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Por isso há, nas crônicas do período medieval, duas abordagens sobre a Duquesa
Eleanor de Aquitânia. A primeira lhe confere pouca participação nos eventos, mesmo
ocultando-a, e essa posição é principalmente de cronistas franceses. Já a segunda traça
uma imagem de Eleanor, mas comumente é um retrato negativo – seja de cronistas
1
DUBY, Georges. Alienor. In: Heloísa, Isolda e Outras Damas do século XII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
franceses ou ingleses.Pode-se dizer que ambos têm um ponto de vista desfavorável, e à
indagação do motivo, o primeiro ponto seria o simples fato de Eleanor ser uma mulher
que saía dos padrões das figuras femininas que eram consideradas exemplos, na visão
dos clérigos. Não só o fato de que Eleanor por vezes desejava compartilhar o poder com
seus maridos, imiscuindo-se em assuntos políticos, que eram apenas dos reis, mas, mais
ainda, pelo fato de ela ter sido insubmissa, por duas vezes2: a primeira, quando, em
1152 pediu a anulação de seu casamento com o rei da França, e a segunda quando se
revoltou contra seu segundo marido, o rei Henrique II da Inglaterra – e levando,
também, os seus filhos à revolta contra o pai.
Se Louis muito aparece nas crônicas, sendo delas a figura central, Eleanor só
aparece com breves menções.Podemos então indagar qual seria o motivo desse
ocultamento. Segue-se, então, por dois pontos essenciais: primeiro, o ponto em que o
autor corta a narrativa já é em si sugestivo, dado que os eventos posteriores à Antioquia
iam dar vazão às lendas escandalosas que meio século depois ainda iam ser os relatos
predominantes sobre a figura da rainha – e pouco depois desses eventos se daria o
divórcio, quando do retorno dos cruzados à França.Segundo, a própria data em que a
2
TURNER, Ralph V., Eleanor of Aquitaine: Queen of France, Queen of England.New Haven: Yale
University Press, 2011.
crônica foi escrita, contemporânea aos eventos: na época, Eleanor ainda era rainha de
França. Seria interessante lançar escândalo sobre a casa real? Mas, e ainda se pode
perguntar - e o resto da narrativa? Poder-se-ia, afinal, pensar que Odo poderia ter escrito
algo, ou ter feitos mais menções à participação de Eleanor na Cruzada. Mas não o fez.
Talvez, simplesmente, porque não fosse do interesse do cronista registrar as ações ou a
presença de uma figura feminina.
Seja como for, o fato é que em 1147, Eleanor parte com o marido para o Oriente,
com a Cruzada. Esta se revelaria uma empreitada fracassada. Procuraram-se, então
culpados. Odo de Deuil põe sua principal acusação sobre as trações dos bizantinos, mas
outros cronistas posteriores colocaram seu principal alvo sobre Eleanor, “uma mulher de
comportamento escandaloso” que, dizia-se, cavalgara vestida de homem! Um desses
cronistas foi o Menestrel de Reims, do século XIII – ele lhe atribui várias acusações de
adultério e incesto, que eram, na concepção da época, os piores pecados que uma
mulher poderia cometer, pois ela tinha que se conservar fiel e submissa a seu marido.
Uma rainha, então, deveria ser um modelo concreto e exemplo para outras mulheres,
por isso devendo evitar escândalos sobre sua figura3.
3
CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia.In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das
mulheres no ocidente. Volume 2: A Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990. p. 108.
Eleanorteria um papel importante a desempenhar na história dos dois países,
dado que nos anos consequentes ela se envolveria com a política nos domínios
“angevinos”, por várias vezes exercendo papel de regente nas frequentes viagens de seu
marido, o rei Henrique, por todos os domínios que eles possuíam. O segundo casamento
de Eleanor, no entanto, não foi mais harmonioso que o primeiro. Anos depois do
casamento, já em 1173, Eleanor revoltara-se contra o marido, e pior: levava também
seus filhos a sublevar-se contra o pai! Que uma esposa se revoltasse contra seu marido e
senhor era impensável, quanto mais levar os filhos à sua insubordinação. “Uma mulher
que não se encontra sobre o controle de seu marido viola as condições da natureza”,
escreve Pierre de Blois em uma carta à rainha no ano em que a revolta estava em seu
auge4. A mulher, dizia ele, era naturalmente submissa ao homem – ela se submetia a ele
quando casada; laço que, aliás, não poderia ser rompido – como o fazia crer o discurso
que a Igreja instituíra no século XII. Eleanor, que já se separara do rei da França, agora
abandonaria seu marido? Uma dama, uma nobre, tinha mais dever ainda de ser um
modelo de virtude, dada a sua alta condição social – o discurso dos homens, quando se
dirigia a alguma mulher, era voltado principalmente a elas5.
O que acontecia era que, partindo para a Cruzada, essa se revelaria cada vez
mais uma empreitada fracassada. Nos primeiros anos do casamento, Louis não só
demonstraria certa inabilidade para lidar com assuntos que interessavam diretamente a
Eleanor, como a tentativa de reconquistar Tours, requerida pelos duques de Aquitânia,
como também se mostraria bem diferente de Eleanor, em costumes. Louis era muito
mais ligado e influenciado pela Igreja, e Eleanor, claro, queria compartilhar do poder de
seu marido. No entanto, num século em que a Igreja ficava mais poderosa, as rainhas de
França cada vez menos tinham essa influência e, mesmo que Louis fosse, segundo
fontes do período, “muito apaixonado por sua esposa”, a influência clerical fazia-se
sentir fortemente na Corte dos Capetos. Quando partiram para a Cruzada, então, Eleanor
já se encontrava um pouco cansada das relações com seu marido, também porque não
tinham tido nenhum filho. Outra questão levantada: seria o casamento “amaldiçoado”,
pois envolvia consanguinidade, com a ausência de herdeiros legítimos? Deveria, então,
ser considerado inválido?
Primeiro, Eleanor era culpada pela insubmissão. Vale evocar o modelo de uma
boa esposa tal qual os clérigos viam, e nesse sentido o primeiro aspecto é de que a
mulher era submissa a seu marido – o bom casamento era aquele dominado pelo marido.
Entre os deveres da boa esposa encontravam-se as funções de mulher fiel, nora
respeitosa, mãe cuidadosa. A mulher devia, acima de tudo, amar seu marido – mas um
amor mais contido, além de ser-lhe naturalmente submissa. Assim também era um
dever da mulher tanto a procriação quanto uma educação, tomar conta da casa, cuidar da
família. Eram esses os deveres da mulher como uma boa esposa6; e a culpa sempre
recairia sobre a mulher que deixasse seu marido, pois, se ela já consentira de livre
vontade ao casamento – e esse era o mútuo consentimento que os clérigos também
pregavam -, não deveria romper o vínculo. Por causa desse pecado, além do de não ter
herdeiros, sendo infértil, muitos autores posteriores ao divórcio de 1152 não hesitaram
em lançar as lendas escandalosas sobre afigura de Eleanor, como o Menestrel de Reims,
que lhe atribui inclusive a falta gravíssima de querer fugir com Saladino, um sarraceno,
que era, essencialmente, a figura do inimigo. Outros simplesmente levantam conjecturas
sobre a rainha e seu tio, Raymond de Antioquia.
Mas Eleanor e Louis ainda não se separaram nesse momento; ainda retornariam
à França, passando por Roma, onde o Papa reafirmou seus laços conjugais, e ela ainda
ficaria grávida de novo. O nascimento de outra filha e a morte do abade Suger, principal
conselheiro de Louis que se opunha à anulação do casamento, só fez com que se
retomasse o questionamento sobre a legitimidade de tal vínculo conjugal. Louis,
aconselhado a se separar de tal mulher escandalosa, concede-lhe o divórcio e, meses
depois, ela se casa novamente, dessa vez, com o duque da Normandia, Henrique
Plantageneta.Acrescenta-se também que o casamento não era importante apenas pela
natureza sacramental com o qual os clérigos tentavam dotá-lo, mas também era um
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VECCHIO, Silvana. A boa esposa.In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no
ocidente. Volume 2: A idade Média. Porto: Afrontamento, 1990.pp. 143-186.
importante formador de laços sociais entre famílias; uma rainha, mais que uma nobre,
pela posição elevada que ocupava na sociedade, era imbuída da obrigação de fornecer
um modelo – não poderia romper os vínculos, os equilíbrios de paz e poder. Mesmo que
Louis também tenha querido a anulação de seu casamento no final, e que esta se
realizasse não só pela vontade de Eleanor, ainda assim foi ela que levantou primeiro a
questão, foi ela que, durante anos de casamento, não pôde gerar um herdeiro. E agora,
ainda, casava-se com um rival da Coroa Capetíngia e levava junto seu ducado, alterando
drasticamente o equilíbrio do poder e tendo, portanto, uma conduta repreensível, tanto
como esposa quanto como rainha. Essa imagem, então, de uma esposa insubmissa e
infértil, fez com que os cronistas franceses muito falassem dela após seu segundo
casamento, não hesitando em atribuir-lhe outros pecados e faltas que formaram a base
de uma “lenda negra”, que seria a visão que se disseminaria e marcaria Eleanor de
Aquitânia durante os séculos seguintes.
Fontes
• DEVIZES, Richard of. Chronicle of the Deeds of Richard the First, King of
England. Translation by J.A. Giles, Medieval Latin Series.Cambridge, Ontario:
In Parentheses Publications, 2000.
• DEUIL, Odo of. De Profectione Ludovici VII in Orientem - The Journey of
Louis VII To The East. W.W. Norton; First Thus Edition, 1948.
• REIMS, Minstrel of. A thirteenth-century minstrel's chronicle: Récits d'un
ménstrel de Reims: a translation and introduction. E. Mellen Press, 1990.
• Tradução de M. Markowski da carta de Pierre de Blois presente em ChartresMs
#208; Cf. Migne, P.L. 207:448-9.
Bibliografia
• DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e Outras Damas do século XII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
• KELLY, Amy. Eleanor of Aquitaine and the Four Kings. New York: Book of
the Month Club, 1996.