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Transformação - Naasom A.

Sousa

TRANSFORMAÇÃO – PARTE 1

Você estaria disposto a deixar sua família para ir defrontar-se com o perigo
absoluto e fulminante numa missão ordenada pelo Senhor?

Alan Xavier, sim. E mostra isso ao obedecer a um chamado do Deus


altíssimo, dispondo-se a sair de sua casa e encontrar Carlos, para pregar-
lhe a santa palavra e, em nome de Jesus, fazer com que se converta e
passe a seguir o caminho dos justos.
Contudo, Carlos, por sua vez, mostra-se um homicida e traficante
de drogas que, capturado pela própria quadrilha onde prestava seus
serviços, é envolvido em um audacioso plano para assassinar os dois
agentes de polícia mais condecorados da cidade e que há tempos tenta
desmascarar a imponente Quadrilha Vip e seu misterioso líder.
Porém, o intento dos traficantes fracassa quando o servo do Senhor
aparece, fazendo acontecer uma verdadeira reviravolta na vida de todos
os envolvidos e, junto com Carlos, de uma hora para outra, vê-se sendo
culpado pelo assassinato dos dois agentes policiais e literalmente caçado
pelos membros da impiedosa quadrilha, por toda a polícia e todos os
habitantes da cidade.
Será que Alan conseguirá livrar-se do encalço de seus
perseguidores?
E quanto a Carlos? Será que Alan alcançará seu íntimo com a
espada de dois gumes?
E o grande segredo da Quadrilha Vip? Conseguirá Alan e Carlos
desvendar esse segredo e por um fim no império do crime na cidade?

Naasom A. Sousa

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Transformação - Naasom A. Sousa

TRANSFORMAÇÃO
Naasom A. Sousa

PARTE 1

Edição Letras Santas


© Copyright - 2001 by Naasom A. Sousa
www.letrassantas.hpg.com.br

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Transformação - Naasom A. Sousa

Agradecimentos especiais:

Ofereço esta obra como uma homenagem


ao meu Senhor, pois sem Ele eu não seria capaz de
fazer coisa alguma.
Igualmente à minha família e especialmente
à minha querida esposa
Ivone de Sousa.

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Transformação - Naasom A. Sousa

“Então Pedro, tomando a palavra, disse: Eis que nós deixamos tudo,
e te seguimos; que receberemos?
E Jesus disse-lhes: Em verdade vos digo que vós, que me seguistes,
quando na regeneração, o Filho do Homem se assentar no trono da Sua
glória, também vós assentareis sobre doze tronos, para julgar as doze
tribos d’Israel.
E todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai,
ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras, por amor do Meu nome,
receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna.”
S. Mateus 19: 27-29

“Portanto agora nenhuma condenação há para os que estão em


Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito”.
Aos romanos 8:1

“E assim com confiança ousemos dizer: O Senhor é o meu ajudador.


E não temerei o que me possa fazer o homem”.
Hebreus 13: 8

“Então, a virgem se alegrará na dança, e também os jovens e os


velhos; tornarei o seu pranto em júbilo e os consolarei; TRANSFORMAREI
em regozijo e sua tristeza”.
Jeremias 31:13

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Prólogo

A profecia do Senhor veio até Alan Xavier por intermédio de Nilton


Cross:
— Em nome do Senhor dos exércitos te digo: Novamente estarás afrente do
propósito do Senhor. Pôe-te em pé espera a hora de Deus, pois essa hora é
chegada. Busca-o e tudo te será revelado. Irás ao encontro do perigo, mas não
temerás; Ele estará contigo onde quer que andares. Muitos serão os abismos para
te tragar, mas a mão do Senhor se estenderá e te livrará. Assim como Ele foi
contigo uma vez, novamente será e Ele será glorificado para todo sempre.
As lágrimas desceram quentes pelo rosto redondo de Alan e
repousaram sobre um dos grossos bancos da Primeira Igreja Cristã de
Melmar onde se encontrava a orar.
Naquela noite, na vigília da sexta-feira, ele exaltou a Deus por
escolhê-lo mais uma vez para receber sua Palavra e cumpri-la. Ele estaria
preparado, como da última vez.

&&&

Com a mente disturbada, o agente de polícia Caio Vieira estava com


o olhar tão presente quanto distante com a tórrida cena à sua frente. A
morte nos rodeia, pensou.
— Mais um, meu Deus! — Protestou, sem piscar.
Ao seu lado, não menos chocado, estava Pablo Tavares, seu
parceiro. Os dois encontravam-se ajoelhados ao lado de um corpo
carbonizado.

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— Com este já são vinte e um — afirmou Pablo, passando a mão


pelos cabelos loiros. Estudou a área em que estava: Um beco escuro e
mal cheiroso como vários espalhados pela cidade. Malditos becos,
praguejou, só servem para amontoar lixo e ser ponto certo para a desova de
corpos! Voltou-se para trás e pôde ver dois refletores iluminando o local
onde estavam. Alguns tiras se encontravam tendo dificuldades para
segurar os repórteres urubus. Neste momento pensou em Caroline. Ele
não se referia a ela. A fita amarela estava isolando a área do crime, e os
curiosos, mesmo à uma hora da madrugada, ainda teimavam em ficar
por detrás dela a fim de poder ter algo para contar aos seus amigos de
outros bairros ou familiares que moravam distante.
Seus olhos voltaram-se novamente para a figura retorcida à sua
frente. Tinham-no encontrado a exatamente quarenta minutos atrás.
Mais uma vez, o comunicado fôra dado por um membro da quadrilha
através de um telefonema. Pablo ainda se lembrava da voz grave aos
seus ouvidos e de tudo o que tinha dito e ouvido quando atendera:
— Alô, central de polícia de Melmar, Pablo falando…
— Você se deu bem mais uma vez, mas mais um morreu por sua
causa…
— Desgraçado!!!
— Ainda estão à procura do oficial Collina? Não precisam mais
procurar. Ele está no beco Boris Duter na rua 17. Esse é mais um
presente para você, herói.
Agora, Pablo fitava o seu presente. Sentiu vontade de gritar de ódio,
expor sua ira. Segurou-se. Notou que, como os anteriores, o distintivo
estava em cima do corpo enegrecido. Estendeu a mão com um lenço,
segurou a identificação de metal agora sem brilho e olhou a numeração.
A nova vítima, de fato, era Cássio Collina, oficial de polícia da cidade,
desaparecido durante a mais recente batida policial, liderada por Pablo,
à refinaria de drogas da conhecida e temida Quadrilha Vip — uma
organização que há alguns anos tem se dado o luxo de ser denominada
de a número um.
Sem tirar os olhos do distintivo do ex-policial, Pablo declarou:
— Às vezes fico pensando se isso um dia irá acontecer com um de
nós.
— Espero que não — replicou Caio.
Levantaram-se e Pablo colocou o distintivo dentro de um saquinho
plástico transparente, entregando-o em seguida a outro policial que se
aproximou.
—Foi tudo que encontrou? — Indagou o policial.

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— Hum-hum. Como das outras vezes.


Caio respirou fundo, observando o carro do legista se aproximar.
Pablo falou alguma coisa que ele não compreendeu.
— O que foi que disse?
— Disse que temos que pressionar aquele rapaz que prendemos na
batida.
— O único que restou você quer dizer.
—É.
—Também acho que devemos fazer isso.
Pablo deu uma última olhada em Cássio Collina, meneou a cabeça,
dizendo:
— Isso não pode continuar assim. Vinte e um já é um número alto
demais de policiais assassinados por esses crápulas.
Mas mais um morreu por sua causa…
Caio tocou o ombro do seu parceiro.
— Vamos pegá-los, Pablo.
— Temos que pegá-los, Caio — corrigiu Pablo —, senão eles com
certeza nos pegarão.

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Parte Um

A MISSÃO

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Capítulo 1

Quatro dias depois...

E ra uma noite escura, silenciosa e úmida na cidade de Melmar. 23h e


50mim, apontava o relógio da grande e imponente torre erigida na
praça central Celso Arques. As ruas estavam desertas e
assustadoramente cobertas por uma espessa neblina. Chovia, e todas as
pessoas se recolhiam às suas casas ou, acomodadas, já repousavam em
suas camas num sono reparador. Bem, pelo menos a grande maioria. A
minoria que ainda estava de olhos bem abertos, consistia de
sonâmbulos, casais recém-casados, ladrões à procura do “pão” diário,
fieis telespectadores do programa das onze e meia e, entre outros,
poucos evangélicos que, ajoelhados, ligavam-se com os céus, orando;
falando com o Senhor.
Alan Xavier era um daqueles que estavam em profundo contato
com o Altíssimo. Ajoelhado em sua casa, debruçava-se sobre o macio
sofá de veludo que decorava sua sala de estar e clamava a Deus,
esperando algo. Algo que Deus tinha-lhe prometido revelar. Certamente
seria algo de grande importância para o seu Criador. Deveria ser algo
glorioso. Aleluia!
Passou-se rapidamente mais alguns minutos e Alan permanecia em
plena ligação com a glória, esperando pelo chamado do Senhor. Seu
clamor era silencioso, não querendo assim, acordar sua esposa Melina e
seus três filhos.
Podia-se ouvir os pingos da chuva se chocando contra o telhado e
janelas da casa, criando um ininterrupto tamborilar que parecia mais
uma pequena banda de percussão. Iria ser uma noite daquelas que

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alguém dorme encolhido, coberto com um cobertor grosso para espantar


o frio.
De repente fez-se ouvir as badaladas do relógio pendurado na
parede da sala. Doze badaladas para ser exato. Avisando que um novo
dia acabava de chegar. E em meio ao clamor incessante de Alan,
ajoelhado na sala, o Senhor dos exércitos abriu as comportas do céu,
começando a falar e revelar o seu propósito para com seu servo.
Alan não mais clamava nem falava coisa alguma. Agora, somente
ouvia a voz de Deus.
Era maravilhoso ouvir a voz do Criador. Como João descrevera em
Apocalipse. Era como o som de muitas águas; uma trovejante voz, mas
calma e suave como a que Elias ouviu em Primeiras Reis.
Atentamente, Alan Xavier escutava e refletia em toda palavra que
vinha de Deus naquele momento, e, como esperava, era algo glorioso;
maravilhoso; espantoso. Era tremendo o plano do Senhor aos seus
ouvidos.
Estou aqui, Senhor, disse ele em seu consciente. Mais uma vez me
entrego em Tuas mãos e torno a me colocar à Tua disposição, novamente…
O Senhor continuava a revelar seus planos e seus propósitos,
compartilhando suas idéias e intenções. Alan se maravilhou com tudo o
que lhe era revelado, e no mais profundo do seu ser, ouviu a meiga voz
que lhe falou um simples nome: Carlos. revelou-lhe ainda o dia em que
seus desígnios e projeções iriam ser colocados em prática.
Gloria a Ti, Senhor! Louvou Alan. Aleluia!

&&&

Os ponteiros do relógio dourado pendurado na parede corriam e já


se aproximavam das duas horas da madrugada. A chuva continuava a
cair lá fora, irrigando as árvores e encharcando as ruas que com certeza
amanheceriam engarrafadas.
Alan estava deitado no sofá. Agora, deixando que as lágrimas de
emoção escorressem por seu rosto. A voz maravilhosa tinha ido embora.
O recado estava entregue, e bem entregue.
— Carlos — pronunciou em voz inaudível.
Como será ele? Especulou Alan com um suspiro. Pensou em tudo o
que o Senhor lhe tinha dito e revelado, os planos para com Carlos e para
consigo próprio. Mas então, se conscientizou que para alcançar êxito
teria que passar por perigos fulminantes e implacáveis. Alan pensou
subitamente em Joás, Vitória, Fábio e Andrey, e também nos diversos

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momentos perigosos que enfrentou para fazer com que se achassem e


vivessem. Relembrou o quanto fôra difícil para que o trabalho fosse bem
sucedido. Mas sabia que desta vez era diferente. A batalha iria ser mais
árdua e proporcionalmente mais perigosa.
Alan fechou os olhos e um salmo ocupou toda a sua mente,
dissipando todo pensamento conturbante:
Aquele que habita no esconderijo do altíssimo, à sombra do Onipotente
descansará. Direi ao Senhor: Ele é o meu refúgio e a minha fortaleza, o meu
Deus, em quem confio. Certamente Ele te livrará do laço do passarinheiro e da
peste perniciosa. Ele te cobrirá com as suas penas, e debaixo das suas asas
estarás seguro; a sua fidelidade será teu escudo e broquel. Não temerás o terror
noturno, nem a seta que voa de dia, nem a peste que anda na escuridão, nem a
praga que destrói ao meio-dia. Mil cairão ao teu lado, dez mil à tua direita, mas
tu não serás atingido. Somente com os teus olhos contemplarás, e verás a
recompensa dos ímpios…

&&&

Manhã. Os primeiros raios de sol já despontavam sobre os telhados


de algumas casas e os pássaros iniciavam seus frenéticos e animados
louvores, cantarolando ao sobrevoar as árvores ou assentados em seus
galhos. Seus piados soavam bem alto, tanto que conseguiam assim
acordar alguns moradores do bairro Atlântico. Isso incluía a Sra. Xavier,
que acabava de despertar de seu tranqüilo e pesado sono.
— Vocês podem dizer o que têm contra alguém que quer dormir
um pouco mais do que os senhores e as senhoras, hein? — resmungou
Melina, deitada em sua cama, cobrindo a cabeça com o travesseiro,
tentando abafar o cantarolar dos pássaros que se acomodavam em uma
árvore em frente à janela do seu quarto. Arrependeu-se de ter deixado a
janela entreaberta para que pudesse entrar um pouco de ar fresco
durante a chuva da noite passada a fim de não deixar assim o ar preso e
quente sufocá-la. Agora sofria as conseqüências. — Como posso dormir
com vocês fazendo todo esse barulho?
Pôs mais pressão sobre o travesseiro, abafando mais o som e tentou
pegar no sono outra vez — já que estava com preguiça de se levantar e
fechar totalmente a janela. — Mas com os passarinhos cantando
sonoramente e sem parar de frente à sua cama, não conseguiu mais
pregar os olhos.
— Vocês não cansam? — protestou, olhando para as pequeninas
aves. — desse jeito vão acabar acordando o Alan também— Ela olhou

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para o lado para constatar que seu marido ainda dormia, e o que viu foi
um lugar vazio. Alan não estava ali como pensara. — O que aconteceu?
— perguntou-se. — Acordado tão cedo?
Olhou para o relógio que trabalhava em cima do criado mudo e
observou as horas: 5h e 47mim. É costume dele acordar somente às seis e
meia! Pensou ela. Levantou-se da cama, pegou o robe e vestiu por cima
de sua camisola de seda cor-de-vinho. Iniciou uma caminhada pela casa
à procura de Alan.
— Amor, Onde você está?
Melina caminhou pelo corredor, perguntando a si mesma o por quê
de Alan ter levantado da cama àquela hora. Postou-se afrente do quarto
dos garotos, abriu lentamente a porta e varreu o recinto com o olhar.
Jaime e Jair dormiam tranqüilos em sua beliche. Pensou que talvez Alan
poderia ter vindo vê-los, como às vezes fazia, mas desta vez ele não
estava lá. Sorriu ao ver o sono sem interrupções dos seus filhos. Sorte de
vocês não ter uma árvore em frente à janela deste quarto, pensou. Saiu do
quarto na ponta dos pés e fechou a porta silenciosamente. Dirigiu-se ao
quarto de Jéssica, sua filha de seis anos. Abriu a porta e viu apenas a
linda menina com seus castanhos cabelos cacheados mergulhada num
sono profundo, aconchegada debaixo do cobertor, chupando o dedo.
Melina fechou a porta vagarosamente e atravessou a sala de jantar,
observando a mesa de vidro e as seis cadeiras que a rodeavam, assim
como o grande móvel de madeira colonial que guardava a porcelana, os
copos, as taças de cristal e os talheres. Caminhou até a sala e, chegando
lá, a primeira coisa que viu foi Alan dormindo no sofá, tão encolhido
quanto podia. Aproximou-se do sofá, sentou-se no chão e, de mansinho,
beijou seu marido no olho direito.
Alan remexeu o corpo inconscientemente e balbuciou:
— Carlos… Carlos…
Melina arregalou os olhos e num brado protestou:
— Ei, o que significa isso? Quem é Carlos?
Alan despertou e teve que se segurar para não cair do sofá.
— O que está acontecendo Melina? — Perguntou ele. — Por que
todo esse alarme?
— Eu que pergunto o que está acontecendo aqui, amor! Primeiro me
acordo e você não está na cama ao meu lado, aliás, pelo estado que a
encontrei, nem ao menos chegou a dormir nela. Então, encontro você na
sala, dormindo no sofá, podendo o senhor, estar em sua cama,
confortável e aquecido. Por fim, dou-lhe um beijo, e o que acontece?
Você, dormindo, chama por Carlos !

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— Eu chamei por Carlos, enquanto dormia?


— Sim. Foi só eu te dar um beijo. O que significa isso? — Melina
sorriu. — Algum Carlos anda te beijando por aí, é? — brincou.
Alan gargalhou.
— Com certeza não, meu amor.
— O que é então?
— É uma estória… hum… um tanto longa.
— Eu acho que eu mereço uma explicaçãozinha, por mais que seja…
um tanto longa.
— Está certo. Mas primeiro — Alan abraçou Melina e beijou-a nos
lábios — tenho que dizer que te amo.
— Também te amo, querido.
E Alan começou um relatório à Melina sobre tudo o que havia
acontecido na noite anterior: Mais uma espera pela revelação divina; a
oração à noite, adentrando outro dia; a voz do Senhor dizendo o que lhe
tinha reservado; Seus planos; a revelação; e, finalmente, o nome que
Deus lhe dera e o dia estipulado para o inicio da concretização dos Seus
planos.
— E isso tudo aconteceu ontem à noite? — Perguntou Melina,
Maravilhada.
— Aconteceu. Quando você e as crianças já estavam dormindo.
Levantei da cama e vim falar com o Senhor aqui na sala, e então,
aconteceu tudo isso que você acabou de ouvir.
— Isso significa que é mais uma missão.
— É, eu acho que sim.
Melina pegou as mãos de Alan nas suas, fitou-o nos olhos e disse,
emocionada:
— Glória a Deus por isso, querido.

&&&

A Central de Polícia de Melmar era localizada bem no meio da


cidade. Era uma construção de tijolos bastante grande, um edifício de
três andares vistoso e bonito apesar de ser o lugar onde iria parar toda a
escória da cidade. Bem no alto do edifício, podia-se ver um grande
logotipo com o brasão e nome da central. A entrada era ampla, assim
como o estacionamento que a rodeava. A imensa porta por onde todos
tinham que passar primeiro, era de puro vidro e à prova de balas com as
bordas de mogno cuidadosamente envernizada. Todo o piso era de fina
cerâmica e todos os móveis eram de fino colonial bem acabados.

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Aquele dia havia começado muito agitado e corrido, com mais de


dez prisões em menos de duas horas. Pelo jeito, o dia iria ser “daqueles”
para todos os tiras da cidade que, ultimamente, andava muito violenta.
Os criminosos estavam mais impiedosos e dando muito trabalho a
todos. Mas afinal, isso era a química que fazia o mundo girar, diziam
todos os uniformizados da central.

&&&

— Veja só isto — disse Pablo Tavares a seu parceiro Caio Tavares,


enfiando a mão no bolso da jaqueta de couro, e fechando a porta atrás de
si ao entrar em sua sala que ficava no segundo andar da central.
Pablo era um homem alto e corpulento, tinha uma cara muito
fechada, porém era um tanto bonito. Seus olhos verdes claros chamava
bastante atenção, e seu cabelo louro cooperava para dar mais ênfase ao
seu charme inconsciente.
— O que você conseguiu desta vez? — indagou Caio Tavares,
agente da divisão de narcóticos com quem Pablo dividia a sala onde se
encontravam no momento. Um homem esperto e divertido que às vezes
exagerava em suas brincadeiras, de cabelos castanhos levemente
ondulados e bem aparados, olhos de um escuro profundo irresistível e
lábios carnudos que quase sempre se ocupavam com um cigarro.
Pablo Puxou do bolso um pedaço de papel e mostrou ao parceiro (
que agora não se encontrava fumando).
— Um número de telefone? — arriscou Caio.
— Exatamente.
— O novo número de Carol?
Pablo fez cara de decepcionado, como esperasse mais eficiência nos
pensamentos de Caio.
— Errou por muito. Isso não é nada-mais-nada-menos do que o
número de contato da quadrilha. Aquele rapaz que prendemos não
suportou a pressão e me soltou esse número.
— Espero que esteja certo — murmurou Caio.
— Está sim — replicou Pablo, sorrindo sinistramente —, eu posso
lhe garantir.
— É mesmo?
— Hum-hum. Eu alertei-o de que se este número não estivesse
correto, iria colocá-lo na mesma cela que o Big Lu.
Caio conhecia Big Lu. Era um negro enorme que abusava
sexualmente de seus parceiros de cela.

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— Você o quê? — perguntou cético.


— Ei, Brincadeirinha, rapaz! Eu tinha de dizer algo que metesse
medo no garoto! Mas afinal, consegui o número ou não? — Explicou-se
Pablo.
— Vamos ver.
— Cala a boca e liga logo esse número de uma vez!
Caio discou o número bem devagar para não errar e pôde observar
a expectativa no olhar de seu parceiro.
— Está chamando — disse Caio, desnecessariamente, pois Pablo
também estava com a orelha colada ao fone, ao seu lado.
Ao terceiro chamado atenderam:
— Alô, quem fala? — Berrou a voz do outro lado da linha.
Caio entregou o fone para Pablo.
— Olá, senhor…
— O que é que você quer? — Perguntou a voz firme.
— Ei, espere aí, meu chapa! — Berrou Pablo. — Se você não quer
fazer um grande negócio, tudo bem pra mim. Mas garanto que irá se
arrepender muito se gritar mais uma vez e espantar esse grande
comprador que está falando com você, camarada.
— Comprador? Cara, do que você está falando? — o tom da voz era
o de uma pessoa que parecia confusa. — pra começo de conversa, aqui
não vendemos nada!
— Quer dizer que meu informante se enganou? — murmurou o
agente policial. — Isso me parece impossível.
Houve um instante de silêncio do outro lado da linha.
— Quem é o seu informante? — soou a voz novamente, sem deixar
escapar um ar de interesse.
— Desculpe-me, meu amigo, mas isso é confidencial. Se ele
descobre que mencionei seu nome em uma negociação, nunca mais
tornará a fazer qualquer acordo comigo. Você me entende.
— Quem irá falar para ele sobre o que aconteceu aqui? Você? — riu
a pessoa atrás do telefone. — E outra coisa: se você não disser o nome
dele, não haverá negociação alguma.
Mais um segundo de silêncio, mas foi a vez de Pablo, que teve que
ceder para não deixar o momento escapar por entre os dedos. Sabia que
se não falasse, a pessoa desligaria e jogaria o telefone fora, e talvez,
nunca mais voltaria a conseguir o número do novo telefone.
— Tudo bem — disse.
— Ótimo. Qual o nome?

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Pablo voltou-se para seu parceiro e deu de ombros. Caio entendeu


que precisava de sua ajuda. Indicou baixinho:
— Marco. Soa bem bandido.
Pablo repetiu o nome inventado de última hora depois de um
minuto de hesitação, ouvindo algo dentro de si gritando que aquilo era
loucura. Mas que escolha tinha, afinal?
Então pôde ouvir a pessoa com quem conversava pelo telefone
murmurar:
— Marco?
Pablo sentiu um grande impulso de dizer que havia se enganado e
arriscar outro nome, mas passou a ouvir a voz ao fone, que começava a
dizer:
— Foi o Marco quem lhe deu esse número?
A poeira parecia querer assentar. O nome aparentava ser conhecido.
— Bem… Sim.
— Tem certeza?
Meu Deus! Claro que não!
— Sim.
Silêncio.
— Bem… Marco é um idiota, mas nunca apresentou alguém que
desse cano na gente. Diga, Sr. “Grande Comprador”, o que deseja
conosco?
Pablo não podia acreditar que aquela doidice tinha dado certo. A
sorte estaria do seu lado? Estaria tudo caminhando para um bom final?
Perguntou-se.
— Como um grande comprador, estou interessado numa coisa que
vocês têm para vender e, já que mencionamos Marco, já deve saber a que
estou me referindo.
— É mesmo? E se eu for um retardado mental completo?
— Ora vamos, amigo, sabe que estou falando de uma branquinha
colombiana — falou Pablo, olhando para Caio, este balançando a cabeça
em total aprovação.
O fone tornou a ficar mudo por algum momento, como quem quer
que estivesse do outro lado da linha pensasse seriamente no assunto. E
realmente estava, e os dois agentes sabiam disso. Por isso esperaram
pacientemente até que voltaram a ouvir a voz pelo aparelho.
— Já deu para perceber que você é bem direto. Então, diretamente,
quanto você tem para negociar?
— O bastante pra comprar a sua maleta mais funda e larga cheia de
pó. Que tal?

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Transformação - Naasom A. Sousa

Houve mais uma pausa, mas não demorou muito para Pablo obter
uma resposta.
— Muito bem, está certo — disse a voz no telefone.
— Ótimo — exclamou Pablo piscando o olho para Caio.
Então sentiu a voz do traficante parecer mais descontraída quando
se colocou a argumentar:
— Olha, vamos fazer o seguinte: Eu estou aqui com um estoque
meio grande e estou querendo me desfazer rápido de alguns quilos.
Sabe como dizem: “se amontoar, é possível que sintam o cheiro”. E já
que eu estou com pressa e pelo seu papo, acho que você também, vamos
fazer o negócio o mais rápido possível, ok?
— Pra mim tudo bem — falou Pablo.
— Certo. Então me encontre na esquina da rua Clintel com a rua
Treze, amanhã, lá pela meia-noite e meia. Leve a sua grana e eu levarei a
minha maleta mais larga e funda cheia de branquinha pra você,
Senhor…
— Silveira — sussurrou Caio para o seu parceiro.
— Pode me chamar de Silveira — disse Pablo ao traficante. — E
você? Como se chama?
— Como me chamo? Me chamo Carlos.

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Capítulo 2

A noite chegou outra vez, e com ela também os vândalos, assaltantes,


assassinos e, entre outros, os traficantes. Mais uma vez, as ruas estavam
vazias; os habitantes novamente em suas casas. E como muitas outras, a
esquina da rua Treze com a Clintel estava na penumbra, sinistra e sem
nenhum transeunte abandonado no mundo à vista.
O perímetro escolhido pelo traficante era extremamente propício para o
negócio marcado para logo mais. Nada de pessoas de lá para cá, isto é,
testemunhas ou interferências de policiais, pois era um local distante de
qualquer centro movimentado dos bairros da cidade.
Os dois agentes se aproximaram da esquina à bordo do carro particular
de Caio, os olhos varrendo toda a área ao redor, atentos à qualquer
movimento suspeito. Caio, ao volante, estacionou seu Ford no meio-fio, ao
lado da placa que indicava o nome das ruas onde haviam marcado o
encontro. Pablo olhou para o seu relógio. Já era zero hora e vinte e cinco
minutos.
— Acho que não chegaram ainda — disse Caio.
— Ou talvez sim — alertou Pablo olhando de um lado para o outro —,
e estão nos observando escondidos em algum lugar aqui próximo.
Subitamente, notaram que luzes começavam a clarear ao longe e se
aproximavam deles pela rua Treze. Pablo percebeu que eram luzes de faróis
de automóvel.
— Chegaram — disse ele.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Os dois agentes saíram do carro enquanto os traficantes estacionavam


bem perto deles. Depois de pararem, as quatro portas do veículo — uma
limusine — se abriram e saíram seis homens do interior do veículo. Um
deles era meio careca, um outro tinha uma cara carrancuda e muito
barbada, o que viera dirigindo parecia o Stallone de tão forte, o que estivera
ao seu lado não tinha nada de especial a não ser por uma enorme cicatriz no
rosto e os outros dois, os últimos a sair, estavam mais bem trajados e
cheiravam muito melhor que os outros quatro. Pablo logo fitou-os com um
olhar especulativo, pois sabia que, pelo jeito, eles eram os cabeças do grupo.
Aliás, um dos dois poderia ser o Vip.
O grupo de traficantes aproximou-se dos agentes disfarçados e um dos
homens bem trajados — o que parecia mais concentrado no que estava
fazendo — falou aos dois:
— Muito bem, quem é Silveira dos dois?
— Sou eu — respondeu Pablo. — Você é Carlos?
O traficante olhou de relance para o outro ao seu lado, que também
estava bem trajado e viu quando este tirou uma correntinha de ouro com
um anel de noivado preso a ela de dentro do bolso do terno e balançou na
ponta do dedo indicador. Respondeu:
— Sim, sou eu mesmo.

&&&

Ainda era de tarde quando Alan Xavier saiu de casa. Deus lhe falara
que aquele era o dia. O dia da sua missão. Alan falou a Melina o que Deus o
havia dito, e Melina não sabia se ficava alegre ou triste, pois sabia que o
propósito era de Deus. Porém o que estava prestes para acontecer era muito
perigoso, ela bem o sabia.
— Você vai voltar logo pra mim, não vai? — Perguntou Melina
abraçando forte o seu marido.
— Melina, eu… eu realmente… não sei. O senhor me deu essa missão,
me revelou o que eu deveria fazer, me deu o nome de uma pessoa a quem
eu deveria encontrar e instruir-lhe sobre a Palavra de Deus e me disse aonde
irei encontrá-la — Alan fez uma pequena pausa e continuou: — O senhor
também me falou o que irá acontecer com essa pessoa se eu completar
minha missão, mas… Ele não me revelou se eu voltaria… ou não.
Melina olhou diretamente nos olhos de Alan. Lágrimas começaram a
escorrer pelo seu rosto.
— Eu não suportaria perder você, Alan, meu amor… — ela parou para
tomar um pouco de ar. — Mas seja feita a vontade de Deus.

20
Transformação - Naasom A. Sousa

Alan deu um estreito sorriso e um abraço caloroso em sua flor, como


costumava chamar Melina.
— Eu te amo, Melina. Eu sei que já falei isso um milhão de vezes,
mas… a cada dia eu te amo mais e mais e mais… — nesse momento, a porta
da frente foi rompida e chegaram correndo Jaime, Jair e Jéssica da escola.
Alan abraçou e beijou a todos, e depois disse:
— Queridos, irei fazer um viagem, mas … — ele olhou para Melina
antes de continuar: — Voltarei assim que puder, ok?
Os três responderam simultâneos: — Tá bem, papai.
Alan pegou sua bolsa contendo algumas roupas, deu um beijo em
Melina — Talvez seja o último, pensou ele — e saiu de casa.
Alguns minutos depois, Alan estava na igreja. Ajoelhado, ele orava ao
Senhor, clamava em Seu Nome e dizia em sussurros: Seja feita a Tua vontade
meu Deus, cubra-me com o Teu sangue e põe-Te na minha frente. Pois confio
plenamente em Ti.
Ele passou mais de duas horas clamando e louvando ao Senhor no
templo da Primeira Igreja Cristã de Melmar onde se congregava, depois saiu
e andou pelas ruas da cidade até chegar a hora exata de ir ao lugar que Deus
lhe havia revelado.

&&&

A hora chegara. Alan dirigiu-se ao local onde tudo iria começar. Ele
ficou encostado num poste na rua treze à uns cem metros da esquina com a
rua Clintel. Estava um tanto escuro e as sombras o camuflavam, para sua
tranquilidade.
Ele viu um carro com dois homens dentro aproximar-se e parar na
esquina. Depois observou outro carro se aproximar do primeiro e de dentro
sair seis homens que se encontraram com os outros dois. Ele ouviu toda a
conversa. Tudo o que eles disseram, Alan guardou na mente. Mas o que
chamou sua atenção na conversa foi quando um dos dois homens
perguntou à um dos seis que estava muito bem trajado:
— Você é Carlos?
O outro respondeu:
— Sim, sou eu mesmo.

&&&

Pablo foi o primeiro a entrar no assunto das drogas. Assim não irão
pensar que estou enrolando, Pensou ele.

21
Transformação - Naasom A. Sousa

— Quantos quilos vocês trouxeram para negociarmos?


— Vinte e cinco quilos, e algumas gramas de franquia. O que acha? —
gabou-se o que estava com a corrente entre os dedos. — Assim acho que
poderemos, no futuro, fazer mais grandes transações como esta.
É isso aí, eu tenho certeza que isso irá acontecer. Mas na cadeia, seu canalha,
pensou Pablo.
— Ei, e o seu amigo aí, o que ele faz? — Perguntou o da corrente.
— Trabalhamos juntos — respondeu Caio. — Somos primos e de certa
maneira muito apegados um ao outro. Nos negócios, eu compro e ele trata
de vender, mas hoje resolveu aprender como faço minha parte.
O traficante olhou para os outros e disse em tom de gracejo: — Eu sei,
trabalham juntos, não é?
Pablo não sabia se aquilo era um bom ou mau sinal. Ele sabia que estes
traficantes eram inescrupulosos, e não deixavam rastros; somente corpos
ensangüentados ou carbonizados assim como fizeram com Cássio. Estava se
arrependendo de ter deixado o recado com a atendente da central para que
os reforços chegassem ao local meia hora a partir de quando ele desligasse o
telefone — isso acontecera à dez minutos atrás, antes de chegarem até ali.
Pablo planejara abordar os bandidos quando os reforços chegassem, mas
agora seu tempo se esgotava, pois parecia que estavam ficando impacientes.
— Como é, cadê a grana? — Perguntou Carlos. — Tenho outros
assuntos para tratar ainda esta noite e não pretendo me prolongar aqui. —
ele olhou novamente para o companheiro que ainda segurava na mão a
correntinha com o anel.
— Ok, vamos pegar no carro. Deixei o dinheiro lá — disse Pablo.
Caio olhou para o parceiro e também percebeu que tudo estava saindo
fora de controle. Então concordou com Pablo.
— Certo, vamos acabar logo com isso.

&&&

Alan ainda se postava a cem metros de distância do grupo. Observava


e escutava tudo, apenas esperando a ordem de Deus. A ordem de partida
para mais uma missão. Essa porém, muito mais perigosa e implacável.

&&&

Pablo e Caio se encaminharam na direção do carro com passos largos e


incertos. Caio parecia nervoso quando perguntou ao parceiro:

22
Transformação - Naasom A. Sousa

— O que está acontecendo? Isto está saindo fora do nosso controle, não
é? O que vamos fazer agora?
Pablo — que aparentemente parecia mais tranqüilo, mas nem tanto —
não abriu sua boca. Apenas caminhava na direção do carro. Tentava
pensar, bolar algum meio de distrair os traficantes até que os reforços
chegassem, mas não conseguia, estava preocupado de mais para isso. Tudo
estava muito fácil e rápido demais.
Como fui fazer o que fiz? Por que não chamei os reforços imediatamente?
Pensou Pablo. Sempre fui um dos policiais mais vivos e espertos da central, mas
acho que agora… Cometi o maior erro da minha vida.
Pablo olhou rápido para traz e viu Carlos e o outro traficante bem
trajado conversando. Parecia mais uma discussão.
Pablo voltou-se para Caio:
— Parece que estão discutindo. Não sei por quê, mas pelo menos assim
ganhamos um pouco de tempo.
De repente uma luz ofuscante foi acesa e encandeou os olhos dos dois
policiais, deixando-os sem visão.
— O que é isso? — Perguntou Caio.
— Não sei — Pablo olhou outra vez para trás e observou o traficante
bem trajado socar Carlos com força bem no meio da barriga e este cair no
chão. — Meu Deus! O que está acontecendo?
A luz diminuiu de intensidade, e Pablo e Caio perceberam que ela viera
dos faróis de outro carro que se aproximara deles.
— São dos nossos? — indagou Caio.
— Não, Caio. Talvez aliados dos nossos inimigos — replicou Pablo. Ele
tentou olhar para traz mais uma vez, mas subitamente foi acertado por um
potente soco por um dos traficantes que havia se aproximado rapidamente
sem que percebesse.
Caio viu o que acontecera e tentou reagir, mas o traficante com a
correntinha na mão puxou um revólver do bolso do paletó e de onde estava
desferiu um tiro certeiro contra o peito esquerdo de Caio, que caiu
imediatamente se esvaindo em sangue.
Pablo arregalou os olhos repletos de susto e pavor, descrente do que
via diante de seus olhos.
— NNNNÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOO!!!!
O traficante deu uma grande gargalhada e disse zombeteiro:
— Você acha que eu iria cair na sua, Sr. agente? Você pode não me
conhecer, mas eu lhe conheço a muito tempo, você e esse seu parceirozinho.
Pensei que vocês fossem mais espertos. Vocês vinham destruindo meus
pontos de distribuição de coca e eu sou bem informado, sabia? Leio muitos

23
Transformação - Naasom A. Sousa

jornais e vejo muito noticiário. A imagem de vocês constantemente sai


estampada nos dois, sempre com uma frase ao lado dizendo: “Os policiais,
Pablo Tavares e Caio Vieira, acabam mais uma vez com outro ponto de
venda de drogas”, isto é, os meus pontos de drogas.
— Mude de vida, então não o perturbarei mais — disse Pablo.
— Não, Sr. Tavares, não vou precisar fazer isso. Você não vai mais me
incomodar, e… — ele olhou na direção de Caio estirado imóvel no chão. —
O seu parceiro principalmente.
— Ora, seu… — Pablo ia se levantando para atacar o traficante, mas
este apontou a arma para o meio de sua cabeça, então se viu forçado a ficar
imóvel no chão úmido.
O traficante voltou o olhar para os outros bandidos e fez um gesto com
a cabeça. Os homens levantaram Carlos que ainda encontrava-se no chão
por causa do violento soco que recebera e o levaram até seu chefe.
— Você conhece Carlos? Acho que não — disse ele a Pablo. — Mas,
aposto que gostaria de saber o por quê de nossa discussão, não? Felizmente,
para mim, você não vai saber.
O traficante apontou a arma para Pablo e olhou para o carro que havia
chegado a pouco tempo e que ainda exibia as luzes dos faróis acesas.
— Podem sair e ver de perto eu dar um fim nele. Vai ser muito
interessante — disse sorridente o bandido bem trajado.
Três homens saíram de dentro do carro. Todos pareciam estar na faixa
dos quarenta anos. De ternos e gravatas, davam impressão de serem gente
da alta sociedade.
— Muito bem, já que você está prestes à partir com destino a outro
mundo; o outro lado desta vida, se é que isso existe, vou fazer uma
apresentação rápida dos meus amigos — disse o traficante.
— Esse já de cabelos brancos é Charles Conte. Você desativou um
armazém de refinamento de drogas dele no mês passado. Ele está de
cabelos brancos por culpa sua e quer que você pague por isso. — Ele
apontou para outro homem. — Esse mais corpulento é Junior Cigalli. Você
interceptou um grande carregamento de drogas dele à quatro meses atrás.
Ele está muito furioso com você, Tavares. — Ele olhou para Pablo e depois
apontou para o último homem. Era um homem bem afeiçoado, com cabelos
lisos, levemente penteados para traz, e no momento esbanjava um sorriso
sarcástico. — Este… — continuou o traficante. — É Henrique Frezan. Você
vem dando trabalho pra ele também. Não tanto quanto para nós, mas os
prejuízos dele foram bem grandes, e ele também quer se ver livre de você,
caro agente.

24
Transformação - Naasom A. Sousa

&&&

VAI!
A ordem veio. Alan desencostou-se do poste e começou a caminhar na
direção de Pablo, Carlos e dos outros homens.
— Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; a tua lei está dentro
do meu coração.

&&&

Pablo fitou cada um dos poderosos homens, olhou para o traficante


outra vez e disse:
— Você me apresentou essas peças todas, mas não me apresentou o
mais sujo de todos: você.
O traficante riu.
— Ah! É verdade, desculpe-me. Meu nome é Lucas Ranson, trabalho
há tempos com o Vip que você tanto tem perseguido. Ele não pôde vir,
então me mandou junto com Carlos para negociarmos, ou melhor, livrarmo-
nos de você.
Lucas estava correto. Há muito tempo Pablo vem tentando pegar o Vip.
O “grande” traficante. Falado e temido por todos, pois cresceu da noite para
o dia no mundo do tráfico, e todos os que entraram ou tentaram entrar em
seu caminho foram exterminados. O pior de tudo é que ninguém sabia ao
menos a sua identidade, ao não ser seus comparsas mais confiáveis. Pablo
estava crente de que Vip viria esta noite. Segundo traficantes a quem Pablo
havia prendido e que faziam parte da Quadrilha Vip, o próprio Vip fazia as
grandes transações, tendo sempre o cuidado para que nenhum dos
compradores o visse seu rosto. Ele sempre usava algum disfarce ou capuz.
Na verdade, ele era um mito nas rodas do crime organizado e isso não se
discutia. Agora Pablo caia em si. Todas as informações obtidas com os
homens ligados à quadrilha eram falsas. Tinham-no enganado; estavam
conduzindo-o para aquela armadilha. Oh, Deus!
— Assim não vamos mais nos preocupar com você, agente Tavares
— continuou Lucas. — Você vai sair do mapa assim como o seu amigo
Caio Vieira — ele olhou para Carlos. — E Carlos vai fazer isso por nós.
Não é mesmo Carlos?
— Seu maníaco — disse Carlos, manifestando-se. — Eu confiei em
você, eu…

25
Transformação - Naasom A. Sousa

— Ah-ah. Não, não — Lucas abriu a mão e fez Carlos ver na palma a
correntinha de ouro com o anel preso a ela. Carlos se calou. — Você fez uma
coisa muito feia, Carlos. Ficamos muito entristecidos com você.
— Nada disso, Lucas — reclamou Carlos. — Vocês me enganaram. Eu
só queria dar o melhor de mim à quadrilha e vocês não quiseram. Ao invés
disso quiseram me descartar, livrar-se de mim. Foi aí que eu tive que…
— Basta! — interrompeu Lucas. — Tudo vai acabar logo. — Ele
apontou a arma para Pablo e engatilhou-a. — Quero lhe dizer, caro agente,
que Vip não sentirá a sua falta, ou melhor, nenhum de nós sentiremos.
— Ei, não faça isso! — ecoou uma voz ao longe, fantasmagórica.
Todos olharam para onde vinha a voz. Era apenas um homem. Um
mendigo, talvez. Mas estava com roupas novas e limpas, então concluíram
que isso estava fora de questão.
Carlos aproveitou o momento em que todos estavam distraídos
olhando para o homem. Soltou-se das mãos dos traficantes e saltou sobre
Lucas. Seu estado era de extrema ira e parecia querer fazer de tudo para
Lucas não concretizar o que estava planejando fazer. Carlos segurou-o
firmemente. Com uma mão imobilizou o braço o qual empulhava a arma e
com a outra segurou o pescoço de Lucas. Os dois caíram e rolaram no chão
de um lado para o outro. Carlos soltou o pescoço de Lucas e meteu a mão
rapidamente num dos bolsos do terno de seu oponente. Então puxou uma
fita k-7 e colocou no bolso do seu paletó.
Lucas viu todos estupefatos, apenas olhando eles brigarem, a raiva
corroeu-lhe o íntimo. Seus subordinados estavam impressionados com a
briga e não faziam nada para protegê-lo. Ele deu um berro:
— Não fiquem aí parados olhando, seus imbecis, tire esse imundo de
cima de mim e peguem aquele homem — apontou para Alan.
No mesmo instante fez-se ouvir o barulho de sirenes. Os reforços estão
chegando, pensou Pablo. Todos se imobilizaram outra vez, sabendo que o
tempo se esgotava. A cavalaria estava se aproximando.
— Droga! — exclamou Lucas. — Vamos, tire ele de cima de mim!
Os bandidos tiraram Carlos de cima de Lucas com um sopapo. Carlos
caiu de lado, desnorteado. Lucas se levantou se debatendo para tirar a
poeira do terno, dirigiu-se até o traidor.
— Sempre você tem que ser assim, não é Carlos? Sempre o valentão,
mas sempre fazendo as coisas erradas? Vip não…
Carlos o interrompeu dizendo:
— Que Vip que nada, seu…

26
Transformação - Naasom A. Sousa

Antes que pudesse completar a frase, Carlos foi silenciado por um


chute na cabeça, desferido por um dos traficantes. Lucas apontou a arma
para Carlos.
As sirenes aumentavam de intensidade.
— Como eu disse Carlos, você é valentão, mas não me provou nada.
Não demostrou nada do que você é capaz.
— Vocês não me deram tempo para isso — disse o outro.
Lucas olhou bem nos olhos de Carlos, quando disse:
— Pois prove agora. Mostre-me que estamos errados e que você vale a
pena. Mate o agente. — Lucas pegou a mão de Carlos, pediu a arma de um
dos seus capangas e colocou-a sobre ela. — Mate-o. Atire nele, e você fará
realmente parte da Quadrilha Vip e todas as nossas diferenças estarão
acabadas. — mostrou-lhe novamente a corrente de ouro.
— Não faça isso, Carlos! — bradou o intruso.
— Quem é você? — perguntou Carlos.
Lucas olhou irado para Alan.
— Peguem esse cara, levem-no daqui e dêem um fim nele. Ele viu
coisas demais.
Dois homens — o meio careca e o que se identificava com o Stallone —
correram, pegaram Alan (que não correu) e o levaram para um beco
próximo dali, atraindo todos os olhares presentes.
Lucas voltou-se para Carlos e continuou:
— Muito bem, Carlos. Faça. Aponte a arma para ele e puxe o gatilho.
Carlos olhou para Lucas, para Pablo e depois para a arma em sua mão.
Não sabia o que se passava, pois de repente não conseguia pensar, não
conseguia mexer-se. Algo o prendia; algo acontecia.
— Vamos Carlos, o tempo está se esgotando — disse Lucas. — Ou…
você não tem coragem o suficiente?
Carlos fitou Lucas. Lembranças começaram a surgir em sua mente.
Lembranças que envolviam Lucas. Lembranças em que Lucas era o monstro
que o havia atormentado, enganado, e tentado matá-lo. E o pior de tudo. O
monstro que conseguiu um trunfo que agora segurava em suas mãos. Um
trunfo em forma de jóia. Carlos olhou para a correntinha e o anel, e uma ira
incontrolável começou a invadi-lo por completo.
— Bem, a hora esgotou, Carlos — disse Lucas. — Quem você escolhe?
Ele ou você?
Carlos olhou bem nos olhos de Lucas e respondeu:
— Eu escolho… VOCÊ!
Ele apontou rapidamente a arma para a cabeça de Lucas e apertou o
gatilho três vezes.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Click! Click! Click!


Carlos arregalou os olhos. A arma não disparou. Estava descarregada.
— Escolheu mal, Carlos. Escolheu muito mal mesmo. — disse Lucas.
Tomou a arma das mãos de Carlos com um solavanco. — Você acha que eu
iria dar uma arma carregada para alguém que não tenho certeza se está
realmente do meu lado? Isso era exatamente pra mim saber se você estava
ou não comigo, e… pelo jeito, você não está.
Lucas fez um sinal com a cabeça para dois de seus capangas, e estes, de
uma vez só, puseram-se a dar socos, chutes e todos os tipos de golpes em
Carlos, que só pôde se defender para não desfalecer no mesmo instante.
Passaram-se alguns segundos, e após ter sido muito surrado, todos os
bandidos se afastaram, deixando-o mais uma vez no chão.
Carlos olhou para Lucas, quando este devolveu a arma descarrega para
seu homem e empunhou novamente a sua.
— Você iria me matar de qualquer jeito, Lucas. Mesmo se eu matasse o
tira, você me mataria também — disse, mesmo com dificuldade por causa
do sangue que escorria de sua boca.
— Mas assim, meu caro, seria o modo mais rápido e fácil de matar esse
verme e você ficar com a culpa. — Lucas engatilhou rapidamente a arma,
apontou para Pablo e, sem pestanejar, atirou:
Dois estampidos. O peito e a cabeça de Pablo se transformaram
imediatamente numa cachoeira de sangue.
Luzes coloridas começaram a iluminar a esquina e as sirenes soavam
como se já estivessem no local. Os reforços estavam muito perto.
— Vamos embora, já vimos o que viemos ver e já fizemos o que
devíamos fazer! — berrou Lucas.
Mais três tiros ecoaram do beco para onde haviam levado a Alan.
Lucas e todos os traficantes olharam na direção do beco, de onde o som
dos tiros havia ressoado.
— Isso é o fim do conselheiro intrometido — disse um dos traficantes.
— Vamos! Ou vocês querem ficar com um assassino? — ironizou
Lucas, olhou para Carlos e gargalhou.
— Você vai se dar mal, Lucas. Os tiras vão te pegar. Eu vou te pegar —
disse Carlos, com ódio impregnado no olhar.
— Não conte com isso — falou Lucas. Ele olhou para o traficante da
cicatriz no rosto que estava atrás de Carlos e acenou com a cabeça. O
homem imediatamente desferiu um golpe marcial em Carlos, que, com o
tremendo impacto, desmaiou.

28
Transformação - Naasom A. Sousa

— Todos para os carros, rápido! — Berrou Lucas pela última vez. —


Tragam o corpo do agente Vieira e deixem a garrafa perto ao do Tavares.
Vamos dar-lhes um novo aviso!
Todos imediatamente pularam para dentro dos carros, e o barbado
falou para Lucas:
— Tito e Bino ainda não voltaram, Lucas. O que vamos…
Aaaaaahhhhhhhhhhhh…
Gritos horrendos ecoaram pela rua. Todos olharam para Tito e Bino,
que saíram correndo do beco feito loucos em direção ao carro como se
tivessem visto um monstro ou algo fora do normal. Pareciam
irreconhecíveis aos olhos dos demais.
Eles pularam no carro onde estava Lucas, bateram a porta e como
crianças choramingaram:
— Droga! Vamos, Lucas! Vamos logo sair daqui! — suplicou Bino.
Lucas fez um gesto para o motorista, que deu a partida no carro e os
tirou de lá.

&&&

— O que foi que aconteceu? Parece que vocês viram uma assombração!
Bino e Tito se entreolharam e balançaram a cabeça afirmativamente.
— O quê? — Perguntou Lucas.
— Aquele cara que apareceu de repente, sabe… nós demos três tiros
nele — disse Tito, um tanto nervoso.
— Isso mesmo — concordou Bino.
— Eu sei, eu ouvi os tiros. Todos nós ouvimos os tiros — falou Lucas,
confuso.
Tito parecia histérico quando falou:
— Pois é, nós atiramos três vezes nele, Lucas, mas… mas… — ele
hesitou —, mas ele não caiu. As balas não o furaram nem o machucaram.
Parecia até que estávamos usando balas de festim!
— Lucas, e o mais assombroso é que ele estava com uma tranqüilidade
que nem parecia que ia morrer — completou Bino. — Ele até cantava! A
canção falava desse tal Jesus que tantos malucos falam.
Lucas estudou os semblantes assustados dos seus dois subordinados.
Nunca os vira tão nervosos e amedrontados em todo o tempo em que
estavam juntos. Ele pensou antes de decretar:
— Vocês precisam é de umas férias.

&&&

29
Transformação - Naasom A. Sousa

Tudo era trevas, tudo era dores. Carlos continuava caído no chão
desmaiado. Ele sangrava por causa dos golpes sofridos. Lucas e seus amigos
sabiam bem como fazer alguém sangrar. O próprio Carlos já os vira fazer
isso algumas vezes, mas agora a vítima havia sido ele.
Carlos… Carlos… Acorde. Uma voz penetrava seu subconsciente. Jesus te
ama e quer que você o ame também… Ele quer te ajudar…
A consciência de Carlos foi voltando aos poucos. No momento ele já
podia ouvir o vento soprando em seus ouvidos, o barulho das sirenes e
também sentir as dores percorrer-lhe o corpo.
— Vamos, Carlos, acorde. A hora é chegada! — Fez-se ouvir a mesma
voz outra vez.
Carlos entreabriu os olhos e então os escancarou de uma vez. Não
acreditava no que via.
Será que estou morto? Pensou ele. Sim, porque estou vendo um defunto!
Alan postava-se abaixado ao lado de Carlos, sem ferimento algum, sem
marcas de balas e nem sangue espalhado pelo corpo.
— Que-quem é você? — Gaguejou Carlos, confuso e principalmente
incrédulo do que via. — Como sabe o meu nome? Onde estou?
Alan foi lacônico:
— Você saberá. Você saberá de muitas coisas.
Três carros-patrulha aproximaram-se deles a toda, travaram os pneus
com o freio e pararam em cima dos dois. Saltaram um par de policiais de
cada carro, todos eles sacaram suas armas e apontaram para os homens no
chão.
— Parados, não se movam! — Gritou um dos policiais.
Outro tira a paisana, de cor negra, olhou e viu Pablo ensangüentado no
chão.
— Oh, Meu Deus. Tavares! Chamem a ambulância, rápido! —
exclamou ele, correndo até o corpo do amigo para examiná-lo. Observou as
manchas vermelhas e os orifícios no peito esquerdo e na fronte. Concluiu
que não restava muito o que fazer.
— Eu chamo — disse um policial com o nome Selton escrito em seu
distintivo.
O agente negro voltou-se para o lado e viu perto do corpo estirado uma
arma e uma garrafa com um líquido amarelado. — Olhem, tem uma arma e
alguma outra coisa ali! — disse apontando.
Carlos olhou junto com todos os policiais e estremeceu perante a visão
da arma e do líquido contido na garrafa.
— Oh, droga! — sussurrou ele. — Lucas tramou direitinho!

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Muito bem — falou alto um policial do grupo. — Vocês estão presos!

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 3

T udo havia saído de acordo com os planos de Vip. Ele havia acertado
dois ursos com um só tiro. Um tiro consciente. Um tiro certeiro.
Carlos ainda encontrava-se no chão com Alan junto a ele. Estava
enraivado e frustrado ao mesmo tempo. Nunca tinha sido pego pela policia
antes. Já praticara assaltos, roubos de automóveis, homicídio algumas vezes,
mas nunca se deixara ser capturado pelos tiras. Conturbava-o saber que
havia de ser preso por causa de uma pessoa a quem queria se aliar.
Um policial apanhara a arma do chão com uma luva e a colocara em
um saco plástico transparente. Caminhou até os outros policiais, falou
alguma coisa com eles, voltou-se para Carlos e Alan e foi até onde estavam.
— Levantem-se! — ordenou ele.
Alan obedeceu prontamente e ergueu-se rápido, mas Carlos nem se
moveu. Estava quebrado de mais para isso.
— Eu disse levante-se! — gritou o policial.
— Não dá! — respondeu Carlos em voz alta.
— Ah, não?
O policial agachou-se somente o bastante para agarrar Carlos pela gola
do paletó e faze-lo levantar de uma vez, contribuindo para que o silêncio da
noite fosse quebrado por um grito de dor.
— Não faça isso… — Alan olhou o nome do policial no uniforme. —
Sr. Oliver, ele está muito machucado!
Oliver fitou Alan com uma expressão ameaçadora e disse:

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Ele está machucado, não é? Vou lhe falar uma coisa: eu não estou
nem aí pra vocês. — apontou para Pablo estendido imóvel no chão. — Veja,
meu amigo ali não está machucado, ele está morto!
— Mas não fomos nós! — disse Alan.
— É isso o que vamos saber fazendo o exame da balística; descobrindo,
quem sabe, possíveis impressões digitais… — respondeu Oliver. — Mas
enquanto isso, vocês vêm conosco. — ele tirou uma algema do cinto e
prendeu o braço de Carlos ao de Alan.
— Espere! — exclamou Alan. — Não é uma algema para cada um de
nós, pelo menos?
— Caras como vocês merecem coisa pior que isto — resmungou Oliver.
Um dos policiais vasculhou toda a área com os olhos e indagou aos
outros um tanto alarmado:
— Ei, vocês viram o Caio? Não estou vendo-o ou… o corpo dele em
parte alguma…
— Droga! O que aconteceu por aqui? — quis saber o policial negro,
Axel.
— Devem tê-lo levado. Não sei por quê, mas acho que o levaram.
Talvez para fazerem o que fizeram com todos os outros: torturar e queimar.
— disse Oliver. Ele virou na direção de Selton e berrou: — E essa
ambulância que não chega, hein?
— A comunicação estava ruim e só pude chamar a ambulância agora
— Explicou o parceiro de Oliver, Selton.
— Bem, então nesse caso, você e eu vamos levar esses dois aqui, e o
resto espera a ambulância —Oliver se dirigiu aos companheiros. — E caso
algo mais aconteça por aqui, vocês nos chamem, ok?
Os outros quatro policiais balançaram afirmativamente as cabeças.
Oliver era um policial veterano. Com um bigode sempre bem aparado
e sobrancelhas grossas, estava na casa dos quarenta anos, mas parecia mais
velho por causa da sua enorme barriga. Mesmo assim todos o respeitava
muito, pois era durão, autoritário e já havia prendido vários assassinos,
traficantes e ladrões de várias espécies. Colecionava, além disso,
condecorações por seu bom trabalho como policial.
Oliver e Selton encaminharam os dois presos até o carro-patrulha, e
chegando lá empurram-nos para dentro com um tapa nas costas.
— Vamos, seus cães — berrou o policial gordo —, depressa para o
canil!
— Vou acabar com esse cara. Pode apostar que vou — disse Carlos,
baixinho.
Ainda se acomodando no banco da viatura, Alan disse:

33
Transformação - Naasom A. Sousa

— Para que fazer justiça com as próprias mãos, quando se tem alguém
que faz isso por você?
— O quê?
— Calem-se os dois, ou vou meter bala na boca de vocês! — Gritou
Selton. Seu parceiro apenas riu. — Vamos embora — disse ele.
Selton deu a partida no carro, ligou as sirenes e saiu fritando os pneus,
tirando seu parceiro e os dois suspeitos do local do crime. Em poucos
segundos o carro sumiu da vista dos quatro policiais que ficaram com o
corpo de Pablo sob custódia.
Os quatro se entreolharam e o agente policial negro chamado Axel
quebrou o silêncio:
— Eu sabia que isso ia acontecer. De alguma forma eu sabia.
— Do que você está falando? — perguntou outro policial, curioso.
— Sabe… essa quadrilha que Pablo e Caio tanto perseguiam, a
conhecida Quadrilha Vip… Assim que eu soube que eles não perdiam
tempo nem viagem em seus negócios, quero dizer, que eles não se
intimidavam diante de ninguém, algo negativo; algo de ruim e forte
começou a martelar na minha cabeça. Alguma coisa como uma intuição, de
que iria acontecer alguma coisa ruim com os dois.
Os outros três trocaram olhares e um deles falou:
— É. E pelo jeito essa intuição não falhou, hein?

&&&

A pista da rua Nizo Arruda estava úmida por causa do chuvisco que
havia caído ali, mesmo assim, Selton conduzia o carro-patrulha a mais de
noventa quilômetros por hora, enquanto Alan e Carlos, no banco traseiro,
observavam a rua completamente deserta pelo vidro da janela.
Oliver e seu parceiro encontravam-se calados no momento, assim como
o rádio-comunicador. Antes eles haviam feito brincadeiras de mau-gosto
com seus prisioneiros e contado piadas um para o outro. Alan achava
estranho o comportamento dos dois policiais, pois para quem havia perdido
um companheiro da mesma profissão — principalmente sendo policial —
estavam muito alegres e descontraídos.
Carlos apenas vagueava os olhos pela rua. Ele conhecia toda a cidade
de Melmar palmo a palmo, esquina a esquina. Tinha quase certeza de ter
passado por todos os buracos da cidade: boates, pontos de drogas, cassinos
ilegais, becos marginalizados, tudo. Agora conhecia, pela primeira vez, um
carro-patrulha por dentro. Isso o enraivecia. Nunca pensou passar por isso

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Transformação - Naasom A. Sousa

um dia, pois se denominava incapturável. Mas desta vez não teve jeito nem
escolha nem chances.
Alan olhou para Carlos e observou cada detalhe do seu semblante e do
seu comportamento. Estudou-o durante um bom tempo, fechou os olhos e
sorriu. Louvado seja o senhor, exclamou ele em pensamento.
Carlos girou a cabeça e fitou Alan um minuto em silêncio, depois olhou
novamente para a rua. Ele observou pela janela um beco escuro passar por
eles e lembrou-se de já haver visitado aquele lugar. O beco era chamado de
“O beco da escuridão”, porque ali era feita muitas coisas que a lei não
permitia fazer. Carlos virou-se para Alan outra vez e depois para os policiais
que agora pareciam mais sérios. Já estamos perto da central… pensou ele, pois
sabia que daquele beco até a central de polícia era a distância de quinze
quilômetros e, na velocidade que Selton conduzia o carro, logo ele e aquele
estranho ao seu lado estariam atrás das grades. Diante dos seus
pensamentos, Carlos tornou a olhar para Alan.
Quem será esse cara? Ele apareceu do nada e se meteu nessa confusão… e que
confusão! A que custo? Mas ele parece tão aquém da situação… tão calmo… parece
tão diferente de todas as pessoas que conheço…
—Vire aí à esquerda — falou Oliver ao seu parceiro, apontando para
uma outra rua, interrompendo assim os pensamentos de Carlos.
— Ei, o que está havendo? A central não é por aí!
— Fique calmo, rapaz — disse Selton. — O Oliver vai explicar tudo.
Carlos fitou Oliver e repetiu a pergunta:
— Quer me falar que droga está acontecendo aqui? Por que desviamos
do caminho que levava à central?
— Não é nada. É apenas um desvio, Carlos. — explicou o veterano
policial.
Carlos hesitou e então, com os olhos arregalados, especulou:
— Ei, espere um pouco! Como sabe o meu nome? Eu não me lembro de
ter lhe falado o meu nome?
— Oh! Oh! — disse Selton com visível desapontamento.
— Droga! — exclamou Oliver.
— Essa não! Mais um deles! Olha, me diz uma coisa, quantos mais de
vocês se venderam?
— Do que você está falando? — perguntou Alan, confuso.
— Calem a boca! — gritou Oliver, agora irritado consigo mesmo. —
Droga! Eu não queria falar nada até chegarmos lá, mas é isso mesmo. Nós
trabalhamos para o Vip. Ele nos comunicou o que iria acontecer hoje e disse
que se livraria dos dois policiais que tanto o perseguia: Pablo e Caio.
— Mas o Vip é…

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Eu sei — interrompeu Oliver. — Eu sei de tudo. Eu sou um


funcionário muito digno de confiança, sabe? E sendo assim, são me
reveladas coisas que muitos pagariam um alto preço para saberem.
— Mas me diga uma coisa — continuou. — Vip me mandou pegar
você, mas não me falou que haveria uma outra pessoa. E ele nunca esquece
de nem um detalhe, então… quem é esse cara aí?
Carlos olhou para Alan e fitou-o bem nos olhos. Ele não sabia o que
pensar nem dizer, ele não tinha resposta para aquela pergunta. Nunca vira
aquele estranho homem antes, não sabia o seu nome nem de onde era ou
mesmo o que fazia ali. Não sabia de absolutamente nada sobre ele, a não ser
que no momento estava bem encrencado.
— Não sei quem ele é. Nunca o vi antes na vida — respondeu Carlos.
— Ah, não? — perguntou Oliver, duvidoso e zombeteiro. — Então não
vai se importar quando dermos um fim nele também.
— Não, não vou me importar mesmo. Como falei, não o conheço.
Alan apenas olhava para os dois como se nada estivesse acontecendo.
Estava tranqüilo, com o pensamento ligado com o Senhor, apenas
esperando a providência divina.
— Sabe, Carlos — falou Oliver, mudando de assunto —, existem certas
coisas que muitas vezes não vale a pena se meter. E… o Vip me disse que
você andou sabendo de coisas que não era para saber, então… —colocou o
revólver à vista dos seus prisioneiros e ficou balançando-o na frente dos
dois. — ele resolveu dar cabo de você. Mas antes o envolveu num plano
simplesmente mirabolante que iria solucionar todos os seus problemas.
Assim, ele não só iria se livrar de você, mas também de Pablo e Caio.
— É, eu já sei por que ele queria se livrar deles. Mas policial, ele iria me
descartar de qualquer forma, mesmo se eu não tivesse feito nada. Então, se
fiz o que fiz, foi para me proteger.
— Oh! Comovente, Carlos — riu Selton. — Mas agora chegou a hora da
ação.
— Desculpe-me, mas não acredito no que estou vendo — Alan se
intrometeu. — Como vocês podem não dar a mínima para a morte de seus
companheiros de trabalho, que todos os dias lhes dão bom dia?
— Olha aqui, seu cretino, não lhe conheço! — falou Selton, irado. —
Mas você sabe o que é ter cem notas de mil nas mãos todos os meses? O
dinheiro compra tudo, até mesmo a vida de amigos.
— É isso aí — disse Oliver, destravando e engatilhando o revólver que
mais parecia um canhão de tão grande.
A estrada começava a escurecer. A iluminação ficara toda para traz nos
postes, e o que eram casas e edifícios se transformaram em árvores e mata.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Só de vez em quando aparecia um poste com iluminação na estrada. Selton


acendeu a luz interna do carro e modificou a luz do farol, de baixa para alta.
O momento se tornou em puro nervosismo e apreensão. Respirações fortes
já começavam a ser ouvidas e a aflição de Carlos era quase visível. Alan
aparentemente se encontrava calmo e Selton e Oliver pareciam agora com os
nervos à flor da pele.
O velho tira achou melhor desatar o clima de tensão. Olhou para Alan,
apontou a arma para ele e perguntou com arrogância:
— Você não parece muito amedrontado, não é?
Alan fitou Oliver e respondeu com outra pergunta:
— Você acredita em Deus?
— Deus? — perguntou Oliver com um grito, então esbanjou uma
grande gargalhada. — Não, eu não. Só os tolos acreditam em deuses. Falam
que eles podem proteger, abençoar, guardar, dar a vida eterna… Sabe de
uma coisa? Tudo isso é besteira!
Alan meneou a cabeça.
— Deuses não podem fazer nada disso que você mencionou. Mas o
Deus Verdadeiro, Jesus Cristo, esse sim, pode fazer tudo isso e muito mais.
Oliver que sorria, ficou sério repentinamente.
— Ah é, seu crente miserável? Olhe agora para frente! — ele apontou e
Alan olhou. — Está vendo aquela luz naquele poste ali? — Alan balançou
afirmativamente a cabeça enquanto Carlos prestava atenção a tudo. — Lá
vai ser o nosso ponto de parada. A vida de vocês vai ter fim lá. Então quero
ver se esse Deus vai livrá-lo daqui para lá. O que me diz?
Alan apenas abriu um sorriso largo e tranqüilo. Respondeu:
— O que quer que aconteça, meu caro, quer eu viva, quer eu morra, o
que acontecer… será a vontade de Deus. Pois nada você poderia fazer se
não lhe fosse permitido por Ele. E uma coisa posso te dizer com certeza: “eu
sei em quem tenho crido”.
Oliver olhou para Selton e disse:
— Mais um louco que vamos ter que apagar. — então os dois caíram
no riso, que pouco a pouco aumentou de intensidade, e num breve instante
começaram a se tornar em grandes gargalhadas. Tão grandes, que Carlos
começou a ficar confuso.
Qual é a graça? Perguntou-se.
Os dois policiais não paravam de gargalhar. Algo de estranho acontecia
e Carlos nada entendia, nada fazia. Apenas observava Oliver e seu parceiro
explodirem em risadas incontroláveis. Oliver não agüentou e soltou a arma,
que caiu em baixo do banco. Selton também não conseguia se controlar nem

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Transformação - Naasom A. Sousa

segurar firme o volante, com isso o carro começou a se desgovernar a mais


de noventa quilômetros horários e ziguezaguear de lá para cá.
— O que está acontecendo com vocês? Controlem-se! Parem com
isso! — berrou Carlos, afobado e temeroso de que um acidente pudesse
acontecer a qualquer momento.
O carro, em alta velocidade, perdeu o controle, rabeou, saiu fora da
estrada e bateu forte em um poste; exatamente aquele que Oliver havia
apontado enquanto conversava com Alan e o ameaçava.
A batida foi horrenda. A frente do carro-patrulha ficou completamente
destruída, o poste partiu-a em dois e quase atingiu os dois policiais. Selton
foi o que mais se feriu e quase voou para fora do carro pelo pára-brisa, bateu
a cabeça e no instante estava desmaiado e sangrando muito. Oliver também
sofreu muitos danos. Bateu o rosto no painel do carro à sua frente, abrindo
assim o seu supercílio direito e também se encontrava desacordado assim
como o seu parceiro.
Alan e Carlos estavam conscientes e de olhos bem abertos, com apenas
alguns cortes e arranhões superficiais por causa do impacto. Eles olharam
para seus captores desmaiados — ou talvez mortos — eles não sabiam e
Carlos sentiu um alívio sem igual.
— Vamos sair daqui, agora — disse ele, sem pensar duas vezes. Tentou
abrir a porta, mas estava travada. Ele lembrou do que um certo colega
recém saído da prisão havia falado a ele: As viaturas têm travas elétricas nas
portas controladas pelo motorista, e já que tem uma grade que separa os bancos da
frente do de traz, isto é, os “homens” dos presos; é impossível a gente pular do carro
ou fazer alguma coisa para escapar. Então fez um movimento com a cabeça
para Alan e disse: — Afaste-se pra lá. — Alan obedeceu imediatamente,
deixando o banco todo livre para Carlos fazer o que quisesse.
Carlos deitou-se no banco de costas, flexionou as pernas e esticou-as de
uma vez, desferindo assim um poderoso chute contra o vidro da porta
esquerda/traseira do carro. O vidro se quebrou por completo com o golpe,
se partindo em centenas de pedaços. Carlos olhou para Alan e falou:
— Olha, cara, não sei quem é você e isso não me interessa no momento.
O que me interessa é sair daqui, e para isso eu preciso da sua ajuda, certo?
Alan balançou afirmativamente a cabeça e Carlos começou a sair do
carro lentamente. Primeiro colocou uma perna para fora da janela, depois
foi fazendo descer seu corpo bem devagar, saindo assim do carro. Agora só
faltava a perna e o braço que estava preso ao estranho ainda dentro do
veículo.
— Sua vez — disse Carlos, depois de ter saído por inteiro de dentro do
carro. E assim, Alan começou a fazer os mesmos movimentos que Carlos

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Transformação - Naasom A. Sousa

havia feito. Uma perna e o braço, depois deslizou o corpo e por fim a outra
perna.
— E agora? — perguntou Alan.
Carlos olhou para as algemas e depois para os policiais dentro do
carro-patrulha, falou então:
— A primeira coisa que temos que fazer é tirar essas algemas — ele foi
até a porta do lado do motorista, onde se encontrava Selton e tentou abri-la,
mas também estava travada. — Vamos quebrar este vidro também.
— Mas agora está bem ao lado deles, o barulho será capaz de talvez
acordá-los — alertou Alan.
— Vamos ter que correr esse risco — disse Carlos. — Não quero ficar
preso a ninguém. — pegou uma pedra grande que estava no chão ali por
perto e então se preparou, erguendo a pedra ao alto com os dois braços,
fazendo levantar também o braço de Alan. De repente, Oliver moveu-se um
pouco, e então outra vez. Os dois algemados viram aquilo. Carlos abaixou a
pedra e jogou-a para o lado.
— Vamos sair daqui!
— Agora mesmo — concordou Alan.
Então eles saíram correndo, algemados e cambaleantes para longe dos
dois policiais.

&&&

A rua estava escura, os faróis dos carros-patrulha eram as únicas luzes


que iluminavam além de alguns poucos postes com iluminações fracas. O
silêncio era intenso e imperava por toda a área do crime.
Os quatro policiais ainda se encontravam a esperar a ambulância.
Sempre alerta, eles também vigiavam, para o caso de acontecer mais algum
ataque. Um deles ficava sempre dentro de uma das viaturas com um rádio-
comunicador de prontidão na mão. Se algo acontecesse, ele chamaria a
Oliver e mais reforços.
O policial Axel falou:
— Deus, essa ambulância está demorando mesmo, hein?
— Esperem! — alertou outro policial. — Barulho de sirenes, estão
ouvindo?
As luzes já eram visíveis agora. Os quatro se agruparam perto do corpo
de Pablo, e Axel agitou os braços para o alto fazendo sinal para o motorista
da ambulância.
— Até que enfim! — resmungaram.

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Transformação - Naasom A. Sousa

A ambulância parou ao lado dos policiais e mais que depressa saltaram


do carro dois para-médicos e um médico. Dois segurando a maca e um com
a mala de primeiros socorros.
— Acho que não há muito que se possa fazer por ele — falou Axel
quando viu o para-médico com a mala.
— Por quê? — perguntou o médico.
— Ora… ele está morto, não está? A bala penetrou seu coração e sua
cabeça!
O médico olhou para os quatro.
— Vocês o examinaram?
Agora os quatro policiais se entreolharam. Não, eles não o tinha
examinado. Como Axel havia falado, era notório que já não se podia fazer
coisa alguma.
— Não, não o examinamos — respondeu Axel.
O médico fitou o quarteto com um olhar especulativo. — Espero que
tenham razão em afirmarem que não havia mais nada a ser feito. — então
ele olhou para os outros para-médicos que já estavam ao lado de Pablo. Um
deles o examinou e berrou:
— Ele está vivo! A respiração está fraquíssima, mas está vivo!
— Meu Deus! — exclamou Axel. — Mas como…
—Vamos — gritou o doutor, fitando Axel com olhar cheio de
repreensão —, temos que levá-lo rápido para o hospital, ou será tarde de
mais!

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 4

M elmar era uma cidade grande. E como em toda cidade grande, muitas
pessoas saíam à noite para se divertir, e um dos pontos preferidos e
assiduamente freqüentados são os restaurantes. O mais conhecido era o
Quaid’s. Talvez por sua famosa cozinha chinesa, por seu espaço amplo e
requintado, por sua boa música sacra, por sua localidade — bem no centro
da cidade — e por ser um lugar discreto e reservado, de certo que todos os
seu clientes e convidados faziam reserva antes de visitá-lo.
O Quaid’s, apesar de não ser um slogan nada parecido com um nome
chinês, tinha uma cultura bem oriental. Sua decoração era bem definida e de
tudo parecia com os legítimos restaurantes chineses. Havia quadros de
gueixas e dragões espalhados pelos quatro cantos do aposento, todos
pintados por famosos pintores da China, e abajures coloridos davam o
acabamento à iluminação fazendo-a assim bem típica. Sem dúvida alguma,
o Quaid’s era um dos mais badalados em se tratando de restaurantes
internacionais. Seus letreiros davam todo o realce e brilho para que
agradasse os mais exigentes gostos.
Sua estrutura, que eram elogios à parte, toda ela era moderna e
autêntica. Seus três andares o faziam parecer um requintado prédio de
apartamentos, mas em cada andar servia-se comidas de diferentes regiões
da China. Havia também um quarto andar, mas este era todo reservado
para o proprietário do Quaid’s. Ali existiam restrições e somente entravam

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Transformação - Naasom A. Sousa

convidados especiais, familiares e alguns funcionários — os de cargos mais


elevados.
No Quaid’s, uma das coisas que mais atraía os clientes era o amplo
estacionamento que se situava no subsolo de toda estrutura do restaurante.
Nele cabiam aproximadamente cem carros. Havia dois guardas nos portões
do estacionamento fazendo um forte esquema de segurança, registrando os
números das placas dos carros e confirmando os que tinham reserva.
Naquela noite entrou uma limusine de cor preta pelos largos portões, e
os dois guardas pararam-na. Um deles bateu no vidro da porta do motorista
e disse: Baixe! O vidro ao lado do motorista não baixou, e sim o da porta do
passageiro lá atrás. O guarda caminhou até lá e viu um homem de terno que
o olhou e disse calmo e sério: Quer mandar seu amiguinho sair da frente do
carro?!
O guarda recuou um pouco diante do olhar inexpressivo do homem,
que era conhecido.
— Sim senhor, desculpe-me Sr. Givaldi.
O guarda fez um gesto para o seu parceiro sair da frente da limusine,
ele saiu e o carro dirigiu-se para o interior do estacionamento.

&&&
O quarto andar do Quaid’s parecia um apartamento de um dos mais
luxuosos edifícios da cidade, que ocupava todo o andar de ponta a ponta.
Nele havia uma sala enorme toda encarpetada e mobiliada da forma mais
fabulosa possível, um salão com uma grande mesa para refeições, vários
quartos e suítes e tudo o que um apartamento de primeira classe poderia
conter em seu interior. Mas havia uma coisa naquele andar que certamente
não havia em outro apartamento de um edifício cinco estrelas: Uma grande
sala de reuniões; uma mesa retangular com muitas cadeiras em sua volta e
que, no momento, algumas delas estavam sendo ocupadas por alguns
homens.
— Saiu tudo como você planejou — disse Lucas. — Caio e Pablo estão
mortos e Carlos levou a culpa pelo assassinato.
— Agora podemos trabalhar em paz. — ironizou o homem que estava
sentado à cabeceira da mesa.
Lucas sorriu e depois falou sério:
— Mas… há uma coisa que aconteceu e que não estava em nossos
planos…
— Aquele homem estranho! — Bino interrompeu.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Bino falou que Tito e ele deram três tiros à queima-roupa no cara —
Lucas retomou as atenções —, mas falou também que as balas pareciam não
fazer o menor efeito nele.
— Como assim, não faziam o menor efeito nele? Que história é essa? —
indagou o homem na cabeceira da mesa.
Tito respondeu freneticamente:
— Fui eu que atirei primeiro. Eu juro que daquela distância, senhor,
nem um garoto poderia errar. Depois Bino atirou e então atirei outra vez,
mas… não sei, acho que as balas sumiam antes de atingi-lo…
— Como é que é? — perguntou outra vez o homem, fazendo uma cara
confusa e incrédula.
— Olha, senhor, eu sei que parece loucura, ou besteira, ou até as duas
coisas juntas, eu sei, mas é verdade. Depois do meu primeiro tiro percebi
que a bala não tinha aberto nem um buraco nele, então dei o segundo tiro e
nada aconteceu outra vez. De repente subiu um calafrio na minha espinha…
Bino que estava como em transe escutando o companheiro e
relembrando do que acontecera, deu um pulo e falou quase gritando:
— Eu também senti! Eu também senti! Era uma coisa esquisita … ela
foi subindo pela espinha e me tomou por completo.
Tito balançava a cabeça afirmativamente quando falou:
— Aconteceu da mesma forma comigo. Então eu lembrei de como ele
apareceu do nada na hora da transação e liguei ao que estava acontecendo
naquela hora e… não sei o que me deu, senhor, mas eu senti medo. Um
medo que nunca senti antes.
— Pensam que era um fantasma — completou Lucas.
— Jamais acreditei nisso, chefe, mas diante daquilo, tenho que admitir
que sim — finalizou Tito.
O homem que sentava à ponta da mesa fitou Bino e Tito. Como alguém
pode acreditar em… fantasmas? Afinal de contas, o que esses homens são? Ratos?
Ele se viu pensativo naquele instante e ponderou: Mas esses caras já fizeram
coisas para mim que homens comuns jamais fariam, e além disso… eles são leais.
Por fim o Homem disse:
— Tudo bem. Não sei ao certo o que aconteceu com vocês. Não
acredito em fantasmas…
Tito o interrompeu.
— Senhor, nós também não, mas…
— Não me interrompa! — gritou o homem dando um soco na mesa.
Tito tomou um susto e calou-se. Seus olhos estavam arregalados de
terror, com medo da reação do homem. Lucas baixou a cabeça e balançou-a
em desaprovação à atitude de seu subordinado.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Desculpe-me, senhor — disse baixinho Tito.


— Muito bem — continuou o homem. — Tudo o que temos a fazer
agora é esperar a notícia na televisão que mostrará o corpo de Carlos com
uma legenda dizendo: “Assassino de policial é morto por ter tentado reagir
à polícia”. — o homem deu uma gargalhada alta de excitação, mas foi
interrompido, desta vez pelo telefone celular. Ele atendeu.
— Alô?
Ouviu alguém falar do outro lado da linha.
— Onde?
Falou outra vez.
— Ok, obrigado pela informação. Tchau.
Fim da ligação. Ele desligou.
— O que foi, senhor? Algo para resolvermos?
— Não, Lucas. Apenas um rotineiro carregamento para nós, como o
previsto. — ele olhou para Tito e Bino. — Mas voltando ao assunto do
homem fantasma… Quero que tenham certeza do que aconteceu antes de
saírem comentando por aí. Não quero que minha quadrilha seja mal
entendida, muito menos mal falada. Entenderam bem?
Tito e Bino se entreolharam e responderam ao imponente homem à
ponta da mesa:
— Sim, senhor Vip.

&&&

Aquela noite não parecia ter fim, muito menos aquela trilha no meio do
mato por onde eles estavam caminhando desde a hora em que escaparam
dos tiras do Vip e da morte. Assim pensava Carlos.
Nas últimas três horas os dois só viam mata e as trevas da noite escura.
O silêncio predominava desde o começo da fuga; não diziam uma palavra
sequer. Eles não se conheciam e pretendiam continuar assim — Carlos
pensava deste jeito, mas Alan não.
O véu verde cercava a trilha de um lado e de outro, e às vezes se
estreitava fazendo com que Alan e Carlos se esgueirassem por ele, custando-
lhes, uma vez por outra, arranhões por conta de algumas plantas
espinhentas, deixando-os ainda mais exaustos.
As trevas eram densas, pois não havia lua para iluminar naquela noite,
fazendo deste jeito a visibilidade ficar quase impossível. A trilha, por sua
vez, era de pedriscos — por que não dizer de pedras? — que os faziam
tropeçar cambaleantes e com extremo esforço equilibrarem-se para não cair.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Depois da surra que levara, dos ferimentos na batida do carro da


polícia e com a preocupação de estar levando a culpa do assassinato de um
policial que não cometera, Carlos era quem mais sofria com aquilo tudo. Os
espinhos das plantas e as pedras no meio do caminho o castigava deveras,
fazendo a carne de seu corpo latejar e seu pé “gritar por socorro”. Se
continuar assim, não irei agüentar por muito tempo. Pensava ele agora.
Ele olhou para Alan e percebeu que aparentemente aquilo não parecia
atingi-lo; como lá na viatura de polícia, parecia não se incomodar. Mas ele
sim, pensava. E era bom aquele estranho homem não se intrometer com ele.
Carlos pensou mais um pouco e chegou a conclusão que aquele homem já
havia se intrometido desde o momento em que lhe dissera para não matar o
tira. Não sabia por que ele havia feito aquilo, mas iria descobrir.
Em meio ao pensamento, Carlos tropeçou numa pedra e quase caiu.

&&&

Alan estava sempre em espírito de oração, sempre clamando


misericórdia, sabedoria e graça e a todo instante falando com Deus; ligado
com o Senhor espiritualmente e com Carlos corporeamente. Quando
pensava nisso, sentia vontade de rir. Não sabia o porquê. Talvez por estar
sempre ligado às pessoas, ou às coisas de alguma forma: Deus, família,
trabalho, igreja, amigos e por aí se ia.
No momento estava preocupado com Carlos. O pobre homem parecia
estar exausto. A trilha, o cheiro forte da mata, os arranhões, os tropeções nas
pedras e o esforço para enxergar o caminho por onde andavam, sem falar
que estava na frente, puxando Alan pelo caminho.
Alan resolveu quebrar o silêncio.
— Quer parar um pouco? Você parece cansado.
— Não. Tenho que chegar à cidade e rápido.
— Mas não sabemos por quanto tempo essa trilha ainda vai se
prolongar…
Carlos estancou, virou-se, fitou Alan e disse:
— Olhe aqui, não me diga o que fazer. Você não sabe o que está
acontecendo em minha vida, tá legal? Tudo está acontecendo muito rápido
e eu tenho que ir no mesmo ritmo para não perder. E vê se não reclama,
porque você está nisso, e está até o pescoço.
Carlos estava com razão, pensou Alan. Aconteceu tudo muito
depressa, como estava acontecendo também naquele momento. Mas era
como tinha que acontecer. Também era correto o fato de ele estar naquilo até
o pescoço. Não só agora porque Deus o enviara, mas também por causa da

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Transformação - Naasom A. Sousa

polícia que estava atrás de dois homens suspeitos do assassinato de um


policial e dos contrabandistas que deveriam estar também à sua procura
pelo intrometimento na negociação.
Carlos estava falando algo.
— Temos que chegar depressa a um telefone. A vida de uma pessoa
pode estar dependendo disso.
Alan não compreendeu.
— Depressa. Temos que chegar a um telefone depressa. — Carlos
continuava a falar.
O silêncio imperou novamente por mais meia hora, até Alan perguntar:
— Posso cantar uma música?
Carlos sorriu zombeteiro.
— Ah, meu Deus! Agora vou ter que ouvir canções, num momento
como este? Além disso, não estou com sua boca! Maldita hora que aquele
gordo nos algemou juntos!
— Deus. — Repetiu Alan.
— O quê?
— Você falou Deus.
— Sim, o que é que tem?
— Você acredita em Deus?
— O quê… por quê? Você vai me dizer o mesmo que falou para o
policial corrupto na viatura? É isso que você vai dizer se eu disser que não?
— Não. O que tenho a lhe falar é algo que você nunca ouviu antes.
— Olha, Não quero ouvir nem falar nada sobre isso, tá legal? Papo
encerrado.
Alan calou-se. Era a primeira vez que falava sobre Deus com Carlos e
era o bastante, por enquanto. Significava o primeiro passo na caminhada
rumo ao objetivo de Deus.
Amém, Senhor.

&&&

Que cheiro é esse? Tá parecendo cheiro de fumaça! Mas fumaça de onde?


Tentou abrir os olhos, mas o direito estava muito inchado, por isso
conseguiu abrir apenas o esquerdo. Tentou mexer-se ainda sem estar muito
lúcido e nem se lembrar de tudo o que acontecera, mas isso o fez sucumbir
de dores por todo o corpo. Ele olhou em sua volta e começou a recuperar os
sentidos aos poucos e lembrar do que havia acontecido, sem ainda muito
entender. Olhou para o banco de traz e não avistou ninguém. Sem
prisioneiros. Apenas o banco vazio e o vidro da porta esquerda quebrado.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Droga! — disse Oliver com a voz quase inaudível.


Olhou para o lado e viu Selton ensangüentado, com um grande corte
na testa e imaginou se não estaria também com o rosto coberto de sangue.
Com algum esforço, esticou o braço até o retrovisor interno e girou-o até ver
sua própria imagem na metade do espelho que restara. O supercílio direito
estava aberto e o sangue escorrera por ele cobrindo todo o lado direito da sua
face, além de um inchaço no lábio superior. Também havia a dor no seu
corpo que não dava para medir pelo espelho; que o consumia e era maior
que tudo que já sentira antes. Mas que batida! Pensou.
Oliver passou a mão pela cabeça que continuamente recebia pontadas
de dor e ao baixá-la avistou o rádio-comunicador. Perguntou-se se ainda
funcionava depois da batida. Com dores, empunhou o rádio e, apertando o
botão, disse:
— Alô, central, aqui é Dezesseis falando, responda — esperou alguém
falar pelo rádio. Nada.— Central, aqui é Oliver em situação de emergência,
responda! — esperou outra vez. Nenhuma resposta.
— Droga! — Oliver resmungou, desta vez mais alto, jogando o rádio no
painel do carro.
De repente ficou imóvel e pensativo, então lembrou-se de uma coisa…
Ele abriu o porta-luvas do carro, mexeu em seu conteúdo e puxou um
telefone celular de dentro dele. Apertou uma tecla para ver se estava
funcionando e o aparelho emitiu um som igual a um bip, avisando que
estava pronto para ser usado. O policial digitou um número e esperou um
pouco até atenderem.
A linha deu sinal de ocupado. Desligou e ligou novamente, teclou o
número da central e mais uma vez esperou. Desta vez chamou e no
segundo toque atenderam.
— Central de polícia de Melmar, bom dia, Charlenne falando.
— Alô, aqui é Oliver, policial da viatura dezesseis. Estou com
problemas…
— O que aconteceu com o seu rádio, sr. Oliver? Por que não se comunicou por
ele? — interrompeu Charlenne.
Oliver fez uma cara feia de fúria e exaustão. Deveria ser uma novata no
telefone. Talvez já tivessem contratado a nova atendente. Só poderia ser,
pensou.
— É isso que eu iria falar se você não tivesse me interrompido — disse
Oliver. — Olha, estou muito ferido e meu parceiro está muito mais que eu.
Batemos em um poste e desmaiamos. Estávamos com prisioneiros, mas o
impacto não foi tão forte para eles quanto foi para nós, então eles fugiram.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Mande uma ambulância e algum reforço para procurá-los, porque devem


estar feridos também, e não muito longe daqui.
— Desculpe-me, senhor. Onde vocês estão?
— Estamos na rodovia Três, acho que mais ou menos dentro do
quilômetro cinqüenta e cinco.
— Ok, logo estarão todos aí.
Oliver desligou. Descansou a cabeça no encosto do banco e ficou assim
por mais dois minutos, pensando e repensando. Deu um grande suspiro e
tornou a ligar o telefone já digitando um número conhecido. Suas mãos
começavam tremer. Ele esperou atenderem e isso não demorou muito, o
que fez aumentar sua tensão.
— Quem fala? — disse a voz, que ressoou no ouvido de Oliver como
uma navalha afiada.
— É Oliver. Quero falar com o Vip. Ele está esperando esta ligação.
Diga que é sobre um pato.
— Espere.
O corte no supercílio direito de Oliver começou a arder, foi quando
percebeu que estava suando. O líquido havia escorrido até o ferimento,
causando a queimação. O suor era frio, causado pelo medo. Medo que agora
o consumia por completo.
Ouviu um barulho no telefone como se alguém tivesse pego para falar.
Um pensamento tomou Oliver numa fração de segundos quando
pensou no que iria falar.
Droga! O que irei dizer a ele? Detesto ter que pensar em falar a verdade… Ele
pensou na verdade; em como acontecera tudo: o que aquele estranho havia
falado para ele; o ódio que sentiu em seu coração por tê-lo visto falar com
tamanha tranqüilidade e autoridade; por não ter visto em seus olhos o medo
de morrer. Começou a pensar nas gargalhadas que dera com seu parceiro
por uma bobagem que havia dito, e que não valia mais do que uma
pequena risada de zombaria. Aquelas gargalhadas… pensou. Eram tão
prazerosas e ao mesmo tempo assustadoras. Era a alegria que se misturava
com o medo que o deixara sufocado, muito mais a Selton que foi induzido
ao acidente. Pensou ele. — Perdemos o controle — disse por fim.
Não! Decidiu. Contar a verdade seria a gota d’água para Vip, isso
significaria o seu fim.
— Oliver? — falou outra voz, desta vez ressoando no ouvido do
policial como um tiro disparado por uma calibre 44.
— E aí, Vip, como vai? — Oliver esforçou-se para não gaguejar.
— Bem. Melhor ainda com a notícia que você vai me dar. Já está
acabado? O pato está eliminado?

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Transformação - Naasom A. Sousa

Oliver não respondeu nada. Fechou os olhos e pensou no que iria falar.
— Oliver? — disse Vip, ordenando-lhe a dar uma resposta.
— Vip, eu… eu… — não deu para segurar o nervosismo e Oliver
começou a gaguejar. — …Eu não s-sei o que dizer, Vip. Aconteceu uma
coisa, e… saiu tudo errado…
— Como assim, saiu tudo errado?! — explodiu o poderoso chefão. — O
que aconteceu?
— Ele… fugiu — disse Oliver receoso.
— Fugiu?! Seu grandissíssimo idiota, como deixou ele escapar? Como
deixou isso acontecer?
Oliver pensou em como responder. Em meio à milhares de
pensamentos ele ouviu um berro pelo telefone.
— Responda!!!
Oliver engoliu algo inexistente que atrapalhava sua respiração para
responder:
— Houve… houve um acidente, batemos a viatura num poste aqui na
rodovia Três, é onde estou no momento. Selton está mal. Com o impacto da
batida, batemos nossas cabeças no painel do carro e isso nos custou
ferimentos. Ainda estou dentro da viatura, pois não posso me mexer muito.
Creio que eles fugiram enquanto eu estava desmaiado, e…
— Espere aí, você disse: “eles fugiram?” O que significa eles, se mandei
você pegar apenas o Carlos? Está trabalhando por fora é, imbecil?!! — gritou
Vip.
— Não, não, claro que não! O cara estava com Carlos, ele era estranho,
pensei que era pra apagar ele também!
— Mas como aconteceu isso? O que se passou para que vocês batessem
nesse poste? — perguntou Vip irritado.
— Bem… — Oliver pensou seriamente em sua resposta e no contraste
que existia entre ela e o que realmente acontecera para causar o acidente
resultando na fuga de Carlos e do outro homem. — Primeiramente nós
achamos os dois onde o corpo de Pablo estava e os prendemos em uma
única algema, e… — pausou um pouco. — acho que um deles tinha algum
arame e estava tentando se soltar, então Selton viu isso pelo espelho e virou-
se para enxergar melhor e me avisar, porque eu me encontrava de olho na
rodovia que estava escura e irregular, auxiliando-o. Quando Selton viu que
realmente um deles estava se soltando, gritou avisando-me. Foi nessa hora
que ele perdeu o controle do carro e batemos num poste. E como eu disse, é
onde estou agora.
— Quer saber — disse Vip —, vocês dois são dois absolutos
incompetentes!

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Vip, eu…
— Não quero ouvir mais nada! E escute aqui, eu quero Carlos morto,
está ouvindo? Dê um jeito para pegá-lo antes da polícia e mate-o, caso
contrário você vai ter que matá-lo dentro da prisão ou na frente da maioria
dos policiais da cidade. Acabe com ele de qualquer forma, eu o quero morto,
entendeu?!
— C-certo, Vip — respondeu Oliver nervoso, que começou a ouvir o
som da sirene da ambulância ao longe. — M-mais… uma coisa… quanto ao
outro homem, o que faço com ele?
— Procure-o e mate-o também, idiota! Não quero nenhuma
testemunha.
Vip ia desligar quando se lembrou rapidamente do relato de Tito e
Bino.
— Oliver? — chamou.
— Sim?
— Uma última coisa: como era esse tal homem que estava com Carlos
quando vocês chegaram?
— Ele era de meia estatura, de mais ou menos trinta e cinco anos,
cabelos castanhos lisos, pele clara e de olhos também castanhos. — Oliver
fez questão de descrever os olhos de Alan, pois havia fixado o olhar neles
por um longo tempo e se impressionado com a expressão que deles foram
transmitido.
Vip não disse mais nenhuma palavra e desligou o telefone.
Oliver ouviu Vip desligar, foi quando a ambulância e mais três viaturas
estacionaram ao lado de seu carro. Mais um pouco e ele mesmo teria
desligado, pensou. O que faria ele dar mais tarde uma nova explicação ao
Vip.
As portas dos quatro carros foram abertas e seus ocupantes saíram
rápido ao encontro de Oliver e Selton, para prestar socorro e fazer algumas
perguntas sobre tudo aquilo.

&&&

Vip, logo que desligou o telefone, mandou chamar Tito e Bino, que
prontamente atenderam ao chamado e agora estavam em sua presença, na
sala de reuniões do Quaid’s.
— Recebi um telefonema a poucos instantes que me despertou uma
curiosidade…
Tito e Bino se entreolharam como se perguntassem um ao outro do que
se tratava.

50
Transformação - Naasom A. Sousa

Vip perguntou:
— Quais eram as características do cara que vocês dizem não terem
conseguido matar?
Os dois se olharam novamente e Bino respondeu:
— Humm… ele tinha o cabelo castanho, na casa dos trinta, branco e
acho que… — ele ergueu o braço à sua frente e elevou-o com a palma da
mão voltada para baixo até certa altura.
Vip observou a elevação da mão de Bino.
— Meia estatura — disse.
— Isso mesmo — falou Tito.
— Então temos mais um problema. O fantasma de vocês existe e está
do lado de Carlos…
Os dois capangas cruzaram o olhar mais uma vez.
— Mas parece que além de estar fazendo o papel fantasma,
assombrando meus planos, está fazendo também papel de anjo da guarda
de Carlos.
— O que o senhor quer que a gente faça quanto a isso? — perguntou
Tito.
— Procurem os dois. Vocês, Oliver e os policiais que ele irá lhes
apresentar e com certeza vão encontrá-los mais rápido. Quando encontrá-
los matem Carlos e tragam o outro pra mim. Quero conhecê-lo e mostrar a
vocês como exterminar fantasmas.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 5

C onsiderado pela população como um dos melhores hospitais da


cidade, o Norton Ramos fazia jus à sua fama. Era um prédio grande e
imponente de cor cinza que ocupava todo o quarteirão, fazendo-se
assim, bem visível. O NR — como era chamado pela a população —,
tinha três andares bem distribuídos, com salas de espera, laboratório,
operações, pediatria, obstetrícia, radiografia, tomografia, doenças
infecciosas, de leitos, monitoração, escritório e ainda outras com
aparelhos eletrônicos de última geração.
Havia duas entradas no NR que levavam à recepção, para visitantes
e parentes de pacientes internados, mas também havia uma terceira
entrada, exclusivamente para pacientes em situação de emergência. Essa
entrada era ampla e larga para facilitar a locomoção das macas que,
constantemente, passavam por ela, para lá e para cá. Ao lado dessa
entrada, sempre se posicionavam um médico e dois enfermeiros com
uma maca à espera de pacientes em estado grave para serem atendidos o
mais depressa possível, fazendo um diagnóstico mais detalhado e
removendo-o para o interior do hospital.
A avenida Ernesto Mont estava pouco movimentada àquela noite,
como também muito silenciosa por ser a que passava em frente ao
hospital, pois como era de madrugada, novamente as pessoas
repousavam em seus lares. Mas uma curva rápida e fechada
proporcionou uma movimentação a mais nos poucos carros que

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Transformação - Naasom A. Sousa

trafegavam por ela, fazendo-os frear bruscamente ou subirem


deliberadamente sobre as calçadas e até mesmo obrigando-os a darem
um cavalo-de-pau para não darem de frente com outro veículo. O
motorista engatou rapidamente uma segunda marcha e fez a ambulância
equilibrar-se suavemente. Ou quase. Seguida por dois carros-patrulha,
ela se locomovia ligeiramente na direção do NR fazendo junto com os
veículos policiais, um coro lúgubre de sirenes que, logo foram
desligadas ao chegarem perto do hospital.
A ambulância parou, juntamente com as viaturas, na entrada de
emergência. O médico e os dois enfermeiros correram prontamente,
empurrando a maca ao encontro da ambulância. As portas do motorista
e passageiro foram abertas e eles saltaram dirigindo-se à porta traseira.
Abriram-na e um terceiro homem saltou. Todos eles eram para-médicos.
— Qual a situação? — Perguntou o médico que havia corrido junto
à maca.
— Ferido à bala. No peito, próximo ao coração e na cabeça. Tem que
ser removido imediatamente para a sala de operações. Sua respiração
está fraquíssima, pulso quase zero.
Axel e um outro policial chegaram junto aos homens de branco, e só
puderam ouvir o médico falando aos enfermeiros:
— Vamos removê-lo, rápido!
O médico, os dois enfermeiros e mais dois para-médicos seguraram
um cobertor sob Pablo e o suspenderam transferindo-o para a maca que
os enfermeiros haviam trazido.
— Muito bem, vamos! Vamos!
Um para-médico segurou uma bolsa de soro, e os três que antes
esperavam o paciente em esta do crítico entraram em ação, correndo
para dentro do hospital empurrando a maca, veloz, mas
cuidadosamente.
Axel se apressou e juntou-se ao médico na corrida.
— Posso ajudar em alguma coisa, doutor? — Perguntou. — Há
alguma coisa que eu posso fazer?
O médico parou e os outros continuaram em frente. Ele fitou Axel.
— Quem é você?
— Agente Axel Brendel, Doutor.
— Algum grau de parentesco com o paciente?
— Não somos apenas amigos…
— Então — interrompeu o médico, — comunique alguém próximo
a ele. Um parente ou algo assim. Conte o que aconteceu, que seu estado
é preocupante, mas diga que faremos o possível para salvá-lo.

53
Transformação - Naasom A. Sousa

— Farei isso.
— Certo.
O médico deu as costas para Axel e correu juntando-se aos
enfermeiros.

&&&

O nome era Caroline Lima. Uma morena de olhos verdes


deslumbrantes, de corpo invejado pelas mulheres e desejado pelos
homens, cabelos cor-de-fogo e pele de seda. Era uma das melhores
repórteres do canal de mais audiência da cidade, o Canal Sete.
Axel encontrava-se no interior de uma cabina telefônica em frente
ao NR. Ele lembrara-se dela logo quando o médico falara de alguém
próximo de Pablo.

&&&

Tudo começara quando Caroline Lima aparecera na central de


polícia pedindo informações sobre um então recente assassinato que
estava repercutindo e dando ótimas manchetes para os jornais e
noticiários. Pablo propusera-se a dar as informações necessárias. Dali
então, Caroline passou a dirigir-se direto a Pablo para adquirir qualquer
informação noticiosa que quisesse: assaltos, assassinatos, apreensão de
carregamentos de tóxicos, furos sobre políticos ou gente importante
envolvidos em escândalos criminosos, qualquer coisa que desse uma boa
matéria e garantisse a ela uma boa reputação como repórter.
Num certo dia, Alguns meses depois de ter conhecido Axel, Pablo
lhe confidenciou, momentos após ter passado outra informação para
Caroline:
— Acho que estou apaixonado, Axel.
— Ela sabe disso?
— Você está brincando? Claro que não!
— Você sabe se ela tem alguém… está com alguém?
— Não, não sei — disse Pablo, encolhendo-se na cadeira atrás de
sua mesa.
Axel balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Pablo, você não é um adolescente, cara, é um adulto, que sabe
das coisas. Então vá à luta meu amigo! Ao menos tente! Talvez ela esteja
na mesma ânsia e com o mesmo medo que você neste momento. O que
tem que fazer é arriscar.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Pablo respirou profundamente e enrijeceu-se na cadeira.


— Você está certo — ele puxou o telefone que estava em cima de
sua mesa para perto de si, tirou o fone do gancho e digitou um número
martelando as teclas com os dedos firmes.
— O que você está fazendo? — Indagou Axel.
— Providenciando um encontro.
—Gostei da atitude. Eu tenho que ir agora, mas quero saber o
resultado disso depois, ok?
— Com certeza.
No dia seguinte, Pablo contou a Axel que havia jantado com
Caroline.

&&&

Fôra sem dúvida um jantar maravilhoso, pois após aquela noite, o


agente Tavares e a repórter Lima nunca mais se desgrudaram. Pablo
sempre agradecera Axel por isso.
— Se não fosse você para ter me passado aquela coragem, eu não
estaria com Carol, agora.
Realmente. Pablo sempre fora péssimo com as mulheres. Mas
agora, com Caroline, não precisaria mais de ninguém.
E era isso mesmo o que ele tinha fora Carol: “ninguém”. Nem pai,
nem mãe, tios, irmãos, primos. Pablo não tinha nada disso. Nenhum
parente, pelo menos que Axel soubesse. Então, se existia alguém
próximo, esse alguém, com certeza, era Caroline Lima.
Axel discou o número e pôs-se a esperar.
Uma hora dessa ela deve estar no quinto sono. Com certeza não irá
acordar contente, e… depois que eu lhe der a notícia… Deus, que o
Senhor me ajude.
Depois do sexto toque Caroline atendeu e sua voz pode ser ouvida:
— Quem quer que seja você, quero dizer que isso não são horas de
se ligar para alguém. Se você estiver com insônia, procure um médico,
não uma repórter. Você se sentirá melhor e eu também.
A voz de Caroline estava carregada de indignação. Axel percebeu
isso e não conteve o riso.
— Bem que eu sabia — disse.
— O quê? Quem está falando?
— É Axel.
— Axel? O que aconteceu? Por que está me ligando a essa hora?
O agente policial hesitou.

55
Transformação - Naasom A. Sousa

— Caroline… — pensou no que havia acontecido com Pablo. Tudo


aquilo iria ser muito duro e difícil para ela.
— Axel, você ainda está aí?
— Sim, estou.
— O que aconteceu? Não me diga que…
Axel interveio:
— Caroline, prometa-me que ficará calma, e…
— Como ficar calma? Você me acorda no meio da noite, fica me
enrolando e quer que eu fique calma?
Axel se preparou para anunciar de uma vez a má notícia, mas
Caroline arremeteu-se a falar novamente:
— É sobre Pablo, não é, Axel? Aconteceu algo de ruim com ele, não
foi?
— Caroline, fique calma…
— Responda!!
— É. É sobre Pablo. Ele foi baleado e está agora no Norton Ramos. É
onde também estou, aguardando alguma notícia. O médico mandou-me
telefonar para você, e…
— Estou indo para ai — interrompeu ela.
— Caroline, acho melhor não. Você não está em condições…
— Você acha que depois dessa notícia eu conseguirei voltar para a
cama e dormir tranqüila, ou apenas ficar pensando em como Pablo está,
ao invés de ficar perto dele?
— Hum… você tem razão. Eu chego ai em vinte minutos.
— Não, eu chegarei aí sozinha. Não se preocupe, eu vou conseguir.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Então, ficarei a sua espera, e… cuide-se no trânsito.
— Não se preocupe — ela pausou um momento. — Axel…
obrigado por me ligar, e… desculpe-me pelo que falei quando atendi o
telefone, é que não tive um dia muito bom.
— Tudo bem. Tenha cuidado.
E os dois desligaram ao mesmo tempo.

&&&
Por quanto tempo teremos que andar para, enfim, chegarmos em
algum lugar? Perguntava-se Carlos, pensativo. Ele e Alan, agora
andavam lado a lado, pois a trilha àlguns minutos atrás se havia
alargado e isso os deixavam mais aliviados, menos exaustos. Mesmo
assim, o cansaço os castigava bastante e as dores no corpo eram

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Transformação - Naasom A. Sousa

constante. Carlos era quem mais sentia isso na pele. O suor do seu corpo
tomava conta do seu terno, que agora estava encharcado. Ele começou a
tirá-lo, mas quando se lembrou da algema, chamou um palavrão e pôs o
terno de volta sobre ombros.
Além de alargar mais, a trilha se tornava mais visível, fazendo com
que os dois não tropeçassem a esmo. Uma escassa claridade ajudava-os a
enxergar as pedras no meio do caminho e desviarem delas. Alan olhou
para cima e se perguntou de onde vinha a claridade que pouco a pouco
aumentava. Talvez fosse alguma estrela que se encontrasse mais perto
do nosso planeta ou algum outro fenômeno da natureza, pensava. Pelo
menos ajudava-os a não tropeçar e andar mais tranqüilo.
— Não sei de onde vem essa claridade. É um pouco estranho —
disse Carlos, também olhando para cima.
— Era o que eu estava reparando — Alan olhou ao redor e estudou
tudo o que estava à sua volta. Ele apontou para frente, um pouco acima
do extenso manto verde. — Olhe aquilo. — Falou a Carlos, e este, sem
muito hesitar, acompanhou o olhar do seu companheiro de algema e
observou o que havia prendido sua atenção.
— Estou vendo. Parece que a claridade vem de alguma coisa além
daquelas árvores.
Alan confirmou com um meneio de cabeça.
Uma luz clareava por detrás do matagal e fazia com que aparecesse
por cima das árvores, algo como uma áurea reluzente. O que se levava a
pensar é que, após transpor a vasta parede verde, ali se encontraria
alguma coisa a brilhar. Carlos pensou na melhor possibilidade possível,
na coisa que mais almejava ver naquele momento.
— Vamos! — disse Carlos começando a andar mais rápido. —
Talvez seja o que estou pensando.
Alan o acompanhou em sua caminhada frenética, e percebia que a
cada trinta metros, mais ou menos, a claridade se tornava mais forte, até
que uma luz começou a ofuscar por entre a mata. Carlos não segurou a
ansiedade e penetrou a espessa área verde, não se importando em
ganhar mais alguns arranhões ou cortes, puxou Alan pela algema e
abriu caminho dentre os galhos e folhas. Carlos se esgueirava, quebrava,
chutava tentando livrar-se de inimigos naturais que o impediam de
continuar em frente, jogando-os de um lado para outro a fim de poder
caminhar por entre eles. Sentiu a luz mais próxima e abriu com as duas
mãos mais uma porção de galhos, então a claridade o tomou por
completo, fazendo seus olhos brilharem.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Carlos viu uma estrada à sua frente e após ela uma grande casa — a
origem da luz que os conduziram. Saiu da mata seguido por Alan, que
removia algumas folhas que haviam colado em sua roupa. Os dois
caminharam até a estrada e observaram que se estendia nas duas
direções.
— Talvez ela nos leve de volta à cidade — comentou Carlos. — E ali
está o nosso transporte. — Ele apontou, Alan seguiu com o olhar e pôde
ver uma caminhonete azul ao lado da casa.
— Você irá rouba-la?
— Não, nós vamos. Você pode querer ir a pé até a cidade, mas eu
não.
Carlos seguiu até a casa, que era de madeira bem trabalhada e
envernizada, de dois pisos. Uma pequenina escada de quatro degraus
levava a um alpendre que protegia a frente da casa de raios solares e de
chuvas inoportunas, e uma lâmpada fluorescente iluminava-o
fortemente. Os dois subiram ao alpendre e ficaram a escutar. O silêncio
era absoluto no interior da casa. Carlos segurou a maçaneta e começou a
girá-la lentamente. Tentou empurrar a porta, mas estava trancada —
Claro. Suspirou e voltou-se para Alan.
— Você usa grampos de cabelo? — Ele sorriu e baixou a vista,
começando a varrer com o olhar toda a área do alpendre.
— O que está procurando?
— Um pedaço de arame.
Alan sabia o que iria acontecer logo em seguida, pois notava nos
olhos de Carlos a necessidade de entrar na casa. Ele pôs-se a procurar
também. Foi até a bancada do alpendre e olhou para baixo. Carlos
juntou-se a ele e também vasculhou cada centímetro à procura do arame,
até que seus olhos enxergaram, perto da caminhonete um pequeno
pedaço do objeto mais valioso para ele naquele instante. Carlos desceu
correndo a escada do alpendre. Puxando Alan, parou ao lado da
caminhonete, abaixou-se pegou o pequeno arame e voltou na mesma
velocidade. Ele torceu o arame até quebrá-lo em dois pedaços e
silenciosamente introduziu-os na fechadura da porta com a habilidade e
conhecimento de anos na profissão proibida. Carlos manuseou os
pedaços de arame, destravando sem muito sacrifício a tranca da
fechadura da porta.
— Bingo! — Sussurrou.
Segurou novamente a maçaneta da porta e girou-a silenciosa e
vagarosamente. A porta abriu e Carlos empurrou-a lentamente, para não
fazer qualquer ruído. Estava escuro dentro do aposento e os dois

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Transformação - Naasom A. Sousa

fugitivos entraram com passadas pequenas e cuidadosas, pois a


visualização do cômodo estava difícil, já que as janelas que davam para
o alpendre iluminado encontravam-se com as persianas vedadas,
impedindo que a luz penetrasse. Carlos deu mais algumas passadas e
sem querer esbarrou em algo, e Alan, por extinto, precipitou-se à frente e
segurou o objeto antes que se chocasse com o chão. Ele tateou e estudou
o objeto.
— Um abajur — sussurrou.
Alan deslizou a mão pelo fio da tomada e encontrou o interruptor,
ligou-o e a lâmpada acendeu, dando uma escassa luminosidade ao
aposento.
Carlos estudou a sala como se fosse um jogo de quebra-cabeças a
ser montado peça por peça — móvel por móvel. Havia um conjunto de
sofás no meio do cômodo com uma mesinha de centro entre eles, um bar
modesto, mas convidativo, com taças de várias espécies sobre o balcão e
dezenas de garrafas de bebidas de diferentes marcas e nacionalidades.
Uma estante ocupava um lugar defronte ao conjunto de sofás e dava, a
quem nele estivesse sentado, toda comodidade possível, em termos de
áudio e vídeo; beleza artística e cultural. A estante estava repleta de
esculturas de cerâmica, barro e madeira, assim como também de
dezenas de livros. Uma enorme TV obtinha o lugar central, sob ela
postava-se um vídeo cassete e mais abaixo, um lindo som estéreo. Um
prato cheio para qualquer assaltante, pensou Carlos. Mas isso não o
interessava no momento. Ele observou que havia vários vasos com flores
e plantas espalhados sobre o piso da sala e também uma mesinha no
canto do aposento, ao lado da estante, com… não dava para ver o que
estava em cima da pequena mesa. A sombra da estante encobria o seu
conteúdo.
Carlos deu passadas suaves em direção à mesinha, até que pôde
discernir o que continha em cima dela. Ele suspirou aliviado. Era a sua
última esperança. O telefone estava sobre a mesa junto a um cinzeiro de
cristal. Aproximaram-se e Carlos tirou o fone do gancho. Apressado e
sem hesitar um só segundo, teclou um número e esperou. Voltou-se para
Alan e fez sinal para que não dissesse uma só palavra. Ele apontou para
cima a fim de dizer que pessoas dormiam lá, e poderiam acordar. Alan
balançou a cabeça afirmativamente, compreendendo. Carlos olhou para
a porta e pensou o quanto daria trabalho se não fosse o bendito arame.
Então notou um chaveiro de madeira ao lado da entrada, com vários
molhos de chaves presos a ele. Isso não despertou sua atenção.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Foi ouvido o quarto toque, mas ninguém atendeu do outro lado da


linha. Carlos colocou o fone no gancho e tirou outra vez, tornando a
discar o número. Um toque, dois toques, três, quatro…
— Quem está falando? — Atenderam.
Carlos ouviu a voz grossa e conheceu quem falava: Rodolfo. Por
ordem de Vip, ele sempre perguntava quem falava quando atendia ao
telefone. Rodolfo era o mordomo do Vip. Alto, magro e calvo, ele
parecia Alfred, o mordomo do Batman.
— Quem está falando?! — Perguntou novamente, agora
rispidamente.
— Quero falar com Vip — disse Carlos em voz baixa.
— Desculpe, mas aqui não tem ninguém com esse nome.
— Chame-o, Rodolfo.
— Como sabe o meu nome?
— Sei de muitas coisas, e uma dessas coisas interessa a ele. Por isso
é melhor chamá-lo.
— Quem está falando?
— Diga a ele que quem fala é um pato solto chamado Carlos.
Rodolfo não o conhecia. Vip não se comunicava muito com ele,
menos ainda sobre seus negócios.

&&&

Rodolfo pensou em chamar Vip, mas também pensou nas


possibilidades e conseqüências, pois seu chefe encontrava-se no meio de
uma reunião de última hora e certamente odiaria ser interrompido.
— Espere um pouco — disse por fim. Poderia ser algo realmente
importante e se não interrompesse Vip, sendo algo de tal gravidade,
seria muito pior do que se não o fizesse.
Rodolfo caminhou por um longo corredor e parou diante de uma
grande porta. Respirou fundo e abriu-a, receoso. Ele pôde ouvir quando
entrou:
— Mesmo tendo isso acontecido, não podemos parar com as
operações — falava Vip, à ponta da mesa. — Temos um carregamento
para… — Olhou para o relógio. — Daqui a mais ou menos três horas e
eu queria comunicar isso a vocês. Ele está a solto, mas não representa
nenhum problema. Logo o pegaremos e daremos um fim a toda essa
história de uma vez.
Lucas estava próximo de Vip, recebendo todas as informações e
fazendo uma anotação mental.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Quem trará desta vez? Tomara que não seja outro irresponsável
igual ao Amaro. Aquele bastardo tinha é que ser eliminado. Ele não
tinha nada que parar e se enrolar com prostituta nenhuma, muito menos
dar um pacote a ela. Desgraçado! Quase fez besteira na calça quando
descobriu que ela era tira.
— Não se preocupe. Nossos amigos na central cuidarão dele —
tranqüilizou Vip. — Quem está encarregado é o Duarte. Leve alguns
homens para ajudar, também a Bino e Tito e faça-os trabalhar.
Ocupados, não pensarão muito no que aconteceu.
Rodolfo entrou e chamou todas as atenções para si. Ele carregava
um telefone sem fio e caminhou até Vip, se curvou e sussurrou ao
ouvido do chefe.
— Senhor, um telefonema. Parece importante…
Vip afastou o rosto de Rodolfo e fitou-o nos olhos.
— Estou numa reunião importante, e você sabe como odeio ser
interrompido nessas horas, não é? Seu idiota! — Ao acabar de falar, Vip
já estava aos berros. — Diga a quem quer que seja, que saí e que não
sabe a que horas chego, ouviu?
Rodolfo apenas meneou a cabeça para dizer que havia entendido.
— Saia daqui!! — Ordenou Vip.
Rodolfo voltou-se para caminhar à porta e sair do aposento e então
ouviu Lucas comentar:
— Vip, acho que não podemos arriscar com ele a solto e creio que
seja melhor reforçarmos a segurança e vigilância aqui do Quaid’s. O
pouco tempo que conheço Carlos, já tenho uma idéia bem lúcida e
concreta das loucuras que ele é capaz de fazer para conseguir o que
quer.
Vip balançou a cabeça em aprovação.
— Tudo bem, faça isso. Aquele pato está me dando muito trabalho e
farei qualquer coisa para atrapalhar qualquer plano que esteja se
passando em sua mente sórdida.
Rodolfo estancou e virou-se para Vip.
— Senhor…
Vip percebeu que seu mordomo não havia se retirado da sala como
ordenara.
— Rodolfo! Eu já lhe disse que não estou para nada nem para
ninguém?!
Rodolfo estremeceu, mas não poderia sair, pois já se conscientizara
de que se tratava de um telefonema da maior importância.

61
Transformação - Naasom A. Sousa

— Senhor… é que não pôde deixar de ouvir um pouco da conversa


e…
— Eu não lhe pago pra ficar ouvindo as conversas aqui!!
— Eu-eu sei, senhor. Mas os senhores falaram de um homem
chamado Carlos e o apelidaram de pato, e… há um homem na linha
querendo falar com o senhor, dizendo ser ele um pato solto chamado
Carlos.
— O quê?! — Exclamou Lucas.
— Me dê esse telefone aqui! — Ordenou Vip e Rodolfo entregou-o
rapidamente. — Porque você não me disse logo, seu idiota? Agora saia
daqui, rápido!!
Rodolfo quase correu de volta à porta, fechando-a ligeiramente
quando saiu. Vip tapou o bocal do fone com a mão e olhou para Lucas.
— O que esse pato quer numa hora dessas? Dar-me boa noite?
Os dois riram da piada.
— Acho que não vai descobrir até falar com ele — disse Lucas.

&&&

Carlos estava de olhos fechados, pensando no que havia acontecido


até aquele momento, quando Vip falou ao telefone:
— Carlos, a quanto tempo! Você está bem? — Brincou Vip.
— Não tão bem quanto você, miserável. Ouça, não estou muito para
brincadeiras, pois não estou dispondo de muito tempo ultimamente,
graças a você…
— Oh, não precisa agradecer. Mas… onde você está? Eu quero ir ao
seu encontro para conversarmos um pouco, você sabe, colocar as idéias
em dia… Já que temos algumas coisas em comum — a voz de Vip
adquiriu um tom sinistro —, se é que está me entendendo…
Carlos pôde sentir seu maxilar doer quando, num impulso
incontrolável, cerrou os dentes e agarrando o fone com mais força, disse:
— Olha seu… Se você fizer alguma coisa com ela, se ao menos tocar
num fio de seu cabelo, eu…
— Carlos, Carlos… Não acho que você esteja em posição de me
ameaçar e muito menos requerer alguma coisa, não é mesmo? Acho
também que tudo isso o que você vem passando está lhe fazendo perder
o sentido real das coisas.
Carlos, no momento, não pôde deixar de dar uma risadinha abafada
e silenciosa, voltando a ficar sério ao inquirir:

62
Transformação - Naasom A. Sousa

— Me diga uma coisa. Apenas uma coisa. Por que você fez aquilo
comigo? Quero dizer, eu era leal a você, fazia e faria tudo para lhe
agradar, dava tudo de mim para a organização, e em troca a isso, você
quis me despachar. Por quê?
Carlos pôde ouvir a forte respiração de Vip, antes que este falasse:
— Ora, meu amigo, aprenda uma coisa: “Você era dispensável”! —
Vip deu uma gargalhada que fez Carlos sentir o sangue ferver. — Como
muitos são. Para ser mais claro você era um pato. Pegamo-lo, acolhemo-
lo, demos ração e enchemos bem sua barriga. Então, depois o
sacrificamos para interesse próprio. Não é uma coisa muito digna de se
fazer, mesmo não me importando com isso, mas tem que ser feito. —
Deu um longo suspiro, recuperando o fôlego para continuar a
declaração, que o fazia ficar um tanto excitado. Continuou: — Você me
servia, Carlos, mas não para muita coisa. Por isso fiz-o-que-fiz. Aliás,
queria que você soubesse, sabe, só para deixá-lo mais sossegado, que
você não foi o primeiro e nem será o último, porém, foi o pato mais
valioso, pois com você, consegui derrubar dois enormes gaviões.
Esplêndido, não?
— Você é deprimente, mas devo admitir que esse é belo discurso —
disse Carlos, fitando Alan como estivesse encarando o próprio Vip —,
mas quero dizer uma coisa: Esse pato, que derrubou dois gaviões, vai
derrubar mais alguém. Um enorme abutre carniceiro que gosta de
arrancar as vísceras das pessoas…
— Carlos, você não me assusta. E quer saber? Você está muito
abusado para alguém que está em desvantagem neste jogo!
— Solte-a, Vip. Ela nada tem a ver com isso tudo. Deixe-a ir; deixe-
nos ir e esqueço tudo. Fazemos de conta que isso nunca aconteceu; que
nunca nos encontramos.
Carlos falava sério, como nunca falara antes em sua vida. Era uma
tentativa desesperada.
Vip olhou para Lucas ao seu lado na mesa de conferências e
balançou a cabeça de um lado para o outro, numa expressão de total
desprezo.
— Oh, Carlos, sinto muito, muito mesmo, mas não posso fazer isso
e você sabe que não. Ela é minha apólice de seguros para você se manter
longe de mim. Não posso jogar fora uma apólice de seguros deste
gabarito assim de uma hora para outra, não é mesmo?
— Ora, seu… !!! — esbravejou Carlos, mais alto do que deveria.
— Psiu! — Alan tapou rapidamente a boca de Carlos, alertando-o
do barulho que havia feito, quase inconscientemente.

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Transformação - Naasom A. Sousa

&&&

Aquela não era realmente a noite da senhora Kruller. Não havia


conseguido grudar os olhos na maior parte da noite. Sentia-se cansada e
as dores em sua coluna estavam insuportáveis, pedindo um longo
repouso e isso era apenas ingredientes para que a sua noite de sono
fosse por água a baixo. Talvez fosse por causa da preocupação com
Cristian, seu único filho, que havia viajado a trabalho para o exterior à
uma semana atrás, afim de assumir lá o cargo de gerente comercial
numa empresa cujo nome ela não se lembrava, e até então ele não lhe
mandara notícias.
Ficara com dor de cabeça — coisa que a fez sair da cama e descer
para a cozinha, tomando lá uma aspirina acompanhada por um copo
d’água. Voltara ao quarto e trancara a porta. Nunca deixava
destrancada, pois tinha medo de algum dia sua casa ser assaltada e, no
caso, com a porta ali, entre ela e os ladrões, fazia se sentir mais segura.
Tornou a se deitar na cama já um tanto desarrumada e olhara para
Edson, seu marido. Desejou naquela noite ser tão dorminhoca quanto
seu marido o era, pois se a casa viesse a baixo e apenas o quarto
permanecesse intacto, ele certamente não saberia o que havia se passado
até o dia seguinte quando acordasse.
Passou-se mais uma hora até Júlia Kruller fechar os olhos e
adormecer num sono penoso e trabalhoso, mais ainda quando começou
a sonhar com Cristian sendo cercado por dois assaltantes num beco onde
passava. Um deles estava armado com um revólver e ameaçava o rapaz
indefeso, mandando-o entregar o dinheiro que tivesse na carteira. O
moço entregou a carteira e um outro assaltante conferiu o dinheiro.
Achando a quantia muito pequena, o assaltante perguntou: “E só isso
que você tem?” Cristian disse que sim e o assaltante armado, sem mais
nem menos, apertou o gatilho esbravejando: “Ora, seu…!!!”.
Não!!! Gritou Júlia sentando na cama com um pulo inconsciente.
Percebeu que o grito que dera não havia saído de sua boca, pois estava
sufocada, sem ar, estarrecida. Puxou pelas narinas o oxigênio com tanta
ferocidade que quase estourou os pulmões e, com um longo suspiro,
soltou o ar de uma só vez. Ficou imóvel por cinco minutos, recuperando
a calma e o compasso rítmico do coração.

&&&

64
Transformação - Naasom A. Sousa

— Controle-se, Carlos! Pode ter gente lá em cima, você sabe… —


disse Alan apontando para o andar acima de sua cabeça.
Carlos olhou para Alan com olhar de fúria.
— Tá legal, tá legal! Fica frio ai, ok? — Falou baixo outra vez.
Tornou a colocar o fone na posição certa para falar. — Ouça agora, Vip…
Não, melhor ainda, Lucas está por ai?
Vip olhou para seu subordinado novamente.
— Está sim, bem aqui do meu lado. Por quê?
— Gostaria de falar com ele, já que estamos em família…

&&&

Vozes! Alguém estava em sua casa. Os sussurros vinham da sala


bem abaixo do seu quarto. Ela hesitou em acordar Edson e escutou um
pouco mais. Percebeu que eram duas vozes distintas. Dois assaltantes,
como no pesadelo! Pensou. Júlia começou a suar, colocou as mãos entre o
rosto e atentou mais um instante para as vozes. Notou que agora só um
falava. Olhou para Edson. Era melhor acordá-lo ou não? Na dúvida,
optou pela segurança. A segurança dos seus bens.
— Edson — chamou ela, baixinho para não chamar a atenção dos
usurpadores —, Edson, acorde! Tem pessoas lá em baixo!…
Edson apenas se remexeu de um lado para o outro, deixando
escapar um gemido preguiçoso.
Júlia meneou a cabeça um pouco decepcionada, um tanto
desesperada e muito enraivecida.
— Você não tem jeito mesmo — pegou o travesseiro atrás de si e
pôs-se a bater em seu marido com ele —, acorde, Edson, acorde! —
chamou ela, mantendo a moderação em sua voz.
Edson arregalou os olhos e sentou-se na cama rapidamente com o
susto. Júlia, sem perder tempo, soltou o travesseiro e tapou a boca do
seu marido, sabendo que dali não sairia outra coisa senão muitos
palavrões altos e em bom som. Fez sinal para que não fizesse barulho e
se acalmasse. Edson balançou a cabeça mostrando compreensão, então
Júlia soltou sua boca.
— Que negócio é esse, querida, O que está acontecendo? Por que
me acordou a almofadadas? Eu estava roncando outra vez?
Júlia teve que rir, mas seu riso era abafado e nervoso e Edson
percebeu isso.
— O que foi Júlia?

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Edson, ouça… Quero que fique calmo, está bem? — Ele, ainda
confuso, tornou a menear o cenho. — Acho que tem alguém lá em
baixo…
— Ladrões? — Interrompeu.
— Não sei ao certo, mas ouvi sussurros; duas vozes que vieram da
sala. Tem alguém lá com certeza.
Edson saltou da cama e caminhou suavemente até o armário de
onde tirou uma caixa e um objeto comprido que, no escuro, Júlia não
conseguiu distinguir. Edson caminhou até ela, e o objeto comprido
tomou forma. Era uma espingarda de cano duplo. Ele abriu a caixa e
tirou duas balas que ocuparam seus espaços reservados nos canos da
arma, depois tirou mais seis e colocou no bolso da calça do pijama que
vestia.
— Edson, o que você vai fazer com isso? Pode ser perigoso…
— Ninguém vai roubar minhas coisas que com tanto sacrifício
comprei. Se alguém quiser isso, vai ter que passar por cima de mim! —
Disse, engatilhando a espingarda.

&&&

— Alô, Carlos, pensei que iria se esquecer de mim. Já estava me


sentindo magoado — disse Lucas ao receber o telefone das mãos de Vip.
Mas que ironia! Pensou Carlos, Esses caras dariam ótimos atores.
— Não se preocupe, Lucas, nunca irei lhe esquecer, prometo, pelo
menos não até acabar com você. Não se esqueça que você é o segundo
do meu rol pessoal.
— Oh, Carlos, não deveria falar assim de mim. Sempre fui tão legal
com você! Acho que não mereço isso… ainda mais quando tenho uma
coisa que com certeza você queria em suas mãos agora.
Carlos fechou os olhos e abriu um pequeno sorriso.
— Sei disso, Lucas. Mas sem querer me intrometer nos seus
assuntos particulares, mas já me intrometendo… Gostaria de saber se
você já entregou a fita k7 ao Vip. Você entregou?
Lucas abriu bem a boca ao dizer:
— Oh! Não havia me lembrado até este momento, mas já que tocou
no assunto, irei entregá-la agora mesmo. — Olhou para Vip e falou que
Carlos estava falando sobre a fita, enfiou a mão no bolso do terno e
vagueou-a de um lado para o outro. A boca aberta de excitação
transformou-se em boca fechada de preocupação. Não estava naquele
bolso. Olhou para Vip com um sorriso sem graça. — Deve estar neste

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Transformação - Naasom A. Sousa

outro bolso. — Disse ele ao meter a mão em outro bolso, e depois em


outro, em outro e em todos os que haviam em seu terno e em sua calça.
— Essa não! — Foi tudo o que pôde dizer diante da situação em que se
encontrava.
Vip tomou o seu braço e apertou-o com força, inquirindo:
— Onde está a fita, Lucas?
— Vip… não sei o que dizer… estava no meu terno quando
estávamos com os tiras… — Lucas colocou as mãos na cabeça e fechou
os olhos, tentando vasculhar em sua mente o possível paradeiro da fita
k7. De repente, trouxe o fone de volta à boca. — Onde está a fita, Carlos?
— O quê? — Indagou Carlos, do outro lado da linha.
— A luta. Quando aquele cara apareceu, você pulou em cima de
mim e rolamos pelo chão… Pegou a fita naquela hora, não foi?
— Que coisa, Lucas, você daria um ótimo detetive, sabia? É isso
mesmo. Peguei a fita e ela está em meu poder agora, mas… não falo com
os porcos, prefiro falar com o dono. Vamos, passe o fone para o Vip —
ordenou Carlos, mantendo o leve sorriso nos lábios.
Lucas estendeu o fone para Vip.
— Quer falar com você.
— Seu idiota! Como pôde deixar que ele pegasse a fita de volta? —
Gritou Vip.
— Vip, eu…
— Não quero ouvir suas lamúrias agora. Depois falo com você. —
Tirou com fúria o fone das mãos de Lucas e levou os lábios ao bocal. —
Carlos…
— Não diga nada, Vip — disse Carlos, interrompendo seu ex-chefe
—, apenas ouça: eu estou com a fita e com todos os seus planos nas
mãos. Creio que as regras mudam de agora por diante, assim como a
vantagem muda de lado.
Sem que Carlos e Alan notassem, um vulto se aproximava do
cômodo onde se encontravam com passos curtos e silenciosos, chegando
cada vez mais perto e mais perto. Desceu os degraus da escada e passou
a andejar o corredor que ligava a sala de jantar à sala de estar.
Carlos continuava a ditar as novas regras:
— Agora não me diga o que fazer e não me pressione. Apenas me
escute. Não quero que encoste num fio de cabelo dela, entendeu? Ou
tudo estará acabado para você. Uma coisa muito importante para mim
está em seu poder e outra muito importante para você está nas minhas
mãos, então…

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Transformação - Naasom A. Sousa

Subitamente uma estrondosa voz soou preenchendo todas as partes


do recinto:
— Parados! Não se movam ou pedaços dos seus cérebros irão se
espalhar por toda a sala!
Alan e Carlos se tornaram estátuas num instante quando olharam a
figura esguia e de meia idade já no meio da sala apontando a enorme
arma em sua direção. Carlos, com todo o cuidado, moveu apenas o
necessário (a boca) para terminar a conversa com Vip.
— Ligo para você depois, Vip. Mas não se esqueça: não faça nada
que venha a me irritar.
— Carlos, espere ai… —Vip ia dizer várias coisas que Carlos não
agradáveis, mas não houve tempo para isso. Desligou o telefone sem
nenhuma cerimônia, e sem tirar os olhos de Edson, transformou-se em
estátua outra vez.
Edson inquiriu:
— Tentando roubar a minha casa, não é? Mas não se sairão bem
desta, miseráveis. Sabe, olhando para vocês, me dá vontade de apertar o
gatilho de uma vez, porque a raiva que tenho de ladrões é enorme.
Maior do que o buraco que esta belezinha aqui — mostrou a arma com
um meneio de cabeça — faz num corpo humano.
— Meu senhor, não somos ladrões… — Alan tentou explicar a
situação, mas Edson não deixou que continuasse.
— Ah, não? Então estão aqui para me fazer uma visita e tomar
bolinhos com chá?
— Não! Estávamos apenas querendo dar um telefonema urgente.
Não queríamos incomodá-lo, mesmo porque já é muito tarde, e… o que
o senhor pensaria se batêssemos em sua porta? Dois estranhos no meio
da madrugada, dizendo querer dar apenas um telefonema. Não seria um
tanto suspeito?
Edson vagueou um pouco os olhos, pensando na explicação do
homem à sua frente, então tornou a fitá-los e sentenciou:
— Sua história não me convenceu nem um pouco, e além do mais,
vocês me dão arrepios. Vamos, mãos para cima, agora! — Ordenou.
Carlos olhou para Alan e este entendeu o significado do olhar.
Nenhum dos dois se moveram.
— Vocês são surdos ou estão mesmo é querendo levar chumbo? —
Perguntou Edson, irritado. — Tomara que prefiram a segunda opção,
pois a acho ótima. Vamos, levantem essa droga de mãos agora!!
Alan levantou sua mão esquerda bem devagar e Carlos, por sua
vez, levantou a mão direita. Conservando assim, as mãos algemadas

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Transformação - Naasom A. Sousa

encobertas pela sombra de um vaso que estava perto da estante. Edson,


vendo isso, sorriu.
— Não acredito nisso! Mas já que vocês preferem assim, aqui vai —
colocou a espingarda à altura dos olhos e mirou na direção dos dois.
Carlos respirou profundamente e uma gota de suor deslizou por
seu rosto até se transformar numa manchinha quando aterrissou em seu
paletó. Engoliu seco e começou a levantar a mão esquerda — a mão
promissora — lentamente. Alan olhou par Carlos, observou seu
movimento e começou a fazer o mesmo.
— Assim está melhor. Pelo menos não irei gastar minha munição
com vocês — disse Edson, observando atentamente os dois
movimentarem as mãos ao alto, até que notou algo fora do comum. A
medida que os membros dos assaltantes subiam alguma coisa presa a
eles reluzia. Algo parecido com metal ou aço. Uma espécie cromada. A
elevação das mãos separaram-nas da sombra e se tornou nítida a coisa
brilhante que envolvia os punhos dos ladrões.
— Uma algema?!! — espantou-se Edson
Nenhum dos dois se mexeu. Os canos da espingarda eram muito
assustadores e fazia com que todas e qualquer reação se tornasse apenas
num pensamento negativo.
— Para vocês estarem presos com isso, é porque coisa boa não
fizeram. Também é provável que estejam fugindo de alguém, mais
provavelmente da polícia.
Alan tentou novamente:
— Senhor, não somos criminosos. Fomos presos injustamente.
Precisa acreditar em nós…
Carlos voltou-se para Alan, irritando-se com a situação.
— Mas que droga! Não está vendo que estamos algemados? Isso já
diz tudo! Tudo isso que você está dizendo, pra ele, é conversa pra boi
dormir!
— Calem a boca!! — Gritou Edson.
Os dois se calaram e tornaram-se estátuas novamente sob a mira da
imponente espingarda.
— Amor, está tudo bem ai? — A voz de Júlia ecoou nas paredes do
corredor que dava para a sala.
Edson deu ouvidos ao chamado da esposa e falou em voz alta:
— Júlia, não venha para cá, ouviu? — Edson deu passos pequenos
para trás tentando alcançar o corredor e repetir a precaução à sua
mulher.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Carlos baixou os olhos para a mesinha onde estava o telefone e o


cinzeiro e desceu um pouco o braço direito, aproveitando o movimento
retrógrado de Edson, sempre variando o olhar dos fugitivos para o
corredor.
Em instantes Edson estava onde queria. Deu uma olhada rápida
para os dois homens — tão rápida, que não notou a mão direita de
Carlos um tanto baixa — para se certificar de que continuavam em seus
devidos lugares e imóveis e voltou-se para o corredor onde Júlia se
encontrava.
Carlos baixou mais um pouco seu braço direito, e então mais um
pouco e um pouco mais.
— Júlia, não venha para cá! Suba e chame a polícia!
— Chamar a polícia? São ladrões mesmo?
Carlos observou que Edson mantinha o olhar em sua esposa e
aproveitando a oportunidade, pegou o cinzeiro rapidamente.
— O que você está fazendo? — sussurrou Alan.
Carlos nada falou, enquanto Edson respondia à Júlia:
— Sim. Chame a polícia, rápido!
Agora!
O cinzeiro voou da mão de Carlos numa jogada rápida.
Edson olhou de volta para os invasores e tudo o que pôde ver foi o
brilho do cinzeiro antes do impacto em seu nariz, que instantaneamente
se esvaiu em sangue. Houve um grande grito de dor que ecoou por toda
casa. Edson levou uma mão ao nariz quebrado e tentou manter a outra
rija e firme segurando a espingarda. Com grande esforço teimava em
permanecer em pé e não ser vencido pelo sofrimento físico, que era
insuportável. Gritou outra vez de dor e, com a mão já trêmula, puxou o
gatilho.
O vaso que antes encobria a algema com sua sombra, explodiu em
vários pedaços, que voaram para todos os lados.
— Edson!!! — Gritou de Júlia ao ver o marido já ensangüentado.
Correu ao seu encontro.
Outro tiro foi disparado. A bala chispou entre Alan e Carlos e
explodiu na parede atrás dos dois, fazendo-os se abaixarem e se
protegerem.
Dois tiros; duas balas. Pensou Carlos, consigo mesmo, que levantou-
se rapidamente e avançou na direção de Edson. Serrou o punho direito e
puxou Alan com todas as forças, obrigando-o também a ficar de pé.
Aproximou-se de Edson, jogou o braço para trás e puxou-o velozmente
para frente, desferindo então, um potente soco no nariz do homem

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Transformação - Naasom A. Sousa

ferido que já se encontrava completamente inchado. Desta vez, Edson foi


ao chão, contorcendo-se de dor.
— Querido!!! — Alarmou Júlia quando chegou à sala e juntou-se ao
marido caído no chão sangrando e gemendo com a mão no nariz. Ela se
ajoelhou e deitou sobre o corpo do seu esposo, abraçando. — Por favor,
não o machuquem mais! Por favor, peguem o que quiserem e vão
embora! Por favor! Por favor! Por favor!! — Chorou ela.
— Saia de cima de mim, Júlia! Ninguém vai levar o que é meu, nem
que eu tenha que morrer por isso! — Ordenou Edson aos berros
empurrando a esposa para o lado.
— Não, querido!!! — Gritou Júlia, temerosa e histérica.
Senhor, tem misericórdia de nós! Dá-nos o livramento, ó Deus! Clamava
Alan intimamente, temendo que algo mais grave acontecesse.
Carlos observou Edson abrir a espingarda e meter a mão no bolso
da calça do pijama manchado de sangue e constatou que certamente
seria para pegar munição. Esse cara é duro de roer, pensou. Não soube o
que fazer. Estava meio desorientado no momento. Precisava pensar,
voltar a ser o Carlos de um minuto atrás. Pense! Gritou silenciosamente
para si mesmo. Fugir! Sair do meio de tudo aquilo! Lembrou do chaveiro de
madeira ao lado da porta e das chaves presas a ele. Carlos deu duas
piscadelas rápidas e os movimentos começaram a fluir de seu corpo
novamente. Seus pensamentos e instintos estavam de volta. Puxou Alan
correndo para o chaveiro na parede e observou atentamente todas as
chaves. Pegou um molho com duas chaves que ligeiramente lhe pareceu
as que mais se identificaram com as de uma caminhonete e voltou-se
rápido para Edson, que já estava acabando de recarregar a espingarda.
— Vamos!! — Disse ele, quando começou a correr velozmente,
passando pela porta e saindo na varanda. Chegando aos degraus da
escada, Carlos preferiu não usá-los, pulando sobre eles e chegando no
chão mais rápido. Alan foi puxado para baixo e quase se esborrachou
quando aterrissou com as pernas frouxas no solo, mas não reclamou.
Aquilo era preciso diante das circunstâncias. Recompôs sua postura
mais que depressa e seguiu a Carlos, que partia na direção da
caminhonete.
— Você sabe dirigir? — Perguntou Carlos.
— Sei.
— Espero mesmo que sim, e muito.
Chegaram diante da porta do motorista no veículo e Carlos colocou
uma das chaves na tranca e girou-a. Não servia. Pegou a outra com mão
trêmula e tornou a enfiar na tranca, girou-a e, desta vez, a porta

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Transformação - Naasom A. Sousa

destravou. Carlos abriu-a e pulou dentro da caminhonete, ocupando o


seu lugar no banco do passageiro, pois não poderia dirigir com seu
braço esquerdo algemado. Alan entrou logo em seguida, ficando de
frente ao volante. Foi-lhe entregue as chaves do veículo.
— Liga logo esta coisa e vamos dar o fora daqui, agora!!
Alan pediu a proteção e direção ao Senhor numa brevíssima oração
e meteu uma das chaves na ignição, girou-a e o motor roncou com um
barulho ensurdecedor.
Edson saiu porta afora até a varanda, empunhando a espingarda já
recarregada e mirou na direção dos invasores/ladrões/fugitivos dentro
de sua caminhonete a ponto de roubá-la.
— Irei matá-los, desgraçados. Deixem minha caminhonete onda
está! — Berrou Edson, escancarando seus pulmões.
Alan engatou a primeira marcha e acelerou. Os pneus jogaram areia
para trás e o veículo se movimentou com todo o furor para um lado e
outro até ficar firme e ereto na estrada.
O gatilho foi puxado e a arma sacudiu quando a bala saiu à procura
do alvo, acertando a lanterna traseira da caminhonete, fazendo-a em
pedaços. Outro disparo foi dado e a bala atravessou os pára-brisas de
trás para a frente do veículo, passando no meio dos dois homens,
fazendo-os abaixar de susto.
— Jesus!! — Exclamou Alan.
Carlos chamou um palavrão.
O carro foi acelerado ainda mais e ganhou maior velocidade,
distanciando-se de Edson e sua espingarda de cano duplo.
Alan suspirou profundamente de olhos na estrada e agradeceu ao
Senhor pelo livramento: Obrigado, Jesus, pelo livramento que Tú nos deste.
Obrigado, estou muito grato.
Carlos também suspirava aceleradamente, mas de olhos fechados,
deixando que Alan e o veículo o guiasse naquele instante. Ele também
estava muito, mas muito agradecido. Mas se perguntassem-no a quem,
não saberia responder.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 6

O hospital Norton Ramos continuava com seu movimento uniforme.


Pessoas entrando e saindo; macas sendo ocupadas; pessoas chorando,
pessoas rindo aliviadas; médicos se concentrando para fazer operações;
portas abrindo e fechando com enfermeiros; residentes e médicos saindo e
entrando por elas, tudo numa ação rápida e constante. Isso entediara Axel
que, por mais que estivesse acostumado com toda a movimentação das ruas
de Melmar, não agüentaria permanecer por mais um minuto nos corredores
do NR.
Uma residente adentrou o corredor segurando uma prancheta e passou
por ele. Axel segurou em seu braço suavemente. Ela voltou-se e o encarou.
— Desculpe, moça, mas é que estou com um amigo aqui, um agente
policial, seu nome é Pablo Tavares, recebeu um tiro no peito e outro na
cabeça, e eu queria saber sua condição atual. Se a senhorita puder me dar
alguma informação eu ficaria agradecido.
— Pablo Tavares… — a enfermeira abriu a prancheta e passou o dedo
por sobre alguns nomes e parou embaixo do nome Tavares, Pablo. — Sr.
Tavares, aqui está. Baleado com um tiro na cabeça e um no peito, neste, a
bala está alojada no local. Removido para a sala de operações às três horas e
dezesseis minutos e seu estado é preocupante. — A moça levantou o olhar
até encontrar o de Axel. — Ele tem algum parente próximo?
Parente? Axel pensou em ter se esquecido de uma coisa: ele olhou para
o relógio. 3h 23mim.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Ele tem sim, mas agora eu tenho que ir — disse. — Me diga uma
coisa… essa operação demora?
— Depende de onde a bala se encontra. Se estiver em alguma área de
risco, pode demorar mais por ser de maior delicadeza, e como esse é o caso
do Sr. Tavares…
Axel olhou outra vez para o relógio.
— Sendo assim, acho que tenho um pouco de tempo. Até mais. — Ele
andou rápido até o fim do corredor e sumiu da vista da enfermeira quando
fechou a porta da saída atrás de si.

&&&

O estacionamento do Norton Ramos era uma estrutura rústica de


concreto não muito antiga. Fora projetada um pouco depois do hospital de
emergências ao seu lado por um arquiteto diferente do que desenhara o NR.
Sua estrutura era formada por um andar e o térreo, sendo que os dois
vagões, sustentados por dezenas de colunas de concreto, davam para os
corredores do hospital que levavam à recepção.
Axel encontrava-se em seu carro-patrulha próximo ao portão de
entrada e saída, numa vaga. Achava que a iluminação estava escassa, pois
estava um tanto sombrio. Deveria ser algumas lâmpadas quebradas ou
queimadas. Estava quente também, pensou em não haver ali nem um tipo
de ventilação. Talvez ninguém ficava naquele estacionamento por muito
tempo, só o tempo suficiente de entrar e sair do hospital. Ele abriu a porta
do carro e saiu dele, não queria ser uma exceção. Fechou a porta e trancou-a
girando a chave na fechadura. Axel começou a andar até o portão para
tomar um pouco de ar fresco.
Uma luz forte atingiu a entrada do estacionamento e depois se pôde
ver de onde vinha. Um carro esportivo preto passou pelo portão fazendo
clarear toda a sombriedade do lugar. O veículo passou ao lado de Axel e a
pessoa ao volante acenou.
Era Caroline. Ele acenou de volta e ela estacionou numa vaga,
apagando os faróis e devolvendo a escassez luminária ao recinto.
A bonita mulher saiu do carro e trancou a porta acionando o alarme
com um pequeno controle remoto. Ela pôs-se a caminhar na direção de
Axel, guardando o pequeno aparelho na bolsa que segurava em suas mãos.
Ao chegar perto do agente ela falou nervosa:
— Axel, o que está acontecendo realmente? Onde está Pablo? Como ele
se encontra? Como foi que aconteceu tudo isso? Como…

74
Transformação - Naasom A. Sousa

— Calma, Caroline — disse Axel, com um leve toque no ombro da


amiga, — Não há nada que possamos fazer no momento a não ser
esperarmos o fim da operação e o parecer dos médicos.
— Operação!!??
— É, ele está sendo submetido a uma operação, mas tenho certeza que
os médicos estão fazendo o melhor possível para que ele fique bem.
Caroline respirou fundo e acalmou-se um pouco.
— Está certo, você tem razão. Isso vai demorar?
— Não sei exatamente — mentiu —, esqueci de perguntar à enfermeira
com quem conversei, mas ela falou que a operação começou às três e
dezesseis, e… — ele olhou para o relógio. — São agora três e meia, acho que
isso demorará um pouco mais.
Ela ficou em silêncio e apenas meneou a cabeça. Axel propôs:
— Então, acho que você está muito tensa e eu um pouco cansado.
Conheço um trailer a alguns quarteirões daqui onde se serve um bom café
quente, e é um lugar ótimo pra gente relaxar e quebrar essa tensão.
— Me parece bom — disse a repórter, sem muito entusiasmo. — Assim
aproveitamos e você me conta o que sabe sobre tudo isso, tim-tim por tim-
tim.
Axel concordou e deram-se os braços como velhos amigos, dirigindo-se
à saída do estacionamento.
— Como está Tina? — Indagou Caroline, quando já se encontravam na
rua.
— Ah! Minha bela esposa está cada vez mais bonita. Ela tem falado
muito de você ultimamente. O que você está fazendo com minha mulher?
— Brincou o agente.
— Ora, eu nada, Mas algum dia…
A voz de Caroline sumiu subitamente em meio ao alarido de sirenes
que gritaram de uma das esquinas da rua por onde caminhavam.
— O que é isso? — Gritou Axel em meio ao barulho. Os dois
permaneceram em seus lugares até que uma ambulância apareceu numa
curva fechadíssima e voou até o portão principal da emergência,
acompanhada por duas viaturas. Prontamente, os médicos correram com
uma maca até ambulância e um homem que estava dentro do veículo
gritou, dizendo que precisariam de mais outra.
Um para-médico sumiu, entrando no hospital e após poucos segundos,
retornou empurrando outra maca. Os homens da ambulância mais dois
para-médicos removeram um par de leitos de dentro do veículo e
colocaram-nos no chão, posicionando-se para as trocas de macas. “Um, dois,

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Transformação - Naasom A. Sousa

três, agora!” Disseram antes de mudarem os feridos para as outras camas de


ferro.
— Liguem para minha mulher! — Resmungava um deles. — Liguem
para ela e digam onde estou! Digam que estou bem!
Axel achou a voz conhecida. Muito conhecida, por sinal.
— Espere aqui um pouco, eu já volto. — Disse ele, se afastando da
repórter. Andou rápido e chegou até os pacientes feridos. Observou que um
deles sangrava muito, mas não pôde ver quem era, pois os para-médicos o
estavam rodeando, assim como ao outro.
— Droga, eles fugiram! — Berrou o paciente resmungão.
— Oliver!? — Axel chamou e perguntou ao mesmo tempo em alta voz.
— Quê!! — respondeu Oliver, empurrando um para-médico para longe
no sentido de poder enxergar quem o chamava.
Axel se aproximou.
— O que aconteceu, Oliver? — Indagou. — Onde estão os…
— Fugiram, Axel. Eles fugiram; escaparam — disse o velho tira
fazendo uma expressão de dor.
Axel parecia confuso.
— Mas como escaparam? Como…
— Não sei ao certo — interrompeu Oliver, pensando numa mentira
outra vez — aconteceu muito rápido. Parece que um deles tinha algum tipo
de chave, um arame ou algo parecido e conseguiu abrir a algema. — Selton
viu isso pelo espelho retrovisor, se afobou e bateu o carro num poste.
— Selton perdeu o controle?
— Isso mesmo, — é isso ai, Oliver, você conseguiu de novo, pensava —,
não sei como, aconteceu num piscar de olhos, sabe? Mas isso acontece sem a
gente ao menos prever… — se contorceu com outra pontada de dor — você
sabe como é.
— É, eu sei, sim — concordou Axel.
Oliver pensou na jogada final; o xeque-mate da situação. Ele puxou ar
num arquejo simulado e decretou:
— Axel… eles confessaram.
— O quê?
— Eles confessaram, cara! — Um tom de firmeza e veracidade poderia
ser detectada na voz de Oliver. — Antes do acidente eles confessaram e
disseram que até debocharam da cara de Pablo no momento que o
liquidaram. Cara… me deu vontade de apagar eles naquela mesma hora.
— Calma, Oliver, vamos pegá-los. Não se preocupe.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Não me preocupar? Não é você que está metido em toda essa confusão com o rei
das drogas da cidade! Não é sua cabeça que está em jogo! Pensou Oliver, olhando
fixamente para o jovem agente à sua frente.
Uma mão tocou o ombro de Axel, que olhou para trás e viu quem o
tocava. O médico piscou para ele.
— Desculpe-me, senhor policial, mas temos que removê-los para
dentro agora. Com licença.
— Tudo bem — disse Axel cordialmente, afastando-se e dando espaço
para os para-médicos cuidarem de Oliver novamente. — Fique bem, Oliver.
— Observou as macas serem empurradas para dentro do hospital. Selton,
recebendo mais atenção por parte dos médicos do que seu parceiro. Axel
permaneceu parado, fixo no mesmo lugar por um minuto, absorvendo todo
o relato do veterano tira. Toda a história era um tanto confusa. Voltou a si e
meneou a cabeça, olhou para Caroline, que ainda permanecia esperando-o
no meio da rua. Com esta notícia, com certeza ela irá ficar louca da vida, pensou
ele. Mas ela vai ter que agüentar. Afinal, é uma repórter.
Axel caminhou até Caroline e tornaram a dar os braços. Puseram-se a
andar rua abaixo, na direção do trailer Serve Bem.
— Há algo errado? — Perguntou Caroline.
— Não… Ah… não, não há nada de errado.
Caroline baixou a cabeça.
Essa não! Ela percebeu!
— Axel… eu conheço você. Não muito bem, mas conheço. O que há de
errado? Sua expressão mudou desde que falou com o policial lá atrás. O que
foi? Alguma notícia ruim?
Agora foi a vez de Axel baixar a fronte.
— Sim, mas… por favor, não me faça contar nada agora, Sta. repórter.
Quero tomar uma xícara de café antes, tá legal?
— Como quiser, Sr. agente.

&&&

A grande mesa estremeceu com o soco enraivecido de Vip e chamou a


atenção de todos no recinto fechado. Ele esbravejava, parecia um demônio
em pleno manifesto. Quase se podia ver um fogo desvairado em seus olhos.
— Admitir seu erro não vai de maneira nenhuma minimizar sua
incompetência! — Berrou irritado.
Lucas, o alvo das acusações, tentava explicar-se de todas as formas
possíveis, mas todo esforço era em vão. Vip continuava a explodir críticas
ferozes:

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Você não poderia ter deixado que aquela fita permanecesse nas
mãos daquele cretino! Você não vê o risco que estamos correndo agora? —
O poderoso homem levou a mão ao queixo e então alisou os cabelos,
tentando afastar os pensamentos pessimistas. — Droga! Agora estamos nas
mãos dele — voltou-se para Lucas, seu olhar era como uma metralhadora a
disparar furiosamente —, e não pense que ele é inofensivo e desprezível só
porque não tem poder, porque no momento ele é mais poderoso que nós.
Vamos nos submeter a ele, e tudo por sua culpa!
Lucas não reagiu ao desabafo. Tentou permanecer sereno e ocultou seu
impulso assassino.
— Vamos pegá-lo, Vip, é só uma questão de…
Outro violento soco na mesa que fez Lucas se calar.
— Me diga: como vamos pegá-lo, se no momento não sabemos onde se
encontra?
— Não sabemos agora, mas logo irei descobrir, e estaremos com ele na
nossa mira.
Vip suspirou de ódio, apontou o dedo indicador no rosto de Lucas e
sentenciou:
— Pois é bom que faça isso mesmo e logo, porque senão você nem irá
saber o que lhe atingiu quando estiver dando o último suspiro, à beira da
morte. — dito isto, virou-se e deixou o recinto, batendo fortemente a porta
atrás de si e deixando Lucas olhando para as paredes à procura de uma
solução para todos os seus problemas.

&&&

O trailer Serve Bem era modesto, mas que agradava quem gostava de
um bom lugar para comer um sanduíche com batatas fritas ou
simplesmente tomar um cafezinho ao ar livre. Ao chegar no
estabelecimento, podia-se ver dez mesas de acrílico com o logotipo da
lanchonete, espalhadas ao redor do trailer e algumas pessoas sentadas a elas,
todas sorrindo e conversando coisas que somente interessavam a elas
mesmas.
O proprietário era George, um senhor de meia idade e barriga
avantajada. Axel o conhecia há algum tempo, pois sempre que tinha alguma
folga acompanhada de fome, dirigia-se ao trailer de George e experimentava
seus deliciosos sanduíches especiais.
Caroline e Axel chegaram ao trailer e sentaram a uma mesa desocupada
à dois metros da lanchonete sobre rodas.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Eu vou pedir um café — disse o agente. — E você, qual a sua


pedida?
Caroline retirou o casaco de cima dos ombros e o colocou sobre as
pernas, junto com a fina bolsa de couro.
— Não sei, Axel, estou muito preocupada com Pablo… Não estou com
muita vontade de comer no momento.
Um jovem rapaz vestido com o uniforme do trailer se aproximou da
mesa e abriu o seu caderninho de pedidos e prontificou a caneta para anotar
o que os clientes desejavam. Ele olhou para o jovem agente e o reconheceu.
— Axel! Como vai? — Indagou o jovem. — O que vai querer? O
especial de sempre?
Axel sorriu.
— Não, Patrício, hoje não estou de comer muito. Quero apenas café,
certo?
O jovem anotou em seu caderno e voltou-se para Caroline.
— E a moça, o que vai pedir?
— Oh, eu não sei…
— Café para ela também, patrício — intrometeu-se Axel. O rapaz
tornou a anotar em seu caderninho, pediu licença e distanciou-se deles para
entregar o pedido a George. Axel virou-se para Caroline. — Já que você
estava indecisa, tomei a liberdade de pedir. Você falou que não estava com
vontade de comer, e como café não é comida… Também, essa bebidinha
milagrosa irá lhe acalmar um pouco.
— Obrigada, Axel. Mais uma vez você está se mostrando um grande
amigo.
O agente tocou as mãos de sua amiga, tentando passar confiança e
companheirismo.
Patrício retornou com duas xícaras de café quente e as colocou em cima
da mesa, pondo logo após, um frasco contendo açúcar para os dois se
servirem a gosto.
— “Sirvam-se bem” e fiquem à vontade — disse o jovem. — Qualquer
coisa me chamem, está bem? Com licença. — Deixou-os novamente,
passando a atender outras pessoas em outra mesa.
Caroline observou-o se distanciar e comentou:
— Deve ser um bom rapaz.
— E é mesmo — confirmou Axel. — Mas até meses atrás, sua vida era
um verdadeiro caos.
Os olhos de Caroline tomaram forma de alguém interessada e o
impulso jornalístico tomou-lhe de conta.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Já que o conhece tão bem, conte-me um pouco sobre ele. Talvez me


distraia por alguns momentos.
Axel concordou com um meneio de cabeça.
— Para começar, o pai dele morreu, deixando a mãe sozinha com dois
filhos: Patrício, de seis anos na época e Vanessa, de três. A mãe, não
suportando a barra quatro anos depois de tentar inúmeras vezes arrumar
um emprego e vivendo dos favores de todos à sua volta, suicidou-se,
matando junto a filha, esta, estando já com sete anos. Patrício, no momento
em que isso aconteceu, estava brincando com novos amigos que arranjara
nas ruas e, talvez, se estivesse ao lado da mãe, também teria sido
assassinado pela própria mãe. Depois disto se viu obrigado a andar com
seus novos amigos, que mais tarde o levaram às drogas — Patrício passou
perto deles e Axel pausou a fim de que não escutasse. — Nos cinco anos
seguintes ele roubou, feriu pessoas, invadiu casas e até, quem sabe, matou
pelo seu vício ou pelos seus “amigos”.
A expressão de Caroline era de puro espanto.
— Nossa! Mas como ele reagiu à atitude da mãe? Digo, matando a si
própria e a filha, a irmã dele no caso?
Axel experimentou o café antes de responder à repórter.
— Reagiu como qualquer um de nós reagiria. Ficou em estado de
choque por uma semana numa clínica especializada, tudo bancado por um
programa de auxílio ao menor carente que o governo estava criando. Mas
depois disto, ele fugiu para encontrar os “amigos”.
Caroline também ingeriu um pouco do líquido escuro contido em sua
xícara e mais uma indagação fluiu-lhe a mente.
— E como Patrício consegui sair disso? Quero dizer, como conseguiu
superar essa fase de sua vida e passar para essa nova? Porque acho que hoje,
quem olha para ele, nunca iria suspeitar que um dia possa ter passado tudo
isso que você acabou de me contar. Ele me parece ótimo!
O sorriso do jovem agente pôde ser visto ao ouvir a opinião da
repórter.
— É, realmente ele está ótimo. Mas até chegar a esse ponto, Patrício
sofrera bastante — Axel levou a xícara à boca, tomando mais um pouco do
seu café. Respirou fundo e continuou o relato: — A mudança dele para
melhor começou com o pior. Estava tão viciado que um dia tomou uma
overdose de cocaína. Encontrava-se só nesse dia numa casa abandonada, mas
por muita sorte um de seus “amigos” apareceu e rapidamente ligou para a
emergência. O socorro chegou, e por um milagre, Patrício ainda está vivo.
“ Levaram-no para um hospital pela segunda vez, mas agora ele não
fugiu. Não acho que estava em condições de fazer tal coisa. Quando estava

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Transformação - Naasom A. Sousa

se recuperando, um grupo de jovens e senhores foram visitar aquele


hospital e dirigiram-se até Patrício. O grupo conversou com ele de um modo
diferente e o convenceram a entrar para um programa feito por eles,
chamado: “ Viver Sem Drogas; Viver Com Jesus”. Esse programa se baseava
em livrar pessoas das garras das drogas, diziam eles.
Axel pausou a história por um momento e junto com Caroline tomou
mais um gole do café do George, que estava com sabor inigualável. Ele
continuou:
— Colocaram-no em um quarto isolado para fazer a desintoxicação.
Patrício passou dias penosos lá, mas daí por diante começou a bonança.
Depois que saiu do quarto, foi encaminhado para as acomodações e ali
conheceu vários jovens que haviam passado o que ele estava passando,
então se tornou amigo de todos. Patrício foi encaminhado a um emprego
por um dos jovens que o tinha visitado a um ano atrás no hospital. Esse
jovem conhecia George e apresentou-lhe Patrício, dando-lhe boas
referências do seu bom comportamento quando estava dentro do programa
no centro de recuperação. George o aceitou e aí está Patrício, já com um ano
de trabalho, e isto, por coincidência, está completando hoje.
— Puxa, que história! E que vida! — Exclamou Caroline.
— Isso mesmo. E olha que ele só tem dezessete anos.
Os dois beberam mais goles do café de suas xícaras e observaram em
silêncio o jovem vencedor.
Caroline perguntou a seguir:
— Axel, conte-me tudo que aconteceu com Pablo, e o que está
acontecendo agora, já que você tomou todo café da sua xícara.
Ele meneou a cabeça em pleno acordo.
— Você conhece a quadrilha Vip? — Especulou Axel.
— Sim. Pablo falava comigo sobre essa quadrilha e às vezes me
fornecia algumas matérias sobre ela para colocar no ar.
— Mas acho que ele nunca lhe disse o quanto perseguia essa quadrilha
e seu chefe. Parecia até a sina dele.
— Eu já havia percebido que ele estava metido em algo desse tipo, mas
não tanto. Às vezes ele levava material para minha casa e ficava a noite toda
de olho grudado em papéis e mais papéis e uma vez por outra resmungava.
Pensei que fosse o cotidiano de um tira como ele. Não suspeitava que fosse
tão sério assim.
Axel tamborilava os dedos na mesa enquanto ouvia a amiga, então
resolveu que era a sua hora de falar.
— Ele e Caio estavam querendo pegar mesmo esses caras. Sabe, alguns
dias atrás, os dois prenderam um componente da quadrilha numa batida

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Transformação - Naasom A. Sousa

que fizeram a uma refinaria de drogas e, depois de colocar pressão em cima


do rapaz, acabaram conseguindo um número de telefone que os levaria a
entrar em contato com a quadrilha e…
— Com esse telefone — interrompeu Caroline —, não havia
simplesmente a possibilidade de descobrir a fonte?
Axel balançou o cenho negativamente.
— Esses caras não são idiotas e Pablo sabia disso. Aquele telefone
certamente era roubado ou simplesmente o levaria a dois ou três
componentes, e isso não chamava sua atenção. Ele queria algo grande.
— Pablo e sua mania de grandeza! — desdenhou Caroline.
— Continuando… — Axel tornou a tomar a palavra —, Pablo e Caio
telefonaram e marcaram um encontro com os traficantes para uma
transação, e pelo que Pablo me dissera, o tal de Vip, chefe da quadrilha,
sempre aparecia quando a transação era de elevadas proporções, essa era a
esperança dele. Mas então aconteceu o pior. Atiraram nele e deram sumiço
em Caio. Provavelmente o queimaram como tantos outros que se meteram
com essa organização.
Caroline bebeu o restante do café, achando a voz de Axel um tanto
sombria quando no relato do desaparecimento de Caio. Isso a fez formular
uma pergunta.
— Quantas pessoas já morreram carbonizadas por essa quadrilha?
Quero dizer, quantos policiais falharam; foram pegos?
— Nos últimos três anos a Quadrilha Vip tem agido com mais
intensidade. No primeiro ano destes três últimos, doze policiais foram
carbonizados quando em missão de prender a quadrilha. Parece exagero
mas foi isso mesmo. Esse foi um grande impacto na época para todos nós da
central. Depois, no segundo ano, Pablo assumiu o caso e Caio foi-lhe
apresentado como seu parceiro dali por diante, já que este vinha de outro
distrito para cá. De lá para cá, mais nove foram mortos da mesma forma que
os demais do primeiro ano. O último, você sabe, foi o oficial Cássio Collina.
— O número de policiais mortos diminuíram bastante desde que Pablo
e Caio entraram no caso. Em dois anos depois que eles assumiram,
conseguiram diminuir mais da metade dos assassinatos — concluiu
Caroline.
— Por ai se vê a eficiência dos dois e o quanto estavam dando trabalho
para a quadrilha. Os policiais mortos sempre desapareciam em meio a uma
batida a depósitos, armazéns, refinarias ou pontos de drogas da quadrilha e
sempre eram encontrados por Pablo e Caio depois que tomaram conta do
caso.
— Por que sempre pelos dois?

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Isso era como um deboche. Componentes da quadrilha sempre


ligavam para eles dizendo onde encontrar os corpos, e os dois ficavam
furiosos com essa atitude dos traficantes. Só eu sei como isso os deixava.
Mas isso não servia para outra coisa senão para alimentar ainda mais a gana
que os dois tinham de colocar as mãos em Vip e sua quadrilha. Mas, por
ironia, provavelmente Caio é mais um a fazer parte daqueles que foram
assassinados por eles, e Pablo, só não passou a ser mais um por sorte.
Uma expressão espantada pôde ser observada no rosto de Caroline.
— Como é?
Axel respirou fundo antes de responder.
— Quando chegamos lá, haviam dois caras no local. Um estava caído
no chão e outro estava baixado ao seu lado. Perto deles encontrava-se a
possível arma do crime e uma garrafa grande contendo gasolina, e… já
sabemos para que ela serviria, não é?
O agente olhou para a repórter e percebeu o quanto àquela história
perturbava-a. Ela perguntou:
— Mas por que deixar Pablo ali e levar Caio? Por que não levar os dois
e carbonizá-los em outro lugar para depois, quem sabe, fazerem o mesmo
jogo que faziam com os dois a outros que assumiriam seus lugares?
— Talvez por que quisessem mostrar mais uma vez que pessoas como
Pablo, que arruinaram tanto suas transações e perturbaram de maneira
agressiva suas vidas, sempre acabariam daquele jeito, sem forma alguma,
sem nenhuma possibilidade de reconhecimento, que por mais que
quiséssemos ser ou demonstrar ser a lei da cidade, não seríamos mais do
que realmente somos: pó. É isso que eu acho.
Lágrimas rolaram dos olhos de Caroline, que teve que abrir a bolsa em
seu colo e pegar um lenço para enxugá-las.
— Oh… me desculpe — disse Axel. — Não queria deixá-la assim…
Ela meneou a cabeça, lutando para que a voz saísse de sua boca.
— Isso tudo… — balbuciou — tão de repente… parece que tudo
desmoronou. Num momento sonho com o homem da minha vida, e em
outro me deparo com a notícia que ele foi apanhado por uma quadrilha e
está à beira da morte numa sala de operações.
Axel esticou o braço e tocando o ombro de Caroline, tentando confortá-
la.
— Sinto muito, amiga. Mas Pablo vai sair dessa, você vai ver.
Caroline forçou um sorriso sem graça.
— Obrigada — agradeceu, soltando um longo suspiro. Olhou em volta
e indagou com voz abafada: — Axel… você falou que encontrou, quando
chegou no local marcado por Pablo com os traficantes, dois homens que

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Transformação - Naasom A. Sousa

iriam… incinerá-lo. O que os esses miseráveis disseram? Eles declararam


alguma coisa? Onde eles estão agora?
A hora da verdade, pensou o agente. Pensou em se desvencilhar, mas
seria impossível.
— Onde eles estão é o que todos os policiais de Melmar gostariam de
saber — disse ele com expressão de decepção.
— O quê?
— Aquele homem com quem acabei de falar é policial e foi ele quem se
encarregou de levá-los para a central. Mas antes de chegarem lá, houve uma
coisa que não consigo agora lembrar direito. Mas Selton, seu parceiro,
acabou batendo a viatura num poste e em conseqüência disso, eles fugiram.
— Meu Deus do céu! — Exclamou Caroline.
— Não se preocupe, Carol. Iremos pegar esses dois e toda a quadrilha.
Já temos unidades andando por toda cidade e logo teremos alguma coisa
nas mãos que nos possa auxiliar neste caso.
Caroline não falou nada por um momento. Mantinha o olhar fixo na
mesa. Axel se perguntou se ela havia escutado o que dissera a um minuto
atrás. O olho da repórter piscou, ela levantou o olhar para Axel e
permaneceu assim.
— Não vou ficar parada enquanto tudo isso se passa a um palmo do
meu nariz.
— Do que você está falando? — Especulou Axel.
— Você vai ver.
Caroline retirou o casaco de cima do colo e abriu a bolsa. Revirou-a e
observou seu conteúdo. Pegou um telefone celular e digitou um número.
Edgar atendeu no terceiro toque.
— Alô — balbuciou ele do outro lado da linha.
— Edgar, aqui é Caroline. Estou com uma grande matéria nas mãos,
mais do que quente e exclusiva, e não podemos deixá-la escapar de nós e
ver outra pessoa pegá-la.
— Carol… — houve uma pequena pausa — são quase quatro da
madrugada…
— Edgar — interrompeu a repórter —, é algo grande e você é o câmera
mais amigo e confiável que conheço no Sete. Preciso de você. Preciso desta
matéria o mais rápido possível no ar. Por favor, Edgar… Parte de mim está
em jogo! Por favor!
Desta vez, o silêncio demorou um pouco mais. Caroline sabia que tinha
interrompido Edgar no meio do seu sono ou, quem sabe, do seu namoro
com a esposa e que no momento provavelmente estava pensando se iria
continuar o que estava fazendo ou atendê-la.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Tudo bem — disse por fim Edgar. — Onde você está?


— Estou no NR. Vou ficar te esperando na entrada do estacionamento.
Venha depressa, e Edgar…
— O quê?
— Obrigada.
— Te vejo daqui à meia hora. Até já.
Caroline despediu-se, apertou o botão desligar e fitou Axel.
— O que você está fazendo? — Indagou o agente.
— Apenas tentando colocar algo em suas mãos que possa auxiliá-lo
nesse caso e… ajudá-lo a pegar as pessoas que fizeram isso com Pablo.
Nesse momento, Patrício aproximou-se novamente, pediu licença e
retirou as xícaras da mesa. Caminhou de volta ao trailer, mas num instante
virou-se e retornou à mesa.
— Axel…
— Pois não, Patrício?
— Desculpe a interrupção, mas é que hoje faz um ano que comecei a
trabalhar aqui no trailer com o George, e…
— Eu já sei, Patrício. Parabéns por isso.
Caroline apenas observava o diálogo dos dois.
— Pois é — continuou Patrício. — É que nesta data eu não poderia
deixar de agradecer pelo menos uma das pessoas que me tirou das ruas e
me levou para o centro, me ajudou ao longo dos anos a ser alguém e por fim
me trouxe pra cá. — O jovem levou a mão a um dos bolsos da calça jeans
que usava e puxou um pequeno embrulho, entregando-o então ao agente.
— Obrigado Axel, pelo que você fez por mim no hospital e continua
fazendo até hoje.
Patrício esticou a mão e Axel apertou-a calorosamente.
— De nada, Patrício.
Caroline olhou para seu amigo agente boquiaberta, mas igualmente
comovida. O tempo todo, quando Axel mencionara quem ajudara
Patrício, falava de si mesmo.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 7

N enhum sinal de vida foi avistado durante os quarenta quilômetros


que a caminhonete havia percorrido desde a sua captura. A estrada
parecia mais uma peça de tricô comprida, de tantos buracos que haviam
espalhados por sua extensão. Ao redor, as paisagens eram ocultadas
pela escuridão que cobria a noite como um manto negro e sem fim.
Somente se podia divisar a estrada do acostamento graças às luzes dos
faróis que cortava o negror da noite, tornando tudo na frente do veículo
um pouco mais visível.
Alan mantinha os olhos fixos na estrada, desviando sempre que
possível dos buracos que de repente apareciam na frente da caminhonete
fazendo-a estremecer e dar saltos incontroláveis. Que estrada é essa afinal?
Não foi por aqui que viemos, pensou o servo de Deus, desconfiando não estar
no caminho certo.
Carlos apenas olhava a escuridão pelo vidro da porta onde se
encontrava encostado, enxergando o nada lá fora. Vazio e assustador, como
a sua vida; seu passado, presente e futuro, se é que o futuro ainda existiria
para ele. Não conseguia pensar num futuro; para sua vida ou simplesmente
formar uma imagem na mente de como seria ela dali para frente. Acabaria
ele o resto da sua vida atrás das grades, se é que os policiais da cidade o
deixariam viver para isso? Ou simplesmente morreria abatido pela
Quadrilha? Essa era as únicas possibilidades que se acumulavam em sua
cabeça além da desordem que a ocupava. Tentou afastar esses pensamentos

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Transformação - Naasom A. Sousa

com uma leve cabeçada no vidro da porta. Vip, o estranho ao seu lado
ligado a ele por uma algema, Lucas, o policial morto, toda a polícia de
Melmar, Nicole… Só esses problemas já bastavam no momento para manter
os neurônios fervendo.
Alan desgrudou os olhos da estrada e fitou Carlos, observando seu
estado de hipnose. Era como se ele pensasse em alguma coisa ou… em
alguém.
Alguém. Alan lembrou-se de Melina e seus filhos. Como estavam se
saindo com sua ausência? Sem o seu sorriso que os alegrava nas horas de
tristeza, sem seu ombro amigo? Mas Melina é forte, pensou, às vezes é mais do
que eu. Deus queira que estejam bem. Mesmo com os olhos abertos e voltados
novamente para a estrada, ele se ligou com o céu.
Senhor, orou, cuide de minha família, proteja-os de todo mal e não os deixe
sentirem-se amargurados ou angustiados. Mostra-lhes que teus planos nunca são
frustrados e que o teu amor é maior e mais forte que tudo. Console a cada um deles,
pai, e dá-me forças para continuar nesta caminhada. Completa a tua vontade em
minha vida. Em nome do Senhor Jesus eu te peço e desde já te agradeço, amém.
Enxugou uma lágrima que lhe correu o rosto e tornou a voltar o olhar para
Carlos, que continuava vagueando em pensamentos.
— Você está bem? — especulou Alan.
Sem virar o rosto, Carlos respondeu:
— Se você se sente bem com tudo o que aconteceu até agora…
— Desculpe-me — Alan desviou de um buraco. — Posso fazer uma
pergunta?
Desta vez, Carlos voltou-se e fitou Alan nos olhos por um momento,
então, sem nada a declarar, virou o rosto novamente para a janela,
retornando a observar a escuridão.
Alan não soube o que aquele olhar significou, ou não quis saber.
Continuou:
— Você tem família? Alguém próximo… Alguém que goste?
Silêncio.
Alan desviou de outro buraco que já se encontrava em cima da
caminhonete. Não disse mais nada, mesmo curioso.
— Mais ou menos — falou Carlos, ainda de olho para além da janela.
— Como assim?
— Por que você está me perguntando isso, hein? Por acaso você é
homossexual e está interessado em mim?
Alan sorriu ao ouvir aquilo.
— Não, não sou homossexual, e sim, de certa forma estou interessado
em você.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Vem cá — Carlos tirou os olhos do nada e tornou a fitar Alan —, me


diz uma coisa, cara: quem é você, o que quer de mim e o que você estava
fazendo lá no meio da transação?! — Indagou explosivo.
— Sou um amigo.
— Amigo? — riu Carlos. — Dá pra explicar melhor… amigo?
— Meu nome é Alan Williams, seu amigo, e… — outra cratera — entrei
nessa para ajudá-lo a mando de uma pessoa, que aliás, também é muito seu
amigo.
— Quer dizer que você foi até lá para me ajudar, a mando de alguém
que também é muito meu amigo? — Carlos levou as mãos aos cabelos
escuros e alisou-os, um tanto impaciente.
— É isso ai.
— Ajudar-me —repetiu o traficante. — É o que você estava fazendo lá.
Mas fica difícil ajudar uma pessoa quando se está na mesma situação que
ela, não acha?
— Não quando se tem alguém ajudando àquele que quer ajudá-lo.
— E quem seria essa pessoa?
— Deus.
Carlos levou as mãos ao rosto.
— Cara, você é doido! — falou, e mal fechou a boca e de repente a
caminhonete morreu, parecendo que a conclusão de Carlos soara como um
tiro, que atravessara o painel de fibra à sua frente e atingira o motor que
agora se encontrava parado.
— Ei, não-para-não! Não precisa parar pra gente discutir as suas
loucuras — disse ele.
— Não fui eu. O motor parou.
O veículo foi diminuindo de velocidade até cessar de andar.
— E o que aconteceu? Você colocou um feitiço nele com a ajuda de
Deus?
Alan aproximou o rosto do painel e passou a observar os leitores.
— Já sei o motivo do qual paramos: a gasolina acabou — disse. Tentou
dar partida, mas o motor não funcionou.
— Essa é boa! — Carlos levou as mãos ao alto. — Nosso amigo da
espingarda é esperto. Ele não deixa no tanque nem o suficiente para se
chegar até a cidade. Deve ter combustível guardado em casa.
— E agora?
— Agora vamos ter que andar mais, até chegarmos à cidade. — Carlos
acendeu a luz interna da caminhonete e abriu o porta luvas, mexendo então
nas coisas que continham dentro dele. Por sorte, encontrou o que estava

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Transformação - Naasom A. Sousa

procurando: uma lanterna. — Vamos precisar disso até lá se não quisermos


tropeçar em mais alguma pedra.
Os dois abriram as portas simultaneamente, cada um querendo sair
pela porta mais próxima. Então trocaram um olhar, perguntando um ao
outro através dos olhos, por qual lado sair.
— Vem por aqui — disse Carlos, que saiu por sua porta, seguido por
Alan, e começaram a caminhar pela trilha criada pelas luzes dos faróis que
se estendiam até mais adiante.
Depois de algumas passadas, Alan parou, e Carlos, que olhava para
frente fixamente, só percebeu isso quando a algema esticou, puxando-o de
volta para trás.
— O que foi agora? Está recebendo alguma mensagem do além?
— Não, escute! — Alan fez sinal para que ficasse em silêncio.
Ficaram atentos a qualquer ruído que fosse.
— Não estou ouvindo nada! — disse Carlos. — Como eu disse, você é
pirado.
— Não está ouvindo o barulho da sirene? — Alan perguntou meio que
assombrado.
— Que sirene, cara?
— Sirene de um carro de polícia! — Exclamou Alan, que começou a
andar de volta à caminhonete puxando Carlos.
— Ei! Pra onde você pensa que vai? A tem que ir para lá!
Alan voltou o rosto para Carlos com olhar de simplicidade.
— Confie em mim, por favor — pediu. E de alguma forma, Carlos foi
tocado pelo olhar simples do homem à sua frente, tanto que não soube o
que dizer. Apenas andou também de volta ao veículo.
Ao chegar à caminhonete em estado de inércia, Alan abriu a porta do
lado motorista e apagou os faróis e a luz interna, deixando assim tudo
escuro ao seu redor. Carlos acendeu a lanterna e iluminou seu rosto, que
com as sombras a cobrir alguns contornos da sua face, ficou parecido com
cena de filme de horror.
— Apague isso e venha comigo — disse Alan, que caminhou em
direção às árvores e plantas (que ladeavam a estrada) do lado esquerdo da
caminhonete e adentrou junto com Carlos novamente no meio da mata.
Pararam e agacharam-se atrás de uma grande árvore não muito longe do
carro.
Algo chamou a atenção, que começou a olhar de um lado para outro à
procura de algo específico. Sim, o homem estava certo. Agora ele podia
ouvir o barulho de sirene vindo em sua direção e a cada segundo tornava-se

89
Transformação - Naasom A. Sousa

mais intenso, dando para se calcular que a viatura estava em alta


velocidade, se aproximando rápido.
Os dois se esconderam ainda mais e ficaram na escuta. Estavam de
olho na estrada quando um feixe de luzes coloridas iluminou-a, fazendo
parte da escuridão tornar-se clara. A viatura diminuiu a velocidade
aproximando-se da caminhonete até parar ao seu lado. Um dos dois
policiais que existiam dentro do carro-patrulha ligou uma lanterna e
apontou-a para o veículo abandonado, aparecendo com isso, um círculo
luminoso que varria todo seu interior.
Os policiais saíram da viatura e sacaram as armas, ficando de
prontidão. Rodeando a caminhonete, olharam a cabina e a caçamba, que
estavam vazias. O da lanterna falou:
— A caminhonete descrita é essa — ele caminhou até a frente do
veículo e tocou o capô.
— O que aconteceu? Por que a abandonaram? Mais um pouco e
estariam dentro da cidade e poderiam vendê-la para um desmanche! —
especulou o outro tira, que também acendeu sua lanterna e entrou na cabina
da caminhonete.
Carlos olhou para Alan, que compreendeu o gesto. Eles estavam na
direção certa e próximos da cidade. Carlos se mexeu um pouco e pisou
numa folha seca, provocando barulho perceptível.
— O que foi isso? — perguntou o policial que se encontrava fora da
caminhonete, virando rapidamente na direção do local onde se originara o
som. Com uma mão ele segurava a arma de prontidão e com a outra a
lanterna, focalizando a luz na mata escura, tentando enxergar quem ou o
que havia feito o barulho.
Carlos imobilizou-se instantaneamente a ponto de prender a
respiração. Seu coração batia a mil. Foi uma mancada e tanto se mexer
naquela hora, pensou. Queria chamar um palavrão, mas não podia. O
policial se aproximava cada vez mais de onde estavam.
— Vamos embora! — chamou o outro tira que estava revistando a
caminhonete por dentro. — Deve ser algum lagarto ou outro bicho do
mato…
— O motor está quente. Acho que eles devem estar por perto.
— Não perto daqui, tenho certeza. Se você fosse ladrão de carros e o
veículo que tivesse roubado faltasse gasolina, acho que você não iria esperar
o guincho, iria? Já que não há nenhum posto por aqui, você não iria
empurrar para parte alguma.
— Faltou gasolina?
— Diesel, para ser mais exato.

90
Transformação - Naasom A. Sousa

O policial perto das árvores pensou por um momento — o que fazia


Carlos sentir um desespero quase insuportável — e começou a andar de
volta à caminhonete.
Graças a Deus, Alan agradeceu.
— Acho que você tem razão — disse o policial, já junto ao parceiro. —
Vamos embora e notificar ao Sr. Edson Kruller que seu veículo está a salvo.
Os dois homens da lei dirigiram-se à viatura, entraram e seguiram em
frente levando junto com eles toda a luz que clareava a estrada, deixando-a
novamente na mais completa e densa escuridão.
Alan e Carlos permaneceram dentro da mata por mais alguns instantes
e depois saíram, tirando do corpo algumas formigas mordedoras que já há
algum tempo os atacavam.
— Nunca pensei agüentar tanta formiga me mordendo por um tempo
tão grande — falou Alan, coçando os braços e com Carlos ao seu lado
fazendo o mesmo.
— Estávamos na direção certa — Carlos recordou.
— É, eu ouvi.
— Então vamos. Não quero perder tempo algum. Quanto mais rápido
eu estiver de volta à cidade, maior será a minha chance de reverter minha
condição.
Deram uma última sacudida nas calças e prosseguiram na direção em
que estavam seguindo anteriormente.
Carlos tornou a acender a lanterna, passando a iluminar a estrada,
varrendo a escuridão de lá para cá e vice-versa, podendo assim enxergar um
pouco do que se encontrava à sua volta. O foco bruxuleante da lanterna se
limitava à dez metros de distância e fazia o chão tremer, o que os fazia andar
cautelosamente e ficar sempre na expectativa do que estaria além dos dez
metros que a luz do objeto proporcionava. A escuridão era aterrorizante,
tanto que parecia querer engoli-los, tragá-los, devorá-los. A sensação que se
tinha era de que havia a todo instante alguém a espreitar, vigiando-os e
perseguindo-os.
Os dois continuavam a andar por entre o manto negro. O vento que
soprava na noite úmida e silenciosa fazia-a ainda mais assustadora, eriçando
os pêlos dos corpos dos fugitivos. Carlos permanecia calado e sempre à
frente de Alan, segurando a lanterna coma mão direita estendida diante do
corpo. Observou pelo foco luminoso algo a dez metros adiante e parou.
— Olhe aquilo — disse.
Alan olhou a forma inanimada e indefinida em silêncio. Andaram um
pouco mais e observaram mais atentamente. A cada metro percorrido, a

91
Transformação - Naasom A. Sousa

visibilidade se tornava mais nítida, até que puderam distinguir a matéria


antes desconhecida.
— Bem-vindos à Melmar — Alan, com um leve sorriso, leu as palavras
luminosas ao foco da lanterna escritas numa placa verde.
Carlos continuou com a expressão fechada de sempre. Conservou-se
quieto por um momento, depois declarou:
— Estamos de volta ao lar, onde vai dar-se inicio o novo pesadelo.

&&&

Após terem pagado pelos cafés no trailer do George, Axel e Caroline


voltaram para o hospital de emergências Norton Ramos. Andando pelos
corredores, Axel avistara a mesma residente a quem pedira informações à
uma hora atrás. Perguntara sobre Pablo outra vez, e ela tornou a consultar a
prancheta.
— Sr. Pablo Jordan… Ainda se encontra na sala de operações quatro.
Remoção de bala alojada no corpo, próximo ao coração e uma cirurgia no
crânio.
Axel olhara para Caroline e achara que as últimas palavras da residente
eram como flechas a penetrar seu corpo. Ele encontrara no olhar vago da
repórter a certeza de seus pensamentos: uma angústia profundamente
amarga.
— Você sabe se isso ainda vai demorar? — Axel perguntou.
— É provável que isso demore mais algumas horas. São duas
operações muito delicadas e de enorme risco.
Caroline baixara o olhar turvo, tentara se controlar, mas uma lágrima
teimou em rolar pelo seu rosto.
— Ele tem alguma chance? — perguntou a repórter lentamente.
A residente olhara em seus olhos.
— Não sei lhe responder a esta pergunta, moça, infelizmente —
mentira ela. Não tivera coragem de dar a resposta exata: sinto muito lhe dizer
isso, mas o senhor Jordan tem pouquíssima chance.

&&&

Depois da conversa com a residente, Caroline procurou uma cadeira


para se sentar. Encontrou um banco em um dos corredores do hospital.
Sentou-se e pranteou sob o olhar angustiado de Axel. Ela ficou assim por
quinze minutos até que se recompôs e disse que ia ao banheiro para retocar
a maquiagem, pois tinha algo importante a fazer. Quando voltou, dirigiu-se

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Transformação - Naasom A. Sousa

ao estacionamento do NR. Axel continuava ao seu lado, curioso com o que a


repórter estava tramando. Do estacionamento, caminharam à rua e lá
encontraram um furgão dourado no acostamento. Havia um letreiro de cor
vermelha escrito Canal Sete no veículo.
A porta corrediça do furgão foi aberta e Edgar saltou para fora com
uma expressão ainda meio sonolenta.
— Só você mesmo para me tirar da cama uma hora destas, e ainda por
cima justo no meu dia de folga — murmurou Edgar.
Caroline teve que rir da cara do seu colega de trabalho.
— Não vai se arrepender, Edgar — disse. — Essa história irá nos
colocar no auge e todos baterão palmas para nós.
— Espero que sim. Se não, irei passar um mês inteiro acordando você
de madrugada.
— Edgar, não confia em mim!?
— Não confio em repórteres! — gracejou ele.
Caroline realmente gostava de trabalhar com Edgar. Ele era um
homem mediano, cabelos negros e olhos castanhos. Mas não era isso que
chamava sua atenção e fazia com que gostasse de sua companhia, mas sim o
jeito alegre e sincero com que trabalhava.
Uma certa vez, Edgar estava para cobrir uma matéria com Stela Viaglle,
uma repórter novata que iria fazer sua primeira reportagem. Ela iria falar
sobre a queda de um jato particular que vitimou seis pessoas. Entre elas, um
mega empresário conhecido mundialmente.
Edgar olhara para Stela e observara seu jeito nervoso, varrendo
mentalmente seu bloco de anotações num turbilhão.
— Dez segundos para entrarmos no ar — anunciara Edgar. — Nove,
oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um. Agora é com você.
A imagem ao vivo de Stela aparecera em todas as telas de Melmar que
estavam sintonizadas no Jornal Sete no Sete. Stela estava dentro de um fino
terno e saia cor-de-rosa que logo se transformaram numa cor mais escura
por causa do suor que se esvaía dos poros da repórter.
— Bem… — balbuciou ela. — Estamos, ah… aqui no complexo… —
olhara para o seu bloco de anotações. — complexo agropecuário… onde ao
invés da esperada chuva de verão, caiu o avião particular do Sr. Fábio
Santelo…
Na central de jornalismo do Canal Sete, muito longe dali, Hélio Menz, se
desesperava.
— O que essa louca está fazendo?! Não é um avião, e sim um jato! E
não é do Sr. Santelo, que droga!!! — ele ligara o rádio. — Edgar! Edgar! Tira
esse projeto de repórter daí! Corta tudo! Corta!

93
Transformação - Naasom A. Sousa

A imagem do âncora do jornal voltara a aparecer na tela outra vez.


— Voltaremos logo mais ao complexo agropecuário, onde caiu o jato
particular da JanAir em que estava Fábio Santelo.
Os minutos se passaram e a tensão aumentara na central de jornalismo
do Canal Sete. Hélio Menz telefonara para todos os repórteres de sua lista
particular, nenhum estava disponível.
— Se depender de mim, essa mulher não cobrirá mais nem um
concurso de cães! — explodira ele.
A voz de Hélio tornou a soar no fone de ouvido de Edgar.
— Edgar?
— Sim — respondeu o câmera-man.
— É com você.
— O quê?
— Não encontrei um repórter sequer para substituir essa mulher, e não
vou deixar que ela continue e fale mais alguma besteira ao vivo.
— Mas… Hélio, não sou repórter! Sou apenas o cara que fica atrás da
câmera, lembra?
— Eu sei, Edgar, mas não temos outra escolha. Sei que você tem muitos
talentos e confio em você. Por favor, não falhe, e… dê um show de notícias
para que essa Stela aprenda alguma coisa.
E Edgar dera um grande show, fora brilhante. Colocara a câmera sobre
um suporte e a controlara com um pequeno controle remoto. Quando
aparecera no ar, pôde-se ler no canto inferior direito da tela as palavras:
Edgar Serra— Repórter.
Hélio oferecera a Edgar uma vaga de repórter especial no Canal Sete.
Ele recusara, dizendo que havia achado tudo muito exaustivo e que
preferiria permanecer em sua profissão, pois era disto que gostava de fazer.
Depois desse episódio, Edgar ficara muito conhecido no meio
jornalístico, mas nem mesmo assim perdera a simplicidade, nem ignorara
suas amizades. Caroline tirara a prova dos nove há muito tempo. Já eram
grandes amigos quando tudo aquilo acontecera, e nada mudara depois
disso.
— Muito bem, o que está acontecendo? — indagou agora Edgar.
— Edgar, quero que prepare a câmera e grave tudo o eu disser, mostre
o que eu apontar, pegue tudo e depois quero que leve a fita para o Hélio.
Diga que eu mandei e que pedi para rodar esta fita ainda hoje no jornal da
manhã.
— Hoje? Já?
— Sim. É importante que isso saia no ar o mais rápido possível,
entendeu?

94
Transformação - Naasom A. Sousa

Edgar respondeu balançando a cabeça afirmativamente.


Caroline se voltou para Axel.
— Oh… este é Axel Brendel, agente policial do distrito de Melmar.
Provavelmente ficará encarregado do caso que vamos mostrar.
Os dois homens se cumprimentaram.
— Axel — falou Caroline —, quero que me dê uma descrição dos caras
que fugiram. Uma descrição bem detalhada, certo?
Caroline pegou o microfone, passou a mão pelos cabelos para ter
certeza que estavam no lugar, respirou fundo com os olhos fechados e
abriu-os com expressão confiante. Olhou diretamente para a lente da
câmera, fazendo um sinal para Edgar.
— Muito bem, grave.

&&&

O beco era escuro e muito sujo e isso significava que alguém já havia
estado ali antes em algum momento. O chão estava encharcado, as paredes
pichadas, o odor era quase insuportável. Tudo isso levava a pensar que
quem ficasse por ali certamente, assim como os ratos, não teria mais outro
lugar para aonde ir ou… se esconder.
Uma luz se acendeu no canto do beco. Alan adentrou a claridade e
sentou-se bem abaixo da luz, exatamente no centro dela. Seu aspecto era de
exaustão, angústia, medo, desespero, solidão. Parecia estar a chorar sob a
luz que o iluminava. Parecia sussurrar algo inaudível. Num momento, Alan
cochilou e sua cabeça tombou para frente, as lágrimas ainda visíveis no
rosto cansado. O sono parecia reparador.
De repente, pôde-se ouvir um bater estridente de asas. O que quer que
fosse, parecia estar por todos os lados do beco. Um pequeno vulto cortou a
luz rapidamente de um lado para outro, depois dois vultos fizeram o
mesmo, depois três, quatro, cinco… Agora eram dezenas deles. Morcegos.
Grandes morcegos sedentos por sangue. Todos eles, inconvenientemente,
fizeram um vôo rasante, acertando Alan com suas asas. O homem de Deus
despertou do sono num salto. Um morcego, destacado por seu enorme
tamanho, voou por debaixo do queixo de Alan e o arranhou no pescoço.
Alan jogava os braços para o ar, protegia os olhos, debatia-se. Tudo era em
vão. Os morcegos insistiam em querer sugá-lo e davam a impressão de que
nunca iriam se dar por vencidos.
Por um momento, Alan observou alguém se aproximar. Uma sombra
que aparentava-lhe ser familiar. Um morcego, aproveitando o descuido do
seu oponente, mordeu-o rapidamente no ombro. Alan gritou de dor e

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Transformação - Naasom A. Sousa

passou a defender-se novamente. A sombra caminhou até a claridade, onde


se transformou em uma forma definida. Agora, Melina podia se ver
claramente. Estava com um vestido branco, um branco sem igual. Ela olhou
para Alan. Pôde ver nitidamente, como lá das sombras não podia, o ataque
fulminante que os mamíferos voadores mantinham sobre seu marido, que
encontrava-se acuado. Cercado pela luz, mas precisando de ajuda. Ela
começava a desesperar-se, assim como Alan já estava há tempos.
Melina olhou para o chão, procurando algo que pudesse atirar contra
os morcegos, mas tudo o que pôde encontrar foi papéis, cascas de frutas
podres e outras coisas que certamente não os machucariam. Melina não
suportava mais olhar a cena diante dos seus olhos. Os morcegos se
acumulavam sobre Alan, fazendo-o se encolher. Não!! Gritava ela. Deixem-
no em paz!! Mas os vultos não retrocediam; não a ouviam. Era como não
estivesse realmente ali. Subitamente, Alan olhou para ela, e com uma
expressão fadigada, gritou alguma coisa que ela não pôde ouvir. Melina
tentou ler seus lábios, repetia os movimentos dos lábios do marido, dando
som a eles. Socorro, amor! dizia ele. Ajude-me, querida. Socorro! Melina tentou
correr ao seu encontro e ajudá-lo a afastar, matar os morcegos ou qualquer
coisa que os fizessem parar de mordê-lo, cortá-lo, assustá-lo, mas não
conseguiu. Suas pernas não se moviam, não se precipitavam para frente.
Melina gritou de angústia e desespero. Estava impotente diante a carnificina
à sua frente. Caiu de joelhos e pôs o rosto no chão junto ao lixo. Senhor,
proteja o Alan! Não deixe que ele morra! Clamou em alta voz. Leve esses morcegos
embora, Jesus! Não abandone o meu Alan! Melina não pôde falar mais nada. As
lágrimas tomaram conta da sua face e a sua voz transformou-se em soluços
incontroláveis.
Em meio ao matraquear das asas das aves negras, Melina ouviu algo
bater no chão ao seu lado como que houvesse caído. Com esforço, ela olhou
para o lado e enxergou uma arma. Uma arma diferente, reluzente, linda.
Sem hesitar um minuto, pegou a arma e apontou para os morcegos. Alan
observou-a e levantou-se. Melina atirou, atirou e atirou, sem fazer mira. O
que saia do cano largo da arma não era nada parecido com uma bala, mas
sim com um raio, que saía cada um ao encalço de um morcego faminto.
Melina via que à medida que os raios acertavam o seu alvo, as aves negras
caiam no chão e transformavam-se em ratos, que se refugiavam sem
cerimônia. Um por um foram caindo e sofrendo a metamorfose.
Alan observava o acontecimento e sem mais temer, passou a esmagar
com o pé os pequenos roedores, que há momentos atrás queriam mordê-lo e
sugar seu sangue. Melina continuava a atirar nos morcegos que ainda

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Transformação - Naasom A. Sousa

restavam e Alan a esmagar com pisões os inofensivos ratos que teimavam


em fugir para longe dos seus pés…

&&&

Melina abriu os olhos subitamente. O suor corria-lhe o rosto e seus


lençóis estavam encharcados do mesmo líquido. Encontrava-se arquejante e
com o coração à mil por hora. Puxou ar até que seus órgãos tornaram a
trabalhar normalmente. Ela se sentou à beira da cama e levou a mão ao rosto
para enxugá-lo. Em sua mente continuava imagem de Alan sendo atacado
por morcegos sanguinários.
Socorro, amor! ajude-me, querida! Socorro!
O sonho fôra bastante assustador, mas tudo era bem claro para ela.
Alan deve estar em apuros, cansado, com medo. Sabe que está sob a luz que é o
Senhor, mas mesmo assim sente o perigo que o envolve. Muitos devem ser esses
perigos e ele precisa de ajuda. Minha ajuda, pensou Melina. Irei ajudá-lo sim, meu
querido.
Colocou-se de joelhos ao lado da cama e prostrou-se, a cabeça no
chão como no sonho. A terra foi ligada com o céu e o clamor de Melina
subiu ao Trono da Graça. A ajuda certamente chegaria.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 8

A avenida Amaredo era uma das principais avenidas que davam acesso à
cidade de Melmar. Com alguns dos maiores bancos e lojas de grifes
famosas espalhadas ao longo dela, também era sempre uma das mais
movimentadas em horário comercial. Mas agora, o relógio digital no
anúncio do Diário de Melmar mostrava 4h e 13mim. A Amaredo não se
encontrava mais repleta de investidores ou pessoas pagando suas dívidas,
ou muito menos gente comprando roupas de marcas caras. Agora, a
avenida estava servindo de abrigo para alguns mendigos, prostitutas,
meninos de rua e casais nada românticos. Podia-se dizer assim: nem mesmo
àquela hora da madrugada, a Amaredo parava. Era inconfundível que as
pessoas espalhadas ao longo da avenida naquele horário não eram nada
comuns, e isso era propício para que Carlos e Alan pudessem vaguear sem
grandes preocupações pela grande avenida.
Os dois caminhavam lado a lado, próximos um do outro, ocultando a
algema que insistia em cintilar. Alan não podia deixar de olhar para cada
mendigo, prostituta e menor abandonado por quem passava. Eram
considerados a escória da comunidade, quando na verdade, não eram nada
mais nada menos do que as mais desprezadas dela. Não tinham ninguém e
com quem contar no mundo a não ser com eles mesmos. Não dependiam de
alguém que fosse, se não de seus chapéus, armas e corpos. Era degradante
para Alan observar tudo aquilo, mas não conseguia deixar que nada lhe
passasse despercebido. Carlos notou isso.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Não olhe muito para eles — alertou —, a não ser que queira se meter
em encrencas, isto é, mais ainda do que já está metido.
Alan entendeu e tentou desviar o olhar de cada pobre homem e
mulher, assim como também de cada criança suja e mal tratada que se
encontrava jogada nas calçadas sem ter para aonde ir.
Uma lúgubre voz se fez ouvir em meio ao silêncio da noite.
— Por favor, ajudem-me, senhores. Dê-me algum trocado para que eu
possa comprar algo para comer e matar minha fome!
Alan olhou para o lado e enxergou uma velha maltrapilha sentada
sobre um pedaço de papelão no chão. Ela havia erguido a mão para que
pudesse pegar aquilo que Alan e Carlos viessem a dar. O servo do Senhor
fitou-a nos olhos e pôde ver algo diferente, algo que não se encontrava nos
demais para quem olhara antes.
— Espere — disse ele, fazendo Carlos parar.
— Não pare. Vamos…
— Espere só um momento — pediu Alan, olhando diretamente nos
olhos de Carlos, que se expressou com impaciência e balançou a cabeça de
um lado para o outro.
Alan meteu a mão no bolso e tirou uma nota. Abaixou-se e colocou-a
na mão da velha mendiga sorrindo.
— Como é o seu nome? — Indagou Alan.
— Bete.
— Está tudo bem? Você tem alguma família ou alguém assim?
— Tenho, mas já estou muito velha e todos acham que sou um atraso
em suas vidas; uma pedra de tropeço; uma velha que só lhes dá trabalho.
Viviam reclamando, e eu fugi de casa. Não agüentava mais ouvir as
reclamações de todos em minha volta. Pelo menos aqui não tenho que
agüentar nenhum murmúrio, mas às vezes me sinto sozinha e passo fome…
Vendo a impaciência de Carlos, Alan achou melhor encurtar a conversa
antes que ele explodisse de alguma forma. Disse em voz baixa:
— Aí está algum dinheiro para o alimento, mas ele não vai durar para
sempre. Faça o seguinte: vá até a rua Nivaldo Sampaio e irá encontrar um
templo evangélico. Procure o pastor Nilton Cross e diga-lhe que eu a
mandei e disse para cuidar de você. Diga-lhe também que estou bem e…
pergunte se Melina está lá, e se estiver, diga que eu a amo e também a Jair,
Jaime e Jéssica, está bem?
A velha coçou a cabeça e respondeu:
— Está.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Certo. Ele vai cuidar de você — falou Alan, por fim, mostrando mais
uma vez um sorriso. Ergueu-se, acenou para Bete e pôs-se a andar
novamente.
Carlos seguiu pensativo. Olhou para Alan e notou que este não olhava
mais para ninguém. Baixou o olhar antes de interrogar:
— Encontrou sua vítima?
— O quê?
— Isso mesmo o que você ouviu.
— Por que diz isso?
— Já conheci pessoas como você. Elas vêm, dizem e fazem coisas
maravilhosas, dão-nos pleno apoio, mas só depois de algum tempo é que a
gente percebe que fazem tudo para interesse próprio, assim como você.
Alan continuou a ouvir; Carlos prosseguiu a falar:
— Dinheiro, apoio, favores, ofertas de todas as formas e valores. É disto
que vocês estão procurando — Carlos fitou Alan, com um sorriso sarcástico
no rosto. — Você não vai ter isto de mim, amigo, pastor ou seja lá o que você
for. Não vai ter mesmo.
Alan sorriu meneando a cabeça.
— Carlos, olhei para todas aquelas pessoas lá atrás e você também
olhou, mesmo me dizendo para não olhar. Você notou o olhar daquelas
pessoas?
— São todos iguais.
— Isso mesmo. São todos iguais. Mas você notou o olhar daquela
senhora a quem ajudei?
— Igual a todos os outros.
— Não, Carlos. Havia algo diferente. Ela estava precisando de ajuda —
Alan fez uma pequena pausa para que suas palavras penetrassem o
consciente de Carlos. — Mas há uma coisa: todos os outros também estão
precisando de ajuda urgentemente, mas, “perceba”, ela reconheceu isso.
Reconheceu que precisava de ajuda e eu a ajudei. Não posso e ninguém
pode socorrer alguém que não peça por socorro, mas se alguém reconhecer
que necessita de socorro, sempre haverá alguém para socorrê-lo.
Carlos parou e Alan fez o mesmo, esperando mais alguma acusação ou
algo parecido, pronto a absorver e retribuir com algo que fizesse aquele
equivocado homem refletir.
— Não pedi ajuda para você, então por que veio me ajudar?
Depois do absorvimento, a retribuição foi instantânea:
— Seja sincero, Carlos. Você implorou para quem quer que fosse ajudá-
lo quando tudo isso começou. Só que nunca irá admitir isso não é mesmo?
Carlos tornou a andar.

100
Transformação - Naasom A. Sousa

— Admitir o quê? — indagou. — Tudo o que você está falando é uma


bobagem.
— Será? — Alan deixou a pergunta no ar.
Foi a última palavra daquela conversa que, para Carlos, era mais do
que inconveniente. Como ele sabia? Perguntava-se. Era muito estranho ter
alguém ao seu lado que nem mesmo conhecia, mas que soubesse coisas a
seu respeito que ninguém poderia saber. Que droga! Quem é esse cara afinal?
Os pensamentos de Carlos fluíam em diversas formas, todas errôneas. As
perguntas eram bastante e preenchiam os minutos de sua caminhada pela
grande avenida, tanto que não percebeu que Alan havia estancado
subitamente, com o olhar fixo à sua frente. Continuou andando, viajante em
seus pensamentos e somente notou o que estava adiante quando deu de
encontro com a ponta de uma faca. Um salto para trás foi imediato.
Um homem, com um brinco no nariz, mal-encarado e pessimamente
vestido estava imponente diante dos seus olhos segurando uma faca de
lâmina brilhante. Carlos observou-a. Mais ou menos de quinze centímetros
de comprimento e afiada dos dois lados, tornando assim mais fácil cortar o
que quisesse, pensou. Carlos reparou mais um detalhe no homem: uma
tatuagem no braço direito. Um desenho de uma caveira e uma foice bem ao
lado.
— Muito bem, caras, a gente só quer toda grana e coisa valiosa que
vocês tiverem. Podem entregar as carteiras e estão livres — falou o homem,
tremendo.
Está precisando de drogas, disse Carlos a si mesmo.
— A gente? — perguntou Alan, confuso, já que o assaltante era apenas
um.
Repentinamente, duas sombras surgiram em suas costas. Carlos virou-
se rapidamente ao sentir a presença dos dois outros homens que se
aproximaram. Observou seus braços direitos e encontrou neles a mesma
tatuagem e o mesmo tremelique que o do primeiro. Eram da mesma
Gangue. O da direita usava uma camiseta rasgada e quatro brincos em uma
das orelhas e ao seu lado estava um homem com uma cicatriz abaixo do
olho esquerdo, também usava roupas amassadas.
Senhor, estou nas tuas mãos. Faça-se teu querer, meu Deus, orou Alan.
Um dos viciados que se aproximaram por trás, avançou na direção de
Carlos, puxou um cabo de canivete do bolso da jaqueta e levantou-o até pô-
lo à vista. Apertou um botão e a lâmina fina e pontiaguda saltou para fora.
— E aí, otário?! Passa logo a grana antes que eu te corte inteirinho!
Carlos voltou-se para Alan e fez um sinal para que entregasse ao
assaltante o dinheiro que tivesse. Alan hesitou por um momento, mas

101
Transformação - Naasom A. Sousa

começou a tirar lentamente a carteira do bolso. Carlos também pôs a mão no


bolso.
— É isso aí. Vão passando logo tudo! — berrou o outro ao seu lado.
O da frente, com o brinco no nariz, notou algo brilhante entre os dois
homens os quais assaltavam. Esticou o pescoço, deu um passo e distinguiu o
que era.
— Ei! — exclamou. — Que algema é essa? Vocês estão fugindo ou o
quê?
Todos olharam para a algema.
Outra chance não será melhor, pensou Carlos numa fração de segundos.
Aproveitou o entretenimento dos três e movimentou-se rápido, desferindo
um forte chute entre as pernas do assaltante com o brinco no nariz à sua
frente. Com a mesma perna, fez um giro ligeiro e como um golpe de facão,
de um lado para o outro, acertou com o calcanhar o pescoço do homem que
estava com o canivete nas mãos, que caiu arquejante. Com olhos
arregalados, o viciado que antes estava ao seu lado, rendeu-se aos
movimentos rápidos e golpes certeiros de Carlos e permaneceu quieto em
seu lugar, apenas tremendo pela falta de drogas.
— Caia fora! — gritou Carlos.
O homem deu alguns pequenos passos para trás, virou-se e iniciou
uma corrida frenética e cambaleante, até que, quando já se encontrava
longe, entrou num beco. Alan observou os dois assaltantes no chão se
contorcendo de dores. Olhou para Carlos.
— Onde aprendeu a lutar assim?
Carlos não respondeu. Ao invés disso preferiu andar para longe dali.
Quem? Onde? Quando? Então vamos dar uma lição neles! As vozes
puderam ser ouvidas ao longe. O resto da gangue estava a caminho.
— Vamos correr, rápido! Ou então vamos virar farelo humano! — disse
Carlos, acelerando os passos até encontrar-se em alta velocidade. Alan
também já corria velozmente.
Passos foram ouvidos. Pareciam em movimento acelerado, muito
acelerado. Eles estavam vindo na mesma velocidade.
— Quem são eles? — Alan perguntou enquanto corria.
— Membros da Gangue da Morte. Todos com quem esbarram morrem,
quer façam o que querem, quer não. Por isso reagi. Iriam nos matar mesmo
se déssemos dinheiro a eles.
— Graças a Deus saímos dessa!
— Ainda não saímos. Por isso trate de correr o mais depressa que
puder.

102
Transformação - Naasom A. Sousa

Alan olhou para trás. Não viu ninguém. Mas os passos ainda podiam
ser ouvidos.
— Pode não estar vendo nada, mas eles são espertos e rápidos e podem
estar mais próximos do que imagina.
Os dois fugitivos correram e correram. Era como fugir de um inimigo
invisível que no momento não podia se ver, mas num piscar de olhos
poderia aparecer, e então o pior poderia acontecer. Após um bom tempo de
corrida, não ouviram mais os passos. Carlos avistou um beco escuro à frente
e apontou.
— Vamos dobrar ali.
Fizeram a curva rapidamente e encontraram-se de uma hora para outra
em total escuridão.
— Há horas que não descansamos, nem pregamos os olhos. Se aqui for
seguro será um bom lugar para descansarmos. — comentou Alan.
— Apesar desse cheiro…
— Acho que isso não irá me incomodar muito. Com o sono que estou e
juntando o cansaço…
O local era úmido, frio e mal cheiroso, além de totalmente escuro.
Carlos e Alan adentraram ainda mais o beco. Com passos cuidadosos,
caminhavam sempre tateando aqui e ali para não tombarem em alguma
coisa. Carlos andava sempre atento, em posição de combate para alguma
eventual luta. Caminharam até chegarem ao final do beco, e só souberam
disso quando Alan, mesmo a tatear, quase quebrou o nariz no muro. Os
dois sentaram em meio a negrura, e Carlos, sem enxergar um palmo à frente
do rosto, disse a Alan:
— Ei, ô… bom samaritano, dizem que pastores fazem milagres. Então
que tal fazer um e acender uma luz aqui?
De repente Carlos viu um fogo se acender um pouco acima dos dedos
de Alan e ficou de boca aberta.
— Não se assuste — acalmou-lhe Alan. — Achei uma caixa de fósforos
quando sentei aqui.
Carlos suspirou e baixou a cabeça.
— Vamos fazer uma pequena fogueira com os pedaços de papel que
tem por aqui — falou Alan, acendendo outro fósforo e começando a
recolher algumas folhas de papel do chão. Amontoou o material e ateou
fogo, fazendo clarear e aquecer um pouco o lugar. — Assim está bem
melhor.
— Será que dá pra fazer alguma coisa também para isso aqui cheirar
melhor? — resmungou Carlos.
— Acho que isso já seria pedir de mais, não acha?

103
Transformação - Naasom A. Sousa

— Humm… Acho que não.


Alan sorriu. Esticou os braços até a fogueira para se aquecer, encostou-
se na parede e fechou os olhos.
— Carlos…
— O que é?
— Posso lhe fazer uma pergunta?
— Mais uma?
— Já que estamos assim… de certa forma juntos… a gente podia se
conhecer melhor. Digo, saber mais um sobre o outro, não acha?
Carlos nada falou. Aquela conversa não o interessava. Quem esse cara
pensa que é? Mas subitamente lembrou-se de como aquele homem sabia de
coisas que ninguém poderia saber: seus sentimentos.
Alan continuou, já que não houve resposta.
— Carlos… por que você se meteu nessa? Quero dizer… vivendo
assim, fazendo coisas… erradas — Alan abriu os olhos e observou a
reação de Carlos. mas este não moveu um músculo sequer. — Você sabe,
ficar sempre a lutar, se esconder, fugir… sem parar?
Nenhum movimento; nenhuma resposta.
— Desculpe, Carlos. Estou querendo saber de mais e acho que isso não
faz você sentir-se bem — Alan fechou os olhos novamente, baixou a cabeça
e suspirou. Ó, senhor, acho que não estou me saindo nada bem. Ajude-me a tocar
no ponto fraco dele. Faça com que fale comigo sobre algo para que possa compreendê-
lo e ajudá-lo a Te encontrar.
— Tudo começa sempre em pequenas doses — falou Carlos.
Alan levantou a cabeça num piscar de olhos. Fitou Carlos, que, com a
cabeça erguida, fixava o olhar nas chamas da pequena fogueira.
— Seja drogas — continuou Carlos —, seja má companhia, seja um
roubo, seja sexo. Tudo começa em pequenas doses. Assim aconteceu
comigo. Entrei nisso em pequenas doses, e… sabe, pastor… — Carlos olhou
para Alan. — posso chamá-lo de pastor?
— Claro.
— Bem… depois, sabe… depois de um tempo a gente acaba se
acostumando a tudo. Não importa o que seja. Bom ou ruim; desejável ou
indesejável. — Carlos voltou-se novamente para a fogueira. — Vou lhe
contar um pouco da minha história, já que está tão interessado nessa droga.
Obrigado, Senhor, agradeceu Alan.
Carlos deu um longo suspiro e então começou.
— Morei com Vera até os doze anos de idade…
— Quem é Vera? — interrompeu Alan.

104
Transformação - Naasom A. Sousa

— Era — disse Carlos. — Era minha mãe. Eu não tive pai, um cara
engravidou Vera quando ela ainda morava com os pais dela e depois se
mandou. Quando Vera soube da gravidez, contou aos velhos, na esperança
de que mostrassem compreensão e lhe dessem apoio. Mas ao invés disso,
enxotaram-na para fora de casa.
“Vera viu-se desesperada, sem saber para onde ir nem como iria viver,
ainda mais naquele momento com uma criança em seu ventre. Ela andou
um bocado. Um bocado mesmo, até ficar tarde. Então ela chegou perto do
metrô, observou e achou que ali seria um bom lugar para passar a noite, já
que não tinha mais nenhum lugar onde poderia ficar. — Carlos parou o
relato por um breve momento, vasculhando em sua mente as lembranças
que tinha de Vera. Então continuou: — Vera se enganou quando pensou
que ficaria ali uma noite, pois, na verdade, ficou dois meses. Sim. Dois
meses inteiros antes de Aldemar aparecer. Segundo ela, Aldemar se
apresentou como Wilson. Ele prometeu ajudá-la se ela o seguisse e ficasse ao
seu lado. Vera disse que estava grávida e ele disse: “Tudo bem, eu não me
importo.” Ela ficou maravilhada, surpresa e assustada com as palavras
daquele homem que nunca tinha visto antes. Todas suas promessas fizeram-
na acompanhá-lo. Tudo pareceu maravilhoso desde então. Wilson dava a
ela quase tudo, mas era o suficiente: Comida, bebida, roupas e aconchego
em seus braços. Vera perguntou-o por que fazia aquilo e ele respondeu que
um certo dia a viu no metrô, sentada na escadaria, e simplesmente um
cupido atirou uma flecha que acertou seu coração. Disse também que ainda
passou dois dias pensando nela antes de procurá-la.
Carlos observou o olhar curioso de Alan antes de confessar:
— Mas o sonho de Vera durou apenas até eu nascer e completar um
ano. Daí ela foi descobrir quem era Wilson. Sabe, pastor, Vera me contou
que quase ficou louca quando soube quem verdadeiramente era o homem
que a havia tirado do metrô. Wilson na verdade era Aldemar, um cafetão
muito esperto. Ele acolhia mulheres abandonadas na rua, trazia todas elas
para sua casa, onde dava todo conforto e também um amor irreal para
enganá-las. Depois oferecia drogas a elas, prometendo que se sentiriam
maravilhosas. Aldemar tomava as drogas primeiro para mostrar que não
era nada de mais, que não fazia mal algum. Depois passava para elas. Todas
as mulheres experimentavam por amor a ele. Algum tempo mais tarde
todas se tornavam viciadas. Então, Aldemar já não precisava pedir para que
elas tomassem as drogas. Elas é que passavam a implorar
desesperadamente para tê-las.
— Até que um dia, Vera pediu a droga a ele, e o descarado disse que
não tinha. Ela estava desesperada, tanto, que tremia pela falta de tóxico,

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Transformação - Naasom A. Sousa

assim como aqueles caras lá na avenida Amaredo. Vera suplicou, implorou,


mas Aldemar continuava a negá-la. Até que ele falou que, se ela quisesse a
droga mesmo, teria que ganhar dinheiro e dar a ele para que pudesse
comprar. Assim poderia sustentar o vício dela e o seu filho estúpido, esse
era eu.
Alan continuava sentado, apenas escutando a voz de Carlos que
vinha em meio à escuridão. Ele sentia que aquele homem sofrera muito
no passado e ainda naquele instante continuava a sofrer, agora mais
intensamente. Mas sentia também que Deus estava ao seu lado,
sondando seu coração e ouvindo sua estória. Alan sentia a presença do
Senhor naquele momento, ouvindo os detalhes angustiantes da vida de
seu “parceiro de algema” e de tantos sofrimentos padecidos, sabendo,
porém, que tudo aquilo poderia ter logo um fim.
— Então — continuou Carlos —, Aldemar lhe mostrou o modo mais
fácil de arranjar dinheiro: a prostituição. Ela concordou prontamente com a
proposta e a profissão, pois estava louca, fisgada pela droga. Como ela
concordara, Aldemar deu-lhe a última droga gratuita. — Carlos suspirou. —
Vera prostituiu-se, pensando mais na droga do que em mim. Fui descobrir
isso aos doze anos. Foi alguns dias depois de completar essa idade. Aldemar
disse a Vera que eu já estava bem grandinho para me cuidar sozinho, pois na
sua concepção de vida, um menino de doze anos já suficientemente capaz
de se virar. Vera protestou, mas Aldemar tirou do bolso da calça um
saquinho de heroína e disse: “Você escolhe: ou ele ou isso”.— Carlos sorriu
sem graça. — Ela me botou para fora de casa, depois de me contar toda essa
história desde o começo. Por fim ela afirmou quando abriu a porta e me
conduziu à rua: “Acho que poderei viver sem você, mas, com certeza, não
poderei viver sem aquela coisa branquinha que tem dentro daquele
saquinho”.
— Ela disse isso? — perguntou Alan, espantado com a atitude de Vera.
— Nenhuma mãe deixaria o filho por nada no mundo!
Carlos balançava a cabeça afirmativamente quando disse:
— Essa frase não saiu da minha cabeça muito e muito tempo. Não
conseguia dormir às vezes me perguntando por que ela tinha feito isso
comigo. Mas aí nós podemos ver o poder que as drogas têm.
— Sinto muito, Carlos — lamentou Alan.
— Daí o motivo de não chamá-la de mãe, pastor. Porque ela não foi
minha mãe. Senão, não teria me abandonado por causa de droga nenhuma.
Ela não pensou em me sustentar e sim em sustentar seu vício; Não pensou
em continuar comigo, dando-me carinho, acolhendo-me em seus braços,
mas ao invés disso, preferiu ficar com Aldemar e sua maldita heroína. Então

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Transformação - Naasom A. Sousa

posso dizer com certeza, pastor: ela não foi minha mãe. Nenhuma mãe faria
o que ela fez comigo.
Houve um longo silêncio. Um penoso e angustiante silêncio. Até que
Carlos voltou a contar mais uma parte da sua triste vida:
— Aquele dia em que Vera me jogou fora de casa e da sua vida, foi o
pior dia da minha vida. Apesar de naquele tempo eu já tinha conhecido
algumas pessoas e lugares naquele bairro, me senti como se só eu existisse
no mundo. Ninguém mais me importava, nada importaria mais daquele dia
em diante, e prometi a mim mesmo que não precisaria de mais ninguém
para sobreviver. Caminhei muito naquele dia, assim como Vera caminhou
no dia que seus pais também colocaram-na para fora de sua casa. Às vezes
fico refletindo se ela não pensou no sofrimento que havia passado quando
isso aconteceu. Será que não pensou no mesmo sofrimento que eu haveria
de passar?
Estancou as palavras, respirou fundo para continuar.
— Depois de ter caminhado bastante, fui parar num banco de uma
praça. Lembro-me que tinha umas garotas bonitas sentadas em um banco
atrás de onde eu havia sentado. Eu me dobrei para poder vê-las melhor. De
repente senti alguém me cutucar nas costas. Olhei e notei cinco rapazes mais
altos e mais fortes que eu atrás de mim. Um deles me perguntou: “O que
você tá fazendo aqui, hein? Não sabe que aqui é o território dos Dracus?” Eu
fiquei com medo, pois já tinha ouvido falar sobre os Dracus, uma gangue só
de rapazes e moças “barra pesada”. Então, outro garoto tirou um canivete
da jaqueta e falou gritando: “E aí, moleque, tá preparado pra sangrar?”
Pastor, eu não sei o que deu em mim… Eu acho que foi o que aquele garoto
disse… Eu pensei: “Puxa, eu não fiz nada! Por que esse cara quer me
cortar?” Sabe, naquele instante eu tremi todo. Mas não era mais de medo e
sim de raiva e ódio. Eu pulei em cima dele e uma forma tão rápida que até
hoje não consigo imaginar como fiz aquilo. O impacto do meu corpo contra
o dele o fez cair de costas e bater a cabeça no chão. Com a batida, um corte
bem grande se abriu na cabeça dele e com isso ele desmaiou. Eu ainda
estava encima dele quando sua mão se abriu, soltando o canivete. Daí, sem
pensar, peguei o canivete e me levantei apontando a arma na direção dos
outros garotos. “Venham aqui provar do seu próprio remédio! Venham!!”
gritei. Rapidamente fui em direção a um dos garotos e o feri no braço
esquerdo. Ele gritou e saiu correndo, sendo seguido pelo resto dos garotos
que estavam com ele.
“Quando os quatro rapazes sumiram de vista, eu voltei o olhar para o
garoto no chão desmaiado ou talvez morto, eu não o sabia. Uma poça de
sangue já estava se formando em volta da cabeça dele. Foi quando me voltei

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Transformação - Naasom A. Sousa

na direção das garotas que estava admirando antes da confusão começar e


elas não estavam mais lá. Ao invés disso, tinha um garoto muito feio com os
olhos bem abertos fazendo beicinho com o lábio inferior esticado e
balançando a cabeça para cima e para baixo. Eu apenas continuei olhando
para ele, e então ele se pronunciou: “Meu irmão, eu nunca vi isso em toda
minha vida imunda! Nunca mesmo!” Então começou a me aplaudir como
se eu fosse o astro de um espetáculo. Perguntei-o quem era. Disse-me que
seu nome era Timótio e que fazia parte de uma gangue chamada Os Vespas.
Me elogiou outra vez pelo que havia feito com o Lico, um dos caras mais
carrascos da gangue rival, o garoto que eu havia batido ou… matado. Disse-
me que havia algo de assustador em mim e deveria ser por isso que os
outros garotos da gangue não reagiram quando nocauteei Lico. Por fim ele
me disse: “Cara, com certeza tem um lugar pra você nos Vespas! Um cara
que faz o grande Lico beijar o chão com apenas um golpe, não pode ficar
andando por aí sozinho à toa. É perigoso… não pra você, mas sim para
quem cruzar na sua frente.” Ele deu um risada e concluiu: “Vamos, Meu
amigo. Vou te apresentar ao Anderson, o líder dos Vespas. Certamente ele
vai gostar de você.“
— E ele gostou? — especulou Alan.
— Aquele desgraçado não gostava de ninguém a não ser de si mesmo.
Quando Timótio me apresentou, Anderson riu de mim por eu ser pequeno.
Mas depois que disseram o que fiz com Lico, me olhou dos pés à cabeça
com olhar de espanto. “Esse garoto fez o Lico ver estrelas?” Perguntou ele.
Responderam acrescentando: “Ver estrelas ou o diabo, pois do jeito que o
Lico ficou é capaz que esteja morto.” Mas o pior ainda estava por vir. —
Carlos tirou o olhar da fogueira e passou a fitar as milhares de estrelas no
céu, incontáveis pontos luminosos suspensas sem qualquer auxílio, prontas
a desmoronar a qualquer momento sobre sua cabeça. Ele prosseguiu: —
Trouxeram-me uma garota. Anderson me disse que era uma traidora, que
tinha entrado para os Vespas já fazendo parte de outra gangue rival apenas
para entregar membros para os inimigos, até que descobriram sua traição.
Anderson disse para eu dar uma lição nela para nunca mais sarar. Falou-me
que, se eu fizesse aquilo, faria parte da gangue, teria abrigo, amigos…
— Você fez?
Carlos ficou calado por um momento, mas logo murmurou:
— Fiz. Anderson falou: “Vai lá cara. Faz essa moleca pagar pelo que
fez! Massacra ela! Membros da turma gritavam de excitação. Berravam:
“Bate! Quebra ela! Acaba com ela!” Fiquei sem reação, vendo que a garota
chorava. Anderson me segurou pela gola da camisa e alertou: “Vai lá, meu
irmão! Mostra que tu é o tal ou então a gente vai te expulsar daqui à

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Transformação - Naasom A. Sousa

porrada!” Aquela foi a palavra mágica que virou a minha cabeça: Ou então a
gente vai te expulsar daqui… Não. Eu não queria ser expulso. Mais uma vez
não. Eu não suportaria. Virei bicho. Parti para cima da garota com socos e
pontapés. Estava fora de mim. Tiveram que me tirar de cima dela, senão eu
a estrangularia. Anderson me adorou. “Cara, você é doido!” disse ele. Entrei
na gangue e enquanto fiquei lá fiz tudo o que me mandaram. Tudo para não
ser abandonado outra vez. Você nem imagina o que fazíamos.
— Posso ter uma leve impressão.
— Eu acho que não.
— Você não sabe o que eu já vi.
Carlos voltou-se para Alan.
— E você não sabe o que eu já fiz. Mas chegou o tempo que completei
dezenove anos e me dei conta de que não valia mais a pena fazer tudo o que
fazia por motivos banais…
— Você ficou na gangue por sete anos?
Carlos confirmou com cenho.
— Então achei que estava na hora de fazer algo para beneficiamento
próprio. Passei a guardar algum dinheiro dos furtos que fazíamos. Um
pouco daqui, um pouco dali e consegui uma quantia razoável. Um tempo
depois, decidi sair da gangue. Mas não era permitido sair, por isso eu fugi
escondido para bem longe. Com o dinheiro que tinha aluguei um cortiço e
lá conheci um cara chamado Sérgio. Ele roubava carros e ganhava uma boa
grana. Entrei nessa e assim me sustentei até aos vinte e três anos. Acho que
nessa época que roubava carros, consegui roubar um número incontável
deles. Os caras com quem trabalhava me achavam o melhor. Foi nesse
tempo também que comecei a trabalhar na minha educação, pois tinha
certeza de uma coisa: sendo semi-analfabeto, eu não seria ninguém. Em
quatro anos aprendi muita coisa com a professora que paguei. Passei a
entender melhor as coisas e aprendi a me comunicar razoavelmente bem
com as pessoas. Usufruindo disto, conheci Cléber, um cara que conhecia
Lucas. Aquele filho da mãe com quem briguei lá na rua treze com a Clintel.
— Eu me lembro.
— Pois é. E foi assim que eu entrei para a Quadrilha Vip, meu caro. Foi
aí que eu cavei a minha cova.
— Por que eles querem dar um fim em você como diz? Fez alguma
coisa errada?
— Para eles eu fiz uma coisa sem perdão, mas isso é uma outra estória
que se você quiser ouvir é mil paus vivinhos aqui na mão.
— Pode ser fiado?
— Não mesmo.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Houve uma pausa, até que Alan quebrou o silêncio e arriscou:


— Carlos… quero lhe dizer algumas palavras.
— Quanto é?
— É gratuito.
Carlos resolveu não falar nada. Alan achou melhor desabafar antes que
ele dissesse algo negativo, ou voltasse a se comportar como antes. Era a sua
chance. A oportunidade concedida por Deus.
— Primeiro quero saber se você conhece a Bíblia Sagrada. Conhece?
— Já ouvi falar, mas… nunca fui muito chegado a livro nenhum. Por
quê?
— Porque Nela está escrito, em um livro chamado de Carta aos
Romanos, que todos os seres humanos estão sujeitos a fazer tudo isso que
você fez e muito mais. Lá está escrito: “Todos se extraviaram, e juntamente se
fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há um só”. Também está lá: “Porque
todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus”. Todos somos iguais, e com
isso estamos a mercê do mesmo julgo. Assim como você está agora, como eu
também estou… poderia ser qualquer outra pessoa, pois somos todos
iguais…
— Continue, estou prestes a dormir. Isso relaxa, sabia? — ironizou
Carlos, fechando os olhos e se encostando à parede.
Alan não ligou. Sabia que Carlos escutava, querendo ou não.
Continuou:
— Carlos, e como todos somos iguais, para cada situação difícil que
passamos há sempre um escape programado. Este escape é dado
gratuitamente assim como estas minhas palavras. Há alguém querendo dar
esse escape, Carlos…
Carlos riu.
— Esse alguém é você, pastor?
— Não.
— Ah, me lembrei! Aquele meu amigo, não é? Deus?
— Isso mesmo. Deus.
— Corta essa! — zombou Carlos.
— Jesus quer te dar esse escape, Carlos. Pegue-o! Ele é a saída para
todos os problemas. Afirmou isso quando disse: Eu sou o caminho; Eu sou a
porta…
— Pastor, pastor! Para! — falou Carlos em voz alta. — Olha, se houver
um escape, será aquele que eu fizer; será com o meu esforço. E lhe digo uma
coisa: vou conseguir escapar disso e ninguém irá me impedir.
— Amém. — finalizou Alan, que suspirou. Senhor, será mais difícil do que
pensei.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Tente dormir — disse Carlos, fechando os olhos e baixando a cabeça.


— Está amanhecendo e teremos que pelo menos cochilar para continuarmos
vivos; eu tenho que continuar vivo.
Alan fechou os olhos. O cansaço tomando conta de seu corpo, que
esmorecia. A mente trabalhava inconscientemente, reproduzindo as
últimas palavras proferidas por Carlos: …cochilar para continuarmos
vivos… vivos… vivos… vivo… vivo… Deus vivo.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 9

B iiip! Biiip! Biiip! Biiip! Biiip! O despertador tocara exatamente às seis


horas.
Depois de haver orado a madrugada quase inteira, Melina
adormecera mais tranqüila. Após um sono meio reparador, fôra
despertada pelo bip do rádio-relógio em cima do criado mudo.
Levantara-se, dirigira-se ao banheiro onde tomara um banho quente e
então, após uma refrescante ducha, caminhara à cozinha.
Olhara ela para o relógio na parede na cozinha. 6h e 15mim.
— Meninos, acordem rápido! — gritou ela. — Jair, Jaime, Jéssica!
Vamos, está na hora de tomar banho e ir ao colégio!
Era hora dos três pequeninos saírem dos seus quartos,
cambaleando, desembaçando os olhos, cada um deles resmungando
alguma coisa:
— Não quero mais estudar!
— Irei aprontar alguma com o diretor para que me expulse do
colégio!
— Amanhã irei fazer de conta que estou doente. Assim. Mamãe irá
me deixar dormir até mais tarde.
Assim diziam eles. Porém mais tarde ou no dia seguinte, nunca
cumpriam suas promessas. Lembravam-se sempre das palavras de Alan:
“Vocês têm que estudar bastante para serem doutores, advogados,
gerentes de multinacionais. E assim, estudando, todos vocês também me

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Transformação - Naasom A. Sousa

fazem muito orgulhoso.” Todos eles queriam deixar o pai orgulhoso, e


cumpriam o seu querer à risca. Formaram uma fila na porta do banheiro
e um por um tomaram o seu banho. Logo após, todos se dirigiram aos
quartos e vestiram seus uniformes.
— Vamos depressa! — tornou Melina a gritar. — Já são seis e
quarenta. O ônibus já deve estar para chegar! — ela acabara de aprontar
o lanche de cada um e agora estava sentada à mesa, descansando.
Os três desceram a escadaria correndo e pararam em frente à mãe.
Melina, graciosamente distribuiu os lanches a todos.
— Meu beijo… — cada um deles abraçaram Melina e beijaram-na.
— Agora, todos para o ônibus que já deve estar esperando vocês lá fora.
Todos correram para a porta, despediram-se e saíram.
Melina continuou sentada e ouviu o ônibus se distanciar.
Mais um dia de lutas, meu Senhor, pensou ela. A casa por limpar e
arrumar; lavar e passar as roupas; fazer a refeição… Todo dia a mesma coisa.
Ah, tomara que tu venhas logo, Jesus, para me dar descanso eterno! Ela se
levantou e caminhou até a dispensa.
— Deixe-me ver… — pensou em voz alta, olhando os mantimentos
nos armários embutidos na parede. — Acho que hoje irei preparar uma
macarronada com um molho delicioso. — Melina parou o que estava
fazendo e um pensamento veio-lhe à mente: Do jeito que Alan gosta,
lembrou. Oh, Senhor! Onde e como estará o meu Alan neste momento?
Balançou a cabeça e tentou afastar as lembranças do marido. Não queria
ficar a se remoer o tempo todo. Tinha fé em Deus e a certeza de que Ele
estava ao lado de Alan, onde este estivesse, protegendo-o e guardando-
o.
Melina tirou da dispensa um pacote de macarrão e uma lata de
extrato de tomate. Era o que precisava para o prato do dia. Voltou à
cozinha e pôs tudo sobre a mesa. Pegou uma panela dentro de um
armário embutido e encheu-a de água pela metade, colocando-a logo a
seguir em cima de uma das bocas do fogão.
— Muito bem — disse ela —, enquanto essa água ferve, vamos ver o
que está passando no noticiário das sete. — segurou o controle da TV e
apertou o power. O aparelho foi ligado e logo apareceu o ancora
jornalístico Silvio Trindade na tela, um homem simples e autoritário que
influenciava o povo com suas críticas após cada reportagem, e, no
momento, era exatamente o que estava a fazer. O denunciado era um
político corrupto descoberto a dias atrás.
— O pior é que somos nós quem os elegemos, quem os colocamos no poder.
Daí surge a pergunta de cada um: “Mas será que existe um político honesto no

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Transformação - Naasom A. Sousa

mundo, que não vise apenas as verbas públicas para o seu bolso, mas que
respeite a população em geral e faça o melhor para ela?” Eu posso responder a
essa pergunta, e digo: “Existe, sim.” Então você pode me perguntar: “Então me
diga onde está!” e eu lhe respondo: “Bem… existir eu sei que existe, mas
responder onde está, isso é trabalho para Deus e não para um simples âncora de
noticiário.”
— Você tem toda a razão — concordou Melina, enquanto colocava o
macarrão dentro da panela.
Silvio Trindade olhou para outra câmera e o quadro atrás de si, que
antes era a foto do político corrupto que, momento atrás estava em
questão, mudou para uma bandeja recheada de todo tipo de drogas com
a palavra logo abaixo: NARCOTRÁFICO.
Silvio voltou a falar:
— E nessa madrugada, mais um pesadelo para a polícia de Melmar.
Membros de uma quadrilha de traficantes agiram assassinando um agente de
polícia e seqüestrando outro. Essa é mais uma ação terrorista, completando três
só neste mês. A repórter Caroline Lima esteve na madrugada de hoje no hospital
de casos especiais e emergências Norton Ramos, de onde fez esta reportagem.
A foto de Caroline apareceu atrás de Silvio e depois avançou até
ocupar totalmente a tela. A foto começou a se movimentar e sua voz
pôde ser ouvida:
— Bem, Silvio, estou aqui no hospital Norton Ramos, onde foi dada a
entrada do agente Pablo Tavares, que foi ferido gravemente numa missão com
dois tiros: um próximo ao coração e outro na cabeça. Segundo um dos médicos, o
agente Tavares chegou ao hospital em estado grave e estava desacordado, como
está até esse momento. Também há informações de que o agente estava
sangrando bastante e quase sem respiração. Faltam agora exatamente quinze
para as cinco, e o que sabemos no momento é que o agente Tavares está na sala
de operações, numa delicada cirurgia.
Melina ouvia atentamente a reportagem enquanto cortava a
verdura para decorar a macarronada. Achava horrível o que acontecia
no mundo do crime e o que essas pessoas faziam para ganhar a vida:
matando outros seres humanos.
— Segundo oficiais da polícia local — continuou Caroline —, tudo isso
começou com um plano do agente Tavares e de seu parceiro, o agente Caio
Vieira. Eles entraram em contato com um membro de uma quadrilha
denominada de Quadrilha Vip, e assim marcaram um local para uma suposta
transação, e foi nessa intenção, de acabar com o domínio dessa quadrilha que o
agente Tavares recebeu as duas balas, e seu parceiro, o agente Vieira, foi
seqüestrado pela própria quadrilha.

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Transformação - Naasom A. Sousa

“Está aqui comigo, o agente Axel Brendel, que está acompanhando este
caso e irá esclarecer algumas questões. — o zoom da câmera foi minimizado
até Axel aparecer na tela ao lado de Caroline. A repórter voltou-se para
o amigo. — Agente Brendel, como o senhor pode explicar o desaparecimento do
agente Vieira? Podemos considerar isso um seqüestro?
Axel olhou diretamente para a câmera.
— A explicação que temos a dar sobre o desaparecimento do agente Caio
Vieira é de que ele deve estar na posse da Quadrilha Vip. Estamos fazendo o
possível para encontrá-lo antes de acabar como os outros agentes, que foram
assassinados da mesma forma: carbonizados. Mas… infelizmente, calculamos
que o agente já esteja sem vida, pois encontramos marcas de sangue próximo de
onde estava o agente Tavares e achamos que essas marcas sejam do agente
Vieira. E as marcas se estendiam até um certo ponto, o que nos faz pensar que o
arrastaram para um carro e o levaram do local.
— Mas por que levar o agente Vieira em um carro, agente Brendel? Por
que não deixar junto a Pablo Tavares?
— Bem, a Quadrilha Vip tem um tipo de marca registrada desde que
começou a operar aqui em Melmar. E essa marca é meio que, podemos dizer…
macabra.
— E o que seria essa marca registrada?
— Para provar que é a melhor, a quadrilha tenta amedrontar até a polícia.
Há algum tempo, agentes têm sido designados para acabar com o domínio dessa
quadrilha, e esses agentes têm sido exterminados; assassinados; mortos. E o jeito
com que vêm sendo mortos tem sido essa marca registrada de que falei. E como
seria? Eles queimam os corpos dos agentes designados. Carbonizam. Os agentes
desaparecem e depois de algum tempo aparecem totalmente carbonizados. Todos
foram mortos desta maneira.
— Agente Brendel — disse Caroline e Axel fitou-a —, há alguma pista
nesse caso? O senhor pode falar algo sobre isso?
— Na verdade há, sim. Quando chegamos no local onde encontramos o
agente Pablo Tavares, havia dois homens perto dele, e junto a eles estava uma
arma que acreditamos ser de onde saiu os disparos contra o agente Tavares e
também uma garrafa de querosene que, logicamente, para nós, serviria para
carbonizar o agente que ali estava.
— E quanto a esses dois homens… onde estão? O que se sabe sobre eles?
— Esses dois homens foram capturados e pegos em flagrante,
encaminhados então para a central de polícia…
— Que crueldade esta quadrilha está fazendo com todo mundo, meu Deus!
Tomara que prendam todos eles e dêem um fim logo a essa carnificina — falou
Melina, agora colocando as verduras dentro de uma tigela de porcelana.

115
Transformação - Naasom A. Sousa

— … dois policiais os levaram, mas houve um acidente, onde o carro-


patrulha em que estavam, se chocou com um poste, fazendo assim, os dois
policiais ficarem inconscientes e os dois suspeitos fugirem. No momento eles se
encontram foragidos. — Axel olhou para Caroline. — Por enquanto não
temos quaisquer informações sobre eles, mas vamos examinar nossos registros
na central e verificar se os dois ou mesmo um deles tem passagem na polícia, e se
tiverem, vamos saber tudo sobre esses sujeitos. Se não, vamos providenciar os
retratos falados dos dois e distribuir pela cidade. Tenho certeza que se
prendermos esses dois homens teremos grandes possibilidades de chegar ao
cabeça da quadrilha.
— Certo, agente Axel Brendel, mas antes de encerrarmos esta matéria “por
enquanto”, o senhor nos poderia dar as características físicas desses dois
fugitivos?
— Oh, sim — o olhar de Axel se encontrou novamente com a lente
da câmera. — Mas antes, queria dizer que, quando chegamos ao local onde
encontramos os dois, um deles estava muito machucado. Pelo menos era o que
parecia, o que significa que este deve estar lento e bastante fraco…

&&&

— Você não conhece esse doido que é o Carlos, agente Brendel —


murmurou Vip, num riso amarelo em frente ao seu aparelho de TV. —
Ele parece um polvo que a gente corta um de seus tentáculos e logo
nasce outro. E se você bobear, te pega e mata.
Axel continuava a se pronunciar:
— …achamos que deve ter havido alguma luta com o agente Tavares antes
deste ser baleado ou por membros da própria quadrilha e a causa pode ter sido
alguma discussão, isto é uma hipótese. Voltando à sua pergunta, o que estava
machucado é um homem branco, forte, alto, aparenta uns vinte e sete anos para
trinta, cabelos negros e vestia um paletó cinza. O outro homem é de meia
estatura, também de pele branca, cabelos castanhos e lisos, uma aparência jovial,
na casa dos trinta anos para quarenta. Vestia camisa manga longa e calça de
linho cor-de-vinho.

&&&
Melina deixou cair a tigela repleta de verduras no chão. Junto com a
surpresa, sentiu um profundo aperto no coração.
— Meu Deus, é Alan! É Alan!
Melina ainda se lembrava nitidamente da vestimenta do marido
quando este partira.

116
Transformação - Naasom A. Sousa

— Senhor, ele está metido com esta quadrilha! Então não foi
realmente um sonho e sim uma revelação! Ele está mesmo precisando de
ajuda, Jesus; minha, de toda igreja e principalmente da Tua ajuda, meu
Senhor!
Pôs-se rapidamente de joelhos e ali mesmo na cozinha, ligou-se com
o céu em uma fervorosa oração, clamando, pedindo, suplicando a ajuda
divina.

&&&

A TV na suíte de Vip, no quarto andar do Quaid, ainda estava


ligada e Caroline estava encerrando a reportagem.
— Uma última pergunta: quando irão divulgar o resultado da pesquisa nos
livros da central ou então dos retratos falados?
— Hoje à tarde ou amanhã iremos divulgar uma das duas coisas.
— Obrigada, agente Brendel — o zoom da câmera voltou a enquadrar
somente Caroline. — Bem, Silvio, ficaremos por aqui aguardando mais
informações, e se isso acontecer, voltaremos a comunicá-lo. Caroline Lima, do
NR para o Noticiário Sete.
A imagem de Caroline recolheu-se para detrás de Silvio Trindade, e
este mais uma vez comunicou, falando:
— Um pouco depois de recebermos esta fita de vídeo com a reportagem,
soubemos também, através da repórter Caroline Lima, que o agente Pablo
Tavares faleceu na mesa de cirurgia, às cinco horas desta manhã. O projétil da
bala na cabeça do agente policial fez com que a cirurgia, delicada, demorasse
várias horas, mas no final, o paciente não resistiu e em conseqüência disso veio-
lhe a morte. — o ancora suspirou. — Olha, não é possível que fiquemos à
mercê de quadrilhas de traficantes. Temos que lutar juntos com a polícia,
denunciando, prevenindo seu filho e sua filha contra as drogas e assim vamos
acabar com o submundo, começando dentro de nossas casas. E sobre esses dois
sujeitos que estão foragidos, vamos ficar de olhos abertos. Qualquer suspeita,
não hesite; ligue imediatamente para a polícia. — Um número de telefone
apareceu na tela. — Vamos acabar com o narcotráfico juntos.
O aparelho de TV foi desligado e o controle remoto jogado longe.
— Qualquer dia desses eu mando te matar, seu miserável — berrou
Vip, com relação a Silvio Trindade. Ele encostou as largas costas na
poltrona e passou a mão pelos olhos. Pegou o aparelho telefônico, discou
o número de Lucas.
— Alô?
— Lucas, estava vendo o Noticiário Sete?

117
Transformação - Naasom A. Sousa

— Não.
— Então venha para cá. Precisamos conversar.
— Certo.

&&&

Lucas levou meia hora de seu apartamento até o Quaid. Pegou o


elevador reservado e subiu ao quarto andar. Entrou na sala de
conferências e Vip já o aguardava em sua grande e imponente poltrona
na ponta da mesa.
— Colocaram uma reportagem na TV hoje — disse Vip. — Falaram
sobre Pablo, Caio, Carlos, o estranho e também sobre nós.
— O que disseram sobre Carlos? Já o pegaram?
— Não, mas esse desgraçado do Silvio Trindade influenciou, como
sempre, as pessoas para ficarem atentas às características dele e do
estranho que um agente chamado Brendel descreveu. Falou também
para ligarem para a polícia se os vissem. E como esse Silvio é aclamado
por esse povo…
— Está preocupado que o peguem e ele acabe falando alguma
coisa?
Vip hesitou em responder. Pensou por um momento e disse:
— Não. Carlos não falaria nada, nem que o torturassem até a morte.
Mas ele está com a fita — Vip apontou para Lucas —, que, bem dizer,
você deu para ele, e essa fita pode parar nas mãos dos tiras. Se isto
acontecer, tudo estará acabado para nós.
— Não se preocupe. Já tenho pessoas procurando-o. já contatei os
nossos policiais que também estão na ronda atrás dele.
— Também quero o estranho — lembrou Vip. — Quero mostrar-lhe
o nosso método de aprendizagem para aqueles que interferem em meus
planos.
— Iremos trazê-lo para você.
— Então… — Vip levantou-se e caminhou até um armário de
mogno. Abriu uma gaveta e tirou uma caixa de charutos. Levou-a para
Lucas e abriu-a. — vamos comemorar.
Lucas fitou seu chefe, espantado.
— Com tudo isso acontecendo você quer comemorar o quê?
Vip gargalhou.
— Você acredita que o desgraçado do Pablo Tavares ainda estava
vivo mesmo com os dois tiros que você deu nele?
— O quê? Mas não poderia, eu…

118
Transformação - Naasom A. Sousa

— Não se preocupe, ele morreu de uma cirurgia nesta manhã, com


o balaço na cabeça. Por isso vamos comemorar com charutos. — Lucas
tomou um em sua mão e o acendeu. Vip fez o mesmo com outro. — À
morte de Pablo e Caio: os tiras-encrenca. Que agora nos deixem em paz!
— Isso mesmo! — Lucas cantou a vitória.
Os dois fora-da-lei deram uma longa tragada e expulsaram logo
após a fumaça cinza aos risos de júbilo.
— Mas me diga uma coisa — falou Lucas —, e quanto a Oliver e
Selton, o que você pretende fazer?
— Bem, por enquanto meus planos estão voltados unicamente para
Selton. Oliver pode esperar. Ele nos será útil, o pescoço dele também
está exposto ao carrasco.
E comemoraram mais uma vez com tragadas e mais risos.

&&&

Todos no NR estavam uma pilha de nervos com os últimos


pacientes que haviam chegado. Uma briga entre gangues tinha
acontecido na rua Amaredo e agora uma tropa de vândalos
estraçalhados chegava pouco a pouco no hospital. Enfermeiros e
médicos corriam empurrando as macas porta abaixo; residentes e para-
médicos empurravam porta acima. A adrenalina estava à flor da pele, a
tensão subia pela garganta; a histeria tomava conta dos corredores do
Norton Ramos.
Caroline estava em um dos quartos do hospital, sentada numa
cadeira de olhos fechados de frente para a cama onde Pablo se
encontrava deitado, ainda desacordado. O silêncio era soberano sobre o
recinto e qualquer movimento que ela fizesse, o som parecia ser
reproduzido por um alto falante. A porta do quarto foi aberta e Caroline
pôde ouvir a balbúrdia que vinha dos corredores. Ela abriu os olhos e
viu Axel em pé ao lado da porta.
— Posso entrar? — perguntou o agente policial.
— Claro, entre.
— Você está bem?
Caroline optou por outra pergunta:
— O que está acontecendo lá fora? Um concurso de gritaria?
— Membros de gangues rivais se trucidaram e agora estão pagando
o preço.
Caroline baixou a cabeça e pôs o rosto entre as mãos.
— Posso fazer alguma coisa? — indagou Axel.

119
Transformação - Naasom A. Sousa

— Pode fazer ele acordar, levantar e vir me abraçar? Preciso dele.


Axel suspirou fundo.
— Caroline … eu sinto muito mesmo…
— Eu sei que sim, Axel, mas é muito difícil para eu suportar tudo
isso, entende? Sabe como é uma pessoa que já viu de tudo, pessoas
morrendo, pessoas sofrendo pela perda de outras… Mas quando
acontece com ela, ela desmorona. Isso está acontecendo comigo. —
Caroline respirou fundo, tentando segurar as lágrimas.
Axel ajoelhou-se ao lado da repórter e tocou-lhe o ombro.
— Tenha fé, Caroline. Creia em Deus e acabará tudo bem.
— Acho que é tudo que eu posso fazer agora, não é mesmo? Esperar
na boa vontade de Deus.
— É a melhor coisa que se pode fazer. A melhor de todas as coisas.
Quando há coisas que o homem não pode mais resolver, Deus entra em
ação. É só crer. E saiba de uma coisa: Ele somente faz o que é melhor
para nós.
Caroline permaneceu em silêncio.
A porta do quarto tornou a ser aberta e o doutor César Stone entrou
e caminhou até o casal de amigos. Caroline abriu os olhos e levou-os ao
encontro do doutor. Ela se ergueu da cadeira, enxugou os resquícios de
lágrimas. Axel a seguiu nos movimentos.
— Eu esqueci de lhe falar — disse Axel, olhando para Caroline —,
falei com o doutor Stone e ele queria conversar com você sobre o
“nosso” assunto.
O Dr. Stone retirou os óculos de aros de tarraruga do rosto e fitou a
linda mulher morena à sua frente.
— Quer sentar-se, Dr. Stone? — perguntou Caroline, oferecendo-lhe
a cadeira.
— Obrigado, Sta. Lima, mas eu raciocino melhor em pé.
— Bem, como queira, doutor. — Caroline fez uma pequena pausa.
— Creio que o senhor já deve estar inteirado sobre o teor desta conversa.
— Sim, o agente Brendel já me adiantou alguma coisa. Só não
entendo os motivos dessa idéia meia que absurda para mim.
— Sei que parece meio estranho, Dr. Stone — interveio Axel —, mas
não tem nada de absurdo nela. Eu e a Sta. Lima conversamos sobre isso
e, sinceramente, acho que essa é a melhor forma de colocarmos a vida do
seu paciente em segurança.
— Em segurança contra o quê?
— O senhor sabe o motivo pelo qual o Sr. Tavares chegou até aqui?
— Sim.

120
Transformação - Naasom A. Sousa

— Então sabe do que estou falando.


— Não.
Caroline tentou novamente:
— Dr. Stone, a quadrilha que colocou Pablo aqui, milimetrou passo
a passo para que isso acontecesse, quero dizer, para que ele morresse.
Tanto, que deram dois tiros em suas partes letais. Estão contando com a
morte dele. Agora pense, doutor: se descobrirem que seu paciente está
vivo? Que o plano cuidadosamente estudado não dera certo; que
falhara? Será que não farão de tudo para que o plano seja completado?
Aposto que sim. Por isso pensamos nisso. E já que o senhor é o médico
encarregado de Pablo enquanto ele estiver aqui, contamos com sua
decisão para que isso seja verdadeiramente um “fato”. Mas quero
ressaltar uma coisa, doutor: não quero pressioná-lo, mas é que já fiz uma
matéria sobre tudo o que aconteceu com Pablo e informei que ele havia
morrido na mesa de cirurgia. Por isso, não é só a vida do seu paciente
que está em suas mãos, mas também minha matéria e, mais que isso,
minha reputação como a “repórter da verdade”.
— Senhorita…
— Dr. Stone, estamos falando aqui em salvar uma vida! —
interrompeu Caroline. Ela apontou para Pablo inconsciente sobre o leito
— A vida do seu paciente!
O Dr. Stone calou-se e o silêncio pairou outra vez no quarto, sendo
possível ouvir os bips do monitor cardiológico ao lado da cama de
Pablo. O Dr. Stone caminhou até ladear o seu paciente sobre o móvel
metálico e ficou a fitá-lo.
— Tenho que ser sincero com você, Sta. Lima — disse ele. —
Removemos parte do cérebro do Sr. Tavares e isso não se limita apenas a
milhões de neurônios, mas sim de suas condições físicas, emocionais e
até mesmo vitais daqui por diante.
— O que o senhor está querendo dizer é…
— O que estou querendo dizer é que essa quadrilha conseguiu, de
um jeito ou de outro tirar o Sr. Tavares de seus calcanhares.
— Quer dizer que ele não sairá do coma? — indagou Axel.
O Dr. Stone colocou os óculos de volta no rosto.
— Talvez ele saia, mas… isto é uma incógnita. Mas se vier a sair,
tenho que lhes prevenir que ele poderá não andar mais, nem falar ou
ouvir coisa alguma, e… também poderá não se lembrar de muita coisa.
Os olhos de Caroline, de repente tornaram a se encher de lágrimas,
que escorreram por sua face. Ela enxugou-as, mas logo outras tomaram
o lugar das anteriores.

121
Transformação - Naasom A. Sousa

— Não pode ser… — sussurrou ela, olhando para Pablo,


inconsciente e ligado a diversos tubos, que o alimentavam por via
intravenosa. — Isso não pode estar acontecendo…
— Sta. Lima, eu… — Dr. Stone tentou dizer algo.
— Por favor, doutor, não posso ouvir mais nada.— Caroline deu as
costas para os dois homens e deixou o quarto, pranteando. O silêncio
voltou a reinar no recinto.
O Dr. Stone respirou fundo e colocou as mãos nos bolsos de seu
jaleco para se descontrair, mas foi uma atitude vã.
— Agente Brendel, eu realmente sinto muito pelo que está
acontecendo.
Axel tentou sorrir.
— Sabemos disso, Dr. Stone. Obrigado por seus sentimentos.
— Diga para a Sta. Lima que irei fazer de acordo com seu plano, e
falarei com minha equipe médica, as pessoas que me ajudaram na
operação do Sr. Tavares e que eles irão colaborar. Fale com ela e fique ao
seu lado, confortando-a. ela irá precisar.
O Dr. Stone precipitou-se à porta.
— Pode deixar, doutor — disse Axel —, farei isso.
— Então é isso. Até logo — despediu-se o doutor, antes de fechar a
porta atrás de si.
Axel viu-se a sós com Pablo, inconsciente no quarto silencioso. Ele
pôs-se a fitar comovido o amigo em coma. Caminhou e postou-se ao
lado da cama de metal, fechou os olhos e esticou o braço, tocando o
corpo do amigo.
— Ei, parceiro, acorde! — pediu. — Estão precisando de você aqui.
Pablo não acordou, não se moveu nem mesmo balbuciou nada. Axel
apenas continuou ouvindo o som que saía do monitor cardiológico.
Pip-pip! Pip-pip! Pip-pip! Pip-pip!…

122
Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 10

A Primeira Igreja Cristã de Melmar era um prédio simples de dois


andares, coberto pelas cores branca e azul-claro e com duas colunas
que sustentavam a marquise que enfeitava a frente do templo. Acima da
marquise havia escrito em vistosas letras azuis: 1.a IGREJA CRISTÃ DE
MELMAR. E um pouco abaixo: SEJA BEM-VINDO. Todo o templo era
protegido por grades que formavam um muro metálico que o rodeava.
Podia-se ver cinco janelas de vidros verdes de cada lado do templo. Em
cada uma delas estava escrito um mandamento dado aos homens por
Deus. Quão bonito era aquele templo de adoração a Jesus.
Porém, Bete parou em frente ao portão e ficou a pensar se haveria
um tira a entrada do templo, mas não havia ninguém. Coçou a cabeça e
projetou-se mais à frente, até que chegou à grande porta de madeira
maciça que dava acesso ao interior do templo. Olhou para um lado e
para o outro à procura de alguém fardado ou com uma arma na cintura
à espreita. Não havia nem uma pessoa nessas condições. Bete segurou a
maçaneta e girou-a lentamente a fim de não fazer o menor ruído
possível. A grande porta foi aberta por ela e então pôde ver o interior do
simples prédio. Um grande vagão cheio de bancos enormes de madeira,
definiu Bete, em sua mente, maravilhada com a simplicidade e
aconchego do lugar. Ela varria tudo com os olhos, tentando absorver
cada detalhe no interior do templo que o tornava humilde, mas ao
mesmo tempo tão lindo e atraente.

123
Transformação - Naasom A. Sousa

— É a primeira vez que a senhora está entrando em um templo


evangélico?
Bete foi despertada de seus vagos pensamentos. Ela olhou para a
origem da voz que ouvira e enxergou um senhor de meia idade sentado
em uma cadeira próximo ao púlpito — o que ela não tinha a menor idéia
do que era. Uma grande caixa fechada de madeira envernizada. Pensou.
— Oh… não… Eu nunca entrei num lugar assim, não — disse
desajeitada.
— Então que Jesus a abençoe e seja bem-vinda.
— O-obrigada — balbuciou Bete, com um sorriso amarelo nos
lábios.
— Fique à vontade se quiser orar, clamar ao Senhor. Aqui é casa de
oração, o lugar certo para falar com o Soberano e Único Deus. E assim
fazendo, Ele responderá às suas súplicas e suprirá todas as suas
necessidades.
Bete fitava o homem de longe. Ela começou a coçar a cabeça.
— Oh, não… — falou ela, um tanto acanhada. — eu não vim aqui
orar, rezar, nada disso. Ei vim aqui falar com um homem chamado… —
tentou lembrar do nome. Andou com passos longos até o púlpito. —
Pastor Nilon… Não! Nicon… Não! Nilton! Nilton Cross! Pastor Nilton
Cross! É isso! — Bete encontrou-se pulando de alegria por ter lembrado
o dito nome. Olhou para o homem e viu sua expressão de espanto.
Enrubesceu de vergonha. — E… eu queria falar com ele. O senhor sabe
onde posso encontrá-lo?
O homem balançou a cabeça afirmativamente.
— Pode chamá-lo pra mim? — Bete pensou em uma hipótese
quando viu o homem não mover um músculo e permanecer a fitá-la. —
Não me diga que o senhor…
O homem sorriu.
— Isso mesmo. Eu sou o Pastor Nilton Cross.
Bete corou novamente.
— Oh, desculpe-me, eu… eu…
— Não se preocupe, essa não é a primeira vez que isso acontece.
— É… o senhor é muito gentil — bete tornou a mostrar o sorriso
amarelo.
O pastor Cross era um homem muito maduro, pois já estava na casa
dos sessenta e já havia passado por várias experiências em seus muitos
cargos na igreja. Todos gostavam dele ou pelo menos aprendiam a
gostar. Com seus cabelos grisalhos, seu bigode sempre bem aparado e
sua barriga avantajada, ele fazia todos se sentirem à vontade, e com seu

124
Transformação - Naasom A. Sousa

1,80 m de altura, fazia sentirem-se submissos. Mas as ovelhas não


precisavam disso para ser obedientes, porque sempre acabavam
admirando-o e dando-lhe apoio em tudo o que planejasse e fizesse.
Ele olhou para Bete, curioso.
— Mas… o que tem para me falar? Sra.…
— Bete. Oh, sim… É que um homem passou hoje cedinho na rua
Amaredo e mandou eu vir aqui falar com o senhor.
Nilton franziu a testa.
— Comigo? Mas que homem?
Bete coçou a cabeça, num gesto de lembranças.
— Um senhor até simpático. O nome dele é… Alan.
A expressão de surpresa como num passe mágica apareceu no rosto
do pastor Cross.
— Alan?
—É.
— Por favor, Sra. Bete, conte-me tudo o que aconteceu. Como ele
chegou até a senhora?
Bete não teve muita dificuldade de contar como Alan atravessara
em seu caminho. Lembrava muito bem do dinheiro que lhe dera e da
boa comida que comprara com ele. Agora estava farta, de barriga cheia.
Bete descreveu Alan de forma especial. Como um anjo que desce do céu
com aquilo que mais necessitamos e entrega em nossas mãos. Falou que
ele estava acompanhado de outro homem e mandou-a procurar o pastor
Nilton Cross e dissesse que ele estava bem e… com jeito um tanto
desconcertante, mencionou o pedido de Alan para que Nilton cuidasse
dela.
O pastor Cross notou seu acanhamento.
— Alan mandou falar para que eu cuidasse de você?
— Bem… foi o que ele disse, mas se o senhor não quiser eu irei
entender…
O pastor Cross sorriu.
— Oh, não. Não é nada disso que você está pensando. É que sempre
Alan faz isso quando é tocado pelo Senhor. A igreja tem um
departamento para pessoas desabrigadas, por isso ele lhe mandou até
mim.
— Oh, sim — Bete se sentiu maravilhada.
— Espere um momento — Nilton caminhou até uma porta ao lado
da tribuna e abriu-a. — Querida, venha aqui um minuto! — Gritou ele,
chamando alguém e dentro de poucos instantes, uma senhora robusta e
morena apareceu.

125
Transformação - Naasom A. Sousa

— O que foi, Nilton? — perguntou ela.


— Alan mandou-nos uma pessoa — ele mostrou Bete com a mão.
— Oh, que bom!
O pastor Cross dirigiu-se a Bete e levou-a à forte senhora.
— Esta é minha esposa Tatiane. Ela cuidará de você, Bete, eu lhe
garanto. Você estará em boas mãos.
— Tenho certeza que sim — disse Bete com um sorriso largo —, se
não o senhor não estaria casado com ela.
Nilton e Tatiane sorriram orgulhosos um do outro.
— Leve-a para tomar um banho e dê-lhe roupas limpas.
— Está bem — concordou Tatiane. Pegou a mão da velha senhora e
conduziu-a até a porta. Foi então que Bete lembrou-se das últimas
palavras de Alan. Ela voltou-se para Nilton.
— Pastor… eu lembrei agora de uma coisa que aquele homem disse!
— exclamou ela. — Melina está aqui?
O pastor e sua esposa se entreolharam.
— Melina? — indagou o Ps. Cross. — O que Alan falou sobre
Melina?
— Ele falou para perguntar se ela estaria por aqui, e se estivesse, era
para dizer que ele a amava… e também a Jamil, Jairo e Gina.
— Não seria Jair, Jaime e Jéssica?
Bete ergueu o sobrolho.
— Isso mesmo! — disse eufórica.
— Eles não estão aqui, mas eu me comunicarei com eles e passarei o
recado.
— Faça isso mesmo, pastor. Ele parecia preocupado — avisou Bete,
coçando a cabeça.
— Não se preocupe. Farei isso, sim.
Bete deu o braço pata Tatiane e as duas passaram pela porta.
— Tat! — chamou Nilton.
Tatiane voltou alguns passos e olhou para o marido.
— Cuide bem da cabeça dela, acho que ela tem…
Os dois voltaram-se para Bete, no momento em que ela coçava a
cabeça.
— Não precisa dizer mais nada, querido — assegurou Tatiane,
conduzindo a velha senhora para o interior dos aposentos do templo.
Nilton Cross tornou a sentar-se na cadeira, abriu sua bíblia e
continuou sua leitura diária, mas seus pensamentos não o deixava
refletir na palavra. Fechou o Livro Sagrado.

126
Transformação - Naasom A. Sousa

O que Alan estria fazendo de madrugada na rua Amaredo, Senhor? Ainda


mais acompanhado de um homem! Pensou Nilton. Quem poderia estar com ele
numa hora daquelas? Poderia ele estar com outro membro da igreja
evangelizando? Mas de madrugada?
Levantou-se e pôs-se a caminhar pela tribuna.
Bete falou que Alan havia dito para comunicar à Melina que ele estava
bem. Mas não era para estar? E porque mandou dizer por Bete que a amava?
Não poderia dizer pessoalmente quando chegasse em casa?
Por fim, Nilton Cross concluiu:
— Tem alguma coisa errada nisso tudo.

&&&

O escritório do templo era bastante simples e pequeno. Continha


uma escrivaninha com sua respectiva cadeira, um arquivo de ferro com
quatro gavetas e um pequeno cofre onde era guardado temporariamente
as ofertas das reuniões diárias.
Nilton sentou-se atrás da humilde escrivaninha e organizou o seu
conteúdo, repassando mentalmente aquilo que sempre gostava que
ficasse à sua disposição em cima da mesa: um telefone, um bloco de
notas com um calendário impresso na parte superior do papel, um estojo
de canetas e lápis e um pequeno computador. Nilton massageou a
voluptuosa barriga e retirou o fone do gancho, começando a discar o
número da casa da família Xavier.
Ao terceiro toque, Melina atendeu.
— Melina, Alan está em casa?
Houve um instante de silêncio.
— Pastor…
— Está acontecendo algo ruim, não é?
— O senhor não sabe? Alan não lhe contou?
— Contou o quê, minha filha? Ele só pediu uma licença do cargo de
auxiliar por algum tempo por causa da viagem que ia fazer.
O pastor Cross ouviu o suspiro de Melina do outro lado da linha.
— Não quer me contar o que está acontecendo?
— O senhor poderia vir até aqui?
— Claro! Estarei aí em um minuto.
— Irei esperá-lo.
Nilton Cross desligou o telefone e encostou-se na cadeira.
E agora, Pai, o que está acontecendo com meu irmão? Será que está
passando por algum perigo? Pelo menos ele sabe como nos acalmar, mandando

127
Transformação - Naasom A. Sousa

Bete para dizer-nos que está bem. Seja como for, Pai, que o Senhor esteja com ele
em sua caminhada.
Nilton levantou-se da cadeira estofada e saiu do escritório, bateu a
porta atrás de si e seguiu rumo à casa dos Xavier.

&&&

A porta do quarto foi aberta e Oliver despertou assustado, mas era


apenas uma simples enfermeira segurando um telefone. Ele fechou os
olhos. Segurando um telefone? Arregalou ligeiramente os olhos e a
mulher fardada de branco estava ao lado da sua cama oferecendo-lhe o
aparelho.
— Um telefonema para o senhor. Os médicos acharam que já está
em condições para receber — disse ela com um sorriso no rosto.
Oliver pegou o telefone e a enfermeira saiu do quarto fechando a
porta silenciosamente.
— Alô, Oliver falando.
— Com isso, posso concluir que você continua vivo.
A voz era terrivelmente conhecida.
— Vip?! — Oliver notou que havia falado um pouco mais alto do
que deveria. Escutou por um momento se alguém passava pelo
corredor. Ninguém, estava em total silêncio. — Vip? — repetiu com a
voz moderada.
— Quebrou quantos ossos, Oliver? Espero que tenha quebrado
alguns para compensar a besteira que você fez deixando Carlos e o outro
cara escapar.
Oliver engoliu saliva com dificuldade.
— Eu tive sorte. Sofri apenas um corte no supercílio e uma pancada
no lábio que o deixou muito inchado. Levei uma pancada na costela,
mas não é nada grave. Selton foi quem levou a pior. Está todo quebrado
e parece que está inconsciente. É… ele não está nada bem.
— Foi exatamente por isso que liguei para você.
— O quê?
— É sobre Selton. Era ele quem estava dirigindo o carro-patrulha,
quem o fez bater no poste. Oliver, tenho certeza que lhes perguntarão
porque vocês dobraram na rodovia Três ao invés de irem direto para a
central. Você já pensou em uma resposta coerente?
— Não exatamente.
— Você já falou com alguém sobre o que aconteceu com vocês?
— Falei com um agente. O nome dele é Axel.

128
Transformação - Naasom A. Sousa

— E… ?
— Ele não me questionou muito sobre isso, e eu não contei por que
desviamos da central…
— Oliver! — interrompeu Vip. — Se lhe perguntarem por que
desviaram da central, quero que diga que foi Selton quem o fez,
entendeu? Diga que você ficou confuso, perguntou-lhe por que havia
dobrado na rodovia 113 em vez de seguir para a central, mas que ele não
respondeu e… por um erro no volante arrebentou o carro no poste, ok?
Diga que foi culpa do Selton.
A voz de Oliver soou cheia de indignação.
— Mas Vip, assim irei sujar a barra do Selton. Acabarão
suspeitando que ele faz parte da quadrilha, que é corrupto e quando ele
acordar irão fazer milhares de perguntas e ele vai acabar deixando
alguma coisa escapar…
— Ele não irá acordar.
Os lábios de Oliver se encontraram subitamente tremendo de
choque.
— O que você disse?
— Ele não irá mais acordar, Oliver, e você cuidará para que isso
aconteça.
Imediatamente um surto nervoso tomou conta do experiente
policial.
— Mas e-ele é m-meu parceiro e amigo… e… você está pe-pedindo
que e-eu…
— Você já entendeu tudo — disse Vip com voz áspera. — Não
podemos arriscar o futuro da quadrilha, já que o futuro de todos nós
está incluso nela. Você bobeou, Oliver, fracassou, e por causa disso abriu
uma fresta por entre a parede e agora, mais cedo ou mais tarde nossas
ações poderão ser visualizadas, a menos que você faça com que essa
fresta seja fechada, e isso só acontecerá se você fizer o que tem que ser
feito. Então faça e o mais rápido possível, não importa como.
A ligação foi finalizada e Oliver ouviu quando Vip bateu o telefone
na sua cara, não dando mais tempo para seus protestos. Oliver apertou o
botão de finalizar a ligação e repousou o telefone em cima do seu
próprio corpo. Fechou os olhos e ficou a pensar em todas as palavras
ditas durante a conversa, que parecia mais com uma das horrorosas
reuniões no Quaid.
Não podemos arriscar o futuro da quadrilha, já que o futuro de todos nós
está incluso nela…
…Então faça e o mais rápido possível, não importa como.

129
Transformação - Naasom A. Sousa

Oliver passou a mão pela cabeça calva e percebeu gotas de suor


sobre ela.
Que droga! Pensou. Não poderia ter acontecido o que aconteceu, Selton.
Não poderíamos ter batido naquele maldito poste! Não era para aqueles dois
terem escapado!
Oliver olhou para seu lado esquerdo e fitou seu parceiro.
…Você bobeou, Oliver, fracassou, e por causa disso abriu uma fresta por
entre a parede e agora, mais cedo ou mais tarde nossas ações poderão ser
visualizadas, a menos que você faça com que essa fresta seja fechada, e isso só
acontecerá se você fizer o que tem que ser feito…
Selton encontrava-se deitado sobre uma cama metálica, ligado a
tubos onde respirava com a ajuda de aparelhos. Oliver ergueu-se e
dirigiu-se à cama de Selton, se postando ao seu lado.
— Desculpe-me, Selton, mas tem que ser feito — sussurrou Oliver.
…tem que ser feito…. o mais rápido possível, não importa como.

130
Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 11

— Socorro! Ajudem aqui! — o grito de Oliver encheu o quarto do


hospital NR. Ele correu até a porta e abriu-a apoiando-se na
parede. — Socorro! Por favor, alguém venha até aqui e me ajude! Gritou
ele novamente, agora enchendo os corredores do hospital. Em alguns
segundos, dois residentes e um médico de plantão chegaram às pressas
ao quarto.
— O que aconteceu? — perguntou o médico, fitando Oliver, que se
encontrava visivelmente atordoado.
O policial em trajes simples de paciente — uma bata azul — engoliu
o nó que estava na garganta e piscou os olhos incessantemente. Tentou
falar algo, mas de sua boca não saía outra coisa senão palavras
incompreensíveis.
O médico tentou novamente:
— Sr. Oliver, o que aconteceu aqui?
Os dois residentes caminharam à cama de Selton e, ao chagar lá,
olharam com expressão preocupante para o médico.
— Doutor Juarez… venha aqui, rápido!
O médico aproximou-se. Os residentes apontaram o problema um
tanto alarmados. O tubo de oxigênio havia se soltado do aparelho de
bombeamento artificial que levava o ar até os pulmões do paciente em
coma e a cama estava desarrumada. Todos olharam para Oliver; todos

131
Transformação - Naasom A. Sousa

os olhares pedindo explicações. O Dr. Juarez colocou o estetoscópio


sobre o peito de Selton e não escutou nenhuma palpitação.
— Sr. Oliver, definitivamente, o que aconteceu aqui? — agora o
médico requeria.
Oliver balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Oh, Selton! Selton! — ele correu à cama do seu parceiro e
debruçou-se sobre o corpo imóvel, segurando na gola da bata azul. Ele
chacoalhou Selton, fazendo o leito ranger. — Selton, não faça isso
comigo, cara! Não desista agora! — chorou Oliver.
O Dr. Juarez e um residente seguraram o descontrolado policial.
— Calma, senhor, calma! — pediu um dos residentes, que acenou
para o outro e retiraram Oliver de cima do corpo de Selton, e logo após
do quarto, que parecia mais escuro naquele momento.
Está feito, meu caro Vip. Está feito, proferiu Oliver em seu
pensamento.

&&&

— Sr. Oliver, diga-me exatamente o que aconteceu lá no quarto com


o Sr. Selton — perguntou outra vez o Dr. Juarez, agora em um outro
quarto que também exibia duas camas metálicas formalmente
acolchoadas e cobertas com lençóis puramente alvos. Oliver sentava-se
numa delas e dois médicos de plantão fitava-o ao lado do agente de
polícia negro, Axel. O velho policial encontrava-se de cabeça baixa,
matraqueando com as mãos, uma na outra, como se estivesse montando
uma pequena caixa.
— Ele se mexeu — balbuciou Oliver.
O Dr. Juarez voltou-se para Axel.
— Ele se mexeu? — indagou ele, espantado. — Isso quer dizer que
ele saiu do coma!
— Provavelmente — disse Oliver.
— O senhor não tem certeza? Não viu ele se mexer?
— Não.
— Oliver… — Axel tomou a palavra e o policial/paciente fitou-o
nos olhos. — O que aconteceu? Conte-nos como Selton se desligou do
bombeador artificial de oxigênio.
— Ele morreu, não foi? — perguntou Oliver, respirando fundo.
— É. Morreu, sim — confirmou Axel, pesaroso.
Oliver tornou a baixar a cabeça como em reverência e silenciou por
um momento.

132
Transformação - Naasom A. Sousa

— Recebi um telefonema. Era minha mulher, Joana. Conversamos e


logo a seguir adormeci — disse ele, a voz fraca. — Ouvi, durante meu
sono, um barulho de alguém se debatendo. Abri os olhos e vi a cama do
Selton desarrumada. Vi também que o tubo que o ligava à máquina
havia se desprendido. Eu… eu… — Oliver silenciou novamente. —
Tudo o que pude fazer foi gritar daquele jeito, sabe… eu estava
desesperado, eu… — ele perdeu a fala, sendo sufocado pelas lágrimas.
Axel aproximou-se e tocou-lhe o ombro.
— Sinto muito, Oliver. Todos sentimos muito. Tudo vai acabar bem.
O choro foi estancado e o policial em trajes de paciente olhou nos
olhos de Axel com expressão de fúria.
— Não vai não, cara. Nunca acabará, agora que perdi o meu
parceiro. Tudo graças àqueles desgraçados. Vou pegá-los, cara, espere só
eu botar as minhas mãos neles. Espere só.
— Vamos pegá-los, policial. Vamos pegá-los — confortou Axel.

&&&

Assim que deixou Oliver a sós com os médicos, Axel recebeu um


chamado de seu capitão na central pelo seu pager. Vinte minutos depois
ele estava em frente à porta da sala mais temida do departamento de
polícia. Do outro lado da porta de mogno, Axel podia ver pelo vidro seu
capitão Afonso Sander, um homem corpulento, de cabelos grisalhos,
bigode cheio e de aparência impertinente. Todos o temiam por ele ser
muito explosivo e gostar de pegar no pé de quem não lhe agradasse.
Axel bateu no vidro da porta e respirou fundo. Vamos ver no que
vai dar, pensou.
O capitão Sander levantou os olhos dos papeis que estava revisando
e acenou para que entrasse. Axel abriu a porta, entrou e postou-se em pé
à frente do forte homem.
— Senhor?
— Sente-se, Brendel — Sander ofereceu a única cadeira além da sua
na sala e Axel puxou-a, acomodando-se à mesa.
— Senhor, antes de mais nada, tenho uma notícia nada agradável
para comunicar.
— Diga.
— Agora pela manhã, o oficial Selton Canhedo faleceu em um dos
quartos de internação do NR.
A face do velho capitão permaneceu inexpressiva.
—Morreu? Como isso aconteceu?

133
Transformação - Naasom A. Sousa

— Ele se encontrava em coma. Mas acho que ele despertou alterado


e isso acabou fazendo com que batesse num tubo que levava o oxigênio
aos seus pulmões e desprendê-lo dele, fazendo-o morrer por falta de ar.
— Meus Deus! — exclamou Sander. No tom de sua voz podia-se
sentir sua frieza e Axel quis saber se ele realmente sentia alguma coisa.
— O oficial Oliver Batista estava dormindo numa cama no mesmo
quarto quando o trágico acidente aconteceu. Quando acordou, Canhedo
já havia falecido. Foi Oliver quem chamou, aos gritou, os médicos. Ele
ficou muito aturdido quando soube que seu parceiro não abriria mais os
olhos.
— Os dois eram sem dúvida muito apegados um ao outro.
— Não os conhecia bem, mas era o que diziam.
O silêncio tomou conta da sala por um momento. Axel se sentiu
compelido a quebrá-lo.
— Mas… o senhor me chamou…
— Oh, sim! Victor, Lauro e Levi não encontraram os dois caras nos
livros de antecedentes. Pedi para que viesse para tomar as providências
e encaminhar o processo do retrato falado.
— É, eu já vinha para cá mesmo. Obrigado por me lembrar mesmo
assim.
Sander deslizou os dedos pelo bigode, como se os penteasse.
— Mas voltando a falar sobre Oliver e… o falecido Selton, que Deus
o tenha… Você os interrogou sobre o por quê de ter levado os dois
suspeitos para a rodovia Três em vez de ter vindo direto pela Nando
Arrais?
Axel meneou a cabeça.
— Já que Selton estava em coma, hoje eu iria falar apenas com
Oliver, mas acabou acontecendo o acidente e observei o jeito como ele
reagiu… Enfim, achei melhor não tocar no assunto naquele momento tão
difícil. Mas… na noite em que ele chegou ao NR, ele me falou que Selton
perdera o controle do carro e assim eles bateram.
Sander pareceu confuso.
— Selton perdera o controle? Logo Selton? Ele foi eleito o melhor
motorista da central ano passado. Por que ele iria perder o controle do
veículo?
Axel pensou por um instante e lembrou-se das palavras de Oliver.
— Oliver falou que Selton perdeu o controle porque viu pelo
retrovisor um dos homens tentando abrir as algemas.

134
Transformação - Naasom A. Sousa

— De qualquer jeito, quero que interrogue Oliver sobre o desvio à


rodovia Três. Quero um relatório completo sobre isso e sobre o acidente
com Selton na minha mesa o mais breve possível.
— Então isso quer dizer…
— Quer dizer que o caso é seu daqui por diante.
— Obrigado, capitão. Assim que eu falar com Oliver,
imediatamente mandarei os relatórios.
O bip do pager de Axel subitamente soou novamente, Ele levou a
mão ao cinto e o removeu até a altura dos olhos. Leu a mensagem.

“QUERO VÊ-LO HOJE À NOITE EM MINHA CASA. JANTAR À ESPERA”. SANDRA.

Afonso Sander observava-o.


— Algum problema?
— Oh! Nenhum, senhor, e… se me der licença, tenho que dar um
telefonema.
— Certo, está dispensado.

&&&

Axel ligou de um dos telefones públicos da central.


Tina, sua esposa, atendeu ao terceiro toque.
— Alô, residência dos Brendel.
— Tina, é Axel.
— Oi, amor. Algum problema?
— Não, nenhum. Quero dizer… mais ou menos.
— O que foi? — a voz de Tina exibia um tom de preocupação.
— Calma, querida. Não é nada de grave. É que surgiram problemas
por aqui. Dois policiais morreram hoje e fui designado para o caso. Isso
vai custar horas extras de trabalho, já que as coisas se tornaram difíceis.
Por isso estou ligando para você. Acho que não irei para casa hoje.
— Puxa, logo hoje que fiz lasanha com molho de tomate para você!
— resmungou Tina, com tristeza.
— Oh, não! — protestou Axel. — Só agora que você me diz?!
— Não esquente com isso. Leonardo e eu daremos conta direitinho
desta lasanha e desde já agradecemos.
Axel sorriu.
— Eu te amo, Tina — declarou ele.
— Eu também te amo, querido.

135
Transformação - Naasom A. Sousa

Axel levou o fone de volta ao gancho e caminhou em direção à


saída, de retorno ao Norton Ramos.

&&&

Quando ouviu que Axel desligara, Tina olhou por alguns segundos
para o fone e depois o devolveu ao console. Foi até a mesa e retirou os
ingredientes para a lasanha de cima dela, levou-os até a dispensa e
guardou-os lá.
Leonardo, o filho de oito anos do casal, observou os movimentos e a
expressão de angustia no rosto da mãe.
— Não vamos mais ter lasanha no jantar, mamãe?
Tina aproximou-se dele e tocou-lhe delicadamente o rosto.
— Não, querido, mas vamos comer uma deliciosa pizza. O que
acha?
— Papai irá gostar mais da lasanha.
— Iria gostar, querido. Ele não virá à noite.
Leonardo fechou os olhos e balançou a cabeça de um lado para o
outro.
— Outra vez? — sentenciou ele com uma pergunta que fez Tina
estremecer.
Ela puxou o pequeno filho contra o corpo e acochou-o num caloroso
abraço. Foi tudo o que pôde fazer, e isso tomou o lugar de suas palavras.
Depois disto, deixou Leonardo com seus brinquedos e distanciou-se do
mundo quando se trancou em seu quarto, fazendo das quatro paredes
suas fronteiras. Tina debruçou-se sobre a cama e então escorregou por
ela até encontrar-se de joelhos.
Gotas de lágrimas rolaram por seu rosto, e então o choro foi liberto.
Seus lábios tremiam em uma súplica sussurrada, incompreensível para
os homens, mas não para o Senhor.
Tina entregou-se inteiramente à oração naquela manhã. Nalgum
dia, tinha certeza, o Senhor cumpriria com suas palavras em Lucas 18:7.
Ela rogou em voz alta:
— Oh, Senhor! Traga-o de volta para mim! depois de pertencer a ti,
ele pertence a mim, Senhor! Por favor, traga-o para mim! — e então, as
lágrimas sufocaram-na novamente.

&&&

136
Transformação - Naasom A. Sousa

Axel entrou em seu carro-patrulha com a cabeça num turbilhão.


Tudo era um tanto estranho, pensava ele. Pablo e Caio pegos em uma
armadilha, dois suspeitos são flagrados e levados por dois policiais que,
mais tarde, saem da rota da central de polícia por motivos
inimagináveis. A viatura em que se encontravam bate em um poste por
culpa de um dos policiais que, horas depois de sofrer traumatismo
craniano acorda do coma e, de forma afoita, desconecta-se do aparelho
de bombeamento de oxigênio de que precisava e morre.
— O mal está se alastrando — disse consigo mesmo.
Ele colocou a chave na ignição, mas não a girou de imediato. Outros
pensamentos tomaram-lhe a mente.
Oliver falara que tinha sido Selton quem havia perdido o controle da
viatura, e de modo estranho. Qual a explicação para isso? Pensou. Qual a
explicação por terem saído da rota da central? Ou… Axel refletiu numa
fração de segundos. Ou apenas… apenas um ter saído da rota: quem guiava o
carro… Selton.
Pôs-se a girar a chave, mas, de repente, uma mão tocou-lhe o ombro
e chamou-lhe a atenção. Era Victor.
— Assustei-o?
— Oh, não — disse Axel, mentindo. — Como você está?
— Estou bem, mas não é sobre mim que vim até aqui para falar com
você. Recebemos um telefonema neste instante. Um telefonema
“daqueles”, anônimos, mas nem tanto.
Axel entendeu imediatamente o que significava.
— Não me diga que…
— Isso mesmo. É Caio.
— Meu Deus! Você sabe onde ele está?
— Sei.
— Então o que está esperando? Entre, vamos lá!

&&&

Ding Dong! Ding Dong!


A campainha soou e Melina caminhou até a porta. Abriu-a e o
pastor Nilton Cross saudou-a com um largo sorriso.
— A paz do Senhor Jesus, Melina — disse ele, estendendo a mão
grossa e gorda.
— A paz do Senhor Jesus, pastor — ela apertou a grande mão. —
Entre, por favor.

137
Transformação - Naasom A. Sousa

Nilton adentrou a casa humilde, mas bem cuidada e mobiliada dos


Xavier. Ela parecia maior em seu interior do que se imaginava quando se
olhava por fora, mas o pastor Cross matou a charada quando descobriu
que era o modo como Melina arrumava os móveis da casa que deixava
os cômodos dos aposentos mais espaçosos.
Ele se acomodou no sofá ao canto da sala e Melina sentou-se à sua
frente. Nilton notou-a um tanto abalada. Resolveu ir devagar, iria chegar
ao ponto certo com calma.
— Você está bem?
Ele forçou um sorriso.
— Estou.
— E as crianças?
— Também. Estão na escola e estão se saindo bem lá.
— E… Alan?
Melina baixou a cabeça.
— Alan… — ela respirou fundo. — Eu não sei onde ele está agora.
Não sei se está bem ou mal, doente ou com saúde. Não sei como está,
mas gostaria de saber.
— Ele está bem — confortou-a Nilton, de imediato.
— É, eu tento sempre pensar assim, pastor, mas…
— Não — interrompeu Nilton, tocando a mão de Melina —, ele está
bem, Melina, e muito bem por sinal. Tanto que nos mandou uma velha
senhora para que cuidássemos.
A Sra. Xavier levantou rapidamente o cenho.
— O quê?
Nilton observou a expressão de ansiedade no rosto da sua ovelha e
abriu um sorriso espontâneo.
— Isso mesmo — confirmou ele. — Essa senhora chegou hoje de
manhãzinha no templo procurando por mim, e quando descobriu que
“eu era eu”, disse que Alan havia-lhe mandado me procurar e dizer para
eu cuidar dela. Então, depois ela perguntou por você e falou que Alan
mandou-a dizer a você que estava bem e que a amava e também a Jaime,
Jair e Jéssica.
Uma lágrima rolou dos olhos de Melina e então conseguiu sorrir.
— Oh, Deus, obrigada! Muito obrigada!
O pastor Cross deduziu que era o momento de esclarecer todas as
questões em pauta.
— Melina… diga-me: o que Alan estava fazendo, tamanha
madrugada, na avenida Aramedo acompanhado de um homem?
Melina hesitou um pouco, ainda emocionada.

138
Transformação - Naasom A. Sousa

— De madrugada na avenida Aramedo, acompanhado de um


homem? Não faço a mínima idéia!
— Era onde Bete, a velha senhora, estava. Na avenida Aramedo. Ela
disse que ele estava com um homem.
Melina pôs as mãos na cabeça, pensando, e repentinamente
lembranças fluíram em sua mente.
Carlos!
— Será que…
— Será que o quê? — indagou Nilton.
— É que… eu estava pensando. Só se esse homem for o que Deus
revelara a Alan àlguns dias atrás.
— Que estória é essa?
— Eu pensei que Alan tinha falado com o senhor sobre isso,
pastor…
— Falado o quê, Melina?
Melina observou seu pastor e notou seu estado de ignorância. Ele
não entendia nada do que ela estava falando. Não estava a par de nada.
Na mente, um milhão de interrogações. Ela resolveu contar tudo do
princípio.
— Lembra-se da profecia do Senhor, para que Alan O buscasse e o
propósito de Deus lhe seria revelado?
— Lembro, sim. Está querendo me dizer…
— Sim, pastor. Esta semana, o Senhor revelou a Alan o que lhe
havia prometido na profecia.
— Sim, continue — pediu o velho guerreiro de Deus.
— Revelou-lhe que iria mandá-lo a um lugar onde encontraria um
homem, e esse homem se chama Carlos. Foi-lhe incumbido a missão de
pregar a Palavra de Deus a esse homem e se possível ganhá-lo para
Jesus. Alan falou-me que seria grandioso se Carlos se convertesse ao
Senhor. Eu pensava que esse Carlos fosse um homem de recursos ou…
sei lá, alguém que pudesse influenciar as pessoas a aceitar Jesus. —
Melina suspirou, com rosto tomando novamente a forma de tristeza. —
Mas depois juntei tudo o que Alan havia me dito e…
— Sim? —induziu o pastor.
— Ao nos despedirmos, perguntei se ele voltaria para mim logo,
e… — ele pausou um breve momento. — Ele disse que não sabia se
retornaria. Disse que o mais importante era a vontade de Deus, pois seus
planos jamais seriam frustrados. — lágrimas tornaram a descer pela face
de Melina e emocionaram Nilton. — falou-me ainda que… que isso

139
Transformação - Naasom A. Sousa

poderia ser muito perigoso, pastor. Desta vez mais ainda do que foi da
primeira vez.
O pastor Cross arregalou os olhos de horror.
— Mais ainda? Jesus Cristo!
Melina balançou a cabeça confirmando suas próprias palavras.
— Sabe, pastor Cross, não quero ser prepotente nem descrente do
poder de Deus, mas… — Melina conteve com grande esforço o choro
que teimava explodir garganta afora. Continuou. — …estou com medo.
Tento não expor meu lado carnal, tento não pensar no que ele possa
estar passando de mal. De hora em hora dobro meus joelhos em oração e
suplico ao Senhor que multiplique minha pequenina fé e que me ajude a
confiar no seu poder, graça e sabedoria. Mas sempre minha carne entra
em conflito com meu espírito e então surge em mim o egoísmo, e vejo-
me a discutir com Deus e… dizer-Lhe que Alan também me pertence
assim como pertence a Ele, e… — Melina não pôde mais continuar. O
choro tomou-lhe a fala.
— Oh, Deus — chorou ela —, por favor, perdoe-me! Ajude-me a
confiar e esperar plenamente em ti, Senhor!
O pastor Cross certificou-se que a sua hora era chegada.
— Senhor Deus — orou ele —, Te adoramos, pois tu és Santo,
Tremendo e Soberano sobre a terra, céu e mar, que reinas sobre as
nações e como Tu não há outro. Olha, Senhor, para a tua filha neste
momento e contemple sua aflição, suas dúvidas, seus anseios e tudo
aquilo que a impede de confiar cegamente em Ti. Remove todas as
barreiras do seu coração e dê tranqüilidade e ela, Pai. Mostra-lhe que a
Tua palavra é perfeita quando fala que todas as coisas acontecem para o
bem dos que Te temem…
O pastor Nilton Cross orou fervorosamente a Deus naquela manhã.
Apresentou-se ao senhor, assim também como à Melina, Alan e os três
pequeninos do fiel casal. Pediu que os guardasse e que os ajudasse a
suportar todas as aflições, pois a vitória era certa.
Ao término da oração, Melina sentiu-se veementemente melhor. O
peso exaustivo do seu coração havia se transformado em um leve e
suave sentimento de calma. Ela agora respirava fundo, serenamente.
Enxugou as lágrimas do rosto e sorriu ternamente.
— Obrigada por ter vindo, pastor. Estava precisando mesmo desta
oração.
Nilton também abriu o largo sorriso.

140
Transformação - Naasom A. Sousa

— O Senhor sabe o que faz, Melina. E se não fosse eu a vir aqui,


teria sido outra pessoa que da mesma forma teria orado por você assim
como eu orei.
— Eu creio nisto — disse Melina e como um relâmpago o sonho da
noite anterior veio-lhe a mente. — E… creio também que Alan está
precisando muito das nossas orações, porque tive um sonho e este sonho
significava isto. Devemos orar para que Deus o proteja e o ajude cada
vez mais nesta caminhada.
Nilton acenou com a cabeça, concordando plenamente.
— Vamos orar.

&&&

Axel nem precisou perguntar a Victor qual o local que a quadrilha


tinha determinado agora. O rádio da viatura anunciou:
Atenção viatura oito e próximas à rua Doroth Palheta. Corpo encontrado
no beco Assunção. Possivelmente ligado ao caso 5349. Dirijam-se ao local para
registros e averiguações.
A viatura passou voando pela Marechal Hermes, fazendo os
transeuntes taparem os ouvidos com o barulho da sirene e dobrou na
rua Jacinto Nyer, seguindo por mais alguns quarteirões. Ao dobrar na
Doroth Palheta, Axel observou ao longe que algumas viaturas já se
encontravam no lugar. Ele estacionou ao meio-fio e desceu do carro às
pressas, seguido por Victor.
Eles passaram por um oficial que começava a isolar a área com a
conhecida fita amarela e por outros conhecidos e desconhecidos agentes
até chegarem ao corpo.
Um outro policial tirava fotografias de todo perímetro ao redor do
vulto enegrecido e rijo. Axel agachou-se e olhou para o corpo escuro
esticado no chão. Absorveu cada detalhe com os olhos, cada parte
queimada, cada parte da carcaça carbonizada que lhe pudesse, mesmo
imóvel e impossibilitada para sempre, ressaltar-lhe alguma palavra,
revelar-lhe algo importante. Mas nada de especial passava-lhe à mente,
nem lhe revelava coisa alguma ou falava-lhe qualquer palavra oculta.
Tudo o que lhe resgatava as idéias ou o olhar furtivo era o que todos
comumente podiam ver e assim tirar a mais óbvia das conclusões: O
distintivo intacto da polícia de Melmar sobre o corpo carbonizado ao
chão, aberto, possibilitando a observação de todos e a leitura do nome
do portador — agora ex-portador — Caio Vieira.
Axel respirou fundo e passou a mão no rosto suado.

141
Transformação - Naasom A. Sousa

— Tudo bem, cara? — perguntou Victor. Axel olhou por cima do


ombro.
— É… acho que sim — falou Axel, voltando o olhar para o corpo de
Caio.
— Esses canalhas! Quantos mais irão se transformar nisto pelas
mãos deles? — Victor protestou. — Temos que dar um jeito nisso, cara!
Temos que detê-los.
Axel tirou os olhos de cima da matéria queimada e levou-os de
volta para trás, fitando Victor. Viu ao mesmo tempo um olhar de medo e
coragem naquele jovem de vinte e poucos anos, que não tinha visto
ainda muita coisa naquela profissão ingrata. Desejou que ele aprendesse
logo todos as manhas e truques da vida de policial assim como um
estômago forte para que não se perdesse no caminho.
— O cerco está se fechando, Victor — concluiu ele. — Mas como
você disse, temos que dar um jeito nisso. E eu lhe digo: vamos dar.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 12

A noite havia-se ido embora fazia tempo, e no momento o sol clareava


no céu. Agora se podia ver perfeitamente onde se encontravam: No
meio do lixo completo. Pilhas de latas de lixo encontravam-se jogadas de
um lado para o outro do beco, formando uma segunda camada de
parede construída de latão. O chão estava coberto de papéis, sobras de
comida e todo tipo de sujeira e material descartável e perecível. O odor
continuava, e agora mais intensamente por causa da temperatura que
aumentava gradativamente.
Alan tinha dormido muito pouco e “acordou com o sol”. Sem se
mover, orou ao Senhor por um longo tempo e agora se ocupava apenas
em pensar. Refletir no que viria a seguir, no que os reservava o futuro
próximo. Diante desta pergunta, um versículo tomou-lhe a mente:
Portanto, não andeis ansiosos pelo dia de amanhã, pois o amanhã se preocupará
consigo mesmo. Basta a cada dia o seu próprio mal. A palavra de Deus tem
razão. Sabemos que todas as coisas acontecem para o bem daqueles que amam a
Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.
Os pensamentos de Alan foram interrompidos quando Carlos
despertou assustado, seu corpo estremecendo. Carlos baixou a cabeça e
levou as mãos ao rosto.
— Um pesadelo? — indagou Alan.
Carlos nada falou. Apenas levantou os olhos, fixou-os no nada e
assim ficou por um bom tempo, sem piscar.

143
Transformação - Naasom A. Sousa

— Acho que teve mesmo — concluiu Alan. — Quer falar sobre isso?
Nem um músculo foi movido. Alan suspirou em desapontamento.
Agora voltou a ser como era antes, pensou. E os dois permaneceram em
silêncio. Carlos deixou escapar um grunhido e Alan especulou:
— O que foi? Está sentindo algo? Alguma dor? Do jeito que você
ficou depois que aqueles caras te pegaram, não me admiraria se você
ficasse arriado, ainda mais com todo o caminho puxado que
enfrentamos…
Carlos voltou-se para o homem ao seu lado.
— Não precisa se preocupar. Já suportei muitas coisas e isso não
chega nem perto do que já passei.
Alan sabia disso.
— Sei disso, Carlos. Talvez não possa parecer, mas também já passei
por muita coisa na vida, assim como você. Acho que não pelas mesmas
experiências, mas já vivi várias situações, por isso, acho que sei pelo que
está passando; o que está sentindo.
Carlos sorriu zombeteiro.
— É mesmo? Pois tá, pastor, fale. Diga pra eu ouvir. O que estou
sentindo?
Realmente queria ouvir o que aquele homem iria falar? Carlos viu-
se curioso. Agora ele vai se dar mal, pensou. Mas de alguma forma sentiu-
se em dúvida e temeroso, pois suas palavras poderiam ser verdadeiras,
falar exatamente de sua vida. Aquele estranho homem ao seu lado sabia
como cativar seu interesse, e assim, como das vezes anteriores, mais uma
vez ele conseguiu fisgar sua atenção.
Alan suspirou vagarosamente, olhou para o céu azul lá em cima.
— Na bíblia — começou ele — encontra-se uma parábola de Jesus…
Lá vem ele para contar coisas sem interesse. Não falou que achava que
sabia o que eu estava sentindo? Por que está mudando de assunto?
Pensou Carlos, mas não interrompeu Alan. Queria saber aonde iria dar
sua “conversa”.
Alan continuava:
— …em que Ele conta a estória de um homem de riquezas. Ele tinha
dois filhos. Um dia, o mais moço disse ao pai: “Dá-me a parte dos meus
bens que me pertence”. E o pai repartiu os bens entre os dois. Poucos
dias depois, o filho mais moço, ajuntando tudo, partiu para uma terra
distante, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente. Tendo
ele gastado tudo, houve naquela cidade uma grande fome, e ele
começou a passar necessidade. Então, um dia, chegou-se a um dos
cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos para

144
Transformação - Naasom A. Sousa

apascentar os porcos. Ele desejava encher o estômago com as alfarrobas


que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada. Então, caindo em si,
disse: “Quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu
aqui pereço de fome! Levantar-me-ei e voltarei até meu pai e lhe direi:
‘Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado
teu filho; faz-me como um dos teus trabalhadores’.” Então, levantou-se
ele e foi para seu pai. Quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se
moveu de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o
beijou. Depois disso, o filho falou o que falara antes consigo mesmo. Mas
o pai disse aos seus servos: “Trazei depressa a melhor roupa e vesti-o
com ela, e ponham-lhe anel nas mãos e sandália nos pés. Trazei o
bezerro cevado, matai-o. Comamos e alegramo-nos. Pois meu filho
estava morto e reviveu, tinha-se perdido e foi achado”. E começaram a
alegrar-se.
Alan pausou por um minuto para que suas palavras pudessem ser
absorvidas pelo consciente de Carlos.
— O filho mais velho estava no campo, e quando voltou, chegou
perto da casa, ouviu a música e as danças. Chamando um dos criados,
perguntou o que era aquilo. Ele lhe disse: “Veio o teu irmão e teu pai
matou o bezerro, porque o recebeu sã e salvo”. Então, o filho mais velho
indignou-se e não quis entrar. Porquanto saiu o pai e falou com ele, mas
ele respondeu: “Olha, sirvo-te há tantos anos, sem nunca transgredir o
teu mandamento, e nunca me deste um cabrito para alegrar-me com
meus amigos. E vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou todo os
teus bens com prostitutas, tu mandaste matar para ele um bezerro
cevado”. Respondeu-lhe o pai: “Filho, tu sempre estás comigo, e todas as
minhas coisas são tuas. Mas era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque
este teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado”.
Carlos meneou a cabeça.
— Bela estória, pastor. Mas não tem nada a ver com…
— Pode parecer que não tem nada a ver com a sua vida, Carlos —
interrompeu Alan, ligeiramente jovial. — Mas lhe digo: Esta parábola e
sua vida, ao se fundirem, mostram-se inegavelmente idênticas em certos
aspectos.
Carlos não abriu a boca. O momento, pensou ele, era de ficar atento.
— Lembre-se que contei que o filho pediu a seu pai os seus bens e
depois partiu para uma terra distante e, trazendo à sua vida, você
ganhou de Deus o seu mais precioso bem: a sua vida. O filho desperdiçou
todos os seus bens com os prazeres da vida, como também com
prostitutas, e você desperdiçou a sua na gangue, no roubo de carros, na

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Transformação - Naasom A. Sousa

participação em operações envolvendo drogas… e não tendo mais para


onde correr, você se entregou para a quadrilha — para ser mais exato,
para o Vip. Assim aconteceu também com o filho pródigo quando se
chegou àquele cidadão da cidade.
As palavras cessaram por um instante e a mente de Carlos se
encheu de pensamentos.
— Mas nisso tudo há uma diferença entre vocês dois — tornou Alan
a falar, fitando os olhos de Carlos —, que pode parecer pequena, porém
de grande valor. O filho, depois de ter passado por tudo aquilo, caiu em
si, e então entregou-se ao arrependimento, decidiu voltar à casa do pai,
pois lá, até os empregados viviam melhor, muito melhor do que ele
estava vivendo naqueles dias. E ele voltou. Optou pelo melhor; optou
corretamente. Visualizou a solução; escolheu o caminho; encontrou a
saída. Quanto a você… bem, você ainda está à procura desta solução,
desta saída. Posso sentir que está arrependido, mas ao contrário do filho
pródigo, você não visualizou a solução dos seus problemas, e se assim o
fez, foi de modo errado.
Está plantando verde para colher maduro, pensou Carlos. Pegou uma
folha de papel no chão e começou a amassá-la tentando descontrair-se,
mas em vão, pois se perturbou com o pensamento seguinte: Mas e se não
for? Como ele pode saber de tudo isso? Como pode saber o que penso e
almejo? A mente de Carlos era um turbilhão e ele pensou que a
expressão do seu rosto e a sua inquietação pudesse denunciar o medo
que lhe empertigou o íntimo de repente.
— Como pode saber? Como pode saber se encontrei a solução ou
não? E se a encontrei, por que acha que foi de modo errado? — indagou
Carlos.
Alan sorriu.
— Eu não sei — respondeu ele —, mas Deus sabe. E se venho a
saber de algo, Carlos, como as coisas que acabei de lhe dizer, é através
dEle. É através dEle que sei que você não está mais pensando nas
conseqüências, e sim apenas no seu objetivo. Não está raciocinando
direito, pelo que não liga para muita coisa agora a não ser sair dessa
enrascada em que está metido.
— Nós — corrigiu Carlos.
— Certo, nós. Mas você muito mais que eu. Não é assim que deve
ser, Carlos. Não por força nem por violência, pois temos alguém que
pode fazer isso por nós.
— Espere, espere — cortou Carlos. — Eu já conheço essa frase. Você
já falou isso na viatura quando fomos presos por aqueles dois cretinos.

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— Exatamente. Que bom que se lembrou. Isso quer dizer que está
ouvindo tudo o que digo.
Droga! Fui pego nessa. Entreguei a mim mesmo.
— Numa passagem bíblica, está escrito: Se Deus é por nós, quem será
contra nós? Se estamos com o Senhor do nosso lado, Carlos, não temos o
que temer, pois “Ele quebra a flecha e corta a lança, queima os carros no
fogo, porque Ele é o Senhor dos exércitos”. Nem homens, nem
quadrilhas, nem exércitos podem derrotá-lo, porque Ele é Deus
Onisciente: sabe todas as coisas, tudo o que pensamos, planejamos e
ocultamos; Onipresente: está em todos os lugares, não podemos nos
esconder de sua presença. Você poderia se esconder no mais profundo
dos abismos, ou no mais profundo dos mares, ou mais do que nenhum
homem poderia chegar e lá estaria Deus; e Onipotente: pode todas as
coisas no mundo. O impossível para nós é possível para Ele. Não há
barreiras que não possa transpor, não há correntes que não possa
quebrar. — Alan apontou mansamente o dedo para Carlos. — Agora
imagine Ele lutando ao seu lado. Você não precisa fazer força nem
esforço de forma alguma. Bastaria apenas ligar-se a Ele.
Carlos respirou profundamente sem dizer uma palavra, esfregou os
olhos e começou a levantar-se vagarosamente. Alan acompanhou-o e
reservou-se a observá-lo em silêncio, pois concluiu que o movimento
encerrara a conversa.
— Vamos — disse Carlos, pondo-se a caminhar para a saída do
beco.
— Para onde?
— Telefonar novamente e pôr um fim nisso tudo de uma vez por
todas.
— E você fará isso com um simples telefonema?
Carlos estancou e virou-se para fitar Alan, mas antes que pudesse
falar alguma coisa, foi advertido: — Foi só uma pergunta! Apenas uma
pergunta!
— É, farei, sim — voltou a dirigir-se para a saída do beco —, ou pelo
menos irei tentar.

&&&

O telefone público ficava à dois quarteirões do beco em que Carlos e


Alan haviam passado à noite. Em cima do telefone encontraram uma
lista telefônica, mas o número a ser discado não constava nela.
Alan estava um tanto agitado e Carlos percebera isso no caminho.

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— Alguém poderá nos ver, poderá ver as algemas… — balbuciara


Alan.
— Esta rua não é muito movimentada — Aquietara-o Carlos —,
mas de qualquer forma ande bem junto a mim e deste jeito ocultamos a
algema.
Assim não houve problemas até ali.
— Quem fala? — falou a voz do outro lado da linha.
— Quero falar com o Vip. Agora — Carlos esforçava-se para que a
voz pudesse sair. — Diga que Carlos quer falar com ele…
— O Sr. Vip não pode atender agora, ele está…
— Olha cara, se você não chamá-lo neste momento, irá se
arrepender pelo resto da sua vida; e garanto, se não colocá-lo nesse
telefone em um minuto, sua vida não será muito longa.
Fez-se silêncio na linha.
— Espere — pediu a voz.
Carlos esperou impacientemente.
Sempre existia aquela conversa melancólica e medíocre de que Vip
não poderia atender, pois estava muito ocupado. Conversa fiada, pensou
Carlos. Aquilo, em termos leigos, significava: “Vip não está a fim de
falar com ninguém agora. Se quiser falar com ele, ligue outra hora e vê
se não enche!” Algumas vezes, o fato de estar ocupado com os negócios
era verdade, mas a maioria — absoluta, para ser exato —, era a mais
pura mentira.
Verdade ou mentira agora não vinha ao caso, e sim a conversa que
haveria que ter de qualquer forma.
O silêncio foi quebrado pela voz familiar:
— Ora, ora… Carlos, bom dia! Espero que a noite não tenha sido…
turbulenta seria a palavra certa?
Desgraçado! Pensou Carlos. Sempre fazendo piadinhas, mesmo
estando em desvantagem em relação a outros. Nunca deixa transparecer
qualquer resquício de preocupação.
— Tá legal, vamos logo ao assunto…
— Por falar em assunto — Vip tomou a palavra —, o que aconteceu
ontem quando me telefonou? Parecia que estava em encrencas. Foi
baleado? Está perdendo sangue? Ficaria contente em saber eu sim. Seria
menos trabalhoso cuidar de você.
Carlos sentia dores por todo o corpo, e tinha certeza que se fosse
uma pessoa mais fraca, estaria desmaiado a muito tempo. Mas não seria
inteligente da parte dele declarar isso ao inimigo.

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— Fique descansado. Estou bem, nada me aconteceu para facilitar


sua vida.
— Oh, sinto muito — murmurou Vip. — Sinto muito mesmo.
— Não, não sinta, e escute. Sua fada madrinha está falando com
você neste momento. Você pode livrar-se de mim com facilidade, Vip, e
eu já lhe disse como.
— Eu lhe dou o que você quer e você me dá o que eu quero? —
indagou o poderoso homem do crime.
— É isso aí. E lhe prometo: você nunca mais me verá novamente.
Nunca mesmo.
Houve um silêncio prolongado. Carlos se perguntou se era um bom
ou mau sinal. A resposta encontrava-se nas palavras que viria a seguir.
Sentiu-se como um réu — apesar de nunca ter sido um — à espera do
resultado da votação do júri a cerca de sua absolvição ou condenação.
— Como isso pode ser feito? — perguntou Vip, cortando o silêncio
na linha.
Agora era como se o júri tivesse dando a oportunidade do réu se
defender das acusações contra ele. Sua absolvição passou então a
depender somente dele. Teria que convencer o “grande juiz”.
— Marcamos um encontro onde poderemos fazer a troca. Fazendo
assim, tomamos então nosso curso, longe da sua vista e você fica com a
cidade inteira sem se preocupar comigo. Garanto, Vip, estaremos longe
quando você acabar de contar até dez.
A linha ficou muda por um momento.
— E se eu não quiser fazer do seu jeito?
— Sei que você não fará isso — mentiu Carlos, torcendo para que
não fizesse. — Você quer o que tenho tanto quanto eu quero o que você
tem, e esse é o meio mais fácil e rápido para acabarmos com toda essa
estória de uma vez por todas.

&&&

Depois de desligar o telefone, Vip olhou para Cláudio Chart, um


homem de quarenta e poucos anos, cabelos cor-de-fogo de barba bem
aparada. Ele estava à direita de Vip, com um fone de áudio nos ouvidos
e a mão sobre um gravador ligado ao telefone o qual seu chefe havia
acabado de falar.
Cláudio havia feito parte de uma equipe da polícia internacional.
Especialista e técnico em segurança e vigilância, fôra contratado por Vip
no auge de sua carreira ao lado da lei, passando a fazer parte do “outro

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Transformação - Naasom A. Sousa

lado” da sociedade quando a quadrilha estava começando a estender


sua teias e dominar o mundo do crime organizado na cidade de Melmar.
O trabalho de agora não era muito diferente em relação ao anterior, mas
cinco salários a mais compensava qualquer coisa. Cláudio Chart que o
dissesse. No último período de férias tinha viajado até a Itália e provado
as deliciosas comidas napolitanas e já tinha em mente o local perfeito
para o próximo descanso: Barcelona, Espanha. Era um sonho antigo.
Nada mal para alguém que não podia ter um descanso decente naquela
droga de polícia.
Ele olhou para Vip com um sorriso nos lábios e meneou a cabeça,
satisfeito com seu próprio trabalho.
— Peguei-o — comunicou Cláudio.
Um pouco acima do gravador havia um aparelho com uma tela de
cristal líquido, onde um número e endereço se destacavam.

741-3792 # TP
BIAL SEVERO / DORA CARVALHO

Vip inclinou-se para verificar o endereço e abriu os lábios num


sorriso de contentamento.
Carlos sabia que usavam o gravador junto ao rastreador.
Certamente sabia também o que estava fazendo, pensou Vip. Ele não
ficaria ali por perto depois que desligasse. Há essa hora já deveria estar a
um quilômetro de distância.
— Quer que a gente vá atrás dele, chefe? — voluntariou-se Bino, de
pé junto à mesa.
Vip coçou queixo suavemente e respondeu:
— Não, se eu quisesse já o teria mandado — fez uma pausa,
saboreando a frustração de Bino. Então acrescentou: — Carlos já não
estaria lá quando vocês chegassem. Não precisamos de nenhum esforço
para procurá-lo, se vamos encontrá-lo mais tarde. — apertou a tecla do
gravador e a fita correu num rápido movimento retrógrado e parou num
estalido. Quando a outra tecla ao lado foi pressionada. A fita começou a
falar:
— …e esse é o meio mais fácil e rápido para acabarmos com toda essa
estória de uma vez por todas.
— Muito bem, você me convenceu. Onde podemos nos encontrar e fazer a
troca?
Carlos respondera quase que instantaneamente:

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Transformação - Naasom A. Sousa

— No mesmo lugar onde tudo isso começou: na Clintel com a Treze, e


Vip… nada de truques, ou então…
A reprodução foi subitamente interrompida ao toque feroz e pesado
no botão stop.
Lucas, à esquerda, arriscou uma pergunta:
— Você… irá mesmo fazer a troca?
— O que você acha? — respondeu Vip, com outra indagação.
— Diante de uma situação normal, eu diria com a maior convicção
que não, você não iria fazer qualquer troca. Mas, diante da situação
atual, estando todos os seus planos e reputação em jogo, eu fico sem
saber o que dizer.
Lucas estava certo e Vip se admirava pela sua firmeza e convicção.
Havia anos que Lucas Givaldi tinha entrado para a quadrilha, e ao
longo desses anos tinha se mostrado confiável e da mais alta
competência — até o dia em que Carlos o passara para trás na noite em
que Caio e Pablo morreram. Lucas era um homem de corpo atlético,
estatura mediana, trinta e poucos anos, cabelos castanhos com o
comprimento que vinha até o ombro, mas sempre se encontrava bem
penteado. Seus penetrantes olhos azuis faziam qualquer um estremecer
diante de tanta frieza que deles era transmitido.
Vip gostara dele no momento em que o viu em ação pela TV,
roubando um banco no centro da cidade.
A câmera estava trêmula nas mãos do câmera-man e a imagem que
se vira fôra a de policiais atirando; balas explodindo num som alarmante
nas chapas de aço dos carros-patrula parados em frente ao banco que
serviam de escudo para os tiras; pessoas correndo para todos os lados,
histéricas. O que se seguira fôra Lucas saindo do banco com dois reféns
como escudo, duas armas pesadas nas mãos apontando para cada um
deles. Os disparos foram cessados subitamente. Lucas gritara uma
ordem para os tiras e algum tempo depois, um carro vermelho metálico
parou abruptamente, as rodas fazendo barulho ao se arrastarem no chão
à sua frente. Soltara um refém — um homem de meia idade
apresentando com cabelos grisalhos nas têmporas — e entrara no carro
com o outro — uma mulher jovem na casa dos trinta.
A imagem oscilante exibiu o carro disparando, deixando apenas
uma camada grossa de fumaça que saíra dos pneus traseiros
espalhando-se pelo ar.
Ao contemplar o que acontecia pela TV, Vip ficara arrebatado.
Queria estar lá naquele exato momento. Só por acompanhar o assalto

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Transformação - Naasom A. Sousa

pela TV, Vip estivera eufórico, mas queria algo concreto, não apenas
uma imagem numa tela de vidro.
O carro em que Lucas estivera já se encontrara distante quando os
policiais entraram em suas viaturas e aceleraram atrás dele. A imagem
fôra cortada e a exibida em seguida fôra as ruas passando velozmente
pela janela do carro de reportagem. Após alguns minutos, depois que o
repórter repetira todos os acontecimentos até ali pela décima vez, a
câmera mostrara uma dezena de carros-patrulha paradas adiante. O
carro de reportagem — uma van Chevrolet — parara e o repórter junto
com câmera-man saltaram novamente para a rua e seguiram os policiais
numa corrida frenética, que fôra cessar no final de um beco de luz
aparentemente escassa — mesmo estando o sol a iluminar àquele dia. O
carro vermelho metálico estava lá; a jovem mulher também, apesar de
imensamente conturbada. A câmera varrera toda a área com sua lente,
mas nem ela nem os policiais encontraram Lucas. Ele escapara sem
deixar quaisquer pistas.
Vip achara-o o máximo.
Alguns dias depois, Vip falara com seus contatos e não demorara
muito para que encontrassem Lucas. Sua conversa havia sido “curta e
grossa”, convencendo-o imediatamente a entrar para a quadrilha.
À medida que os anos se passaram, Lucas se mostrou prestativo e
extremamente confiável, e isso influenciou muito em seu “crescimento”
prematuro dentro da quadrilha — chegando, por fim, ao cargo de
subchefe em todas as atividades que a quadrilha exercia, e isso incluía
nas decisões.
Vip teve que sorrir por um momento breve. Agora Lucas o conhecia
como ninguém, assim como nenhum outro conhecia Lucas melhor do
que Vip. Eram como irmãos. Vip, o irmão mais velho, que às vezes tinha
que repreender o mais moço. Mas agora não havia necessidade para
repreensão e sim de uma declaração de admiração. Mas o ego de Vip
não lhe permitia fazer tal coisa.
— E então — tornou a inquirir Lucas —, irá fazer ou o quê?
Vip fitou-o nos olhos e sorriu.
— Você me conhece melhor do que imaginei, Lucas — disse,
meneando a cabeça. — Certíssimo. Numa situação comum, em que não
estivesse em jogo a mim e a organização, e sim outra coisa, por exemplo:
uma mercadoria; eu não pensaria duas vezes. Mataria quem quer que
fosse num estalar de dedos. — Vip respirou, fazendo um zunido quando
o ar saiu pelas suas narinas. — Mas esse jogo que Carlos está fazendo é
algo muito delicado, algo perigoso para mim, você e toda organização.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Aí sim, temos que ter um cuidado todo especial com esta situação. —
desta vez olhou para todos à mesa. — Porém, digo-lhes que, nem esta
delicada situação salvará Carlos de uma morte dolorosa. Ninguém
banca o espertinho comigo e sai ileso. Ele sabe de mais a nosso respeito.
Não que eu não pense que ele não cumprirá sua parte no acordo: sumir
de vista para sempre e não abrir a boca pra ninguém, pois me pareceu
bem convincente ao me prometer.
Lucas interrompeu-o cautelosamente:
— Mesmo assim, não acho de todo seguro deixá-lo ir, pois mesmo
que ele nunca mais apareça, digamos que até mesmo saia da cidade, será
que conseguirá se esconder da polícia? Ele é esperto, e pelo pouco que o
conheço, diria que o nosso amigo é, nada mais nada menos, que um
autêntico vingador. Então…
Lucas deixou que o então surtisse o efeito desejado na mente de Vip
e o clima que surgiu mecanicamente foi de total apreensão em todo o
recinto. Até que Vip concluiu:
— Você tem razão. Se os tiras pegarem-no, ele não se calará. Falará
e fará tudo para acabar conosco, já que para ele não restará, se isso
acontecer, mais nenhuma esperança, senão a cela de uma prisão para
passar o resto da sua vida inútil. — Vip petrificou o olhar, numa
expressão intrigante e sentenciou: — É por essa e outras que Carlos não
estará mais vivo amanhã de manhã.

&&&

Após ter desligado o telefone, Carlos ficara imóvel um instante,


relembrando partes cruciais da proposta, a qual achava ter conseguido
êxito.
— Muito bem, você me convenceu. Onde podemos nos encontrar e fazer a
troca?
— No mesmo lugar onde tudo isso começou: na Clintel com a Treze, e
Vip… nada de truques, ou então você não terá outra chance para salvar o seu
grande império. Sei que irei perder, mas você perderá muitíssimo mais que eu.
Ao se lembrar daquelas palavras, Carlos imaginou o quanto mentira
ao proferi-las.
— Fique tranqüilo, meu rapaz. Se você fizer direito a sua parte, não haverá
com o que se preocupar. Farei a minha direitinho.
— Ótimo. Nos veremos lá.
— Bom. Eu…

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Transformação - Naasom A. Sousa

Carlos desligara o telefone mais uma vez na cara de Vip. Duas


vezes em menos de um dia. Isso acabaria virando rotina, mas Carlos não
receava por isso. Queria agora desesperadamente cumprir sua parte no
acordo, obter o que queria e desaparecer da face de Vip e da vista de
todos, principalmente da polícia.
Olhou pelo canto dos olhos para Alan em silêncio ao seu lado. O
que faria com aquele homem? Não o conhecia direito, mas ele parecia
conhecê-lo muito bem. Então, como um relâmpago atingindo-o, um
pensamento invadiu sua mente: Seria ele algum comparsa da organização?
Estaria desempenhando um papel fundamental num plano para aniquilá-lo?
Perguntas nesse sentido explodiram como torpedos nos pensamentos de
Carlos. Mas uma sensação de confiança tomou-o por completo
novamente quando, desta vez, deparou-se com o olhar daquele estranho
homem. Ele não inspirava nenhuma maldade ou mentira, mas sim paz e
serenidade. Mas como? Como alguém assim poderia estar metido
naquilo tudo? Algemado a um homem que só fizera o mal e trouxera
desgraça para tanta gente? Os reflexos da mente de Carlos ou uma
“força desconhecida” fizeram-no tornar a erguer a guarda a caminhar
rumo ao pensamento mais óbvio: Aquele homem estava tentando
enganá-lo. Mas não teria chance para isso. Carlos iria dar um jeito nele.
Não agora. Estava com a mente ocupada demais no momento com a
troca e não queria acumular mais preocupações com qualquer outra
coisa.
Primeiro pretendia colocar em prática um plano que iria pegar Vip
de surpresa se não cumprisse sua parte no acordo. Fôra traído uma vez,
mas não seria tolo para deixar que isso acontecesse novamente, talvez
aquele homem que se dizia pastor, poderia ser incluído no plano. Isso
poderia se tornar benéfico. Primeiro — se fosse o caso — acabaria de
uma vez por todas com Vip e sua pose imperialista, e então, logo a
seguir, seria a vez de Alan Xavier, o “maldito” que de dizia servo de
Deus.

&&&

Melina estava entusiasmada naquela manhã para fazer um novo


tipo de prato que aprendera na TV no dia anterior: uma lasanha à
italiana com risoto. Jaime, Jair e Jéssica iriam amar, pois gostavam muito
de frango e mais ainda de lasanha.
Estava pousando outra camada de macarrão em cima do presunto
cozido dentro de uma tigela retangular de vidro transparente, quase no

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Transformação - Naasom A. Sousa

ponto certo para ser encaminhado ao forno já pré-aquecido, quando


Melina sentiu um súbito impulso de orar. Orar por Alan. Sem vacilar,
correu até o quarto, ajoelhou-se à beira da cama e pôs-se a clamar ao
Senhor, suplicando pela vida de seu marido.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 13

O clima parecia mais obscuro e lúgubre do que antes. O assassinato de


Caio era mais um lembrete escrito a sangue de que ninguém podia
interferir nos planos da quadrilha. Mais uma vítima das muitas que
pereceram ao longo dos anos. Quantos mais viriam a perecer nas mãos
desses crápulas? Essa era a pergunta que corroia o íntimo de cada
policial de serviço no beco Assunção naquele momento. O medo
misturava-se com a raiva e frustração de ver mais um parceiro sem vida,
morto pelo inimigo. Um inimigo invisível, intocável.
O corpo de Caio foi envolto em um saco plástico preto e posto por
três paramédicos numa maca metálica que começou a ser empurrada na
direção de um furgão branco com faixas vermelhas. Axel observou toda
a área nas proximidades do beco. O quarteirão estava infestado por vans
das emissoras locais e pessoas curiosas à procura de notícias comoventes
para contar à família quando chegasse em casa. O pessoal da segurança
estavam bem ocupados com os repórteres e fotógrafos clicando
furiosamente suas máquinas, fazendo seus flashes dispararem num
clarão ofuscante, famintos por imagens, declarações e respostas às suas
perguntas, não ligando de forma alguma para as fitas que isolavam a
área do crime.
Axel viu o corpo de Caio sendo colocado no interior do veículo
branco avermelhado e sumindo lá dentro quando as portas traseiras
foram fechadas e trancadas. Sentiu um pequeno sentimento de perda.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Não sabia porquê — ou melhor, sabia sim — mais um policial havia sido
assassinado, queimado talvez vivo por traficantes frios e calculistas que
não faziam outras coisas senão matar e destruir as esperanças da
população mundial.
Caio não era muito conhecido por Axel. Desde que chegara à
divisão policial de Melmar, Caio passara mais tempo com Pablo (este
muito bem conhecido por Axel) do que com toda e qualquer pessoa na
Central de Polícia. Pelo que já ouvira falar, Caio viera da divisão de
entorpecentes da cidade de São Paulo, sendo algumas vezes
condecorado por lá. Fizera muitas apreensões de carregamentos de
tóxicos na capital paulista e dera continuidade ao seu trabalho ao chegar
em Melmar, juntando-se quase que imediatamente com Pablo no
combate à Quadrilha do Vip — que já estava se tornando, na época, uma
potência do narcotráfico na cidade. Pelo que Axel sabia, Caio não tinha
parentes. Seus pais tinham morrido num acidente automobilístico há
cinco anos atrás e ele era filho único. Um solitário no mundo, pensou
Axel, pois não havia sequer uma namorada que pudesse ser avisada de
sua morte e chorar por ele.
Axel achou melhor afastar esse pensamento.
Concentrou-se num homem vestido dentro de um uniforme
esbranquiçado ao lado do furgão onde colocaram o saco preto com o
corpo de Caio. Axel o reconheceu. Era o legista. Estava conversando com
um policial negro e de porte extremamente atlético, chamado Antônio
Gonzaga — também da divisão de narcóticos, que, por acaso, seu irmão
que também fora policial, José Nogueira, havia sido, assim como Caio,
assassinado pela Quadrilha do Vip. Axel permaneceu a observá-los por
alguns minutos pensando como Gonzaga estaria se sentindo, até que
este apontou em sua direção. O legista acompanhou o movimento do
homem e olhou para Axel.
O legista caminhou até ele e estendeu a mão.
— Sou o legista encarregado, Ângelo Tellez.
Axel já o conhecia. Pegou-lhe a mão e apertou-a num cumprimento,
logo após se identificou:
— Agente Axel Brendel.
O Dr. Tellez assentiu numa cortesia. Ele não o conhecia e não fazia
qualquer questão em conhecê-lo.
— Gonzaga me informou que você está sendo o encarregado deste
caso.
— Acho que ele não mentiu.
— Conhecia a vítima, o agente Dreammy?

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Não muito…
— Preciso fazer a autópsia, fazer o reconhecimento pela arcada
dentária. Tem algum parente que possa dar permissão para que eu
possa fazer isso?
Axel suspirou em desapontamento em relação àquela pergunta,
como se ele fosse o próprio Caio.
— Não. Ele não tinha nenhum parente. Acho que a única pessoa
que ele tinha era Pablo. Mas este não poderá fazer coisa alguma… para
sempre — Axel forçou-se a pensar que isso era mentira.
Ângelo Tellez estava assentindo com a cabeça novamente.
— É, eu vi no noticiário. Todos sentiremos falta dele.
Axel perguntou-se o quanto Pablo era conhecido na polícia de
Melmar. Um ótimo policial; um ótimo amigo.
Os dois ficaram sem palavras, como se tivesse sido estabelecido um
minuto de silêncio.
— Preciso de uma autorização para fazer a autópsia — disse o Dr.
Tellez, por fim.
— Eu consigo uma para você — tranqüilizou Axel, tirando o olhar
de cima do legista calvo e de aparência cansada e observou a rua cada
vez mais empestada de curiosos. — Pode fazer o que achar necessário.
— Certo — Ângelo Tellez tornou a estender a mão, despedindo-se,
e Axel tomou-a na sua, sacudindo-a firmemente. Foi uma conversa e
fria, mas que teria de acontecer, pensaram os dois.
Alguns segundos depois, o legista estava dentro do furgão,
dirigindo-se para o necrotério, emitindo a estridente sirene. Axel
observou os fotógrafos aglomerados na rua, correndo ao lado do
veículo, tentando a sorte numa foto nua e crua do corpo carbonizado de
Caio, que com certeza teria seu lugar reservado na primeira página do
jornal para quem trabalhavam. Então seus olhos se depararam com a
figura ligeiramente polida e visivelmente abatida que, encostada numa
van de reportagem, parecia isolada em seu mundo particular. Até que
reconheceu que era Caroline. Caminhou até ela e pôs-se ao seu lado. A
repórter somente se deu conta da presença de Axel quando por este foi
tocada no ombro. Despertou com um susto.
— Oh, Axel… Desculpe-me, eu…
— Não tem nada com o que se preocupar — sorriu ele,
singelamente. — Como você está?
Ela receou em responder.
— Humm… estou bem… eu acho.
— Veio do NR?

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Transformação - Naasom A. Sousa

Não houve nenhuma resposta por meio de palavras, apenas um


meneio de cabeça.
— Como ele está? — perguntou Axel em voz baixa.
Caroline engoliu seco e forçou-se a dizer:
— Na mesma. Pelo menos… pelo menos não… não está… morto.
Axel tocou-lhe gentilmente o braço, tentando confortá-la. Caroline
enxugou uma lágrima que teimou em deslizar por seu rosto e tentou
colocar um tom firme na voz.
— Ele vai ficar bem. Tenho certeza.
— Pablo é durão. Vai passar por essa.
Caroline forçou um sorriso, balançando afirmativamente a cabeça,
esperançosa.
— Mas… então — disse ela —, vai me dar uma entrevista exclusiva
ou não?
— Eu…
Ela interrompeu-o de forma ameaçadora.
— Se você não me conceder essa entrevista, não serei mais sua
amiga, agente Axel — agora, o sorriso foi uma tentativa de descontração.
Os dentes brancos de Axel também foram mostrados num alegre
sorriso. Levantou a mão numa completa rendição.
— Oh, não! Está bem! Está bem!
— Hoje à noite, então?
— Humm… não. Hoje à noite não vai dar. Já tenho um
compromisso.
Caroline estreitou os olhos.
— Já sei. Tina Brendel e seus deliciosos pratos, não é?
— Não… É outro assunto… lá na central.
A repórter pensou por um momento.
— Quando, então?
Axel levou as mãos à cabeça.
— É… dê-me o número do seu pager e assim que me derem uma
folga, entro em contato com você.
— Tudo bem — concordou Caroline. Pegou sua esferográfica e
rabiscou num pedaço de papel. Entregou ao agente.
Axel pegou o pedaço de papel e guardou-o em seu bolso. Voltou-se
atentamente para a repórter à sua frente e estudou sua fisionomia.
Mesmo esbanjando sua irrefutável beleza, Caroline deixava escapar um
ar desgracioso e melancólico que podia ser notado a metros de distância.
Por um instante, Axel teve a impressão de que Caroline tremia. Por sorte
ela não fumava. Do contrário, poderia ela agora estar, pelo menos, com

159
Transformação - Naasom A. Sousa

três cigarros ao mesmo tempo na boca. Numa busca modesta de alcança


a amiga, Axel pôs as mãos no ombro da repórter e sacudiu-a levemente.
— Ligo pra você assim que eu puder — disse ele.
Ela sorriu polidamente.
— Vou ficar esperando. Espero que te liberem o mais depressa
possível.
— Também espero — Axel alisou o queixo e arriscou-se a cutucar a
ferida. — Você… irá voltar ao NR?
O sorriso desapareceu lentamente dos lábios de Caroline.
— Irei, mas não agora. Estou indo à redação. Fui informada a pouco
que os dois fugitivos invadiram uma casa perto do limite da cidade, à
leste, e roubaram um veículo que foi abandonado logo a seguir. Helena
deve estar lá neste momento entrevistando o proprietário e já estará de
volta à central de jornalismo do Canal Sete quando eu chegar lá. Irei ver a
fita e conversar com ela sobre o que aconteceu por lá e, quem sabe, eu
possa encontrar ou descobrir alguma coisa no ar.
— Ótimo. Assim não irei ficar igual a um acusado no banco dos
réus, apenas respondendo suas perguntas como Pablo… — Axel
percebeu que entrara em território proibido outra vez, sem querer.
Tentou passar por cima das últimas palavras rapidamente para que
Caroline não pudesse ter chance de ficar a se remoer por causa delas. —
Agora irei poder encostá-la na parede também; fazer um segundo
tempo; a vez do outro lado da moeda. Eu quem irei fazer as perguntas e
você somente irá responde-las. — Ele balançou o cenho para frente e
para trás, com um ar de mero contentamento.
— É… Acho que depois de hoje, teremos muitas coisas do qual
poderemos conversar — disse a repórter, posicionando melhor sua bolsa
no ombro esguio.
O silêncio pairou no ar, pois os dois não souberam mais o que dizer,
não tinham mais palavras para se expressarem um para o outro. Então,
uma grossa voz foi ouvida por detrás de Axel, chamando-o. Soa o gongo,
pensou ele. Voltou-se na direção da voz e enxergou Fernando Vern,
detetive do departamento de homicídios, gesticulando para que
caminhasse até ele. Axel olhou para Caroline novamente. Não gostaria
de deixá-la naquele estado deprimente. Pensara por um momento em ir
com ela à redação do Canal Sete e fazer-lhe companhia um pouco mais.
Sabia que a amiga necessitava de todo apoio que pudessem dar, e ele
queria fazer mais do que simplesmente apoiá-la. Queria confortá-la,
queria de alguma forma amenizar sua visível dor. Na realidade, queria

160
Transformação - Naasom A. Sousa

ter o poder de tirar Pablo do coma e entregá-lo a Caroline, mas isso lhe
era impossível. Assim, a frustração tomou conta de Axel.
Pelo menos alguma coisa do passado ainda vive em mim: bondade e
compaixão, pensou o agente negro.
— Tenho que ir agora — despediu-se.
— Certo — concordou ela, como se fosse a única coisa a se dizer.
Axel virou-se e caminhou na direção de Fernando Vern, mas de
repente voltou-se para a repórter outra vez.
— Carol,… acho que depois daqui irei ter um tempo livre. Então,
estou pensando… se não seria boa idéia eu ir à redação também, ajudar
você, a outra repórter e, quem sabe, a mim mesmo.
Caroline sorriu.
— Claro! Vai ser bom termos você lá.
Ele meneou a cabeça, contente.
— Então esperem por mim — virou-se e se juntou ao detetive Vern.

&&&

— Tomara que não nos recebam à bala — torceu Carlos.


Estavam em frente a um pequeno edifício alguns quilômetros da
cabina telefônica de onde tinham tratado de negócios com Vip. Parecia
mais um sinistro amontoado de concreto encardido e velho. Alan não
simpatizou com o lugar no primeiro instante em que o viu. Era uma
estrutura em evidência no meio de muitas outras mais, por não ser
rodeada por muros e por estar totalmente desmembrada dos demais
prédios e casas da rua, e sim ladeado por becos que se enegreciam ao
fundo. Pela frente, visualizaram uma grande porta rolante de ferro,
obviamente para a entrada de automóveis — uma garagem. Três metros
à direita da grande entrada de veículos, existia uma porta menor: um
portão igualmente de ferro, mas esta feita com chapas grossas e à altura
dos olhos notava-se uma escotilha, que ao longe, dava-se a impressão de
estar entreaberta.
Carlos olhos pelo canto dos olhos para Alan. Ele estava mais
próximo do que devia, assim como por todo o percurso até ali. Sua
presença era perceptível e por vezes irritante, principalmente quando se
esbarravam com o ombro um no outro ao andarem. Carlos tentava não o
encarar, mas a tentação de olhar nos olhos daquele homem enganador era
mais forte que ele, e assim, de vez em quando se voltava para fitar os
olhos do “falso crente”.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Alan tentava agora se manter tranqüilo. A caminho dali, tinha


caminhado junto de Carlos e percebera que ele não gostara quando em
alguns momentos, esbarrava com o ombro no dele de tão próximos que
ficavam, a fim de que ninguém avistasse a algema nos pulsos dos dois.
Agora, se concentrava no velho edifício e limitava-se a pensar no
que se encontrava além daquelas paredes de concreto encardidas e
daqueles portões de ferro. Com a “grande” frase de confiança que Carlos
proferira: Tomara que não nos recebam à bala, Alan concluiu que a resposta
para suas indagações mentais era: encrenca.
Carlos pôs-se a caminhar na direção do edifício, atravessando a rua,
puxando Alan pelo braço. Este caminhava com o olhar variante,
revirando de um lado para o outro, observando os pouco transeuntes
que haviam nas calçadas, enquanto Carlos mantinha os olhos vidrados
no portão pequeno do prédio, mais diretamente para a fresta que a
escotilha exibia.
Pararam em frente à entrada menor, e a tensão que percorria os
corpos dos dois fugitivos tornou-se mais intensa. Carlos levou a mão
livre ao portão e bateu três vezes, tirando dele um som que ecoou por
um breve instante. Nada aconteceu lá dentro, e então bateu novamente,
desta vez quatro batidas. Aos poucos se fez ouvir passos apressados
dentro do recinto, um som que parecia distante, mas que foi se tornando
mais audível, mais forte, até que, por fim, parou. A escotilha foi aberta
totalmente e um par de olhos arregalados e nervosos apareceram na
fresta do portão de ferro. Eram de um tom azul, mas estavam um tanto
avermelhados.
— Quem são vocês? — inquiriu a pessoa por detrás do portão. Sua
voz era grossa, rouca, agressiva e irritante aos ouvidos de Carlos.
— Meu nome é Carlos Lacerda, eu…
— Não conheço nenhum Lacerda. Caiam fora — falou o dono dos
olhos azuis-avermelhados, que a seguir, retirou-os da escotilha.
Carlos deu uma rápida olhada para Alan e adiantou-se, bateu três
vezes no pequeno portão e respirou profundamente.
O par de olhos apareceram outra vez e, antes que pudesse falar
alguma coisa, Carlos apressou-se em dizer:
— Sou Carlos, amigo de Nick! Tenho que falar com ele. É
importante — ele tentou pensar depressa em algo mais convincente. —
Eu já trabalhei aqui. Acho que você é novato e com certeza não me
conhece. Eu entendo que você está cumprindo ordens de Nick… eu
também já fiz isso — sua cabeça estava um turbilhão e dolorida e não
estava pronta para pensar agora. Resolveu ser mais direto. Olhou para

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Transformação - Naasom A. Sousa

seu paletó Boss cinza, que agora parecia mais um marrom e sentiu o
odor forte da transpiração.
Voltou-se para os nervosos olhos azuis que ainda se mostravam na
escotilha e fitou-os com uma expressão diferente da que apresentara
minutos atrás, uma expressão que mostrava sua impaciência e fúria.
— Olhe aqui, seu idiota de olhos azuis, veja o meu paletó! Estou
com essa droga de paletó à mais ou menos doze horas! Estou cansado,
ferido, suei da cabeça aos pés e agora estou fedendo… — Carlos notou
que os olhos continuavam inexpressivos. — Abra logo a droga desse
portão!! — Bradou.
Alan olhou assustado para os lados, receando que o descontrole de
Carlos chamasse a atenção de terceiros ou até mesmo da polícia, mas
felizmente constatou que as pessoas que andavam pela rua não deram
crédito para seu histerismo.
O par de olhos recolheram-se outra vez sem dizer uma palavra.
Carlos praguejou e socou o portão de chapas de ferro. Virou-se para
Alan.
— Droga! — passou a mão pelo cabelo desordenado. — Quer saber?
Você está sendo um maldito pé frio! É isso o que você está sendo desde
que se meteu na minha vida! — disse, apontando o dedo indicador para
o rosto de Alan. Este, não fez qualquer movimento ou ao menos mostrou
algum resquício de indignação.
De repente, pôde-se ouvir um estalo por detrás de Carlos, que se
virou rapidamente, seguido pelos olhos de Alan. O portão começou a ser
aberto, até que escancarado, por fim. Uma figura humana apareceu
saindo das sombras do recinto e Carlos reconheceu-o imediatamente.
Nick parecia estar com a cara mais enrugada — o que não era novidade,
pois aparentava que, a cada mês, uma ruga teimava em se apoderar de
uma parte do rosto dele. Nick sempre usava rabo-de-cavalo e agora se
podia ver que não perdera o costume, assim como não perdera o fascínio
pelos ornamentos banhados a ouro pendurados no pescoço e presos ao
pulso.
Foi Nick quem falou primeiro.
— Ei, Carlos, é você mesmo! Cara, quando o Dário falou que você
estava aqui fora, pensei que era brincadeira, mas aí pensei: “Mas Dário
não conhece o Carlos”, então…
— Até que enfim aquele miserável se mexeu.
Nick sorriu. Caminhou até Carlos e apertou-lhe a mão.
— É, vejo que você conheceu Dário intimamente. Mas, cara, há
quanto tempo, hein? Dois anos?

163
Transformação - Naasom A. Sousa

— Isso mesmo — sorriu Carlos, desengonçado.


Alan adiantou-se e esticou a mão.
— Oi, meu nome é Alan. Alan Xavier.
O braço de Nick não se moveu, muito menos sua mão levitou à
frente para um cumprimento. Apenas seus olhos cumprimentaram-no,
mas não com expressão de cordialidade e, sim de indagação.
— Quem é esse?
Carlos levou os olhos para Alan e depois para Nick novamente.
— Este… este é… Alan Xavier — notou no olhar de Nick as
palavras: Este é Alan Xavier? Nunca ouvi falar! Então tentou clarear a
situação: — Ele é meu pastor. — deu de ombros e ergueu o sobrolho,
num movimento cômico. Caminhou para dentro do pequeno prédio
encardido, puxando Alan atrás de si. Passou por Nick e deu-lhe um
pequeno tapa no ombro, deixando-o com a conhecida pulga atrás da
orelha.

&&&

Tudo estava diferente da última vez em que estivera ali há dois


anos atrás. Carlos girava em seu lugar, contemplando todos os metros
quadrados do recinto. Havia ali seis carros, e entre eles apenas dois
aparentavam ser do ano. Cinco pessoas, fora Nick, trabalhavam nos
carros. Há dois anos atrás, o lugar encontrava-se repleto de carros —
vinte, no mínimo —, e desses, muitas vezes, a metade eram novos em
folha. E ainda, muito diferente de agora, onde apenas seis pessoas
trabalhavam, pelo ao menos houvera o dobro no passado.
Carlos olhou para as ferramentas e equipamentos; velhos e gastos,
quase todos em más condições de uso, assim como também como toda
estrutura interior do pequeno prédio, outrora em plenas condições.
Nick prestara atenção a todos os movimentos de Carlos e disse,
acendendo um cigarro:
— As coisas não continuaram andando muito bem depois que você
saiu, meu chapa. Alguns caras de outro desmanche vieram aqui e
quebraram quase tudo. Fiquei no total prejuízo — tragou uma boa
quantidade de fumaça e expeliu-a em seguida. — Mas lhe digo uma
coisa: os caras que fizeram isso não podem fazer mais nada contra
ninguém, se é que me entende. — Nick se entusiasmou numa
gargalhada que empestou a oficina num eco assustador.
Carlos ficou na defensiva. Conhecia Nick muito bem para entender
que ele matara ou mandara matar os homens que lhe deram o prejuízo

164
Transformação - Naasom A. Sousa

na oficina de desmanche. Nick não era alto nem atlético, mas sua fama
de vingativo e impiedoso o fazia uma ameaça e Carlos conhecera esse
lado de Nick ao longo de sua carreira como ladrão de Carros.
Na oficina de Nick Gradinno existiam regras obrigatórias que
deveriam ser cumpridas ao pé da letra pelos funcionários, que em troca,
recebiam ótimos salários para viverem, se divertirem ou fazerem o que
bem entendessem. Um dia, Célio Saral, um dos funcionários — ladrão
de automóveis — foi desmascarado por Nick. Saral estava trabalhando
também para Aloízio Moratti — um concorrente de Nick, e isso era
contra as regras.
Nunca trabalhe para mi e para outra pessoa ao mesmo tempo. Eu não o
perdoarei se fizer isso, entendeu? Isso é uma das regras básicas — alertara
Nick no primeiro dia de Carlos como funcionário.
Algumas semanas depois da descoberta, Célio Saral não apareceu
mais na oficina e nunca mais se ouviu falar nele. Este fôra apenas um
dos casos com que Carlos convivera durante o período em que
trabalhara na oficina.
— Estou economizando o máximo para me erguer de novo — Nick
deu uma nova tragada em seu cigarro. — Como você está vendo, não
estamos no auge dos negócios, mas pelo menos estamos em
funcionamento. Você acredita que estou agora apenas com dois
pescadores?
Pescadores eram os ladrões de Carros que os traziam à oficina, para
o desmanche. Carlos ficou espantado. Em sua época, sete pescadores
travavam uma batalha acirrada para ver quem roubava mais
automóveis. Faziam um jogo onde um carro comum valia um ponto, e
um carro do ano três pontos. Aquele que acumulasse o maior número de
pontos, no final de cada semana, passava o final de semana onde
quisesse por conta dos perdedores. Carlos perdera a conta de quantos
fins de semana passara em grandes e luxuosos hotéis à beira mar ou em
cruzeiros particulares em pleno oceano ao lado de…
— Mas estou certo de que vou me erguer e voltar a ser o que era
antes — Nick tirou o cigarro da boca, e com o dedo, fez com que as
cinzas caíssem no chão. — Ei! Diga-me, Carlos, a que devo essa aparição
assim… de repente?
— Nick, eu…
As mãos de Nick fizeram gestos apressados para que Carlos não
falasse, e então o interrompeu:

165
Transformação - Naasom A. Sousa

— Já sei! Você que voltar às origens, não é? Filho da mãe! Não


conseguiu ficar longe de toda movimentação, ação e adrenalina que isso
aqui tudo proporciona!
— Nick…
— Eu sabia! Soube desde que vi você…
— Nick!! — a voz alterada de Carlos junto com o eco que a oficina
criou, chamou a atenção de todos que nela trabalhavam e fez Nick calar-
se mecanicamente, fitando-o com expressão questionável. — Não é nada
disso — suspirou ele. — Não vim aqui pata voltar às origens…
Trabalhar novamente pra você. Eu… — Carlos percebeu que o único
som no recinto era o de sua voz. Olhou para Alan, que permanecia
mudo e inexpressivo, voltou-se para baixo e então para Nick novamente.
Tentou engolir um nó imaginário na garganta e começou a levantar o
braço esquerdo, pondo a algema à vista.
— Que diabos é isso? — indagou Nick, deixando o cigarro escapulir
da boca e cair no chão.
— Problemas, Nick — informou Carlos. — Estou com problemas, e
dos bem grandes.
— Estou vendo, cara — disse o proprietário da oficina, se
recompondo e tirando um novo cigarro do bolso da jaqueta. — Isso
esclarece a sua fisionomia, meu chapa. Você está um caco! — colocou o
cigarro na boca e acendeu-o com um isqueiro de prata. — Mas como isso
foi acontecer?
— Ah… isso é uma longa estória, mas só para começar, e para você
ter uma idéia do que estou passando, no meio de tudo isso… quero
dizer… no começo de tudo isso, eu fui presenteado com esta algema que
você está vendo.
Nick caminhou com passos lentos até Alan e rodeou-o,
investigando-o com os olhos, da cabeça aos pés.
— E o que faz algema com um cara como este? — perguntou,
voltando o olhar para Carlos. — Assim de vista, ele não parece ter nada
em comum com você, meu chapa.
— E não tem.
Alan apenas observava-os.
— Então? — Nick deu de ombros, como que dizendo que não
entendia.
Todos puderam ouvir outro suspiro sendo expelido por Carlos, que
explicou:

166
Transformação - Naasom A. Sousa

— Não é por nada, Nick, mas será que dá para você tirar essa droga
de algema de mim? — ele esticou-a para Nick. — Não agüento mais ficar
com isso preso ao meu braço.
— Claro — Nick afastou-se até uma escrivaninha e voltou com uma
chave que nenhum dos dois homens algemados tinham visto na vida.
Ele introduziu-a na pequena fechadura da algema que prendia o pulso
de Carlos e, ao girar, a trava se abriu. Em seguida, foi a vez de Alan, e,
em um minuto, os dois estavam livres um do outro. — Enfim, liberdade!
— exclamou Nick.
— Por enquanto — corrigiu Carlos, massageando o pulso e atraindo
os olhares de todos que estavam no recinto.
Alan, por fim, falou:
— Do que você está falando? — sabia que o que mais irritava Carlos
era sua presença e suas palavras. O que ele dissera, pegou-o de surpresa.
— O que é isso, pastor! — a expressão de Carlos era de
incredulidade. — Não é isso que você quer? Ficar junto a mim para me
dar sermões, dizer o que devo fazer e como devo fazer…
Nick interveio:
— Ei! Então você não estava brincando mesmo quando falou que
ele era seu pastor!
— Não — disse Carlos —, ele é mesmo pastor, só que não é meu.
Nick queria mais esclarecimentos.
— Mas…
— Nick, por favor, conversaremos depois, tá legal? Você não está
sentindo esse cheiro horrível? Ele é meu. Estou fedendo! Tudo o que
quero agora é tirar essa maldita roupa, tomar um banho e colocar uma
vestimenta decente — Carlos aproximou-se de Nick e tocou-lhe o
ombro. — Por favor. Depois conversamos e te conto tudo o que você
quiser saber.
Nick hesitou.
— Humm… tudo bem. Pela tua aparência, é disso que você está
precisando mesmo — olhou para um dos funcionários, um mecânico, e
fez um sinal com a cabeça. — Tico, leva ele ao banheiro. — Voltou-se
para Carlos. — No quarto tem uma cômoda, você pode pegar uma
toalha e roupas limpas. Sirva-se.
— Obrigado — agradeceu Carlos, e então fitou Alan, observando
seu aspecto. Nada bom, da mesma forma que ele. Sabia que ele não
tentava demostrar — o que às vezes conseguia — o quanto sentia o
estresse que toda essa situação impusera-lhe. — Pastor, depois

167
Transformação - Naasom A. Sousa

trataremos dos assuntos pendentes, quero dizer, o que você não


entendeu. Você pode tomar seu banho depois que eu terminar.
Alan apenas meneou a cabeça.
Carlos girou sobre os calcanhares, ficou de frente para Tico e,
seguiu-o em seguida, deixando Alan à mercê do olhar especulativo de
Nick.

&&&

O templo da Primeira Igreja Cristã de Melmar encontrava-se agora


vazia, diferente de uma hora atrás, onde houvera uma reunião de
obreiros por volta das 10h e 30mim que não contara com a presença do
pastor Nilton Cross — que se ausentara pelo motivo de ter que fazer
uma visita urgente a uma irmã necessitada, segundo sua esposa Tatiane.
— A reunião decorrera de forma ideal, mesmo sem Nilton para dar suas
opiniões e conceitos, abrindo novas questões para serem discutidas por
todos. Os bancos foram quase todos tomados por diáconos, presbíteros,
auxiliares, missionários e pastores de diversas regiões da cidade, que
louvaram ao Senhor e expuseram questões para aumentar a demanda de
obreiros dispostos a pregar a palavra de Deus e melhorar a forma de
alcançar almas para o Reino.
E o que antes estivera repleto de pessoas, agora estava despovoado.
Tatiane Cross rompeu pela porta do templo vazio, ao lado da
tribuna, passou pelo púlpito e dirigiu-se ao escritório de Nilton. Não se
demorando no interior do cubículo, saiu dele com cinco folhas de papel
sulfite numa mão e uma caneta na outra, passando novamente pelo
púlpito e saindo por onde tinha entrado.
O corredor que levava para o Centro de Auxílio da Primeira Igreja
Cristã de Melmar era bem comprido, pois ao longo de sua extensão
podia-se encontrar oito salas compondo a secretaria, tesouraria e classes
da escola dominical. Tatiane atravessou todo o corredor observando que
em suas paredes amarelas existiam algumas manchas em contraste com
a cor original.
Ao chegar no fim do mais parecia um imenso túnel, Tatiane pisou
nas pedras de concreto do Jardim Canaã — uma grande área de
recreação para as pessoas ajudadas pelo Centro de Auxílio da igreja. Um
lugar em meio ao verde das plantas e ao cinza das estruturas de concreto
que ornamentavam o ambiente. Na opinião da Sra. Cross e dos demais
membros da congregação, aquele havia sido o melhor trabalho de
arquitetura, jardinagem e decoração que fizera junto com a equipe da

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Transformação - Naasom A. Sousa

igreja. Desenhara todas as estruturas dispersos pelo jardim: bancos,


chafariz, piso, pequenas esculturas de animais terrestres e pássaros e
ainda uma miniatura do templo. Estudara e escolhera minuciosamente
todas as plantas, rosas e flores que agora enfeitavam e alegravam o
jardim e as pessoas que nele passavam um pouco do seu tempo.
Bete estava sentada num banco de concreto, de banho tomado, com
roupas limpas, pernas cruzadas e olhos fechados, numa concentração
notável. A aproximação de Tatiane a fez voltar à realidade.
— Oh… já voltou!
— Retornei rápido, por que estou ansiosa para vê-la entrar em ação
— disse a Sra. Cross, entregando as folhas de papel e a caneta nas mãos
de Bete. — Não é todo dia que aparece uma poetiza por aqui.
Um sorriso surgiu de ambas.
— Há muito tempo que não escrevo meus poemas, e prometi a mim
mesma que… — Bete hesitou em pronunciar as palavras seguintes, mas
não se conteve. — Que, se encontrasse alguém que me ajudasse, me
acolhesse, já que minha família não liga para mim, eu iria escrever um
poema para ele. Um poema especial.
— Humm… Entendo. Você quer mais alguma coisa? Um caderno
para apoiar as folhas…
— Não, obrigada — Bete agradeceu com um sorriso singelo —, sou
acostumada a escrever sem apoio algum, não se preocupe.
— Bem, como você quiser…
Tatiane Cross foi interrompida pela campainha da entrada lateral
que dava acesso ao Jardim Canaã. Ela gesticulou para a velha poetiza
com a mão um sinal para que esperasse um pouco, pois logo voltaria.
Caminhou até ficar diante de um pequeno portão de ferro fundido
pintado de verde.
Fizeram soar a campainha novamente.
— Já estou aqui! — anunciou a Sra. Cross, destravando a fechadura.
Ao abrir o portão com um ruído familiar de ferro enferrujado,
Tatiane pôde ver o rosto mais que arredondado de Nilton, com seu
bigode típico.
— Oi, querido! — Tatiane presenteou o marido com um sorriso.
— Trouxe uma visita — Nilton adiantou-se e quem apareceu em
seguida foi Melina Xavier, com a aparência visivelmente abalada pela
apreensão.
— Melina, que surpresa boa! Vejo que teremos mais um prato na
mesa.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Oh, não! Não irei me demorar. Apenas acompanhei o pastor


para… — Melina hesitou. — ver Bete.
Tatiane levantou o sobrolho, voltando o olhar para seu esposo e
concluindo que a Sra. Xavier já tomara conhecimento da nova hóspede.
— Bete? — desvencilhou-se de seu rápido transe. — Sim, ela está
sentada bem ali. Descobri uma coisa muito boa sobre ela: é uma poetiza.
Está escrevendo um poema neste momento, e adivinhem para quem?
Melina arriscou:
— Alan?
— Exatamente. Ela sente-se muito grata por tê-la mandado para cá
— Tatiane pôde ver o brilho nos olhos da jovem esposa orgulhosa.
— Vamos, leve-nos a ela — pediu Nilton.
Melina e o pastor foram guiados por Tatiane pelo vasto jardim,
passando por duas dúzias de pessoas carentes acolhidas pelo programa
de auxílio — pessoas perdidas, esquecidas, viciadas, abandonadas,
desabrigadas — até chegarem à Bete, sentada da mesma forma de
minutos atrás e fitando entusiasticamente uma folha de papel cheia de
palavras quase ilegíveis.
— Bete? — chamou o pastor Cross. — Quero que você conheça uma
pessoa.
A velha senhora atentou para as três figuras à sua frente e observou
Tatiane adiantando-se com outra bonita mulher.
— Esta é a esposa de Alan Xavier, Melina — a Sra. Cross voltou-se
para a Sra. Xavier. — Melina, esta é Bete, a poetiza.
Bete sorriu, meneando a cabeça com cabelos grisalhos.
— Ela fala isso só porque disse que escrevi alguns poemas quando
mais jovem.
— O que é isso, Sra. Bete…
Melina foi interrompida.
— Chame-me de Bete, filha. Apenas Bete. Estou entre amigos agora,
não estou?
— Pode ter certeza que está… Bete.
Outro sorriso acompanhado com simpático abano de cabeça.
— É muito bom saber disso, Melina — a velha abandonada baixou o
olhar para o papel em sua mão e levantou-o em seguida para a jovem
senhora, estendendo a folha de sulfite para que pegasse.
— Para mim?
— É para seu marido. Quero que lhe entregue assim que o vir. Isso é
muito importante para mim.

170
Transformação - Naasom A. Sousa

Como aquela simpática senhora sentia-se feliz de estar segura


agora, pensava Melina. Como se sentia grata a Alan por mandá-la para o
Centro de Auxílio da igreja, tirando-a das ruas e dando-lhe um abrigo
com conforto decente. Isso era tão notável que quando o nome de Alan
era pronunciado, os olhos da velha poetiza brilhavam. Melina sentiu-se
feliz naquele momento. O amor cristão que Alan levava consigo era algo
tão maravilhoso que tal sentimento tinha que ser compartilhado com
pessoas carentes.
Ainda olhando para Bete, Melina declarou com um sorriso que
iluminou todo o lugar:
— Tenho uma idéia melhor, Bete. Por que você não guarda este
poema e entrega pessoalmente para Alan quando ele voltar? Sim,
porque… — uma súbita lembrança tocou o íntimo de Melina, deixando-
a sem palavras e pensativa. — creio que ele ficará muito contente com
isso. — Ela foi arrebatada para o que havia ouvido de Alan antes de
partir:
… Ele não me revelou se eu voltaria… ou não.
Deus! Não! Gritou ela dentro de si.

&&&

O movimento era constante na oficina de Nick Gradinno. Alan


observava tudo, enquanto, sentado numa cadeira num canto isolado,
esperava o retorno de Carlos.
Os funcionários de Nick não falavam muito. Tratavam de fazer sua
obrigações o quanto antes. Talvez, quanto mais trabalhavam, mais
dinheiro ganhavam, pensou Alan. Mas em compensação, o silêncio era
uma coisa que não existia ali. O funileiro batia com o martelo, reparando
alguns amassados, deixando as chapas como novas; o soldador fazia seu
instrumento de trabalho zunir e cuspir faíscas ao tocá-lo nas peças de
automóveis; o lixador fazia sua máquina deslizar ruidosamente pelos
esqueletos dos carros; enquanto o pintor deixava a pistola fungar, ao
expelir uma tinta de cada vez; e o organizador exercia sua função
deixando peças prontas para alguma suposta reposição, sempre
gritando de um lado para o outro, perguntando e respondendo coisas.
Os tímpanos de Alam já começavam a latejar por não estarem
acostumados com tamanho barulho.
Atentou para Nick, ao telefone, falando alto para que a pessoa do
outro lado da linha pudesse entender alguma coisa. Diferente do
interlocutor, o dono da oficina parecia não se incomodar com o

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Transformação - Naasom A. Sousa

aglomerado de altos sons que pareciam aumentar de intensidade a cada


minuto. Alan olhou para o teto do recinto e notou que era revestido com
um material idêntico ao usado em estúdios fonográficos, assim como
também nas paredes. Concluiu que tudo aquilo era para que o som não
escapasse do lugar e pudesse ser ouvido lá fora. Observou ainda a
iluminação feita por luminárias fluorescentes, presas ao teto que
ajudavam no trabalho, dando a iluminação adequada para a formação
de todo o quebra-cabeça que era aquela oficina.
Nick colocou o fone no gancho, encerrando a conversa e dirigiu-se
até Alan.
— Esses caras são uns afeminados! Dizem: “O barulho tá muito
grande! Fala mais alto! Repita de novo, por favor, não ouvi direito”!
Parece que nunca fizeram negócio com um desmanche!
Alan não entendeu muito do que Nick tinha dito, mas pelo pouco
que pôde distinguir, e pelo seu estado alterado, achou melhor não pedir
que repetisse.

&&&

Não demorou muito para que Carlos voltasse à oficina, de banho


tomado e vestido com roupas limpas. Alan ausentou-se em seguida,
deixando os dois a sós.
Tirando o excesso de água do cabelo, Carlos disse:
— Tem algum lugar onde possamos ter um pouco de privacidade,
Nick? O que tenho para contar tem que ser em particular.

&&&

Um quarto muito mal decorado. Era o que se podia dizer sobre o


dormitório de Nick. O que há dois anos era um luxo, agora era quase
lixo.
Paredes com reboco caindo, fraca iluminação, um frigobar
enferrujado, uma escrivaninha sem muitos atrativos, muitos papéis
espalhados pelo chão e uma cama que gemeu quando seu dono sentou-
se sobre ela.
— Vejo que esse caras fizeram uma arruaça e tanto por aqui —
comentou Carlos.
— É, fizeram mesmo — murmurou Nick.
Carlos suspirou e foi direto ao assunto:

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Transformação - Naasom A. Sousa

— O buraco em que estou metido é muito grande e feio. E no


momento me encontro à beira do pânico, lutando para manter-me em
pé.
— Do que você tá falando, meu irmão? Como assim à beira do
pânico? Você nunca chegou a esse ponto! Em que diabos você tá metido?
Carlos sentou-se ao lado de Nick, fazendo a cama gemer
novamente.
— Nunca lhe falei nada sobre isso nas vezes em que te liguei, Nick.
Ao sair daqui, entrei para uma quadrilha, que você já deve ter ouvido
falar: A Quadrilha Vip.
Nick levantou-se com um pulo.
— Putz grila, cara! A Quadrilha Vip?!
Com um meneio de cabeça, Carlos confirmou.
— Pensei que fosse a melhor coisa a fazer. Uma grande organização;
uma posição firmada nela; um ótimo dinheiro; enfim, tudo o que eu
precisava para garantir meu futuro.
— Mas ninguém tem futuro algum fazendo parte de uma
organização como essa, cara, a qualquer momento é neguinho te
passando a perna, te colocando pra baixo, e isso é só o começo.
— Eu estava cego, Nick! — replicou Carlos. — Cego por poder,
status!
Tudo o que Nick pôde fazer foi passar as mãos pelo rosto. Carlos
continuou em plena murmuração:
— Estava disposto a dar tudo de mim para a organização… Eu-eu
entrei em contato com um cara chamado Lucas Givaldi, que me foi
apontado por Cléber, você o conhece. Lucas é o subchefe de toda a
quadrilha e tem bastante poder lá dentro. Foi me encontrando com ele
que me tornei membro da organização.
Passando os dedos pela corrente de ouro presa ao pescoço, Nick
pensou em voz alta:
— Lucas Givaldi… acho que já ouvi esse nome em algum lugar.
— Ele era bem conhecido antes de entrar para a quadrilha. Roubava
grandes bancos e joalharias. Alguns noticiários filmaram ele roubando
um banco, e foi desde então que ele passou a fazer parte da organização.
Agora é como um fantasma. Só sai às ruas para acertar e fazer negócios,
depois volta a se exilar. Num desterro luxuoso, é claro.
— Então é ele que tá te trazendo problemas?
— É mais do que isso — a voz de Carlos parecia fraca. — Estou
sendo caçado e acuado.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Por esse cara? — espantou-se Nick. — Você nunca teve medo


de…
Carlos jogou as mãos para o alto, interrompendo Nick.
— Não é só por ele! É por todos! Todo mundo deve estar atrás de
mim neste momento. Lucas junto com toda a quadrilha, a polícia, os
jornais, os caçadores de recompensa, os habitantes da cidade inteira,
todos!
Nick estava atônito.
— Como isso aconteceu, cara? Não acredito que uma única pessoa
esteja movendo esta maldita cidade!
Carlos sorriu ironicamente e depois comprimiu os olhos como se
estivesse sentindo uma dor íntima.
— Assim que entrei, comecei a fazer algumas transações para a
quadrilha. Fazia mandados, acertava com fornecedores e compradores,
ou seja, tudo o que me pediam eu fazia de ótimo agrado, pois estava
com muita vontade de chamar a atenção dos grandes, principalmente…
a do Vip, que aliás, nunca tinha visto o seu rosto, assim como a maioria
dos que trabalham para ele.
Antes que Nick disparasse em outra pergunta, Carlos continuou:
— Mas então, depois de um tempo de trabalho árduo, foi que
descobri, ouvindo uma conversa, por acaso, que eu iria ser o novo pato.
— Pato? — Nick não fazia a menor idéia do que aquilo significava.
— Pato — confirmou Carlos, relembrando memórias indesejáveis.
— Um ser insignificante. Pessoas com sonhos ambiciosos, assim como
eu. A quadrilha alimenta os sonhos dos patos e fazem de conta que tudo
está indo muito bem. Como Vip falara para mim, eles acolhem,
alimentam, dão do bom e do melhor, e mais tarde consumam um plano
que é projetado desde a entrada do pato na quadrilha: o pato é mandado
para fazer uma grande transação com um contato — sempre num
negócio de grandes proporções —, então, depois que a troca é feita,
metade da quadrilha aparece e extermina a todos que estão fazendo
parte da transação, o pato está incluído nessa. Daí pegam a mercadoria e
o dinheiro e desaparecem da mesma forma que chegam.
“Quando a polícia encontra os corpos, todos os indícios são
apontados para um tiroteio entre quadrilhas rivais onde nenhum deles
tiveram a sorte de sair com vida. E assim, a quadrilha vai aumentando
seu capital ’sem se sujar’.”
— Caramba! — assombrado, Nick caminhou até o frigobar e tirou
uma garrafa de whisky de dentro dele, tomando um gole, então. — E
como você se saiu dessa, meu chapa?

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Como eu disse, descobri a tempo, e antes que eu virasse pato


assado, bolei um meio de me safar. Coloquei uma escuta no telefone
usado por Vip num certo dia em que ninguém estava por perto e então
gravei uma conversa do poderoso chefão. Consegui uma coisa muito
quente, meu caro. Depois que estava com uma cópia da tal fita nas mãos,
fui até Lucas pedir minha demissão, mesmo sabendo que quem entra na
organização não pode mais sair. E como esperava, ele não aceitou.
— Então você mostrou a fita — disse o outro.
— Exatamente.
— Mas o que existia na fita?
— O segredo mais bem guardado de Melmar — Carlos levou a mão
ao bolso da calça e puxou a k-7 — E ela está bem aqui. — entregou-a ao
amigo.
Nick deu mais um beijo na boca da garrafa de Whisky, deixou que
uma porção do líquido escorregasse por sua garganta e, em silêncio,
fitou o objeto.
— Então, depois que você mostrou a fita, ele cedeu?
Carlos balançou a cabeça de um lado para o outro.
— Pior que não — murmurou.
— Como não? Agora era a garganta dele era que estava presa à
corda!
Carlos levantou-se e fazendo gestos desesperados, disse:
— Quando mostrei a minha arma, ele mostrou a dele: uma simples
correntinha banhada a ouro com um anel de noivado presa a ela.
Como um raio, Nick aproximou-se de Carlos e segurou na gola de
sua camisa. Puxou-o ainda mais para perto de si.
— Cara, não me diga que… — Nick não ousou continuar. Carlos
pôde apenas confirmar com a cabeça.
A falta de palavras tomou conta dos dois homens em meio a olhares
fulminantes detonados por ambos. Nick largou a camisa de Carlos, que
enfim falou:
— Foi aí que se deu o começo do meu pior pesadelo. Eles pegaram a
fita e me obrigaram a fazer parte de um outro plano, simplesmente
diabólico e muito mais ousado: encenar uma transação para acabar com
dois policiais que há muito tempo desbancavam os negócios deles. O
plano deu mais-do-que-certo, eles os mataram, conseguiram o que
queriam. E agora, adivinhe em quem colocaram a culpa?
Nick já sabia a resposta.
— Que droga, cara! Você tá perdido!
Carlos deu um sorriso amarelo.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Nem tanto. Recuperei a fita, como você pode ver, e… ganhei um


pastor.
— Que negócio é esse de pastor, Carlos?
— Lucas me mandou matar um policial e ele apareceu do nada,
dizendo para eu não fazer o que estavam me mandando. Foi aí que pulei
em cima de Lucas e retirei a fita que estava dentro do terno dele, sem
que ele percebesse. Depois que me imobilizaram, pegaram esse pastor e
levaram-no para lhe darem um fim. Eu ouvi tiros. Tito e Bino nunca
iriam deixar que ele ficasse vivo. Por isso não haveria nenhuma
possibilidade de…
As palavras de Carlos estavam seguindo um rumo em que só eram
claras para si mesmo. Nick percebeu isso e o fez cessar:
— Espere, espere! Você não tá mais falando coisa com coisa, meu
irmão! Não estou entendendo mais nada. Daqui a pouco vou estar
voando!
— Certo… Só para esclarecer, eu capotei de tanta pancada, e
quando acordei, ele, o pastor, estava ajoelhado ao meu lado… e vivo!
Então a polícia chegou e prendeu nós dois, algemados um ao outro. E
estamos juntos até agora.
O relatório de Carlos se estendeu por minutos. Foi contado o
episódio do carro-patrulha, com os policiais corruptos, e tudo o que
acontecera: a batida no poste, a fuga. O vagueio pela mata e a invasão da
propriedade de Edson e Julia. O primeiro telefonema para Vip, o
cinzeiro voando e a espingarda cuspindo fogo e quebrando o pára-brisa.
Para Nick, aquilo estava parecendo mais uma aventura excitante, e
sentiu uma pequena inveja de Carlos, pois queria ter sido ele a passar
por aquela “expedição ao perigo”. Ele gargalhou quando Carlos contou
sobre as formigas que quase o fizeram gritar, enquanto um tira varria a
escuridão com o facho da lanterna próximo a ele, mas ficou sério quando
lembrou de uma reportagem que havia sido exibida no canal sete, no
primeiro noticiário do dia.
Carlos estava mencionando a noite passada, quando ficaram num
beco cheio de lixo. Nick interveio:
— Carlos, saiu uma reportagem sobre vocês hoje de manhã na
televisão. Não tinha a menor idéia de quem se tratava na ocasião, mas
agora tudo faz sentido. Cara, você está numa enrascada. Descreveram as
suas características e pediram para quem vir vocês dois em algum lugar,
ligar para a polícia.
— Agora você entende o sentido da palavra todos?
Nick assentiu com a cabeça.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— E agora, o que você tá planejando? O que você via fazer?


— Já fiz — Carlos tomou a garrafa de whisky da mão de Nick e
levou o recipiente à boca. — Antes de vir para cá, telefonei para Vip e
marquei um encontro. Propus uma troca. A fita por Nicole. Disse a ele
ainda que estou disposto a esquecer tudo o que aconteceu depois que
entrei para a quadrilha e desaparecer de sua vida para sempre se fizer
tudo de acordo.
— Mas se isso acontecer, você vai continuar sendo caçado pela
polícia!
— O que importa, Nick? O importante é que ela esteja bem, salva e
do meu lado.
Um semblante de dúvida sobreveio sobre Nick.
— Ao lado do cara mais procurado da cidade? Será?
Duas batidas na porta chamaram a atenção dos dois homens dentro
do pequeno quarto interrompendo a conversa. Nick dirigiu-se a porta e
abriu-a. Alan estava plantado lá.
— Desculpe-me… — disse Alan. — É que o pessoal lá da oficina
disse que vocês estavam aqui, e…
Carlos percebeu o acanhamento do homem e resolveu ajudá-lo.
Deveria estar curioso para sabem o que estavam conversando, pensou.
— Entre, pastor — convidou, atraindo o olhar de Nick.
— Oh… não, obrigado — Carlos não esperava essa resposta, muito
menos Nick. Alan concluiu: — Só vim aqui perguntar se não haveria…
um outro lugar… reservado… com a mesma privacidade deste aqui
para… eu poder orar?
— Orar? — Nick empertigou-se. — você tá pensando que isso aqui
é o que? Uma igreja por acaso?
— Desculpe-me, eu não queria…
— Nick — interveio Carlos —, a sala das peças ainda existe?
— Existe, mas eu não quero…
— Você poderia deixá-lo ficar um pouco lá? Ainda tenho algumas
coisas para lhe dizer a respeito do que estávamos falando e quero que
isso fique só entre eu e você.
Nick passou os dedos pela correntinha de ouro novamente e
observou Carlos fazer um sinal com a cabeça como se dissesse: Faça isso.
— Tá legal — o proprietário da oficina caminhou à escrivaninha,
pegou uma chave na primeira gaveta e jogou-a para Alan. — A primeira
porta do mesmo corredor em que você andou para chegar ao banheiro.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Obrigado — com um sorriso, Alan virou-se e foi embora,


deixando para Carlos a missão de enfrentar o olhar gelado de Nick, que
apontou para onde o servo de Deus estava segundos antes.
— Esse cara é mesmo pastor, é? Vou logo dizendo que não gosto
desse tipo de gente.
Carlos levantou a mão direita, solenemente.
— Eu também não — apontou para a porta. — Feche.
Nick antendeu e fez a cama emitir o som de sempre quando voltou
a sentar sobre ela.
— Sabe, de alguma forma eu não confio nele — disse Carlos com
relação a Alan. — Tem vezes que me parece tão convincente que fico a
ponto de acreditar que ele seja crente mesmo. Mas meu instinto diz para
acautelar-me e até mesmo o denuncia a mim.
A concentração de Nick sobre as palavras do amigo encrencado
parecia intensa e alerta a qualquer sinal de perigo à vida que pudesse
detectar. Carlos continuava:
— Esse cara diz coisas que sinto, que quero, como se me conhecesse
há muito tempo. Ele… ele diz que veio em nome de Deus, o meu grande
amigo. Imagine só isso! — sorriu com uma expressão completamente
contraditória. — Mas sabe o que eu acho? Acho que ele está nessa para
me ferrar, para acabar comigo. Acho que está a mando de Vip.
— Por que acha isso? Achou algo suspeito nele ou algo parecido
que o denunciou?
— Porque veja bem: ele sabia o meu nome sem nem mesmo me
apresentar! Quando ele apareceu lá, no meio da transação, eu nunca o
tinha visto antes mais gordo em minha vida, e ele sabia o meu nome!
Carlos sentiu que poderia falar sobre o que sentia a respeito daquele
homem e as dúvidas que se acumulavam ao redor dos termos verdade e
mentira por longas e infindáveis horas. Mas o tempo não lhe permitia
isso. Estava começando a sentir dor de cabeça.
Nick declarou sombriamente:
— É uma situação difícil. Ele pode ser mesmo um desses crentes
malucos, já que eles têm essa mania de falar que Deus nos ama, é nosso
amigo, nosso guarda… essas coisas. Mas tenho uma dúvida: “será que
algum deles teria realmente coragem para se meter em uma loucura
dessas?” É… sinceramente, acho que não seriam suficientemente
malucos para isso.
Carlos fez um sinal positivo, mas seu olhar denunciava que não
acreditava muito que Alan pudesse realmente ser uma daquelas pessoas
que punham o amor a um Deus acima de tudo.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Na situação em que me encontro, não há nenhuma condição de


eu ficar fazendo da minha cabeça uma balança, Nick. Não posso me
arriscar de maneira alguma. Não tenho tempo para ficar querendo saber
se ele está do lado do bem ou do mal, para depois agir. Tenho que me
adiantar sempre.
— Estou com você nessa — apoiou Nick.
— Fico contente em saber disso, cara. Vou precisar de sua ajuda
amanhã para garantir que tudo saia da melhor forma possível… para
mim, é claro.
Nick levantou-se, dirigindo-se para Carlos e apertou-lhe a mão.
— Como eu disse antes, estou com você. Vamos dar uma lição
neles. Lembra de como éramos antes? Eu não era apenas o seu chefe,
mas também seu amigo. Não queria que vissem isso porque poderia
“pegar” mal.
Um sorriso mais tranqüilo saiu dos lábios do jovem fugitivo, até que
Nick perguntou:
— E quanto ao suposto pastor, o que vamos fazer com ele?
— Nada, por enquanto. Ele também já está incluído nos meus
planos para manhã — Carlos visualizou em sua mente o que haveria de
ocorrer nos primeiros minutos do dia seguinte e acrescentou: — E
dependendo do que acontecer na Clintel com a Treze, eu saberei o que
fazer com ele. De qualquer forma, o miserável estará em minhas mãos.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 14

A solidão acompanhada do medo era quase insuportável. A toda hora,


minuto, instante, ela temia aquilo que poderia ser o seu fim, e todas
as circunstâncias despontavam para isso.
Ela era uma jovem mulher de vinte e sete anos, cabelos dourados
que simplesmente caíam como uma cachoeira de sua cabeça, com
expressivos olhos verdes e de corpo esguio. Mas aquele lugar estava
consumindo-a, assim como também toda a sua beleza. Não era nenhum
calabouço — cenário dos filmes de Robin Hood —, muito menos uma
torre enclausurada de um castelo medieval. Era um quarto luxuoso, com
cama confortável, TV tela grande, um som stéreo com compact disc,
frigobar, ar condicionado e tudo o que alguém poderia querer em seu
próprio quarto. Porém, em suas paredes brancas como neve recém caída,
exibiam bizarros quadros pendurados nelas com formas grotescas e
repugnantes. Uma delas — a que Nicole mais odiava — trazia a pintura
de uma cabeça recém decapitada, com seus dois olhos arrancados, sendo
devorados por três ratos leprosos. Era uma prova que tinha que ser
vencida. Ela tentava não olhar para os quadros, pois sentia ânsia de
vômito ao deparar-se com aquelas figuras diabólicas.
Ela ainda se lembrava do que lhe dissera o homem que a prendera
ali:
— Aproveite bem este recanto, meu bem, porque talvez será o
último lugar que você irá ver.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Estremecia ao pensar naquelas palavras e na frieza que a voz


daquele homem transmitia. Era como uma faca sendo enfiada na carne
humana. Quase tão horrendo quanto os quadros espalhados pelo quarto
— que para Nicole, não era nenhum recanto e sim um lugar para se criar
malucos, ou um habitat natural de maníacos.
Pelos seus cálculos, deveria estar ali por pelo menos quatro dias,
mas pareciam semanas, sem nenhuma companhia, ninguém para
compartilhar seus medos e anseios. Tinha apenas a televisão e o som
stéreo como companheiros, mas quem iria querer assistir ou ouvir
alguma coisa naquele estado de aflição? Tudo o que queria era sair dali e
encontrar Carlos, abraçá-lo com a segurança de que tudo estaria bem.
Mas, infelizmente, a realidade era de que nada estava bem. Carlos, a
essa altura, estava morto ou simplesmente numa enrascada maior do
que já se encontrava, o que era quase impossível, assim como também
era o fato ela de poder sair dali com vida.
Ainda se lembrava do que Carlos dissera-lhe a quatro dias atrás:
— Desculpe-me, meu amor — ele estava acompanhado do homem
que a havia prendido naquele quarto horrível e mais outros três, que o
ladearam como se fosse uma escolta pessoal. — Eu-eu apenas queria o
melhor para você, para mim, para o nosso futuro. Mas descobri que não
era nada disso que esse pessoal queria nos dar. Eles não se importam
com ninguém. É por isso que você está aqui. Querem que eu faça uma
coisa suja para eles e em troca recebo você de volta. — Carlos respirara
profundamente. — Só espero que você me perdoe e me dê uma nova
chance. Uma chance para provar que posso te fazer feliz. Eu…
Nicole vira os olhos de Carlos encherem-se de lágrimas e observara
quando tentara esconder isso dos demais homens. Por fim, disse:
— Eu prometo que voltarei para te pegar.
Ela não sorrira naquele momento. Foi o dia em que descobrira que
Carlos era um criminoso.
Subitamente, o homem que a prendera ali, caminhara até ela e
arrancara sua gargantilha, junto com o anel de noivado que Carlos
havia-lhe dado no dia de seu aniversário. Nicole entendera então que,
aquelas jóias seriam um lembrete para seu noivo de que a mulher de sua
vida, a qual amava, estava nas mãos de seus inimigos.
Quando todos se retiraram do quarto, só sobrara a solidão, o medo,
a angústia, o choro desesperado de Nicole. Momentos depois correra à
porta e batera com força, muitas vezes, a ponto de suas mãos ficarem
vermelhas. Abriram a entrada, mas ao invés de lhe deixarem ir, deram-
lhe um soco no meio do rosto que a fizera cair contra o chão

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Transformação - Naasom A. Sousa

encarpetado. Então chorou novamente, assim como em todas as horas


do dia.
Mas agora Nicole não pranteava mais. Parecia que a fonte de
lágrimas havia secado. A tristeza era profunda, a angústia insuportável,
o medo avassalador, mas as lágrimas, elas já não existiam mais.
Estava deitada sobre a cama de madeira de lei — como fazia na
maior parte do tempo —, de olhos fixos, vidrados no teto branco, numa
hipnose arrebatadora.
Por que mentiu para mim?
Por que escondeu isso de mim?
Por que não abriu o jogo comigo?
Por que está acontecendo tudo isso?
Por que tudo só acontece comigo?
Por que…
Os por quês eram intermináveis e faziam a cabeça de Nicole girar.
Amava Carlos. Amou-o desde a primeira vez que o viu numa
lanchonete no centro da cidade, na chamada: “Rua Comestível”. Nicole
estava sentada ao balcão e percebera o olhar de Carlos — sentado em
uma mesa — sendo desferido contra ela. Nicole sorrira, sendo seguido
por ele em seu gesto. Um minuto depois, Carlos estava sentado ao seu
lado. Passaram a noite conversando sobre tudo e sobre nada, e tudo isso
como já se conhecessem há muito tempo.
Nicole voltou ao presente com um longo suspiro, desolada. Mas as
palavras de Carlos tomaram-lhe a mente mais uma vez:
Desculpe-me, meu amor. Eu-eu apenas queria o melhor para você, para
mim, para o nosso futuro… Só espero que você me perdoe e me dê uma nova
chance. Uma chance para provar que posso te fazer feliz. Eu…
Colocou as mãos na cabeça e tentou pensar em coisa alguma. Mas
sua própria consciência lhe delatava que era um esforço em vão. Então
ela gritou. Gritou por não saber mais o que fazer… o que pensar…
Um barulho chamou-lhe a atenção para a porta, que em seguida foi
escancarada. O mesmo homem que a havia prendido ali estava parado à
entrada — a sua única saída.
O homem esboçou um sorriso — indigno de sua pessoa, por ser um
gesto alegre —, caminhou para o centro do quarto, enquanto a porta era
fechada novamente, e fitou-a dos pés à cabeça.
— Como você está, meu bem?
Nicole tentou engolir um nó em sua garganta que estava
dificultando sua respiração e o que pôde proferir foram duas das

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Transformação - Naasom A. Sousa

perguntas que assolaram-na por todas as horas que passara ali até
àquele momento:
— Quem é você? Onde está Carlos?
Sem nada falar, Lucas sentou-se sobre a cama. Nicole estava com os
nervos à flor da pele, e isso a deixou ainda mais nervosa.
— Responda, seu filho…
— Ei! — interrompeu ele. — Você é muito bonita para falar essas
coisas feias!
A jovem moça levou as mãos à cabeça e sentiu vontade de arrancar
todos os fios de cabelo que nela estavam plantados.
— Por favor… — suplicou ela —, diga-me o que quero saber! Estou
à beira da loucura. Este lugar é pior que um hospício, e… Por favor, me
diga onde ele está!
Lucas cruzou as pernas. Com ar de gentileza disse:
— Para ser franco com você, não tenho a menor idéia de onde
Carlos possa estar agora — viu no rosto de Nicole a dúvida. — Estou
falando a mais pura verdade. Agora, não me pergunte como ele está,
porque creio que você não gostará da resposta.
Isso Nicole já imaginava. Era óbvio que Carlos não estava nada
bem, mas queria saber o quanto. Resolveu não perguntar mais nada a
esse respeito.
— O que você quer comigo?
Lucas riu.
— Oh! Eu queria muitas coisas, mas… — ele olhou-a de cima a
baixo — eu sou do tipo que não ultrapassa o sinal, entende? Só vim aqui
lhe informar que isso não vai durar por muito tempo. Logo você irá sair
daqui.
— Que garantia você me dá?
— Minha palavra não basta?
— E desde quando palavra de criminosos como você tem garantia?
— A de Carlos não tinha?
Nicole silenciou. Ele a tinha pegado.
— Foi muito injusto da parte dele, na minha opinião, ter escondido
que era um infrator da lei de você, sua noiva— continuou Lucas. — Me
diga, você nunca desconfiou de nada?
Nenhuma palavra saiu da boca de Nicole. Mas a verdade era que
não, ela nunca desconfiara de coisa alguma que ligasse Carlos ao crime.
Ele jamais lhe dera motivos para que desconfiasse. Talvez, pensou ela,
porque Carlos, de jeito algum, agira ou falara como uma pessoa que
fosse envolvida com o tráfico por saber que ela nunca teria continuado

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Transformação - Naasom A. Sousa

com o namoro se lhe dissesse algo, muito menos com o noivado. Nicole
abominava qualquer tipo de falsidade e desonestidade e Carlos sabia
disso melhor do que ninguém.
— Sei que ele fez o que fez para me proteger — disse então.
— Acho que o mais correto seria dizer que ele queria proteger a si
mesmo. Tinha certeza que, se você soubesse, deixaria-o no ato. Eu,
pessoalmente, não me reocuparia muito com isso. Se você realmente
gostasse de mim, se fosse o caso, teria que me querer do jeito que sou.
— Tudo tem um limite, e aí está o meu. Eu não seria capaz de
transpô-lo, mesmo pelo amor.
— Amor? — Lucas pareceu admirado. — Você realmente o ama?
Os lábios de Nicole tornaram a se fechar por um instante.
— Amar… depois disso não sei mais se o amo — ela o fitou nos
olhos. — Nem sei por que estou falando isso para você, já que creio que
não se importa.
Lucas levantou-se e caminhou ao frigobar no canto do quarto, tirou
de dentro uma lata cerveja e abriu-a.
— Me importar? Não, na verdade não me importo, mas me
interesso em certos assuntos, principalmente os amorosos, e… Sabe o
que eu acho? Acho que Carlos ama você, de verdade. Se não fosse assim,
ele não se preocuparia em esconder o que é de você.
— O que você é? Conselheiro matrimonial?
Lucas levou a lata com o conteúdo dourado à boca e aproximou-se
de Nicole.
— Você quer saber quem realmente eu sou? — com um movimento
rápido, a mão livre do traficante voou de um lado e voltou chocando-se
com o rosto alvo da jovem refém, jogando-a no chão com o impacto do
tapa e fazendo a área golpeada imediatamente ficar avermelhada. — Sou
o homem mau. Alguém com quem não se brinca. Seu noivinho fez isso
comigo e vai se arrepender. Aliás, ele já se arrependeu, tenho certeza.
Com as mãos no rosto machucado, Nicole sentiu a face inchar.
— Por que vocês fazem isso? Como conseguem viver assim? —
perguntou, esperando outra investida.
Lucas não se moveu, mas liberou uma sinistra gargalhada.
— Viver assim como? Sendo alguém poderoso, com status? Alguém
temido e respeitado? Estou certo de que todos no mundo daria tudo
para viver do jeito que vivo.
— Você está errado — murmurou Nicole.
— Errado? Veja o seu Carlos, por exemplo! Ele não pensou duas
vezes quando essa oportunidade bateu à sua porta. Veio correndo.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Idiota. Queria se dar bem, porém, embarcou no navio errado, o azarento.


Mas até que… — outro gole. — Até que ultimamente ele anda com sorte.
Nicole notou que, ao final, Lucas não estava mais falando
diretamente com ela, mas consigo próprio. Pensando em voz alta, seria a
palavra certa. Agora, sem perceber, o traficante estava com a total
atenção de sua refém.
— O filho da mãe está vivo, e isso já pode ser considerado a maior
sorte do mundo.
Nicole não se conteve ao saber disso.
— Vivo! Carlos está vivo! Oh, meu Deus!
O transe de Lucas foi quebrado. Ele fitou a mulher à sua frente, o
sangue subindo-lhe à cabeça.
— É, ele esta vivo, mas não por muito tempo. Eu garanto.
O traficante tirou do bolso a correntinha com o anel de noivado
pendurado nela, levantou-a rente aos olhos e ficou a observar seu brilho
diante da noiva que, agora, parecia não se importar com suas jóias nas
mãos de outra pessoa. De alguma forma estava se sentindo bem depois
de quatro dias de terror. A notícia de que Carlos estava vivo lhe tinha
feito isso. Pensara que tinha sido mentira quando Lucas havia dito que
não sabia onde Carlos se encontrava. Neste momento, sabia que ele
poderia estar em qualquer lugar lá fora, a salvo. Isso era o que bastava.
De repente ela também se deu conta de uma coisa: ela ainda o amava.
Talvez mais, agora. Um leve sorriso despontou em seus lábios. Até que
Lucas Givaldi repetiu:
— Não viverá por muito tempo. Eu garanto. Sim, garanto isso.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 15

T odo o império do CANAL SETE – REDE DE TELECOMUNICAÇÕES,


encontrava-se dentro do edifício imponente da principal avenida da
cidade, a avenida Perfeição, que, como o próprio nome dizia, era
perfeita. Com quatro vias paralelas e infra-estrutura bem projetada, o
movimento de automóveis e pedestres na avenida era grande e
constante, e por esses motivos ali se situava as maiores empresas, firmas
de advocacia e setores administrativos de Melmar.
Axel desceu com seu carro-patrulha à garagem subterrânea do
edifício do Canal Sete e estacionou em uma das vagas para os visitantes.
Pegou, em seguida, o elevador que o levou ao sexto andar, onde se
estabelecia a redação.
As portas de aço do elevador se abriram no andar correspondente, e
o que Axel pôde observar foi uma sala repleta de escrivaninhas fartas de
materiais: computadores, telefones, faxes, canetas, fitas de vídeos,
algumas câmeras e papéis diversificados. Havia ainda dezenas de
monitores embutidos nas paredes, sintonizados em vários canais —
inclusive internacionais — sendo transmitidos em vários idiomas. Os
telefones não paravam de tocar; as notícias e informações não paravam
de chegar. Vinham de várias partes da cidade ao mesmo tempo, assim
como ao mesmo tempo muitas pessoas falavam de uma só vez. Axel
percebeu, sobre uma pequena mesa de carvalho, diversos jornais dos
EUA e de toda a Europa, empilhados ordenadamente, que, de vez

186
Transformação - Naasom A. Sousa

enquanto, eram consultados por alguém. Uma mesa em destaque


chamou a atenção do policial. Ela encontrava-se sob a mira de uma
câmera de vídeo. Então reconheceu: era onde uma bonita jornalista,
Catarina Collinter, transmitia — sempre em flashes ao vivo — as últimas
notícias quentes do mundo.
Uma mão foi erguida em meio ao trânsito humano da redação. Axel
observou atentamente de quem se tratava. Era Caroline, sentada a uma
das escrivaninhas ao fundo da sala. O policial dirigiu-se por entre o
tumulto de funcionários que trabalhavam na redação, esquivando-se
aqui e ali para não esbarrar em mesas ou pessoas, até que chegou onde a
repórter estava. Uma outra mulher acompanhava-a.
— E então, tudo bem? — perguntou Axel. Um cumprimento nada
formal diante dos acontecimentos, pensou.
— Tudo bem — respondeu Caroline, oferecendo uma cadeira à
escrivaninha ao agente policial. — Esta é Helena Corel, a repórter de
quem lhe falei. Ela esteve na casa invadida pelos dois suspeitos.
Helena Corel estendeu a mão e Axel tomou-a num aperto,
reparando os traços físicos da mulher. De sua mesma cor, de olhos
castanhos e corpo bem definido. Uma bela mulher, pensou ele.
— Axel Brendel — apresentou-se.
— Carol já me falou sobre você. É um prazer conhecê-lo.
— Igualmente.
Caroline interrompeu com uma batida leve na mesa e um sorriso
torto.
— Bem, chega de formalidades e vamos ao que interessa. Helena,
repita o que você estava me contando antes para que Axel possa ouvir.
Sei que com o faro fino que ele tem, poderá descobrir algo mais e dar
uma incrementada superior a essa matéria, que aliás, está ótima. Eu já
dei uma olhada, espero que não se importe.
— O que é isso, Carol? — a expressão de Helena era de ofendida. —
Não tenho porquê me importar. Além do mais, tudo isso diz respeito a
você também.
Caroline suspirou:
— Obrigada.
— Bem, então o que aconteceu realmente na tal casa? — indagou
Axel, tentando afastar a nuvem carregada de tensão e constrangimento
para longe.
Helena Corel ordenou três folhas à sua frente, e olhando para elas,
começou o que seria chamado de relatório:

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Depois que a matéria da Carol foi ao ar, o Sr. Edson Kruller nos
telefonou. Disse que a descrição que vocês deram dos dois suspeitos
eram idênticas a dos homens que invadiram sua casa. Pediu para que
uma equipe de reportagem lhe visitasse, pois ficara muito comovido
com o apelo feito por Silvio hoje de manhã.
— O filho da mãe sabe mesmo como fazer o povo se sentir
responsável pelo que acontece de ruim na cidade — comentou Caroline.
— É por isso que ele ganha mais do que nós três juntos —
murmurou Helena.
Axel protestou em meio ao barulho do recinto:
— Qualquer ser vivente que trabalhe, ganha três vezes mais do que
eu, meninas!
Os três riram. Helena continuou:
— Quando chegamos à residência dos Kruller, o Sr. Edson já estava
à nossa espera na varanda de sua casa muito bonita por sinal e bastante
tranqüila por encontrar-se distante da cidade.
Axel puxou um bloco de anotações e uma caneta esferográfica do
bolso do seu casaco de couro preto.
— Qual é exatamente a localização da residência dos Kruller?
— À leste de Melmar. A rodovia Zero-Meia-Cinco passa bem
próximo a ela. Foi nessa rodovia que encontraram a caminhonete do Sr.
Kruller.
Caroline permanecia em silêncio, enquanto observava o policial
rabiscando rapidamente letras quase incompreensíveis em seu
bloquinho. Ele parou e fitou o nada, em seguida, num devaneio,
perguntou:
— A rodovia Zero-Meia-Cinco não fica a onze quilômetros da
rodovia Três?
— Mais ou menos isso — pronunciou-se Caroline e Axel voltou a
rabiscar rapidamente. Ainda indagou:
— Falou que os suspeitos invadiram a casa dos Kruller e roubaram
sua caminhonete nesta madrugada?
— Foi isso mesmo o que aconteceu, segundo o Sr. Kruller.
— Conte-me como foi.
Helena Corel consultou seus papéis novamente.
— O Sr. Edson Kruller disse que foi sua esposa quem ouviu o
barulho que os dois homens estavam fazendo na sala de sua casa e
acordou-o. O Sr. Kruller pegou sua espingarda e dirigiu-se aonde os dois
suspeitos estavam.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Por que ele acha que eram os suspeitos em sua casa? Não
poderiam ser ladrões noturnos um pouco parecidos com os suspeitos ou
coisa parecida?
Helena negou com a cabeça.
— Não. Porque o Sr. Kruller chegou na sala e pegou-os de surpresa.
Não estavam furtando coisa alguma e sim, vejam só, dando um
telefonema.
Axel e Caroline se entreolharam curiosos.
— Telefonema? — indagou o policial. Helena confirmou.
— Estranho. Por que alguém invadiria uma casa no meio da
madrugada apenas para dar um simples telefonema? — questionou
Caroline.
Alguém deu um berro do outro lado da redação, chamando a
atenção dos três, principalmente a de Axel, que falou em seguida:
— Analisando os fatos, não acho que este tenha sido um simples
telefonema, mas sim “o telefonema”.
— Como assim? Do que você está falando? — indagou Helena
Corel.
— Se esses caras forem realmente os dois suspeitos, esse telefonema
certamente estará relacionado ao caso, e poderá responder muitas de
nossas perguntas.
— Que droga! Se pelo menos tivéssemos alguma certeza para
entrarmos em ação… — lamentou a repórter de cútis clara.
— Não será preciso termos certeza para fazermos alguma coisa —
disse Axel. — Tenho um amigo na MELMARTEL. Pedirei para que
verifique todos os números que foram discados do telefone da casa dos
Kruller hoje, assim poderemos saber os destinos dessas ligações, ou
melhor ainda, da nossa ligação.
— Que coisa fantástica! — exclamou Helena.
— Faro fino — elogiou Caroline.
Axel sorriu enrubescido.
— O que mais o Sr. Kruller lhe contou? — perguntou.
— Bem… disse que imobilizou os dois homens, pondo-os em sua
mira, mas numa fração de segundos, enquanto olhou para sua esposa, o
Sr. Kruller foi acertado por um deles e assim não pôde impedir que os
suspeitos roubassem sua caminhonete e fugissem. Contou que ainda
atirou contra eles já dentro de seu veículo, mas não chegou a atingir
nenhum dos dois, apenas sua própria caminhonete, que foi encontrada
sem combustível por dois policiais que se encaminhavam à casa dos
Kruller atendendo ao seu chamado. O veículo estava a um quilômetro e

189
Transformação - Naasom A. Sousa

meio do limite da cidade à leste e os invasores ou suspeitos, como queira


chamá-los, já tinham evaporado.
Axel escreveu mais coisas em seu bloco de anotações, então
concluiu:
— Isso quer dizer que eles voltaram para Melmar e já estão em
algum lugar por aí.
Caroline levou as mãos à cabeça.
— Que coisa! Enquanto Pablo está morto, os seus assassinos estão
na cidade, talvez andando por aí como se nada tivesse acontecido! Eu
não acredito nisso!
Helena Corel e Axel, quase que simultaneamente colocaram as
mãos sobre o ombro da amiga num gesto de solidariedade.
— Mais uma vez digo, sinto muito, Carol — manifestou-se Helena.
— Mas temos que ser forte neste momento para sermos capazes de
raciocinar melhor para agir melhor.
Caroline meneou a cabeça, como se dissesse: está bem.
O agente olhou para seu bloco de anotações e sua mente ocupou-se
subitamente com afirmações e questões indefinidas sobre aquele caso. A
questão de a rodovia Zero-Meia-Cinco estar à onze quilômetros da
rodovia Três, reforçava ainda mais a possibilidade de que os dois
homens invasores da residência dos Kruller eram, irrefutavelmente, os
fugitivos suspeitos de assassinar Caio. Mas tinha o fato de eles terem
voltado para Melmar. Por quê? Perguntou-se. Deveriam saber que logo, toda
força policial estaria ao encalço deles. Por que arriscar, então? Qual o motivo
real para retornarem à cidade? Proteção? Prestação de contas? Aquilo fazia
Axel refletir e notar que todo aquele quebra-cabeças ligava-se a Oliver e
Selton. Por que levá-los pela rodovia Três ao invés de ir direto para a
central? Selton não poderia mais responder àquela pergunta. Restava,
então, Oliver, que estava também em algum lugar lá fora. Teria que
imprensá-lo contra a parede. Não seria fácil, mas era assim que teria que
ser feito. Devia isso a Pablo e ao caso. A pergunta estava entalada na
garganta de Axel e aquilo o incomodava, e muito. Por isso, teria que
colocá-la para fora o mais rápido possível. Então, teria que procurar o
policial Oliver com a mesma urgência.
Caroline estava falando:
— Não gostaria de ver a fita da reportagem de Helena com o Sr.
Kruller? Pode existir algo que possa nos ajudar ainda mais, e…
Axel interrompeu-a.
— Acho que isso basta por enquanto — opinou. — Vamos agir por
etapas. Isso já é um grande começo e é por aqui que vamos iniciar a

190
Transformação - Naasom A. Sousa

temporada de caça à Quadrilha Vip — com um sorriso, levantou-se,


colocou o seu bloco de anotações e a caneta de volta no bolso do casaco.
— Já está indo? — lamentou Helena Corel.
— Infelizmente sim. Irei começar com o telefone dos Kruller. Vou
visitar meu amigo e ver o que posso encontrar de importante.
— Então, posso te acompanhar até a garagem? — disse Caroline. —
Vou ao NR visitar… — ela se deu conta do que iria falar, então
emendou: — visitar um colega que está internado lá, e… vou fazer os
últimos acertos para o enterro de Pablo. — baixou a cabeça e suspirou
amargamente.
Prontamente, Axel respondeu:
— Claro, vamos.
— Sobre o colega hospitalizado… — disse Helena — eu o conheço?
— Oh… não! Você não o conhece, não!
Percebendo a encrenca que Caroline quase se enfiou e seu
nervosismo por causa da mentira, Axel pegou na mão da repórter e
puxou-se levemente.
— Vamos então? — disse, consultando o relógio em seu pulso. —
Meu dia está repleto de compromissos, e… não posso perder um minuto
sequer.
Caroline sorriu desconsertada para Axel, pegou sua bolsa e acenou
para Helena Corel.
— Até mais, Helena — despediu-se.
Os dois mergulharam outra vez no mar de funcionários que
tentavam adejar para lá e para cá — recolhendo materiais de
reportagens, atendendo e enviando telefonemas, mandando mensagens
via fax e demais meios de comunicação, e produzindo as informações do
dia —, até que chegaram ao corredor, entraram no elevador e sumiram
da vista de Helena Corel.

&&&

O cheiro de graxa e ferrugem impregnava toda a sala de peças.


Haviam peças automotivas por todos os lados, mas muito bem
organizadas — dentro de caixas de madeira, empilhadas em inúmeras
estantes espalhadas por todo o quarto. Um motor inteiro repousava
inerte sobre uma velha mesa de metal perto da porta. Encontrava-se sujo
de óleo e graxa e aparentava estar em perfeitas condições de uso. Uma
lâmpada pendurada no teto concedia a luminosidade necessária para o

191
Transformação - Naasom A. Sousa

reconhecimento de toda área a sua volta e fazer a identificação de onde


se encontrava.
Sentado no chão ao lado de uma pilha de canos de escapamentos,
era exatamente onde se encontrava. Alan estava exausto e agora que
tomava consciência disso. Tudo que ocorrera na madrugada fôra
excessivamente perigoso, na verdade mortal. Sentia-se grato ao Senhor
pelo livramento e pela proteção infalível que lhe dera até ali. Alan
pensou na oração que fizera a uma hora antes: pelos louvores,
agradecimentos e petições emocionados e sinceros, onde a maioria delas
eram relacionados a Melina e seus filhos.
Pôs-se a pensar em sua família; o começo de tudo.

&&&

Foi a primeira vez na vida que entrou em uma igreja evangélica. Na


época, tinha apenas vinte e três anos. A família Salazar o havia
convidado.
Ah! A família Salazar… pensou emocionado, como poderia existir
pessoas com o coração tão ligado a Deus no mundo como eles? Que Deus os
abençoe.
Tudo foi tão novo para ele quanto difícil. Parecia que todos ali
sabiam quem era ele; o que fizera. Isso o assustava de forma
avassaladora, tanto que o ar parecia não chegar até seus pulmões.
Tentou então não encarar as pessoas por quem teria que passar até
chegar ao banco onde os Salazar haveriam de sentar. Ancelmo Salazar o
guiava pelo braço. Sempre sorridente, cumprimentava as pessoas já
acomodadas nos firmes bancos de madeira-de-lei espalhados em fileiras
pelo salão. Com certo nervosismo, Alan reservava-se a olhar para o
chão.
Pareceu ter passado uma eternidade até chegarem à terceira fileira
de bancos do templo onde a Sra. Salazar, Augusto, o filho do casal e
Leandra, a caçula de apenas oito anos, estavam sentados. Leandra se
abraçava fortemente à mãe ao olhar nos olhos de Alan, que, por sua vez,
não tinha coragem de fitá-la fixamente. Zilma Salazar dizia à filha
assustada:
— Não fique com medo, minha querida. Jesus está aqui.
Todavia, aquelas palavras maravilhosas pareciam não fazerem o
efeito desejado, pois a pequenina Leandra apertava ainda mais a mãe,
sentindo a presença de Alan, sentado no mesmo banco onde estava. O

192
Transformação - Naasom A. Sousa

Sr. Salazar não se abalava com a reação de repulsa da filha. Com certeza,
o Senhor já o adiantava o que aconteceria naquela noite.
O culto começou. Houveram louvores, testemunhos, orações,
algumas palavras de entusiasmo dos fiéis. No final, a mensagem foi
pregada fluentemente pelo pastor da igreja. Por fim, o apelo foi feito.
Alan, não suportando mais a chama que ardia em seu peito, correu ao
encontro do pastor e disse querer aceitar a Jesus como seu salvador e
deixar toda a sua vida de promiscuidades para trás.
O pastor orou por Alan e por algumas outras pessoas que também
tomaram a decisão de seguir a Cristo. Ao termino da oração, Alan foi
surpreendido por Leandra que correu até ele e o abraçou. Não
acreditando no que acontecia ele chorou, mas seu choro não era de
tristeza. A alegria se multiplicou quando a pequena menina disse entre
lágrimas:
— Eu não tenho mais medo de você, porque você aceitou a Jesus e
Ele te transformou.
Aquela foi uma transformação que Alan jamais esqueceu e jamais
esquecerá.
Os braços pequeninos de Leandra ainda estavam ao redor de Alan
quando os demais membros da família de aproximaram e o abraçaram
com o mesmo entusiasmo e emoção. O sorriso nos lábios do novo
homem não se fechava e isso era-lhe algo que não conseguiria explicar.
Quando enfim Ancelmo afrouxou o abraço e o largou,
surpreendentemente uma jovem de rosto fino, olhos penetrantes e
cabelos lisos e castanhos se aproximou, pegou-lhe pela mão e de igual
modo envolveu-o num abraço apertado.
— A paz do Senhor — disse ela em tom suave. — Que Jesus o
abençoe e te faça um pescador de almas.
As lágrimas correram novamente dos olhos de Alan e aquelas
palavras ficaram gravadas no seu coração. Ao chegar em seu quarto, ao
dormir, constatou que a imagem da jovem da mesma forma ficou
marcada dentro de seu peito.
Alguns meses de visíveis mudanças se passaram e Alan enfim foi
batizado; primeiro nas águas, depois no Espírito Santo. O seu ministério
como pregador crescia a cada dia, desde então, assim como também o
seu amor pela jovem. Ele bem já sabia o seu nome e a conhecia das vezes
que ia à igreja. Melina Dários era a jovem por quem seu coração batia
mais forte.

193
Transformação - Naasom A. Sousa

Três meses mais se passaram, quando finalmente ele buscou


coragem e se declarou para Melina. No mesmo instante obteve uma
resposta positiva:
— Desde quando você aceitou a Jesus naquela noite, meus olhos só
enxergaram os seus… Certamente o Senhor tem algo para nossas vidas.
Alan sorriu de contentamento e tornou-se sério antes de declarar:
— Mas… tenho uma coisa para lhe revelar. E… depois do que
ouvir, aí sim, quero saber se aceita assumir um compromisso comigo.
Melina escutou com espantosa tranqüilidade tudo o que o outro
relatou. Quando ele terminou, ela anuiu, persistentemente:
— Agora tenho mais certeza ainda que Deus tem um plano para
nós, pois me tem confiado uma missão especial: cuidar de você e… dos
nossos futuros filhos.
Emocionado, Alan chorou novamente e abraçou-a como da
primeira vez.
Casaram-se um ano depois e foram morar numa casa que o pai de
Melina havia lhes dado de presente de casamento.
Jaime veio um ano e meio após o matrimônio e foi recebido com
festa pela família, assim como foi também motivo de alegria plena o
nascimento de Jair, que coincidiu com a promoção de Alan a diácono da
igreja. Por fim, nasceu Jéssica, forte e linda como a mãe.
Alan se lembrou do primeiro choro de cada um deles ao nascer.
Fôra os sons mais maravilhosos que ouvira até então. Quase não
conseguira controlar suas emoções diante dos “berrinhos” de seus filhos.
Jaime chorara um choro contido, abafado, como que apenas apara
anunciar: Estou aqui, tudo bem. Jair não chorara ao sair para a vida, mas o
médico o fez manifestar sua indignação de sair do útero quentinho de
sua mãe com uma palmadinha em suas pequeninas nádegas rosadas.
Jéssica fôra a compensação. Chorara tanto que Alan ficara com medo de
que ela pudesse estar sentindo algo. Alguma dor excessiva, talvez. Mas
não era nada de mais, apenas um mimo que até hoje manifestava.
Família maravilhosa…

&&&

Os pensamentos de Alan Xavier voltaram ao presente, à sala de


peças do desmanche de Nick Gradinno. Respirou fundo e fechou os
olhos. Queria estar junto de Melina e das crianças, no conchego
inigualável da família.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Ajoelhou-se novamente. Tinha uma missão a realizar e teria que ser


forte e confiante acima de tudo. Tornou dizer a si mesmo que sua família
estava em ótimas mãos: nas mãos do Rei dos reis; Senhor dos senhores.
Julgou que estaria da mesma forma à medida que a sua confiança,
disponibilidade e principalmente a sua aliança com Deus continuasse
arraigada, inabalável.
Orou para se preservar assim.
Estava certo de que um risco maior aproximava-se, implacável.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 16

A Companhia Telefônica de Melmar (MELMARTEL), ficava na rua


Sheldon Cordeiro, à doze quarteirões do edifício do Canal Sete. Era
formada por dois pequenos prédios de dois andares, expostos ao tempo
e que pareciam negligenciados. Três hastes suspendidas na frente do
estabelecimento exibiam três bandeiras — a do país, a do estado e a da
companhia, respectivamente —, que esvoaçavam ao vento da tarde fria.
Axel se sentia um tanto deprimido por Caroline. Deixara-a na
garagem com olhos tristes e inexpressivos. Sabia que não parava de
pensar em Pablo e isso a deixava cada vez mais para baixo. Sentiu
vontade de dizer-lhe alguma coisa reconfortante, mas o tempo lhe era
importante e curto, então achara melhor resolver o caso sobre o
telefonema na casa dos Kruller.
Ele entrou pelas portas de vidro e caminhou até uma jovem atraente
de uniforme cor-de-vinho, que se sentava por detrás de uma mesa.
— Por favor, eu queria falar com Alberto Linhares. Ele trabalha na
sala de pesquisa.
A jovem sorriu, polidamente.
— Senhor… — ela olhou o nome de Axel em seu casaco. — Brendel,
pode subir por ali — disse, apontando para uma escadaria atrás de Axel
—, e então entrar na terceira porta à esquerda. Há uma placa indicando.
— Obrigado — agradeceu Axel, distanciando-se.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Dirigiu-se à escadaria e subiu apressadamente de dois em dois


degraus. Ao chegar ao último degrau, não perdeu tempo a olhar a
pequena placa acima de sua cabeça indicando as respectivas salas
espalhadas pelo corredor, encaminhou-se diretamente para a terceira
porta à esquerda.
Bateu na porta antes de entrar.
Havia várias fileiras de escrivaninhas uma ao lado da outra —
separadas apenas por compensados brancos com bordas pretas — com
um computador sobre cada uma e diversos fichários e blocos de
anotações amarelos. Mais de uma dúzia de funcionários sentavam-se a
elas, trabalhando freneticamente para mostrar serviço e receber alguma
gratificação por isso.
Axel passou por algumas fileiras e nem mesmo era notado pelos
concentrados funcionários, martelando os dedos nas teclas de seus
computadores. Ele avistou Alberto Linhares na quarta fila, sentado à sua
mesa com os olhos vidrados na tela do seu hardware.
— Como vai, Alberto? — saldou Axel, por trás de seu amigo
franzino, com óculos de aros grossos colado ao rosto, cara sugada e
feição de CDF, que parecia engrenado nas teclas do micro.
Linhares virou-se com o olhar perplexo.
— Não acredito! Axel The Kid Brendel, em pessoa? Que surpresa!
Axel sorriu:
— Surpresa por quê? Como dizem, quem é vivo sempre aparece.
— Aparece que nada. Você é uma prova disso! — desdenhou
Alberto, meneando a cabeça. — Pensei que nunca mais voltaria a te ver.
Primeiro você salva a minha vida e depois me abandona como se nada
tivesse acontecido.
O policial foi abraçado calorosamente pelo operador de
computador. Axel ainda se lembrava bem da cena do passado em que
Alberto estivera envolvido. Fôra mais ou menos há dois anos atrás.

&&&

Axel havia ficado de plantão naquela noite, e esfregava os olhos


para que o sono não o arrebatasse. Bruno Gingal — seu parceiro na
ocasião — estava ao volante do carro-patrulha, atento, esquadrinhando
toda a área do perímetro por onde passavam. Axel fechou os olhos, a
consciência ia desvanecendo. Foi quando um corpo, aparentemente
jovem, saiu voando por uma janela à dois quarteirões à frente, fazendo o
vidro estilhaçar e cair em pequenas partículas junto a ele. O som ecoou

197
Transformação - Naasom A. Sousa

até a viatura e Axel arregalou os olhos, assustado com o barulho


estridente no mesmo instante em que Bruno acelerou o carro.
Viram quando dois homens saltaram pela mesma janela, de onde
antes o corpo havia sido atirado, e um deles sacou uma arma. Bruno
Gingal acionou a sirene, que chegou aos ouvidos dos homens, desviando
sua atenção. O homem desarmado também tirou um revólver de sua
jaqueta e desferiu um tiro contra a viatura, quebrando o pára-brisa. Axel
olhou para Bruno, certificando-se de que a bala não o tinha atingindo.
Colocou meio corpo para fora pela janela do veículo e atirou contra o
homem com o revolver em punho. O homem caiu no mesmo instante
com uma mancha vermelha no peito.
O homem que havia sacado a arma primeiro viu-se atordoado.
Atirou contra os policiais, mas as balas nem mesmo acertou o carro. Axel
percebeu que o homem tremia, e concluiu que ele estava sob efeito de
drogas.
Agora, o fora da lei se viu acuado, então se abaixou e ergueu-se
novamente, trazendo consigo o jovem que tinha sido jogado pela janela
momentos antes, que ainda se mexia. O homem encostou a arma na
têmpora do seu refém.
Bruno parou o carro transversalmente e saíram por uma única
porta, ficando por detrás do veículo que serviria como proteção.
— Aqui é a polícia! — gritou Axel. — Largue a arma e não sairá
ferido!
O homem balançou a cabeça, indignado.
— Largue a droga da arma você, se não estouro os miolos dele! –
arrematou o drogado.
A mão do homem estava trêmula e, com toda a tensão, ele seria
capaz de apertar o gatilho inconscientemente.
Bruno Gingal olhou para o seu parceiro.
— Kamikaze.
Os olhos de Axel encontraram os de Bruno, já sabendo o que a
palavra dita significava.
— Tem certeza? — indagou Axel.
— Não vejo outra alternativa.
Axel assentiu com a cabeça e os dois policiais começaram a dar a
volta na viatura, cada um por um lado, e seguiram em direção ao
homem armado.
— Não se aproximem! Eu estou avisando! — advertiu o trêmulo
homem.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Está tudo bem — disse Bruno. — Largue a arma e tudo ficará em


ordem.
Eles caminharam cautelosamente, esperando qualquer ação, o
inesperado.
— Fiquem onde estão! — berrou o homem. Apontou a arma na
direção de Bruno e puxou o gatilho. Houve um estampido e o policial
caiu para trás, desvanecendo num grito de dor. Axel tentou permanecer
calmo e concentrado no que faria a seguir. Mirou e atirou. A bala passou
à quatro centímetros do pescoço do jovem refém e acertou em cheio a
clavícula do homem armado, que caiu soltando a arma e também o
jovem.
Axel correu até eles e pegou a arma do chão. Voltou-se para o
rapaz, de olho nos corpos inertes dos homens, outrora armados. Fitou o
jovem com vários ferimentos no rosto.
— Ei, pode me ouvir? — tentou.
O jovem movimentou os olhos, ainda que por baixo das pálpebras
cerradas. Tossiu e, por fim, com a respiração ofegante, balbuciou:
— Posso — tentou dizer mais alguma coisa. Sua voz era um
sussurro. — Não… não quero mais viver assim… Por favor, ajude-me…
Não quero morrer, mas… mas não posso mais viver deste jeito.
Axel tentou um sorriso.
— Não se preocupe — disse serenamente —, vou ajudá-lo.
Neste instante, Bruno Gingal chegou por trás de Axel, conferindo
com o dedo o furo no seu uniforme e o projétil da bala fincado no colete
à prova de balas.
— Puxa! Você nem mesmo deu uma olhada em mim, hein? —
reclamou com ar de indignação.
— Vi que você não sangrou, então concluí que o colete o tinha
salvado. Agora pare de reclamar e chame rápido uma ambulância e o
auxílio de uma viatura.
Assim foi feito.
Dois dias depois, no quarto do hospital, Axel visitava o jovem.
— Lembra-se de mim?
O jovem tremia sentado no leito.
— Lembro.
— Qual é o seu nome?
— Alberto. Alberto Linhares. Quando irei sair daqui? Eu já sinto
que estou melhor.
— Calma. Você já está de alta.

199
Transformação - Naasom A. Sousa

Alberto não fez qualquer sinal de alegria ou comemoração, sua


expressão continuou inexpressiva. Disse:
— Ótimo, não agüento mais este lugar.
Ele levantou-se da cama de metal, mas Axel segurou-o pelos
ombros e o fez outra vez sentar.
— Há dois dias atrás, você me pediu para ajudá-lo, lembra-se?
— Não — mentiu Alberto, cinicamente —, mas você pode me
ajudar agora me deixando ir embora. — levantou-se, mas novamente
Axel o fez sentar. — O que há com você? Eu só quero dar o fora daqui!
Isso é contra a lei?
Axel respirou fundo, fechou os olhos e pediu uma ajuda superior,
silenciosamente.
— Não, cair fora daqui não é contra a lei — disse. — Mas, sair daqui
e entupir-se de drogas é. — Alberto nada falou para se defender. — Você
não quer admitir que me pediu ajuda porque quer desesperadamente
meter alguma droga dentro de si. Não se lembra que declarou não
querer mais viver do jeito que vive? Pois vou refrescar sua memória.
Conversei com um dos seus “amigos”, e ele disse que você devia
dinheiro para eles. Um débito das drogas. Eles iriam matá-lo, Alberto.
Não eram seus amigos. Você é apenas mais um drogado que vale menos
do que as drogas que consome. Por isso me pediu para ajudá-lo. não
quer mais viver assim. Uma parte de você quer a droga, mas a sua
consciência, o seu lado humano e racional grita: Não quero mais viver
assim! Há dois dias atrás eu disse a você que o ajudaria, e estou aqui
para isso.
Axel observou que, ao acabar de falar, Alberto estava aos prantos.
Sua voz era engrolada quando disse:
— Ajude-me! Eu não tenho forças! Por favor, ajude-me!
Axel levou Alberto a uma clínica de tratamento para viciados em
tóxicos, onde o internou. Ia visitá-lo duas vezes por semana, e essa
rotina prolongou-se por um ano e meio, onde pôde conhecer Alberto
Linhares a fundo. Soube que seus pais haviam morrido e então morara
nas ruas até então. Experimentara as drogas e se viciou.
Depois que Alberto foi liberado da clínica, totalmente recuperado,
Axel levou-o para a casa de um amigo, que concordou em acolhê-lo. O
policial o assegurou que era por um breve período.
Uma semana depois, Axel visitou o ex-drogado e comunicou:
— Tenho uma notícia para você.
— Diga logo o que é! — pediu Alberto, quase uma súplica.

200
Transformação - Naasom A. Sousa

Axel sorriu. Também na clínica, soube da intimidade que Alberto


tinha com computadores, e isso serviu ainda mais em sua ajuda.
— Você está empregado na MELMARTEL. Vai trabalhar nos
computadores da ala de pesquisas.
E foi assim que Alberto construiu um novo futuro para si.

&&&

— Mas a que devo esta visita super inesperada, porém desejada? —


a pergunta de Alberto interrompeu as lembranças de Axel.
— O que foi que você disse?
— Perguntei a que devo essa bendita visita.
Axel sorriu, desconcertado.
— Desculpe minha distração, Linhares, é que venho estado muito
ocupado ultimamente, principalmente agora que estou num caso
especial, mas isso é segredo.
— Eu sei, não precisa me dizer nada.
O agente tocou o ombro do jovem rapaz.
— Estou precisando de uma pequena ajuda sua. É por isso que
estou aqui.
Alberto deu de ombros.
— O que você desejar, meu caro. Se não se lembra, devo a minha
vida a você.
Axel meneou a cabeça.
— Deixe disso, Linhares. Fiz a minha obrigação. Mas vamos parar
com isso, está bem? Desse jeito você me deixará constrangido.
— Está bem — murmurou Alberto.
— Bem, quero que você verifique no computador os números
discados por um certo telefone. Pode fazer isso?
— Claro que sim. Sei que é contra a lei, mas… é a lei que está
pedindo, não é? — Axel não se pronunciou. Alberto levantou o
sobrolho, estalou os dedos e levou-os ao teclado. — qual o nome do
proprietário?
— Edson Kruller. Quero apenas os telefonemas dados hoje.
— Kruller, Edson — repetiu Alberto, martelando as teclas, fazendo
aparecer instantaneamente as letras no monitor. Alguns segundos
depois, apareceu a palavra: “Aguarde…” Os dois esperaram, e então
surgiu o número do telefone de Edson Kruller, o endereço da residência,
a data da compra da linha, da instalação e a observação de uma conta do
mês atrasada. Alberto apertou mais algumas teclas e o programa pediu

201
Transformação - Naasom A. Sousa

que aguardasse mais um instante. — Isso tem alguma coisa a ver com o
seu caso?
Axel hesitou.
— Humm… mais ou menos.
A tela do monitor mudou e Alberto observou outro relatório.
— Muito bem — Linhares passou o dedo pela tela, esquadrinhando
todas as letras e números, absorvendo as informações. Axel pôde
observar que havia horários a um canto da tela e alguns números ao
lado. Ele arriscou:
— Pode verificar para mim o telefonema dado mais ou menos das
três às quatro horas de hoje? É exatamente este que estou procurando.
Alberto Linhares regulou seus óculos no rosto e averiguou o
relatório do computador. Voltou-se para o policial com ar cético.
— Você tem certeza que esse é o horário certo?
— Tenho. A fonte que me informou isso é da maior confiança —
confirmou Axel. — Por quê?
Linhares apontou para o monitor ao declarar:
— Porque, segundo o computador, não foi dado nenhum
telefonema nesse horário. Houve um telefonema sim. O primeiro dado
hoje foi exatamente às quatro horas e quinze minutos.
Axel encontrou-se concentrado.
— Pode verificar o número?
— Claro — alguns dígitos rápidos. — 2581-1410. Mas este não é…
— É sim — interrompeu Axel com o olhar distante —, é o telefone
da central. Foi o horário em que o casal chamou a polícia.
Neste momento, um vulto apareceu atrás de Alberto e Axel. Era um
homem robusto, de feição gentil e olhos salientes.
— Já estou indo, Linhares — informou ele.
Alberto voltou-se para ele, olhando para o relógio de pulso.
— Humm… é, já está na hora — olhou para Axel. — Mas acho que
ficarei mais um pouco com o Sr. policial aqui, Hector. O compromisso
vai ter que ser adiado. Sinto muito.
Hector fez uma expressão de desapontamento.
— Está tudo bem, eu torno a marcar com elas um outro dia.
— Faça isso e eu irei da próxima vez. Agora não dá. É importante
para eu ajudar este homem aqui. — disse Alberto, apontando para Axel.
— Tudo bem, cara. Então, até mais — Hector afastou-se, deixando-
os novamente a sós.
Os dois homens voltaram-se outra vez para o computador.
— Quem é ele?

202
Transformação - Naasom A. Sousa

— Hector Góes. Ele trabalha ali — Alberto mostrou a segunda


escrivaninha depois da que estava, na mesma fila. — Somos amigos. Ele
marcou com duas moças um encontro para hoje. Mas não me importo de
perder essa e ajudar você no que precisar.
Axel abaixou a cabeça, sem palavras.
— Ei, amigo! Desse jeito, quem irá fiar constrangido serei eu.
O agente sorriu e fitou Alberto.
— Tudo bem. Valeu.
Alberto Linhares apontou para o monitor e indagou:
— Mas voltando para cá… O que você acha que aconteceu aqui?
Axel deu de ombros, meneando a cabeça.
— Não sei… Acho que alguma coisa não está certa aqui. Não há
possibilidade de o computador está errado ou simplesmente ocultando
alguma informação?
— Como?
Axel tentou ser mais Claro:
— Quero dizer… Não pode existir outro meio para verificar esse
horário? Tem que estar em algum lugar!
Alberto balançou a cabeça negativamente.
— Lamento, mas para chegar a essa informação este é o único
caminho. Se não está aqui, não está em nenhum outro lugar.
Axel pôs a mão no queixo, fitando a brilhante tela como se
perguntasse: Aonde foi parar esse telefonema que estou procurando, Hein, Sr.
computador? Concentrou-se, procurando uma fresta para que pudesse
meter a mão e apalpar algo de concreto. Fechou os olhos por um
momento, e então a fresta se abriu.
— Há alguma possibilidade de alguém ter alterado essa
informação?
Alberto não pensou muito para responder:
— Um hacker talvez poderia fazer isso, mas provavelmente o
detectaríamos, não sobrando muito tempo para que ele remexesse nos
arquivos.
— E alguém daqui? Poderia alguém que trabalha na MELMARTEL
fazer com que essa informação fosse deturpada?
— Alguém daqui? — a voz de Alberto estava impregnada de
espanto. — Não, não acho que alguém daqui faria algo assim.
Axel suspirou, desiludido.
— Certo. Então, acho que isso é tudo.
— Se precisar de mais alguma coisa, pode vir aqui que estarei à
disposição.

203
Transformação - Naasom A. Sousa

— Obrigado, Linhares. Eu entro em contato com você caso precise


de algo mais.
Axel se ergueu sorrindo e apertou a mão de Alberto, que disse:
— Vê se não desaparece outra vez.
— Pode deixar — disse o agente policial, caminhando para o
elevador.

&&&

Como podia trabalhar para alguém que nem mesmo conhecia?


Perguntava-se Hector Góes. Se descobrissem o que vinha fazendo, sua
vida estaria acabada! Seria literalmente expulso do seu emprego e
certamente preso. Ele tentou afastar esses pensamentos pessimistas. O
dinheiro era bom o bastante para que viesse a fazer o que fazia. Fôra um
trabalho fácil que se podia dizer que era a sua área. Bastou apenas
receber o telefonema do contato dizendo o que tinha que ser feito. Edson
Kruller. Nunca tinha ouvido falar. As instruções eram para que apagasse
um telefonema. O possível horário foi-lhe dado, assim como o número
que fôra discado. Era tudo o que precisava saber. Foi um trabalho fácil.
Encontrava-se agora num telefone público, distante da companhia
telefônica.
— Quem está falando? — inquiriu a voz do outro lado da linha.
— Hector Góes. Quero falar com Lucas.
Góes conscientizou-se, enquanto a pessoa do outro lado da linha
deixou o telefone para chamar seu subchefe, que tudo o que sabia sobre
o homem para quem trabalhava era que ele era alguém poderoso que
sabia gratificar muito bem aqueles que colaboravam, mas também sabia
lhe dar, mais do que ninguém, com aqueles que não cooperassem e que
falassem demais. Hector Góes sabia muito bem o que significava a
palavra “lhe dar” para não querer experimentar isso na prática.
Lembrava-se que Lucas o procurara àlguns meses atrás, através de
um telefonema.

&&&

— Hector Góes?
— Sim, quem fala?
— Meu nome não importa no momento, Sr. Góes. O que importa é
que tenho para você a oportunidade de sua vida.
Isso soara como música aos ouvidos de Hector, mas ele hesitara.

204
Transformação - Naasom A. Sousa

— Do que você está falando?


— Me encontre no restaurante Quaid, esta noite — dissera Lucas,
que desligara em seguida.
Góes ficara olhando para o fone mudo em sua mão, especulando se
aquilo teria sido um trote. Uma pequena parte da conversa martelava
em sua mente: Tenho para você a oportunidade da sua vida. Góes
sorrira, cético, e concluíra que certamente se tratara de um trote. Quem
se importaria em dar uma oportunidade de uma vida a ele? Afundou
numa poltrona na sala e fechou os olhos. Abriu-os no instante seguinte
com o pensamento: Mas… e se não for um trote?
Hector Góes sempre fôra o queridinho da família e não se
orgulhava nem um pouco disto. Seus pais eram pobres, assim como seus
avós e bisavós tinham sido. Góes odiava-os por isso. Seu pai não tinha
uma mínima ambição na vida e o mesmo acontecia com sua mãe e seus
dois irmãos mais velhos. Todos moravam sobre o mesmo teto — uma
casinha simples — e todos com empregos miseráveis com salários
miseráveis e acomodavam-se com isso. Ele concluiu que definitivamente
não fazia parte do mundo dos Góes. Arranjara o emprego na companhia
telefônica de Melmar e mudara-se para um pequeno apartamento no
subúrbio da cidade. Construiria o seu próprio mundo longe daqueles
que se denominavam sua família, um mundo onde não haveria lugar
para acomodações, onde a ambição seria o trampolim para a glória.
Góes iria esperar e, na primeira oportunidade, alicerçaria seus planos
para a construção do seu império.
Naquele momento a oportunidade estava à sua frente, na forma de
um telefone.
Góes erguera-se da poltrona e encaminhara-se para o seu quarto.
Meia hora depois, estava a caminho do restaurante Quaid.
Trajara uma camisa de seda marrom e uma calça de linho preta,
com sapatos de camurça calçando os pés. Se quem iria encontrá-lo fosse
a pessoa a empurrar-lhe para a vida tão desejada, teria que se apresentar
de maneira polida, com traços marcantes, pensara ele.
Ao adentrar as portas de vidro automáticas, Hector Góes fôra logo
abordado por um homem de terno escuro e gravata borboleta, que
sorrira e informara:
— Estão esperando-o, Sr. Góes. Siga-me, por favor.
A típica decoração do Quaid não chamara nenhum pouco a atenção
de Góes. Sua mente estava impregnada de pensamentos tensos. Como
poderia, um homem que nunca tinha visto antes, saber o seu nome? Seguira o

205
Transformação - Naasom A. Sousa

homem de terno, que o levara a uma mesa reservada no canto do


recinto, um tanto escuro na opinião de Góes.
Havia três homens à mesa. Um deles indicara-lhe uma estofada
poltrona.
— Sente-se, Sr. Góes. Estávamos à sua espera.
Góes reconhecera a voz de imediato: a mesma que ouvira ao
telefone. Forçara um sorriso e sentara-se.
— Meu nome é Lucas, Sr. Góes, e irei direto ao assunto — ele
apontara para os dois homens ao seu lado. — Estes são meus amigos,
que juntos comigo estão interessados em seus serviços.
— Meus serviços? — a voz de Hector era de incredulidade.
Lucas meneara afirmativamente a cabeça.
— Sabemos que você trabalha na ala de pesquisas da MELMARTEL,
que lida com os computadores da companhia, e é exatamente desses
serviços que necessitamos. Garanto que você será muito bem gratificado
por todo o trabalho que fizer a nosso favor. Foi isso o que denominei
pelo telefone como a oportunidade da sua vida, pois não encontrará
outra proposta tão pomposa a esse nível, contando que o que você fará
será coisa simples levando em conta a sua experiência.
Góes hesitara:
— Mas para quem exatamente irei estar trabalhando? Quero dizer…
não conheço vocês… eu…
— Somos parte de uma organização secreta, Sr. Góes. Por enquanto
é tudo o que o senhor deve saber.
— E… se eu recusar?
Lucas sorrira:
— Sr. Góes… desculpe-me, mas acho que não seria tão estúpido a
esse ponto. Como já disse, para o senhor será um trabalho muito fácil.
Góes não soubera, mas a equipe de Lucas havia levantado sua ficha
completa, desde sua infância até aquele momento. Conheciam sua vida
como se fosse um simples quadro exposto numa sala, por onde todos
passavam, mas não davam a mínima para ele, pois já tinham todos os
traços de sua pintura decorados na mente. Estavam cientes de sua
insatisfatória vida e sua expectativa de uma guinada ou impulso para
uma outra, ao seu ver, absolutamente cabível.
Sentira-se tentado a perguntar por que o tinham escolhido em meio
a todos os funcionários da ala, mas permanecera em silêncio. Receara
que aqueles homens poderiam não gostar de muitas perguntas, e pior,
que acabassem desistindo de querer os seus préstimos. Fizera uma

206
Transformação - Naasom A. Sousa

expressão de quem estava lutando intimamente para tomar posição no


assunto, quando a decisão já estava tomada. Finalmente ele dissera:
— Tudo bem. O que exatamente os senhores querem que eu faça?
Com um sorriso no rosto, Lucas levantara uma taça com
champanhe e entregara a Góes. Erguera uma taça própria, junto com os
demais homens à mesa.
— Por enquanto, Sr. Góes, só queremos realizar um brinde a esta
aliança e ao seu futuro.
Sim, ao meu futuro, repetira Hector Góes, silenciosamente em
pensamento.

&&&

A voz voltou à linha:


— Lucas falando. O que deseja, Góes?
Hector respirou fundo e então declarou:
— Fiz o que você mandou. Tudo ocorreu bem.
— Apagou tudo?
Que droga! Já não falei que fiz o trabalho?!
— Sim.
— Ótimo. Isso ajudará na sua gratificação.
Góes sentiu uma pontada de satisfação, então se lembrou de mais
um detalhe:
— Lucas, um policial apareceu na ala de pesquisas a pouco e, pelo
que pude perceber, ele estava à procura do seu telefone.
— E o que aconteceu?
— Nada. Eu já tinha apagado o telefonema.
— E você sabe qual é o nome do tal policial?
— Humm… Brendel. Axel Brendel.
Houve um instante de silêncio na linha.
— Muito bem — disse então Lucas —, fez um bom trabalho.
Continue assim e qualquer nova informação entre em contato comigo
novamente.
A linha ficou muda e mais uma vez Góes ficou olhando para o fone.
Só quero ver agora quanto vai ser o tamanho da minha gratificação,
miserável, murmurou por fim.

207
Transformação - Naasom A. Sousa

Capítulo 17

E stava sentada numa poltrona desconfortável, com os olhos fixos num


canto do quarto e a mente a vagar.
A respiração de Caroline era difícil. Fitava Pablo deitado sobre o
leito do hospital sem dar qualquer sinal de vida, a não ser pelas batidas
do seu coração marcadas pelo monitor cardiológico. Ficara uma hora de
olhos vidrados, esperando por qualquer variação dos batimentos, mas
isso não acontecera.
Fechou e suspirou profundamente. Levantou-se e caminhou até o
leito. Então pôde contemplar os traços do rosto do agente inconsciente e
sua expressão inanimada entre a meia luz que o abajur ao lado da cama
produzia.
Com as mãos trêmulas, tocou as de Pablo e também seus lábios,
como que esperando que viesse a se mexer naquele momento.
Baixou a cabeça como que se entregando à exaustão. Fechou os
olhos e comprimiu-os, tentando espantar o sono que há horas tentava
espantar. Foi então que ouviu um pequeno barulho vindo do corredor lá
fora. Para ser mais exato, era barulho de passadas. Alguém vinha
adejando pelo corredor vagarosamente. Ou seria cautelosamente?
Caroline ouviu as passadas se aproximarem do quarto, até que cessaram
ao lado da porta do cômodo. Ela abriu rapidamente os olhos e viu uma
sombra pelo vidro da porta. Quase que imediatamente os seus nervos

208
Transformação - Naasom A. Sousa

entraram em colapso e o suor fluiu de seus poros. A maçaneta começou


a ser girada, e então a porta foi sendo aberta lentamente.
Num flashe de luz pensou em Pablo e naqueles que queriam matá-
lo. Talvez, aquele seria o momento ideal para completarem o plano.
Era o fim, pensou estremecendo.

&&&

O carro patrulha foi estacionado à dois quarteirões da linda casa


amarela com jardim florido e grama viçosa que se localizava no meio do
quarteirão da rua 12 do conjunto Orquídea.
Axel parou em frente à porta de mogno da casa, olhou para o seu
relógio de pulso, constatando que eram exatas oito horas. Apertou a
campainha e esperou, até que uma bonita mulher loira, de olhos
castanhos e lábios carnudos abriu a porta, exibindo um largo sorriso.
— Estava à sua espera — disse ela, adiantando-se e abraçando-o.
Ele apertou-a contra o seu corpo e sussurrou:
— Posso mesmo acreditar nisso?
— Pode apostar que sim.
E os dois entraram na casa juntos.

&&&

Sandra Evans era uma mulher simplesmente deslumbrante. Bonita


e independente, era uma das mais bem sucedidas advogadas
criminalistas da cidade. Dotada de um corpo bronzeado e muito bem
torneado, construiu sua imagem profissional não às custas de sua beleza,
mas sim de seu esforço e trabalho, que, muitas vezes, tomaram-lhe
penosas noites de sono, muitas delas irrecuperáveis.
O primeiro encontro fôra num julgamento, num caso simples de
assassinato. O tribunal encontrava-se cheio, mas não lotado. O acusado
era um homem de pele clara, olhos negros intrigantes, de uma estatura
baixa e corpo forte. Tinha aparência oriental. A vítima havia sido uma
mulher executiva com quem mantinha há algum tempo um caso. O
motivo do crime: ciúme.
No testemunho do réu, fôra relatado pelo próprio, que havia
flagrado a vítima aos beijos e abraços com um outro homem. Partira
para tomar satisfações, mas acabara sendo humilhado pela amante e
pelo homem que a acompanhava. Segundo ele, isso o deixara muito
irritado, mas não ao ponto de fazer com que cometesse assassinato.

209
Transformação - Naasom A. Sousa

Isso foi sendo desmentido no decorrer do julgamento, e a cartada


final para que isso acontecesse foi dada com o testemunho de um — na
época — policial.
O tira negro e atlético sentou na cadeira das testemunhas e prestou
juramento com a mão direita sobre a bíblia.
O juiz, um homem de meia idade e de cabelos já um tanto grisalhos,
olhou para Sandra Evans e anunciou:
— A testemunha é da acusação.
A advogada levantou-se e caminhou até ficar bem próximo do
policial. Fitou-o por um momento e pediu:
— Diga audivelmente o seu nome completo e qual a sua patente
para que todos possam ouvir, por favor, policial.
— Pois não. Meu nome é Axel Brendel e sou um dos oficiais
encarregados de investigações criminalistas da cidade de Melmar.
— Para ser mais claro, o senhor é um detetive, não é mesmo?
— Isso. Pode se dizer que sim.
Sandra Evans meneou a cabeça, capitulando e fazendo uma busca
mental em suas anotações que estavam em cima de sua mesa, à dois
metros de onde estava.
— Detetive Brendel — continuou ela —, reconhece o réu Sr.
Maxuel? — apontou para o acusado.
— Sim, reconheço.
— Poderia dizer de onde?
— Eu o prendi mês passado sob acusação de assassinato.
— Humm-hum — Sandra aproximou-se dos jurados e olhou para
cada um deles e repetiu: — Sob acusação de assassinato. — pausou para
que a frase penetrasse em suas mentes. — Detetive… o acusado, Sr.
Maxuel, declara-se inocente da acusação. Eu gostaria de saber, e creio
que também todos os senhores jurados e os demais que aqui se
encontram, se o senhor concorda com a afirmação do réu.
O advogado de defesa levantou-se da cadeira num pulo.
— Protesto, meritíssimo…
O juiz levantou a mão imediatamente, não deixando que o
advogado continuasse. Focou o rosto de Sandra.
— Dra. Evans, reformule a pergunta. Trabalhamos aqui com provas
e não com o que uma testemunha acha ou deixa de achar.
— Perdão, meritíssimo. — voltou-se para Axel. — Detetive Brendel,
o senhor tem provas de que o réu é culpado, refutando sua declaração
de inocência?
Axel suspirou:

210
Transformação - Naasom A. Sousa

— Sim, tenho — respondeu.


— O senhor poderia nos quais provas são essas?
— Muito bem. Já mencionei que sou detetive, e um profissional
desta natureza busca provas concretas para formar uma acusação
formal, e isso foi feito por minha parte no caso do acusado Sr. Maxuel.
Sandra concordou com a cabeça.
— O senhor poderia relatar-nos quais foram os fatos apurados e
provas recolhidas que confirmam a culpa do Sr. Maxuel?
— Sim. Humm… — Axel olhou para o teto do recinto feito de alvas
placas de gesso, buscando a resposta requerida. — Como o próprio Sr.
Maxuel já disse, a vítima, Sta. Cardoso, era sua amante e, creio que não
levava muito a sério a palavra fidelidade. Ele encontrou-a com outro e
isso o deixou frustrado e deveras irritado. Isso, segundo testemunhas,
isto é, pessoas que trabalham em lojas e carrinhos de cachorro-quente
que ficam na praça onde aconteceu a discussão, isso ocorreu às quatro
da tarde. Depois de presenciar a cena nada agradável, o Sr. Maxuel fôra
tomar satisfações e acabara sendo humilhado. Dirigiu-se então para a
sua casa e lá resolveu que aquilo não deveria acabar daquele jeito. Ele
iria terminar por cima…
— Protesto! A testemunha não pode saber o que se passou no
íntimo do meu cliente! Não pode descrever seus sentimentos! — disse o
advogado de defesa em voz alta quando se levantou de sua cadeira num
segundo.
— Aceito. Detetive Brendel, o senhor tem a capacidade de ler
mentes? — indagou o juiz.
— Não, meritíssimo, mas…
— Nada de mas, detetive. Aqui não trabalhamos com suposições.
Que isso não se repita. — o juiz olhou para o escrivão. — Que as últimas
palavras da testemunha sejam retiradas dos altos. — voltou-se para
Sandra e fez sinal para que continuasse.
— O que mais foi apurado, detetive?
Axel inspirou profundamente antes de relatar:
— A vítima foi assassinada com cinco golpes de faca. Foi atingida
duas vezes na altura do peito, uma nos olhos, outra no pescoço e outra
na altura das costelas. Tudo isso aconteceu no apartamento da Sta.
Cardoso. Apuramos que o Sr. Maxuel abordou-a quando adentrava em
sua residência. Segundo testemunhas que residem no mesmo edifício
que a vítima, antes do crime, foram ouvido vozes alteradas do
apartamento da Sta. Cardoso: as dela e de um homem que parecia muito

211
Transformação - Naasom A. Sousa

descontrolado. Minutos depois, foram ouvido gritos, e então não foi


ouvido mais nada.
“O síndico do edifício foi quem encontrou a Sta. Cardoso morta em
seu apartamento. Mais precisamente em seu quarto, sobre sua própria
cama.
“Fomos em busca, então, dos homens com quem a Sta. Cardoso já
havia se relacionado. Enquanto isso, alguns outros policiais revistavam
todo o edifício em busca de alguma evidência que pudesse apontar o
acusado. Encontramos o Sr. Gerson Rezende, aquele com quem a vítima
estava quando foi flagrada pelo Sr. Maxuel, e constatamos que ele se
encontrava numa reunião de negócios no horário estipulado pela perícia
para o horário do crime. Encaminhamo-nos aos outros suspeitos e todos
tinham álibis. Concentramo-nos, então, no Sr. Maxuel e o interrogamos.
Ele dissera que estava com uma mulher na noite do assassinato. Fomos
em busca da mulher e isso foi confirmado.
— Então quais são os fatos que confirmam a culpa do Sr. Maxuel?
— quis saber Sandra Evans.
— Continuamos concentrados em todos os suspeitos, pois tínhamos
certeza de que o assassino estava relacionado com a Sta. Cardoso de
modo sentimental. Até que descobrimos que a mulher com quem o Sr.
Maxuel alegara ter passado a noite tinha ficha na polícia. Tratava-se de
uma prostituta.
O advogado de defesa ergueu-se.
— Protesto! O fato de a mulher ser uma garota de programa não
tem nada…
— Isso é parte fundamental do depoimento, meritíssimo! —
interrompeu Sandra.
— Negado — declarou o Juiz. — Continue, detetive Brendel.
Axel prosseguiu:
— Procuramos novamente a mulher, pressionamos e então ela nos
contou que o acusado pagou-a para que dissesse que havia passado a
noite do crime com ele. Pedimos a prisão preventiva do Sr. Maxuel, e foi
então que encontramos a arma do crime jogada à dois quarteirões do
edifício, num beco repleto de lixo e numa incrível coincidência ocorreu:
as digitais do Sr. Maxuel estavam nela.
Sandra ficou de frente para o júri e perguntou bem devagar, para
que a indagação penetrasse no consciente de cada um dos jurados.
— Acha mesmo que isso tenha sido coincidência, detetive?
— Está brincando? Claro que não!

212
Transformação - Naasom A. Sousa

A advogada, com expressão satisfeita ao observar a evidente


condenação no rosto de cada pessoa do júri, disse:
— Sem mais perguntas, meritíssimo — dirigiu-se até Axel, e com
voz suave e olhar insinuante, falou: — Obrigado pelo seu testemunho,
detetive Brendel.
Em seguida, Axel foi igualmente interrogado pelo advogado de
defesa que tentou reverter a má impressão deixada pelo testemunho,
mas nada adiantou.
A causa estava ganha.
O acusado foi sentenciado a cinqüenta anos de prisão naquele
mesmo dia.

&&&

Ao sair do tribunal, Axel dirigiu-se para sua viatura na garagem do


fórum. Inseriu a chave na tranca da porta do veículo, quando uma voz
feminina chamou-o. Virou-se e observou que Sandra Evans caminhava
ao seu encontro.
— Pelo que percebi, você é um ótimo detetive, Sr. Brendel —
elogiou a advogada.
— Não faço nada além do meu trabalho.
— Não posso me conter. Tenho que admitir que foi o seu
testemunho que condenou Rodrigo Maxuel.
— Ele se condenou quando cometeu o crime, Dra. Evans. Eu apenas
ajudei para que o criminoso pudesse pagar pelo seu crime.
Sandra balançou a cabeça num gesto de admiração:
— Sandra. Chame-me apenas Sandra — olhou para o distintivo
brilhante preso ao uniforme azul. — Irei dar um jantar em minha casa
hoje à noite para comemorar o ganho desta causa. Gostaria que fosse.
Axel observou no fundo dos olhos castanhos e contemplou o rosto
bronzeado que parecia liso como o de um bebê. Tinha que admitir,
aquela mulher era linda. Pensou em Tina e Leonardo. Tinha prometido
chegar cedo em casa para irem juntos a um restaurante. Não podia
deixá-los esperando.
— Tudo bem — disse. — Que horas vai ser?

&&&

213
Transformação - Naasom A. Sousa

Fôra o primeiro telefonema de uma série incontável; a primeira


mentira do gênero. Dissera que havia acontecido um assassinato em
uma boate no subúrbio. Teriam que cancelar a ida ao restaurante.
— Não podem mandar outra pessoa? — protestara Tina.
— Infelizmente não, querida — respondera Axel, num tom triste.
O que estou fazendo? Perguntou-se Axel. Estou mentindo para minha
esposa para jantar com pessoas estranhas!
— Leonardo irá ficar desapontado — informou Tina.
— Explique a ele por mim, está bem?
— Certo.
— Assim que eu puder, irei para junto de vocês, querida. Até mais
— disse o policial.
Final da ligação.

&&&

Axel tomara seu banho noturno na central de polícia e vestira um


uniforme limpo que mantinha em seu armário. Colocara uma colônia
francesa, passara rapidamente uma escova por seus cabelos crespos.
Resolvera o caso Rodrigo Maxuel como um detetive de competência e
iria ao jantar como tal.

&&&

Estacionou a viatura em frente à casa de Sandra Evans e notou que


não havia nenhum outro veículo parado o meio fio. Perguntou-se por
quê. Desceu do carro e dirigiu-se à porta da frente da bonita casa
amarela de grama viçosa e bem aparada. Apertou a campainha três
vezes e esperou. Ouvindo o barulho de um carro se aproximando,
calculou que seria algum convidado, mas o automóvel passou direto,
rua abaixo.
Levou o dedo de volta à campainha, porém, antes que pudesse
pressioná-la, a porta foi aberta lentamente e Axel pôde diferir as
silhuetas de Sandra na penumbra da sala.
— Que bom que veio — declarou ela. — Estava à sua espera.
Introduziu Axel na sala, que estava iluminada apenas por dois
pequenos abajures.
— Onde está todos os convidados? — indagou o detetive. — Todos
eles têm o costume de se atrasar?
Sandra sorriu. Era uma mulher obstinada.

214
Transformação - Naasom A. Sousa

— Que convidados? — ela franziu a testa, surpresa. — disse a você


que daria um jantar para comemorar, e lhe convidei. Não lhe falei nada
sobre convidados.
Axel enrubesceu. Tentou falar algo:
— Bem, eu… não sabia. Eu…
Sandra tornou a sorrir.
— Não se preocupe — tranqüilizou. — Eu disse que iria dar um
jantar e um jantar é o que teremos. — Começou a sair da sala e entrar em
outro cômodo da casa que parecia ainda mais escuro. Voltou-se para
Axel e chamou-o com o dedo.
Observando-a, Axel pôde notar que usava uma blusa de algodão
sem mangas, que ficava colada no corpo e uma saia escura — que não
dava para definir a cor por causa da escassez de luz no aposento — que
descia até os joelhos bem torneados. Pôde ver a sombra de Sandra parar
ao lado de uma mesa de jantar com um castiçal no centro dela que
suportava três velas acesas. Um banquete o esperava lá.
Dois pratos emborcados, ladeados por talheres reluzentes cor-de-
ouro e taças de cristal ocupavam cantos opostos da mesa coberta por um
pano macio e colorido, e para complementar a decoração, uma garrafa
de vinho branco, que cintilava à luz das velas, ocupava um lugar de
destaque. Havia apenas duas cadeiras à mesa, e no pensamento de Axel,
parecia que elas exibiam seu nome e o de Sandra, já que somente os dois
se encontravam ali.
O jantar da noite estavam em tigelas de porcelana — arroz decorado
esplendidamente, salada mista com atum, frango à espanhola com
creme de milho. Tudo aquilo fez Axel salivar.
Sandra Evans indicou-lhe sua cadeira e Axel caminhou até ela e
sentou-se. Sandra da mesma forma acomodou-se, ficando de frente para
ele, ficando assim, separados apenas pela mesa redonda.
A advogada pegou o prato de Axel, começou a pôr o arroz num
lado da porcelana, e logo pôs a salada, sem dizer uma única palavra.
Axel cortou o silêncio.
— Foi você quem fez estas delícias? — perguntou inalando a
fumaça que saía dos alimentos quentes. — Humm… o cheiro é
maravilhoso.
Sandra sorriu. Seu sorriso era radiante.
— Mamãe me ensinou o básico. O resto eu aprendi com esforço,
entre alguns acidentes, quero dizer, algumas panelas queimadas. —
colocou o prato de volta à frente de Axel, e o movimento seguinte foi

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encher a sua própria porcelana com as delícias espalhadas sobre a mesa.


— Mas… me diga, detetive: há quanto tempo ocupa o seu ofício?
Essa pergunta foi a que deu início a várias outras que se seguiram
durante todo o jantar. Sandra era amável e divertida, sempre sorrindo
entre suas perguntas e as respostas de Axel. Constantemente, enchia a
taça de seu convidado de vinho branco, nunca deixando que ela viesse a
secar. Falou então sobre o seu trabalho. Os grandes e pequenos casos
que a ajudaram na árdua escalada rumo ao status de uma advogada de
respeito, nunca deixando escapar um ar de quem estava se gabando.
Axel admirou-a.
Ela pôs-se a falar de sua família. Disse que era de uma família
eclética. Tinha três irmãos homens (era filha única). Um era músico
clássico, outro era um corretor de seguros bem sucedido e o mais moço
dos três era um sargento das forças armadas. Seu pai havia sido
proprietário de uma loja de antiguidades, mas, com a aposentadoria,
viajou para longe de tudo e de todos, e toda a família somente se reunia
no natal na casa dos velhos, mas se comunicavam às vezes por telefone.
— Família interessante — comentou Axel, e pôde ver aquele sorriso
encantador novamente.
Houve um outro instante de silêncio.
— E você? — falou então Sandra.
— O quê?
— Sua família! Como é?
Agora foi a vez dele rir.
— Humm… bem… Não vejo meus pais a muito tempo, e meus
irmãos nem se fala. Estou mais apegado a meu filho e minha esposa.
— Oh! Você é casado! Não havia percebido — disse com expressão
de surpresa, olhando para o dedo de Axel sem aliança.
O policial percebeu o olhar da advogada.
— Não sei onde a deixei. Talvez no armário, antes de tomar banho
para vir até aqui. Eu tiro toda vez que tomo banho, é uma mania
estranha que tenho.
Sandra meneou a cabeça como se dissesse: Eu entendo.
— Como se chamam?
— Leonardo e Tina.
— Bonitos nomes — elogiou Sandra, tomando um gole do seu
vinho.
— Também acho — Axel acompanhou-a, levando sua taça até a
boca.

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Com um suspiro, Sandra encheu novamente as taças, então


declarou em tom triste:
— Sorte sua.
Axel franziu o cenho.
— Desculpe-me, não entendi.
— Você tem alguém em quem pode confiar; pode conversar e
contar seus problemas; passar o tempo e se divertir. Você é uma pessoa
de sorte.
— Não venha me dizer que você não tem ninguém assim.
— Não tenho — disse Sandra, baixinho.
— Impossível — admirou-se Axel. — Você é uma mulher linda, de
companhia agradável, super divertida, independente. Qualquer homem
pagaria para estar ao seu lado!
Sandra suspirou inibida.
— Não é bem assim. O meu tempo é, bem dizer, todo gasto em meu
trabalho. Quase não resta para me divertir ou conversar com alguém.
Quem iria querer se envolver com uma pessoa assim?
— Você está exagerando, Sandra.
Mas na realidade não, e Axel sabia disso, pois acontecia o mesmo
consigo. O trabalho consumia a maior parte do seu tempo. Quase não
sobrava tempo para a família. Agora os sentimentos de compreensão e
pena tomaram conta do policial com relação à Sandra.
— Qual foi o caso mais… como posso dizer… marcante? — indagou
Sandra, tentando mudar de assunto e pegando Axel de surpresa.
Axel pensou por um momento, até dizer:
— Acho que tive vários casos… vamos dizer, marcantes, mas de
todos eu diria que foi o de um rapaz que dependia de drogas. Seu nome
é Alberto Linhares — contou toda a história. Desde o corpo de Linhares
sendo jogado pela janela até seu emprego na companhia telefônica.
Notou os traços de surpresa e fascínio no rosto de Sandra. — Escolhi
esse caso — continuou —, porque daí surgiu um laço de amizade que
continua até hoje.
— Fascinante! — exclamou com sorriso estonteante nos lábios.
Axel fitou sua taça de vinho antes de tomar mais um gole.
— E você? Qual o caso que mais lhe marcou?
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Nenhum?
— Não em especial.
— Acredito! — desdenhou o policial, cético.

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A advogada olhou bem dentro dos seus olhos, como alguém


tentando invadir a mente; descobrir seus mais íntimos segredos.
— Sério — afirmou ela, contrita. — Aliás, especial mesmo, está
sendo este momento. Estar com você é maravilhoso. — tornou a sorrir.
— Agora sim, está se formando um momento marcante. E, quando
alguém fizer uma pergunta mais ou menos do jeito da que você fez, já
irei ter uma resposta na ponta da língua.
Axel riu.
— Você é uma figura, sabia?
Sandra estava com uma expressão séria ao dizer:
— Não. Você é que é. Uma pessoa digna, confiável; para não me
prolongar, em resumo: maravilhosa. — ergueu-se, postou-se ao lado
Axel e, sem tirar os olhos dos dele, tocou-lhe o rosto com a mão macia e
delicada. Com voz rouca e quase incompreensível, declarou: — Tenho
que admitir que ao te ver no banco das testemunhas, no tribunal, algo
me tocou. Você me chamou a atenção… de alguma forma. Tanto que…
— olhou para a mesa repleta de pratos e enfeites — fiz isto… para você.
Axel não se mexeu nem piscou sequer.
— Bem, eu…
— Não precisa dizer nada — disse ela. — Eu… eu queria… — Não
pôde dizer mais nada. Baixou o rosto até encontrar o de Axel e beijou-o.
Os dois seguiram os seus desejos e se deixaram levar pela emoção.
Já estavam ali, entregues, dados um ao outro. Um sentindo o que o outro
queria, este sabendo o que aquele pedia sem que ele pronunciasse
qualquer palavra. Seus segredos já estavam desvendados. O adultério
havia sido consumado.

&&&

Agora estavam novamente juntos, deitados sobre a cama. Axel


fitava o teto forrado de madeira envernizada; Sandra se encontrava
adormecida, com a cabeça descansando sobre seu peito, subindo e
descendo de acordo com sua respiração. Ele olhou-a e reconstituiu
mentalmente a primeira vez, há seis meses atrás. Ela não mudara nada.
Continuava linda e sedutora.
Fechou os olhos por um momento e então tornou a abri-los. Sentia-
se um tanto confuso. Na primeira vez, pensara muito em Tina durante o
jantar e até a declaração de Sandra. Então, logo em seguida, tudo dera
lugar ao desejo, e foi assim até àquele momento.
Até àquele momento, repetiu em seu pensamento.

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Durante seis meses não se importava em trair Tina. Podia dar amor
às duas, pensava. Quando estava ao lado de Tina, não pensava em
Sandra, e quando se encontrava com Sandra, Tina não existia. Amor
duplo! Costumava dizer a si mesmo. Mas agora, deitado ali, estas
palavras não faziam o menor sentido. Por quê? Durante seis meses
inteiros, essa fôra sua frase predileta, e agora… nada.
Passou a mão na testa e percebeu que estava suando. Sandra
mexeu-se subitamente e ele alisou suas costas para acalmá-la — talvez
de algum sonho ruim. Ela tornou ao seu estado imóvel; ele a fitar o teto.
Respirou profundamente com um pensamento: Melhor dormir. Amanhã
nem irei mais lembrar disso. O sentimento de culpa provavelmente iria
sumir pela manhã, pensou.

&&&

Acordou com batidas na porta. Estreitou e esfregou os olhos,


tentando afastar deles o que parecia uma névoa esbranquiçada.
Levantou-se e arriscou se equilibrar antes de dar o primeiro passo até a
porta. Parecia que fôra nocauteado. Estava precisando de um sono tanto
assim? Tentou o primeiro passo e, ao firmar o pé, concluiu que já estava
bem lúcido.
Alan abriu a porta da sala de peças e Carlos estava atrás dela. Seus
olhos estavam vermelhos e suas roupas não se encontravam
amarrotadas. Alan perguntou-se se ele havia dormido ou passado o
tempo todo conversando com Nick Gradinno. Tempo! Quanto tempo
fazia ali dentro?
— Que horas são?
Carlos não precisou olhar relógio algum para responder:
— Onze e meia da noite. Hora de irmos.

&&&

A oficina estava deserta — a não ser por estarem ali Nick Gradinno,
Carlos e Alan. Todas as atividades estavam suspensas, pelo menos
temporariamente. As máquinas de soldar não soltavam as constantes
faíscas e os martelos estavam calados, não desamassando assim, as
carrocerias avariadas. Alan achou estranho tudo aquilo, mas não ligou
muito. Não tinha mesmo nenhuma idéia de como aquele negócio
funcionava. Talvez estivesse na hora da folga, pensou. Mas então: Desde
quando o crime entra de folga?

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Transformação - Naasom A. Sousa

Nick acendia um cigarro enquanto Carlos começava a se despir sem


qualquer cerimônia na frente dos dois outros homens. Voltou-se para
Alan.
— Tire a roupa — ordenou.
Alan não entendeu a finalidade daquilo, mas obedeceu. Retirou a
camisa e acompanhou Carlos, tirando as calças. Olhou de volta para
Nick Gradinno e viu-o engatilhando uma arma que aparentou ser uma
sete-meia-cinco automática. Nick logo notou seu olhar.
— Não se preocupe, pastor. Isso não é pra você — Nick voltou-se
rapidamente para Carlos, que retribuiu o olhar. —A não ser, é claro, que
queira uma.
— Não, obrigado. Creio que não preciso disso — disse Alan, com
um sorriso desengonçado por estar no momento apenas com a roupa de
baixo.
Nick gargalhou e jogou a arma para Carlos, que pegou-a e a pôs de
lado. Caminhou até a carroceria de um Chevrolet no fundo da oficina e
voltou com outras roupas. Alan reconheceu as roupas antigas que se
podia sentir o odor de suor de longe. Elas foram atiradas para si e
começou a vesti-las ligeiramente.
Ao acabar de colocar as suas vestes, Carlos empunhou a arma e pôs
atrás de si, presa à alça da calça, por baixo do paletó. Nick pegou outra
arma de fogo, desta vez uma mini-metralhadora e Alan ficou
impressionado com ela. Porém, sabia que a sua arma era mais poderosa
que todas as outras e tinha mais uma vantagem: não falhava nunca. Sua
fé garantia isso.
Carlos sentia sua respiração ofegante e as batidas do coração
irregulares. A hora se aproximava, todavia, parecia mais correr ao seu
encontro. Torcia para que tudo desse certo, mas conscientizava-se que
apenas torcer não era suficiente. Tinha de cuidar para que tudo saísse
bem, ou pelo menos, chegasse perto disso.
A verdade era que isso era quase impossível de acontecer diante das
circunstâncias, e Carlos conhecia esse risco. Ouviu Nick destravar sua
potente arma com um sonoro “click”, sorrindo sinistramente ao fazer
isso. Parecia visivelmente excitado e, como prova, confidenciou:
— Cara, faz tanto tempo que não faço isso que está me dando um
frio na barriga!
— É bom que isso pare — disse Carlos, sem sorrir. — Não o quero
nervoso quando tudo estiver acontecendo.
Nick fitou-o indignado.

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Você está brincando? Quando foi que Nick Gradinno borrou nas
calças em situações como essa, meu camarada? Eu lhe digo: Nunca, meu
chapa!
— Só não quero que esta seja a primeira vez — explicou Carlos.
Caminhou até uma mesinha onde abriu uma gaveta e retirou de dentro
a algema. Prendeu-a ao seu pulso esquerdo, olhou para Alan e andou
até se postar à sua frente. Fitou seus olhos e perguntou-se no que ele
estaria pensando… ou planejando. Apontou um banco para Alan se
sentar e este compreendeu.
Carlos respirou fundo e coçou a barba por fazer.
— Muito bem — disse, sem desviar o olhar —, talvez você não
esteja entendendo o que está acontecendo, mas creio que já deve ter
pegado alguma coisa no ar. O que está prestes a acontecer talvez seja a
coisa mais perigosa que você irá presenciar. Eu digo irá, porque, como
eu já lhe disse antes, você está nisso, queira ou não e…
Alan o interrompeu:
— Eu nunca refutei isso, Carlos.
Carlos pensou por um instante.
— Está certo. A verdade é que preciso de você. A vida de uma
pessoa depende de mim e… agora de você também — houve uma pausa
e Carlos observou Alan, balançando a cabeça em compreensão.
Continuou: — Dei suas roupas de volta para que vestisse e agora você
está vendo a algema no meu pulso e deve estar se perguntando: para
quê isso? Bem, eu lhe digo. O cara com quem… iremos nos encontrar,
Vip, é um cara dos mais espertos, e se desconfiar que fomos a algum
lugar ou que falamos com alguém suspeito, ele matará… — era doloroso
pensar que isso pudesse acontecer. — … ele matará Nicole, sem pensar,
assim como mataram aquele maldito policial. Droga, isso não pode
acontecer! — levou as mãos à cabeça.
— Tenha calma, cara, vai dar tudo certo. Eu garanto — disse Nick.
— Desculpe-me, Nick, sem querer ofender, mas nem você pode me
garantir isso.
Carlos fechou os olhos e então pôde ouvir a voz de Alan:
— Não sei se lembra, Carlos, mas na caminhonete que… que
pegamos emprestado, falei, quando você me perguntou o que eu estava
fazendo lá no meio da transação, que queria ajudá-lo. Não sei se acredita
em mim, mas é isso que vou continuar fazendo: ajudando você.
Pairou um momento de silêncio. Carlos olhou para Nick, que não
teve palavras para se pronunciar. Então, com uma respiração que os dois
outros puderam ouvir, disse:

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Transformação - Naasom A. Sousa

— Bem, sendo assim… — esticou o braço esquerdo para Alan, e este


tomou o seu lado da algema e prendeu-a ao seu pulso direito. Olhou de
volta para Carlos, que não sabia o que pensar daquele estranho homem
diante de si. Está blefando, algo gritou dentro do seu íntimo e, se
realmente estava, tinha que admitir que ele era um grande ator
dramático. Muito bem, pensou, se esse cara estiver mentindo, terá apenas
mais alguns minutos de vida.
Os pensamentos de Carlos foram interrompidos ao ouvir Nick
dizendo:
— A hora chegou, amigo.
Carlos fitou os dois homens e tornou a respirar fundo. Balançou
cabeça, tentando organizar os pensamentos que o conturbavam. A hora
chegou e parecia golpeá-lo. Seu coração martelava, sentia o sangue fluir.
Pôs a mão para trás e certificou-se de que a arma estava ali, ao seu
alcance, de prontidão, pronto para entrar em ação. Estava preparado.
Enquanto Alan fazia uma oração silenciosa, Nick puxou uma
correntinha dourada de dentro da camisa e, beijando-a, fez o sinal da
cruz. Carlos reconheceu o velho cacoete do amigo, mas não entendia a
atitude do outro homem, de apenas fechar os olhos e baixar a cabeça.
Talvez fosse algum tipo de concentração oriental ou algo parecido.
Durante toda a sua vida, nunca se entregou a esses caprichos. Sua norma
era: ficar de cabeça sempre erguida e alerta, senão a morte era certa. Viu Alan
levantar a cabeça e fitá-lo. Carlos se desvencilhou, olhou para Nick
Gradinno, que já havia cessado de balbuciar coisas incompreensíveis e
indagou:
— Tudo certo?
— Humm-hum. Estou pronto.
Os dois homens voltaram-se para Alan. Era como se os holofotes se
voltassem para ele.
— Estou pronto — informou, balançando a cabeça afirmativamente.

&&&

Um minuto depois, a oficina de desmanche de carros de Nick


Gradinno estava completamente deserta e em total escuridão.

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Transformação - Naasom A. Sousa

Sobre o Autor e suas Obras


Naasom A. Sousa nasceu no dia 7 de janeiro
de 1978 na capital cearense, Fortaleza. Aos 13
anos mudou-se para Belém do Pará e logo após
para Ananindeua, no mesmo estado. Foi ali que
se encontrou verdadeiramente com o Cristo
Salvador e se interessou pela leitura depois de ler
“Este Mundo Tenebroso II” de Frank E. Peretti.
Daí então passou a escrever romances. Também
se tornou cantor e compositor, e se apresenta
apenas em templos evangélicos (por enquanto).

Atualmente, Naasom A. Sousa está casado


com Ivone Sousa e mora em Paragominas,
município à 300km da capital paraense. Seu e-mail para contato é
letrassantas@ieg.com.br / naasom@bol.com.br e seu site na rede é:
www.letrassantas.hpg.com.br

Outras obras publicadas:

“Do Deserto ao Oásis” é uma novela que foi inspirada nas tantas
dificuldades e tribulações que enfrentamos no dia-a-dia e que muitas
vezes pensamos que vamos perecer. Porém, por mais que pensemos que
estamos desamparados pelo Criador, Ele sempre tem um jeito de
provar-nos o contrário.

“O Amor da Minha Vida” é uma nova roupagem de sua novela


romântica escrita em meados de 1996, e este também é seu primeiro
trabalho integral distribuído pela Internet.

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