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NATAL/RN
2019
BÁRBARA CAROLLINE SANTOS CAVALCANTE
NATAL/RN
2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e
Artes - CCHLA
Aprovado em ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Prof. Dr. Sebastião Leal Ferreira Vargas Netto
(Orientador/UFRN)
__________________________________________________
Prof. Dr. Magno Francisco de Jesus Santos
(UFRN)
__________________________________________________
Profa. Dra. Susana Isabel Marcelino Guerra Domingos
(UFRN)
AGRADECIMENTOS
Como teoría política, el anarquismo surge a mediados del siglo XIX, principalmente en torno a
los escritos de lo teórico ruso Mikhail Bakunin (1814-1876). Con fuerte presencia en el
movimiento obrero del comienzo del siglo XX, articulando protestas, huelgas y haciendo
propagación de los ideales libertarios a través de los periódicos proletarios, también marcó su
presencia en eventos como la Revolución Mexicana – siendo influencia de Emiliano Zapata y
de los hermanos Flores Magón – y en la Guerra Civil Española (1936-1939), solamente citando
los casos más simbólicos. Desde entonces, los libertarios han manifestado su presencia en los
más diversos espacios de la sociedad, como en la música, el teatro, la literatura, las practicas
pedagógicas, el ecologismo, así como en la propia lucha política – como nos demuestran los
zapatistas e los kurdos. Rechazando doctrinas y recetas para la acción, cultivando la diversidad
de posibilidades, el anarquismo sigue como un terreno abierto a los anarquismos. Si en el campo
político la cuestión provoca desacuerdos – principalmente con relación a los “anarquismos de
derecha” – en lo ámbito cultural la cuestión puede ser aún más diversa. Negando jerarquías y
alimentando una política autónoma, la rebeldía del artista va de la mano con los principios más
elementales del ideal anárquico. En el mundo de las letras latinoamericanas, diversos escritores
declararon, en diversos momentos y contextos, su identificación con lo anarquismo. Son
ejemplos: Carlos Drummond de Andrade, Ernesto Cardenal, Ernesto Sabato, Eduardo Galeano,
Gilberto Freyre, Jorge Luis Borges, Murilo Mendes, Nicanor Parra e Oswald de Andrade – eso
sin mencionar los que, de alguna manera, relacionaron sus prácticas con el anarquismo, como
Cesar Vallejo, Juan Manoel Roca e Julio Cortázar. Entonces, a partir de la comprensión del
movimiento anarquista como un lugar de florecimiento de la polisemia, ese trabajo intenta
mapear las manifestaciones de una existencia anárquica en la literatura latinoamericana del
siglo XX. Teniendo como criterio inicial la búsqueda por autoidentificaciones de los sujetos y
explotando entrevistas, poemas y demás declaraciones de los diferentes literatos
latinoamericanos, intentamos localizar el anarquismo en diferentes espacios semánticos.
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
EPÍLOGO ............................................................................................................................... 51
FONTES ................................................................................................................................. 54
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 56
ANEXOS .............................................................................................................................. 65
10
INTRODUÇÃO
No campo da ciência histórica, atualmente talvez não exista concordância mais comum
do que a que afirma que a visão do historiador se volta para o passado buscando corresponder
aos anseios despertados no presente – anseios estes frutos não apenas da vida coletiva, mas
também da vontade individual. Desde a renovação historiográfica proposta pela Escola dos
Annales – a chamada “revolução francesa da historiografia”, como aponta Peter Burke (2010)
–, temos a consciência de que o que guia o fazer historiográfico é, na verdade, o método definido
por Marc Bloch (2001) como regressivo. Do hoje retornamos ao ontem, questionando-o.
Também refletindo sobre o fazer historiográfico, Michel de Certeau (1995) nos atenta à
consideração de quem fala. Ora, sujeitos diferentes, olhares diferentes. O estudo do passado não
está condicionado somente aos questionamentos que fazemos, mas também a quem somos nós,
os questionadores; às nossas intenções. Atento a isso e refletindo sobre a crítica da Escola dos
Annales ao historicismo, José D’Assunção Barros pondera que
1
Impossível não citar o texto O professor, de Eduardo Galeano (2011, p. 61): “Os alunos do sexto grau, numa
escola de Montevidéu, tinham organizado um concurso de romances. Todos participaram. Éramos três no júri. O
professor Oscar, punhos puídos, salário de faquir, uma aluna, representante dos autores, e eu. Na cerimônia de
premiação, foi proibida a entrada dos pais e de qualquer adulto. O júri fez a leitura da ata final, que destacava os
méritos de cada trabalho. O concurso foi vencido por todos, e para cada premiado houve uma ovação, uma chuva
de serpentina e uma medalhinha doada pelo joalheiro do bairro. Depois, o professor Oscar me disse: - Nós nos
sentimos tão unidos que me dá vontade de fazer todos eles repetirem de ano. E uma de suas alunas, que tinha
vindo para a capital de um povoado perdido no campo, ficou falando comigo. Contou que, antes, ela não falava
nunca, e rindo me explicou que seu problema era que agora não conseguia parar. E me disse que ela gostava no
professor, gostava muuuuito, porque ele tinha lhe ensinado a perder o medo de se enganar.”
11
Assim, preciso ser honesta: este trabalho não tem a pretensão de ter início, meio e fim –
embora, obviamente, esteja formatado em moldes acadêmicos. Na disciplina Introdução ao
Estudo da História, lá no primeiro período, descobri que o historiador é um ser humano. Tem
preferências, faz escolhas. Eu, pretensamente historiadora, lembro disso para justificar este meu
exercício de liberdade. A pesquisa fluiu, e só – sem esquecer, é claro, que a História é uma
ciência arraigada em métodos; mas sem acorrentar-me a eles.
Quanto à literatura, não tenho explicações. Temos uma relação simbiótica (desde...
sempre?). Nos trabalhos do curso, procurei por ela em todas as disciplinas que pude: História
Social da Família no Brasil, História da América I, Metodologia da Pesquisa Histórica, História
da América II, História Moderna II, História do Brasil República I. Por causa da literatura e da
História, cheguei ao Eduardo Galeano. Já “o conhecia”, mas só me apaixonei por seus escritos
na aula sobre Revolução Mexicana, em América II, com as leituras em sala de O século do
vento (1998), último volume da trilogia Memória do Fogo. Desde então, com o Galeano, senti
O livro dos abraços (2017), ouvi as Bocas do tempo (2011), conheci Mulheres (2006), Os filhos
dos dias (2012) e alguns outros, por entre Dias e noite de amor e de guerra (2017). A tênue
fronteira entre a crônica jornalística, a literatura e – por que não? – a História nos escritos do
uruguaio a mim se mostrou, sem dúvidas, como o fator mais intrigante. Não seria exagero dizer
que há algo de anárquico nisso.
2
As duas disciplinas são do mesmo período, por isso o paralelo.
12
Somente assim posso apresentar este trabalho. Entre uma profusão de temas, interesses
e “crises existenciais historiográficas” – e foram muitas –, eis-me aqui. Eis-nos.
3
Cabe citar Trabalho urbano e conflito social (1977) de Boris Fausto e A invenção do trabalhismo (1994) de
Ângela de Castro Gomes.
4
Destacando contextos culturais e momentos sociais e políticos, a cronologia identifica, entre 1892 e 1935, a
publicação de mais de meia centena de periódicos declaradamente libertários ou influenciados pelo anarquismo –
além das novelas, romances, contos e poemas.
13
Assim, indo além da temporalidade que nos indica a citação de Cappelletti, estendemos
a investigação por todo o século XX, problematizando a possibilidade das diferentes
significações dadas a esse anarquismo em primeira pessoa. Afinal, se as próprias vertentes do
anarquismo confundem, como entender – ou tentar entender – a pluralidade de possibilidades
de anarquismos que as declarações desses tantos escritores nos revelam? O que pensar de tão
diversos escritores falando sobre coisas diferentes ao mesmo tempo em que as nomeiam da
mesma forma? Quando o “anarquismo construtivo” do Gilberto Freyre – declarado na mesma
entrevista em que ele defende a ditadura militar no Brasil5 – se encontra com o anarquismo
cristão do Murilo Mendes?6 Ou com o sarcasmo do Oswald de Andrade?7 Com o pacifismo do
Sabato?8 Com o fogo do Drummond...?9 Se encontram, senão na própria palavra anarquia? A
mesma palavra que por tanto tempo foi – e ainda é, embora não somente – sinônimo de
5
“Eu me defini a favor desse movimento [militar de 1964] sem que isso implicasse uma adesão política. Implicou
uma adesão nacionalista. [...] Eu me considero um anarquista construtivo.” In: FREYRE, Gilberto. Entrevista a
Ricardo Noblat. Playboy. 1980. Disponível em: http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/GilbertoFreyre.htm.
Acesso em: 20 mar. 2019.
6
“Sou ligado pela herança do espírito e do sangue/ Ao mártir, ao assassino, ao anarquista.” (MENDES, 1994, p.
205)
7
“Do meu fundamental anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o sarcasmo.” (ANDRADE, 1985. p. 45)
8
“Yo estuve varios años en el movimiento revolucionario. Empecé con los anarquistas, con los cuales yo siempre
he mantenido afinidad porque yo tengo un temperamento anárquico. Cuando uno dice anarquistas piensa en una
persona que pone bombas. No. Hay anarquistas que son incapaces de matar una mosca. Son pacifistas los mejores.
Esto siempre mantenido simpatía por ellos.” In: SABATO, Ernesto. Entrevista ao programa A fondo. 1977.
Disponível em: < https://youtu.be/7Lx1exJLPBQ>. Acesso em: 07 jul. 2019.
9
“Pôr fogo em tudo, inclusive em mim/ Ao menino de 1918 chamavam anarquista/ Porém meu ódio é o melhor
de mim/ Com ele me salvo/ e dou a poucos uma esperança mínima.” (ANDRADE, 2007. p. 119)
14
desordem, de caos, de confusão, vista negativamente, até que algum (louco?) se reivindicasse
anarquista, como o fez Proudhon, pela primeira vez, como veremos adiante.
10
“Eu era um adolescente anarcoide. Hoje ninguém diz, me vendo já com esta idade e com este jeito. Vou
envelhecendo. Os meus vivem sessenta e poucos. Estou velho.” In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Entrevista
a Pedro Bloch. Revista Manchete, ed. 582, 1963. Disponível em: http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/.
Acesso em: 06 mar. 2019.
11
“Sou anarquista. Declaro honestamente/ A solução é a anarquia/ Sou anarquista/ Nem de longe vocês captam/o
sublime anarquismo/ Sou/Com muita honra [...]/a-nar-quis-ta.” (Idem, 2007, p. 1097-1098)
15
HISTÓRIA,
ANARQUISMO,
LITERATURA E
HISTORIOGRAFIA
Mesmo que hoje regressemos a esses épicos, o fazemos com outras intenções. Antes de
tudo, já delimitamos dois caminhos: a literatura enquanto leitura casual e a literatura enquanto
fonte histórica. Vemos, claramente, que nós, audaciosos Homo Sapiens Sapiens, já não nos
relacionamos com as narrativas literárias da mesma forma que os nossos antepassados. A
História, disciplinarmente científica, encarregou-se de demarcar bem os limites entre si e sua
irmã outrora renegada, também filha das letras: a literatura.
O século XIX, conforme pondera Jean Glénisson (1977), foi “o século da história”,
momento de transformação dos modos de fazer históricos, dado que
12
Aqui nos referimos a: (1) A epopeia de Gilgamesh, antigo poema épico sumeriano, de transmissão oral,
provavelmente escrito pela primeira vez no segundo milênio a.C, adquirindo sua forma escrita “definitiva”
somente no século VII, por intuito do rei assírio Assurbanipal (SANDARS, 2012, p. 8); (2) Ilíada e Odisseia, dos
herois Aquiles e Odisseu, são poemas atribuídos ao grego Homero, cuja primeira referência escrita às obras datam
do século VIII a.C (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 16); e (3) Elogio a Sundiata, poema épico do povo Malinke sobre
Sundiata, o fundador do Império Mali no século XIII (KI-ZERBO, 2010, p. XXXIV, nota 2).
17
Nesse afluir de busca pela objetividade científica – o que Barthes (2004) chama de
“carência dos signos do anunciante” –, a listagem de fontes para um trabalho historiográfico
conteve-se à “documentação oficial”. Confinando-se principalmente aos arquivos do Estado,
os historiadores dedicaram a História ao estudo dos fatos políticos. Se na Antiguidade história
e literatura confundiam-se para contar a trajetória dos grandes líderes13, no século XIX este
percurso foi feito com o incontestado rigor científico. Diferenciando-se do fazer literário, os
historiadores, muitas vezes, rejeitaram a literatura até mesmo enquanto fonte histórica.
Um movimento de mudança pôde ser observado a partir dos anos 1930. A fundação da
revista Anais de História Econômica e Social, em 1929, marcou o que, de acordo com Peter
Burke (2010), representou a “Revolução Francesa” da historiografia. Encabeçado por Marc
Bloch e Lucien Febvre, o movimento dos Annales propunha
13
A despeito disso e no tocante às diferenciações traçadas entre História e literatura, vale destacar que o Estado
pôde aproveitar-se das duas. Enquanto os historiadores escreviam a história da Nação, os literatos a louvavam em
seus poemas. Lembremos, por exemplo, do movimento Romântico no Brasil (1836-1881), que contava com
poemas marcadamente nacionalistas.
18
a expressão literária pode ser tomada como uma forma de representação social
e histórica, sendo testemunha excepcional de uma época, pois um produto
sociocultural, um fato estético e histórico, que representa as experiências
humanas, os hábitos, as atitudes, os sentimentos, as criações, os pensamentos,
as práticas, as inquietações, as expectativas, as esperanças, os sonhos e as
questões diversas que movimentam e circulam em cada sociedade e tempo
histórico. (BORGES, 2010, p. 98)
Zeloí Santos (2007) vai além, delineando as relações entre História e literatura no
âmbito da própria escrita historiográfica. Estas duas são vistas como “formas de registrar o
discurso da humanidade, que se diferenciam por sutis conceitos de ficção e verdade” (SANTOS,
2007, p. 119). A aproximação entre as duas, segundo a autora, é resultado da crise do marxismo
e do estruturalismo, os principais paradigmas explicativos da segunda metade do século XX.
Esta “crise” encaminhou a História a duas direções: a de uma aproximação multidisciplinar e à
renovação dos modos de narrar das tradicionais linhagens historiográficas.
14
Lima Barreto (1881-1922) foi mais um dos “culpados pelo crime de anarquia”. No seu caso, a situação foi ainda
pior, pois havia a associação do anarquismo com a loucura. O anarquista seria um “louco moral” por excelência
no imaginário da época. O autor de Triste fim de Policarpo Quaresma chegou a ser internado em um hospício
devido ao seu problema com depressão e alcoolismo, daí seu compreensível receio em se identificar como
anarquista – intrigantemente, a declaração da “fé anarquista” de Lima Barreto está registrada em seu prontuário
médico (Cf. Schwarcz, 2011).
19
Isto, para Sevcenko (1995), é sinal da posição privilegiada da literatura para o estudo do
período. As mudanças ocorridas na transição entre os séculos XIX e XX que foram registradas
pela literatura – e sobretudo transformadas em literatura – possibilitaram a apreensão, por meio
dos textos, das tensões sociais existentes no interior da sociedade (SEVCENKO, 1995, p. 237).
Prado, Foot Hardman e Leal (2011) compreendem os “contos” dentro de uma estrutura
que representa o objetivo desta “literatura útil”. Normalmente formulando críticas à sociedade
burguesa, projetando a utopia libertária ou difundindo o ideal anarquista, atingiam um duplo
propósito: propagavam os ideais e anarquizavam o fazer literário. Despreocupado com a
estética e com a individualização do texto,
Este caminho de análise, ao recuperar a atuação libertária nos periódicos, serviu a outras
questões caras ao anarquismo brasileiro. Uma já consagrada historiografia produzida sobre o
movimento operário sinaliza profunda perda de influência dos anarquistas no período pós-1930
(Cf. FAUSTO, 1977). Da “hegemonia” dentro da luta operária da Primeira República, aos
anarquistas restara quase nenhum espaço, principalmente após a chegada de Getúlio Vargas ao
poder. Contudo, os recentes estudos apoiados na circulação dos periódicos apontam para
conclusão oposta.
15
Chama atenção o caso descrito por Silva (2005; 2018) sobre a caixa postal 195, ocorrido em 1941.
Constantemente vigiada após a descoberta de “pacotes suspeitos” endereçados a ela – periódicos anarquistas de
outras regiões e países –, a movimentação em torno dela leva ao interrogatório de alguns militantes libertários,
como Benedito Romano – este chegou a ser preso –, Pedro Catallo e Edgard Leurenroth. Disso, Silva apreende,
além do modus operandi do aparato repressivo estatal, a permanência dos anarquistas no seio da sociedade e novas
estratégias de relação com anarquistas do exterior e, principalmente, da América Latina, na tentativa de burlar a
vigilância da polícia política.
21
a atuação às questões sindicais; caso contrário, teremos a falsa impressão de que o anarquismo
de fato deixou de ser atuante.
16
Sobre isso, cabe citar as três razões que Angel Cappeletti (1990, p. XIII) pondera como válidas para explicar o
declínio do anarquismo latino-americano – que, contudo, não indicam seu total desaparecimento – a partir da
década de 1930: (1) decorrentes golpes de Estado extremamente repressivos com os movimentos operários; (2)
fundação dos partidos comunistas (bolchevistas); (3) surgimento de correntes nacional-populistas, muitas
vinculadas ao fascismo.
22
2
“¡MUERTE AL ESTADO Y VIVA LA
ANARQUIA!”:
O ANARQUISMO NO
PLANO HISTÓRICO
dicionário e não caberia mencioná-los aqui17. Nos interessa, contudo, a acepção em primeira
pessoa de anarquista. Em primeira pessoa e pela primeira vez, como o fez – voluntariamente e
em sentido positivo – Pierre–Joseph Proudhon (1809-1865) (WOODCOCK, 2002, p. 10).
Cappeletti (s/d, p. 7) afirma que o anarquismo, como o marxismo, tem uma longa pré-
história. Contudo, não é possível associar sua formação enquanto filosofia social e ideologia a
um período anterior a Proudhon. Em seu ensaio O que é a propriedade? (1840) Proudhon ergue
o que, para muitos, significa o início do anarquismo18. Proclamando que “a propriedade é um
roubo”, afirma que
Que forma de governo iremos preferir? – Em! vós podereis perguntá-lo; e sem
dúvida qualquer um de meus mais jovens leitores responde, ‘vós sois
republicano’. – Republicano, sim; mas esta palavra não especifica nada. Res
publica é a coisa pública. Ora, quem quer que queira a coisa pública, sob
qualquer forma de governo que seja, pode se dizer republicano. Os reis
também são republicanos. – Então vós sois democrata? – Não. – Como! Sereis
monarquista? – Não. – Constitucional? – Deus me livre. – Então vós sois
aristocrata? De modo nenhum. – Vós quereis um governo misto? – Menos
ainda. – O que sois então? – Eu sou anarquista. – Eu o entendo! Vós fazeis
sátira; isto está dirigido ao governo. – De maneira alguma: vós acabais de
ouvir minha profissão de fé, séria e maduramente refletida; ainda que muito
amigo da ordem, eu sou, com toda a força do termo, anarquista. (2001, p. 26-
27)
Proudhon (2001) associa anarquismo à liberdade de dispor do tempo com o que o
agrade, de usá-lo para diversão, para o que satisfaça – antecipando, talvez, o que Paul Lafargue
nomeou como Direito à preguiça, em panfleto publicado em 1883. Dispor das atividades da
vida pelo querer, não por obrigação. Advogando pelo livre exercício de nossas faculdades e
vontades, contra a autoridade, Proudhon, sem dúvidas, contraria as definições dadas ao
17
A título de exemplo, cabe citar a declaração do girondino Brissot (apud WOODCOCK, 2002, p. 9), em 1793.
“Leis que não são cumpridas, autoridades menosprezadas e sem força; crimes sem castigo, a propriedade atacada,
direitos individuais violados, moral do povo corrompida, tais são as características do anarquismo. ”
18
O primeiro “esboço de uma sociedade anárquica”, contudo, cabe, em tese, ao inglês William Godwin (1756-
1836), em seu livro Investigação acerca da justiça política. (GODIO, 1972, p. 7-8). Cabe o questionamento: qual
o lugar da Ilha de Utopia, de Thomas Morus, publicado ainda em 1516?
25
anarquismo até então. Embora para uns a ausência de autoridade possa significar caos, a
apreensão que o filósofo francês teve da palavra é oposta a uma significação negativa. Daí sua
noção de que “a liberdade não é filha, mas mãe da ordem”. (CAPPELETTI, s/d, p. 15)
19
A respeito, vale citar o filme Amor y anarquía (1973), dirigido por Lina Wertmüller. Na Itália fascista, um pouco
antes da Segunda Guerra Mundial, Tunin, unido a um grupo de anarquistas, recebe a “missão” de matar Benito
Mussolini. No filme, anarquismo é sinônimo de atentados a políticos. Saindo das telas e voltando às letras, o
romance Mendigos e altivos (2006), de Albert Cossery, publicado em 1955, traz uma outra apreensão curiosa do
anarquismo. Vejamos: “Nour El Dine estava cada vez mais convencido – talvez porque o desejasse com toda a
alma – de que o assassino era um homem de outra esfera, um intelectual de ideias avançadas, algo como um
anarquista.” (p. 92); “Era uma circunstância feliz. Aquele rapaz, se não era o próprio assassino, constituía apesar
de tudo uma pista importante. Não acabara de se trair? Aquele idealismo excessivo, que rejeitava tudo sobre a
sociedade, inspirava-se do mesmo espírito que presidira ao assassinato da prostituta. Um anarquista!” (p. 112);
“Será que Samir era mais um revolucionário, um desses jovens que só sonham em derrubar o governo, para quem
a polícia representa o que há de mais odioso? Isso explicaria aquela atitude. Nour El Dine contraiu as mandíbulas
e quedou-se teso na cadeira como se a presença de um anarquista diante de si o chamasse subitamente de volta a
seus deveres.” (p. 170)
26
Na América Latina, os fins do século XIX foi um período de intensa imigração. Estes
estrangeiros – que chegavam, principalmente, da Europa – em muitos casos trouxeram consigo
seus ideais libertários. Na Argentina, Cappeletti (1990, p. XIV-XV) localiza a presença de
Gobley, que, fugido da Comuna de Paris, passou pelo Rio de Janeiro, Montevideo e se radicou
em Buenos Aires. Antes disso, Plotino C. Rhodakanaty já havia fundando, em 1863, o Grupo
de estudiantes socialistas no México. Presente no país desde 1861, foi fundamental para a
propaganda do anarquismo na região. Segundo Cappeletti (1990, p. IX), o anarquismo atraiu a
maior parte da classe trabalhadora na Argentina e no Uruguai – a Federação Operária Regional
Argentina (FORA) chegou a ser a única central. Apesar das diferenciações regionais, atraiu
principalmente os operários e os campesinos, diferenciando-se do anarquismo individualista
norte-americano por seu viés sindicalista e revolucionário (CAPPELETTI, 1990, p. XI).
20
E anotações das aulas de História da América II, dia 18/09/2017.
21
As experiências de “educação libertária”, como a das chamadas “Escolas Modernas” – inspiradas nos ideais do
espanhol Francisco Ferrer – apresentavam um desafio ao governo. Como uma “ação direta”, as escolas instruíam
os filhos dos operários em modos aliados à ideologia libertária, insurgindo-se contra a “educação pública” e ao
custoso ensino religioso (SÁ E BENEVIDES, 2017, p. 12).
27
país, com destaque à Greve Geral de 1917. Como um típico “perigo” para a sociedade, o
governo tratou de tentar expulsá-lo. As Leis Adolfo Gordo, como ficaram conhecidas, trataram,
entre outras coisas, da expulsão dos estrangeiros do Brasil. Os seus ideais anárquicos
incomodaram a classe dominante (Cf. LANG, 2010). Cabe ressaltar, também, a questão da
Colônia Penal Clevelândia do Norte22, para a qual só há registro de presos por motivos
estritamente políticos os tenentistas e os anarquistas.
Paralelamente, o ideal libertário teria sobrevivido na cultura, nas artes. Foot Hardman
(2002) demonstrou como, desde o início das movimentações anarquistas, o ideal se associou à
cultura. Como uma forma de integrar os operários, era comum a realização de “festas de
propaganda”. A militância se unia ao divertimento – lembremos Emma Goldman: “se eu não
puder dançar, não é a minha revolução”.
O crítico de arte Allan Antliff percorreu as relações entre arte e anarquia no período que
denominou como “da Comuna de Paris à queda do Muro de Berlim”. Em outras palavras, desde
o pintor Gustave Courbert (1819-1877) e do ensaio de Proudhon Do princípio da arte e sua
destinação social às experimentações artísticas pós-maio de 68.
22
A Colônia funcionou entre 1924 e 1926 – período do governo Artur Bernardes –, no Amapá. As condições de
sobrevivência eram mínimas, e muitos militantes libertários morreram lá ou em tentativas de fuga. A edição n. 245
do periódico A plebe (12 de fevereiro de 1927) traz as cartas de alguns deles com pedidos de ajuda.
28
Enquanto este texto é escrito, a sociedade chilena paralisa as ruas (“movimenta” caberia
melhor), insurgindo-se contra o governo de Sebástian Piñera e as consequências do ultra-
liberalismo implantado no país desde a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Entre os
manifestantes, há grupos anarquistas realizando “ações diretas”. No Brasil, em 2013, a ação dos
black blocs – que corresponde uma tática de ação, não um movimento organizado – teve teor
semelhante. Embora nos dois casos o anarquismo não figure como “protagonista”, as situações
iluminam as diferentes significações da palavra. E é nessa metamorfose do anarquismo ao longo
dos anos, nas suas diferentes apropriações, que reside a polissemia tão própria ao termo que
pretendemos iluminar.
30
3 vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
[...]
No plano histórico, já pudemos observar que o ideal anarquista não só possibilita, como
também promove a diversidade teórica e metodológica. Firmando seus princípios na recusa às
hierarquias e ao poder autoritário, o movimento anarquista
Esta rejeição, nos últimos anos, tem se materializado principalmente na relação com os
anarcocapitalistas – ou “libertarianistas”. Ligados à direita política e à defesa do livre mercado,
os anarcocapitalistas advogam por uma sociedade sem Estado – tal qual os anarquistas
“tradicionais” –, reconhecendo, porém, a legitimidade do capitalismo no seio das relações
sociais e econômicas. Refletindo sobre esta vertente “libertária”, Noam Chomsky (2005, p. 270)
assinala a diferença que a tradição estadunidense possui em relação à europeia. Enquanto nesta
o anarquismo sempre esteve associado à ideia de socialismo, nos Estados Unidos “libertarismo”
está ligado ao capitalismo selvagem. As relações sociais e econômicas, por esta ótica,
ocorreriam a partir de “trocas voluntárias” e “contratos livres”. O capital seria controlado de
forma privada, sem freios, de maneira autoritária. Assentando a versão americana de
libertarismo no plano das aberrações, Chomsky conclui que
nem vale a pena falar sobre toda essa coisa. Primeiro de tudo, não conseguiria
funcionar por um segundo – e, se conseguisse, só o que se ia querer era cair
fora, cometer suicídio ou algo assim. Mas essa é uma aberração americana em
específico, não é realmente sério (CHOMSKY, 2005, p. 271).
Dessa composta substância chamada anarquismo, decompomos, portanto, diversos
elementos. Na tentativa de mapeá-los por meio de “autodeclarações anárquicas” – o motivo da
escolha pelo mundo das letras, esperamos, já se pôs clara –, caminharemos ora pendendo à
esquerda, ora à direita. Comecemos por nosso “reacionário progressista”... nosso anarquista
construtivo.
32
Provocativo, Darcy Ribeiro (1986, p. 110) inicia seu ensaio introdutório a Casa Grande
& Senzala (1933) – “o maior dos livros brasileiros e o mais brasileiro dos ensaios” – nos
questionando como pôde esse homem tão “tacanhamente reacionário no plano político” ter
escrito esse livro “generoso, tolerante, forte e belo”. Expressando o caráter paradoxal de
Gilberto Freyre (1900–1987), Darcy nos lembra a declaração em que o pernambucano
considerou “benéfica” a censura à imprensa23.
23
A declaração propriamente não foi encontrada, somente menções a ela a partir do que disse Darcy Ribeiro.
24
Uma das ideias-chave de Freyre era a do “equilíbrio de antagonismos” (PALLARES-BURKE, 2005, p. 41),
expressando, talvez, a natureza antagônica não só de sua obra, mas de sua personalidade.
25
Tido para muitos como “pai do darwinismo social”. Um de seus discípulos, o sociólogo Franklin Giddings – um
dos “Big Four” da sociologia norte-americana –, foi professor de Freyre durante seu período de estudo nos Estados
Unidos. (Cf. PALLARES-BURKE, 2005, p. 362). Ironicamente, se as ideias de Spencer influenciaram o
“anarquismo conservador” de Freyre, também foram incorporadas pelos anarquistas brasileiros do início do
período Republicano. A ideia de “evolução” da sociedade foi apropriada pelos últimos no sentido de compreender
a evolução para uma sociedade anárquica (HARDMAN, 2002; FAUSTO, 1986, p. 73).
26
Pensando nos primórdios da “historiografia” brasileira anterior a Freyre, podemos destacar três principais
autores. Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) embora destacando a necessidade de se estudar as três
raças – a indígena, a negra e a branca –, norteou a “correnteza do rio da história” a partir dos feitos portugueses,
pondo-os como principal motor do desenvolvimento do Brasil. Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), além
de se referir aos negros em pouquíssimas partes de sua obra, lembrou-se deles de maneira pejorativa. Os índios,
por sua vez, apareciam como vítimas conquistadas ou como selvagens. A título de honestidade, devemos lembrar
que já em 1900 Capistrano de Abreu (1853-1927) escrevera Capítulos da história colonial (1907), também dando
papel preponderante à cultura – tal qual Freyre – e rompendo laços com a interpretação luso-brasileira da história.
33
2015, p. 33). Assim, seguindo a linha do – talvez possamos dizer – “historiador oficial da
Coroa”, Freyre ousa ao recusar condenar a miscigenação, mas o faz a troco de um grande elogio
ao patriarcalismo da sociedade brasileira ao pautar que a colonização – a “verdadeira
colonização”27 – só foi possível pelas raízes familiares, a verdadeira base da formação social
brasileira (FREYRE, 2006, p. 80).
27
Freyre (2006) enxerga a fixação de raízes na terra – a “verticalidade” da colonização – por meio da formação
da família como o real motivo para o desenvolvimento da colonização portuguesa. “Antes de vitoriosa a
colonização portuguesa do Brasil, não se compreendia outro tipo de domínio europeu nas regiões tropicais que
não fosse o da exploração comercial através de feitorias ou da pura extração de riqueza mineral. [...]
O colonizador português do Brasil foi o primeiro entre os colonizadores modernos a deslocar a base da colonização
tropical da pura extração de riqueza mineral, vegetal ou animal [...] para a de criação local de riqueza. [...]
Semelhante deslocamento, embora imperfeitamente realizado, importou em uma nova fase e em um novo tipo de
colonização: a "colônia de plantação", caraterizada pela base agrícola e pela permanência do colono na terra, em
vez do seu fortuito contato com o meio e com a gente nativa. No Brasil iniciaram os portugueses a colonização em
larga escala dos trópicos por uma técnica econômica e por uma política social inteiramente novas: apenas
esboçadas nas ilhas subtropicais do Atlântico. A primeira: a utilização e o desenvolvimento de riqueza vegetal
pelo capital e pelo esforço do particular; a agricultura; a sesmaria; a grande lavoura escravocrata. A segunda: o
aproveitamento da gente nativa, principalmente da mulher, não só como instrumento de trabalho mas como
elemento de formação da família.” (2006, p. 78-9) “A família, não o indivíduo, nem tampouco o Estado nem
nenhuma companhia de comércio, é desde o século XVI o grande fator colonizador no Brasil [...].” (2006, p. 81)
28
“Apresso-me, porém, em assinalar que é muito difícil generalizar sobre Gilberto. Cada vez que julgamos apanhá-
lo na rede, ele escapole pelos buracos como se fosse de geleia. [...] O ser antropólogo permitiu a Gilberto sair de
si, permanecendo ele mesmo, para entrar no couro dos outros e ver o mundo com olhos alheios.” (RIBEIRO, 1986,
p. 113-114)
29
Fazendo jus à revista, ainda trata de temas polêmicos e caros à obra Casa-grande & senzala, como sua iniciação
amorosa na infância com a empregada de sua casa, chamada Isabel; e sua iniciação sexual, aos 15 anos, também
com uma “empregada doméstica”. Destaca, ainda, sua vivência enquanto menino de engenho e o conhecimento
que isso o proporcionou – o uso de animais no ato sexual, por exemplo –, diferentemente dos meninos da cidade.
As “experiências sexuais antropológicas” realizadas na África e no Oriente com “mulheres exóticas” também são
citadas por ele.
34
Essa singular posição de Gilberto Freyre se confunde com a de outro literato30 latino-
americano: o argentino Jorge Luis Borges.
30
Embora Gilberto Freyre caminhe profissionalmente pela sociologia, justificamos sua alcunha de literato pela
óbvia fluidez literária de suas obras, bem como por sua própria autoclassificação: “[Me considero] Principalmente
um escritor, porque escrever é o meu veículo, é a minha forma de expressão. Vaidosamente ou não, considero-me
um escritor literário, com uma forma literária de expressão.” (Playboy, 1980); “VEJA – Até que ponto se considera
um literato de formação sociológica e um sociólogo de gosto literário? A crítica sempre insiste nesse aspecto dúbio
de sua obra. Freyre – Bem, eu próprio me considero dúbio, sem dúvida alguma, e creio que toda a minha força
está em ser, neste particular, um híbrido. Em geral, os sociólogos estritos que não admitem expressão literária em
sociologia são uns impotentes nesse setor, no setor de expressão literária.” (Veja, 1970)
31
No conto Borges e eu: “Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias,
o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as
transforma em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, eu me deixo viver,
para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica.” (BORGES, 2008, p. 54)
32
Descambou como uma queda sem amparo. Felizmente nossos literatos foram mais racionais que os
anarcocapitalistas que hoje bradam repetidamente “imposto é roubo” ou que, como Murray Rothbard, defendem a
legitimidade da venda “dos direitos sobre a criança”. (Cf. Rothbard, 2010, p. 166). Sobre o assunto, também é
interessante citar o pensamento de Noberto Bobbio que, em Direita e esquerda, atenta para o fato de que “diante
da falência dos modelos”, “pensamentos exclusivos se revelam complementares”. (2001, p. 57)
33
Cappeletti (1990, p. XII) finca as raízes do “libertarism” no liberalismo radical de Jefferson, vinculado a
pensadores como Thoureau, Emerson e outros do século XVIII.
36
Em 1985, Borges nos lança mais um enigma. Apesar de anarquista, não se interessa por
política. Uma conexão com as correntes que consideram o anarquismo “apolítico”? Estela
Canto (1991), em Borges à contra luz, a propósito de seu relacionamento com escritor, traçou
o “Borges vivo”, “como um ser humano” (1991, p. 11), a partir das cartas trocadas entre os
dois. A despeito dos “enigmas e contradições” (1991, p. 13), vê como uma prova de que o
argentino não levava a sério suas próprias opiniões políticas o fato de, na juventude, ter sido
“‘algo anarquista’ e logo radical” (1991, p. 153) e na velhice ter se filiado ao partido
conservador34.
A prova não parece tão óbvia ao próprio Borges, ao que tudo indica. “Atraído pelo que
a inteligência possui de móvel, de bipolar, de enxadrístico”, recorre à “hipótese de que todos
podem ter razão, ou melhor ainda, que ninguém verdadeiramente a tem” (SABATO, 2003, p.
70). Ciente ou não das contradições? Em uma de suas últimas entrevistas, delineia um pouco
mais o mistério
[...] As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo.
Quem vai me molestar? Não pertenço a nenhum partido político. Sou um
velho anarquista spengleriano. Principalmente neste país, as pessoas se
34
A despeito das contradições (inerentes?) de Borges (ou de um deles), vale destaque a atenção que Davi Arrigucci
Jr., na coletânea Borges no Brasil, chama para a necessidade “buscar a unidade orgânica entre a articulação interna
de sua obra com o conteúdo de verdade humana que ela envolve e que é, até o cerne da matéria, histórico” (2001,
p. 118), contrastando com a irônica contradição que Borges esboça de sua opinião sobre o assunto: no prefácio à
edição francesa de suas Obras completas (1986), Borges se declara “o menos histórico dos homens”, mas, linhas
abaixo, reconhece a necessidade de contextualizar uma obra caso se queira realmente compreendê-la.
37
interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha consciência tranquila.
Falei e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um sobrinho meu
estiveram presos. Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se alguém lhe
ameaça de morte, você não corre nenhum perigo. Depois vieram todos esses
governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes, contra a ditadura militar.
Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a invasão das
Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo governo.
(Borges a D’avila, 1985)
35
É comum a comparação entre a ditadura militar brasileira e argentina para afirmar que, no Brasil, a situação
“não foi tão ruim”, pois na Argentina a repressão fez mais vítimas.
38
36
Sua adesão ao marxismo ocorreu de uma forma inusitada, segundo conta a história. “- Conte como foi que você
aderiu ao comunismo? - Por culpa de Patrícia Galvão. Ela fizera uma viagem a Buenos Aires, onde realizou um
recital de poesia. Voltou com panfletos, livros e uma grande novidade: - ‘Oswald, tem o comunismo... conheci um
camarada chamado Prestes. Ele é comunista e nós também vamos ficar. Você fica?’ – ‘Fico’” (ANDRADE, 1990b,
p. 234)
39
Ricardo Gonçalves, travei relações com o anarquismo, vindo a conhecer o agitador Oreste
Ristori, depois meu amigo” (1990a, p. 58).
durante todo o Estado Novo (1937-1945)37, como chefe do Gabinete do Ministro da Educação
e Saúde Pública – Gustavo Capanema, seu amigo –, farmacêutico de formação e “o maior poeta
que o Brasil já teve”, segundo Manuel Bandeira, este é, paradoxalmente, o “eu-anarquista” mais
próximo das definições usuais de anarquismo. O próprio poeta dá razão a possíveis incrédulos.
“Eu era um adolescente anarcoide. Hoje ninguém diz, me vendo já com esta idade e com este
jeito. Vou envelhecendo. Os meus vivem sessenta e poucos. Estou velho”, disse, em entrevista
a Pedro Bloch, em 1963.
No primeiro dia, logo de saída, pra não perder tempo e chamar a atenção sobre
mim, me declarei, nada mais nada menos, anarquista. Eu nem sabia direito o
que isso era. Naqueles dias se jogava muita bomba na Catalunha. Eu achava
lindo esse negócio de jogar bomba. Enfrentei a caçoada dos colegas. Me
deram logo o apelido de “Anarquista”. (Drummond à Manchete, 1963)
No poema Segundo dia, do livro Boitempo III, explica essa besteira de anarquismo...
Sou anarquista. Declaro honestamente.
(A tarde vai cerzindo no recreio
o pano de entrecortada confissão.)
Espanto, susto. Como?
O quê? Por quê? Explica essa besteira.
Mas o padre não o salva por completo... o “germe anarquista” já contaminara o jovem
poeta.
37
Período mais marcadamente autoritário e, sem dúvidas, ditatorial de todos os governos Vargas.
41
Para o ensaísta Silviano Santiago (2007, p. III)38, Drummond foi “o melhor e mais
multifacetado intérprete do irmão um ano mais velho”, referindo-se ao século XX. Sua poesia
transitou o humor, a ironia, a revolta, a metafísica, a elegia, desdobrando as diferentes faces do
seu “eu todo retorcido”. Sua criação poética iniciou com Alguma poesia, publicado em 1930,
que, embora com tons de humor (Toada do amor, Cantiga de viúvo, O que fizeram do Natal,
Política literária, Anedota búlgara), já marcava a desilusão drummondiana com o mundo
(Poema de sete faces, Sentimental, Política, Nota social, Epigrama para Emílio Moura).
Cultivando uma semente niilista, como aponta Santos (2017), Drummond não se
desvencilhou da utopia. Aqui cabe lembrar que mesmo as faces mais destrutivas do anarquismo
foram alimentadas uma política de feição utópica, crente em sua espera pela Cidade prevista
38
Na introdução à Obra Completa de Drummond (2007).
43
Mineiro, como Drummond, não tratou da “vida apenas, sem mistificação”, como fizera
o itabirano. Representativo do sarcasmo e da ironia do movimento Modernista brasileiro – o
livro Poemas (1925-1931) pode ser lido como um típico exemplo da Poesia Pau-Brasil, pela
qual Oswald de Andrade lançou um manifesto –, Murilo (1901-1975) associou-os a uma
percepção extremamente mística da existência. Convertido ao catolicismo após a morte de seu
melhor amigo Ismael Nery, fez da religião tema de muitos de seus versos.
44
MAPA
[...]
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
[...]
Já tendo declarado seu “anarquismo cristão”, explica as razões que o sujeita ao trabalho
literário, clarificando ainda mais sua posição:
Verdadeiros ou falsos, o fato é que estão aí, mais perto do que pensamos. Foram grandes
escritores latino-americanos, criadores e destruidores – já não vimos essas palavras antes,
39
Na Química, isótopos são átomos do mesmo elemento químico, com o mesmo número atômico, mas com massas
diferentes.
46
40
Citado no prefácio à edição comemorativa dos 50 anos da obra.
47
un orden solar e jamás del nuevo orden o del slogan que hace marcar el paso a cinco o a
setecientos millones de hombres en una parodia de orden”.
Economicismos decimonónicos
Anteriores al Principio de Finitud
Ni socialista ni capitalista
Sino todo lo contrario Sr. Director:
Ecologista intransigente
Entendemos x ecologismo
Un movimiento socio-económico
Basado en la idea de armonía
De la especie humana con su medio
Que lucha x una vida lúdica
Creativa
igualitaria
pluralista
libre de explotación
Y basada en la comunicación
Y colaboración de grandes & chicos (PARRA, 2012, p. 749)
Esta posição de harmonia com a natureza se confunde com o pacifismo ao qual certos
“isótopos do anarquismo” são associados. Tomemos dois Ernestos como exemplo. Sacerdote,
poeta e revolucionário sandinista, o nicaraguense Ernesto Cardenal (1925- ) relaciona anarquia
com a simplicidade, a pobreza (como o anarcocristão russo Leon Tolstoi)
41
Citada no artigo de Leonardo Tarifeño (2009) ao jornal La nación.
42
Veganismo pode ser definido como uma filosofia social que articula questões alimentares à luta política. Os
veganos evitam, “na medida do possível e do praticável” comer/consumir qualquer produto de origem animal,
testado em animal ou que, direta ou indiretamente, tenha causado distúrbios à natureza. Atualmente há grupos
declaradamente veganos e anarquistas, como o Animal Liberation Front (ALF), que atua praticando ações diretas
no resgate de animais e causando prejuízos financeiros às empresas exploradoras.
49
Yo les digo a mis amigos que, cuando sea grande, quisiera ser anarquista.
Siento tanto respeto por el anarquismo que no soy capaz de decir que yo sea
anarquista, porque no tengo la consagración por los demás que tiene un
anarquista. Intento, de alguna manera, ser libre. Intento ejercer, de una manera
no partidista, mi crítica desde un ámbito de la izquierda. Pero decir que sea
anarquista me resulta difícil, porque tengo un gran respeto por los grandes
anarquistas: por Buenaventura Durruti, (Mijaíl) Bakunin, como para yo
comparármeles. Quizá podría ser un anarcólogo o un intento de estudioso del
anarquismo. [...] Yo diría que soy un “anarcucho”. [...] Un viejito con ganas
de ser anarquista, ja, ja, ja.
Na mesma entrevista, o colombiano ainda ressalta que “El único anarquista exitoso [...]
ha sido Cristo. Llevamos más de veinte siglos… El único anarquista que ha triunfado ha sido
Cristo. Verdaderamente, si te pones a pensar, era un pensamiento absolutamente libertario”,
provavelmente remontando ao livro Cristo, o maior dos anarquistas, de Ánibal Vaz de Melo,
publicado em 1936 – sobre o qual Murilo Mendes escreveu uma resenha elogiosa das
“qualidades literárias” e das “grandes parcelas de verdade” da obra. Lembrado por seu
pacifismo, curiosamente Jesus Cristo foi posto com uma bomba em mãos na capa do livro.
50
Com um Jesus white bloc e anarquista... há melhor forma de terminar esta inquirição
sobre as polissemias do anarquismo?
51
EPÍLOGO
- A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.
(Eduardo Galeano citando Fernando Birri)
***
Autor de uma obra multifacetada, Eduardo Galeano transitou pelo conto, a crônica
jornalística e a história. Transitar, aliás, é uma palavra que se aplica bem a ele. Como um
andarilho, correu o mundo a ouvir histórias... vagamundeando. A sua rebeldia contra os padrões
dos gêneros textuais poderia muito bem ser classificada como anárquica... um verdadeiro
subversivo das letras. Os indícios estavam lá... restava encontrar a prova do “crime da
anarquia”.
Sua obra, de alguma forma, nos dá o que há de mais utópico na anarquia: a esperança
de um mundo melhor. Nos faz caminhar em busca do inalcançável horizonte. As pequenas
américas latinas captadas por Galeano em suas obras denunciam a realidade, ao mesmo tempo
em que pressagiam que uma outra é possível. “Sigam-no os bons!”, diria Bolaños (o do plural
e mexicano)... caminhemos e cultivemos as utopias.
52
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Era uma vez um planeta mecânico, lógico; onde ninguém tinha dúvidas. Havia nome
pra tudo e para tudo uma explicação, até o pôr-do-sol sobre o mar era um gráfico. Adivinhar
o futuro não era coisa de mágico; era um hábito burocrático, sempre igual. Explicar emoções
não era coisa ridícula. Havia críticos e métodos práticos. Cá pra nós, tudo era muito chato.
Era tudo tão sensato, difícil de aguentar. Todos nós sabíamos decor, como tudo começou e
como iria terminar, cantou certa vez um tal de Humberto Gessinger...
Mais importante que as conclusões são, acredito, os questionamentos. Como bem o
ensinou o velho Antônio ao Subcomandante Marcos – hoje Galeano –, para caminhar é
necessário perguntar. A mim foi uma surpresa descobrir, em 2015, que existia um tal de
anarcocapitalismo. Como poderia existir algo tão disfuncionalmente contraditório? Aos
poucos, a História me ensinou a enxergar matizes, nuances. Corri para História para fugir da
Química, após 1 ½ semestre insuportavelmente insuportável. Havia nome para tudo e para tudo
uma explicação, até o pôr-do-sol sobre o mar era um gráfico... (mentira, não tem explicação
para tudo, mas às vezes a sensação é essa)
Acredito que esta – este, isto, esta coisa aqui que nesse momento está sendo lida por
você, alguém que não sei quem é, e que, no meu computador, é nomeado como ‘supostamente
um tcc.docx’ – foi a melhor materialização da minha fuga das definições e das certezas
absolutas. Enquanto um trabalho de fim de curso, este meu pequeno Frankenstein – como já
diria o Mestre Vargas/Yoda/Miyagi – congrega a minha formação e o meu eu antes e depois do
curso (Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas eu penso ser
tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!). É também,
contudo, um inicial exercício para o pensamento histórico.
Nesse sentido, percorrer as significações do anarquismo resulta em algo muito
necessário para quem ousa tentar “entender” a história. Põe à mostra as apropriações que
diferentes grupos e indivíduos, em diferentes contextos, podem ter de um termo. Põe à mostra
o caráter humano da história – a do h minúsculo; o passado, os fatos do passado. Nos coloca
em posição de humildade, não? Quem sou eu para dizer o que é isto ou aquilo? Como poderia
uma ideia que prega a autonomia e a liberdade querer definir como cada um a interpreta? Não
há carteirinha de anarquista. Ninguém vai tirar a sua ou emiti-la. E a História, por vezes, pode
se perder ao tentar entender as coisas como “de fato são”.
53
FONTES
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55
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4 Multimídia
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HISTÓRIA do anarquismo: sem deuses, sem mestres. Episódio II – Terra e Liberdade (1907-
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derrotados (1922-1945). Direção: Tancrède Ramonet. 2017. 51 min. Disponível em: <
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5 Outros escritos
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<https://bibliotecaterralivre.noblogs.org/biblioteca-virtual/jornais/a-plebe/>. Acesso em: 24
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Encontro de História Anpuh-Rio (Identidades). p. 1-7.
6 Citações avulsas
64
ANEXOS
ÍNDICE DE ANEXOS
GF – No que me diz respeito, posso dizer que estou satisfeito com o fato de poder viver da
minha atividade de escritor. É verdade que êsses direitos autorais que me permitem
independência não vêm só do Brasil, mas também dos Estados Unidos e da Europa. Êsses
direitos autorais, juntamente com os do Brasil, onde meu principal editor é o José Olympio, me
permitem viver da minha atividade de escritor. Tenho recusado sempre cátedras ou
engajamentos definitivos com universidades ou instituições para ter a mais ampla liberdade de
expressão. Até hoje não fui de modo algum perturbado na minha liberdade de expressão, a não
ser com relação a artigos na época em que escrevia para um importante jornal do Rio. Deixei
imediatamente de escrever nesse jornal. Quanto a livros, nunca tive problema. Tive o máximo
de liberdade de expressão. Recentes medidas, que parece que estão para ser ou já foram tomadas
com relação à liberdade do escritor, me parecem ineptas e censuráveis. Elas, sim, que são
censuráveis.
VEJA – Acredita que “Casa Grande e Senzala” teria problemas com a Censura se publicada
hoje?
GF – Não creio, mas não posso responder. Quando me vejo em face de medidas como as que
foram tomadas recentemente, fico um tanto hesitante. Lamento ter que hesitar, porque seria de
fato uma coisa desonrosa para a cultura brasileira que um livro como “Casa Grande e Senzala”
(que é um pioneiro, aliás, no uso do palavrão, mas do palavrão no momento exato) fôsse
censurado e impedido de ser publicado.
VEJA – O que o senhor observou quanto à liberdade dos escritores nos países em que estêve?
GF – Tanto quanto pode ser observado, creio que há, de modo geral, liberdade do escritor e do
jornalista. Mas, se formos atentar em casos particulares, mesmo nos Estados Unidos, não existe
essa liberdade. É claro que sabemos muito bem que não existe na União Soviética, onde há um
contrôle de opinião, um contrôle de produção literária por parte do Estado. Mas nos Estados
Unidos há êsse contrôle da parte de emprêsas privadas por interêsses privados que não é menos
lamentável do que aquêle exercido policialmente por Estados totalitários. Ultimamente, nos
Estados unidos, tem havido maior liberdade de expressão literária. Mas, até há pouco, essa
liberdade era bastante, em vários casos, limitada.
GF – Não que eu me tenha envolvido na Revolução de 1964, não creio que tenha havido uma
participação assim efetiva, mas, antes de se dar o movimento, escrevi vários artigos em que
tentava mostrar que estávamos numa situação insustentável, a continuar a irresponsabilidade
do govêrno. Aliás, devo dizer que pessoalmente me dava muito bem com João Goulart,
achando-o muito simpático, e sempre os nossos contatos foram muito agradáveis, mas creio
que de certa altura em diante êle perdeu de fato o senso de responsabilidade e impunha-se uma
68
intervenção que só poderia vir de um órgão político como tem sido tradicionalmente, em
situações de crise, o Exército Brasileiro.
GF – Quando se diz regime ideal, já se vai para o campo quase fora do concreto e do histórico.
Eu creio que o Suassuna tem razão em considerar que a Monarquia no Brasil foi o regime que
melhor correspondeu à situação brasileira, porque prestou grandes serviços. Evitou a
fragmentação do Brasil em republiquetas, tudo isso nós devemos à Monarquia. Hoje,
atualmente, voltar a uma monarquia não sei se seria possível ou desejável. Atualmente, temos
um presidencialismo monárquico que já satisfaz em parte a necessidade de uma monarquia
convencional. E êsse presidencialismo monárquico, vamos dizer que se impõe atualmente como
uma solução para a inépcia de partidos, inépcia da (vamos então à raiz do problema) democracia
liberal no Brasil, liberal, parlamentar no sentido de Congresso como nós o tínhamos. Foram-se
acumulando tantas incompetências, que finalmente se tornou necessário irmos a essa solução
presidencialista monárquica em que nos encontramos.
GF – Não, não creio que possamos identificá-la hoje com qualquer grupo que esteja disputando
o poder. Aquelas minhas palavras têm que ser tomadas no sentido ideal. Aliás, eu vou confessar
o seguinte: na minha filosofia política, eu sou anarquista. O anarquismo me parece corresponder
ao que há de mais elevado na futura, possivelmente futura, condição humana. Mas quando você
pergunta: mas você, anarco-sindicalista ou anarquista, como é que admite atualmente um
presidencialismo monárquico e até de feitio militar, eu respondo: porque, sendo o meu ideal
anarquista, não vejo possibilidade de êsse ideal ser agora realizado por países como o Brasil ou
por qualquer outro, hoje. Será impossível; Herbert Read, por exemplo, na Inglaterra e, até há
pouco, Bertrand Russel eram igualmente anarquistas, mas estou certo que nenhum dêles teve a
possibilidade de ver a Inglaterra ser hoje um país anarquista, mesmo conservando a Coroa. De
modo que a situação é esta: atualmente estamos diante de uma situação internacional tão
complicada, tão cheia de violência, que países como o Brasil precisam se defender de possíveis
intrusões nos seus assuntos nacionais da parte de fôrças estranhas. Para essa defesa, impõe-se
um govêrno presidencial monárquico, monarquia relativa, que nos defenda de tais intrusões,
agressões e violência, até que seja possível, entre nós, um regime socialmente anárquico no
sentido bem construtivo de anarquia.
VEJA – Pode-se falar ainda hoje diante de tantos seqüestros, assaltos, atentados, terror, na
antiga tese da cordialidade brasileira?
GF – Creio que sim, creio que a cordialidade brasileira continua a existir. Os próprios
seqüestros entre nós se apresentam com uma diminuída violência se formos comparar os
assaltos, seqüestros, o terrorismo noutros países, inclusive na democracia dos Estados Unidos.
Há entre nós como que uma tendência para atenuar a violência, que continua a se fazer sentir.
Eu creio que no caso do seqüestro do embaixador dos Estados Unidos houve de fato uma grande
demonstração de cordialidade brasileira.
69
VEJA – Vê uma atitude racista no culto à mulata ou reafirma sua tese de que nesse culto está
uma prova da ausência de problemas raciais no Brasil? O Brasil é, realmente, uma democracia
racial perfeita?
GF – Perfeita, de modo algum. Agora, que o Brasil é, creio que se pode dizer sem dúvida, a
mais avançada democracia racial do mundo de hoje, isto é. A mais avançada neste caminho de
uma democracia racial. Ainda há, não digo que haja racismo no Brasil, mas ainda há preconceito
de raça e de côr entre grupos de brasileiros e entre certos brasileiros individualmente.
GF – Tenho a respeito uma teoria que defendi pela primeira vez em conferência da
Universidade de Sussex, há alguns anos. Aí faço uma análise de um fenômeno de semântica
que me parece muito interessante, para através dêle especulamos sôbre o futuro da relação entre
raças no Brasil e da fusão de raças e de culturas. Êsse fenômeno semântico é o emprêgo da
palavra moreno. Há cinqüenta anos, dizia-se de moreno no Brasil que era o branco trigueiro.
Depois, já na minha mocidade, fui notando que já se aplicava o adjetivo moreno ou o
substantivo moreno ao negróide claro ou ao indianóide claro. Depois foi-se aplicando ao pardo
escuro. De modo que o moreno já incluía três categorias cromáticas e nos últimos anos está
evidente que estamos já empregando no Brasil, naturalmente, sem esfôrço, a palavra moreno
para designar o próprio prêto, o prêto retinto. Nós hesitamos muito em sermos indelicados
chamando o prêto de prêto e já o chamamos de moreno. Ora, nesse fenômeno semântico me
parece que está uma indicação de que nós caminhamos no Brasil para uma vasta morenidade.
Nós seremos, em breve, uma nação orgulhosa de ser, em grande parte, morena. E haverá talvez,
parece que já está havendo, da parte de certos brancos muito brancos, no Brasil, um certo
esfôrço para se amorenarem ao sol das praias. Notamos que hoje é realmente elegante ser
amorenado pelo sol. Ora, aí está contribuindo para o processo de morenidade que é biológico
em muitos e climatológicos em outros.
VEJA – O senhor acha, como João Saldanha, que o negro é naturalmente mais bem dotado
para o futebol do que o branco? E no campo da música?
GF – Bem, o João Saldanha tem muito mais autoridade para falar sôbre o assunto do que eu.
Eu sou um mero espectador de futebol e êle é um técnico. Agora, o que parece cientificamente
estabelecido por estudos recentes é que, não havendo de raça para raça diferenças em têrmos
de inferioridade para superioridade, há diferenças de aptidões e pode haver uma aptidão da parte
do homem negro para a música ou para o futebol que não existe da parte do homem branco ou
do homem amarelo. Estou admitindo a possibilidade de haver. Agora, quando nós falamos em
futebol, hoje é muito difícil de se isolar o futebol do futebol singular. Hoje, há vários estilos de
futebol. Para alguns dêsses estilos, o negro pode ter uma aptidão que falte ao branco; por
exemplo, no futebol brasileiro já se tornou bem conhecida a classificação dêle como futebol-
dança, futebol-samba, o futebol, em linguagem sociológica, dionisíaco, porque é um futebol
exuberante. Para êsse futebol pode ser que o brasileiro negro (note bem, o brasileiro negro,
porque nós não temos negro brasileiro) tenha uma aptidão especial que falte ao branco que, ou
por uma predisposição que possa ser considerada de raça ou por uma herança de cultura, seja
um indivíduo mais apolíneo, menos dionisíaco, menos dado à exuberância, menos hábil na
dança admirável de que é mestre o nosso grande Pelé.
VEJA – Onde está realmente a sua controvérsia com o Arcebispo Dom Helder Câmara, tido
como seu adversário de idéias?
70
GF – Eu não sei se somos adversários de idéias. Não creio que o Arcebispo Dom Helder Câmara
dê muita importância a idéias, mas a divergência está no seguinte: que eu creio que Dom Helder,
em quem reconheço qualidades e em quem vejo um homem capaz de liderança, um excelente
orador-ator com grande poder de persuasão através da televisão e pessoalmente também, creio
que está desviado de sua verdadeira missão de sacerdote e demasiadamente comprometido com
movimentos e aspirações políticas. Não discuto a legitimidade dessas aspirações e dêsses
movimentos, mas creio que no Brasil, onde a religião ainda é chamada a desempenhar um papel
importantíssimo, porque trata-se de um povo essencialmente religioso, que deseja a religião
para si, creio que fazem mal os sacerdotes, que são poucos entre nós, que abandonam a sua
missão para ser políticos, para se colocar a serviço de causas puramente políticas ou puramente
se serviço social, como hoje se diz. Aí é que está a minha divergência com Dom Helder Câmara
e eu desejaria vê-lo colocando todo o seu talento, o seu poder de persuasão, as suas qualidades
de orador-ator a serviço da causa religiosa, a causa a que êle se dedicou quando jovem. Êle faz
falta à religião e o abandono da missão religiosa por grande parte ou por parte considerável do
clero brasileiro está resultando num avigoramento notável no Brasil das seitas protestantes,
evangélicas, da umbanda e das seitas afro-brasileiras. Eu não sou absolutamente contra essas
seitas, acho que elas desempenham também uma missão religiosa importantíssima, mas
considero, por outro lado, a religião católica de tal modo ligada a certos pontos essenciais da
cultura brasileira, que acho lamentável o seu declínio e a sua substituição por essas outras seitas
menos brasileiras.
VEJA – Também está havendo um movimento de apoio ao nome do arcebispo para o Prêmio
Nobel da Paz. Quais são suas impressões a respeito?
GF – Da Paz? Não, eu creio que, nesse caso, apresentá-lo para o Nobel, devia ser o Nobel da
Oratória.
VEJA – O que pensa da afirmação do pastor protestante Harvey Cox, de Harvard, de que os
rebeldes como Camilo Torres e Guevara são considerados os santos da atualidade?
VEJA – Certa vez escreveu que os livros das môças brasileiras deveriam ser o de missa e o de
receitas de cozinha. Ainda pensa assim?
GF – Ainda dou uma importância enorme ao livro de receitas e ao livro de missa. Ainda não
me desdigo, absolutamente. Mas creio que, diante de novas circunstâncias, a mulher brasileira
deve se adaptar, sem desprezar as chamadas prendas. Deve-se adaptar às circunstâncias novas
de realmente tornar-se datilógrafa, entrar num grande número de profissões outrora fechadas à
mulher sem haver realmente um motivo para essa exclusão, enfim, deve haver um nôvo tipo de
mulher brasileira sem que para isso seja preciso desdenhar do livro de missa ou do livro de
receitas. Eu próprio acabo de publicar o meu livro de receitas de doce, chamado “Açúcar”, que
considero um dos meus principais e é dedicado sobretudo à mulher brasileira.
sem que essas diferenças devam ser interpretadas em têrmos de inferioridade ou superioridade.
Há atividades em que a mulher parece ser superior ao homem e há outras que o homem parece
mais indicado para exercer. Talvez a política e a atividade empresarial sejam mais para ser
exercidas por homens ou por mulheres com alguma coisa masculino do que por mulheres
essencialmente femininas. Mas há profissões e especialidades, por exemplo, a psicologia:
parece que a mulher psicóloga é muito mais capaz de exercer essa atividade científica e
profissional do que o homem e há várias outras profissões que pedem mais qualidades
femininas, realmente femininas, não convencionalmente femininas (porque há qualidades
convencionalmente femininas ou masculinas), mas aquelas que estão mesmo ligadas ao que se
pode chamar de uma biologia dos sexos.
VEJA – Diz-se que, na sua juventude, suas reações eram discordantes do meio provinciano do
Recife da época. Como vê o comportamento da juventude de hoje, seus cabelos compridos, a
moda unissex, sua liberdade sexual e o movimento hippie nos Estados Unidos e Europa?
GF – Em grande parte, estou em simpatia com tôdas essas tendências e creio que, se fôsse
jovem, hoje (e eu discordei muito da burguesia do meu tempo e continuo discordando dela)
seria muito inclinado a ser hippie.
GF – A tropicologia ainda não é, está no processo de criação, para o qual está concorrendo de
modo notável o Brasil. Pretende ser uma ciência especializada no estudo de coisas tropicais,
usos, pessoas, populações, culturas tropicais. Inclui um critério ecológico de considerar o
assunto, isto é, considerar as terras, os solos, a vegetação, os animais, os meios de utilidade
econômica da terra e do subsolo dos espaços tropicais, considerar o que tem sido a história do
contato humano com êsses espaços tropicais em várias partes do mundo e estudar o assunto
também antropologicamente, sociologicamente, do ponto de vista das possibilidades dentro de
critérios de civilização moderna do aproveitamento de recurso e valôres tropicais para
civilizações modernas.
VEJA – Em que medida concorda com a revisão a que vem sendo submetida a sua obra, às
vêzes recomendada com reservas nos cursos universitários de Ciências Sociais?
GF – Dificilmente posso comentar essa sua pergunta, porque o que se intitula revisão não é, de
fato, revisão; é uma imposição de uma sociologia conformada com certos conceitos ideológicos
contra uma sociologia firmada em outros conceitos como é a minha. De modo que eu não
admito como certa a palavra revisão. A palavra revisão importaria em se considerar essa atitude
como superando o que está nos meus trabalhos e até hoje não vi esta superação. Vejo
discordância devido a orientações ideológicas diversas da minha.
GF – Bem, eu próprio me considero dúbio, sem dúvida alguma, e creio que tôda a minha fôrça
está em ser, neste particular, um híbrido. Em geral, os sociólogos estritos que não admitem
expressão literária em sociologia são uns impotentes nesse setor, no setor de expressão literária.
Playboy – Quer seus adversários queiram ou não, o senhor é uma personalidade de dimensão
internacional. Em que medida isso o atinge?
Freyre – A desvantagem é que você fica muito exposto ao chato [risadas]. Essa é a
desvantagem principal, porque o chato existe e não é só brasileiro: o chato é internacional... E
você tem de se defender sem magoar aquilo que o chato bem-intencionado representa. Porque
o chato por vezes é bem-intencionado. Ele não é chato porque quer ser: ele é chato porque é
chato.
Freyre – O Oscar Niemeyer, meu amigo, que é um arquiteto genial. É muito ignorante. É difícil
você manter uma boa conversa com ele. É que ele, como o Arraes, não sendo um homem de
inteligência muito abrangente, repete muitos os chavões que aprendeu. Como você sabe, um
dos sucessos do comunismo marxista russo-soviético é dispensar seus slogans e chavões. Mas
há pessoas que são muitíssimo mais interessantes escrevendo do que falando. Rubem Braga é
assim: conversando ele é quase um chato. Já o Ariano Suassuna é o contrário. Mas há chatos
que você tem de respeitar e admirar, por sua integridade...
Freyre – O Arraes eu diria que é um misto. Ele pode se tornar não só chato como chatíssimo,
quando repete aqueles chavões marxistas, louvadas chatices. Mas quando ele era ainda o Arraes
cearense, um Arraes quase analfabeto, era de convívio agradável.
Freyre – Acho, acho. Em certa época ele freqüentou muito esta casa, mas é um homem que
tem agido muito sob disfarces, nunca revelando sua verdadeira atitude, suas verdadeiras idéias.
Parece uma coisa sendo outra, e isso não me agrada. Agora, tem qualidades que não vou negar
a ele.
Playboy – Voltando ainda à sua vida e obra: o senhor se considera sobretudo um sociólogo,
um antropólogo, ou um escritor?
Playboy – O senhor disse certa vez que na formação de seu estilo literário devia muito a uma
negrinha chamada Isabel. O que devia a ela realmente?
Freyre – Bem, Isabel foi uma dessas empregadas domésticas que acabam se tornando pessoas
da família. Ela se tornou de uma simpatia especial por mim. E eu, que na época era bem menino,
sentia o mesmo por ela. Tanto que já admiti que Isabel talvez tenha sido meu primeiro amor...
Freyre – Eu era menino e ela já era uma mocinha, pretinha, dentes muito bonitos, olhos muito
bonitos... e era uma grande contadora de histórias que me empolgavam. Sabe, a grande
influência que ela teve sobre mim está ligada ao fato de que eu custei muito a aprender a ler e
escrever. Só aprendi aos 8 anos. As histórias que ela me contava lendas e mitos, a Bela
Adormecida do bosque, anões e gigantes... Tudo isso contado de uma maneira que revelava
nela uma artista anônima, porque sabia dar valor às palavras... Tudo isso, repito, supriu em mim
a falta de leitura. Eu não sentia necessidade de aprender a ler e repelia todos os esforços para
me ensinarem. De modo que foi grande a influência de Isabel sobre mim, sobre o meu estilo,
porque ela me deu gosto pela oralidade, pelo escrever falado, pela palavra viva.
Playboy – O senhor admite que ela foi seu primeiro amor. Um amor platônico, ou foi mais
além?
Freyre – Bom, houve carícias que, interpretadas hoje, eram carícias amorosas, mas sem
chegarem a uma completa iniciação ao amor físico. Vamos dizer eram carícias circunvizinhas
do ato sexual, carícias parassexuais.
Playboy – Até os 8 anos o senhor tinha dificuldade para aprender a ler e escrever. No entanto
aos 16 já era um conferencista e se definia como um socialista cristão. Como chegou a isso?
inglesas que meu pai assinava, e me impressionei muito com uma série de artigos sobre Tolstoi
e sua nova forma de ser cristão, que era a de ser um cristão social.
Freyre – Escrevi sobre isso no meu livro Tempos bons de outros tempos. Nele registro a
primeira experiência que tive com uma mulher. Eu teria 15 anos, mais ou menos; e ela estava
com uns 20. Mas, quando comparo minhas experiências sexuais com a de outros meninos da
minha época, vejo que fui um menino relativamente puro. Nunca tive experiências
homossexuais na infância, sabe?
Playboy – E depois?
Freyre – Bem, depois eu tive, é claro. Você pode imaginar alguém como eu, interessado em
tudo o que é humano e, portanto, tive a curiosidade de ver o que era o amor não heterossexual;
tive umas poucas e não satisfatórias aventuras homossexuais. Mas aí eu já tinha mais de 20
anos...
Freyre – Na Europa. Mas foram experiências pálidas, não satisfatórias. Porque nenhuma delas
fez de mim um homossexual. Se tivessem sido satisfatórias, eu então provavelmente teria dito:
a grande experiência sexual é essa!
Playboy – E sua primeira experiência sexual com uma mulher, aos 15 anos, como foi?
Freyre – É, foi muito brasileiramente, com uma empregada doméstica. Nisso eu fui muito
brasileiro, porque segui a experiência de muitos brasileiros, segundo creio...
Freyre – Um, dois anos. De início no quarto dela, lá em casa, eu pulando o muro depois, para
dar a impressão de que vinha de fora quando entrava em casa. Mas depois tive encontros com
ela fora de casa, quando ela já era uma espécie de mulher independente.
Freyre – Era uma morena de tipo bem brasileiro, de um moreno claro, delgada de corpo, mãos
e pés delicados, olhos muito bonitos. De origem humilde, mas com uma aparência aristocrática,
com as graças de uma quase sinhazinha, sendo, entretanto uma doméstica. Lembro-me que a
beleza dos pés dela me impressionava...e devo dizer que pés bonitos de mulher são uma [das]
minhas fixações sexuais. Quando fui para os Estados Unidos e para a Europa e comecei a ver
mulheres de pés grandes, sabe, isso foi um dos contrastes favoráveis ao Brasil que mais me
impressionaram, o de não encontrar por lá aqueles pés bonitos, bem torneados, que são uma
característica de grande parte das brasileiras.
Playboy – E, além de sua fixação por pés femininos, o senhor tem alguma outra?
Freyre – Eu direi que tenho uma fixação pela morenidade, embora já tenha tido experiências
com louras. Quando era estudante na Universidade de Columbia, por exemplo, tive uma loura,
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bem lourinha, mas tão ardente quanto qualquer morena. Mas creio que a morenidade da mulher
é uma de minhas fixações sexuais. Daí o meu grande entusiasmo, já velho, por Sônia Braga.
Playboy – Na época de sua transa com essa americanazinha loura, o senhor era bem mais
avançado que ela, em termos de práticas sexuais?
Freyre – Que ela sim. Creio que meus maiores avanços viriam após meu contato com a Europa,
sobretudo com França, Inglaterra e Alemanha.
Freyre – Bem, várias práticas sexuais que não eram, na época, comuns, nem nos Estados
Unidos. Além do coito convencional, há outras práticas que ao meu ver são valiosas, inclusive
valorizam o coito convencional, porque são uma espécie de aperitivo, tão saboroso quanto
a entrée...
Playboy – Sem querer ser demasiadamente indiscreto: o senhor pode indicar algumas dessas
práticas que considera tão valiosas?
Playboy – Em Casa Grande e Senzala o senhor descreve as primeiras práticas sexuais dos
filhos dos senhores de engenho. O senhor teve um período em que foi menino de engenho. Nesse
período também experimentou tudo aquilo?
Freyre – É, como todo menino de engenho eu tive uma iniciação que não teria tido na cidade.
No engenho você vê, por exemplo, os animais, o touro cobrindo a vaca... e também os meninos
me contavam coisas que eu não supunha existir...
Freyre – Sim, além dessa masturbação na bananeira, fui iniciado no uso de uma vaca.
Experimentei o contato pecaminoso com uma vaca! [Risadas]
Playboy – O sexo sempre teve uma importância muito grande em sua vida?
Playboy – Sempre foi uma prática constante, ao longo dos seus 80 anos?
Freyre – O sexo sempre esteve presente em minha vida, mas nunca o sexo acanalhado, sempre
o sexo com tendência a ser sublimado...
Freyre – Seria você tratar o sexo anedoticamente, falar de um gozo obsceno...Eu acho que o
sexo é uma coisa de tal modo importante na vida do homem que deve estar sempre ligado a
uma expressão artística, estética, uma expressão de beleza!
Freyre – Já, mas com autorização dela, quando viajei sem ela para a África e o Oriente. Nós
viajamos muito juntos, mas dessa vez eu iria sozinho e a viagem seria bastante longa, minha
mulher autorizou a ter experiências sexuais durante essa ausência de meses. Foi em 1951, 52.
Freyre – Sem dúvida acrescentaram, porque foi com mulheres de tipo exótico, que me
interessava conhecer do ponto de vista antropológico. Foram experiências valiosas para mim
inclusive desse ponto de vista. Lembro-me de que, em Lourenço Marques [atual Maputo, capital
de Moçambique], alguns amigos me ofereceram uma ceia muito amável e que lá conheci umas
mulheres muito refinadas, européias, muito louras. Mas se eu me interessasse por elas seria uma
traição à minha esposa. Mas, com autorização dela, tive experiências com mulheres pretas e
mulatas na África; e com uma indiana em Bombaim.
Playboy – Mas então, pelo menos nesse caso, o sexo para o senhor foi muito mais um objeto
de estudo do que um prazer por necessidade...
Freyre – Nessas minhas experiências escolhi mulheres que me atraíam sexualmente, de modo
que havia uma experiência erótica e, paralelamente, uma experiência antropológica.
Playboy – Quando o senhor completou 70 anos, deu a entender numa entrevista que ainda era
capaz de despertar paixões em muitas Lolitas. E agora, quando está completando 80?
Freyre – Não. É que aos 70 eu tinha conhecimento de casos concretos de jovens apaixonadas
por mim. Mas atualmente eu não posso apresentar um exemplo concreto. Mas gostaria...
Freyre – Acho que é uma forma de amor. Havendo uma vocação homossexual, ela é tão
respeitável quanto as vocações heterossexuais.
Playboy – E o que o senhor pensa de práticas sexuais como sexo grupal, troca de casais, em
moda atualmente?
Freyre – Eu temo que essas práticas sexuais favoreçam muito mais o acanalhamento, mas acho
que são admissíveis. O ménage à trois, por exemplo, quando os três conhecem o assunto e se
tolerem mutuamente, numa espécie de consórcio, é perfeitamente admissível e é até uma
espécie de homenagem.
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Playboy – O senhor poderia fazer um paralelo entre os costumes sexuais dos tempos, digamos,
da casa grande e da senzala, com os de hoje, em termos de progresso ou de decadência?
Freyre – O mínimo de roupas pode ser saudavelmente higiênico num clima muito quente. Mas
há também um aspecto psicológico nesse desnudamento: exibindo demais o corpo da fêmea aos
olhos do macho ou do macho aos olhos da fêmea, você poderá estar subtraindo grande parte da
excitação erótica. Estive recentemente na Inglaterra com um grande especialista no assunto, o
professor Sargeant, um sexólogo notável, que tem uma clínica de renome internacional onde
procuram tratamento muitos jovens com problemas de impotência. O professor Sargeant, que
é meu amigo, disse-me que a nudez e a chamada permissividade, esses excessos todos, estão
comprometendo a saúde erótica das novas gerações ou, pelo menos, tendem a isso. Note-se que
ele não é nenhum puritano, mas sim um cientista.
Playboy – Voltando à sua juventude, ao período dos 18 aos 23 anos em que o senhor viveu nos
Estados Unidos e na Europa: foi lá que o senhor alicerçou sua formação de escritor, sociólogo
e antropólogo, não? Por quê? O Brasil não lhe oferecia condições de estudo e pesquisa?
Freyre – Não, de modo algum! Nem o Recife, nem o Rio, nem São Paulo. Não poderia ter me
acontecido nada mais favorável do que ter tido essa formação no estrangeiro. Mas não creio
que eu seja fruto dessa formação. Sou fruto, principalmente, do meu talento e talvez do meu
mais-que-talento. Mas esse talento e mais-que-talento foram completados por uma formação
adequada que eu não poderia ter tido no Brasil. Eu diria que adquiri, nos Estados Unidos e na
Europa, uma visão do ser humano que não teria adquirido se não tivesse tido os contatos que
tive. Contatos sob uma forma de estudos universitários e também extra-universitários, com
pessoas do povo, em cafés e até em cabarés. Estudei na Universidade de Columbia, talvez na
sua fase de maior esplendor, com mestres como Franz Boas, que foi meu professor de
antropologia; ou com John Basset Mohan, de direito internacional. Mas também aprendi muito
nos teatros e nos restaurantes que freqüentei em Nova Iorque. Fiz escândalo quando, ao voltar
para o Brasil, destaquei a importância da culinária como expressão das culturas nacionais.
Afirmar isso naquela época foi escandaloso, porque se pensava que esse negócio de arte
culinária era uma coisa inteiramente desprezível do ponto de vista científico, estético ou
sociológico.
Playboy – Ao voltar para Recife em 1923 o senhor também provocou celeuma por outros
motivos...
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Freyre – Encontrei um Recife onde se valorizava muito a mulher européia, mesmo a prostituta
européia, em detrimento da nativa. A minha atitude foi a de valorizar a mulher nativa, morena,
e até a mulher negra. E isso teve repercussão, foi talvez uma pequena revolução nativista.
Playboy – Mas, além disso, o senhor também foi responsável pela disseminação de práticas
sexuais até então desconhecidas no Recife.
Freyre – Bem, é certo que, quando jovem solteiro, usei muito no Recife certas camisas-de-
Vênus especialmente eróticas.
Freyre – Eram umas camisas-de-Vênus também muito usadas por outro recifense, bem mais
velho do que eu, Odilon Nestor, que também tinha grande convivência com a Europa e a
sofisticação sexual européia. Essas camisas-de-Vênus tinham uma espécie de penacho na
extremidade, que as tornava muito excitantes para a mulher.
Playboy – O senhor parece sentir satisfação em ser uma pessoa polêmica, discutida e até
criticada.
Freyre – Isso me dá uma sensação de vitalidade muito agradável. Eu temo muito ser
considerado um bonzinho que agrada a todo mundo, um convencional que não arrepia nenhuma
convenção. Tenho muito medo de chegar a ser benquisto por toda gente ao mesmo tempo. Creio
que quem tem atitudes precisa se conformar com o fato de desagradar a alguns.
Playboy – Isso explicaria certas afirmações suas, como, por exemplo, a de que gostaria de ter
sido hippie?
Freyre – Não creio que tenha dito exatamente que gostaria de ser hippie O que eu disse é que
se eu tivesse vivido na época hippie provavelmente teria sido um hippie.
Playboy – Na época desse seu regresso, 1923, já havia explodido em São Paulo a Semana de
Arte Moderna, e o modernismo estava sendo debatido, polemizado. Mas parece que o senhor
nunca me levou muito a sério aquele movimento de renovação cultural. O senhor chegou até a
espinafrá-lo em vários artigos. Por quê?
Freyre – Porque acho que, no total, a Semana de Arte Moderna representou uma introdução
arbitrária, no Brasil, de modernices européias, sobretudo francesas. Sem dúvida, a cultura
brasileira em geral e as artes brasileiras em particular precisavam na época de serem
modernizadas, revigoradas mas levando-se em conta a realidade regional brasileira, suas
tradições características às quais se poderia adaptar inovações européias. Isso não se fez em São
Paulo, mas sim no Recife, num movimento muito menos badalado, como diria hoje, do que a
Semana de Arte Moderna de São Paulo. Esse movimento foi regionalista, tradicionalista e, a
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seu modo, modernista, ao qual estiveram ligados artistas como Vicente do Rego Monteiro, um
renovador da pintura e da escultura.
Freyre – Dos sociólogos paulistas, o que eu considero a figura máxima é Fernando Henrique
Cardoso, que é até político militante marxista, mas há pouco, num artigo mostrou-se simpático
às minhas atitudes, embora divergindo de mim. Outro marxista, mas este do Rio, o antropólogo
Darcy Ribeiro, um grande antropólogo, escreveu uma introdução para a edição venezuelana de
meu livro Casa Grande e Senzala, que é talvez o que de melhor já se escreveu ao meu respeito,
do ponto de vista antropológico e sociológico. Agora, ambos são marxistas eminentes. Mas
quando o marxista é um Octavio Iani, que não é intelectualmente honesto, a meu ver, e um
outro que já nem me lembro o nome.
Freyre – Florestan. Que não é desonesto, mas que é um fanatizado pelo marxismo. Esses
desonestos ou esses fanáticos superiores - eu respeito o Florestan Fernandes, uma cultura real,
um talento autêntico, mas fanatizado, enfim-, eu não os considero como representantes do que
há de melhor na sociologia e na antropologia paulista. Mas são os mais ruidosos e os mais
badalados por nossa querida imprensa, pelos dois semanários, Veja e Isto É, e pelos jornais,
como o Jornal do Brasil. A única exceção é O Estado de São Paulo, que me parece o jornal
mais eticamente orientado da imprensa brasileira...Não estou ligado a ele. O jornal com que
tenho ligação é Folha de São Paulo, com o qual tenho prazer em colaborar. Mas aí entra o
patrulheirismo ideológico, que existe, posso dar meu testemunho de que existe, não só através
da deformação das minhas idéias e das minhas atitudes, como através de coisas como essa que
você repetiu agora, que soa contrário aos antropólogos e sociólogos paulistas.
Playboy – Nossa pergunta foi sobre a briga que o senhor tem com eles.
Freyre – Eu tenho com alguns deles, mas estou em excelentes termos com os que são
considerados dentro e fora do Brasil. Como Fernando Henrique Cardoso, que tem trabalhos
publicados na Europa e que, dentre eles, é o mais eminente, muito mais até que o Florestan,
muito mais! Cardoso, embora seja uma pessoa com grande atividade política, é o máximo entre
o que se faz em antropologia e sociologia em São Paulo.
Playboy –O senhor se referiu à existência de uma patrulha ideológica. Como explica que isso
possa acontecer exatamente na grande imprensa, que é naturalmente conservadora?
Freyre – Sim, mas você que é jornalista sabe que, dentro de um grande jornal, a direção
proprietária é uma e a execução jornalística é outra. Enfim, o copidesque [o jornalista que faz
o texto final] é muito importante, mais importante até do que aqueles que colhem as notícias,
os repórteres. Porque eles as entregam ao copidesque e elas ai sofrem o processo de depuração,
aí entra a patrulha, a chamada patrulha ideológica. Essa expressão criada por Cacá Diegues me
parece feliz e corresponde a alguma coisa que existe, a uma deformação que existe: as idéias
são apresentadas de um modo diferente, a fim de criar uma imagem antipática de certos
indivíduos. Mas a grande arma dos patrulheiros não é essa.
Playboy –Qual é?
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Freyre – A grande arma deles é o silêncio, uma arma que vem agindo há anos! Essa denúncia
não é minha, é de alguém que certamente merece respeito por suas denúncias e que é Nelson
Rodrigues. Ninguém mais jornalista que Nelson Rodrigues. Em vez de ter nascido na literatura
ou no teatro, Nelson nasceu no jornal. De modo que ele conhece o jornal por dentro e por fora
e foi ele quem fez essa denúncia a respeito dos silêncios. Eu não atribuo essa patrulha ao
marxismo ou ao comunismo, mas a um submarxismo e a um subcomunismo, que, um ponto a
meu ver perigoso, está, sobretudo a serviço do que se pode identificar como imperialismo
soviético. Um imperialismo em expansão na África e no oriente, e que naturalmente se projeta
também sobre o Brasil, que é um país com uma enorme importância geopolítica. Daí, qualquer
ação que você possa ligar a uma presença disfarçada, dissimulada desses soviéticos no Brasil é
importante. E eu creio que essa presença está se fazendo sentir não de toda, mas de parte da
patrulhagem ideológica. Não é só meu caso. É também o de outros, mas eu tenho sido
denunciado, nos maiores jornais soviéticos, como elemento ultra-reacionário.
Freyre –...que sou uma presença brasileira que incomoda, do ponto de vista russo-soviético.
Veja, então: essa preocupação comigo vem de lá refletida nesse silêncio a meu respeito. Você
observe, por exemplo, o grande semanário que tanto admiro, a Veja. Admiro na Veja o seu
noticiário, as reportagens, as entrevistas... As minhas restrições: nos últimos anos, como aliás
em toda minha vida, minha presença tem sido assinalada pela publicação de livros. Ainda nesse
último ano apareceram ou inéditos meus ou reedições com vários acréscimos. E foram
sistematicamente, ostensivamente ignorados pela seção de literatura de Veja. Mas não é que
tenham dado duas ou três linhas sobre eles, não! Não deram nada, nada! Silêncio completo! E
isso acontece também em Isto É, que é dirigida por um amigo meu, o Mino Carta! Aí você
poderia dizer: são livros que estão fora da atualidade brasileira... Mas não! São livros que tocam
em problemas vivos do Brasil, problemas de cultura associada à vida. Ora, eu não posso deixar
de acreditar na existência de uma ação patrulheira contra mim, que ora age através de
deformações, ora através desses estiletes que são também uma forma efetiva de enfrentar uma
presença incômoda.
Playboy –Voltando a suas divergências com alguns sociólogos e antropólogos do Sul, teriam
sido elas que provocaram a denúncia que o senhor fez, em agosto de 1977, numa palestra em
Brasília, de que a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência estaria sendo influenciada
por ideologias estranhas a serviço de potência estrangeira?
Freyre – Exato, têm a mesma origem. Acontece que, numa sociedade paradoxal, uma
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência...bem, acontece que ela estava em crise, com
um grupo indo numa direção, enquanto outro estava a serviço de alguma patrulha ideológica.
Entretanto, dentro da SBPC, algumas das figuras tidas como marxistas, ligadas ao marxismo,
têm se referido a mim do modo mais simpático. Como o Mário Schemberg e vários outros.
Mas, na época em que fiz essa denúncia, havia uma predominância que já deixou de haver de
elementos patrulheiros.
Playboy – Ao fazer tal denúncia o senhor não estaria também fazendo uma forma de
patrulhamento?
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Freyre – Creio que não, porque o patrulhamento obedece a um fim especificamente não
cultural, e eu creio que não por onde você me ligar a uma corrente política não cultural, nem
pró-governo nem antigoverno.
Playboy – Mas o senhor apoiou ostensivamente o movimento militar de 1964, que foi um
movimento político.
Freyre – Eu me defini a favor desse movimento sem que isso implicasse uma adesão política.
Implicou uma adesão nacionalista.
Playboy – O senhor conspirou ou pelo menos estava a par do que se tramava em 64?
Freyre – Não estava intimamente a par, mas meu já captava alguma coisa do que se passava.
O general Castello Branco, então comandante do IV Exército, freqüentava muito a minha casa,
mas vinha para conversar, não para conspirar.
Freyre – Porque senti que não estava havendo uma revolução, mas sim uma substituição dos
quadros governamentais, e isso não me interessava.
Playboy – Embora não aceitando ser ministro, o senhor ajudou a fazer vários, nestes últimos
16 anos, não é? Por exemplo, o senhor não ajudou na indicação do atual ministro da Educação,
Eduardo Portella?
Freyre – Ajudei.
Freyre – Bom, esse é um problema complexo, que se relaciona com a própria presença
brasileira como conjunto, por exemplo, desde 1964. Desde então o Brasil tem, não é novidade
nenhuma, uma imagem desfavorável no exterior, a imagem de um país militarizado. Supõem
alguns meios europeus e norte-americanos que estamos sob um caudilhismo militar, o que não
é inteiramente exato.
Freyre – Porque nenhum desses presidentes militares pretendia ser um caudilho. Mas creio que
também vários deles cometeram erros lamentáveis e nenhum foi o presidente ideal para o Brasil.
Mesmo, assim, repito o que já tenho dito: a meu ver, 1964 era inevitável, tinha de vir, diante do
caos a que o Brasil chegara, diante da infiltração russo-soviética no país. De modo que as Forças
Armadas prestaram um grande serviço ao Brasil, em 1964. Mas a sua presença no governo
talvez tenha se prolongado demais.
Playboy – Ainda hoje o senhor acredita que em 1964 existia de fato a ameaça de implantação
de um regime comunista no Brasil?
Freyre – Não, não creio que houvesse uma ameaça assim específica. A ameaça que havia era
a do caos. Creio que o presidente Goulart, um homem pessoalmente estimável, favoreceu, no
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entanto uma situação caótica, que a União Soviética não deixaria de aproveitar, como
aproveitou em Cuba.
Freyre – No plano social, a Revolução teve uma oportunidade única, que não foi aproveitada.
E também não soube libertar-se do burocratismo, tanto que só agora nomeou um ministro da
desburocratização, o Hélio Beltrão, que, aliás, foi meu aluno de antropologia na Universidade
do Distrito Federal, um brilhante aluno meu. Também vejo com apreensão, nesse período de
governos, não direi militares, mas de militares que o Brasil tem tido, a tendência de certos
assessores da Presidência para estabelecer um dirigismo da cultura.
Freyre – Não, ao contrário! Não posso citar nomes desses assessores, não porque não queira
ser indiscreto, mas simplesmente porque ignoro seus nomes.
Playboy – A política de direitos humanos dos chamados governos da Revolução não teria sido
uma de suas principais falhas?
Freyre – Esse é um ponto delicado para se opinar, porque, você sabe, ainda não está bem
revelado o que houve no interior do Brasil, as guerrilhas... Nem está bem revelado quem
sustentava essas guerrilhas que colocaram em perigo a unidade brasileira e que obrigaram o
governo a uma presença tão dura. Não está bem esclarecido como foi a origem desse
movimento, sua sustentação, mas sabe-se que foi grande a presença de estrangeiros nele.
Rasgões inevitáveis.
Playboy – Mas o senhor admite que, em determinadas circunstâncias, a tortura é pelo menos
compreensível?
Playboy – Por que então o senhor nunca teve uma palavra contra essa prática de tortura?
Freyre – Não é um assunto que eu estivesse jornalisticamente obrigado a comentar, mas creio
que fica bem claro, em minha atitude geral, que eu não poderia ser simpatizante de torturas ou
de excessos de repressão policial.
Playboy – Em 64 dizia-se que o nordeste era um barril de pólvora, pelas tensões sociais que
abrigava. Essa imagem continua válida?
Freyre – Não, já não é tão válida como era naquela época, em que havia, partindo do Recife,
que é tão importante para todo o Nordeste, duas lideranças que favoreciam a criação do barril
de pólvora: a do governador Miguel Arraes e a de Francisco Julião, entre os camponeses...
Freyre – Estão de volta, mas não estão atuando como antes. Você vê a atuação de Arraes e nota
que ele está bem diferente do que foi. Dizem que ele está rico e há um ditado no Rio Grande do
Sul que diz: “Caudilho rico não briga”. Será que esse ditado pode ser aplicado hoje ao
governador Arraes? É possível. E não tenho elementos para afirmar se ele hoje é mesmo um
caudilho rico. Como ele é perspicaz politicamente, pode ser que sua atitude corresponda a novas
circunstâncias, às quais ele julga inteligente se adaptar. E talvez se possa dizer o mesmo de
Julião, que eu considero um romântico, o que o Arraes não parece ser. Mas não sei até que
ponto Julião continua romântico. Ainda não estive com ele após sua volta.
Playboy – O senhor insiste muito num modelo de democracia genuinamente brasileiro, mas,
segundo o advogado Sobral Pinto, à brasileira só mesmo o peru.
Freyre – Sobral Pinto é um advogado que passa por ser um grande romântico, um grande
Quixote...Evidentemente ele tem qualidades. Não o conheço pessoalmente, mas sei que não é
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assim tão romântico e quixotesco. Ele tem agido com coragem em vários casos, mas houve uma
ocasião em que eu estava sendo oprimido pelo poder econômico, representado por Augusto
Frederico Schmidt, que foi o meu primeiro editor. Depois de lançar a primeira edição de Casa
Grande e Senzala, ele lançou, sucessivamente, duas reedições piratas, ignorando totalmente
meus direitos de autor. Então procurei a ajuda de Sobral Pinto como advogado, o grande
advogado dos oprimidos. Ele recusou, alegando ser amigo do meu esfolador. De modo que
completamente romântico ele não é.
Playboy – Na sua opinião, como está caminhando o projeto de abertura política do governo?
Freyre – Bom, acho que o fato dele caminhar já é alguma coisa. Desejaria que o ritmo fosse
menos lento, mas o processo envolve tantos antagonistas que não se pode esperar que seja
rápido. Talvez pudesse ser menos lento.
Freyre – O perigo que poderia surgir seria uma grande resistência de parte de alguns militares
ao processo de abertura, mas creio que esse perigo já não existe. O que existe é a falta de bons
líderes oposicionistas. A oposição está tão dividida, seus líderes estão uns contra os outros que
isso pode estar provocando uma excessiva lentidão à abertura.
Playboy – Dentre os novos partidos que estão se formando, o senhor simpatiza por algum?
Freyre – Sinto simpatia pessoal por Tancredo neves, mas não diria que sinto o mesmo pelo
partido dele. Minhas maiores simpatias seriam para um partido trabalhista.
Playboy – O senhor acha que Leonel Brizola está interpretando corretamente o trabalhismo?
Freyre – Ainda não tenho opinião formada sobre isso, acho que ele ainda não se definiu
claramente.
Freyre – Para presidente da República eu duvido que a eleição deva ser direta. Como você
sabe, até nos Estados Unidos essa eleição não é direta, e eu creio que o exemplo da democracia
americana deve contar muito. Porque há ao um fator sociológico muito importante: numa
eleição para presidente da República, o eleitor não fica muito informado sobre os candidatos.
Playboy – O senhor já se definiu a favor do pluralismo partidário. Acha que dentro dele
haveria lugar para o Partido Comunista?
Freyre – Acho que sim, se pudéssemos nos assegurar de que seria um partido comunista
independente, brasileiro, como parece estar sendo o Partido Comunista Espanhol.
Playboy – O senhor se referiu à existência de uma tendência para um dirigismo cultural, por
parte dos governos brasileiros. Poderia dizer como tem se manifestado esse dirigismo?
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Freyre – Através de uma tendência para se considerar a cultura do mesmo modo que a
economia: uma matéria para ser dirigida pelo Estado. Eu sou pela intervenção do Estado em
assuntos econômicos, contra o poder econômico absorvente e a favor dos setores
economicamente fracos da população, sujeitos aos abusos desse poder econômico. Mas na área
cultural não acontece um relacionamento igual. Ela é uma área em que se precisa dar o máximo
de criatividade e independência.
Playboy – Essa tendência ao dirigismo cultural tem a ver com um menor grau de liberdade
democrática?
Freyre – Ah, tem sim, porque todo dirigismo é necessariamente uma restrição à criatividade.
E a criatividade importa em liberdade de expressão.
Playboy – O senhor poderia dar exemplos concretos de males que o dirigismo cultural tem
provocado?
Freyre – Na ação da censura exercida policialmente, esses males são evidentes. Por exemplo,
eu prefaciei um trabalho científico, sério, social, que se intitula Dicionário do Palavrão. Trata-
se de um trabalho de um etimólogo, o Mario Souto Maior. Pois bem, há anos que uma censura
policial, fazendo-se passar por censura cultural, vem barrando a publicação desse trabalho. É
evidente que isso é uma manifestação de dirigismo que vem privando a cultura brasileira de
uma expressão válida. Agora mesmo, no Rio, você assiste à peça Rasga Coração, de Oduvaldo
Vianna Filho, impedida de aparecer, durante anos, vítima do dirigismo cultural. Mas eu
reconheço que há uma área, a da televisão, em que é preciso haver uma intervenção do
governo...
Freyre – Porque na televisão você não tem apenas cultura, mas tem também educação. Você
tem filmes que podem perturbar de modo realmente lamentável a atitude e o comportamento da
mocidade, da infância. Um indivíduo que sai de casa para ir ao teatro ou ao cinema sabe que
vai assistir a um determinado tipo de peça ou filme. É diferente da família que está em casa e é
surpreendida por certos tipos de programas, nocivos do ponto de vista educacional.
Playboy – Umas das teses que o senhor certa vez defendeu e que provocou muitas reações foi
a de que a alfabetização em massa da população, tendendo a criar uma educação massificada,
só poderia ser desfavorável para o Brasil. O senhor deu a entender que um certo grau de
analfabetismo seria até, vamos dizer, positivo. O senhor ainda defende isso?
Freyre – Ainda defendo. Creio que o Brasil, tendo ainda analfabetos, encontra-se numa
situação culturalmente mais vantajosa do que, por exemplo, um país como a Suécia, onde não
há analfabetos. Porque o analfabeto é um espontâneo, um intuitivo, quase instintivo, um homem
telúrico, por excelência. A chamada literatura de cordel e a cerâmica popular são outros
exemplos disso. Ora, tais expressões de criatividade seriam impossíveis na Suécia, se
mediocrizou do ponto de vista da criatividade artística, literária.
Freyre – O Brasil está livre ainda, com suas grandes reservas de espontaneidade assegurada
pelo fato de haver em sua população muitos rústicos, ainda analfabetos. Nós sabemos que, com
os atuais meios de comunicação, a televisão, o rádio e outros, a importância de alfabetização
tem diminuído. Você hoje pode viajar e ir exatamente aos lugares que deseja, sem precisar ler:
as farmácias têm sinal que indica farmácia, os sanitários para homens e mulheres são
identificados por figuras e não letras. Quer dizer, há uma superação crescente da letra,
substituída por sinais e símbolos que vão se tornando uma característica cada vez maior de uma
cultura moderna.
Playboy – Nesse caso, o senhor recomendaria que se mantivesse analfabeta uma certa fatia
da população, a fim de enriquecer o país culturalmente?
Freyre – Bem, sou favorável a que haja, pelo menos, uma certa tolerância para com esses
resíduos de analfabetismo no Brasil. Não posso determinar que haja uma defesa sistemática do
analfabeto. Não vamos criá-lo em redoma nem impedir que ele se alfabetize. Não, eu não rira
a tanto. Mas acho que seria vantajoso tolerar o analfabeto como um valor e não como um peso
morto. De modo que não sou um grande entusiasta do MOBRAL.
Freyre – Dado o fato de que minha saúde é excepcionalmente boa, e também o fato de
continuar havendo receptividade para o que escrevo e o que penso, sinto que ainda permaneço
válido. De modo que chego aos 80 como se tivesse, digamos, 60 anos.
Freyre – Olha, de fato tenho uma receita e já tive propostas muito sedutoras para revelá-la
[rindo]. Trata-se da receita de um conhaque de pitanga que fabricamos aqui em casa. Mas me
recuso a revelar a fórmula.
Borges - Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma
época em que não soubesse ler e escrever. Meu pai era professor de psicologia e me disse que
a memória começa aos 4 anos de idade. Aprendi a ler e escrever entre os 3 e 4 anos. A biblioteca
de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li na vida foi em
inglês e depois em outros idiomas, já que, em 1915, fomos para Genebra e tive que estudar
francês e também bastante latim. Depois disto, eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer.
Mas antes passei pela poesia e pelos expressionistas alemães: Johannes Becher, Wilhelm
Klemm, Kafka e outros. Quando perdi a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud
self pity”, para não abundar em sonora autocomiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo
do inglês arcaico. Depois estive duas vezes na Islândia e estudei um pouco do escandinavo
antigo. O islandês é a língua mãe do sueco, do dinamarquês e, parcialmente, do inglês. Agora
pensei em estudar japonês ou chinês, que são idiomas tão estigmatizados.
Borges - “As Mil e Uma Noites”. Livros de diferentes épocas da vida de Kipling, que comecei
a ler quando criança. Sempre gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosamente, continuo
a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia
italiana, a Garzanti, tenho duas edições da Brockhaus, alemã, e uma edição da Britânica. Gosto
muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente
perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão
aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Diversos países me convidam para dar
conferências. Vou agora à Califórnia, à Nova York e depois à Roma. Depois volto à Roma no
fim do ano para falar de meus livros. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? É que não
gosto do que escrevo. Nesta casa não encontrará um só livro meu. Por que quem sou para ficar
ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou com Montaigne? Não sou ninguém! Continuo a
adquirir livros porque gosto de estar rodeado por eles. Como quando era menino, já que minhas
primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Quanto à minha
memória, a única coisa que consigo lembrar são citações, mas, dos fatos de minha vida, me
esqueci. As datas, não me lembro de nenhuma. Tenho lembranças de meus pais a quem adorava,
dos meus amigos. Agora meus amigos estão embaixo da terra.
Borges - Agora estão menos vivas. Lembro-me de uma frase muito triste de Emerson: “Life
itself becomes a quotation”. “A própria vida se converte numa citação.” Tenho a memória cheia
de versos em tantos idiomas. E continuo escrevendo. Bem, escrevendo é uma metáfora; ditando.
Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos literários.
Não vão durar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir. Entretanto minha mãe
morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Eu tentava convencê-la de que os 100 são
uma superstição. Mas, mesmo assim, o número 100 a apavorava. Quando fiz 80, achei horrível.
Espero não chegar aos 90. Eu preferiria morrer esta noite. Agora não, porque quero conversar
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um pouco com você. Quando vocês se forem, eu morro. Eu gostaria. Assisti a várias agonias
no curso de minha excessivamente longa vida. Minha mãe acreditava em Deus, eu não. Todas
as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns meses antes de fazer 100 anos morreu,
que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao ver que não tinha morrido durante a
noite e se preparava para outro dia.
Borges - Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho
também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na
escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas
luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem
formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha
mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual,
não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam,
esmaecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a
enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais
ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar.
Borges - Não. Como foi um processo lento, não houve um momento patético. Mas se uma
pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio.
Borges - Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe de Hamlet,
Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade. As pessoas são muito
boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Não pertenço a
nenhum partido político. Sou um velho anarquista spengleriano. Principalmente neste país, as
pessoas se interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha consciência tranquila. Falei
e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um sobrinho meu estiveram presos.
Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se alguém lhe ameaça de morte, você não corre
nenhum perigo. Depois vieram todos esses governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes,
contra a ditadura militar. Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a
invasão das Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo governo.
Borges - Não me lembro. Tenho um poema que se intitula “Juan Lopez y John Ward”. São dois
rapazes, um argentino e um inglês, que poderiam ter sido amigos, mas que se matam na guerra.
Tenho uma milonga que se chama “Milonga del Muerto” sobre um soldado que morreu na
guerra. As pessoas riem um pouco dessa guerra, mas toda guerra é terrível, até mesmo uma
pequena como essa. Morreram 2000 argentinos e 500 britânicos. Conversei com sodados que
me disseram que se tivessem um rifle na mão teriam matado seus oficiais. Os sargentos quando
viram, fugiram e deixaram os soldados. É que não eram soldados; eram recrutas. Era gente
trazida das províncias semitropicais do norte e os mandaram às cercanias do Polo Sul combater
soldados verdadeiros. Eram todos rapazinhos de 18 ou 20 anos, ainda que houvesse uma
superioridade numérica grande.
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Borges - São as grandes sensações da vida de todo homem. O amor, a amizade, a leitura, o
gosto por escrever, embora não goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre
mim. A partir dos 30 anos, não li uma única linha que se escreveu sobre mim. Sei que há
bibliotecas inteiras, mas não li nada. Acho que deve-se viver para o futuro. Quando publico um
livro, não sei se teve êxito, se está vendendo. O que disse a crítica. Meus amigos sabem que não
devem falar do que escrevo.
Borges - Porque é incômodo falar da própria pessoa. Prefiro falar de outros autores. Deve
acontecer o mesmo com outros escritores. Há uma frase muito bonita de Kipling que fala sobre
o fracasso e o sucesso. O fracasso e o sucesso são impostores. Ninguém fracassa tanto como
imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disso, o que importa o sucesso e o
fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás é melhor. Não creio em
imortalidade pessoal. Meu pai dizia: “Quero morrer eternamente — corpo e alma”. Segundo a
Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição. Mas eu diria que antes também. Não é preciso fazer 70
anos para conhecer a aflição. Segundo a tradição, os 33 são a idade perfeita, porque é quando
morre Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33 anos. Na Idade Média, houve uma discussão
muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Adão não pode ter umbigo porque não nasceu
de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é
imperfeito. Então Adão tem que ter umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se
discutiu com toda seriedade durante muito tempo. Havia teólogos encarniçados em ambos os
lados. Sir Thomas Brown, um escritor do século 18, diz “The man without a navel lives in me”.
“O homem sem umbigo vive em mim”; ou seja: “Adão vive em mim; sou também o primeiro
homem”.
Borges - Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não conheço a literatura
contemporânea. Desde que perdi a vista como leitor em 1955, não li nada de novo.
D’Ávila - Mas quando era menino, na biblioteca de seu pai, lia muito?
Borges - Não lia muito. Folheava os livros. Não creio que tenha lido quase nenhum livro do
princípio até o fim, salvo livros de filosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista
é Conrad.
D’Ávila - O sr. leu pouco, mas sua vida é a literatura. A realidade para o sr. não importa
muito. O que importa são as sensações?
Borges - Se eu tivesse interesse na realidade europeia, leria jornais. Nunca li um jornal na vida.
Pra que lê-los? É tudo bobagem. Só falam de viagens de presidentes, congressos de escritores,
partidas de futebol. Por isso gostaria de recuperar a visão para poder folhear um livro, escolher
o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph Conrad, que para mim é o
romancista. Fracassei com grandes romances, com Zachary, com Flaubert.
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D’Ávila - Mesmo com “Cem Anos de Solidão” o sr. não foi até o fim?
Borges - Com “Cem Anos”, não. Completei no máximo 50 anos. Mas é um excelente livro.
Gostaria de conhecer o autor.
Borges - Não tive oportunidade. E possivelmente nunca terei. Ele vive na Colômbia, não?
Estive duas vezes na Colômbia. Todo mundo foi muito amável comigo, sobretudo porque sou
um ancião inofensivo. Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por
telefone, o que não tem nenhuma importância. Se uma pessoa quer matar a outra, não avisa
porque seria um imbecil. Bem, os assassinos são imbecis.
D’Ávila - Queria mudar um pouquinho a assunto. Queria que o sr. falasse do amor.
Borges - Ocupou tanto lugar na minha vida, que ocupa pouco em minha obra. Estive casado
por três anos e compreendemos que o único modo de continuarmos amigos era a separação.
Mas agora também não somos amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não.
D’Ávila - Quer dizer que o sr. acha que o casamento mata mais que o amor?
Borges - Mudou tanto a cidade… Já não a conheço… Nasci aqui no centro de Buenos Aires:
Rua Tucumán, quatro ou cinco quadras daqui. Toda a Buenos Aires era de casas baixas com
terraços, pátios, campainhas manuais. Só havia algumas casas altas perto da praça do
Congresso. A cidade toda tinha casas com pátios, poços. Sempre havia uma tartaruga no fundo
para comer os bichos: uma espécie de filtro vivo. Buenos Aires mudou completamente. Minha
mãe se lembrava desta rua sem calçamento.
Borges - Não tenho tantos. Meu bisavô era lisboeta. Era Borges de Moncorvo, uma cidadezinha
de Trás-os-Montes. Depois tenho uma maioria de sangue espanhol, uma avó inglesa, algum
sangue judaico-português e, muito distante, algum sangue normando dos Bittencourt, uma
família de Rouen, noroeste da França. Devo ter ainda algum sangue escandinavo e isto é tudo.
Mas eu trato de ser cosmopolita, de ser digno deste planeta.
Borges - Não tenho genialidade de nenhuma espécie. Sou apenas um pequeno escritor sul-
americano, um mínimo argentino.
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Borges - Sim. Minha mãe era descendente de europeus, católica, mas católica da maneira
argentina, ou seja, mais por uma questão social do que teológica. Minha avó inglesa era de
tradição protestante, de pastores metodistas. Sabia a Bíblia de cor. Você recitava um versículo
qualquer, e ela dizia, sim, Livro de Jó, capítulo tal, versículo tal, e assim em diante. Entre os
protestantes, tem muita gente que conhece a Bíblia de cor. Nos hotéis, por exemplo, na
Inglaterra, na Escócia e também em Nova York, tem sempre uma Bíblia na gaveta do criado-
mudo. Além, disso, as citações bíblicas, que podem soar pedantes em castelhano, são muito
comuns em inglês. As pessoas estão sempre fazendo citações de versículos da Bíblia ou de
frases bíblicas, e não soa nada pedante. Em contrapartida, nos países católicos, pareceria uma
coisa forçada. De forma que minha avó era muito religiosa, metodista.
A família de minha mãe era católica, como eu dizia, à maneira dos países latinos, de uma forma
superficial. Meu pai era agnóstico, quer dizer, um livre pensador, e todos nos dávamos muito
bem; isso jamais foi motivo de discórdia.
O que mais posso dizer sobre a minha família? Meu pai era professor de Psicologia no Colégio
de Línguas Vivas, e lembro muito bem o quanto ele ganhava, era também advogado, assessor
cível. Tinha de dar duas aulas de Psicologia por semana no Colégio e lhe pagavam 100 pesos
por mês. Cem pesos por mês era um bom dinheiro na época, sendo que hoje em dia diz mais
respeito à literatura fantástica. Hoje, 100 pesos não significam nada. Naquele tempo sim; tudo
era muito mais barato do que agora. Lembro que o dólar valia 2 pesos e cinquenta centavos.
Acho que hoje o valor dele subiu bastante, não? Acho que a nossa moeda é a mais barata do
mundo.
Do lado do meu pai e minha mãe, era uma família militar. Meu avô, o Coronel Francisco
Borges, morreu, realmente, na batalha de La Verde, que aconteceu perto do vilarejo de 25 de
Maio, na província de Buenos Aires. Meus avós participaram da campanha pela independência,
depois das guerras civis, da guerra com o Brasil, tudo isso.
Borges - Poucos. Estudei no Collège de Genebra, estudei e tenho o meu diploma. Ali havia
duas matérias principais, que eram o francês e o latim. Eu logo percebi que, se estudasse
bastante o francês e o latim, poderia prescindir das outras matérias, o que fez com que me
tornasse uma pessoa extremamente ignorante, pois tive aulas de física, botânica, mineralogia,
zoologia, música, ginástica, química, e não sei absolutamente nada sobre esses assuntos.
História, sim, disso eu gosto. Mas, na Suíça, a aula de história não era obrigatória, e sim
opcional. Se quiser, você pode estudar História suíça, se não quiser, não estuda. Eu tinha muito
interesse em conhecer a história da Suíça, pois vivia ali, por isso estudei. São obrigatórias a
história antiga, a moderna etc; mas a suíça, não.
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Esse é o único diploma que eu tenho. Todos os outros são títulos Honoris Causa, que são apenas
fruto de generosidades. Sou Doutor Honoris Causa de Tucumán, de Nova York, de
universidades italianas, colombianas, mexicanas, também de Harvard, de Oxford, da Sorbonne,
mas acredito que posso ser chamada do doutor, já que esses títulos de Honoris Causa são um
favor que outorgam a algumas pessoas, e é claro que agradeço a eles, pois é uma honra, embora
eu não saiba se realmente a mereço.
Pessoalmente, posso dizer apenas que sou formado no Collège de Calvino de Genebra.
CPM - Com que idade o senhor tomou consciência de sua vocação literária?
Borges - Eu não sei. Não me lembro de uma época em que não lesse ou escrevesse. Eu sempre
estava lendo e escrevendo. Mas meu pai me disse para só ler aquilo que me interessasse, que
não lesse um livro pelo sentimento de dever, porque era famoso. Que eu lesse apenas quando
me interessasse, e que só escrevesse quando tivesse necessidade de fazê-lo. Que eu escrevesse
muito, que descansasse muito e que não me apressasse para publicar, já que publicar não é parte
necessária do destino de um escritor.
Borges - Meu primeiro livro foi publicado tardiamente. Eu tinha 24 anos. Chamava-se Fervor
de Buenos Aires e foi publicado aqui, em Buenos Aires. Meu pai me deu 300 pesos, que me
permitiram imprimir 300 exemplares. Não foi colocado à venda. Reparti entre meus amigos.
Me agradava muito. Mas, na realidade, era o quarto livro que eu escrevi. Tinha escrito três antes
que, curiosamente, destruí. Talvez devesse ter destruído esse também.
CPM - Como surgem suas obras? O senhor se senta para escrever sistematicamente ou o faz
quando sente a necessidade?
Borges - Isso é muito complexo. Eu sinto que há algo que quer que eu escreva sobre ele, e eu
tento dissuadi-lo. Mas se há um assunto que volte, um argumento de um conto ou um poema,
então escrevo. Me parece um erro procurar assuntos. É preciso deixar que os assuntos procurem
e encontrem alguém. Senão saem livros fabricados.
Creio que todo o mundo escreve assim, ainda que os jornalistas, não. Eles procuram assuntos.
E, por exemplo, um escritor que admiro muito, Capdevila, escreveu um livro sobre as 14
províncias argentinas. É muito estranho que todas tenham lhe interessado e que tenham lhe
interessado de maneira favorável. Isso é fabricar um livro. Eu, por exemplo, escrevi um poema
em homenagem à água, mas não me ocorreu escrever para o fogo, a terra e o ar. Seria uma coisa
mecânica. Escrevi um poema para a água porque me interessava. De modo que procurar
assuntos é um erro. Há escritores que se propõem a escrever sobre a vida dos camponeses de
tal lugar, e assim saem os livros.
Borges - Bem, a maioria não me agrada. Me conformo com eles. Aproveitei as chamadas obras
completas para omitir dois livros. Para mim, meu melhor livro é o que se chama El Libro de
Arena. É de fácil leitura, um livro curto, não uso nenhuma palavra que solicite o uso do
dicionário. É um livro de contos, e outro livro de contos de que gosto é El Informe de Brodie. El
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Libro de Arena é o único com o qual estou satisfeito. Talvez o tempo também julgue o mesmo
e apague os demais, que são realmente rascunhos apagáveis.
Borges - Sim, mas não me encontro entre eles. Isso é um erro, e eu não sei se agradeço, porque
não sei se podemos agradecer aos erros.
Borges - Se eu tivesse que me definir diria um escritor, ainda que talvez fosse melhor dizer um
leitor, já que creio que sou melhor leitor do que escritor.
Borges - Bom, de manhã, se tenho sorte, recebo a visita de jornalistas de Quilmes. Mas
geralmente meus dias não são tão favoráveis, portanto faço uma sesta e escrevo algo.
Borges - Quando Eduardo Mallea publicou o livro História de Una Passión Argentina, eu
pensei: deve ser sobre a amizade, já que a amizade é a paixão argentina, talvez a única. Eu tenho
essa impressão de que a amizade é muito importante para nós, o que está bem, não?
Borges - Eu tenho um poema, no meu último livro, que se chama La Cifra. Vou citar o primeiro
verso, que é uma definição: “Nasci em outra cidade que também se chamava Buenos Aires”.
Ou seja, que mudou tanto que é outra. É que uma pessoa não chega aos 83 anos impunemente.
Aos 83 anos, quase todos os meus amigos estão na Recoleta. A cidade mudou totalmente. Eu
nasci no centro de Buenos Aires, na rua Tucumán, entre Esmeralda e Suipacha. Todo o
quarteirão, salvo o armazém que ficava na esquina, era de casas baixas, com terraços, pátios e
cisternas. Havia algumas casas altas construídas depois, na rua 25 de Maio ou na Reconquista.
CPM - O que o senhor diria aos jovens que começam a se interessar pelos problemas do país?
Borges - Eu não sei. Há tantos problemas. Na melhor das hipóteses este país consegue se salvar,
apesar de eu não ver como. A situação é ruim. Não só aqui como no mundo inteiro. Talvez
todos os momentos sejam terríveis e estejamos sentindo mais este porque está mais próximo.
Não vejo salvação possível e talvez caminhemos para a terceira guerra, que pode ser a última.
O que está acontecendo no Líbano, o que aconteceu aqui, o que está acontecendo no Iraque e
no Irã. Esperemos que não, porque seria um suicídio da humanidade.
Borges - Não sei. Eu nunca me interessei por política. Me interesso mais pela ética. Creio que
se cada pessoa age de maneira ética, isso pode ter um efeito político muito grande.
Borges - Quero pensar que já terei morrido, mas acredito que vamos ladeira abaixo. Eu já não
tenho esperança. Vocês são jovens, talvez tenham esperanças. Eu já não tenho nenhuma.
CPM - Muitas declarações suas geram polêmica, e há quem acredite que o senhor procura
justamente esse efeito...
Borges - Claro que não! Quem pensa isso não me conhece em nada.
CPM - Para terminar, o senhor gostaria de nos deixar algum conselho ou mensagem?
Borges - Eu não soube administrar minha vida, então não posso dirigir a vida dos outros. Minha
vida foi uma série de equívocos. Não posso dar conselhos. Ando um pouco à deriva. Quando
penso no meu passado, sinto vergonha. Eu não transmito mensagens, os políticos transmitem
mensagens.
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Drummond – Eu tenho sim. Eu vivia em um meio rural em que criança gozava de grande
liberdade. O cenário era vasto e tanto a cidade quanto os arredores, o campo, nos dava uma
grande liberdade.
Drummond – Não sei se pode chamar de feliz a infância, porque há sempre aqueles traumas
da falta de entendimento com os adultos, o mistério da vida que a gente não decifra. Eu acho
que uma criança pode ser tão feliz ou tão infeliz quanto um adulto.
Emediato – Não.
Drummond – A gente sentava num banco, cinco ou seis sujeitos se espremiam, para ver quem
caía do banco primeiro. Era bom, era gostoso. Naquele tempo não tinha gelo, eletricidade,
cinema, automóvel. Mas a gente vivia muito bem e não sentia falta de nada. Hoje, se a televisão
for suspensa, a criança morre de desgosto.
Drummond – Minha experiência com o sorvete foi trágica. Não sabia como tomar sorvete e
meu irmão, que já era mais civilizado do que eu, tomou com a maior galhardia. Eu, não; eu
metia o dente no sorvete e sentia aquela dor horrorosa (risos). E aquela humilhação, porque
meu irmão não queria que eu demonstrasse que não sabia tomar sorvete, e eu repelia o sorvete
e ele falava: “Toma, desgraçado!” (risos)
Emediato – E as namoradinhas?
Drummond – Eu tive várias namoradas. Mas o namoro no meu tempo era à distância. Uma
menina morava num sobrado, no segundo andar, e eu namorava da rua, da esquina, olhando
assim pra ela. Um sorriso era um prêmio, uma gratificação enorme. Não havia contato pessoal.
Depois, quando jovem, em Belo Horizonte, eu sentia muito a dificuldade de aproximação com
as moças. Era proibido olhar para as mulheres. Na praça da Liberdade, você conhece bem, as
moças andavam pra baixo e pra cima, e os rapazes ficavam olhando. Mas era só isso. Elas iam
acompanhadas ou da mãe ou de um irmão, e o irmão usava bengala, que era um instrumento
muito poderoso, que impedia que a gente tentas sê qualquer liberdade maior – um beijo, por
exemplo. Quem é que podia beijar uma moça? Era um problema dificílimo.
Drummond – Eu estudei dois anos no colégio dos Jesuítas, em Friburgo, e era considerado um
dos melhores alunos da classe, mas descobriram um dia que eu era um elemento nocivo.
Drummond – Foi terrível. Tomei o trem com moral baixíssimo. Havia no trem uma viúva toda
de preto, com duas meninas também de preto, e uma delas olhou para mim e sorriu. Esqueci
completamente a minha desgraça e fiquei namorando a garota, mas elas desceram numa estação
e meu moral voltou abaixo do zero, até chegar em Belo Horizonte.
Drummond – O jesuíta é muito falso, muito hipócrita. Neste particular foram generosos
comigo, não disseram a verdade a meu pai. Apenas aconselharam que, por motivos outros, me
transferisse de escola.
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Drummond – Não. Meu pai era um homem muito reto, mas sei lá se ia aprovar ou não…
Drummond – Sim. Era considerado um homem muito rico, porque todo mundo era pobre no
interior de Minas. Então, qualquer pessoa que tivesse um palmo de terra era um afortunado.
Drummond – Não foi fácil, não. Meu pai foi incumbido pela sociedade doméstico-conjugal de
ser o juiz, o justiceiro. Minha mãe era aquela doçura e, quando via que estávamos nos
comportando mal, apelava para meu pai, que tomava a atitude do homem que castigava. Mas a
gente nunca aprendia. Só muito mais tarde entendi que ele era obrigado a fazer aquilo. Custei
a compreender isto.
Drummond – Prendia no quarto, cortava sobremesa… De vez em quando dava uns tapas. Uma
vez achei que ele ia me bater e levantei a mão para não apanhar na cara e ele ficou estarrecido,
pensou que eu ia bater nele. Meu irmão, que era meio safado, então gritou: “Você é um
parricida”. Eu respeitava muito meu pai. Tenho muita saudade dele, muita saudade mesmo.
Emediato – Não.
Drummond – Sim, não é do seu tempo. Eu sou uma múmia, bem? (risos) O Bar do Ponto não
existe mais. Quando sobrava algum dinheiro a gente esticava na zona, na Rua Guaicurus, tinha
lá um restaurante onde a gente ceava um famoso bife a cavalo. A maior delícia.
Emediato – O senhor se lembra de sua primeira experiência sexual ali na Rua Guaicurus?
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Drummond – Não guardei não. Isso nem vale a pena contar… Mas não foi na rua Guaicurus.
Mas, sabe, não é assim tão interessante, to do mundo tem lá um dia a sua primeira vez e fica
meio espantado, descobre o mundo.
Drummond – Não, só uma cerveja. E Martini… E o Madeira leve, uma espécie de vinho do
Porto.
Drummond – Havia a cocaína. Eu experimentei uma vez e não achei graça nenhuma, não senti
nada. Era falsificada, uma espécie de bicarbonato. O que a gente apreciava muito era o éter. E
também o lança-perfume, mas só no carnaval. Eu gostava muito de uma frase sobre droga que
dizia assim: “A cigarra gelada do éter”. De fato, dava uma sensação de cigarra cantando. Zunia.
Lançava o lança-perfume no próprio lenço e eu sentia aquela vibração, aquela fúria.
Emediato – É verdade que naquela época, anos 20, em Belo Horizonte, o senhor e o Pedro
Nava tocaram fogo numa casa?
Drummond – É verdade. Metemos fogo num varal de roupas dentro da casa de umas moças,
as Vivacquas, e o fogo se alastrou. E então eu disse ao Nava: vamos desistir dessa bobagem.
Demos a volta, apertamos a campainha. As moças queriam saltar. Ajudamos a apagar o fogo,
como heróis. Um guarda-civil tinha visto tudo, e no outro dia fomos chamados à delegacia, mas
o delegado era casado com uma parenta minha e eles abafaram a história. Surgiu a versão de
que tínhamos tocado fogo na casa para vermos as moças de camisola, quando elas fugissem.
Foi pura farra, sem nenhuma intenção.
Emediato – Diz a história que o senhor também tocou fogo num bonde. O senhor por acaso
era um incendiário?
Drummond – É, talvez eu tivesse essa vocação, sem perceber. Mas o caso do bonde foi um
simples protesto de estudantes. Tinham aumentado o preço dos ingressos do cinema para dois
mil réis, e aquilo foi considerado um escândalo. Não podíamos aceitar. Decidimos então atacar
os bondes. Afastamos o motorneiro – não sei,como conseguimos força para isso – e tocamos
fogo nele. Até um pedaço do bonde eu consegui levar para casa, como um troféu. (Risos) A
vida em Belo Horizonte era uma mesmice.
Emediato – Parece que sua adolescência foi muito divertida. Metendo fogo em casas, se
divertindo com a policia…
Drummond – Foi divertida, sim. Ao mesmo tempo havia a preocupação literária. Todos nós
escrevíamos. Nós nos reuníamos toda noite, cada um mostrava seu trabalho e os outros
criticavam com muita serenidade, com muita objetividade. O Milton Campos, o João
Alphonsus, o Nava…
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Emediato – O senhor teve na juventude alguma paixão desmedida, além da Greta Garbo, sobre
quem escreveu uma crônica?
Drummond – Você está explorando muito a minha vida, e ela é muito pouco interessante.
Emediato – Vamos falar de literatura, então. Mas o senhor não acha que sua obra pode ter
sido determinada pelo que aconteceu na sua infância, na sua adolescência e, depois, na sua
maturidade, essa carga toda de experiência de vida?
Drummond – A minha obra literária foi determinada pela circunstância de eu ser mineiro.
Mineiro do interior de Minas, uma região de mineração, onde a dificuldade de comunicação era
maior do que em outras zonas do Estado. Nós vivíamos ilhados. Éramos fechados por
necessidade e por contingência
Drummond – Você é mineiro, não é? Minas foi um lugar especial. Hoje não é.
Emediato – O senhor foi autodidata, não é? Isso por acaso o limitou em alguma coisa.
Drummond – É. Eu fiz maus cursos. Tenho apenas o terceiro ano ginasial. Estudei Farmácia
numa escola livre. Eu não tenho uma formação cultural básica, não é?, que possa ser
caracterizada como de um escritor de nível médio. Um escritor consciente de seu ofício deveria
ter uma formação cultural bastante boa, como de conhecimento de literaturas estrangeiras. A
minha formação foi mais francesa.
Emediato – Será que sua poesia teria sido diferente se o senhor tivesse tido uma formação
cultural e filosófica mais profunda?
Drummond – Não sei. Uma grande parte da cultura que a pessoa absorve para uma carreira
literária é para não ser consumida, é só para servir de pano de fundo. Na realidade, a gente
obedece a um impulso interior, à capacidade de imaginação que nós temos. Porque, se fôssemos
nos prender àquilo que lemos ou aprendemos não escreveríamos nada. Todas as obras-primas
já foram escritas. O contemporâneo não conta, a meu ver.
Emediato – O senhor consegue explicar essa emoção que o leva a escrever intuitivamente?
Drummond – Eu sou inteiramente partidário da idéia da inspiração. Seja banal, antiquado, mas
sem inspiração não se faz nem se escreve nada. A pessoa adquire a técnica de se comunicar e
tem facilidade, como eu tenho, de escrever coisas. Mas aquela coisa profunda que vem das
entranhas da gente, isto é inspiração.
Emediato – Que é que o senhor sente no fundo do coração quando está criando?
104
Drummond – Quando estou criando um poema eu sinto uma certa exaltação física, um certo
ardor. (Pausa) Não, não exageremos; também não é um estado de transe, de levitação. Mas sinto
uma espécie de emoção particular que me impele a escrever. E isso me surge até em horas
imprevistas, diante de um espetáculo, de uma criança dormindo na rua, um cachorro mexendo
com o rabo, uma moça. Qualquer destas coisas pode provocar na gente um estado poético. Ao
lado disso, há o lado crítico, depois.
Emediato – Os seus escritos têm dois lados: um é humorado, alegre, lúdico. O outro é amargo.
Qual dos dois é o verdadeiro?
Drummond – Eu acho que o mais sincero é o lado amargo, não é? Eu sou uma pessoa
inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de ordem política, filosófica,
social ou religiosa. Acho a vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e
termina, acabou, não tem nada.
Drummond – É, porque você não pediu, você foi chamado. Então é uma fatalidade neste
sentido. Então procure viver o menos desagradavelmente possível.
Drummond – Não.
Drummond – Sou rigorosamente agnóstico. Uma pessoa que não pode afirmar a inexistência
de Deus, da mesma maneira que não pode afirmar a existência. Não tenho, na minha capacidade
intelectual. Condições para afirmar que Deus existe. E, a não ser os teólogos. Duvido que
alguém mais tenha capacidade para isso. Mas eu passo muito bem sem Deus. Não me dá
remorso e foi uma conquista da minha vida. À qual agradeço em parte aos meus queridos
jesuítas. Porque eles é que começaram a fazer desabar em mim a idéia de Deus como um Todo-
Poderoso que regula a vida e a morte das pessoas. Mas respeito profundamente qualquer forma
de religião.
Drummond – Eu estou encarando. Não é? Outro dia um amigo meu perguntou a outro: “Você
pensa na morte?” E ele respondeu: “Não penso em outra coisa”.
105
Drummond – Desde menino que eu penso na morte. Sabe, eu queria ser cremado, mas não
existe crematório no Rio, a Santa Casa, que vive do negócio de vender túmulos, impede a
criação de crematórios. Quis ser então cremado em São Paulo, quando morrer, mas dá tanto
trabalho, é preciso levar uma testemunha. Uma burocracia. Não quero chatear ninguém, então
comprei um túmulo no cemitério São João Batista, aqui no Rio. Tenho lá uma situação
privilegiada, porque o meu túmulo está no alto do morro. No mesmo nível do mausoléu da
Academia Brasileira de Letras. Então é de igual para igual (risos). Mas. Sabe eu tenho pena das
pessoas que vão me sepultar, porque para chegar ao meu túmulo é preciso subir uma escadinha
estreita. Não vai ser fácil. Mas não tenho culpa, foi o lugar que encontrei para comprar, não
tinha outro.
Drummond – Não sei. Não sei. Eu não sei o que é ser feliz. Eu vivo, e vivo em paz com meus
semelhantes.
Drummond – Um fio muito fino, ao qual eu meu agarro para não morrer desesperado.
Emediato – Um de seus poemas, José, é um poema desesperado, mas no final ele não se mata,
ou seja: o senhor escreve coisas amargas, mas às vezes deixa uma abertura, uma ponta de
esperança.
Drummond – Uma solução heroica. De uma grandeza moral enorme. A não ser, claro, quando
o suicida é doente, que se mata porque está privado do raciocínio.
Drummond – Éramos diretores do jornal e nenhum de nós dirigia coisa nenhuma. O jornal
censurava as coisas mais absurdas. Até informações. Fiquei desencantado com o partido. Não
quis mais saber de comunismo.
Drummond – Eu não sou nada, nada. Eu seria um eleitor em potencial do Partido Socialista
Brasileiro. Mas não sou mais eleitor, desisti de me recadastrar. O senhor não vai votar este ano,
então? Não, não vou. Estou desencantado com isso. Tenho uma longa experiência de
desencanto político. Em 1910, eu tinha sete anos de idade e o marechal Hermes da Fonseca foi
eleito presidente da República com 400 mil votos redondos. Nem um a mais e nem um a menos.
Por sua vez, o chefe da campanha civilista mandou telegramas para todos os diretórios civilistas
nos Estados recomendando que aumentassem a votação nas notícias aos jornais. Houve fraudes
dos dois lados.
Drummond – Votei, e depois disso você acha que eu ainda vou votar em mais alguém?
Drummond – Não apoiei não. Eu fui contra João Goulart, achei que a derrubada dele foi
salutar. Mas uma semana depois já haviam praticado tais desmandos que não pude apoiar. Posso
ter pecado por omissão por não ter denunciado logo, mas não apoiei.
Drummond – Não vou votar. Minha reação de desencanto explica tudo, não é?
Drummond – Não vejo nada, não. Eu acho que o Plano Cruzado foi uma boa idéia, vamos ser
justos, uma idéia bem-intencionada. Mas estamos sem carne, não é? O congelamento não
resolve. Estamos numa sociedade capitalista em que o motivo principal do trabalho é o lucro.
O boi não tem opinião, coitado. Aliás, nessa história de congelamento, eu tenho muita simpatia
é pelo boi, que está vivendo mais alguns meses no pasto.
Emediato – O que é que o senhor sente quando vê, pelos jornais ou pela TV, que o Congresso
está vazio?
Drummond – Eu acho terrível. E a gente não pode falar contra o Executivo, porque tem que
falar mais mal ainda do Legislativo. O empreguismo, o clientelismo, o filhotismo, a falta de
responsabilidade…
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Emediato – Um artista, um intelectual tem opiniões que pesam multo na sociedade. O senhor
acha que…
Drummond – O que mais podemos fazer é conservar nossa dignidade. Não participando
daquilo que nos pareça errado ou nocivo ao bem comum. A obrigação do escritor e do artista é
fazer a melhor literatura, a melhor arte. Interpretar bem o sentido das coisas, o mistério da alma
humana. O mistério das relações sociais. Não vejo como o artista pode influenciar na sociedade
brasileira. Ele acaba sendo cantado pelos poderosos e prestando serviços a eles.
Emediato – E a Constituinte?
Drummond – Eu gostaria muito que ela fosse realmente uma Constituinte. Mas vejo pouca
probabilidade de se formar um grupo realmente poderoso e consciente, que sejam bons
patriotas, para que possam fazer uma boa Constituição. Eu olho com certo susto a Constituinte.
Uma coisa que acho muito importante é definir o papel das Forças Armadas. Não podem tutelar
o regime democrático. Mas é difícil conseguir isso.
Emediato – O senhor disse há pouco que, se votasse, votaria no Partido Socialista. O senhor
acredita que exista socialismo real em algum país do mundo?
Drummond – O regime socialista a meu ver não é praticado nos países que se dizem socialistas.
A não ser talvez na Escandinávia, onde há, realmente, um começo.
Emediato – O senhor já foi convidado para visitar Cuba, como outros intelectuais que lá
estiveram e até escreveram livros a respeito?
Drummond – Nunca fui, não. Aliás, uma vez eu estava posto em sossego, cerca de meia-noite,
e me telefonou o Chico Buarque de Holanda, pessoa que admiro muito, mas com quem não
tenho nem contato. Gosto da música dele. Telefonou e disse: “Preciso conversar com você”. Eu
disse: “A esta hora da noite? Meu Deus, aconteceu um drama, para o Chico me procurar!” Mas
disse. “Pois não, venha”. Apareceu em companhia de um cidadão moreno, magro. Era já meia-
noite e meia. O cidadão falou meio enrolado, era o embaixador da Nicarágua no Brasil, que
tinha lido uma crônica minha no jornal e achava que eu estava mal informado sobre o país dele.
Ah, tenha paciência! Eu tenho noção do que escrevo, compreendeu? Não sou partidário dos
Estados Unidos, longe disso, acho a agressão à Nicarágua uma coisa estúpida. Mas não se pode
negar que a Nicarágua é uma ditadura. Eles fecharam o La Prensa, onde tenho amigo, o poeta
Pablo, Antonio Cuadra. E então falei para o Chico: “Tenha paciência”!
Emediato – O senhor tem um poema, Favelário Nacional, em que diz que é difícil ser irmão
das pessoas, ser solidário.
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Drummond – Eu acho muito difícil. Fomos criados para sermos irmãos de nossos irmãos, e
mesmo assim olhe lá. Somos irmãos de nossos irmãos e de nossos amigos – os demais são
sócios, indiferentes ou inimigos, competidores. Se eu quiser ser irmão de um favelado eu acho
que ele me cospe na cara.
Drummond – No mês passado eu fiz 20 poemas curtos focalizando aspectos da vida de Manuel
Bandeira.
Drummond – Tenho matéria para um livro, mas não pretendi publicar até agora. Quer ver?
(Busca uma pasta com poemas cuidadosamente organizados, tira um, mostra.) Este aqui,
Quadros em Exposição, eu fiz inspirado em grandes pinturas clássicas. Não vou à Europa, fiz
olhando as cópias.
Drummond – O que há hoje no Brasil é uma diluição da poesia brasileira em termos até
chatíssimos, porque todo mundo agora faz poesia, e ninguém faz poesia. É uma coisa incrível.
O mal disto vem do Modernismo. O Modernismo rompeu, inovou, criou, deu novas
109
formulações estéticas, mas ao mesmo tempo permitiu que todo mundo que não sabe escrever
escrevesse. O pessoal não tem a menor noção de ritmo, de criação verbal e faz versos. Todos
os dias agora aparecem antologias, e então aparecem 200 poetas, geralmente mulheres. E
impressionante o número de mulheres que pensam que fazem versos.
Emediato – Bem, acho que estamos no fim. O senhor quer dizer mais alguma coisa?
Drummond – Eu não. Não quero dizer nada. Você me arrancou uma porção de coisas que eu
não devia dizer. Por minha iniciativa, eu não digo nada a ninguém, sabe?
Elegia 1938
A flor e a náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
111
Sentimento do mundo
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Rola mundo
José
De José (1942)
Se você gritasse,
se você gemesse,
E agora, José? se você tocasse
A festa acabou,
a luz apagou, e tudo fugiu a valsa vienense,
o povo sumiu, e tudo mofou, se você dormisse,
a noite esfriou, e agora, José? se você cansasse,
e agora, José? se você morresse...
e agora, você? E agora, José? Mas você não morre,
você que é sem nome, Sua doce palavra, você é duro, José!
que zomba dos outros, seu instante de febre,
você que faz versos, sua gula e jejum, Sozinho no escuro
que ama, protesta? sua biblioteca, qual bicho-do-mato,
e agora, José? sua lavra de ouro, sem teogonia,
seu terno de vidro, sem parede nua
Está sem mulher, sua incoerência, para se encostar,
está sem discurso, seu ódio — e agora? sem cavalo preto
está sem carinho, que fuja a galope,
já não pode beber, Com a chave na mão você marcha, José!
já não pode fumar, quer abrir a porta, José, para onde?
cuspir já não pode, não existe porta;
a noite esfriou, quer morrer no mar,
o dia não veio, mas o mar secou;
o bonde não veio, quer ir para Minas,
o riso não veio, Minas não há mais.
não veio a utopia José, e agora?
e tudo acabou
116
Mapa
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos canjerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.