
Pensamentos, pg. 264)
Trago à memória dos leitores a pregação de João, o Batista. Informa-nos Lucas, o médico amado, o
seguinte: "No décimo quarto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judéia, veio a
palavra do Senhor a João, filho de Zacarias. Ele percorria toda circunvizinhança do Jordão, pregando o batismo do
arrependimento para remissão de pecados. Dizia ele: Produzi, pois, frutos dignos do arrependimento, e não
comeceis a dizer entre vós mesmos: Temos por pai Abraão, porque eu vos afirmo que destas pedras Deus pode
suscitar filhos a Abraão. E também já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz
bom fruto, é cortada e lançada no fogo. Então as multidões o interrogavam, dizendo: Que haveremos, pois, de
fazer? Respondeu-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o
mesmo." (Lucas 3:8-11)
Na visão do Precursor de Jesus, o batismo é o sinal público de mudança interna. O arrependimento
precede o batismo. Depois de ouvirem o duro sermão proferido por João as multidões o interrogam: "Que
haveremos, pois, de fazer?" João aponta para os frutos do arrependimento que são: O reconhecimento da
responsabilidade pessoal, a prontidão nas boas obras, etc e a "partilha com os necessitados" - "Quem tiver duas
túnicas reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça do mesmo modo."
João pregava uma mudança interna, isto é, mudança de hábitos, mudança de sentimentos, mudança no
relacionamento com o próximo, mudança que torna o homem humano e sensível às necessidades do seu irmão.
Depreende-se, pois, da pregação do Batista, que enquanto não houver mudança interna dificilmente repartiremos
o nosso "pão" e a nossa "túnica" com alguém carente. O homem tem de ser renovado nas mais profundas origens
do seu ser moral, antes de poder ser o veículo do amor divino; e até mesmo aqueles que experimentaram a graça
salvadora precisam vigiar, continuamente, contra as horrendas formas de egoísmo em que se reveste a nossa
natureza pecaminosa. Tomemos estas coisas a sério, e então teremos ocasião de bendizer a Deus pela "mudança
admirável" que Ele operou em nosso ser, capacitando-nos para "toda boa obra".
Zaqueu, o publicano, quando se converteu dos seus maus caminhos e tendo na sua casa o "Hóspede
Desejado" disse-lhe: "Senhor, resolvo dar (repartir) aos pobres a metade dos meus bens; e se nalguma coisa
tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais." Com este gesto, Zaqueu o pecador consciente, demonstra
a realidade da sua conversão e mais, se prontificou a restituir o que roubara na cobrança dos impostos, além do
estipulado pelas leis romanas. A devolução era, e não podia ser de outra forma, com juros - a quatro vezes mais!
Provavelmente, o Cobrador de impostos tinha em mente quando da sua proposta em devolver por esse
percentual, uma velha lei mosaica que dizia: "Se alguém furtar boi ou ovelha, e o abater ou vender, por um boi
pagará cinco bois, e quatro ovelhas por uma ovelha." (Deuteronômio 22:1)
Quando há conversão genuína, o arrependimento não pode deixar de manifestar-se de modo público e
notório. Alguém que tenha experimentado as misericórdias do Senhor, não pode deixar de ser misericordioso.
Zaqueu se encontrou, pela primeira vez na sua vida, com a Verdade suprema frente a frente, olhos nos olhos, cara
a cara. Confronta seu padrão de moralidade com as palavras do Mestre, percebe então, radiografada e
reveladamente, toda sua miséria, tanto moral quanto espiritual. Apesar de religioso e se considerar descendência
de Abraão, nunca se sentira tão miserável e destituído do reino de Deus. Sua ética moral, seus padrões de vida
religiosa e filiação abraâ-mica foram despedaçados e tornados nulos diante do Filho do Deus Vivo. O que se
passou no mais profundo do seu coração só Jesus pôde perceber e avaliar. Zaqueu abriu-lhe a porta da casa e do
coração. Foi receptivo, confessou no seu íntimo ser um grande pecador. Era rico de bens materiais mas pobre
para Deus. Todos o tinham, por sua riqueza, um homem feliz, no entanto, era o mais infeliz dos mortais. Tinha
muitos amigos, contudo a solidão era sua companheira absoluta, diuturnamente.
Apesar de ter uma conciência pesado, rubricada na oficina da desonestidade, estava em vantagem dentre
os que exercem cargos públicos e se locupletam com o erário do Estado, posto ter ainda uma réstia do temor do
Senhor, herança quem sabe, dos dias de infância inculcada nele pela sua mãe ou pêlos rabinos. O certo e justiça
se lhe faça, ele não estava satisfeito com a vida que levava e por isso desejava "ver Jesus". Queria ver Jesus, não

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

como um curioso, apenas, mas com a insistência do cego Bartimeu. Esforça-se, tem bom ânimo, sobe a uma
árvore, rompe os liames que o prendiam à sua condição social, rende-se ao grito de sua alma que ansiava por
liberdade! Paz! Salvação! Zaqueu aproveita a brecha que se lhe oferece a porta da Graça e de mansinho entra por
ela. Hospeda-A, vislumbra extasiado "a Promessa feita a seus pais desde os tempos antigos", e recebe
gostosamente o Desejado de todas as nações!! Ali mesmo, no seu lar, onde tantas vezes curtiu sua solidão e
amargura, recebe com ternura a maior de todas as bênçãos que um ser humano pode receber - a salvação da sua
alma. Esse fato não podia ficar restrito apenas a quem recebeu; Jesus fez questão de torná-lo público e exclama
em alto e bom som: "Hoje veio salvação a esta casa..." Aleluias, muitas aleluias sejam dadas ao Senhor!
Zaqueu foi salvo e deu provas imediatas da mudança que se operou no seu coração. Disse ao Mestre:
"Senhor, resolvo dar - Jesus não lhe exigiu que procedesse assim, pelo menos o texto não nos induz a isto, -
metade dos meus bens aos pobres..." Ele deve ter feito conforme prometeu. A razão primeira dessa atitude do
nosso irmão Zaqueu reside no fato singular: Ele se sentiu perdoado, e "a quem muito se perdoa" muito se deve
amar. Por outro lado "a quem pouco se perdoa, pouco se ama." Não será este último, o nosso caso? nosso caso?
Jesus ficou satisfeito com "a metade" que Zaqueu se propôs a dar aos pobres como se fora o "tudo" dele.
Zaqueu aprendeu, e iria aprender mais ainda que repartir não é um fardo pesado ou cousa impossível ao rico, mas
a maneira divina de demonstrar que "nasceu de novo".
―Concluo este capítulo com um pensamento de Eleanor L. Doan: "Deus deve fazer primeiramente algo por
nós e em nós, antes que venha a fazer alguma coisa por nosso intermédio."
 Mundo, Missão e Reino de Deus.

O REINO DE DEUS E SUA TEOLOGIA DIACONAL PARA UMA REALIDADE EM CARNE VIVA
(Trabalho apresentado pelo Rev. Uverland Barros da Silva, no V
Congresso Nacional de Diaconia, promovido pela Igreja
Presbiteriana Independente do Brasil e realizado de 9 a 12 de julho
de 1992, em São Paulo, SP)

1. Textos bíblicos: Atos 4.32-35; Mateus 5.1-12; Salmo 146.7-10 e l Coríntios 16.14.

2. Introdução
Este é um congresso nacional de diaconia. Somos uma parte do povo brasileiro e uma parte da igreja na
dimensão da nossa nacionalidade em todos os aspectos. O fato de sermos tão poucos em vista do tamanho do
país e da igreja — esta não é tão grande assim, infelizmente — não impede que abramos os olhos numa tentativa
de ver, refletir e procurar respostas, ainda que regionalizadas, para os desafios e problemas que atingem, de uma
maneira dramática e desumana, o nosso sofrido e minguado povo brasileiro, especialmente suas diversas
minorias que vivem na informalidade e na marginalidade.

3. Quem são os pobres na Bíblia


No Antigo Testamento, as palavras que designam o pobre são:
- "Rãs" - usada 11 vezes, significa carente, necessitado. Em Provérbios, serve para contrastar com o rico;
- "Dal" - usada 22 vezes, significa fraco, magro ou débil. Em Amos, é usada para apontar aqueles que são
explorados pêlos poderosos;
- "Ebyon" - usada 11 vezes, com o sentido de mendigo, pedinte, não saciado;
- "Any" - usada cerca de 37 vezes, com o sentido de homem rebaixado, aflito. Seu sentido refere-se mais
à pobreza como consequência não da riqueza, mas da opressão.
No Novo Testamento, são:
- "Penes" - que descreve o homem para quem a vida é um grande esforço. O homem pobre (penes) é
aquele que trabalha duramente e com meios escassos, limitados, não conseguindo além do estritamente
necessário para sobreviver. É o pobre que sobrevive ainda com uma certa dignidade;
- "Ptóchos" - esta palavra é derivada do verbo "ptos-sein", com o sentido de abaixar-se, encolher-se. Ela
descreve um indivíduo vivendo em condições miseráveis, tendo inclusive perdido a dignidade, que, para
sobreviver, precisa esmolar. A figura de Lázaro, na parábola contada por Jesus, é um exemplo disso (Lc 16.19-
31). 34

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

4. Conceitos de Pai, de Reino e de Amor


Queremos refletir sobre estes conceitos tendo como referenciais os textos bíblicos indicados acima. O
nosso objetivo é o de aprofundar a compreensão e indicar a relevância destes conceitos para o exercício da
diaconia em nossos dias.
a) Conceito de Pai
Jesus ensinou e proclamou que a humanidade tem um pai. Quando interpretamos a mensagem do
Sermão do Monte a partir desse conceito, passamos a ver, sentir e viver novas e inauditas perspectivas. Jesus
não criou a ideia de Deus como pai. Ela já existia na antiga aliança e também em outras religiões. Porém, a
maneira e o conteúdo dessa palavra ficaram diferentes nos lábios de Jesus. No ensino de Jesus, Deus não é o pai
autoritário dos judeus nem o pai impessoal das outras religiões. Ao contrário, é um pai pessoal, infinito, eterno,
previdente, cheio de carinho, de afeto e de boa vontade. Nessa dimensão, ele é um pai que vê e conhece nossa
intimidade, nossas emoções e nossas entranhas. É com ele que nos encontramos sozinhos, em oração. Ele é um
pai que sabe melhor do que nós do que precisamos. Ele é um pai que orienta, provê as necessidades, ama justos
e injustos, recebe e acolhe bons e maus. Ele é o pai que ama apaixonadamente a todos, sem distinção alguma.
Quando falamos em todos, pensamos nos abandonados da nossa sociedade: as crianças de rua, os
trabalhadores das esquinas das nossas grandes avenidas, os operários infantis, os famintos e desprotegidos, as
meninas prostituídas e escravizadas que são mantidas em cativeiro para serem leiloadas em orgias notumas, os
aidéticos abandonados ã sua própria sorte e morrendo à mingua, os desempregados e sem teto, as vítimas do
cólera, os bêbados e os drogados, os velhos abandonados depois de uma vida produtiva. A estes e a todos-os
outros que não foram mencionados, Deus, o nosso pai eterno, ama apaixonadamente.
b) Conceito de Reino
Também não foi um conceito criado por Jesus, mas recebeu com ele novas persepctivas e dimensões. O
reino de Deus, em Jesus Cristo, passa a ser um reino de amor, que acolhe e protege os marginalizados, que
recebe com alegria e júbilo as prostitutas e os pecadores, num projeto de transformação, dando-lhes cidadania
terrestre e celeste, isto é, concedendo-lhes significado e propósito nesta vida e na vida futura.
O reino de Deus proporciona vontade, direito, hombridade e humanidade, acolhendo os não acolhidos e
rejeitados pelo sistema vigente, dando participação integral aos marginalizados, socializando os esquecidos de
todo tipo, os oprimidos, os desprezados, os angustiados, os desesperados, os famintos e miseráveis gestados nas
entranhas da sociedade capitalista anti-cristã e desumana. O reino de Deus é pura libertação e revolução de
valores, conceitos e estruturas. É uma nova vida.
O reino de Deus é graça aos desgraçados, amor aos desamados, misericórdia aos perdidos-
desumanizados, cura e saúde integral ao ser humano. É e será sempre vitória completa e total sobre as forças da
morte. Voltamos a afirmar: o reino de Deus é libertação, acolhimento, justiça e vida.

c) Conceito de Amor
No nosso meio é urgente a necessidade de uma reinterpretação do conceito de amor que nos mostre que
ele não é simplesmente uma força emocional ou uma expressão espiritual. Infelizmente, é somente assim que o
amor tem sido vivido por nós. É necessária uma nova maneira de se ver e de se viver o amor. O amor é uma força
ou expressão ontológica, isto é, é a própria essência da vida. Tal amor une e reúne o que está separado,
fragmentado, quebrado, etc.
A Bíblia também ensina que o amor é uma pessoa, perfeita e eterna, isto é, Jesus Cristo. 36
Este amor conduz a uma grande e irresistível paixão por Deus, o Pai, por Jesus Cristo, o Filho, e pelo
Espírito Santo, doador da vida. Faz com que sejamos amantes do reino de Deus.
A paixão pelo Pai e pelo reino de Deus desemboca numa paixão integral pelo mundo. Sem este amor-
integral-ontológico, expressão radicalizada da nossa existência evangélica, como realizaremos nosso ministério
social, cristão e libertador?
Somente a graça e a força deste amor ontológico — essência da vida — nos encaminha aos sofridos,
desesperados, pequenos, famintos e miseráveis.
O projeto de Deus, trindade una e santa, é o de uma espiritualidade de um Pai e de um reino, bem como
de muitos amantes desse reino em que Jesus é o rei.
Afinal, Deus, o Pai, é aquele que, no Brasil, nas noites mal dormidas das crianças que jazem pelas ruas,
consola-lhes as lágrimas e serve-lhes de travesseiro, tentando protegê-las dos assassinos executores de crianças
indefesas, quando o seu povo, a igreja, se omite em fazer isso.

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

5. Como é que a igreja é sal?


A igreja é sal desde o seu nascedouro, quando Jesus Cristo realizou seu ministério a partir da periferia.
São inspiradores os estudos que revelam um Jesus que nasceu na periferia, que viveu na Galiléia dos
judeus/ gentios e que escolheu viver e trabalhar com os marginalizados daquela região. Com uma ousadia
inexplicável fez sua opção pêlos deficientes, leprosos, cegos, aleijados e por todos os espoliados por forças
religiosas, econômicas, sociais e políticas.
Quando caminhou decidido para Jerusalém, ele era o nazareno rumo ao centro do poder, isto é, o sinédrio
e o palácio real. Lá chegou acompanhado pelos marginalizados, com sua identidade bem firmada a partir de sua
opção de viver, trabalhar, morrer e ressuscitar entre os "impuros" do seu tempo.
A igreja de Jesus Cristo hoje, como sal, precisa agir com esse mesmo tipo de compromisso. Nas periferias
da vida e da história, precisa assumir como prática, não apenas como discurso, uma opção clara, radical e
determinada pêlos marginalizados e explorados, isto é, pelos periféricos sociais e religiosos das cidades e do
campo.
A partir do exemplo de Jesus Cristo, o contexto periférico deve ser a prioridade da igreja. Para Jesus, os
pobres marginalizados não eram um desprezível apêndice. Eram seu campo de trabalho. A eles Jesus, o Filho do
Deus Altíssimo, dedicou toda sua vida e ministério.
O problema crucial da igreja dos nossos dias é que, quando chega à cidade de Jerusalém, aos centros de
decisão e poder, ela se esquece de que Jesus enfrentou esse tipo de situação com base numa identidade
construída na caminhada com o povo oprimido. A igreja de hoje, por não possuir tal identidade, compactua com as
forças contrárias ao reino de Deus, prefere dar um "jeitinho" e "levar vantagem em tudo" a ser honesta e pagar o
preço de uma postura diferente e diferenciada.
Se a igreja não fizer a opção que Jesus fez, seu trabalho e ministério não passarão de um grande esforço
humano, precariamente humano e nada mais. Sua obra será palha e feno que o vento dispersa em todas as
direções.

6. A lógica do ser contra a lógica do ter


As bem-aventuranças proferidas por Jesus no sermão do monte nos fascinam e nos conquistam por diver-
sos aspectos. A primeira delas fala dos pobres de espírito. Esta é uma dimensão econômica, basicamente
econômica. Qualquer tradução ou interpretação que espiritualize em demasia essa bem-aventurança deixará de
ser teologia para ser pura especulação. A tradução fiel desta bem-aventurança é a idéia de pobreza que se refere
a uma descrição econômica e não a uma descrição espiritual.
A pobreza de espírito deve ser uma marca ou identidade da igreja, isto é, da comunidade dos discípulos
de Jesus Cristo. O texto de Lucas fortalece a nossa convicção a respeito da pobreza de espírito como uma
descrição econômica. Ele diz apenas: "bem-aventurados os pobres", sem fazer nenhum acréscimo. Ao contrário,
chega a contrapor a expressão: "ai de vós, os ricos", para mostrar que a pobreza de que Jesus falava era a
pobreza material.
Todavia, precisamos tomar cuidado para evitar a mística do "São Pobre". Quando Jesus disse "felizes os
pobres", não estava afirmando que havia uma felicidade inerente à pobreza material.
Um cristão pobre de espírito não vive do processo de acumulação desenfreada, no sentido de juntar
riquezas a qualquer custo em detrimento dos outros. Uma igreja pobre de espírito não acredita nem assume a
lógica do capital local e internacional, mas proclama que a lógica da acumulação é contrária à vontade de Deus e
seu reino. Para substituí-la, a igreja propõe a lógica do repartir e do partilhar.
Contra a lógica do ter, Jesus propõe a seus seguidores a lógica do ser: ser cristão, ser filho de Deus, ser
fermento do reino aqui e agora, ser agente de transformação e libertação histórica em nome de Deus.

7. Ter fome e sede de Deus


Uma igreja que sente fome e sede de Deus tem fome e sede de justiça.
Acreditamos que o tempo em que vivemos é sobremodo oportuno para multiplicarmos nossas
experiências de espiritualidade integral. Precisamos mostrar ao mundo todo que não oramos apenas pela cura da
miopia de um irmão, pela viagem de um parente distante ou pela conversão de uma alma desenganada. Oramos
também para que o reino de Deus se estabeleça com justiça e equidade nas estruturas sociais apodrecidas do
nosso país. Devemos mostrar atrevidamente que sentimos sede de Deus, sede do Espírito Santo e muita fome e
sede da pessoa amada de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, isto é, de sua presença na nossa história,
permeando as estruturas da nossa sociedade, sarando os enfermos dos vários males, dores e golpes...

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

Uma igreja, onde se constatam profundas diferenças econômicas e sociais, onde uns têm fartura e outros
não possuem o mínimo necessário para sobreviver, onde aqueles que dispõem de sobras não partilham com os
que estão passando necessidade, onde se fala muito em amor e não se pratica o mesmo, vive em terrível pecado.
É uma igreja que se afastou da graça do servir e da graça generosa do compartilhar. Ora, o reino de Deus não é
gestado historicamente só com palavras e confissões bonitas. Há necessidade urgente de tomada de atitudes
libertadoras, de gestos concretos, para pôr fim às desigualdades existentes.
Todo cristão que sente fome e sede da verdadeira justiça desejará em toda a sua vida que a justiça não
se restrinja à sua família, aos seus amigos e à sua igreja, mas que ela se estabeleça em todos os níveis e lugares,
para todas as pessoas e estruturas sociais, em todas as dimensões de poder e serviço.

8. O passado - fonte de inspiração


A teologia diaconal, que fundamenta o ministério social cristão, reveste-se de caráter de transformação
histórica e possui aspectos políticos de extrema relevância. Tendo isto em mente, queremos buscar no passado o
resgate da nossa caminhada histórica, para que nos sirva de fonte de inspiração. Felizmente dispomos, em alguns
momentos do passado, de uma história digna e admirável.
É preciso falar, proclamar e ensinar em nossas igrejas que somos herdeiros históricos das revoltas
camponesas do século XVI, dos niveladores e cavadores do século XVII, da rebelião Taiping do século XIX! É
preciso trazer à memória a luta abolicionista de Wilberforce, a luta revolucionária de Shaftesbury em favor dos
menores, das mulheres e dos prisioneiros e todo o esforço dos evangélicos ingleses daquele tempo em favor das
reformas sociais! É preciso recordar as origens da escola dominical, que nasceu para atender as crianças
faveladas!
Temos a memória viva de William Booth que, nas sargetas de Londres, levava sopa, sabão e salvação
aos abandonados pela sociedade industrial inglesa. Temos as lembranças de uma igreja que construía asilos,
escolas e hospitais; que distribuía sementes e ensinava novas técnicas agrícolas; que denunciava, com ousadia, a
escravidão, indo aos parlamentos lutar por leis mais justas e por uma sociedade mais fraterna e humana.
Temos a gratíssima memória dos pentecostais e batistas, fundando e liderando ligas camponesas e sindi-
catos rurais no nordeste brasileiro. Temos também a gratíssima memória da Conferência do Nordeste, de 1962,
promovida pela extinta Confederação Evangélica do Brasil, sob o tema: "Cristo e o Processo Revolucionário Bra-
sileiro".
Vamos construir uma história relevante e revolucionária, em nome de Deus e em benefício de todos
aqueles que sobrevivem nas diversas periferias aqui referidas. Que a nossa atuação seja tão forte a ponto de
deixar marcas indeléveis na nossa história, para que outras gerações possam cantá-la em prosa e verso, como
agora o fazemos, resgatando o passado e tentanto aplicá-lo em nossas vidas, como um estímulo para o nosso
fazer cristão.

V. AS FRONTEIRTAS DO MINISTÉRIO DIACONAL

1. Introdução
Esta dissertação reflete sobre diaconia e edificação de comunidade, em busca de indicativos úteis para as
igrejas, no que se refere à visão de edificação de uma comunidade diaconal. Na Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil (IECLB), existem comunidades que surgem a partir de projetos diaconais e de instituições
diaconais. Há poucas experiências de comunidades que surgem e são edificadas a partir de um trabalho diaconal
comunitário, liderado por obreiros ou obreiras diaconais.
Conheceremos a Comunidade Evangélica de Confissão Luterana de Balsas, que faz uma experiência
inédita: as primeiras obreiras que lá residiram e trabalharam de 1987 a meados de 1995 fazem parte do Ministério
Diaconal. Como a IECLB tem presença inexpressiva no Nordeste, ir para Balsas significa ir para uma situação de
fronteira. Resgatando a experiência dessa comunidade, recuperamos, simultaneamente, parte de sua história
referente ao período em que lá atuaram obreiras diaconais.

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

Analisando documentos surgidos no âmbito da IECLB no período de 1987 a 1995 e em anos anteriores e
inteirando-nos de posicionamentos de líderes da mesma, destacaremos o enfoque dado à diaconia.
2
Acompanharemos a trajetória de mudanças ocorridas na Igreja, bem como em sua Irmandade , possibilitando que
obreiras do Ministério Diaconal assumam a responsabilidade por edificar comunidade em novas fronteiras, a partir
de um trabalho diaconal.
O processo de edificação da comunidade de Balsas, localizada no sul do estado do Maranhão, servirá
como exemplo concreto para o nosso tema. Juntamente com o resgate da história desta comunidade,
abordaremos características do povo maranhense e da própria cidade de Balsas.
No decorrer da pesquisa surgem questionamentos, como: Quais são as etapas do processo de edificação
da comunidade de Balsas? O que a caracteriza como comunidade diaconal? Há indicativos na edificação dessa
comunidade que possam servir de exemplo para a edificação de outras comunidades?
Com este trabalho objetivamos tomar contato com o processo de edificação de uma comunidade e
apresentá-lo como um exemplo do qual se pode extrair indicativos. Estes podem ser adequados a outras
realidades ou usados em circunstâncias similares, principalmente quando se trata da edificação de comunidades
em situação de fronteira.
Para verificar como a IECLB confia a obreiras do Ministério Diaconal a responsabilidade de edificar
comunidade em Balsas, abordaremos alguns aspectos históricos dessa Igreja e de sua Irmandade. Salientaremos
que um dos objetivos básicos da Irmandade da IECLB é a diaconia comunitária.
Observando as comunidades luteranas e conhecendo alguns aspectos da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil, veremos que nela predomina a valorização do ministério pastoral, não havendo ainda um
espaço adequado aos demais ministérios ordenados. Por esse motivo, abordaremos a questão da ordenação,
pois entendemos que a reflexão em torno desse assunto ajuda a abrir caminho, possibilitando a ida de obreiras
diaconais a uma comunidade do Nordeste brasileiro.
Como a comunidade de Balsas está marcada por uma liderança feminina, incluiremos aspectos da
metodologia feminista para pesquisa. O método procura desenvolver uma visão de baixo para cima, construindo
algo novo de forma participativa e recíproca.
Também verificaremos compreensões de outros autores. Para poder explicar é importante entender e isso
implica ocupar-se com o sentido de uma ação. Um comportamento que se situa na fronteira entre uma ação com
sentido e uma ação tradicional tem importância sociológica. Este é um dos motivos que nos leva à pesquisa de
campo em Balsas: a necessidade de ouvir, de observar e de resgatar sentimentos que motivam ações com
sentido.
Procurando compensar a falta de bibliografia específica sobre edificação de comunidade a partir da
diaconia, incluiremos o estudo de diversos documentos da IECLB. Considerando que esta Igreja ainda não tem
indicativos para a edificação de comunidade a partir da diaconia, uma pesquisa nesta linha é importante e justifica-
se amplamente.
Assim propomo-nos a manejar três grandezas ao longo deste escrito: uma reflexão sobre diaconia e
edificação de comunidade, um olhar sobre a experiência de Balsas e um levantamento documental na história e
nas normas da instituição que referenda a prática pesquisada.
O trabalho que ora apresentamos está dividido em três capítulos. O primeiro reflete o quadro teórico e se
subdivide em duas partes: inicialmente, aprofundará a concepção de Igreja e de edificação de comunidade e
estudará a compreensão de diaconia e de comunidade diaconal. A segunda parte desse capítulo ocupar-se-á com
aspectos da Irmandade luterana e da IECLB. Como essa Igreja surge por imigração e tem considerável número de
membros migrantes, procuramos clarear, entre outros conceitos, a compreensão de fronteira. Apresentaremos a
cidade de Balsas, no Maranhão, na região Nordeste do país, e o encontro que lá acontece entre pessoas de
culturas muito diferentes.
No segundo capítulo, apresentaremos a metodologia usada na pesquisa de campo, seguida do resultado
desta pesquisa, formulado a partir do material reunido através de entrevistas e da observação participante. Com
isso, mostraremos as expectativas e decepções, o processo de crescimento e amadurecimento da Comunidade
Evangélica de Confissão Luterana de Balsas. Daremos a conhecer os eixos básicos em torno dos quais se
desenvolve o trabalho do Projeto Fundo de Quintal. Veremos que tanto as atividades com membros luteranos "su-
listas", como o trabalho com pessoas maranhenses objetivam a valorização da vida e a edificação de comunidade.
Observaremos que todo o processo de trabalho em Balsas foi marcado por situações que, por um lado,
geraram conflitos, mas que, por outro, promoveram mudanças. Veremos que até no interior da comunidade, no
culto cristão, instalam-se fronteiras que necessitam ser trabalhadas, viabilizando a edificação de uma comunidade
diaconal.
No terceiro capítulo, com base em documentos e posicionamentos oficiais da IECLB, apresentaremos reflexões e
preocupações dessa Igreja com a realidade social do país, com os seus membros migrantes e com a necessidade

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

de edificar comunidades. Como a comunidade de Balsas conta com a atuacão de obreiras do Ministério Diaconal,
incluiremos discussões e decisões em torno do reconhecimento deste ministério. Entendemos que estes enfoques
fazem parte da história que possibilita a ida de obreiras diaconais para Balsas. Na segunda parte desse capítulo,
apresentaremos depoimentos de líderes que ocupam cargos representativos na comunidade de Balsas ou na
IECLB e falam em nome destas instituições.
A pesquisa pretende mostrar como a diaconia marca o processo que edifica a comunidade de Balsas,
possibilitando que ela se tome uma comunidade diaconal e um exemplo do qual se pode extrair indicativos para a
edificação de outras comunidades.

2. Pressupostos teóricos e considerações históricas


1.0 Introdução ao capítulo
Este capítulo se subdivide em duas partes: na primeira, refletiremos sobre a compreensão de Igreja cristã
e sobre diaconia e edificação de comunidade diaconal.
Para fundamentar os conceitos teóricos desta parte, buscaremos subsídios no Novo Testamento e
dialogaremos com autores da Europa e da América Latina, para verificar como eles compreendem Igreja e
diaconia. Averiguaremos também qual é o lugar e a importância atribuídos à diaconia na comunidade cristã e
quais são as características de uma comunidade diaconal.
Na segunda parte do capítulo, apresentaremos um pouco da história da Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil (IECLB) e de sua Irmandade. Refletiremos sobre o significado do conceito "fronteira" e o
desafio de edificar comunidade luterana em situação de fronteira. Como este trabalho contém um estudo de caso,
faz-se necessário descrever o contexto em que foi realizado, ou seja, a comunidade de Balsas, no Maranhão,
situar essa cidade e saber como migrantes chegam até ela. Juntamente com aspectos históricos da comunidade
de Balsas, estaremos resgatando partes da história da Irmandade, que tem entre seus objetivos a diaconia
comunitária. Sondaremos também o que leva a IECLB a migrar com seus membros. Assim, conheceremos um
pouco mais sobre esta Igreja e sua Irmandade, que se deixa desafiar e arrisca edificar comunidade em situação
de fronteira.

2.0 - Edificando Igreja que acolhe e integra


2.1 - Introdução
Esta unidade refletirá sobre a compreensão de Igreja e de comunidade cristã: como surge Igreja e como
se edifica uma comunidade cristã. Usaremos como base o texto de l Coríntios 12 o qual compara a Igreja a um
corpo. Desejamos, com base nesse exemplo do corpo, verificar semelhanças orgânicas que existem com uma
comunidade cristã.
Além da conceituação de Igreja, de forma universal, usaremos exemplos e fatos históricos da Igreja
Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). A estrutura desta Igreja tem a comunidade como sua menor
célula. Várias comunidades formam uma paróquia. Diversas paróquias constituem um Sínodo. A união destes
forma a IECLB.

2.2 - A Igreja como corpo de Cristo


A Igreja, em sua origem, é fruto do chamado de Jesus Cristo, confessado como Filho de Deus. No Novo
Testamento grego, usa-se o termo ekklesía, traduzido para o português ora como Igreja, ora como comunidade.
Importante é que a Igreja pertence a Deus e congrega o seu povo.
Na compreensão luterana, uma Igreja é cristã quando nela o Evangelho "é pregado de maneira pura e os
sacramentos são administrados corretamente". Leonardo Boff entende a Igreja como portadora da mensagem da
salvação de Jesus Cristo, o qual morreu pela humanidade, mas ressuscitou. Cristo oferece, a quem nele crê, a
esperança escatológica da vida eterna. A Igreja nasce da fé, que é dádiva gratuita de Deus. Pelo Batismo nos
tornamos filhos e filhas de Deus, membros do seu povo. A Igreja cristã é chamada a dar continuidade à obra de
Cristo no mundo. Ela é a parte do mundo que acolhe o Reino e atua pela força do Espírito Santo. Por isso, a Igreja
é sinal do Reino de Deus e instrumento para implantá-lo neste mundo. Nela está presente a dimensão
escatológica. Na Igreja exercita-se a vivência da comunhão, da profecia e da diaconia. Ela pertence a Deus, que
chama pessoas, capacita-as e as envia para viver o seu amor e a sua justiça neste mundo.
Paulo usa a metáfora do corpo de Cristo para falar de Igreja. Coenen afirma que, para Paulo, não importa
o tamanho numérico da Igreja. Até comunidades domésticas são chamadas de Igreja. Esta se organiza a partir de
características locais. A Igreja é espaço de bênção e de comunhão. Brown também afirma que Paulo vê na
imagem do corpo a comunidade concreta, visível. Essa imagem indica que o conjunto dos membros e órgãos

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

forma uma unidade, uma só Igreja, onde Cristo é o Senhor. Lembra também a diversidade: apesar de ser um cor-
po, tem muitos membros com funções múltiplas. Essa comparação deixa clara a solidariedade existente entre as
diversas partes: os membros se ajudam e apóiam mutuamente. Se um membro sofre, todos sofrem com ele.
Cristo, como Senhor da Igreja, presenteia-a com uma multiplicidade de dons e talentos. Estes, sendo
usados, não atrofiam. A diversidade enriquece um grupo, toma mais significativa a comunhão e favorece a ajuda
mútua. Boff salienta que, no corpo Igreja, cada membro desempenha uma tarefa especial e o conjunto edifica o
todo. Quem recebe um carisma especial e tem função de liderança tem mais responsabilidades. Precisa zelar pela
unidade do todo, integrar e não competir, promover o diálogo, a escuta e a serenidade.
Conforme Dreher, a Igreja pode ser reconhecida por sinais, como: pregação da Palavra, Batismo,
Eucaristia, vocação, ordenação de ministros e ministras, cruz e tentação, oração pública.
Concordamos com autores que usam a metáfora do corpo de Cristo quando falam de Igreja. A interação e
a solidariedade, existentes entre os membros, na verdade, expressam a característica diaconal da Igreja. Cristo,
como o amor encarnado, é o centro da Igreja, a cabeça. Ele possibilita amar o outro, viver a justiça e a paz. A
força da comunhão, da partilha, do acolhimento e da ajuda mútua parte da fé em Cristo. A Igreja, criada por Deus
em Jesus Cristo, através do Espírito Santo, possibilita comunhão única entre as pessoas.

2.3 - O desafio: edificar comunidade


Por comunidade entendemos um núcleo local da Igreja. Tanto a IECLB como outras igrejas cristãs
preocupam-se em como edificar comunidades e torná-las vivas e atuantes. Volk-mann reconhece que este tema
faz parte do ser Igreja. Edificar comunidade difere da construção de uma casa. Quando se fala em prédios, pensa-
se em construção, que necessita de planejamento, planta, engenheiro, material e colaboradores. O termo
"edificar" também sugere construção, porque edificar e edifício têm a mesma raiz. Edificar Igreja igualmente exige
planejamento e colaboradores, mas inclui aspectos morais e religiosos e pode ser usado como sinônimo de
fundar, criar. Numa comunidade cristã existe comunhão de fé no mesmo Deus, há identidade, cultura, história. Por
esse motivo, ao referir-nos à comunidade religiosa, usamos o termo "edificar".
O ato de edificar comunidade é do próprio Deus. "Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os
que a edificam‖.Este Salmo lembra que pessoas participam do processo, à medida que se integram na ação
edificante e criadora de Deus. Para que isso possa acontecer, conforme Mõller, é necessário que as pessoas
tenham olhos e ouvidos, coração e mente abertos e atentos para aquilo que Deus oferece de graça. Conforme
esse autor, os enfoques mudam quando pessoas descobrem que participar do culto cristão, do ministério de Deus
e de serviços diaconais da comunidade é dádiva de Deus. Todo o trabalho comunitário se transforma em
edificação de comunidade quando pessoas são valorizadas e se percebem como parte integrante na ação
edificadora de Deus.
Na edificação de uma comunidade, o Deus triúno é o início e o fim. A comunhão que existe entre o Pai e o
Filho é aberta e cativante. O Espírito Santo convida e integra pessoas nessa comunhão. O Batismo em nome do
triúno Deus acolhe as pessoas, toma-as filhos e filhas de Deus e membros do corpo de Cristo.
Volkmann faz referência ao apóstolo Paulo. Este reconhece que, só a partir de Cristo, do ágape, há
verdadeira edificação, pois é o amor que edifica. Deus usa uma multiplicidade de colaboradores para continuarem
a sua obra neste mundo. Assim, edificar comunidade é trabalho conjunto de vários ministérios, bem como constitui
responsabilidade de todos os cristãos. Edificação acontece pelo testemunho e pelo serviço prestado por cristãos.
A libertação de culpa e pecado e a reconciliação com Deus, conquistadas por Cristo, são oferecidas a todas as
pessoas, não apenas às filiadas a alguma igreja. Por isso, uma comunidade cristã é aberta, missionária e
ecumênica.
Na perspectiva da Teologia da Libertação, o Reino de Deus é o centro de todo anúncio. Volkmann toma
como exemplo a forma de vida das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), afirmando que lá se vive o que
aconteceu nas primeiras comunidades cristãs: "a koinonia e a diakonia, além da martyria", pois as celebrações da
fé e da vida precisam andar integradas.

2.4 - Conclusão
Concordamos com Móller e Volkmann quando afirmam ser Deus quem edifica comunidade e os cristãos
os instrumentos, colaboradores da ação que é de Deus. Existe a necessidade de um trabalho integrado, no qual
todos os cristãos se engajem juntos na tarefa de edificar comunidade. A diversidade de talentos e dons a serviço
do Reino edifica e cria espaço para engajamentos múltiplos.
Reconhecemos que a tarefa da comunidade é chamar pessoas e deixar-se chamar por Deus, sem jamais
colocar limites excludentes. Só Ele sabe onde começa e onde termina a sua comunidade, a sua Igreja. Vimos que
o amor, o perdão e a reconciliação de Cristo são ofertas universais. Pessoas cristãs, obreiros e obreiras, são
incumbidas de transmitir essa Boa Nova a todas as pessoas, sendo o amor/ágape a base comum.

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Pudemos verificar que continua sendo mistério que Deus, em Jesus Cristo, na atuação do Espírito Santo,
cria Igreja de forma visível e concreta neste mundo, inserida na história social. Este Deus triúno chama, capacita e
envia pessoas a continuarem a sua obra neste mundo. Igualmente continua sendo algo especial que cristãos são
colaboradores de Deus neste mundo e ajudam a edificar comunidades cristãs.
Constatamos que, na reflexão sobre edificação de comunidades, Volkmann usa como exemplos os
trabalhos das CEBs e da Pastoral Popular Luterana (PPL). Lamentamos que não foram incluídos exemplos da
contribuição da diaconia. Valeria a pena aprofundar o estudo sobre a relação que existe entre a PPL e a Diaconia
na IECLB.

3.0 - Diaconia como essência do ser Igreja cristã


3.1 - Introdução
Continuando a reflexão sobre Igreja, enfatizaremos, nesta parte, a dimensão diaconal. Se a diaconia é
considerada a essência do ser Igreja cristã, necessitamos aprofundar o significado desta afirmação.
Para tanto, dialogaremos com alguns autores, a fim de verificar seus posicionamentos sobre diaconia.
Compararemos, basicamente, compreensões de dois autores: Oftestad, europeu, e Boff, brasileiro. Ambos
analisam ênfases diaconais dos últimos séculos. A partir desse estudo, procuraremos sintetizar características de
uma comunidade diaconal e refletir sobre a interação que existe entre diaconia e missão.
Etimologicamente, o termo "diaconia" provém do grego. Na Bíblia de língua portuguesa encontramos os
termos "serviço" e "ministério". Weingãrtner constata que o "conceito de 'ministério' (DIAKONÍA) (...) transparece
em todo o Novo Testamento (...) estabelece a premissa fundamental para a ação dos discípulos". O primeiro a
servir é Deus, ao envolver toda a humanidade e a sua criação com graça e amor. Ele acolhe as pessoas como
elas são e deseja libertá-las de tudo o que dificulta a vida.

3.2 - Diferentes enfoques de diaconia


Oftestad destaca três ênfases de diaconia nos últimos séculos:
a. A personalidade cristã individualista. Esta compreensão se origina com o movimento de
reavivamento pietista na Alemanha e nos países nórdicos, a partir do século XVII. Está centrada no indivíduo, em
sua fé e vida cristã. Conseqüente-mente, também a ação diaconal parte da fé pessoal. A espiritualidade e a ética
pessoal formam a personalidade cristã que caracteriza o diácono e a diaconisa. A atitude interior, a espiritualidade,
a misericórdia, a compaixão, a amabilidade, a humildade, a bondade, o entusiasmo, o amor — todas virtudes
bíblicas — são mais importantes do que a formação escolar/ profissional. Todo diácono precisa ser missionário e
ajudar a preparar o caminho do Evangelho.
O objetivo primeiro é a conversão da outra pessoa para Deus, a salvação da alma. A ajuda social e física
auxilia no preparo do caminho para o Evangelho. Conforme esse enfoque, Igreja é a soma de cristãos individuais.
A verdadeira Igreja é invisível e, por isso, as instituições e os ministérios não são importantes. A diferença entre
diaconato especial, ordenado, e o diaconato geral de todos os crentes é insignificante. O trabalho diaconal se
caracteriza pela caridade, a misericórdia, existindo cooperação com o Estado. A crítica social fica em segundo
plano.
b. A sociedade é o centro. Esta é a segunda ênfase apresentada por Oftestad. Na Teologia da
Libertação, desenvolvida na América Latina a partir dos anos setenta e oitenta, a aproximação diaconal acontece
através de relações interpessoais da comunidade social. Segundo essa perspectiva, a pessoa não está na Igreja
para cultivar a sua fé individual, mas encontra-se no mundo e se envolve com os problemas nele existentes. As
pessoas são cooperadoras de Deus, sendo criativas, dinâmicas e vivendo a liberdade cristã. Deus vocaciona
essas pessoas e as desafia a colocar o seu potencial a serviço: cooperando e criticando a sociedade com palavras
e atos. A Igreja está comprometida com o Reino de Deus e visa estabelecer a paz com justiça, a harmonia e a
comunhão, na qual o amor não tem fronteiras.
Nessa perspectiva compreende-se toda a teologia como serviço, como diaconia. A Igreja está em ação,
buscando vida digna para todas as pessoas, o que significa salvação e libertação de aflição e sofrimento injusto. A
diaconia existe na solidariedade com quem sofre e é excluído, conforme Mateus 25. Ela acolhe todas as pessoas
sem distinção, pois deseja libertar de opressão social, política e econômica.
A Teologia da Libertação desafia à práxis, que gera mudanças e melhores condições de vida para quem
sofre e é marginalizado. A práxis tem prioridade sobre a teoria. A libertação nos diversos níveis faz parte do plano
salvífico de Deus. Não é a Igreja que salva, mas ela tem uma tarefa: tornar o plano do amor e da graça de Deus
conhecido da humanidade, sendo sinal da presença e do amor de Deus neste mundo.

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

c. A Igreja local. Na terceira ênfase, Oftestad coloca a comunidade que confessa a sua fé no Deus triúno
como base para toda ação diaconal. Cada pessoa criada por Deus à sua imagem é chamada para viver em
comunhão com Ele e com as outras pessoas. A partir da queda no pecado, esse relacionamento harmonioso foi
prejudicado e a relação com Deus, a relação das pessoas entre si e a relação com a natureza sofrem as
conseqüências. Através de Cristo, morto na cruz e assumindo assim o pecado da humanidade, a pessoa foi
justificada e reconciliada com Deus. Uma pessoa amada, justificada por Deus, está livre para amar outras pessoas
e a natureza. Assim, toda ação diaconal acontece como Igreja que pertence a Deus. Toda ação diaconal parte da
comunidade local. A comunidade vive da graça de Deus e da ajuda mútua entre seus membros. A partir disso, vai
ao encontro de pessoas com seus sofrimentos e fragilidades. A comunidade cristã sempre vê o outro em sua
totalidade e procura integrá-lo na comunhão com Cristo. Deus deseja viver em comunhão com as pessoas e
deseja que estas vivam num relacionamento fraterno entre si. Para receber e dar apoio, é imprescindível fazer
parte de uma comunhão que compartilha a mesma fé. Assim a fé e a esperança são renovadas e fortalecidas.
Oftestad afirma que a diaconia, em primeiro lugar, edifica a comunhão de ajuda mútua para dentro da comunidade
e, em segundo lugar, está a serviço de pessoas e grupos que se encontram ã margem. Deseja integrar essas
pessoas na comunhão para que juntas possam adorar e glorificar a Deus. A Igreja criada por Deus em Jesus
Cristo pela ação do Espírito Santo possibilita a vivência única de comunhão entre pessoas.
Boff, no livro Igreja: carisma e poder, destaca as seguintes compreensões de Igreja: a — Igreja voltada
para dentro de si mesma: Ela é portadora da mensagem de salvação de Jesus Cristo. Ela se organiza em torno de
ações religiosas: celebrações, estudos bíblicos. A política é considerada "suja". Esta compreensão tem aspectos
convergentes com o que Oftestad chama de movimento pietista, de vivência espiritual, individual; b — Igreja da
era colonial: a organização e o trabalho ocorrem em conformidade com os interesses das classes dominantes. Ela
é conservadora e torna-se Igreja para os pobres e não dos pobres. Também Oftestad admite que o movimento
pietista procura trabalhar em cooperação com as autoridades estabelecidas; c — A modernização da Igreja: a
partir dos anos 50 deste século, a Igreja começa a se abrir para reflexões sobre problemas sociais. O discurso se
torna mais profético, incluindo a denúncia. A Igreja se reconhece como instrumento, através do qual Cristo e o
Espírito Santo agem. O mundo é considerado o lugar onde Deus age e constrói o "seu Reino, já agora"; d — A
emergência de um novo modelo: o povo começa a organizar-se e a reconhecer as causas do subdesenvolvimento
e da dependência dos países do Atlântico Norte. Toma-se sujeito de sua história de libertação. A comunidade
cristã passa a constituir-se lugar de reflexão, onde se estuda a Bíblia, se aprofunda e celebra a fé, se cultiva a
piedade e se ensaia a organização.
É a partir da comunidade que acontece o envio para o compromisso junto aos irmãos e às irmãs que
sofrem e se cultiva a ajuda mútua. Nela se exercita uma eclesiologia que tem como eixos básicos: a comunhão, a
profecia e a diaconia. Dela emerge a busca por libertação de tudo o que oprime e marginaliza para possibilitar a
vinda do Reino de Deus. Da fé nasce o compromisso político que exige mudanças.
Constatamos que os itens "c" e "d", mencionados por Boff, constituem aspectos vivenciados na América
Latina. Eles se assemelham às ênfases que Oftestad chama de sociedade como centro e de Igreja local. Contudo,
a proposta de Boff e da Teologia da Libertação é mais crítica ao poder instituído, mais profética, e valoriza as
ações comunitárias. É o povo que, a partir de sua fé no Deus triúno, passa a organizar-se e a inserir-se nas
problemáticas sociopolíticas e busca mudanças a partir das causas do sofrimento. Reconhecemos que as diversas
ênfases contêm aspectos positivos: há necessidade de uma fé pessoal, entretanto é preciso, sobretudo, que ela
esteja inserida no comunitário e social. Faz-se mister que a denúncia e o anúncio caminhem lado a lado. O amor e
a graça de Deus se estendem a toda a sua criação, sendo, portanto, inclusivos. Jesus opta, em primeiro lugar,
pelas pessoas que estão à margem da sociedade, mas não exclui as demais. Por isso, cristãos não podem
compactuar com poderes instituídos que são excludentes, com mecanismos que promovem opressão e morte. É
necessário que a inserção social e política aconteça a partir da comunidade eclesial, pois é ali que cristãos se
fortalecem e preparam para o testemunho no cotidiano.

3.3 - Caracterizando uma comunidade diaconal


O Novo Testamento relata que Jesus percorria cidades e povoados, indo ao encontro das pessoas. Ele
ensina, prega o Evangelho e cura toda sorte de doenças. Jesus serve e se deixa servir. Ele vê, ouve e se
compadece das pessoas. Mõller alerta que o ver e o ouvir podem trazer surpresas consigo. Jesus é tocado por
uma mulher hemorrágica, um oficial pagão pede insistentemente por ajuda para o seu criado, pessoas com as
mais diferentes dificuldades e enfermidades são levadas a ele. Jesus sempre está próximo do povo. Mõller acres-
centa que, numa comunidade evangélica, existe abertura para o povo que sofre, espaço para surpresas com
pessoas que são diferentes ou parecem não ter nada a ver com a comunidade cristã.
Ao falar da "Igreja de Bases Populares", Mõller diz que esta olha o povo do jeito como Jesus o faz. "É uma
Igreja engajada em questões sociais, que colabora com todas as forças sociais do Estado em prol do bem-estar
das pessoas." Mas essa Igreja tem consciência das suas limitações. O autor em referência toma como exemplo o
texto da parábola do bom samaritano e a história de Maria e Marta. Afirma que "esta tensão entre o agir do bom

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“Habilitando os santos para o desempenho do ministério”

samaritano (...) e o ouvir de Maria (...) deixa o ouvido de uma Igreja de Bases Populares missionária apurado e
atento".
Mõller atribui a uma comunidade evangélica ou de "Bases Populares" características que entendemos
como sendo próprias de uma comunidade diaconal, pois assume compromisso com o outro a partir do vínculo
estabelecido com Cristo. Assim, uma comunidade diaconal vive o Evangelho, a justiça e a paz que provêm de
Jesus, sendo solidária e portadora do ministério da reconciliação. Essa comunidade procura ajudar a carregar
cargas, sofrer com quem sofre e alegrar-se com quem se alegra. Uma comunidade diaconal celebra o amor de
Deus, que aceita as pessoas como elas são e as presenteia com dons. Quanto mais uma comunidade se deixa
presentear por Deus, tanto mais ativa ela se torna no amor, que é a prática da fé, é diaconia. Este amor, "ágape",
não exclui quem pensa diferente, mas procura integrar todas as pessoas e possibilita que a comunidade produza
frutos.
Quando Gutiérrez afirma que conhecer o amor de Deus leva a trabalhar por uma relação de justiça, esta
tem para nós marcas diaconais. Injustiça e desigualdade social, política, económica ou cultural comprovam a
ausência ou rejeição de Deus. A justiça de Deus é ativa: dá pão aos famintos, liberta os cativos, cura os cegos,
protege os forasteiros, ampara as viúvas e os órfãos. O amor das pessoas para com Deus se torna visível e
concreto no amor ao próximo. O próximo não é a pessoa que eu encontro em meu caminho, mas sim a pessoa em
cujo caminho eu me coloco.
Hase afirma que uma comunidade, uma Igreja, não existe para desenvolver determinados trabalhos: ou
ela é diaconal e serve, ou ela está morta, Para ele, é a diaconia que define o rosto da Igreja. Ajudar o outro exige
proximidade e tempo, exige comunhão e lugar estável. Se Deus é aquele que serve, a sua comunidade, sendo
servida por Ele, por seu Espírito, está capacitada para servir a quem sofre. Ela tem o direito e o dever de servir,
pois a dimensão diaconal é inerente ao ser comunidade cristã. É na comunhão com Deus e com outros cristãos
que a comunidade é libertada e capacitada para o servir.
Hase tem razão ao afirmar que uma comunidade que prega o Evangelho, mas falha no "diaconar", fica
desacreditada. O autor, referindo-se à Igreja, corpo de Cristo, afirma que o amor é como a circulação sanguínea, a
qual precisa irrigar todos os membros e alcançar as suas extremidades para conservar e possibilitar a vida. Assim
o amor de Deus deseja alcançar todas as pessoas e possibilitar-lhes a vida.

3.4 - Como tornar-se comunidade diaconal?


Schober admite que cada geração precisa refletir e atualizar o significado da diaconia para o seu contexto.
Trazemos teses elaboradas por um grupo na Alemanha, com as quais concordamos: a — A diaconia surge onde
pessoas crêem em Jesus Cristo, como diácono de Deus, que afirma de si mesmo ter vindo para servir. Isto
confere à Igreja um caráter diaconal, como aspecto fundamental. Tomando a imagem do corpo, os membros
somente adquirem importância quando integrados no todo; b — A fé e o amor precisam estar integrados para que
uma comunidade possa ter expressão diaconal. O propríum da diaconia é ir ao encontro das pessoas em situação
de risco, que estão com a sua dignidade ameaçada; c — A diaconia sempre vê a pessoa de forma integral, e a
ajuda objetiva a pessoa como um todo, sem divisões; d — A diaconia tem como meta o testemunho do Reino de
Deus. Para atuar na sociedade, precisa ter conhecimentos técnicos e profissionalismo. Precisa conhecer, fazer
análise da situação, planejar a ação, atuar de forma interdisciplinar e arriscar o novo. O proprium do ser
comunidade diaconal é receber para dar. Schober afirma que uma comunidade que só recebe afoga-se em sua
própria riqueza. A diaconia visa a cura integral: corpórea, espiritual, social.
Voltando à simbologia do corpo: quem só recebe, sem dar, interrompe o fluxo da circulação sanguínea e,
com isso, prejudica a vida do corpo todo. Reconhecemos que o mesmo acontece com uma comunidade que só vê
a si própria e não se abre para o outro e as necessidades do contexto. A base para tornar-se comunidade diaconal
é o amor. Lutero, ao referir-se ã metáfora do corpo, toma como exemplo o dedo do pé. Se ele dói, os olhos se
voltam para ele, as mãos o tocam e afagam, e todo o corpo se inclina e se ocupa com ele. Todos cuidam do
membro fragilizado para que se recupere com rapidez, restaurando o bem-estar do corpo todo. Quem deseja
desfrutar da comunhão do corpo "precisa contribuir e pagar amor com amor" É o amor que acende a chama do
amor. Os membros do corpo sozinhos, isolados, nada podem fazer. Eles precisam atuar em parceria e ajudar-se
mutuamente. Se uma Igreja cristã cuidar assim de todos os membros, o sofrimento e a solidão serão amenizados.
Paulo afirma que a fé atua pelo amor. Mas como fortalecer a fé para que o amor se tome uma chama
concreta de diaconia comprometida? Mõller lembra que Paulo, ao levantar uma coleta nas comunidades da Grécia
e da Ásia Menor para a comunidade de Jerusalém, desvia o olhar da comunidade de Corinto de suas próprias
necessidades e aponta para a fartura que Deus dá. A abundância oferecida por Cristo contagia todos, leva a
partilhar com alegria. Concordamos com Molt-mann, ao afirmar: quando membros de uma comunidade vivem da
graça de Deus, quando se descobrem como parte do corpo todo, quando assumem o "diaconato universal de
todos os crentes", crescem a partilha e a solidariedade, e a fé se concretiza no amor. Ali a comunidade diaconal
se empenha por mais justiça social, ajuda o outro a resgatar o sentido de vida e a reencontrar a esperança
perdida.

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3.5 - Aspectos básicos da atuação diaconal


Ao fazer referência à metáfora do corpo para descrever Igreja e sua função diaconal, Nordstokke lembra
que Cristo é a cabeça. Isto lhe assegura sua identidade. À Igreja cabe manter a unidade do corpo. Sendo a Igreja
composta de diversos membros, estes se acolhem e colaboram entre si, de forma que os que parecem ser mais
fracos são igualmente importantes. A dimensão diaconal da Igreja objetiva a valorização e a vida de cada membro
da comunidade, inclusive daquele que parece ser insignificante, sem valor.
Nordstokke afirma que o Novo Testamento, por vezes, pode dar a entender que a diaconia se destina
apenas aos membros da comunidade eclesial. Isso não confere. A Igreja antiga percebe a diaconia como parte
essencial de sua missão, ao dirigir-se às pessoas que ainda não conhecem o Evangelho. Tudo o que acontece na
comunidade em sua missão, pregação e diaconia parte daquilo que a comunidade vive e celebra, mas a sua ação
ultrapassa os limites dela mesma.
Também as instituições diaconais precisam manter o vínculo com a comunidade local. É necessário que
aconteça uma interação ativa, com apoio mútuo, onde pessoas e grupos de voluntários fortaleçam os laços entre a
instituição e a comunidade. Concordamos com Nordstokke quando afirma que: "A tarefa (...) é enraizar novamente
a diaconia na comunidade e, junto com isto, resgatar a dimensão diaconal da vida comunitária".
Com base na identidade cristológica, a Igreja antiga reconhece a visitação e a hospitalidade como eixos
fundamentais da prática diaconal: a — Visitação: o próprio Deus nos visita em Jesus Cristo para salvar o que está
perdido. Disto nos fala o cântico de Zacarias. Na ressurreição do filho da viúva de Naim, o povo glorifica a Deus,
dizendo: "Deus visitou o seu povo". Deus visita o povo para ouvir o seu clamor e anunciar a possibilidade de salvá-
lo. Esta ação escatológica anuncia que chegou o tempo da salvação, que promete graça, esperança e nova vida;
b — Hospitalidade: o convite de Jesus para a comunhão de mesa expressa outro gesto escatológico. A
hospitalidade para com os excluídos é motivo de escândalo para uns e sinal do Reino de Deus para outros. Na
celebração da Páscoa, os judeus lembram a saída do Egito, a libertação, mas ela aponta também para a
esperança do novo que há de vir. A Páscoa é recordada quando Jesus alimenta uma multidão no deserto, bem
como quando celebra a última ceia com seus discípulos. Em ambos os momentos estão presentes a hospitalidade
e a dimensão escatológica.

3.6 - Diaconia missionária


Às vezes, o trabalho da comunidade de Balsas é denominado de projeto "missionário-diaconal" por
obreiros pastores que atuam naquele Sínodo. Isto nos desafia a abordar esse aspecto. Tanto a perspectiva
missionária como a diaconal são inerentes ao ser Igreja de Jesus Cristo no mundo. Schober relata que a Igreja
Evangélica da Alemanha considera a diaconia e a missão como irmãs gêmeas, com valor e importância iguais.
Concordamos com Schober que a diaconia não é missionária por unir a ação diaconal com a ação
missionária, mas ela é missionária quando, em sua ação, são percebidos traços do Cristo que ajuda e salva. A
missão corre o risco de se perder em palavras quando lhe falta o testemunho dos atos de amor; e a diaconia não
passa de serviço social se lhe falta o testemunho, a relação com o envio. A preocupação missionária de uma
Igreja impede-a de perder-se no ativismo diante das questões sociais. Deus incumbe a sua comunidade do
ministério da reconciliação. Anunciar às pessoas que Cristo morreu e ressuscitou possibilita que elas sejam
salvas. Isto é a base de todo servir.
O Novo Testamento nos relata que Jesus acolhe pessoas com dúvidas e ajuda a esclarecê-las: "Ide e
anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os
surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e aos pobres está sendo pregado o Evangelho". Em toda a sua vida,
Jesus entrelaça o testemunho da Palavra falada com o testemunho dos atos de amor.
Philippi, baseando-se em textos do Novo Testamento, afirma que o Evangelho é pregado tanto pela
Palavra proclamada quanto pela interação social, ou seja, na comunhão de mesa, na hospitalidade, na visitação.
Engaja-se nessa missão quem tem clareza de sua fé e de sua identidade. Assim, quem atua na diaconia
testemunha de sua identidade, testemunha do Deus no qual cremos, divulgando que este Deus ama, perdoa,
liberta, reconcilia e salva todas as pessoas, sem exclusão.
Hoekendijk aponta para uma diaconia missionária quando afirma ser a diaconia a ponta do Evangelho que
mais avança para dentro do mundo, por envolver-se com situações de sofrimento. O seu agir, por vezes
silencioso, testemunha o amor de Cristo, que se coloca ao lado do fraco, do sofredor. Constatamos que a prática
do amor confirma que o mundo precisa do testemunho da Palavra falada e da ação, sendo ambas imprescindíveis
na edificação de comunidades cristãs. Os atos de amor tornam a Palavra proferida mais compreensível, e a fala
ajuda na apreensão do sentido da ação. No testemunho da comunidade, através da Palavra falada e da ação, o
agir curador e salvador de Deus se torna visível e concreto. Ambos são testemunhos humanos, orientados pelo
Espírito de Deus. É ele quem possibilita o testemunho numa comunidade, através da diversidade de dons. Estes,
usados em cooperação, edificam a Igreja no mundo.

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Schober concorda que a fé vem pelo ouvir da Palavra de Deus e que a diaconia é a vivência corpórea da
fé. Contudo, destaca que Jesus nunca estabelece o que vem em primeiro ou em segundo lugar. Há situações
onde a mensagem de Cristo chega ao outro pelo testemunho prático de cristãos, noutras chega pelo testemunho
da Palavra. A diaconia não substitui a proclamação da Palavra, e esta não tira o lugar dos atos de amor. Ambos
precisam atuar de forma integrada no testemunho do amor e da graça de Deus.

3.7 - Diaconia e culto cristão


White afirma que, no culto cristão, Deus se dirige ao ser humano, confirmando e renovando a história da
salvação. É Deus quem possibilita celebrar culto, como serviço que Ele presta a nós e serviço que nós prestamos
a Ele. Um serviço sempre é prestado para o outro. Desde o tempo do Novo Testamento, cristãos se retinem para
celebrar a Ceia do Senhor como festa do amor. Kirst lembra que, no culto, Deus se coloca à disposição da
comunidade, para que ela se encontre com Ele. Jesus diz: "Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome,
ali estou no meio deles". Kirst refere que é no culto, na comunhão com a comunidade reunida, "que Deus quer
doar-se na palavra e no sacramento, e receber a súplica, o louvor, a gratidão". Assim, o lugar do culto é no centro
da comunidade cristã.
Mõller vê o culto como espaço, onde invocamos a amabilidade de Deus, onde participamos do ministério
de Deus e onde praticamos o louvor e a adoração. É lá que acontece a proclamação de sua Palavra, da sua
graça, através de palavras humanas. No culto, celebramos os seus sacramentos. No louvor, percebemos algo da
fartura de Deus, que nos acolhe assim como somos. Na palavra da reconciliação, da proclamação do Evangelho,
fala-se da fartura e da riqueza de Deus, que, em Jesus Cristo, penetra em nossa pobreza e nos torna ricos. Na
intercessão, manifesta-se a possibilidade do sacerdócio geral, quando se intercede diante de Deus por todos os
que precisam de ajuda. A bênção envolve a comunidade com a graça de Deus e a envia para o culto no cotidiano
da vida. Na motivação para a coleta em favor dos pobres de Jerusalém, por exemplo, Paulo, em momento algum,
aponta para as dificuldades, contudo enfoca a graça de Deus, "que sendo rico se fez pobre por amor". A coleta
expressa louvor e gratidão a Deus. Ela está ligada ao culto, pois concretiza o que lá é celebrado: "a graça de Deus
experimentada em fé, esperança e amor".
Assim, a diaconia de Deus para com as pessoas e a diaconia comunitária estão muito presentes no culto
cristão. Sendo o culto da comunidade, é nele que esta se reabastece para o servir cotidiano. A Ceia é festejada
como festa da comunhão com Deus e com irmãos e irmãs que crêem neste mesmo Deus.
Por outro lado, concordamos igualmente com Nordstokke, quando afirma que o impulso para a ação da
comunidade, bem como a sua metodologia de trabalho provêm da realidade humana, com todas as suas
situações de carência e sofrimento. Por isso, o lugar onde se pratica o amor ao próximo não pode ficar limitado ao
culto, aos muros de uma comunidade ou confissão.

3.8 - Conclusão
A diaconia, como essência do ser Igreja, nasce da fé em Jesus Cristo e é alimentada e fortalecida na
comunhão da comunidade cristã. Vimos que, pela diaconia, a comunidade expressa seu desejo de estar a serviço,
a exemplo de Jesus Cristo, que se revela como o Diácono.
Oftestad fala da personalidade cristã individualista. Esta visão de Igreja centrada na fé pessoal ainda está
bastante presente, como reflexo do Pietismo, em segmentos da IECLB. O movimento em questão tem forte ênfase
no espiritual, na conversão individual, sendo a ajuda física e material usada como um caminho para levar outras
pessoas a Deus.
Quando Oftestad diz que a diaconia precisa ser, em primeiro lugar, um movimento para dentro da
comunidade, certamente pensa na necessidade de que seja fortalecida e capacitada para um novo servir.
Reconhecemos que existe o perigo de comunidades esquecerem do segundo passo, que consiste no movimento
para fora, adentrando a sociedade.
A fé individual é importante, assim como é importante a expressão de fé da comunidade local.
Concordamos que a diaconia precisa estar inserida nessa comunidade; entretanto, de igual modo, necessita estar
integrada no mundo, envolver-se em mudanças e ali fazer a diferença. Concluímos que os três aspectos
apontados por Oftestad são importantes, mas precisam acontecer de forma integrada.
Da mesma maneira, é inegável a relevância do que Boff chama de emergência de um novo modelo.
Reconhecemos que, quando o povo está consciente de sua realidade, ele se organiza e assume o rumo de sua
história. Assim, a exemplo de Jesus, a diaconia se preocupa com pessoas em necessidade, fragilizadas, excluídas
da sociedade, com sua dignidade e vida ameaçadas, jamais colocando limites excludentes. O amor de Deus e a
reconciliação conquistada por Cristo destinam-se a todas as pessoas. Por isso, a diaconia é assistencial e
profética, acolhedora e transformadora, preventiva e curativa. Ela se ocupa com as causas e conseqüências de
toda situação que dificulta e destrói a vida. Ela se envolve com o bem-estar das pessoas de forma integral.

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A diaconia acontece para além da mera ação social, pois possui o diferencial de estar ancorada na fé
cristã. A partir da comunhão com Deus e de uns para os outros nasce e se fortalece o desafio diaconal. A sua
ação está enraizada na comunidade eclesial, sendo o culto o momento em que a comunidade celebra e se
reabastece para um novo servir. Esse serviço parte da fé no Deus triúno e não substitui a ação política, mas
fundamenta o discurso profético. O anúncio do amor, da graça de Deus, bem como a denúncia de tudo o que
dificulta e prejudica a vida andam lado a lado. A diaconia vê o ser humano integral: o seu sofrimento, a totalidade
de suas necessidades e possibilidades.
Por vezes, parece haver uma compreensão errônea do lugar e significado da diaconia, sendo confundida
com assistencialismo. A Teologia da Libertação prefere a palavra "práxis", sendo o termo "diaconia" raro em seus
escritos. Urge resgatar as diversas dimensões da atuação diaconal, pois cabe à diaconia aliviar dores, curar
feridas, acolher e integrar, mas cabe-lhe também denunciar injustiças e colocar sinais do Reino de Deus neste
mundo, sinais de justiça, de amor e de esperança.
Uma comunidade que, de fato, vive o Evangelho é uma comunidade libertadora e diaconal. Nela são
incluídos os excluídos e esquecidos, pois a diaconia, como vivência da fé e resposta ao amor gratuito de Deus, é
centrada no culto cristão, que edifica a comunhão de ajuda mútua e conclama todas as pessoas para o louvor e a
adoração a Deus. É a comunhão que fortalece e reabastece para um novo servir.
Vimos que toda ação diaconal acontece como Igreja que está comprometida com o Reino de Deus e visa
estabelecer a paz com justiça e uma comunhão na qual o amor não tem fronteiras. Essa Igreja se reconhece como
instrumento, através do qual Cristo e o Espírito Santo agem. A diaconia arrisca o encontro com o mundo que a
cerca e que tem sede de acolhimento, de amor e de justiça. Ela se insere no mundo, atua em parceria com
serviços que a sociedade oferece, trabalha com outras igrejas cristãs e, assim, está presente em lugares de
fronteira.

4.0 - Igreja e Irmandade ampliam suas fronteiras


4.1 - Introdução
O segundo bloco desta parte retratará, em pinceladas, aspectos históricos da Irmandade e da IECLB,
pois, com a migração de seus membros, ambas se defrontam com novas fronteiras. Para compreender o que
acontece na comunidade de Balsas, é necessário conhecer um pouco sobre a Irmandade e aprofundar o
significado da situação de fronteira.
Quando, no início do século XIX, a industrialização na Europa gerou concentração de bens e pobreza,
muitas famílias procuraram terra e novas oportunidades para reconstruir as suas vidas. Contudo, encontraram
dificuldades em seu país. No mesmo período, o Brasil se preparava para substituir a mão-de-obra escrava pelo
trabalho de pessoas brancas assalariadas. Quando as portas de nosso país foram abertas para acolher pessoas
de fora, grupos de várias nações desafiaram as fronteiras e desembarcaram no Brasil à procura de novas opor-
tunidades de vida e trabalho. Foi esse movimento imigratório europeu que trouxe famílias luteranas ao Brasil e
desencadeou o surgimento da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Também motivou, um século
mais tarde, o surgimento de uma Irmandade brasileira.

4.2 - A Igreja se expande a partir do testemunho de pessoas


Se olharmos para o cristianismo do Novo Testamento, vemos que ele se expande a partir de pessoas que
testemunham a sua fé através de palavras e ações. Há muitos que abrem as suas casas e permitem a formação
de novos núcleos comunitários. Muitas mulheres se envolvem no movimento de Jesus e acolhem pessoas em
suas casas, permitindo o surgimento de comunidades domésticas. O período entre a morte de Jesus e o ano 70 é
marcado por intensa atividade missionária, evangelizadora por parte dos primeiros cristãos. É tempo de missão e
de ação do Espírito Santo. Só mais tarde vem a preocupação com a organização da Igreja.
No Brasil, a partir da década de 60 do século XX, época de grande mobilidade social, as igrejas cristãs
começam a buscar uma reflexão teológica contextualizada. Procuram por uma teologia enraizada na realidade
brasileira, latino-americana, que tenha Jesus Cristo encarnado em seu meio. Reconhecem que o texto de Mateus
25.31-46 reforça que Cristo está no irmão e na irmã sofredores. O Evangelho de Cristo desafia para o social, o
diaconal. As testemunhas baseiam-se em Jesus, que afirma ter vindo para servir e não para ser servido,
autodenominando-se Diácono. Ele chama pessoas e as desafia para seguir o seu exemplo.
A IECLB, como Igreja de Jesus Cristo no país, sente-se desafiada a assumir uma nova consciência
missionária a partir da década de 60. Baseia-se na cristologia, que valoriza o testemunho dado através da ação
social/diaconal. Por estar ligada à história da imigração de luteranos europeus, essa igreja tem sua maior
concentração de comunidades nos estados do Sul e na região Sudeste. Com o aumento da migração interna,
membros luteranos se "espalham" pelo Brasil afora. À medida que se deslocam, sentem falta de sua igreja. Os mi-
grantes começam a ajudar-se mutuamente, a testemunhar a sua fé e a reunir-se com outros luteranos em suas

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casas, criando pequenas comunidades domésticas. Paralelamente pedem pela presença de "sua" igreja. Começa,
assim, o envio de obreiros catequistas, pastores e diaconais a lugares distantes do Sul, como é o caso de
Rondônia, Tocantins, Maranhão, Goiás e outros. Nessas comunidades, os membros, os obreiros e as obreiras, por
vezes, precisam percorrer centenas de quilômetros para chegar à próxima paróquia ou comunidade, a fim de
acompanhar os membros luteranos.
Muitos núcleos comunitários em regiões de fronteira, com o decorrer dos anos, tornam-se comunidades
da IECLB. É assim que surge a comunidade de Balsas, no Maranhão, tendo uma diaconisa como primeira obreira
residente.

4.3 - A Irmandade: desafiada por novas fronteiras


Conforme Marga Ströher, no início da história do cristianismo, as mulheres desempenharam um papel
importante e colocaram sinais valiosos. O mesmo se repete na história dos últimos séculos deste milênio.
Citaremos apenas um exemplo, entre os inúmeros existentes. No início do século XK, o Pastor Theodor Fliedner
percebe a ociosidade da mão-de-obra feminina e a necessidade na área social: na saúde, nos presídios e na
educação infantil. Para suprir ambas as necessidades, a das mulheres e a da sociedade, surge, em 1836, a
Irmandade de Kaiserswerth, na Alemanha. A ênfase inicial da Irmandade alemã é o atendimento a doentes e
crianças pequenas — em hospitais e jardins de infância. Oito anos mais tarde, em 1844, comunidades começam a
requisitar diaconisas para atuarem em seu meio, dando início à diaconia comunitária organizada. Décadas mais
tarde, os seus reflexos alcançam o Brasil.
Quando, em 1910, o superintendente geral da província alemã da Renânia e Westfália, D. Zõllner,
juntamente com o P. Lie. Cremer, visita diversas comunidades no Brasil, fala-se sobre a lacuna que nelas existe
na área da diaconia. Percebe-se que a mensagem do Evangelho perde em força e valor se, ao lado do anúncio
verbal do Evangelho, não existir o trabalho diaconal que vai ao encontro de velhos, crianças, solitários,
empobrecidos. A partir da visita desses pastores cresce o desejo, em várias comunidades, de ter urna diaconisa
em seu meio, que atue e motive os membros para a diaconia. Assim, a partir de 1913, diaconisas de Wittenberg
vêm trabalhar em diversas comunidades no Brasil. Logo, mulheres daqui se sentem motivadas para a diaconia e
vão à Alemanha, a fim de se preparar para este ministério.
A carência de diaconisas diante da grande demanda favorece o surgimento da Casa Matriz de Diaconisas,
em São Leopoldo, RS, no ano de 1939, a qual abriga a Irmandade da IECLB. Esta Casa torna-se sinal de vida e
de esperança. Foram os grupos organizados de mulheres nas comunidades, motivadas pela presidente do Sínodo
Riograndense, Erika Strothmann, e seu Pastor orientador Johannes Raspe, também Pastor orientador das
diaconisas, que ajudaram para que esta Irmandade nascesse e se desenvolvesse. Contou também com o
respaldo do presidente do Sínodo Riograndense, Dr. Hermann Dohms. "A idéia era: Da Comunidade — para a
Comunidade". Percebe-se a Irmandade como "expressão diaconal da Igreja". Por isso, o objetivo básico é
vocacionar mulheres nas comunidades e habilitá-las profissionalmente, a fim de poderem retornar a elas,
assumindo responsabilidade diaconal junto a quem sofre. Contudo, a história mostra que, no início, as diaconisas
brasileiras são absorvidas basicamente pêlos hospitais. Somente algumas trabalham em ancionatos, jardins de
infância e comunidades.
Com as mudanças que ocorreram no país e na Igreja a partir das décadas de 60 e 70, a Irmandade da
IECLB foi desafiada a contribuir em novas fronteiras. Em março de 1974, acontece a abertura oficial do Seminário
Bíblico-Diaconal (SBD), junto à Casa Matriz de Diaconisas, dando início à nova fase da formação diaconal em
nossa Igreja. A Casa Matriz de Diaconisas já formava mulheres para a diaconia desde 1939. A partir da década de
70, diaconisas deixam os jardins de infância e assumem trabalhos em bairros, com crianças empobrecidas, idosos
e outras pessoas que estão à margem da sociedade. Elas começam a se deslocar para longe da sede, no Sul,
assumindo desafios em Rondõnia (área da saúde e educação), no Acre (aldeias indígenas) e em Ceilândia Norte,
Brasília (crianças empobrecidas). Mais tarde, diaconisas e obreiras diaconais trabalham no Espírito Santo, no
Maranhão e em Pernambuco. Atuam, entre outros, em trabalhos comunitários, na área da saúde, da educação,
em creches de periferias de cidades.

4.4 - Conclusão
Vimos que os imigrantes europeus vindos ao Brasil trouxeram consigo a sua fé e confissão, o que
caracteriza a IECLB como uma Igreja migrante desde o início de sua história. As inúmeras necessidades e
dificuldades existentes nesse "novo" país, em situação de fronteira, desafiaram os luteranos a praticarem diaconia
voluntária, espontânea e, mais tarde, a buscarem diaconisas da Alemanha para atuarem no Brasil.
Constatamos que havia grupos de mulheres que, na década de 30, empenharam-se em favor do
surgimento de uma Irmandade brasileira. O sonho era que jovens das comunidades se preparassem para uma
profissão na área diaconal e depois retornassem para ajudar as comunidades a se tornarem diaconais. Entretanto,
observamos que, inicialmente, as diaconisas eram muito absorvidas por instituições diaconais. Apenas na década

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de 70, a Irmandade, à semelhança da Igreja, foi desafiada a ir para novas fronteiras. Ela aceitou o desafio, e irmãs
foram trabalhar em novos campos diaconais.
Na história dos imigrantes e dos migrantes da IECLB, bem como na trajetória da Irmandade, o encontro
com situações de fronteira foi de fato uma constante. Por essa razão, sentimos a necessidade de aprofundar a
reflexão em torno do seu significado.

5.0 - Fronteira: lugar de encontro e desencontro


5.1 - Introdução
Nesta parte do trabalho, refletiremos sobre a questão da fronteira como lugar-limite de novas
oportunidades de vida, onde culturas muito diferentes se encontram.
Apresentaremos um pouco da história de migrantes que se deslocam dos estados do Sul do país para
novas fronteiras no Norte e Nordeste do país. Veremos como eles descobrem Balsas, no Maranhão. Ao mesmo
tempo, lançaremos um olhar sobre a história dessa cidade e do seu povo, objetivando compreender como e por
que ali se instalam fronteiras.

5.2 - Lugar de fronteira


Sociologicamente, fronteira é caracterizada como área de conflito social. Trata-se de lugar de encontro
dos que são diferentes entre si, como, por exemplo, proprietários e camponeses. Do mesmo modo, fronteira é
espaço de descoberta do outro, onde acontecem encontros e desencontros, pois há concepções de vida, visão de
mundo e temporalidade histórica diferentes. Martins constata que diversas pessoas consideram a Amazônia como
última fronteira terrestre.
Deslocar fronteira implica história de destruição, conflitos, sonhos e esperanças. A partir de 1964,
desencadeia-se um rápido processo de migração e ocupação do centro e norte do país. Tribos indígenas da
Amazônia são atacadas por grandes proprietários de terra com o auxílio de seus pistoleiros. Também camponeses
e moradores antigos dessas terras foram alcançados por esses novos proprietários. Os conflitos de terra atingem
os estados do Maranhão, Pará e Goiás. A terra se transforma em mercadoria, o que desencadeia violência contra
a natureza e conflitos entre pessoas.
A região do Araguaia, em Tocantins, fica próxima à cidade de Imperatriz, no Maranhão, que, por sua vez,
não é muito distante de Balsas. Estas terras são ensolaradas, de muita beleza. São, porém, consideradas arenas
de violentos conflitos. Lá se encontram: autoridades, grileiros, posseiros, Igreja, funcionários do governo e
pistoleiros. Com a construção da BR 153, ligando Belém a Brasília e atravessando o Maranhão, a região do
Araguaia saiu do anonimato. Surgiram os litígios de terra e, à medida que cresce a procura por terras, aumentam
os conflitos. As lutas por terra acontecem entre grandes empresas multinacionais e posseiros, entre fazendeiros e
posseiros, entre ricos e pobres, entre ricos e ricos, entre pobres e pobres. Apenas o motivo das lutas é diferente.

5.3 - Conhecendo os maranhenses


O Maranhão pertence à região Nordeste. Faz divisa com o Pará, Tocantins, Piauí e tange a Bahia. Além
de índios, há portugueses, franceses, holandeses e africanos marcando a história desse estado. Muitos
maranhenses ainda vivem em casas de barro, cobertas com folhas de coqueiro, ou em casas só de folhas de
coqueiro. Muitos moradores nativos daquele lugar usam a roça do toco para sua cultura de subsistência,
plantando arroz, mandioca, milho e outros. A caça, a pesca e a coleta de frutas são importantes, pois ajudam na
subsistência. O interior do sertão é rico em frutas e mel. Devido aos períodos de seca, que dificultam a
sobrevivência no sul do estado, os rios e a água constituem o centro da vida. Em geral, a mulher maranhense é
muito ativa e hábil: planta algodão, beneficia o coco, tece redes e roupas para a família, faz trabalhos de cerâmica,
de material do coco, crochê e outros. Na política tradicional do Maranhão, há décadas impera o coronelismo.
Durante muitos anos, Balsas foi uma cidade bastante tranquila do sertão maranhense. As famílias
normalmente são numerosas, e há considerável respeito para com as pessoas idosas. Conforme dados do IBGE
relativos ao censo demográfico de 1980, Balsas tinha 19.762 habitantes, sendo que 8.380 residiam na zona rural.
Desse total somente 9.402 eram alfabetizados. Em 1991, conforme dados do mesmo instituto, Balsas tinha 35.209
habitantes, dos quais 9.117 residentes em zona rural e 20.663 eram alfabetizados. Esses dados revelam que a
população total aumentou em quase 78,17% no decorrer de 11 anos. Contudo, na zona rural, os moradores
diminuíram em 38,9%. Os percentuais comprovam uma diminuição relativa de moradores no campo,
demonstrando um aumento de concentração de terras nas mãos de poucos. Isso significa que muitos são
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"empurrados" do campo para a periferia da cidade. Conforme correspondência de BLS , da comunidade de Bal-
sas, há poucas possibilidades de emprego na área urbana no início dos anos 90. Dados da Pastoral da Saúde da
Igreja Católica, desta época, informam que muitas crianças morrem em Balsas por falta de alimentação adequada.

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Nessa situação de alto índice de desnutrição e analfabetismo, acontece o encontro de maranhenses com
migrantes sulistas, os quais têm mais escolaridade e poder aquisitivo.

5.4 - Migrantes sulistas descobrem Balsas


Em 1975, o então prefeito de Balsas visita a região de Carazinho, no Rio Grande do Sul, a fim de convidar
famílias sulistas para virem ao Norte. Nos estados do Sul do país, a pequena propriedade rural não comporta mais
ser subdividida para absorver os filhos que formam novas famílias. O convite para o Norte, associado às
dificuldades enfrentadas pelos pequenos produtores rurais no Sul, desencadeia uma corrente migratória para o
Centro e Norte do país. Comparadas ao Norte, as terras do Sul têm um bom preço. Assim, vendendo alguns
hectares no Sul, consegue-se comprar muita terra no Centro e Norte do país.
Balsas é uma das cidades a acolher migrantes. É considerada fronteira agrícola do Brasil, sendo chamada
de "a nova capital da soja". Em 1999, espera obter a maior colheita de soja de sua história. Martins reconhece
que, muitas vezes, os pioneiros que vão para a fronteira são mais vítimas do que pioneiros. Lá existe o outro, os
grupos sociais e étnicos diferentes. Encontram-se também limites culturais, sociais e religiosos. Moradores de
Balsas atestam que essas ambigüidades decorrentes de limites ou fronteiras foram vivenciadas por pessoas
vindas do Sul na intenção de residir em Balsas. Contudo, de igual modo, maranhenses o experimentaram no
encontro com migrantes vindos de outros lugares.
Em 1989, BLS, o então presidente da Comunidade Evangélica de Confissão Luterana de Balsas, e MNSC,
vice-presidente, escrevem que, nos últimos 15 anos, dois movimentos desencadeiam drásticas mudanças na
cidade: a — Migrantes vêm do Sul do país com tecnologia moderna, forçados a deixar sua região natal, devido à
concentração de terras lá existente; b — Grupos empresariais se apoderam de grandes regiões de terra em
Balsas e na vizinhança, levando as pessoas nativas do lugar a abandonarem suas roças e se unirem às muitas
famílias já residentes à margem das cidades.
Como as terras de Balsas são baratas e boas para a agricultura, os migrantes começam a chegar,
provocando muitas mudanças. Surgem as fazendas, onde grandes áreas da chapada são cultivadas com
maquinário moderno, desencadeando o êxodo rural. Sulistas migram para lá, na esperança de melhorar de vida.
Com o incentivo de órgãos públicos, conseguem financiamento e iniciam grandes plantações de arroz e de soja.
Valem-se de novas tecnologias. As terras nas imediações de Balsas concentram-se rapidamente nas mãos de
poucos. Há fazendas de grande porte, a saber, entre 50 a 350 mil hectares de terra. Os maranhenses que
permanecem na terra têm seu chão nos fundos, atrás das fazendas. Muitos deles vendem suas terras por preços
irrisórios e vão para as periferias das cidades. Lá não conseguem sobreviver de caça, pesca e frutas. Procuram
trabalho nas fazendas. Contudo, os seus costumes não correspondem ao ritmo de vida das mesmas.
Essa situação faz surgir dezenas de bairros e setores, em Balsas, sem um mínimo de infra-estrutura. A
questão social torna-se preocupante. O povo local tem sua história, sua cultura, seus costumes, seus valores
ligados à mística, à natureza, ao clima. Saindo do sertão, sentem-se desenraizados na cidade. A questão da
educação e da saúde é muito precária, o que afeta, em especial, as crianças, os jovens e as mulheres.
O deslocamento para a região de fronteira traz consigo o desenraizamento e a destruição de relações
sociais. Segundo Martins, isto é próprio da sociedade capitalista: destruir relações sociais tradicionais para
promover a transformação do ser humano. As pessoas deixam a sua Igreja, o seu grupo social, perdem o vínculo
com pessoas da mesma cultura e se confrontam com realidades totalmente diferentes.
Haesbert constata que, no Norte e Nordeste, as pessoas que vêm de estados do Sul e Centro do país são
chamados de "gaúchos". Em sua maioria, trata-se de descendentes de europeus, os quais afirmam levar "tradição
migrante no sangue". Sua identidade está marcada pelo signo da "superioridade" em relação à identidade
nordestina. Deve-se mencionar ainda que, além dos sulistas, há outros agentes que procuram terras em novas
fronteiras: órgãos do governo, como a EMBRAPA e a SUDENE, e capitalistas de São Paulo, Minas Gerais e do
próprio Nordeste.
O fortalecimento da identidade sulista é um complicador de todo o quadro de relações sociais. Muitos
sulistas consideram-se diferentes, "únicos" em relação ao restante do povo brasileiro. Saliente-se que também
entre os sulistas existem diferenças: há progressistas e conservadores, descendentes de alemães (luteranos) e de
italianos (católicos). Há diferenças culturais, econômicas e políticas. É nesse lugar de fronteira que acontece o
encontro de culturas diferentes com o Evangelho de Jesus Cristo.

5.5 - O Evangelho e a cultura


Entende-se por cultura os padrões de comportamento, os valores e as crenças que caracterizam uma
sociedade e civilização, bem como a forma e o lugar onde cada grupo social constrói coletivamente a sua vida. É o
lugar específico da identidade e da diferença de um grupo social, "um padrão de significados transmitidos
historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas", usadas em sua comunicação
pelas pessoas, que "perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida".

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Tanto a cultura quanto o Evangelho têm propostas de organização social onde haja paz, justiça e
solidariedade. Ambos, Evangelho e cultura, "são projetos de vida. Ambos transmitem experiências e proposta de
vida (...) zelam pela identidade das pessoas e de grupos sociais e por sua liberdade com responsabilidade (...)
apostam na continuidade da vida coletiva". Para Suess, a cultura é de ordem antropológica, enquanto o Evangelho
é de ordem transcendental. O Evangelho se torna perceptível através de símbolos culturais. "A proposta do Evan-
gelho nas culturas exige uma presença solidária, amável, diferenciada e crítica".
Gibellini, comentando Tillich, afirma que "a religião é a substância da cultura, a cultura é a forma da
religião"- A religião traz pensamentos do divino, de Deus. Como dimensão de profundidade torna-se a base da
cultura, sendo a vida eterna a dimensão do transcendente, do Reino de Deus. A religião leva a buscar o sentido
da vida. A cultura é a totalidade de formas e símbolos pelos quais a religião se expressa, os quais demonstram
qual é o seu sentido de vida.
Suess lembra que o Filho de Deus se encarnou na cultura hebréia. Para poder transmitir a boa nova de
Deus, usou símbolos, parábolas e sinais. O Evangelho se toma perceptível através de símbolos culturais, os quais
podem ser construções, igrejas, festas, organização política e ideológica, entre outros. É na vivência histórica do
cotidiano e nos símbolos aí usados que a cultura e o Evangelho se concretizam. Para que o Evangelho possa
inculturar-se, é necessário: — reconhecer a gratuidade do próprio Evangelho; — haver respeito para com a
diferença antropológica e teológica; — descobrir afinidades e possibilidades de complementaridade e articulação
entre ambos. Não basta um optar pelo outro. Ambos precisam vincular-se numa única opção. A identificação pode
acontecer em duas dimensões: o evangelizador se identifica com a cultura do outro, ou este se identifica com a
cultura do evangelizador. Jesus se encarna em Nazaré, mas se identifica com a vontade de Deus e não com os
nazarenos. "O Evangelho protege em solidariedade fraterna a alteridade, a identidade e a perspectiva" de futuro
de cada grupo e pessoa.
O Evangelho, como gratuidade plena, protege contra qualquer degradação, também ideológica. Por isso,
o Evangelho pressupõe inculturação, na qual objetivos e caminhos se fundem. O agente evangelizador que se
incultura pode falar de suas propostas, da história da salvação que perpassa a história das pessoas e a realidade
de cada grupo.
Tillich reconhece que a vida exige decisões diante de situações múltiplas. Optar por uma possibilidade
significa excluir outras. O confronto de duas culturas pode promover exclusão, mas igualmente possibilita
encontros e inculturação. O religioso, o eterno, é uma verdade dinâmica que nos coloca diante de fronteiras e leva
a romper com elas. Fronteiras podem existir entre submissão e autoridade, entre classes sociais, entre teoria e
prática, entre etnias e culturas diferentes, como é o caso de maranhenses e sulistas. Fronteiras e limites também
podem existir dentro de lares e de instituições, na Igreja e na sociedade em geral.

5.6 - Conclusão
Vimos que a IECLB, como Igreja que vem ao Brasil pela imigração, procurou acompanhar seus membros
que se deslocam dos estados do Sul do país para as novas fronteiras no Norte e Nordeste em busca de melhores
condições de vida e de trabalho. Balsas é uma das cidades que acolhe migrantes e, por isso, torna-se lugar de
fronteira, onde acontece o encontro entre etnias, costumes, valores, culturas diferentes. No confronto dos
diferentes, instalam-se situações de conflito, que desafiam para novas possibilidades.
Refletindo sobre fronteira, constatamos que é em situação de limite que se instalam encontros e
desencontros com culturas diferentes. No decorrer da história, o Evangelho encontra as culturas e pede licença
para inserir-se nelas. Tanto o Evangelho quanto a cultura desejam facilitar a vivência da paz, da justiça e da
solidariedade. Para que isso possa concretizar-se, é necessário o respeito pelo diferente e a vivência do amor
cristão. A partir dessa reflexão percebemos que, na verdade, toda nossa vida está marcada por fronteiras.
Como já vimos em Tillich, são muitos os fatores que instalam fronteiras. Mas é onde está o limite que
também surge a possibilidade de se criar o novo, a nova sociedade, novas concepções que induzem à
modernização e à mudança social.

6.0 - Conclusão do capítulo


Na primeira parte do capítulo, vimos que é na comunidade cristã, núcleo local da Igreja, que pessoas são
acolhidas como filhas e filhos de Deus pelo Batismo. Estes aceitam o desafio de atuar em sua seara e de colocar
sinais do Reino de Deus neste mundo. A comunidade louva e agradece a Deus, fortalece a sua fé, vivência a Ceia
da partilha e comunhão, celebra a vida e se reabastece para o serviço do dia-a-dia. Contudo, é no confronto com
situações cotidianas da vida que a comunidade define o seu agir diaconal. Essas ações acontecem no "mundo" e
nele geram transformações.
No estudo sobre diaconia e Igreja, constatamos que a diaconia é a vivência corpórea da fé. Esta fé no
Deus triúno surge, como mistério de Deus, em conseqüência do contato com a sua Palavra. O testemunho do

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Evangelho acontece pela Palavra falada e pela fala das obras de amor. Ao refletir sobre aspectos de uma
comunidade diaconal, tivemos dificuldade de separar características do ser Igreja cristã do ser Igreja diaconal. Isto
significa que ou uma Igreja é diaconal e servidora, ou ela não é Igreja cristã, pois a diaconia faz parte da
identidade de uma Igreja cristã.
Ao compararmos a Igreja com a metáfora do corpo de Cristo, percebemos que, em um corpo saudável, os
membros interagem, se ajudam e apóiam mutuamente. Vimos que Hase compara o amor à circulação sanguínea.
Numa comunidade diaconal, esse amor, como o sangue que circula, renova e possibilita a vida, atinge pessoas
que estão excluídas e fragilizadas. Observamos, contudo, que há fronteiras que fragilizam o amor cristão,
favorecendo barreiras excludentes, mas há também sinais do Cristo que ajuda e salva.
Na segunda parte do capítulo, vimos como a IECLB se expandiu pelo Brasil afora ao acompanhar seus
membros migrantes. Esta Igreja de Jesus Cristo é desafiada a envolver-se onde a vida de pessoas está
ameaçada, como também a viver e testemunhar do Deus que ama, que reconcilia e acolhe as pessoas assim
como elas são, dentro e fora dos muros eclesiais. Também a Irmandade se abriu para novos desafios a partir do
encontro com o próximo fragilizado e foi ao encontro de culturas diferentes.
Reconhecemos que a crise social e política vigente no país nas décadas de 60 e 70 ajudou a IECLB e a
sua Irmandade a se abrirem para novas realidades. Com isso, Igreja e Irmandade começaram a voltar-se mais
para o povo empobrecido e a ser sensíveis aos pedidos de quem está à margem e distante do Sul do país.
Assumindo novos desafios, Igreja e Irmandade confrontam-se com situações de fronteira. Sociologicamente, o
lugar de fronteira é caracterizado como área de conflito social. Ele aparece onde existe encontro com o diferente,
onde há situações-limite. Balsas se torna um exemplo dessa experiência. Constatamos que uma Igreja é
desafiada a viver o amor cristão e a colocar sinais do Reino de Deus, sinais de esperança e vida que ultrapassam
barreiras e fronteiras étnicas, culturais e sociais.
De acordo com a história "oficial" das Irmandades, citada neste capítulo, foram destacados nomes de
homens que motivaram e favoreceram o seu surgimento. Sabe-se, contudo, que mulheres desempenharam papel
decisivo tanto na trajetória das Irmandades, quanto na vida e diaconia das igrejas cristãs. Muitos desses nomes
permanecem ofuscados e ocultos. Isso se repete na história da Igreja até os dias atuais. Desejamos evitar que
isso aconteça na história da comunidade de Balsas. O capítulo dois do presente trabalho permitirá conhecer o pro-
cesso de formação desta comunidade, a qual é edificada com a participação de obreiras do Ministério Diaconal.
Verificamos que, nas comunidades da IECLB, existem expressões diaconais voluntárias. A partir do
desafio cristão, pessoas são solidárias e ajudam-se mutuamente, mas poucas comunidades têm trabalhos
diaconais organizados, com objetivos definidos, inseridos na sociedade local. Falta uma metodologia diaconal
apropriada, coordenada por profissionais da diaconia. Por vezes, falta a consciência de que a diaconia é um dos
fatores imprescindíveis na edificação de comunidades, que ela é essência do ser Igreja cristã e que a Palavra
requer o testemunho do amor para ter crédito. A Comunidade Evangélica de Balsas ensaia a ajuda mútua desde o
início de sua história, marcada pela atuação de obreiras diaconais. Com isso, o exemplo de Balsas oferece
indicativos para a edificação de comunidades diaconais.
A IECLB dispõe de dois centros de formação diaconal. Ambas as instituições consideram a vida
comunitária, a comunhão, essencial para o trabalho diaconal, razão por que existem hoje duas comunhões
diaconais na IECLB: a Irmandade, que congrega as diaconisas, e a Comunhão de Obreiros Diaconais (COD), que
congrega os diáconos e as diáconas.
Constatamos que, na área da diaconia, há muito a ser construído em termos de marco teórico, com vistas
à edificação de comunidades diaconais. Essa lacuna afeta também a formação de obreiros e obreiras. Este
trabalho confrontou-se com a referida deficiência e teve de lidar com ela. Segundo Rodolfo Gaede Neto, a
diaconia é uma "disciplina teológica emergente (...), que se encontra ainda em fase de busca de sua conceituação
contextualizada, de seu lugar como disciplina teológica e de sua fundamentação teológica".
Não há, pois, como esquivar-se de ampliar a reflexão, especialmente a partir da nossa realidade.

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