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Como Roma desmoronou?

Existem teorias conflitantes para explicar o fim


do grande império

Em quadro de 1836 | Crédito: Wikimedia Commons

Era o fim. A fumaça e o fogo se espalharam pelo campo de batalha, e logo


se misturou no ar um cheiro de suor, sangue e corpos queimados. Os
cadáveres de 20 mil soldados romanos, dos 30 mil que haviam participado
da luta, se espalhavam inertes pelo chão. O imperador Valenciano, que
pessoalmente comandara o embate, também desapareceu naquele dia, 9 de
agosto de 378, sem deixar vestígios. De acordo com relatos de
sobreviventes, ele foi queimado vivo pelo inimigo. Os godos tinham
vencido de maneira espetacular. O episódio, um divisor de água na história
de Roma, ficou imortalizado como a Batalha de Adrianópolis (que
aconteceu na região da atual Turquia). Nunca mais o mundo seria o
mesmo. Cem anos depois, entraria em colapso a maior força política e
militar de todos os tempos, o Império Romano do Ocidente – seu território
se estendia da Itália ao norte da África e ao Oriente Médio.

Alguns anos antes da batalha, os godos já haviam penetrado na Turquia,


saqueando cidades e provocando o caos. No ano de 378, pretendiam
derrubar as portas de Adrianópolis, próxima a Constantinopla (atual
Istambul), a capital do Império Romano do Oriente. Esse braço da
administração imperial havia sido criado em 330 para facilitar o controle
dos territórios na Europa Oriental, no norte da África, Turquia, Síria e
Iraque.

Os romanos acreditaram que, como no passado, seria fácil derrotar os


bárbaros. Então, como sempre, extrairiam um tratado de paz e teriam mais
um reino-cliente, que compraria mercadorias fabricadas em Roma e
cederiam guerreiros para lutar nas legiões quando fosse necessário. Mas
eles não contavam que os godos não estariam sozinhos. Ao lado deles, para
surpresa do imperador Valenciano, combatiam os temíveis hunos e os
alanos.➽

Quem eram os bárbaros?

Wikimedia Commons

Os antigos romanos consideravam bárbaros todos os povos que viviam


fora do limite do império. “Eles não sabiam ler, escrever e levavam uma
vida simples”, diz Peter Heather. Havia vários desses grupos espalhados
pela Europa, como os suevos, vândalos, ostrogodos, visigodos, francos,
alanos e hunos. Estes últimos eram considerados os mais letais de todos
os bárbaros. Seu maior chefe foi Átila. Após sua morte, em 453, os
hunos foram dominados por outras tribos e desapareceram.

➽ Por trás da estrondosa vitória de 378 houve mais, entretanto, do que o


fator surpresa. O desenvolvimento social, econômico e social das tribos
bárbaras e sua convivência durante séculos com os costumes romanos
explicariam, em grande parte, o sucesso na Batalha de Adrianópolis e nas
campanhas seguintes. Em suma, causas externas, e não internas, seriam os
principais responsáveis pelo desmoronamento da grande potência. Essa
visão, sustentada pelo prestigiado historiador inglês Peter Heather, da
Universidade de Oxford, contradiz as antigas versões sobre a queda do
Império Romano. Corrupção, colapso da economia e crise política?
Esqueça, afirma Heather em seu livro The Fall of the Roman Empire – A
New History of Rome and the Barbarian (“A Queda do Império Romano –
Uma Nova História de Roma e dos Bárbaros”).

Para Heather, a economia romana estava bem, a corrupção era algo


corriqueiro (e não era mais acentuada no final do império do que em seu
início) e as trocas de imperadores, que realmente existiram nos séculos 4 e
5, não seriam motivos suficientes para explicar o colapso de Roma, fato que
permanece como um dos maiores mistérios da Antiguidade. Afinal,
perguntam-se até hoje os historiadores, como foi possível que
rudimentares tribos bárbaras invadissem Roma? A resposta, para Heather,
está em dois pilares: as migrações de grandes grupos bárbaros na Europa
Oriental a partir do século 3 e a crescente sofisticação política, econômica e
social de povos como os godos e vândalos.

A tese, como seria de se esperar, suscita polêmicas. Para Richard Saller,


historiador da Universidade de Chicago e um dos maiores especialistas do
mundo em Roma antiga, o raciocínio de Heather não é muito convincente.
“A queda do Império Romano é uma questão muito grande e complicada
para ter só uma explicação. Se a economia e o poderio militar de Roma
estivessem crescendo, os ataques militares dos inimigos poderiam ter sido
repelidos”, analisa. Heather, por sua vez, sustenta que os povos bárbaros
mudaram, adotando uma organização política e uma nova inteligência que
levaram a batalhas como a de Adrianópolis. “Além disso, não é possível
afirmar que a economia de Roma estivesse mal. Foram tomadas, isso sim,
medidas emergenciais para que mais legiões pudessem ser financiadas
para vigiar as fronteiras no Oriente, então ameaçadas”, diz Heather.

Tudo havia começado, segundo o historiador inglês, com os bem-sucedidos


ataques persas às forças romanas estacionadas no Oriente, no século 3.
Pela primeira vez, os árabes representavam um obstáculo ao poderio do
império. Segundo Heather, a origem do problema estava na própria
dinâmica da hegemonia imperial. As repetidas vitórias das legiões na
região causaram uma crise de poder nas lideranças do atual Irã, até que, no
final do século 3, uma nova dinastia emergiu, os sassarianos. Eles
marcharam sobre a Mesopotâmia (na região do atual Iraque) com muito
mais eficiência do que seus antecessores, os arsacid. “O aparecimento de
um super-rival foi um grande choque”, diz Heather em seu livro. E Roma
precisava reagir.

Tempos de inflação

O grande desafio era mandar mais tropas para o Oriente, mas sem se
descuidar das fronteiras da Europa, que desde o século 2 sofria ataques dos
bárbaros. Mas era preciso criar recursos para financiar os reforços
militares que protegeriam a região da Mesopotâmia. A solução foi
desvalorizar a moeda, para ter mais dinheiro – aparecia aí, pela primeira
vez de que se tem notícia, a inflação – e aumentar os impostos. Outra
medida foi confiscar os recursos gerados pelas cidades – antes, os fundos
podiam ser administrados pelos governadores locais. Os ajustes foram
eficazes: em 298, os sassarianos finalmente foram derrotados.

E a economia não ficou em frangalhos depois disso? Para os adeptos da


tese de que Roma caiu por causa de reveses econômicos e políticos, sim.
Um dos defensores dessa interpretação é o historiador italiano Giovanni
Cipriani, da Universidade de Lecce. “Criou-se a inflação, os camponeses
ficaram mais pobres e antigos aliados de Roma, como os francos, não
tinham mais tanto interesse em defender o império”, afirma Cipriani.

Segundo Heather, não foi bem assim. As províncias romanas, como as


atuais França e Espanha, viviam na época um boom, com uma agricultura
florescente e importações crescentes de artigos romanos, como cerâmicas,
vidros, joias. Por isso, a vida econômica do império não teria sofrido uma
mudança tão grande a ponto de minar suas estruturas.

Para Heather, a grande questão é que, no século 4, a Europa vivia uma


revolução sem precedentes. Grandes migrações ocorriam no continente,
motivadas pelos avanços dos temidos hunos, uma tribo nômade originária
da Mongólia que passou a procurar novas terras na Europa Central,
expulsando os grupos de ali viviam. Ninguém sabe ao certo por que os
hunos resolveram deixar sua terra natal. Uma hipótese é que eles tenham
sido atraídos pela riqueza das vilas próximas às fronteiras do Império
Romano, que se beneficiavam da necessidade de vender alimentos para as
tropas romanas e fornecer serviços em geral.

Os hunos em ação / Wikimedia Commons

Por onde passavam, os hunos espalhavam o terror. Eles faziam uma


guerra-relâmpago, matando o maior número possível de pessoas em um
curto espaço de tempo. Não contentes, saqueavam tudo o que viam pela
frente. A primeira notícia de que os hunos estavam se aproximando, os
povos em seu caminho fugiam apavorados. “Os alanos escaparam,
empurrando os godos, que foram cair em cima dos romanos”, resumiu uma
fonte da época, o bispo Ambrósio, de Milão.
Algumas vezes, as lideranças mais fortes desses grupos faziam alianças
com os hunos, como na Batalha de Adrianópolis. De qualquer forma, o
contato com os mongóis, se por um lado trazia medo, por outro ensinou às
tribos europeias novas táticas de guerra. E, para a felicidade delas, a
necessidade de dobrar os resistentes persas tinha deixado as fronteiras da
Europa menos guarnecidas. O Império Romano como um todo havia se
voltado mais para o Oriente do que para o Ocidente. Os generais na Europa
se viram sem liderança, e teve início uma anarquia militar que durou 50
anos, até meados do século 4. “Mas observa-se que, mais uma vez, tratava-
se de problemas de ordem externa, e não interna”, diz Heather.

Bárbaros sofisticados

Para o azar dos romanos, nos últimos dois séculos os bárbaros haviam se
sofisticado, e muito – para os historiadores, incluindo Heather, isso
aconteceu em grande parte devido a uma convivência de séculos com
Roma. Eles ainda eram analfabetos, mas já tinham lideranças fortes e certa
coesão política – no passado, as tribos dificilmente se entediam entre si.
No plano econômico, haviam descoberto novas técnicas agrícolas que
aumentaram a produtividade, gerando riqueza. Além disso, as trocas
comerciais com o Império Romano trouxeram ainda mais recursos. Uma
elite se formava, pela primeira vez. E ela estava sedenta de autonomia
política e independência total em relação às forças romanas.

“Os imperadores resistiram durante dois ou três séculos, mas depois não
conseguiram mais segurar os bárbaros”, diz Heather. Nem todos
especialistas concordam com essa teoria. Para Richard Saller, da
Universidade de Chicago, se a economia do Império Romano estivesse em
melhor estado – sem inflação e pesados impostos –, talvez houvesse uma
possibilidade mais concreta de contra-atacar. “Mas, no século 5, já estava
decretado o destino de Roma”, afirma.

Para atingir seu objetivo, as tribos partiram para a guerra, e para valer,
frequentemente fazendo alianças entre si – outro fato inédito. Os piores
ataques foram comandados por líderes vândalos, alanos, suevos e godos,
entre os anos de 405 e 408. Eles invadiram as fronteiras junto ao rio
Danúbio e conquistaram a Espanha, a França e a Bélgica, então províncias
romanas. Os hunos também não deram trégua, obrigando as legiões a
combatê-los sistematicamente na região das atuais Áustria, Croácia,
Hungria e Eslovênia. Nesse cenário, um grupo de godos conseguiu invadir
Roma em agosto de 410, saqueando-a completamente por três dias. “O
mundo romano estava abalado em suas fundações”, escreve Heather em
sua obra.

Segundo o historiador, mesmo que quisessem as províncias não poderiam


revidar. Novamente, acredita Heather, o problema era gerado muito mais
fora do que dentro dos limites do Império Romano. Essa tese é
controversa. Para outros estudiosos do tema, os povos dominados, por
estarem descontentes com a política imperial, não resistiram tanto assim
aos ataques. “Foi tudo muito rápido. E posso dizer que na França, por
exemplo, já havia um desejo por autonomia, tanto é que alguns anos mais
tarde se formaram os feudos e as monarquias locais”, diz o italiano
Cipriani.

O Império Romano dava seu último suspiro no Ocidente. No Oriente, com


sua capital na Turquia, sobreviveria até 1453, quando os turcos otomanos
tomam Constantinopla. Emblematicamente, foi um líder meio huno, meio
germânico, Odoacro, que em 4 de setembro de 476 colocou o Império
Romano de joelhos. Ele obrigou o imperador Rômulo Augusto a renunciar,
com consentimento da administração da outra ponta do império, em
Constantinopla, e passou a ser o governador da Itália. Os romanos deixam
de ser os donos do Ocidente. Foi o fim da maior civilização que já havia
existido. “E, com certeza, não por decadência dos romanos”, afirma
Heather. “Mas sim graças a uma enorme força exterior que era impossível
combater.”

A vida em Roma do século 5


Luta de gladiadores no Coliseu / Wikimedia Commons

Como uma grande metrópole de hoje, a Roma do século 5 era uma


cidade pulsante, com 1 milhão de habitantes, repleta de palácios,
templos e locais de diversão. Depois de um dia de trabalho, um romano
típico ia dar uma espiada em uma das lutas no Coliseu. Até o final do
Império Romano, no ano 476, o anfiteatro funcionou a todo vapor.
Inaugurado por volta do ano 80 a.C., comportava até 55 mil
espectadores. Calcula-se que 200 mil gladiadores tenham morrido ali.
O Coliseu ficava no coração da cidade, ao lado do Fórum, onde se
desenrolava a vida política, econômica e jurídica de Roma. O ritmo
agitado do Fórum tinha como contrapartida as termas, onde a elite,
formada por proprietários de terra e membros do governo, iam
espairecer. A primeira delas, a de Caracala, foi construída no ano 217, e
a de Diocleciano, em 298. Esses prédios grandiosos, muitas vezes com
decoração primorosa, abrigavam não só o local para banhos, mas
também bibliotecas, bares, barbeiros, ginásios para a prática de
esportes e até galerias de arte. Depois de ler, conversar e se exercitar
nas termas, o cidadão romano contava com o conforto de ter água
corrente em casa – um luxo raro em outras partes do mundo. Mesmo
no Brasil, no século 18, os moradores do Rio de Janeiro, então capital
do país, tinham de percorrer longos caminhos para buscar água nos rios
e fontes. Em Roma, já no ano 312 a.C., era inaugurado o primeiro
aqueduto, o Aqua Appia, que levava água de fontes naturais de colinas
próximas até a cidade. A vida religiosa também era importante em
Roma, e os imperadores não hesitavam em mandar erguer templos. O
mais famoso deles era o Panteão, com suas colunas de 43 metros de
altura e o piso de mármore colorido. Os governantes também não
pensaram duas vezes em fazer estradas pavimentadas por onde
passavam as tropas. A primeira delas, aberta em 310 a.C., foi a Via
Appia, era por lá que as legiões entravam na cidade depois de uma
batalha vitoriosa. Como a Via Appia, outros testemunhos da Roma
antiga, como o Coliseu, as termas de Caracala, o Panteão e partes do
Fórum, todos ainda de pé, ajudam a contar uma história que ainda é
fascinante.

Saiba mais

The fall of the Roman Empire – a new history of Rome and the barbarian,
Peter Heather, 2006.

Poverty and leadership in the later Roman Empire, Peter Brown, 2001.

VEJA MAIS:

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