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Mirian Tavares
BUÑUEL E O SURREALISMO:
A ARQUITETURA DO SONHO
Coleção
Mirian Tavares
BUÑUEL E O SURREALISMO:
A ARQUITETURA DO SONHO
[Ficha Técnica]
Título
Buñuel e o Surrealismo: a arquitetura do sonho
Autora
Mirian Tavares
Coordenação Editorial
Rui Alexandre Grácio
Capa
Grácio Editor | Desenho da capa de Ana Ciscar
ISBN: 978-989-99682-4-0
Esta obra foi financiada através do Projeto UID/Multi/04019/2013, Concurso * Programa * Área: F. Base
UID - 2013/2015 * 6817 - DCRRNI ID * Área Multidisciplinar, da Fundação para a Ciência e Tecnologia"
A AUTORA:
Mirian Tavares é Professora Associada da Universidade do Algarve,
Portugal. Com formação académica nas Ciências da Comunicação,
Semiótica e Estudos Culturais, tem desenvolvido o seu trabalho de
investigação e de produção teórica em domínios relacionados com
o Cinema, a Literatura e outras Artes, bem como nas áreas de esté-
tica fílmica e artística.
Como professora da Universidade do Algarve, participou na elabora-
ção do projeto de licenciatura em Artes Visuais, do mestrado e dou-
toramento em Comunicação, Cultura e Artes e do doutoramento em
Média-Arte Digital. Atualmente é Coordenadora do CIAC (Centro de
Investigação em Artes e Comunicação) e Diretora da Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve.
A COLEÇÃO HUMANITAS:
A Humanitas do CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comuni-
cação, em parceria com a Grácio Editor, é uma coleção ensaística de
divulgação dos resultados da investigação produzida neste centro.
Pretende oferecer, através das obras aqui publicadas, o nosso con-
tributo no domínio científico das Humanidades.
A saudável transversalidade caracterizadora da investigação do
CIAC, que abarca as Artes, a Comunicação e a Cultura, as Letras e
as Humanidades Digitais, constitui a justificação para a apresentação
de uma coleção que acompanhe esse espírito plural de reflexão.
Este reside, no fundo, na capacidade para abarcar o Homem en-
quanto ser que se exprime das mais variadas formas. Celebrar o re-
gresso aos estudos humanísticos, às Humanidades, portanto, no
sentido primordial e lato que os gregos e latinos lhes atribuíram,
como resposta aos constantes reptos que a contemporaneidade nos
lança, é o objetivo da Humanitas.
Deste modo, esta coleção espelha a desejável harmonia entre o es-
tudo das novas linguagens, dos novos processos e métodos e a so-
lidez de saberes que prolongam tradições teóricas e críticas. A
revisitação de produtos artísticos e culturais do passado, seja para
os (re)questionar à luz do paradigma atual, seja para os (re)conhecer
enquanto objetos humanísticos sem tempo estimulará, por sua vez,
o pensamento sobre os modos coetâneos de expressão artística e
cultural.
SUMÁRIO
NOTA INTRODUTÓRIA........................................................................................11
I. O SURREALISMO .............................................................................................13
I.1. Crise da Cultura – as vanguardas do início do século..............................15
I.2. O movimento surrealista.........................................................................23
I.2.1. Alguns precursores ...................................................................26
I.2.2 O Dada e o surrealismo..............................................................29
I.2.3. A aventura surrealista: os primeiros passos .............................33
I.2.4. As técnicas surrealistas .............................................................37
NOTAS FINAIS...................................................................................................153
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................159
SONHO-OBJECTO DA NOITE CINQUENTENÁRIA — CARTA
PARA MIRIAN TAVARES PODENDO SERVIR DE PREFÁCIO
9
“… Je n’ai jamais rient connu de plus magnétisant: il vas sans dire que le plus
souvent nous quittions nos fauteuils sans même savoir le titre du film, qui ne
nous importait d’aucune manière. …”
(André Breton “Comme dans un bois” in L’Age du Cinema, nº especial de 1951)
Querida Mirian,
Estavas tu, Mirian, silenciosa de pé junto de uma porta fechada, numa sala
de estar, enquanto eu, na parede oposta, respirava ofegantemente a olhar para o
chão com as mãos repousadas nos meus joelhos, sentado numa cadeira de ma-
deira. A dada altura, chamaste-me em voz baixa com o olhar concentrado na tua
mão direita. Quando me interpelaste, sorrias com olhos perplexos a observar algo
que acontecia na palma da tua mão virada para o teu rosto. Com a outra mão, a
esquerda, acenavas gestos demorados e ondulatórios como se estivesses a cha-
mar-me. E continuavas a sorrir e a chamar-me com gestos de silêncios, ao mesmo
tempo que compunhas o cabelo atrás da tua orelha. Levantei-me e fui ao teu en-
contro. À medida que me aproximava, fazias-me um sinal com a mão para avançar
com calma. Só quando cheguei perto de ti, percebi que da tua mão afloravam de-
zenas de formigas negras através de um orifício do diâmetro de uma moeda pe-
10 quena. Levavas então ao teu seio a mão com que me acenaste, deslizando-a
cintura acima sobre o teu vestido de brancura fosforescente. Tentei pegar numa
das formigas, mas quando a agarrei com o polegar e o indicador, ela transformou-
se num pequeno morcego. Tu assustaste-te e deixaste-as cair de seguida num im-
pulso de defesa. Em queda lenta, elas iam caindo de forma ordenada, uma após
a outra. Assim que atingiam a superfície do soalho de madeira envernizada, elas
iam-se transformando em morcegos brancos, esvoaçando pela sala até ao lustre
de cristais, onde passaram a voar em movimentos circulatórios centrados na luz.
Uma das janelas abriu-se e entraram refregas de vento, culminando com um ne-
voeiro denso e frio. O único morcego negro era aquele que se transformou na
ponta dos dedos …
É sabido que nos finais dos anos 30, coincidindo com a primeira projecção
pública do controverso filme de Luis Buñuel – Chien andalou, o cinema mudo
atinge a sua extinção levando com ele, na opinião de Breton, a capacidade do
filme revelar a imaginação do espectador. Nesta linha de pensamento, e na esteira
dos sonhos, silenciosos no ambiente de quem os sonha, tornam-se de alguma
forma mudos os “diálogos” e as visões com que se descrevem as recordações re-
manescentes. E neste teatro de operações oníricas, o palco compõe-se por prota-
gonistas que estão condicionados e absolutamente limitados a eles mesmos e
isolados do resto do mundo manifestando, no entanto, os seus desejos de uma
maneira livre e tranquila que, de outra forma, não se concretizam. Recentemente,
cheguei também de uma viagem madrilena onde visitei a casa de um amigo, casa
esta muito frequentada por Buñuel nos idos anos 70. De alguma maneira, rela-
ciono este sonho com a viagem, ainda muito fresca na memória, conjugado com
a minha preocupação de responder ao teu convite para este prefácio uma vez que,
na realidade, esvoaçam imensos morcegos brancos pela minha mente.
Miguel de Carvalho
paradoxo do fim do século XIX, a tensão entre o desprezo solene dos valores bur-
gueses e o usufruto de suas benesses, entre a recusa do mercado cultural e a for-
mação do mesmo que vai, a partir de agora, gerir o mundo das artes, atravessa as
fronteiras do século XX, obrigando os artistas a uma tomada de posição: ou acei-
tam fabricar produtos culturais como mercadorias, ou rompem com o ciclo que
18
os leva irremediavelmente a coadunar-se com valores que eles desejam combater.
Eis as palavras de Jean-François Dupuis a este respeito:
diano sufocante, para torná-la, de fato, participante de seu próprio tempo, simul-
taneamente traduzindo-o e antecipando o porvir.
A arte distancia-se da natureza e cria um novo mundo. Alterando a estrutura
espacial utilizada no renascimento, busca formas novas de traduzir um outro es-
paço. A perspectiva renascentista e seu desejo de reproduzir o mundo o mais fiel-
mente possível será relegada para dentro das objetivas das câmeras fotográficas 19
e cinematográficas. Liberadas de uma certa função reprodutora e identificatória,
as artes plásticas ficam mais próximas das letras e da poesia, com toda a possibi-
lidade de criar imagens que são próprias delas: “A arte pós-impressionista não
pode mais ser considerada, em qualquer sentido, uma reprodução da natureza;
sua relação com a natureza é de violação. Podemos falar, no máximo, de uma es-
pécie de naturalismo mágico, da produção de objetos que existem a par da reali-
dade mas não desejam tomar o lugar desta.”11
Ao renunciar à reprodução do mundo, as vanguardas renunciam também aos
conceitos que guiavam até então a criação de um objeto artístico: a noção de belo,
presente nas obras de arte e nos estudos que vão acompanhá-las ao longo dos
séculos, não pode ser mais utilizada agora. Segundo Hauser, a arte moderna é
“fundamentalmente uma arte ‘feia’”12, que não busca o deleite mas privilegia o
intelecto, renunciando ao hedonismo e aos excessos sentimentais cometidos por
alguns dos seus artífices do passado.
Se os cubistas inauguram um novo tempo, deixando para trás, conforme Éli-
zabeth Lièvre-Crosson, “quatre siècles de tradition picturale”, serão os dadaístas
que levarão mais a fundo a destruição dos meios convencionais de expressão,
rompendo com a tradição artística oitocentista, sem entretanto a renegar em sua
totalidade, pois herdará características importantes de algumas de suas manifes-
tações. Surgido em plena guerra, acaba por incorporar o sentimento geral de der-
rota trazido por esta nos meios intelectuais. Não era um movimento que possuísse
um longo alcance. Na sua gênese já estava contida a sua destruição, um sentido
negativo do mundo, da criação e da própria arte que, ao fazer explodir as formas
de representação, não tem outra alternativa logo após senão o suicídio, pois de
um modo ou de outro, o dadaísmo estava condenado à morte.
“O dadaísmo, tal como o surrealismo, com o qual concorda totalmente a esse
respeito, é uma luta pela expressão direta, espontânea, ou seja, é um movimento
essencialmente romântico.”13 Vários são os pontos que ligam o dadaísmo ao sur-
realismo. Principalmente o fato de alguns membros do surrealismo terem aderido
ao dadaísmo, senão de modo atuante, pelo menos como defensores de algo que
11
Arnold Hauser, História Social da Arte e da Literatura, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 961.
12
Élizabeth Lièvre-Crosson, op. cit., p. 44.
13
“Desde o século XVIII, paralelamente a William Blake, cuja dupla carreira define bem a colusão da
arte com a poesia e a literatura, proclamou a falência e a rejeição do racional. Não é sem razão que
o surrealismo do século XX reconheceu nele um longínquo precursor: à lógica ordenadora, opunha
a estranha eclosão do sonho, do pesadelo e, através destes, do inconsciente.” (René Huyghe, O
Poder da Imagem, Lisboa, Edições 70, 1998, p. 259).
MIRIAN TAVARES
para eles era uma busca da verdadeira expressão. Giulio Carlo Argan14 considera
o surrealismo uma transformação do Dada, por ser também uma teoria do irra-
cional ou do inconsciente na arte. Mas não houve, de fato, uma fusão entre os
dois movimentos, pois no surrealismo não encontramos o negativismo radical pre-
sente no dadaísmo.
20 Não pretendo destrinçar toda uma complexa rede de relações e compor um
histórico completo das vanguardas do princípio do século. Procuro apenas con-
textualizar o surrealismo no momento de seu nascimento. Assim, rodeado por
esse clima, conforme Élizabeth Lièvre-Crosson, em 1924, Breton lança oficialmente
o movimento:
Os monstros gerados pela arte irão cada vez mais levar-nos a uma descida às trevas
que pairam sobre a civilização europeia.
Diante das descobertas da ciência que derrubam antigas crenças, da desa-
gregação de conceitos, de uma sensação de desrealização que acompanha o sur-
gimento das vanguardas, ainda é possível (e talvez mais do que nunca é
necessário) que a arte atue no mundo, se não para preencher o vazio deixado pela 21
derrocada da ideia de unidade, pelo menos para retratá-lo.
18
Op. cit., p. 270.
I. 2. O MOVIMENTO SURREALISTA
O Primeiro manifesto do surrealismo, escrito por André Breton em 1924,
antes de mais nada é uma verdadeira profissão de fé. Iremos aos poucos descobrir
por que a crença é tão importante para Breton e seus seguidores e porque este
primeiro manifesto não é apenas uma peça literária, mas uma reflexão profunda 23
sobre a situação do homem no mundo naquele instante e, ousamos dizer, uma
condição que atravessa todo o século XX.
Desde o primeiro manifesto que Breton aponta para o sensível como forma
de apreensão do mundo. Não é simplesmente esquecermo-nos da razão e da ló-
gica, mas tentarmos buscar uma outra lógica que não está presente nos meios
convencionais.
Ao analisar as vanguardas, Ortega y Gasset afirma que “Lo importante es que
existe en el mundo el hecho indubitable de una nueva sensibilidad estética.”20 Sen-
sibilidade esta que provoca uma “desumanização da arte”, de acordo com o filó-
sofo espanhol, sendo vários os motivos que levam a este caminho. O principal
deles é, sem dúvida, o fato de o olhar do artista não tentar mimeticamente repro-
duzir a natureza, mas procurar, de várias formas, ultrapassá-la. Para Ortega y Gas-
set, os artistas caminham em direção ao objeto humano. Não em direção à figura
do homem, mas à de um homem transfigurado e não calcado totalmente no real.
Na realidade, ultrapassar o real, escolher um caminho diferente das possibi-
lidades cotidianas de mostrar o mundo, não é uma escolha fácil. “Cree el vulgo
que es cosa fácil huir de la realidad, cuando es el más difícil del mundo. [...] La
‘realidad’ acecha constantemente el artista para impedir su evasión.”21 Poderíamos
afirmar até que, mais que fugir da realidade ou mesmo ultrapassá-la, o que os ar-
tistas queriam era ultrapassar, isso sim, um modo de representação do mundo.
Os surrealistas, como a vanguarda da época, buscavam também uma forma
diferente de estar no mundo, de re(a)presentá-lo. Mas eles não tinham a intenção
de fugir à realidade. Pelo contrário, eles gostariam de penetrá-la tão a fundo ao
ponto de expor suas entranhas e tudo aquilo que (quase) sempre fora relegado
por uma cultura classicizante. Temos a tendência de entender o termo surrealismo
como algo fora da realidade, enquanto o que de fato eles propunham era um mer-
19
Sérgio Lima, A Aventura Surrealista, São Paulo, Vozes, 1995, p. 23.
20
José Ortega y Gasset, op. cit., p. 30.
21
Op. cit., pp. 33-34.
MIRIAN TAVARES
gulho até então não ousado, no que havia de mais profundo desta realidade: o
espaço do inconsciente e dos sonhos.
Em seu ensaio La deshumanización del arte, Ortega y Gasset traz-nos uma
imagem que, se para ele traduz toda a vanguarda, acredito que se aplica de forma
muito particular ao surrealismo: ele imagina que a fuga da realidade proposta
24 pelas vanguardas seria como a história de Ulisses ao contrário – ao invés de buscar
sua Penélope cotidiana, ele navega em direção à bruxaria de Circe. O desejo da
humanidade pela ordem segura do cotidiano é subvertido, assim, pelo desejo do
desassossego e do abismo. O surrealismo propõe a vertigem.
“Vertige – tige, vers quel litige?” [...] Une monstrueuse aberration fait croire
aux hommes que le langage est né pour faciliter leurs relations mutuelles.”22 Michel
Leiris, ao longo dos números da revista La révolution surréaliste, propunha um glos-
sário que desestruturava as palavras, recriando o seu sentido através de um jogo de
desmontagem. A linguagem não serve apenas para facilitar as relações, mas para
ser também perscrutada em busca de novos sentidos, ou velhos sentidos já esque-
cidos, devidamente ocultados pelo uso comum. A proposta de Leiris para a liguagem
era a proposta de todo o grupo para a arte, e consequentemente, para os sentidos
cristalizados do mundo. Para os surrealistas, era preciso (e urgente) sair do lugar-
comum, procurar caminhos alternativos que ressuscitassem a crença na vida. Para
Leiris, dissecar palavras não era um simples jogo, mas uma tentativa de desvendar
os seus segredos para que a linguagem fosse transformada num “[...] oracle et nous
avons là (si ténu qu’il soit) un fil pour nous guider, dans la Babel de notre esprit.”23
Como foi dito anteriormente, tal como o dadaísmo, a origem do surrealismo
está ligada ao romantismo pois, “segundo Baudelaire, Victor Hugo teve o mérito
de sugerir o ‘mistério da vida’”24. O romantismo, ao sugerir o mistério da vida,
permite que a poesia seja mais que o seu sentido inteligível. Assim, os surrealistas
aprofundaram este mistério e buscaram também, segundo Duplessis, “uma obs-
curidade reveladora de um outro universo.” Passando por Rimbaud e Lautréa-
mont, os surrealistas acreditavam no universo do sensível como a possibilidade
do múltiplo e do plural, pois o mundo permite várias leituras. Vejamos um exem-
plo tirado dos jogos surrealistas:
22
Michel Leiris, “Glossaire: j’y serre mes gloses”, La révolution surréaliste, n. 3, 15 de abril de 1925, p.
7. Citarei esta revista a partir da edição facsimilada publicada por Édition Jean-Michel Place, em
Paris (1975).
23
Ibidem.
24
Yvonne Duplessis, O Surrealismo, Lisboa, Inquérito, 1983, p. 13.
25
Louis Aragon et André Breton, “Le dialogue en 1928”, La révolution surréaliste, nº11, 15 de março
de 1928, p. 7.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Max Ernst explica-nos por que é que o belo pode nascer, segundo a
fórmula de Isidore Ducasse, ‘do encontro de uma mesa de dissecação 25
de uma máquina de coser e de um chapéu-de-chuva’. Com efeito,
‘uma realidade completamente acabada, cujo ingénuo destino pa-
rece ter sido fixado de uma vez por todas (um chapéu-de-chuva), ao
encontrar-se em presença de uma outra realidade muito distante e
não menos absurda (uma máquina de coser), num lugar onde ambos
se devem sentir fora do sítio (sobre uma mesa de dissecação), esca-
pará exactamente por isso ao seu ingénuo destino e à sua identidade,
passará do seu falso absoluto, pelo desvio de uma relação, a um ab-
soluto novo, verdadeiro e poético.26
o futuro; enquanto isso Valéry rompia o silêncio de anos com os versos alexandri-
nos de La jeune parque.38
Apesar de atirar-se para o futuro, de ter sido um dos primeiros a reconhecer
o gênio de Henri Rousseau, de ser um homem de seu tempo, capaz de detectar o
“pintor da vida moderna”, como o fizera Baudelaire, faltava em Apollinaire uma
dose de desafio e desapego que Breton vai encontrar em Jacques Vaché. Diante 27
da guerra, Apollinaire, segundo Breton, apesar de alistar-se no exército, não toma
consciência do que se passa: “Perante o horrível facto que a guerra era, Apollinaire
reagiu por uma vontade de imersão na infância [...].”39 A poesia não vencera a pro-
vação da guerra, daí a importância de alguém como Vaché, um desafiador, que se
não desertou em tempos de guerra, mostrou a sua insubmissão “[...] qu’on pour-
rait appeler la désertion à l’intérieur de soi-même.”40
Vaché aparece como uma figura quase mítica, capaz de executar ações que
mais tarde transformam-se em literatura nas mãos de Breton. O grande enfren-
tamento dos dois estilos antagônicos, Apollinaire e Vaché, acontece na estréia da
peça do primeiro, Les Mamelles Tirésias. A apresentação é medíocre, o que pro-
voca uma grande agitação no público presente, agitação esta que aumenta com o
aparecimento de uma figura vestida com o uniforme do exército inglês, empu-
nhando um revólver e disposta a descarregá-lo ao acaso. “El eco de este recuerdo
lo encontramos, diez años despúes, en el Segundo manifiesto del surrealismo,
donde Breton declara que ‘el acto surrealista más simple consiste en empuñar los
revólveres y descargalos al azar sobre la multitud’.”41
Em Lettres de guerre, única obra publicada de Vaché42, este deixava vir à tona
suas opiniões sobre o mundo e principalmente sobre a arte: “[...] L’ART n’existe
pas, sans doute [...].”43 Um poeta que nunca escreveu uma linha de poesia, mas
que, para Breton, viveu-a intensamente, vindo a suicidar-se em 1919. As cartas
de guerra são o seu legado para jovens como Breton ou Aragon: “As suas cartas
tinham o efeito de um oráculo, cuja particularidade era ser inesgotável.”44
A figura de Arthur Cravan, não menos mítica que a de Vaché, vai impor sua
presença na alma de Breton e na dos surrealistas de primeira hora (Aragon, Sou-
pault). Desertor de dezassete nações, como ele mesmo se proclamava, Cravan,
ex-boxeur, publicou entre 1912-1915 uma revista intitulada Maintenant, impressa
em papel de embrulho e distribuída pelo próprio Cravan, que empurrava pelas
ruas um carrinho de vendedor ambulante de frutas e hortaliças. Nele é possível
38
Breton, de certa forma, não perdoa o que considera uma traição de Valéry, ou seja, desonrar o res-
peitoso silêncio literário com uma obra que, para Breton, era injustificável: “Valera a pena ocultar-
se tanto tempo para reaparecer nesta figura?” (Op. cit., p. 50).
39
Op. cit., p. 35.
40
A. Breton, Anthologie de l’humour noir, Paris, Le Livre de Poche, 1995, p. 376.
41
Maurice Nadeau, op. cit., p. 27.
42
Breton publica Lettres de guerre em 1919 na revista Littérature, dirigida por ele, após o choque do
suicídio de Vaché. (Cf. Gaëtan Picon, Le surréalisme, Genève, Skira, 1995, p. 21).
43
Jacques Vaché apud André Breton, Anthologie de l’humour noir, p. 380.
44
André Breton, Entrevistas, pp. 54-55.
MIRIAN TAVARES
por outro, esgotou-se em suas próprias fórmulas que encaminhavam a todos para
o grande nada. Um nada que já não levava a lugar algum.
O surrealismo já estava presente e convivia lado a lado com o dadaísmo. “É, por-
tanto, inexacto e cronologicamente abusivo apresentar o surrealismo como um mo-
vimento saído de Dadá ou ver nele uma espécie de reorientação do Dadá no plano
construtivo.”60 Estas são palavras de Breton, em uma série de entrevistas concedidas 31
a André Paurinad entre março e junho de 1952. Além de negar uma filiação direta
do surrealismo ao Dada, Breton lembra ainda que Champs magnétiques, primeiro
texto surrealista, escrito por ele e por Soupault, foi publicado em Littérature, entre
outubro e dezembro de 1919. Assim, mesmo com a invasão Dada, as experiências
que levariam ao manifesto de 1924 continuaram a existir nas páginas da revista.
É inegável, porém, a influência exercida por Tzara, Picabia e, principalmente,
o fascínio que Duchamp possuía sobre Breton e seu grupo. As provocações da-
daístas foram levadas a cabo entusiaticamente por todos que queriam desestabi-
lizar o mundo das artes, tirando-a de uma oficiosidade que acabava por sufocá-la.
O problema é que se o dadaísmo abriu as portas de par em par, segundo Breton
“acaba-se por descobrir que essas portas dão para um corredor que serpenteia
sem sair do mesmo sítio.”61 Um movimento que surge contra toda a forma de con-
sagração acaba por ser consagrado por um texto de Jacques Rivière, publicado
em agosto de 1920, na Nouvelle révue française. Para Breton, “Reconnaissance a
Dada”, texto de Rivière, põe o dadaísmo à beira da consagração literária.
O Dada não era uma simples busca, o Dada alimentava-se das hostilidades a
ele dirigidas. Como provocar escândalos se houvesse quaisquer formas de simpatia
ou aceitação? Além de estar a um passo da consagração, o movimento esgotou-se
por causa das ideias que estavam em sua gênese: a busca do nada não sobrevive
a atos de criação. O rompimento definitivo do grupo de Breton com o dadaísmo
surge após o famoso “Processo Barrés”. Os espetáculos dadaístas estavam à beira
de um esgotamento; quase nada de realmente novo ou provocador era lançado
ao público. Aragon e Breton assumem o controle de uma manifestação que, a prin-
cípio, ainda era Dada, mas que já fugia completamente do programa de Tzara.
Como vimos anteriormente, antes da entrada de Tzara e seu grupo, a Litté-
rature estava empenhada em empreender buscas para responder a questões tão
importantes como: por que você escreve? As pesquisas do grupo de Breton diri-
giam-nos a uma incessante procura de soluções que recolocassem em evidência
não só poetas esquecidos, marginalizados, mas também escritores oficiais, ou que
se perderam ao longo do percurso de suas vidas. Era o caso de Maurice Barrès62.
60
André Breton, Entrevistas, p. 66.
61
Op. cit., p. 69.
62
“Barrès era o anarquista literário do ‘culto do eu’ convertido em cantor do fascínio nacionalista, o
mesmo é dizer o símbolo perfeito dessa intelligentsia fim de século reconciliada com a poesia do
clarim, e que justificava a contrario os paladinos de uma cultura sem ‘mancha de sangue intelectual’.”
(Jules François Dupuis, op. cit., p. 24).
MIRIAN TAVARES
Como podia o autor de Un homme livre transformar-se num traidor capaz de es-
crever o propagandista L’Écho de Paris? Assim, Barrès é acusado de crime contra
a segurança do espírito. O problema foi que, enquanto Breton levava o processo
a sério, queria de fato discutir o crime, Tzara, imbuído do puro espírito Dada, pas-
sou o processo dizendo disparates e chistes que não condiziam com o interesse
32 de Breton. Foi montado um tribunal que iria proceder ao julgamento. Tzara, con-
vocado como testemunha disse: “Vous conviendrez avec moi, M. le Président, que
nous ne sommes tous qu’une band de salauds et par conséquent, les petites diffé-
rences, salauds plus grands ou salauds plus petits, n’ont aucune importance.” Ao
que o presidente Breton contesta: “Le témoin tient-il à passer pour un parfait im-
bécile, ou cherche-t-il à se faire interner?”63. Para Tzara era mais um jogo Dada,
para Breton, havia implicações morais e estéticas que serão de suma importância
em todo o movimento surrealista.
Não era só Breton que detectava o declínio do Dada. Já em 1921, o movi-
mento foi perdendo nomes importantes como o de Picabia. A ruptura definitiva
de Breton com o Dada e, sem dúvida, o grande salto em direção ao surrealismo,
acontece no Congrès international pour la détermination et la défense des ten-
dances de l’esprit moderne, convocado por ele em Paris em 1922. Os principais
diretores das revistas de vanguarda são chamados a participar de um congresso
que tinha a intenção de “définir une attitude de large convergence autour de cer-
taines propositions”. Tzara recusa-se a participar, pois “entre la négativité dogma-
tique de Dada et cette tentative de conciliation positive, on voit l’abîme...”64
O congresso idealizado por Breton fracassou, pois seria impossível conceber
um encontro para estabelecer as diretivas da arte moderna sem a presença
Dada65. Se, por um lado, o congresso fracassou, por outro ajudou a constituir o
grupo que iria estar ligado mais diretamente ao surrealismo. O último episódio
que marcou definitivamente a separação entre Breton e seu grupo e o Dada, foi
aquando da representação de Couer à gaz de Tzara. Breton, Eluard e Péret (que
então estavam já ligados aos princípios das experiências surrealistas), foram mal-
tratados durante a representação, reagindo como o público convencional dos es-
petáculos Dada. Tzara chamou a polícia e apontou os três como perturbadores.
“Como se ve, Tzara no gustaba mucho, cuando se ejercían contra él, de procedi-
mientos que él mismo contribuyó a crear.”66
63
Apud Gaëtan Picon, op. cit., p. 39.
64
Ibidem.
65
Para Tzara a ideia do congresso era algo já superado. Como poderia participar de um evento sobre
arte moderna se ele havia dito “Dadá não é moderno.” (Apud Maurice Nadeau, op. cit., p. 37)?
66
Ibidem.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
manifesto –, surgiu de forma inevitável, pois o grupo que iria constituí-lo, já havia
criado, de fato, o que será conhecido como movimento surrealista.
A poesia de Les champs magnétiques é introduzida pela presença de um ani-
mal que diz: Les sentiments sont gratuits. O pagure, que está no início dos poemas
de Breton e Soupault, definido por Audoin como “animal-totem”, é um crustáceo
34 que vive em conchas abandonadas, ou seja, vive em casas emprestadas por ani-
mais que morreram, sendo conhecido ainda como bernard-l’ermite. “Outre le cha-
pitre intitulé Le pagure dit, Les Champs contiennent une description analogique
de cet ‘animal admirable’ (selon que Breton le notera plus tard en marge).”72 No
capítulo de Les champs magnétiques intitulado “Gants blancs”, um viajante diz a
seu companheiro: “J’ai marché devant moi et j’ai compris la fatalité des courses
perpétuelles et des orgies solitaires.” O viajante é, antes de mais nada, um foras-
teiro. No texto, aparece como alguém cuja alma, outrora, estava “ouverte à tous
vents est maintenant si bien obstruée qu’ils ne donnent plus prise malheur.” Agora
ele será julgado “sur un habit qui ne leur appartient pas.”73
O viajante perde-se nas viagens. Hoje, habita uma roupa que não é, real-
mente, sua. Para Audoin, o pagure “a pour caractéristique d’habiter une carapace
qui n’est pas la sienne.”74 Constitui-se assim num “híbrido simulado”, que lança as
importantes perguntas: quem sou eu? quem é o outro? A imbricação do eu e o
outro, do fora e dentro na mesma carapaça, aparece como paradigma máximo
das antíteses que Breton, mais tarde, tentará conciliar.
Podemos considerar Les champs magnétiques o mergulho no maravilhoso –
palavra de ordem do manifesto surrealista: “[...] le merveilleux est toujours beau,
n’importe quel merveilleux est beau, il n’y a même que le merveilleux qui soit
beau.”75 O maravilhoso deve persistir contra um embotamento cotidiano dos sen-
tidos. Da mesma forma que o que os atraiu a Rimbaud foi o fato de o poeta ser,
antes de tudo, alguém que “pretendeu ir além das fronteiras da literatura.”76 O
que os surrealistas pretendiam era ir além das fronteiras do puramente racional
e deixar transbordar as franjas do inconsciente. Enquanto Freud desvendava para
o mundo das ciências o que possuímos de mais recôndito, os surrealistas desven-
davam o inconsciente para o mundo das artes, ou mesmo, para o mundo.
Apesar de empreender uma luta contra o racionalismo, para Lima “O Surrea-
lismo não é o irracionalismo.”77, o surrealismo é uma experiência “do/e/no real
de uma mais consciência da Poesia e dos questionamentos do ser como um querer
humano.” Surgido em um momento de crise da cultura, o espírito surrealista vai
animar grande parte do século XX, em fases diferentes, mas levando consigo os
mesmos componentes que estavam presentes desde o I Manifesto: vontade de
72
Op. cit., p. 18.
73
Op. cit., p. 90.
74
Op. cit., p. 18.
75
André Breton, Manifestes du surréalisme, Paris, Gallimard, 1972, p. 24.
76
Franco Fortini, op. cit., p. 57.
77
Sérgio Lima, op. cit., p. 47.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
termos colocados lado a lado sem que nenhuma sequência lógica pudesse justi-
ficá-los (“La vapeur ailée séduit l’oiseau fermé a clé”87). As técnicas surrealistas
foram largamente divulgadas por seus criadores e/ou usuários, sendo mesmo
constituído um Bureau de recherches, que teve a sua atividade explicada por Ar-
taud em um número de La révolution surréaliste88. A intenção era fazer com que
o maior número de pessoas participasse desta aventura. 37
foi a possibilidade que nos davam de escapar aos constrangimentos que pesam
sobre o pensamento vigiado.”89
Os surrealistas possuíam o que Breton chama de “apetite do maravilhoso”,
um maravilhoso irrecuperável, presente apenas na infância. O que eles tentavam
era agarrar o impossível, ou, pelo menos, recriá-lo. Outro elemento fundamental
38 para o surrealismo era o amor, um amor total, idealizado principalmente por Bre-
ton. Como tudo no movimento, o amor ideal flertava com Sade, sem, contudo,
perder o sentido ético de tentativa de salvação do mundo. “Se o surrealismo levou
ao zénite o sentido desse amor ‘cortês’ de que geralmente se faz partir a tradição
dos cátaros, também frequentemente se debruçou com angústia sobre o seu nadir
e foram essas diligências poéticas que lhe impuseram o resplendor do gênio de
Sade, à maneira de um sol negro.”90
O movimento surrealista teve data de nascimento e morte de alguma ma-
neira precisos91, mas o espírito surrealista pode-se considerar eterno. Já existia
antes do movimento e perdura até os nossos dias92. Em 1932, Breton escreve em
Les vases communicants:
Era mais que uma definição de um poeta do futuro, mas uma clara descrição
do que fez o movimento e de seu legado.
89
André Breton, Entrevistas, pp. 88-89.
90
Op. cit., p. 144.
91
“O movimento surrealista viveu um período bem preciso: dos anos pós-Primeira Guerra Mundial,
quando nasceu, até 1969, data de sua dissolução.” (R. Ponge, “Mais Luz!” in Robert Ponge (org.), O
Surrealismo, Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS, 1991, p. 26).
92
“Em função desta dupla realidade - de um lado, a dissolução do surrealismo enquanto grupo organizado;
por outro lado, a permanência e antiguidade das ideias-força que o surrealismo defendeu - é que se
passou a distinguir o ‘surrealismo histórico’ (c. 1922-1969) do ‘surrealismo eterno’ (conforme termi-
nologia adotada por Jean Schuster no manifesto de dissolução, O quarto canto).” (Op. cit., p. 29).
93
André Breton, Les vases communicants, Paris, Gallimard, 1955, p. 170.
II.
SURREALISMO E CINEMA
II.1. SURREALISMO E CINEMA
um meio dinâmico, já que o livro, segundo eles, era “static companion of the se-
dentary, the nostalgic, the neutralist, cannot entertain or exalt the new Futurist
generations intoxicated with revolutionary and bellicose dynamism.” O cinema fu-
turista iria cooperar para uma renovação geral, tomando o lugar da literatura e
“killing the book (always tedious and oppressive).”105 Jean Epstein no seu texto “O
44 Cinema e as Letras Modernas” enumera uma série de “estéticas” da Sétima Arte
que contaminam a literatura. A velocidade do novo século, bem traduzida pelo ci-
nema, é também uma das marcas determinantes das vanguardas:
vessado pela realidade – uma imagem que nos remete a um sonho de André Bre-
ton – um homem que caminhava com o corpo cortado perpendicularmente por
uma janela. O princípio do surrealismo e, de alguma forma, o princípio do cinema.
Como a janela que cortava ao meio o homem do sonho de Breton, a realidade
atravessa o corpo da criação artística: a fotografia e o cinema, mesmo em suas
manifestações mais radicais110, trazem consigo a marca feita de luz da realidade 45
captada. Ao capturar o mundo, temos uma indicialidade inegável, que, por vezes,
afastou cinema e fotografia, do status de ARTE.
Yuri Lotman111 afirma que o caráter de verdade que o cinema possuía no prin-
cípio foi um dos factores que menos contribuíram para a transformação desta au-
tenticidade em instrumento de cognição, ou seja, da sua transformação numa
verdadeira arte. Porém, como tudo em nosso século supersônico, logo descobri-
ram o caráter poético do novo meio e sua liberação do automatismo técnico, fa-
zendo com que intelectuais de vanguarda o aceitassem como a Sétima Arte.
O cinema foi rapidamente mostrando como transformava a realidade que o
atravessava em imagens muito particulares. Foi aprendendo a caminhar com seus
próprios meios e, para alguns, como André Malraux, o ato inaugural da Arte cine-
matográfica foi o corte dentro da cena. Ou seja, o ato inaugural, que fez o cinema
afirmar-se enquanto arte, foi o aparecimento da montagem. Para outros, talvez,
a importância do corte dentro da cena e a possibilidade de reorganizar o mundo
filmado não seja tão importante e definidor. Sabemos que as querelas em torno
da montagem dividiram os teóricos realistas e formalistas, diríamos até, os teóricos
como Bazin, com uma forte tendência fenomenológica (o mundo que se apresenta
à câmera, como uma epifania, que não deve ser maculada pela manipulação da
montagem112). A montagem constitui-se, portanto, num centro convergente/di-
pode ser encarada como um documento apontado para a pré-existência do elemento que ela de-
nota.” (Ismail Xavier (org.), O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência, 2ª ed., Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 12).
110
Mesmo nos experimentos do Cinema Puro, onde Brakhage, Kubelka e outros tentaram não fazer
filmes (abandono da narrativa), mas trabalhar com a materialidade do cinema, não fugiram da
realidade da luz para criar seus experimentos. (Ver op. cit., pp. 85-90).
111
Yuri M. Lotman, Estética y semiótica del cine, Barcelona, Gustavo Gili, 1979, passim.
112
Falar sobre André Bazin é sempre uma tarefa complexa. Se por um lado podemos classificar a sua
teoria de realista, em contraponto à teoria formalista do cinema, não podemos negar que, como
Amédée Ayfre, Bazin conseguiu manter uma abordagem fenomenológica do cinema bastante bem
fundamentada. Se Ayfre defendia que “O cinema, longe de ser um frio registro do mundo, é um re-
gistro daquela relação simbiótica entre intenção e resistência, entre autor e material, mente e as-
sunto.” (Cf. Dudley Andrew, As Principais Teorias do Cinema, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989, p.
248), Bazin, em seu já antológico ensaio “Ontologia da Imagem fotográfica”, defende que “A foto-
grafia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução.” (André
Bazin, “Ontologia da imagem fotográfica” in O Cinema, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 22). Portanto,
para ambos, o registro da imagem feita pela fotografia e/ou pelo cinema tem a capacidade de
transcender e revelar o mundo, pois ambos contêm traços do mundo em suas representações. O
que Bazin afirma sobre a fotografia pode ser estendido ao cinema pois, para ele, “o cinema vem a
ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica.” (Op. cit., p. 24). Por isso o que Dudley An-
drew diz sobre Ayfre em relação ao cinema neo-realista pode ser aplicado a Bazin: “Ele (Ayfre) o
MIRIAN TAVARES
vergente de opiniões, mas, sem dúvida, numa das principais questões propostas
pelo cinema.
Partindo da montagem como ato inaugural, ou ponto crucial do cinema, ire-
mos analisar com mais detalhe a relação entre o cinema e as vanguardas do início
do século, principalmente a sua relação com o surrealismo. Os surrealistas sempre
46 admiraram o cinema, fundamentalmente aquele que se aproximava bastante da
estrutura dos sonhos, como os primeiros filmes de Chaplin e Buster Keaton. Para
Breton, dois filmes conseguiram ser, de fato, surrealistas: Un chien andalou e L’âge
d’Or. Aliás, o cartão de visitas de Buñuel para o movimento foi precisamente o
primeiro filme que realizou conjuntamente com Dalí. Por isso a importância de
um cineasta, que como poucos fez o cruzamento do cinema com a vanguarda,
participando da criação de vários atos inaugurais que iriam perdurar na cinema-
tografia do nosso século. Luis Buñuel, cineasta e surrealista (ou vice-versa) – par-
ticipante ativo de um movimento vanguardístico, poeta das imagens, construtor
de um universo peculiar e aterrador, capaz de deixar explodir na tela todo o horror
e fascínio de uma super realidade que está escondida sob o nome de inconsciente
– conseguiu, através de sua obra cinematográfica, abrir o olho de um mundo que
se obstinava na cegueira.
Le plaisir du jeu, o prazer que animou o movimento surrealista, é o que dá
vida à obra de Luis Buñuel e do cinema de vanguarda de um modo geral. Os ele-
mentos agônicos presentes na obra de Buñuel lembram-nos que a regra funda-
mental do jogo do cinema é a ambiguidade e a entrega ao abismo, segundo o
glossário de Leiris, Abîme = vie secrète des amibes113, o jogo de palavras e a busca
do sentido que está além do nosso olhar cotidiano.
opôs ao ‘verismo’ e ao ‘realismo socialista’ nos quais o homem controla aquilo que a realidade sig-
nifica.” (Op. cit., p. 248). No fundo, o que ambos pretendiam era defender a imagem do mundo
que se revela para a câmera da manipulação desta revelação processada no realismo socialista ou
do cinema verdade que ignorava “os desejos e valores do homem [...] em favor de uma realidade
bruta. O neo-realismo foi, para ele e para Bazin, um realismo humano que ilustrou com sua própria
técnica o incessante diálogo do homem com a realidade física.” (Ibidem).
113
Eduardo Peñuela Cañizal, ao analisar as mutações que podem vir a ser evocadas por uma simples
palavra, cita algumas definições do glossário de Leiris, dentre elas, a acima citada. (Surrealismo,
pp. 41-42).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
mais uma continuação de seu trabalho fotográfico, apesar da sua inserção total
no ideário surrealista, e de que seus filmes, juntamente com os primeiros de Bu-
ñuel, constam de todas as listas de filmes considerados surrealistas. Além destes
filmes, surgiram outros, considerados por Sadoul como obras sem importância:
Reflets de Lumière et de Vitesse, de Henri Chomette (irmão de René Clair), que,
segundo Sadoul, “limitou-se a amontoar cristais debaixo de projectores e a uma 55
montagem bastante desajeitada dos negativos de uma floresta vista de um auto-
móvel”.144 Será, contudo, no surrealismo, que irá surgir uma das obras-primas da
vanguarda: Un chien andalou.
O dadaísmo e a arte abstrata deram lugar ao surrealismo. O primeiro filme
surrealista é La Coquille et le Clergyman, de Germaine Dulac. O poeta Antonin Ar-
taud fez o argumento e depois rejeitou o filme. Vários foram os motivos, o princi-
pal talvez tenha sido a realização de Germaine Dulac que não atingiu o objetivo
do poeta: “He pensado que se podía escribir un guión que no tuviera en cuenta el
conocimiento y la ligazón lógica de los hechos [...]. Es decir, hasta qué punto este
guión puede asemejarse y emparentarse a la mecánica de un sueño sin ser el
mismo sueño, por ejemplo”.145 Se Dulac não realizou a ambição de Artaud, Buñuel
e Dalí, com Un chien andalou, chegaram bem perto.
Jorge Luis Borges escreveu certa vez: “É uma observação vulgar dizer que as
alegorias são toleráveis na razão directa de sua inconsistência e da sua indefinição;
o que não significa uma apologia da inconsistência e da indefinição, mas sim uma
prova – um indício, pelo menos – de que o gênero alegórico é um erro”.146 Un
chien andalou não é um filme alegórico. Nem tão pouco um tratado de psicanálise
sujeito a interpretações. É uma grande metáfora surrealista147, construído com as
mesmas técnicas propostas por pintores e poetas do movimento, aproximando-
se ainda do conceito de montagem de atração de Eisenstein.
Talvez por não possuir um programa fechado de intenções, o filme de Buñuel
e Dalí conseguiu o tão almejado intento de trazer à tona a estrutura dos sonhos.
Concretizar nas telas o desejo do surrealismo.
sua relação com o cinema, tentando esclarecer, não só o que seria um cinema sur-
realista, como também o que havia de surrealismo no cinema tout court. De um
modo geral, quando se fala de cinema e vanguardas, com seus manifestos e teo-
rias, pouco se fala de uma teoria surrealista do cinema, ou mesmo de um movi-
mento concreto que agrupe cineastas e teóricos do cinema e do surrealismo. Mas
56 é inegável a relação entre ambos e como, de várias maneiras, sofreram interpe-
netrações. O que os estudos e depoimentos publicados nesta revista fazem é ten-
tar recolocar a relação entre cinema e surrealismo, não só como um encantamento
que o primeiro exerceu sobre o segundo (e vice-versa), e provando como, de fato,
é possível se falar de um cinema surrealista.
“S’INTERROGER sur les relations qu’entretinrent et qu’entretiennent encore
le Cinéma et le Surréalisme, c’est considérer en fait la persistance ou le déclin de
cette aventure étonnante que constitue le Surréalisme tout entier.”148 Se formos
buscar dados concretos encontraremos poucos textos que se relacionam direta-
mente com o cinema e que foram produzidos pelo movimento. Um deles é Hands
off Love e o outro Manifeste des surréalistes a propos de L’âge d’or.
Alguns membros do surrealismo, como Aragon e Artaud, escreveram textos
sobre o cinema, mas sem formular propostas concretas para a realização de filmes
surrealistas. O que encontramos são impressões gerais que inserem o cinema no
meio da produção do movimento149, ou seja, falar sobre surrealismo e cinema é com-
preender o movimento em si e sua aventura no campo das artes de um modo geral.
Quando os surrealistas publicam, em La révolution surréaliste de 1º de ou-
tubro de 1927, um editorial em defesa de Chaplin, não estava se colocando aqui
nenhuma questão estética à primeira vista. Em Hands off Love, título do texto, os
148
Cf. Georges-Albert Astre, no prefácio do primeiro volume da revista Etudes cinématographiques
dedicados ao surrealismo. Para Astre, a importância do surrealismo em nossa era é inegável, pois
o surrealismo “n’a jamais cessé de vivre” a sua atitude de exploração contínua dos limites e, prin-
cipalmente, a sua exploração “de tous émerveillements et tentative pour rendre possible tout le
soi-disant impossible.” Astre acredita que o movimento conseguiu aproximar-nos de uma realidade
mais rica, mais complexa e mais fascinante. Breton, logo ao princípio, percebeu “cette magie ex-
ceptionelle des dépaysements filmiques”, o ato surrealista diante do cinema é mais que um ato de
construção do filme, mas também um ato renovado de recepção. “Inutile de dissimuler : l’intérêt
de la relation Cinéma-Surréalisme est ailleurs” (pp. 3-5). Da mesma forma que Breton, no final do
I Manifesto proclama : “C’est vivre et cesser de vivre qui sont des solutions imaginaires. L’existence
est ailleurs.” O que está em qualquer outra parte é que nos interessa então.
149
Cf. Joël Magny: “Si le cinéma est très souvent évoqué dans les escrits surréalistes, s’il est souvent
annexé aux diverses champs d’application du surréalisme, rares sont cependant les textes qui
tentent de théoriser l’articulation de la pratique cinématographique au projet surréaliste.” (“Prémiers
écrits, avant-garde français et surréalisme”, CinémAction, nº 20, ago/82, pp. 12-20). Para Ramona
Fotiade, os surrealistas desenvolveram a sua estética no cinema, principalmente através dos textos
e roteiros, apesar da produção de filmes ter sido muito pequena. E esta estética do filme surrealista
“concentrates on the essentially visual nature of the medium and reflects the influence of avant-
garde painting and of early experiments in photography.” (“The untamed eye: surrealism and film
theory”, Screen, vol. 36, nº 4, inv/95 p. 403), o que reforça a ideia de que os escritos surrealistas
sobre o cinema estavam dentro de um contexto maior que envolvia as ideias defendidas pelos sur-
realistas em todos os campos artísticos.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
“Les surréalistes s’enthousiasment pour le cinéma qui fait apparaître «les om-
bres des grandes réalités»”.158 O caráter onírico do filme, a imagem que surge das
e nas sombras, vai permitir o desenvolvimento de um cinema dito surrealista. Nas
telas, tenta-se recriar a poesia feita de palavras e de objetos pertencentes ao
mundo da pintura. Mas se os surrealistas defendiam uma criação espontânea atra-
vés das várias técnicas propostas por eles (como a escrita automática), como falar 59
de um cinema surrealista, já que não é possível este grau de espontaneidade na
realização de um filme?159 Se Man Ray, segundo M. Beaujour, consegue aproximar-
se ao máximo do automatismo, Buñuel aproxima-se mais aos pintores surrealistas,
como Magritte que “pèche par son abandon théorique de l’automatisme.”160
Talvez tanto Buñuel como Magritte tenham pecado contra um dos princípios
do surrealismo. Resta-nos perguntar então se, de fato, houve uma escrita auto-
mática pura em toda a arte surrealista. O próprio Breton reconhece a dificuldade
de se atingir os estados segundos tão desejados pelos surrealistas. A escrita (ou a
arte de um modo geral) verdadeiramente automática era uma utopia. Com o olhar
da distância temporal, Breton faz reflexões muito lúcidas que comprovam a im-
possibilidade de deixar-se dominar totalmente pelo automatismo no ato de cria-
ção. Reconhece ainda que mesmo os que utilizaram a escrita automática para
produzir um poema, mais tarde selecionaram os trechos que eles consideravam
mais conseguidos literariamente.
Michel Beaujour acredita que tanto o cinema como as artes que se reclamam
surrealistas estão condenadas “à des compromis bâtards par la rigidité d’une doc-
trine elaborée dans l’intention d’amener une révolution, non pas esthétique, mais
morale et sociale”161; esta condenação não é mais que todo o comprometimento
ético que guiou o surrealismo em todas as suas ações. Não nos esqueçamos das
palavras de Gianni Rondolino quando diz que as relações entre o surrealismo e o
cinema eram antes éticas do que puramente estéticas. Da mesma forma que anos
mais tarde Buñuel vai dizer que a necessidade de comer não justifica a prostituição
da arte162, também na defesa a Chaplin feita pelos surrealistas deparámo-nos es-
sencialmente com questões éticas.
158
E. Lièvre-Crosson, op. cit., p. 55.
159
Michel Beaujour em um ensaio intitulado “Surréalisme ou cinéma ?” (Etudes cinématographiques,
38-39, pp. 57-63), afirma: “Le cinéma, par essence, n’est pas un art de spontanéité et d’improvisation.
[...] l’homme à caméra est condamné à ne pouvoir se passer du monde sensible, médiatisé par
une machine et par une organisation sociale assez complexe.”. O que ele vai discutir é também até
que ponto havia automatismo em certas obras da pintura surrealista. Breton vai reconhecer uma
espécie de para-surréalisme em obras mais elaboradas de Miró ou Dalí, distantes das frottages de
Max Ernst pela não aceitação de uma criação puramente irracional.
160
Op. cit., p. 61.
161
Michel Beaujour, op. cit., p. 61.
162
Glauber Rocha em um artigo publicado na revista Trafic (este texto fora escrito inicialmente em
1962 e o que a revista publica é fruto de várias reescrituras de Glauber), “Les douze commandements
de Notre Seigneur Buñuel” cita uma entrevista que Buñuel concede a um jornalista, na qual ele
afirma: “Oui j’ai fait des films commerciaux, mais j’ai toujours suivi mon principe surrealiste: la né-
cessité de manger n’excuse jamais la prostitution de l’art.” (Trafic, inv. 93, nº 5, p. 97).
MIRIAN TAVARES
surrealistas no cinema. Experiências estas que perduram até nossos dias presentes
nas obras de cineastas tão diversos como os anteriormente citados.
A definição de uma sensibilidade surrealista é fundamental para percebermos
que o surrealismo está além do movimento e que influenciou o cinema de diversas
formas. O reconhecimento desta influência ultrapassa as barreiras das vanguardas
quando Vincente Minnelli, um clássico diretor hollywoodiano, diz que: “As possi- 61
bilidades de emprego do surrealismo no cinema são amplas e excitantes.”168, assim
sendo, falar de surrealismo e cinema é sempre falar de algo que ultrapassa as teo-
rias cinematográficas tornando-se necessário entender a concepção que os sur-
realistas possuíam do cinema para definirmos o que pode ser considerado,
efetivamente, cinema surrealista.
Como regra geral diz-se que “Poucos filmes são, na essência, puramente sur-
realistas”169. Aqueles que são assim considerados, La coquille et le clergyman, de
Germaine Dulac; L’étoile de mer, de Man Ray e Robert Desnos e os dois primeiros
de Buñuel e Dalí, Un chien andalou e L’âge d’or170, são normalmente acompanha-
dos do primeiro filme de Cocteau, de alguns filmes de Jean Vigo indo até Animal
Crackers dos irmãos Marx, além de alguns desenhos animados. Mas, se retomar-
mos Cocteau, quando afirma que todos os filmes são surrealistas, fica difícil en-
contrarmos o cinema surrealista que, conforme acreditamos, está além dos filmes
acima citados, mas também não abrange todos os filmes.
Já em 1979, na “XV Confrontation Cinématographique de Perpinyà”, que foi
dedicada ao cinema surrealista, encontrou-se uma grande dificuldade em carac-
terizar este dito cinema171. Só aqueles filmes que estavam ligados diretamente ao
movimento é que possuíam esta classificação, apesar de apontar-se para a influên-
cia muito mais vasta do surrealismo pelo cinema de um modo geral. O que iremos
tentar aqui é ultrapassar um pouco esta definição de cinema surrealista puro e
perceber que muitos filmes, além do movimento, permaneceram surrealistas. Ao
invés de partirmos das teorias de cinema, faremos o caminho inverso, iremos ao
encontro do que o surrealismo pensou sobre o cinema e qual a sua concepção
deste meio maravilhoso capaz de reproduzir a estrutura dos sonhos.
Em 1924, Max Morise publica uma crônica, Les beaux- arts, no nº 1 de La ré-
volution surréaliste. Dentre outras coisas ele defende que “la sucession des ima-
ges, la fuite des idées sont une condition fondamentale de toute manifestation
surréaliste.”172 Para Morise existe uma plástica surrealista presente na literatura,
pintura ou fotografia realizadas pelo grupo. Ora, a possibilidade que o cinema ofe-
recia de sucessão de imagens e, principalmente, de promover uma simultaneidade
168
Apud G. Betton, op. cit., p. 15.
169
Ibidem.
170
Esta lista nos é fornecida por G. Betton. No livro Textos y manifiestos del cine, o filme de Man Ray
e Desnos não consta do rol do considerado cinema surrealista puro.
171
Cf. Joaquim Romanguera i Ramio e Homero Alsina Thevenet, op. cit., p. 112.
172
Pp. 16-17.
MIRIAN TAVARES
maior que em outras artes, como a pintura e a escultura, “ouvre une voie vers la
solution de ce problème.” Além disso, o cinema, arte que acontece no tempo, está
muito próximo do desejo surrealista de concretizar uma imagem que começa num
instante e vai, e volta, traçando uma curva comparável “à la courbe de la pensée”.
Portanto, se para os surrealistas, como já foi dito, a possibilidade de recuperar
62 o curso do pensamento, ou seja, a correnteza do inconsciente e deixá-la aflorar
na sua própria extensão temporal, é componente essencial do seu fazer artístico,
o cinema surge como algo que possibilita tecnicamente a realização desta arte173.
Outra componente importante da arte surrealista é a tentativa de recuperar não
só o curso dos pensamentos como o do próprio sonho.
O espírito que está presente na criação de La révolution surréaliste em 1924
é o espírito de empreender uma luta contra o domínio cartesiano da razão. Con-
forme Breton, os colaboradores da revista estavam de acordo quanto aos seguin-
tes pontos: “o mundo circundante, que se diz cartesiano, é insustentável,
mistificador, sem graça, e são justificadas quaisquer formas de insurreição contra
ele.”174 Era preciso alterar o estado das coisas e buscar uma via que não mais di-
vidisse o homem em dois: razão e instintos. Partindo dos ensinamentos de Freud,
o que os surrealistas buscavam, principalmente no campo dos sonhos, era mostrar
a capacidade destes de revelar mais sobre o homem que a razão pura dos estados
de vigília: “Para Freud, este mundo é o símbolo de desejos inconscientes, de ten-
dências inconfessadas; e, ao decifrá-lo, o homem chegaria a uma consciência in-
tegral de si próprio.”175
Tendo então o cinema a capacidade de reproduzir a estrutura dos sonhos,
permitindo uma circularidade promovida pelas condensações e deslocamentos
presentes nos mesmos, a atenção que os surrealistas vão dedicar a esta arte será
ainda maior do que o que o movimento irá efetivamente realizar neste campo. O
que não significa que o modo de pensar e de fazer cinema surrealista não tenha
influenciado um conjunto significativo de cineastas ao longo do tempo. Além da
possibilidade de trabalhar temporalmente as imagens e de promover uma narra-
tiva que pode prescindir da linearidade, o humor, presente sobretudo nos primei-
173
Cf. Y. Duplessis: “É, pois, o cinema que irá oferecer o máximo de possibilidades aos surrealistas.
Primeiro, porque se desenrola no tempo, reproduzindo assim o decurso do pensamento; depois,
porque é constituído por fotografias objectivas que, graças à colagem, permitem que o maravilhoso
se integre no real, restituindo-lhe a sua profundidade.” (Op. cit., p. 73).
174
A. Breton, Entrevistas, pp. 109-110. Breton continua citando Ferdinand Alquié, que, “num texto dos
mais circunspectos intitulado “Humanismo surrealista e existencialista”, publicado em 1948 nos Ca-
hiers du Collège Philosophique, coloca o problema com a maior das clarezas: “Declarar que a razão
é a essência do homem significa já cortá-lo em dois, coisa que a tradição clássica nunca deixou de
fazer, ao separar no homem o que é a razão, e por isso mesmo verdadeiramente humano, daquilo
que não o é, ou seja, instintos e sentimentos, assim considerados humanamente indignos.”
175
Cf. Y. Duplessis, op. cit, p. 37. Duplessis ainda afirma que: “O Surrealismo teve, pois, a originalidade
de reabilitar o sonho, de lhe atribuir tanta ou mais importância que à vigília, sob o ponto de vista
psicológico e mesmo metafísico.” (p. 38).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
ros filmes de Mack Sennet, Chaplin e dos Irmãos Marx176, constitui-se num ponto
de atração que o cinema irá exercer sobre o movimento.
No capítulo anterior vimos que o humor é uma das componentes da criação
surrealista, principalmente o humor negro presente nas obras de Cravan, Vaché e
Jarry. Breton, em sua Anthologie de l’humour noir, recorre a Freud para mostar a
importância do humour, que não só é profundamente libertador como também 63
possui quelque chose de sublime et d’élevé. Se para Freud o humour ajuda a su-
perar o sofrimento das realidades exteriores, para Breton, o humor negro nasceu,
dentre outras coisas, para ser l’ennemi mortel de la sentimentalité.177
Freud, no ensaio El chiste y su relación con el inconsciente, faz uma lista das
diversas técnicas do chiste.178 Ali encontramos técnicas também utilizadas pelos
surrealistas na elaboração de seus textos como a condensação feita através da
formação de palavras/imagens mistas e o uso do duplo sentido, pois ao criar uti-
176
“Le cinéma, dans la mesure où non seulement comme la poésie il représente les situations succes-
sives de la vie, mais encore il prétend rendre compte de leur enchaînement, dans la mesure où,
pour émouvoir, il est condamné à pencher vers les solutions extrêmes, devait rencontrer l’humour
presque d’emblée.” (A. Breton, Anthologie de l’humour noir, p. 14). Em seu livro Babaouo, roteiro
para um futuro filme surrealista (que não se realizou), Salvador Dalí tece comentários numa espécie
de introdução do livro, que funciona também como um compêndio, muito particular, da história
do cinema. Para Dalí, poucos são os filmes que valem a pena ser vistos e que, de fato, possuem
algo de lírico, sem ser sentimentalóide ou cheio do que ele chama de lixo psicológico. Dalí não
gosta de Chaplin, mas aplaude Mack Sennet e os Irmãos Marx com seu antológico Animal Crackers,
filme de 1930, ano de lançamento de L’âge d’or. (S. Dalí, Babaouo, Barcelona, Ed. Labor, 1978, pp.
20-41). Em um dicionário muito particular, Fernando Trueba comenta a atração que os surrealistas
sentiam por filmes como, por exemplo, os dos irmãos Marx. Para Trueba, o que os surrealistas
exaltavam nos filmes cômicos americanos era o que eles viam como anarquia destruidora, em seu
estado mais puro e infantil. Trueba acredita que “las películas más surrealistas son aquellas que lo
son involuntariamente, inconscientemente.” (Fernando Trueba, Diccionario de cine, 3ª ed., Barcelona,
Planeta, 1998, pp. 270-272).
177
A. Breton, Anthologie de l’humour noir, pp. 9-16. Segundo Y. Duplessis: “O humor não é só a marca
de um espírito que se não deixa submergir pelos acontecimentos, tem também o seu lado grandioso,
pois exprime a vontade do eu se libertar da realidade, ao ponto de se tornar insensível às suas in-
vestidas.” (Op. cit., p. 28).
178
“Hemos llegado a conocer ya tantas y tan diversas técnicas del chiste, que convendrá formar una
relación de ellas para evitar olvidos o confusiones. Tratemos entonces de resumirlas:
I. Condensación:
a) con formacion de palabras mixtas;
b) con modificaciones.
II. Empleo múltiple de un mismo material:
c) total o fragmentariamente;
d) con variación del orden;
e) con ligeras modificaciones;
f) con las mismas palabras, con o sin sentido.
III. Doble sentido:
g) significando tanto un nombre como una cosa;
h) significación metafórica y literal;
i) doble sentido propiamente dicho (juego de palabras);
j) equívoco (double entendre);
k) doble sentido con alusión. (S. Freud, “El chiste y su relación con el inconsciente” in Obras
completas, tomo 3, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1997, p. 1049).
MIRIAN TAVARES
Para Benjamin Péret, como para outros surrealistas, o próprio Breton, inclu-
sive, as possibilidades aventadas pelo cinema não foram muito longe. O cinema
distanciou-se cada vez mais daquilo que eles desejavam ver nas telas. Da poesia
de alguns filmes ficou apenas a sombra de um desejo não realizado plenamente.188
Vincente Minnelli (em um depoimento à revista Etudes cinématographiques)
reconhece que o surrealismo, ao pregar a liberdade absoluta na criação e ao re-
correr a uma “libre assemblage de ces objects”, corre o risco de cair em mãos de
talentos superficiais capazes de acreditar que um caos amorfo pode ser conside-
rado uma obra de arte surrealista. Ao contrário, Minnelli afirma que a liberdade
da forma pregada pelos surrealistas impõe “une discipline plus sévère, à la usage,
186
Claude-Jean Philippe, “La comédie burlesque et le surréalisme”, Etudes cinématographiques, 40-
42, 1965, pp. 247-251.
187
Benjamin Péret apud Ángel Pariente, Diccionario temático del surrealismo, Madrid, Alianza Editorial,
1996, pp. 88-89.
188
Para Salvador Dalí, “Contrariamente a la opinión común, el cine es infinitamente más pobre y más
limitado, para la expresión del funcionamiento real del pensamiento, que la escritura, la pintura, la
escultura y la arquitectura.” (Babauou, Barcelona, Ed. Labor, 1978, p. 21).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
que les formes plus conventionelles d’expression”189. Por isso ele considera o filme
de Cocteau, Le sang d’un poète, a despeito da confusão de símbolos e imagens, le
chef d’ Œuvre de l’utilisation du surréalisme au cinéma. O que Minnelli defende
do filme de Cocteau é a profunda disciplina presente no ato de construção do
filme em que nada escapa ao realizador: se vemos na tela um encadeamento de
imagens que parece surgir do acaso, é pura ilusão, pois tudo foi devidamente tra- 67
balhado e possui uma cadeia de sentidos muito própria.190
O testemunho de Minnelli é muito lúcido, mas traz-nos de volta o problema
da possibilidade de existência de um filme surrealista ao considerar que a obra de
Cocteau é exemplo máximo da boa utilização do surrealismo no cinema, ao
mesmo tempo que reconhece que a construção do filme é extremamente traba-
lhada e que a sequência de imagens que aparentemente não se relacionam não
são frutos do acaso ou da escrita automática, mas de uma logique inéluctable trés
personelle. Podemos, assim, pensar que os princípios básicos do surrealismo não
estão presentes neste filme e que, consequentemente, Le sang d’un poète não
pode ser considerado um legítimo filme surrealista.
Voltamos novamente a um paradoxo da criação surrealista, que, diga-se de
passagem, não é pertença exclusiva do cinema: um dos princípios básicos do sur-
realismo era atingir os chamados estados segundos no ato da criação, ou seja,
criar a partir do livre ditar do inconsciente, deixando vir à tona tudo aquilo que
tentamos domesticar ou compreender. A base do surrealismo são as imagens,
mesmo quando tratamos da literatura, porque, como Freud, os surrealistas acre-
ditam que a narração imagética é muito mais capaz de atingir o espaço do incons-
ciente e dos sonhos. Ao mesmo tempo, o próprio Breton reconheceu mais tarde
a dificuldade, senão a quase impossibilidade, de ser-se fiel a este princípio na con-
secução final de uma obra. Por outro lado, os filmes que os surrealistas consideram
mais próximos de si são justamente aqueles que se aproximam mais de uma es-
crita automática, como, por exemplo, os primeiros de Buñuel.
Ao analisar a linguagem poética do surrealismo, Robert Bréchon diz que a
mesma não obedece a uma lógica discursiva no encadeamento das ideias, apre-
sentando-se como “une construction où on n’emploierait ni joints ni ciment”.191
Muitas vezes há uma discordância entre o sentido e a sintaxe causando uma rup-
tura acentuada no discurso, mais ainda pelo uso muito particular da pontuação,
chegando, em alguns casos, a suprimi-la pura e simplesmente. Para Bréchon a re-
jeição da pontuação, processo, segundo ele, criado por Apollinaire e Cendrars e
generalizado pelo surrealismo, tem a função de “rétablir la continuité de la parole
poétique”192. O texto surrealista compõe-se então do movimento contínuo da pa-
lavra (ausência de pontuação) e da descontinuidade das imagens.
189
Vincente Minnelli in “Témoignages”, Etudes cinématographiques, pp. 170-171.
190
Ibidem.
191
Robert Bréchon, op. cit., pp. 176-177.
192
Ibidem.
MIRIAN TAVARES
Em 1925, Jean Goudal, que segundo Ramona Fotiade foi um dos primeiros a
comentar a relação entre o surrealismo e o cinema, afirma que a imagem cine-
matográfica representava “a conscious hallucination, and utilizes this fusion of
dream and consciousness which Surrealism would like to see realized in the literary
domain”193. A fusão do sonho com estados de consciência, uma das bandeiras sur-
68 realistas, não deve ser ignorada, porque dá-nos a exata medida do que eles con-
sideravam como sendo tradução fiel de seus princípios. E o filme de Jean Cocteau
estava longe de enquadrar-se no modelo de cinema imaginado pelos surrealistas.
O que os surrealistas propunham era desmontar a construção da lógica nar-
rativa (tanto a nível sintático como semântico), o que explica largamente a sua
atração por autores como Mallarmé, Rimbaud e, claro, Isidore Ducasse. Explica
também a atração por um meio, como o cinema, capaz de, através da montagem
e de suas outras possibilidades técnicas, romper com regras de escrita e construir
uma narratividade completamente imagética. Mas este rompimento não prescin-
dia de uma ligação com o real pois eles buscavam o maravilhoso e, conforme Bré-
chon, o maravilhoso para os surrealistas nascia de uma presença advinhada e
desejada, ao contrário do mistério, que era sempre uma ausência194.
O cinema de Cocteau ilustra, junto ao de Marcel L’Herbier, uma tendência
contra a qual os surrealistas se insurgiram. Da mesma forma que eles rejeitaram
o cinema abstrato195, opuseram-se também ao cinema estético dos realizadores
acima citados196. Em uma crônica publicada no nº 7 da revista Documents, Robert
Desnos condena vivamente cineastas que os surrealistas não aprovavam:
193
Jean Goudal apud Ramona Fotiade, op. cit., p. 396.
194
Op. cit., p. 90.
195
Em 1927, Antonin Artaud, a propósito do roteiro que escrevera a partir de um sonho e que logo
seria realizado por Germaine Dulac, Le coquille et le clergyman, tece algumas considerações sobre
o cinema e o que deveria ser o cinema, atacando a ideia de um cinema puro (abstrato) por este
distanciar-se dos meios de representação mais objetivos. Assim, para Artaud, o cinema puro era
um erro: “Es un principio muy particularmente terrenal que las cosas no pueden actuar sobre el
espíritu más que a través de un cierto estado material, un mínimo de formas sustanciales suficien-
temente realizadas. Existe quizá una pintura abstracta que prescinde de los objetos, pero el placer
que se obtiene de ella conserva una cierta apariencia hipotética, con la cual, verdaderamente, el
espíritu puede contentarse.” (Antonin Artaud, “El cine y la abstracción” in op. cit., p. 9).
196
Cf. Ramona Fotiade: “It was both the ‘pure’ or abstracte cinema and the aestheticist tendencies -
as illustrated by Jean Cocteau and Marcel L’Herbier - that Surrealists most strongly opposed and
from which they dissociated themselves on various occasions.”(Op. cit., p. 401).
197
Robert Desnos, “Cinéma d’avant-garde”, Documents, nº 7, dezembro 1929, pp. 385-387. Cito a
partir da edição facsimilada publicada pela Éditions Jean-Michel Place, Paris, 1991.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
poetry visible and audible.”211 Para Philippe Soupault, Cocteau é um truqueur, uti-
lizando recursos fáceis para exprimir a complexidade de um poema.
Jean Cocteau, conforme Soupault, “a dénaturé ce mouvement qui commen-
çait à se former avec René Clair, Picabia et Man Ray; son Sang d’un poète, comme
d’ailleurs ses autres films, est une espèce de contrefaçon des tendances surréalis-
72 tes, de l’inspiration surréaliste, de ce que nous aurions pu et voulu faire.”212 (o itá-
lico é meu). Encontramos no termo contrefaçon a definição perfeita de um cinema
que não estava inserido dentro dos ideais do movimento surrealista, mas bebia
de suas fontes, transformando o que era legítimo e original em mera falsificação.
A insistência no tema Cocteau provém do fato de acreditar que as contrafac-
ções acabaram por ser confundidas com os originais, o que gera até hoje bastante
confusão na hora de delimitarmos o que é, ou o que foi, o cinema surrealista. Se
pensarmos no movimento surrealista em si, com data de nascimento e óbito,
vemos que poucas foram as produções, apesar de que, como espectadores, mui-
tos foram os filmes incluídos na lista do grupo de Breton. Se pensarmos no espírito
surrealista, considerado eterno, ou se pensarmos – como disse o próprio Cocteau
–, que todos os filmes são surrealistas, não haveria necessidade desta angústia da
definição. Mas o que pretendo é recuperar as ideias centrais do surrealismo en-
quanto movimento, o que foi por eles produzido na área do cinema e que influên-
cias reais tiveram sobre o restante das produções cinematográficas.
É bastante sintomática esta afirmação de Buñuel: “Em nenhuma das artes
tradicionais há, como no cinema, tamanha desproporção entre possibilidade e
realização”213. Para aqueles que participaram do surrealismo, que pensaram que
o cinema era um veículo perfeito para suas realizações, a vitória das contrafacta
é patente. Contudo, a influência que este grupo exerceu sobre o cinema não pode
ser negada. Se a relação entre os surrealistas e o cinema está ailleurs, não quer
dizer que não exista efetivamente, e que um cineasta como Buñuel não a tenha
carregado ao longo de sua obra.
211
Jean Cocteau, “La sang d’un poète” in Richard Abel (ed.), French Film Theory and Criticism, 1907-
1939, vol. II, Princenton, Princenton University Press, 1988, p. 89.
212
Philippe Soupault, “Entretien avec Philippe Soupault par Jean-Marie Mabire”, Etudes cinémato-
graphiques, p. 31.
213
Luis Buñuel, “Cinema: instrumento de poesia” in Ismail Xavier, A Experiência do Cinema, p. 334.
III.
O SURREALISMO ESPANHOL
III.1. O SURREALISMO ESPANHOL
Para compreendermos a relação de Buñuel com o surrealismo espanhol, atra-
vés das manifestações artísticas da geração poética de 27, é necessário, antes de
mais nada, compreendermos o que foi este movimento de vanguarda. Partindo
da obra de Ortega y Gasset, La deshumanización del arte, por ser uma obra-chave
75
para a compreensão das vanguardas (não só das espanholas), empreenderei uma
caminhada em torno de figuras bem diferenciadas, mas unidas por um traço ge-
racional, como Lorca, Alberti, Cernuda ou Aleixandre. Tentarei ainda delimitar os
pontos de contaminação entre a obra destes poetas e o cinema de Buñuel.
O tema da desumanização da arte na geração poética de 27 ocupou um largo
espaço na crítica. Na realidade, quase obsessivamente, o célebre ensaio de Ortega
y Gasset serviu de ponto de partida para rotular um momento da lírica espanhola
e hispano-americana sem que fosse desmistificado aquilo que não passava apenas
de mais uma das intuições do conhecido pensador. É preciso redescobrir o texto
e tentar empreender uma nova leitura que seja mais acertada e aproxime-se ver-
dadeiramente do que era feito então pelo grupo que ficou conhecido como La ge-
neración del 27.
O clima vanguardista que se vivia em toda Europa também estava presente
em Espanha. Desde o afrancesamento da cultura espanhola, observado em todo
o século XVIII, não se respirava um ambiente tão distante do tradicionalismo214,
traço que caracterizou os pontos altos das expressões artísticas espanholas215. Em
1918 surge em Espanha o movimento ultraísta que em 1923 já se teria esvaído,
como disse Guillermo de Torre, “sin pena ni glória”. No ultraísmo há uma conver-
gência de todos os conceitos vanguardistas do momento (futurismo, dadaísmo,
etc.)216. O seu primeiro manifesto limita-se a proclamar a urgência de criar uma
arte nova, bem como sua necessidade de renovação. Não obstante, em 1920, Guil-
lermo de Torre superará o simples desejo de renovação, considerando que o poé-
tico deverá ser forjado com o que há de mais puro e eterno na poesia.
214
“[...] el afrancesado ilustre y talentudo Don Leandro Fernández de Moratín (1760-1828) para el
que, como hemos visto, ya la literatura de los siglos XVI y XVII entera y el teatro, sobre todo,
estaban dominados por el mal gusto y las ideias estragadas de los libros de caballerías, que en su
tiempo se seguían leyendo por el ‘pueblo’”. (Julio Caro Baroja, Ensayo sobre la literatura de cordel,
Madrid, Ediciones de la Revista de Occidente, 1969, p. 24). “Confusamente el ultraísmo intentó ser
una ruptura y una inauguración a la par. Consiguió lo primero, ¿pero logró enteramente lo segundo?
Aparte las incorporaciones extranjeras ¿se apoyaba en algo sólido, propio, contaba, en una palabra,
con antecedentes inmediatos válidos? (Guillermo de Torre, Historia de las literaturas de vanguardia,
II, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1971, pp. 191-192).
215
Cf. Octavio Paz: “lo primero que hay que decir es que, en realidad, no hay una literatura española:
hay una literatura europea, más exactamente una literatura euroamericana (desde el siglo XVI)”.
(Octavio Paz, Las cosas en su sítio, México, Finisterre, 1971).
216
Guillermo de Torre em 1920, através de seu “El manifiesto vertical”, declara: “Nuestra literatura
debe renovarse; debe lograr su ultra, y en nuestro credo cabrán todas las tendencias, sin distinción,
con tal que expresen un anhelo nuevo. Más tarde, estas tendencias lograrán su núcleo y se definirán
[...]”. (Apud Gustav Siebenmann, Los estilos poéticos en España desde 1900, Madrid, Ed. Gredos,
1973, p. 228).
MIRIAN TAVARES
desses traços que irão atingir seu mais alto grau, principalmente no sobrerrea-
lismo224, designação hispânica para o surrealismo, construída pela pertinente tra-
dução do termo francês.225
crita metafórica e labiríntica e lutar contra o que havia de mais tradicional e clás-
sico na cultura hispânica que obrigou este poeta a uma espécie de marginalidade
literária.
De certa forma, a Geração de 1927 não vai de encontro ao que havia ante-
riormente em termos de criação artística. Se ao recuperar Góngora entram em
80 confronto com certa tradição que o rejeitara, não deixam, entretanto, de aprovei-
tar-se das lições desta mesma tradição. Como dirá Aleixandre: “Nuestra generación
no fue una generación parricida; ha querido continuar una tradición, no rom-
perla”.231 Segundo Arturo Ramoneda, na introdução a Antología poética de la ge-
neración del 27, estes poetas “sólo se alzaron contra el modernismo apolillado,
contra el amaneramiento, la ramplonería, el sentimentalismo melodramático, la
rutina, la vulgaridad, y, en definitiva, contra la mala poesía y contra todo lo que
en el arte significara rutina y adocenamiento.”232
Quando Federico de Onís chama a estes poetas de ultraístas, encontra uma
certa justificativa para sua afirmação. Afinal, os ultraístas eram o fruto da junção
de diversas referências vanguardistas. O problema é que a coincidência neste
ponto, a aceitação de várias influências, não justifica a (con)fusão das duas corren-
tes. Como acertadamente critica Guillermo de Torre, “el término de ultraístas ni si-
quiera en un sentido muy lato, puede servir para designar indistintamente a todos
los poetas españoles surgidos desde 1918. […] Porque ese rótulo sirvió para nom-
brar de modo unívoco a los cultivadores de una tendencia muy determinada.”233
Para evitar algumas confusões é que Carlos Marcial de Onís, como já foi dito
anteriormente, prefere a denominação Geração da Revista de Occidente. Esta re-
vista iniciada por Ortega y Gasset irá introduzir em Espanha as mais diversas ten-
dências da arte que se respiravam por toda a Europa. Também é nesta revista que
todos irão publicar, não só poemas, como ensaios sobre poesia, sendo inclusive
uma das principais responsáveis pela entrada do surrealismo no país. De qualquer
forma, não irei deter-me mais na discussão sobre a validade ou não de um ou
outro rótulo pelo qual estes poetas tornaram-se conhecidos; talvez a mais acer-
tada delas seja a preferida por José Luis Cano, “la generación de la amistad”, apesar
de que a mais conhecida e adotada até hoje, seja mesmo Geração de 1927.234
“Hay que destacar, en primer lugar, la estrecha amistad que los unió” e,
assim, para Ramoneda,235 a importância da amizade que os ligava não pode ser
ignorada. Pois dentre as muitas diferenças, que torna tão difícil classificá-los como
participantes de um mesmo grupo, a amizade cultivada por todos, não presente,
231
Aleixandre apud Arturo Ramoneda, Antología poética de la generación del 27, Madrid, Ed. Castalia,
1990, p. 43.
232
Arturo Ramoneda, op. cit., p. 43.
233
Guillermo de Torre, Historia de las literaturas de vanguardia, Madrid, Guadarrama, 1965, p. 368.
234
Cf. Arturo Ramoneda: “Sin embargo, aunque destacados críticos recientes se inclinen por el rótulo
‘Generación de la vanguardia’, las denominaciones más aceptadas y populares han sido, por motivos
bastante defendibles, las de ‘Generación del 27’ y ‘Grupo poético del 27’.” (Op. cit., p. 34).
235
Arturo Ramoneda, op. cit., p. 40.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
ÁNGELUS
Sentado en el columpio
el ángelus dormita
Enmudecem los astros y los frutos
MIRIAN TAVARES
presentes, por exemplo, no creacionismo, e que, de fato, não houve uma revolução
surrealista em Espanha – sequer possuíam uma revista e nem a denominação foi
unificada: surrealismo, superrealismo e suprarrealismo. Mas a revolução surrea-
lista francesa vai eclodir também em Espanha, deixando suas marcas, apesar da
resistência de poetas que, como Lorca, jamais aceitariam este rótulo239.
82 “El surrealismo no es en la poesía española un movimiento que surja de la
nada, ya que tiene un período de incubación y una razón de ser en la dinámica de
los movimientos literários.”240 Para Onís, o surrealismo espanhol ou a poesia por
ele influenciada parece ser o ápice de uma evolução que principia já no roman-
tismo e é renovada com o modernismo. Seu período mais fértil vai de 1928 até
1935, data da publicação de La destrucción o el amor de Aleixandre. Principia exa-
tamente no ano seguinte ao das comemorações do tricentenário de Góngora.
Neste momento, Onís acredita que os preciosismos formais do poeta barroco já
não cabiam na nova poesia de Cernuda, Aleixandre, Alberti e Lorca.
É importante observar, no entanto, que, conforme Bodini,
Siebenmann vai sublinhar aqui a influência de Apollinaire, ressaltando que a construção gráfica do
poema torna-o plurissignificativo. (G. Siebenmann, op. cit., pp. 230-231). Não é portanto de estra-
nhar a presença de outros ismos no surrealismo espanhol.
239
Em uma carta a Sebastiá Gasch, Lorca diz: “Aquí te mando los dos poemas. Yo quisiera que fueran
de tu agrado. Responden a mi nueva manera espiritualista, emoción pura descarnada, desligada
del control lógico, pero ¡cuidado!, con una fuerte lógica poética. Nos es surrealismo, ¡ojo!, ¡ojo!,
con una tremenda lógica poética.” (Apud G. Siebenmann, op. cit., p. 333).
240
C. M. de Onís, op. cit., p. 67.
241
Vittorio Bodini, I poeti surrealisti spagnoli. Saggio introduttivo e antología, Torino, Einaudi, 1963,
pp. XXVII-XXVIII.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
El arte poético de Góngora vale hoy para los nuevos porque es arte
y porque es poético: Nada más. Otros paralelismos no existen, si no
84 es el de la verdadera intención estética que anima, como a Góngora,
a los poetas del nuevo renacimiento lírico... Admirar, comprender a
Góngora, no es ser gongorino ni gongorista, es ser persona; tener
gusto y entendimiento de persona humana, simplemente.246
ções. Mas o trabalho de Alberti não é motivado por um espírito de imitação. De um modo geral, as
influências, “Si las hay, predominio de la metáfora, gusto de lo perfecto en muchos de ellos, etc.,
no son fundamentales, sino adjetivas, y no vienen de Góngora, sino van coincidir con Góngora,
para cobrar en su ejemplo augusto nuevo aliento y nuevo impulso. Góngora no influye, reinfluye.”
(Dámaso Alonso, “Góngora y la literatura contemporánea” in Obras completas, V, Madrid, Gredos,
1978, p. 768).
246
José Bergamín apud Dámaso Alonso, op. cit., p. 769.
247
Buñuel não se sentiu atraído pelos gongoristas, pois para ele Góngora era “la bestia más inmunda
que ha parido madre.” (Apud Juan Cano Ballesta, “Luis Buñuel: el joven cineasta y el mundo de las
vanguardias”, Turia. Revista cultural, nº 28-29, maio de 1994, pp. 171-191).
248
Dámaso Alonso, op. cit., p. 769.
249
Gaston Bachelard, La terre et les rêveries de la volonté, Gallimard, Paris, 1976, p. 8.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Não significa, porém, que haja uma identidade ou uniformidade em suas obras. As
experiências pessoais, bem como sua própria sensibilidade, traçaram distintos ca-
minhos. Fica, porém, a mesma angústia (pelo homem) e a mesma fé (no homem).
A partir destes fatores torna-se evidente que o que mudou na estética dos
finais dos anos 20 – e que se prolongará em Aleixandre até mais tarde – foi a cons-
ciência: consciência do que é ser homem; consciência da relação do homem com 85
a natureza e, principalmente, consciência de sua inconsciência. Esta lucidez joga
nesta sinfonia estética como contraponto da já assinalada visão mítica. São ambos
inseparáveis e complementares. Voltando até as suas origens o homem torna-se
dono do seu passado num afã de construir, a partir de seu processo de construção,
ou seja, voltar atrás em busca de um tempo perdido e remoto do qual descolou-se
há muito tempo.
Há que se fazer notar algumas diferenças entre o surrealismo espanhol e o
francês. Cernuda irá apontar uma forte influência do creacionismo nos poetas sur-
realistas espanhóis. Talvez mesmo uma confluência de intenções. Mas, como bem
observa Cernuda, “el creacionismo carece de la rebeldía, que era el rasgo del su-
perrealismo, así como del aspecto mágico de éste.”250 Por outro lado, temos que,
enquanto os franceses aprofundaram a teoria e enriqueceram o mundo com seus
manifestos, os espanhóis quase que simplesmente poetaram.
Muitas são as obras que se debruçaram sobre o problema do surrealismo es-
panhol e as questões das suas origens. Aqui, limitar-nos-emos a apontar alguns
dados fundamentais da entrada do surrealismo em Espanha. O primeiro contato
direto dos espanhóis com o surrealismo deu-se através de uma conferência pro-
ferida por Aragon em 18 de abril de 1925 na Residência dos Estudantes251, em Ma-
drid. Mas mesmo antes do manifesto surrealista existir, Breton havia estado no
Ateneu de Barcelona em 17 de novembro de 1922. Picasso já residia em Paris
quando aparece o manifesto, em 1924, chegando mesmo a escrever alguns poe-
250
Luis Cernuda, Estudios sobre poesía espanõla contemporánea, 4ª ed., Madrid, Guadarrama, 1975,
p. 147.
251
Juan Manuel Bonet, em seu Diccionário de las vanguardias en España (1907-1936), Madrid, Alianza
Editorial, 1995, pp. 57-58, considera a conferência de Aragon bastante provocadora. Alguns frag-
mentos desta conferência serão publicados no nº 4 da revista La Révolution surréaliste de 15 de
julho 1925. Sob o título “Fragments d’une conférence”, encontramos um texto que procura ser
surrealista não só no significado das palavras, mas na sua própria construção. A grande preocupação
de Aragon é fazer-se compreender por pessoas que, além de não participarem do movimento,
provinham de uma outra cultura e vivência. Assim sendo, Aragon principia: “Qui sont ces gens?
Qu’ai-je à faire avec eux? Etrangers je sors du train noir. Il n’y a rien de commun entre vous et moi.
Voici que vous êtes devant moi comme l’alcool au fond d’un verre, et je bois le lac de vos regards.
Quels chemins, quels signes d’encre, quelles conjonctions d’astres, quels dessins purs dans le ciel
transparent, non rien, toute explication serait dérisoire.” Mais adiante, Aragon pergunta: “Mais
vous, hommes d’ailleurs, comment entendriez-vous ce que je vais vous dire?” O texto de Aragon é
pontuado de provocações que, de alguma maneira, buscam a reação e o envolvimento daqueles
que o escutam. Finaliza por dizer: “Riez bien. Nous sommes ceux-là qui donneront toujours la
main à l’ennemi.” (Louis Aragon, “Fragments d’une Conférence”, La révolution surréaliste, nº 4, 15
de julho/25, pp. 23-25).
MIRIAN TAVARES
252
“Aunque francés de origen, el superrealismo llegó a convertirse en movimiento internacional, y eso,
más que la influencia literaria, se debió quizá a que respondía a una rebeldía de la juventud, a un
estado de ánimo general entre la mocedad por aquellos años.” (Luis Cernuda, op. cit., pp. 147-148).
Se o surrealismo, como uma vez dissera Buñuel, era um chamado geral através do espaço que poderia
ser respondido por todos aqueles que se identificassem com seus valores, alguns poetas espanhóis
ouviram este chamado das mais diversas formas. Carlos Marcial Onís, em seu já citado livro, El sur-
realismo y cuatro poetas de la generación del 27, dá-nos um quadro bastante completo de como este
chamado surrealista fez-se ouvir em Espanha. (Veja-se C. M. de Onís, op. cit., pp. 67-85).
253
G. Siebenmann, op. cit., p. 333.
254
Cf. Carlos Marcial de Onís, op. cit., p. 84. Onís vai identificar ainda três períodos no surrealismo es-
panhol, a saber:
“1. Un período de incubación, que va desde 1924 a 1927, período en que va entrando en España
las nuevas corrientes y los poetas más jóvenes de la generación van tomando conciencia de un
nuevo modo literario que van a transformar en un producto español.
2. Un período de asimilación y plenitud, que va desde 1928 a 1935, fecha esta última de la publi-
cación de La destrucción o el amor, de Aleixandre. [...]
3. Un período de desintegración, que se opera durante y después de la guerra civil, quedando, sin
embargo, operantes o en disponibilidad, ciertas adquisiciones permanentes, siendo el verso
libre y la intensificación del fenómeno visionário las más importantes.” (Op. cit., pp. 84-85).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Em 1927, Lorca escreve uma carta a Ana Maria Dalí, na qual evoca imagens
já nitidamente surrealistas: “Los peces de plata salen a tomar la luna..., Entonces
mi recuerdo se sienta en una butaca...”255. Os peixes de Lorca fazem-nos pensar
em Breton: “A verdade apoia-se nos juncos matemáticos do infinito e tudo avança
à ordem da águia à garupa, enquanto o génio das esquadrilhas vegetais bate nas
mãos e o oráculo é pronunciado por fluidos peixes eléctricos”256. Ainda em Poisson 87
soluble, texto que Breton edita em 1924, encontramos uma bela definição para a
tarefa dos poetas surrealistas: “Somos os criadores de destroços; nada há no nosso
espírito que se possa vir a desencalhar. Tomamos lugar no posto de comando
aquático destes balões, destes maus navios construídos segundo o princípio da
alavanca, do guindaste e do plano inclinado.”257
O peixe assume um lugar importante no imaginário surrealista. Sendo parte
constituinte deste imaginário, tal como os pássaros e todo um bestiário que evoca
sempre o inconsciente, o não domesticado. Na contracapa do primeiro número
de La révolution surréaliste encontramos a palavra “surréalisme” escrita sobre o
corpo de um peixe. Conforme Jean-Paul Clébert, “Cet anonymat du poisson sur-
réaliste n’est pas fortuit. Et si l’on s’étonne de la rareté des termes ichtyologiques
dans la póesie surréaliste, c’est qu’on n’a pas bien compris le rôle particulier de
cet animal habitant des profondeurs aquatiques, et comme tel symbole du sub-
conscient ou de l’inconscient colectif.”258
O Poisson soluble de Breton foi considerado por Ferdinand Alquié uma obra
chave do surrealismo259. Talvez por ser fruto de “ ‘cinq années d’activité expérimen-
tale’, est en ce qui concerne la prise de conscience, un point de départ, non un
point d’arrivée”260. Um ponto de partida para alcançar a verdadeira existência, que,
para Breton, está sempre ailleurs. O peixe, símbolo do inconsciente261, é solúvel no
seu próprio elemento, a água. O retorno perfeito em busca do paraíso perdido da
inconsciência absoluta e da integração mais profunda aos elementos primevos.
Para Julien Gracq, “Les poèmes de Poisson soluble témoignent de l’accord
parfait, dans toute l’étendue de la gamme du clair à la obscur, d’un écrivain qui
n’as pas à se soucier de mettre sa pensée d’accord avec ses rêves”262. A ambigui-
255
Federico García Lorca apud G. Siebenmann, op. cit., p. 332.
256
André Breton, “Peixe solúvel” in Manifestos do Surrealismo, 4ª ed., Lisboa, Salamandra, 1993, p.
64. O Manifeste du surréalisme (1924) é seguido por 32 textos automáticos produzidos por Breton
para ilustrar o procedimento da escrita surrealista. Estes textos são reunidos sob o título de Poisson
soluble. No próprio manifesto Breton afirma: “N’est-ce pas moi le poisson soluble, je suis né sous
le signe des Poissons et l’homme est soluble dans sa pensée.”
257
Op. cit., p. 69.
258
Jean Paul-Clébert, Dictionnaire du surréalisme, Paris, Seuil, 1996, p. 90.
259
“Poisson soluble me paraît, encore aujourd’hui, non certes la plus forte, mais la plus significative
des l’œuvres surréalistes: c’est, en tout cas, une l’œuvres clé.” (Ferdinand Alquié, op. cit., p. 13).
260
F. Alquié, op. cit., p. 14.
261
É importante observarmos que os surrealistas rejeitavam a interpretação cristã para o peixe. Ver
Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 90.
262
Julien Gracq apud Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 479.
MIRIAN TAVARES
I Las estatuas sufren por los ojos con la oscuridad de los ataúdes,
pero sufren mucho más por el água que no desemboca.
Que no desemboca.
2 El pueblo corría por las almenas rompiendo las canãs de los pescadores.
¡Pronto!!Los bordes!!De prisa! Y croaban las estrellas tiernas.
...que no desemboca.
265
G. Siebenmann, op. cit., p. 341.
266
Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 570.
MIRIAN TAVARES
que permitia uma reatualização “de l’enfance, de l’âge d’or, des pouvoirs per-
dus”267. Com a possibilidade de cristalizar o tempo, torná-lo liquefeito, a aventura
surrealista inscreve-se in illo tempore, porque se pretende eterna.
Apesar de, na poesia de Lorca, não se detectarem, com frequência, elemen-
tos característicos do surrealismo francês, sempre que se observam apresentam
90 uma cor local que irá demarcar uma certa distância entre ambos. Atrever-nos-
íamos a dizer que o surrealismo espanhol viveu de uma práxis poética, enquanto
que o francês foi mais real em seus manifestos268. De qualquer maneira, há uma
busca em comum que direciona as suas obras: o paraíso perdido. Resta-nos ana-
lisar se a ideia de paraíso era a mesma para todos os surrealistas.
¿Adónde el Paraíso,
sombra, tú que has estado?
Pregunta con silencio.
267
Ibidem.
268
Para obter-se um panorama mais completo da discussão acerca desta obra de Lorca, ver Carlos
Marcial de Onís, op. cit., pp. 92-95.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Ya en el fin de la Tierra,
sobre el último filo,
resbalando los ojos,
muerta en mí la esperanza,
ese pórtico verde
busco en las negras simas.
¡Paraíso perdido!
Perdido por buscarte,
yo, sin luz para siempre.269
270
“En 1924, Ernst signe un tableau capital: Deux Enfants sont menacés par un rossignol où le contraste
des éléments matériels (barrière, bouton, manette) et des éléments peints témoigne de la colla-
boration de l’externe et de l’interne: les figures - l’homme penché et instable, comme dans les
chutes et les lévitations oniriques - les petites filles qui s’enfuient investissent trop de significations
pour qu’on puisse croire que le peintre n’ait pas attendu et même réglé le spetacle auquel il semble
avoir seulement assisté.” (Gaëtan Picon, op. cit., p. 96). Esta obra de Ernst foi largamente analisada
por vários críticos, não iremos aqui proceder a um desvendamento (impossível) dela, mas elencar
alguns elementos que a aproximam da poesia de Alberti e mesmo do cinema de Buñuel. (Para
uma análise mais detalhada ver Jean-Paul Clébert, op. cit., pp. 243-251; Giulio Carlo Argan, “Il
sublime subliminale di Marx Ernst”, op. cit., pp.13-25).
271
Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 16.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
[...]
Los insectos,
Los muertos diminutos por las riberas,
dolor en longitud,
yodo en un punto,
las muchedumbres en el alfiler,
el desnudo que amasa la sangre de todos
y mi amor que no es un caballo ni una quemadura,
criatura de pecho devorado. […].
272
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, pp. 236 e 238.
MIRIAN TAVARES
Poeta en Nueva York não é uma obra fácil. Para alguns críticos está acima da
produção de Lorca, enquanto que para outros não passa de um equívoco273. Carlos
Marcial de Onís, no entanto, tem uma visão do livro, que, para nós, está muito
próxima do modo surrealista de se estar no mundo: “la ideia obsesionante que
penetra agudísimamente todo el libro, es la ideia de que sólo a través del amor
94 por lo elemental y lo puro, por lo espontáneo de la vida, es posible la salvación
del mundo moderno”274.
Em “Oda al rey de Harlem”, e em todo o livro, está presente a ideia do paraíso
perdido, que de certa forma o poeta acha que reencontra quando chega a Cuba:
[…]
Iré a Santiago.
Brisa y alcohol en las ruedas.
Iré a Santiago.
Mi coral en la tiniebla.275
A lo lejos
Una hoguera transforma en ceniza recuerdos,
Noches como una sola estrella,
Sangre extraviada por las venas un día,
Furia color de amor,
Amor color de olvido,
Aptos ya solamente para triste buhardilla. […]276
273
Para obter-se um panorama mais completo da discussão acerca desta obra de Lorca, ver Carlos
Marcial de Onís, op. cit., pp. 92-95.
274
Op. cit., p. 96.
275
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 302. O poema intitula-se “Son de negros
en Cuba.”
276
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 434.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
conceitos habilmente utlizados pelo autor que nos permitirão apontar algumas
conclusões. Ainda que este crítico considere a segunda um atributo da literatura
latinoamericana, com a devida distância é possível afirmar que na literatura sur-
realista espanhola existe uma participação desta Edad del oro281, se bem que haja
uma fusão desta edad com uma visão utópica do homem e da natureza.
96 No mesmo livro, Machado, ao citar Cioranescu, ajuda-nos a mostrar porque
não é possível simplesmente incluir os textos surrealistas destes autores da Gera-
ção de 27 no marco do utópico: “l’utopie, en sa qualité de véhicule d’idées, invite
à la reflexion plutôt qu’au rêve e ne solicite l’imagination que pour l’appliquer et
la réduire a la raison”282. O movimento pendular entre memória e memória an-
cestral, assim como entre Edad del oro e utopia, está presente na poética dos sur-
realistas espanhóis aqui mencionados, bem como na obra de Buñuel.
Para Luis Cernuda, que um dia escreve sobre a ideia que tinha do Éden numa
revista madrileña dos anos 20, Cruz y Raya, o paraíso edénico localizava-se na An-
daluzia e traduzia, para o poeta, a ideia de felicidade. Corresponderá “Daytona” a
este paraíso andaluz? Não é possível afirmá-lo ao certo, mas pode-se dizer que a
visão paradisíaca de Cernuda tem os pés fincados à terra:
281
Álvaro Manuel Machado entende por Edad del oro o período em que o conquistado (o Inca, o
Azteca, etc.) ainda não havia sofrido as pragas emanadas do conquistador. Este termo é aqui
utilizado para diferenciar a visão nostálgica intelectualizada da verdadeira imaginação.
282
Cioranescu apud Álvaro Manuel Machado, op. cit., p. 18.
283
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 406.
284
José Luis Cano, La poesía de la generación del 27, Madrid, Gredos, 1970.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Sua visão do Éden é ainda mais palpável: “cuando la vida sonaba en las gar-
gantas felices / de las aves, los ríos, los aires y los hombres”. Dos quatro poetas
aqui referidos é este também o que mais inspiração encontra, em seu ideário pa-
radisíaco, no Génesis:
285
Vicente Aleixandre, Poesías completas, Madrid, Aguilar, 1960, p. 74.
286
Génesis 2, 8-17, Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Ed. Paulus, 2002, p. 36.
MIRIAN TAVARES
O rio bíblico tem também sua correspondência na obra deste autor. Não po-
demos deixar de notar que da mesma maneira em outras cosmogonias o céu é
condição sine qua non da vida, da fertilidade e do alimento. Não somente nestes
pontos é possível encontrar paralelismos entre o Génesis e Aleixandre. Na Bíblia,
Deus ordena ao homem que lavre e cuide do jardim; em Aleixandre, os filhos do
campo são confundidos com Adão288. Há como que uma secreta harmonia e en-
tendimento entre os filhos de Adão e o paraíso. O mesmo Aleixandre dirá neste
poema:
sar de não haver comido da árvore da ciência. Assim temos que ignorância e in-
genuidade se assemelham, confundindo-se mesmo com sabedoria.
Como uma grande chave que encerrará em si todos estes conceitos, está a
luz, elemento primeiro da Criação, elemento defensor do paraíso que em Aleixan-
dre fala da Edad del oro; o sol desperta no poeta a memória ancestral.
Em Alberti encontramos a definição do paraíso em “Tres recuerdos del cielo”, 99
poema de Sobre los ángeles:
Alberti definiu o paraíso como um estado mais que um lugar. Claro que o
lugar – o céu – é designado; no entanto deverá ser entendido como espaço sim-
bólico, como elemento de ascensão e não como topos. Pressentimos neste pró-
logo um estado pré-natal em que o sexo, o corpo, o nome, em síntese, a forma,
todavia não fora criada. Espaço do sonho, tempo mítico que necessita de um his-
tórico una vez (recordemos Cernuda: “Hubo un tiempo”...) suficientemente am-
bíguo para mediar uma eternidade e um presente. Mais uma vez aparece a luz
presidindo a Criação.
Mas se em Cernuda, Aleixandre e Alberti encontramos claras visões do pa-
raíso, Éden estabelecido como produto de uma memória, como aspiração e desejo
da Edad del oro, em Lorca, como já vimos, este lugar constrói-se em oposição ao
mundo degradado que envolve o homem. O paraíso pode estar em Santiago de
Cuba, nunca em Nova York. Assim existe uma visão profética mais que uma nos-
talgia do paraíso. Apesar de que em alguns casos, como o citado poema “Oda al
rey de Harlem”, há uma memória ancestral do negro novaiorquino, que, para o
poeta, aspira a sua velha África290. García Lorca forja o paraíso por antítese a Nova
York, cidade que “encarna la forma extrema de la negación de lo especificamente
humano, de la libertad y del amor”291.
289
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 174.
290
Ao analisar o poema em questão, Carlos Marcial de Onís afirma: “Según mi interpretación, Lorca
está descubriendo y visualizando, más bien, materializando, una realidade espiritual de los negros
de Harlem: seres elementales que, por debajo de la capa impuesta por la civilización, tienen una
esencia selvática y primitiva.” (Op. cit., p. 112).
291
Emilia de Zuleta, Cinco poetas españoles, Madrid, 1971, p. 253.
MIRIAN TAVARES
O menino está privado de seus olhos, orelhas, nariz e boca. A árvore mutilada
já não tem onde acolher o canto dos pássaros, os animais estão feridos e a água,
que deveria regar o paraíso, está podre, impura, infecta. Este poema funciona
como prólogo de uma visão obsessiva e febril da degradação que amputou o
mundo. A mutilação é o mote de uma civilização que do paraíso só tem a memória.
Da mesma forma que na natureza os órgãos das espécies sofrem alterações que
permitem uma melhor sobrevivência, o mesmo ocorre ao homem da cidade. É
292
André Breton, Entretiens, Paris, Gallimard, 1952, p. 248.
293
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 232.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
melhor ser autômato, sem olhos, ouvidos ou olfato que cheirar os excrementos,
ouvir os gritos e sentir o sabor da “selva del vómito”. Só lhes resta esperar pela
destruição:
294
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 254.
295
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 80.
296
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 320.
MIRIAN TAVARES
Em “El escarabajo” existe uma memória – opaca297- que lhe recorda que um
dia fue de oro, quer dizer, membro da luz. No entanto, orgulhoso do seu passado,
não pretende ser confundido con una mariposa. O escaravelho tem asas, asas que
foram, mas já não são. Tem o duro caparazón que lhe impede de voar.
O tema do paraíso perdido (e da consciência da perda) é a tônica das visões
102 poéticas de Alberti, Cernuda, Aleixandre e Lorca, obsessão culturalmente entra-
nhada no homem e compartilhada vivamente por estes quatro poetas da Geração
de 27. Toda consciência obriga à ação e, a partir do momento em que se conhece
a perda, passa-se a desejar o perdido e a tentar recuperá-lo. Assim, Alberti escreve:
297
O adjetivo “opaco” corresponde sempre a um depois ou a um tempo posterior ao paraíso.
298
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 116.
III.2. BUñUEL E OS SURREALISTAS ESPANHÓIS
Ao longo deste trabalho aponto algumas obsessões que são constantes na
obra dos quatro poetas da Geração de 27, tais como: o paraíso perdido, a mutila-
ção, as estátuas, a idade do ouro, os insetos e outros animais que participam de
um bestiário também presente no surrealismo francês, referências religiosas e
103
místicas. Enfim, elementos que ligam, apesar das diferenças, a poesia de Lorca,
Alberti, Cernuda e Aleixandre. Ao analisarmos o cinema de Buñuel, acabamos por
deparar-nos com praticamente todas esta obsessões, que, apesar de participarem
também da cosmogonia do surrealismo francês em alguns momentos, estão mais
presentes na obra dos espanhóis, principalmente porque esta obra reitera o tempo
inteiro a sua hispanidad299.
Max Morise, em uma crônica já citada anteriormente, diz: “Ce que l’écriture
surréaliste est à la littérature, une plastique surréaliste doit l’être à la peinture, à
la photographie, à tout ce qui est fait pour être vu.”300 Vimos que a plástica sur-
realista espraia-se por todas as artes, sendo a mesma tanto na pintura quanto na
literatura e no cinema. O cinema de Buñuel realiza plasticamente uma certa lite-
ratura, que não é só dos seus compatriotas, mas de sua própria poesia, escrita
antes de tornar-se um realizador de cinema301.
Em suas memórias, Buñuel recorda o período passado na Residência de Es-
tudantes em Madrid, importante ponto de encontro entre os elementos das van-
guardas espanholas, onde, por exemplo, foi realizada a conferência de Aragon,
um dos marcos da entrada oficial do surrealismo em Espanha. Local também onde
Buñuel conheceu e tornou-se amigo de Lorca e Dalí. Vários episódios vividos por
Buñuel na Residência transformaram-se em cenas de filmes futuros. Naqueles
dias, porém, o cinema ainda não era o centro de suas atenções, mas sim a litera-
tura, que ele confessa ter conhecido mais profundamente pelas mãos de Lorca:
“Juntos, los dos solos o en compañía de otros, pasamos horas inolvidables. Lorca
299
Juan Francisco Aranda, em um ensaio sobre a realização de Un chien andalou, tece o seguinte co-
mentário: “Il nous reste à mentionner le caractère espagnol d’Un chien andalou, aspect qui n’a pas
été étudié par la critique étrangère et auquel je me suis référé dans mon livre Cinéma d’avant-
garde en Espagne. La confusion de l’espace et du temps, parallèlement au fondement théorique
auquel nous avons déjà fait allusion, constitue également une tradition importante du théâtre et
du roman espagnol. La nervosité rythmique est typiquement latine. La brutalité est caractéristique
de notre art.” Aranda complementa ainda o seu raciocíno, lembrando que a técnica de choque uti-
lizada por Buñuel, com a utilização de cenas de impacto violento das quais o espectador não pode
retirar qualquer prazer, onde não há preocupação com a beleza estética, é também uma caracte-
rística da arte tradicional espanhola. (Juan Francisco Aranda, “La réalisation d’Un chien andalou”,
Revue belge du cinéma, 33-35, 1993, p. 20).
300
Max Morise, op. cit., p. 26.
301
“En el principio fue la palabra, por lo menos en el caso de Buñuel. Su carrera artística se inicia en
la literatura [...]. Sus comienzos están ligados a los planteamientos propios de la vanguardia
española de aquel momento, y llevan la huella de uno de sus pioneros y divulgadores más desta-
cados.” (Antonio Monegal, Luis Buñuel - de la literatura al cine, Barcelona, Anthropos, 1993, p. 25).
É óbvio que os “planteamientos” [...] de la vanguardia española” são os da etapa surrealista da Ge-
ração de 27.
MIRIAN TAVARES
INSTRUMENTAÇÃO
para Adolfo Salazar
Violinos
Meninas pirosas da orquestra, insuportáveis e pedantes.
Serras de som.
Violas
Violinos que já chegaram à menopausa. Estas solteironas
ainda conservam bem sua voz de meia tinta.
Violoncelos
Rumores de selvas e de mar. Serenidade. Olhos profundos.
Têm a persuasão e a grandeza dos discursos de Jesus no deserto.
Contrabaixos
Diplodocus dos instrumentos. O dia em que se decidam
a dar o grande berro, pondo em fuga os espectadores espavoridos!
Actualmente, vêmo-los cabecear e grunhir de contentes
com as cócegas que os contrabaixistas lhes fazem na barriga.
Flautim
Formigueiro do som.
Flauta
A flauta é de todos os instrumentos o mais nostálgico.
Ver-se nas mãos de um bom senhor gordo e calvo, ela que,
nas de Pã, era a voz emocionada da pradaria e do bosque!
Mesmo assim continua a ser a princesa dos instrumentos.
por exemplo em Vida secreta: “Lisboa, bajo el frenético canto de los grillos, era una especie de
sartén gigantesca, chisporroteante con todo el hirviente aceite de las circunstancias, donde se
guisaba el porvenir de millares de peces migrantes y voladores, en que se habían convertido los mil-
lares de refugiados de todas clases, nacionalidades y razas.” (apud Augustín Sánchez Vidal, ibidem).
310
J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, op. cit., p. 49. Aranda ressalta ainda que o texto é revelador
de uma visão que Buñuel já possuía da orquestra: um monopólio representativo da burguesia.
Visão esta que será reiterada em vários filmes, como por exemplo, na orquestra de L’âge d’or.
MIRIAN TAVARES
Clarinete
Flauta hiper-atrofiada. Às vezes, o coitado, soa bem.
Oboé
Balido feito madeira. Suas ondas, profundos mistérios líricos.
O oboé foi irmão gémeo de Verlaine.
106
Corno Inglês
É o oboé já maduro, com experiência. Viajou. O temperamento
requintado tornou-se mais grave, mais genial.
Assim, como o oboé tem quinze anos o corno tem trinta.
Fagote
Os professores de fagote são os faquires da orquestra. Às
vezes olham para o tremendo réptil que têm nas mãos e que
lhes mostra a língua bífida. Depois de hipnotizado deitam-no
nos braços e ali se fica, extático.
Contrafagote
É o fagote da terra terciária.
Xilofone
Jogo infantil. Água de madeira. Princesas a fiar no
jardim, raios de luar.
Trompas
Ascensão a um cume. Emersão do sol. Anunciação. Oh
o dia em que se desenrolem como um ‘mata-sogras’!
Trombones
Temperamento um tanto alemão. Voz profética. Chantres
de velha catedral com era e catavento bolorento.
Tuba
Dragão lendário. O seu vozeirão subterrâneo faz tremer
de medo os outros instrumentos, que desatam a perguntar
quando virá o princípio de luzida armadura que os libere.
Pratos
Luz feita em estilhas.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Triângulo
Carro eléctrico de prata através da orquestra.
Tambor
Trovãozinho de sanefa. ‘Algo’ ameaçador.
107
Bombo
Obcecação. Grosseria. Bum. Bum. Bum.
Tímbales
Cestos de azeitonas.311
Federico quer fazer coisas surrealistas, mas falsas, feitas com a inte-
ligência, A QUAL É INCAPAZ DE ACHAR O QUE ACHA O INSTINTO. [...].
Apesar de tudo, dentro do irremediavelmente tradicional, Federico
é do melhor, ou até o melhor, que existe. Alberti chega a produzir em
mim um mal-estar maior que a ideia de um Deus, do que a matéria
fecal que flui no ventre das mulheres bonitas, do que a Sociedade de
Cursos e Conferências, do que a Jota Aragoneza, do que os concertos
da Sinfónica, do que Aladrén; Alberti repugna-me dos quatro costa-
dos.312
Isto o impediu, contudo, de, em suas memórias, muito tempo depois, recor-
dar-se ainda de uns versos de Alberti:
La noche ajusticiada
en el patíbulo de un árbol,
alegrías arrodilladas
le besan y ungen las sandalias [...]313
311
In J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, pp. 63-67. Tendo sido completamente impossível consultar
o original, tive de recorrer à tradução portuguesa. Apesar de a mesma ser da responsabilidade do
poeta surrealista Mário Cesariny, bom conhecedor da língua castelhana, reconheço nesta tradução
alguns problemas.
312
Luis Buñuel apud J. F. Aranda, op. cit., p. 40.
313
Buñuel dirá: “Aquella poesía, que fue publicada en la revista Horizonte y marcó el comienzo de Al-
berti, me gustó en seguida.” (Mi ultimo suspiro, p. 70).
MIRIAN TAVARES
314
“O título do meu livro de agora é O Cão Andaluz, o que nos fez mijar de riso, a mim e a Dalí,
quando o encontrámos. Devo advertir-te de que não há um só cão em todo o livro. Mas fica muito
bem e muito dócil. Além de risonho e idiota”. (Luis Buñuel apud J. F. Aranda, Os Poemas de Luis Bu-
ñuel, p. 31). Quando surge o filme, Lorca sente-se ofendido com o título pois, para o escritor
andaluz, Buñuel e Dalí faziam alusão não só a sua pessoa como ao grupo gongorino e a sua estética.
Buñuel acaba por negar esta hipótese: “No es así. La gente cree encontrar alusiones donde quiera,
si se empeña en sentirse aludida. Federico García Lorca y yo estuvimos enfadados por algunos
años. Cuando en los años 30 estuve en Nueva York, Angel del Río me contó que Federico, que
había estado tambíen por allí, le había dicho: ‘Buñuel ha hecho una mierdesita así de pequeñita
que se llama Un perro andaluz y el perro andaluz soy yo’ [...]”. (Luis Buñuel apud Augustín Sánchez
Vidal, Luis Buñuel, Madrid, Cátedra, 1994, p. 131).
315
Ver J. F. Aranda, op. cit., p. 40.
316
Augustín Sánchez Vidal, Buñuel, Lorca, Dalí: el enigma sin fin, p. 216.
317
Augustín Sánchez Vidal, ibidem.
318
Georges Bataille, “Le ‘jeu lugubre’ ”, Documents, nº 7, dezembro de 1929, pp. 369-372. Em uma
nota neste mesmo ensaio (p. 370), Bataille tece comentários sobre o olho cortado de Un chien an-
dalou e afirma que: “Buñuel lui même m’a raconté que cet épisode était de l’invention de Dalí
auquel il a été directement suggéré par la vision réelle d’un nuage étroit et long tranchant la
surface lunaire (je pluis ajouter ici les ânes morts et decomposés, qui se retrouvent dans Un chien
andalou représentent une obsession partagée par Dalí et Buñuel et remontant chez l’un et chez
l’autre à la rencontre semblable, au cours de l’enfance, d’un cadavre d’âne en décomposition dans
la campagne)”. Neste ensaio Bataille analisa o quadro de Dalí, “Jeu lugubre”, remetendo ainda a
“Le sang est plus doux que le miel”, expressão utilizada pelo Conde de Lautréamont em seus
Cantos de Maldoror. É interessante notarmos que a influência de Lautreámont, ou sua sombra,
pesa tanto na obra de Dalí (como na de Buñuel), quanto as memórias da infância e de elementos
típicos da cultura a que ambos acabam por pertencer.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Augustín Sánchez Vidal associa esta passagem do ensaio de Bataille a “la tre-
menda estrofa octava del canto primero del libro de Lautréamont”319, estrofe esta
que, segundo ele, serviu de modelo para Lorca em seu primeiro livro, Impresiones
y paisajes. A figura, ou figuras, dos cães, estará presente na obra de Lorca, sendo
que as imagens sucitadas pelo poema “Paisaje con dos tumbas y un perro asirio”,
contêm, sem sombra de dúvida, coincidências inegáveis com algumas passagens 109
de Un chien andalou. O que faz com que Sánchez Vidal questione: “¿Vió Lorca esta
película antes de escribir esos versos? Y si la vió, ¿cuándo? ¿Antes, durante o des-
pués de su estancia neoyorquina?”.320
O que nos interessa deste questionamento de Augustín Sánchez Vidal é, prin-
cipalmente, a possibilidade de estendê-lo a outras coincidências na obra de Buñuel
e de seus companheiros de geração. Vimos que o cão andaluz não era apenas
Lorca, mas era um elemento presente no imaginário comum dos três amigos
(Lorca, Dalí e Buñuel), alimentado pelas imagens dos Cantos de Maldoror. Mas se
a imagem de um cão, presente emblematicamente na obra de Dalí e presente/au-
sente no primeiro filme de Buñuel, reforça a ideia de ligação entre os que saíram
de Espanha (Dalí e Buñuel), ligando-se mais diretamente ao surrealismo francês,
e os que permaneceram, como Lorca, sem sequer assumirem-se como surrealis-
tas, encontramos ainda outros elementos que comprovam a existência de um ima-
ginário comum, no qual eles se moviam, e que não está necessariamente
conectado com o imaginário francês.
A ideia do paraíso perdido não é pertença exclusiva dos surrealistas espa-
nhóis. Podemos dizer que, de um modo geral, todas as vanguardas são utópicas
– vivem em função de alcançar um determinado topos que está sempre além. O
surrealismo, que sofre influências do romantismo, desloca o conceito de utopia,
já que a ideia do romantismo surge, justamente, de um voltar-se para dentro de
si mesmo, como se este fosse o único lugar possível de salvação. Conforme Giulio
Carlo Argan, “O final da epopéia napoleônica trouxe profundas consequências
para a arte. À queda do herói segue-se uma sensação de vazio, o desânimo dos
319
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 217. Reproduziremos a seguir a estrofe à qual Sánchez Vidal se
refere: “Então os cães, enfurecidos, rompem suas correntes, escapam das fazendas distantes:
correm pelos campos, aqui e ali, possuídos pela loucura. De repente param, olham para todos os
lados com uma inquietação feroz, o olhar em fogo; e assim como os elefantes, antes de morrerem,
erguem no deserto um último olhar ao céu, levantando desesperadamente a tromba, deixando
cair suas orelhas inertes, assim também os cães deixam cair inertes as orelhas, levantam a cabeça,
incham seu pescoço terrível e se põem a uivar, um por vez, como a criança que grita de fome [...].
Ai do viajante retardatário! Os cães se lançarão sobre ele para despedaçá-lo e comê-lo com suas
bocas escorrendo sangue, pois eles não têm os dentes estragados. [...]. Não é por crueldade que
fazem isso. Um dia, com o olhar vítreo, minha mãe me disse: ‘Quando estiveres na cama e ouvires
o uivo dos cães pela campina, esconde-te sob as cobertas e não aches graça no que eles fazem:
eles têm uma sede insaciável de infinito, assim como tu, assim como eu, assim como os homens
de rosto longo e pálido. Permito até mesmo, que fiques junto à janela para contemplares o espe-
táculo tão sublime.’ Desde então, tenho respeitado o pedido da morta. Eu, assim como os cães,
sinto a necessidade de infinito[...]” (Lautréamont, op. cit., pp. 40-42).
320
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 218.
MIRIAN TAVARES
gião é o autêntico protagonista deste filme: “Se mire como se mire, este filme es
un admirable grito de afirmación del hombre y una negación total, absoluta, de la
mística religiosa.”324
Apesar de condenar vivamente a religião, Buñuel não deixa de encená-la. E mais
que a religião, a sua condenação recai sobre a civilização – o homem perde-se a si
mesmo quando é domesticado pelos processos civilizatórios. O retorno às origens 111
é a saída possível para curar uma civilização doente, que além de promover pro-
cessos de mascaramento, aprisiona os homens em atos e gestos que já nada sig-
nificam. Cai-se então no vazio. É importante observarmos que no surrealismo
francês há um ataque a um determinado processo civilizatório que levou ao abur-
guesamento (e consequente embotamento) dos sentidos. Mas as imagens que
povoam as obras francesas não possuem o sentido místico e religioso dos espa-
nhóis. O cinema de Buñuel constrói-se então sobre um duplo eixo – fiel ao imagi-
nário espanhol, não deixa de recorrer ao ideário dos franceses.
Quanto aos outros aspectos citados anteriormente: a mutilação, as estátuas,
e o bestiário que obceca os poetas do surrealismo espanhol, facilmente encon-
tramos correspondentes na obra de Buñuel. A mutilação está presente desde seu
primeiro ato: o olho cortado de Un chien andalou325. Como em Lorca onde, “Con
una cuchara, arrancaba los ojos a los cocodrilos”, com uma navalha Buñuel corta
um olho, tornando este gesto o emblema de toda a sua obra.
As estátuas que em Alberti significam não comunicação, paralisia, morte,
estão presentes, por exemplo, em L’âge d’or. Buñuel, em sua autobiografía diz:
1
Un lit blanc contre un mur gris. Sur les couvertures surgit une danse
de chiffres: 13 et 22.
Deux d’abord, ils finissent par couvrir le lit comme des fourmis mi-
nuscules.
2
Une main invisible arrache les couvertures.
3
De grands pieds courent rapidement avec de gros bas à losanges
blancs et noirs.
4
Une tête effrayée qui regarde fixement un point et se fond pour faire
place
à une tête en fil de fer sur fond d’eau.
5
Une légende qui dit Au secours Au secours Au secours se déplace de
haut en bas
en surimpression sur un sexe de femme.329
327
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 205.
328
Juan Francisco Aranda, “La réalisation d’Un chien andalou”, p. 21.
329
Federico García Lorca, “Voyage à la lune” in Christian Janicot (ed.), Anthologie du cinéma invisible,
Paris, Éditions Jean-Michel Place/ARTE Éditions, 1995, p. 273.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
O roteiro de Lorca, sua obra mais surrealista e também a mais próxima do ci-
nema de Buñuel, apresenta as mesmas questões que povoaram os poemas escri-
tos em Nova York. Nesta obra, Lorca revelava um “Monde du masque et du viol:
amitié languissante, sensualité assassine, amours feintes: dérision, solitude.”330,
o mesmo mundo que habitou o cinema do seu amigo aragonês.
Para Sánchez Vidal, a relação de Buñuel com o grupo liderado por Breton era 113
muito mais de cunho moral que estético. Ele já era surrealista antes mesmo de
entrar no grupo, e sua iniciação deu-se precisamente com os companheiros da
Geração de 27, principalmente por sua amizade com Lorca e pelo fato de frequen-
tar os principais círculos da vanguarda madrilena. O cinema de Buñuel constrói-
se então sobre o eixo da memória, que o liga ao passado e à sua geração em
Espanha, e por uma formulação, mais moral que estética, que ele irá aprimorar a
partir da sua entrada no surrealismo francês. Apesar dos ares parisinos, o som dos
tambores de Calanda nunca desapareceu dos seus ouvidos.
330
Marie Laffranque, “Federico García Lorca” in Christian Janicot (ed.), op. cit., p. 272.
IV.
LUIS BUñUEL:
IL EST DANGEREUX DE SE PENCHER AU-DEDANS
IV.1. LUIS BUñUEL: IL EST DANGEREUX DE SE PENCHER AU-DEDANS
como assistente de Jean Epstein em La chute de la Maison Usher, este tentou pre-
veni-lo contra a forma de expressão irracional proposta pelos surrealistas. Mas a
foto de Benjamín Péret335 insultando um sacerdote, publicada na revista La révo-
lution surréaliste, deixou em Buñuel marcas profundas336. Além da foto de Péret,
a revista trazia um inquérito sobre sexualidade, tratando de uma forma, até então
118 inédita, temas como masturbação, lugares onde fazer amor, preferências sexuais,
etc. Podemos observar que os dois temas da revista, a religião e o erotismo, vão
estar presentes em toda a obra de Buñuel.
Buñuel, desde o princípio, sentiu-se atraído por um certo cinema de van-
guarda, uma produção inexistente em Espanha. Assim, “En 1928, por iniciativa de
la Sociedad de Cursos y Conferencias de la Residencia, vine a Madrid para hablar
del cine de vanguardia y presentar varias películas: Entreacte, de René Clair, la se-
cuencia del sueño de La fille de l'eau, de Renoir337, Rien que les heures, de Caval-
canti [...]”338. Além de apresentar os filmes, Buñuel pensou em lançar uma
provocação surrealista à plateia ali presente, que, em suas palavras, era “o melhor
da sociedade madrilena”. Para ele, aquele momento parecia muito indicado para
anunciar a abertura de um concurso de menstruação e entregar o primeiro prê-
mio. Ato surrealista que ficou apenas na intenção do cineasta.
O livro nunca impresso de Buñuel (que publicou vários dos seus poemas em
revistas de vanguarda da época) torna-se filme. Com o dinheiro dado pela mãe e
com a ajuda de Dalí, Un chien andalou é realizado em 1929, ano em que Buñuel
entra de fato para o movimento surrealista. Mas a memória do livro fica impressa
nas imagens do filme. Para Aranda, “Il est ainsi fascinant d’observer comment les
préoccupations fondamentales de l’auteur de films surgissent déjà dans l’oeuvre
littéraire”. Além disso, a importância do escritor reaparece na elaboração dos ro-
teiros: “Ses scénarios révèlent un travail important d’écrivain”339. Ao lermos os
poemas de Buñuel estamos vendo, em palavras, o que ele concretizou na tela atra-
vés de imagens.
335
Talvez Péret seja o autor do surrealismo francês que mais influenciou a obra de Buñuel. Larraz
acredita que a influência de Péret irá arrastar-se até os últimos filmes do diretor, como é o caso,
por exemplo, de El fantasma de la libertad. Apesar de o filme ter sido baseado em um conto do
poeta romântico espanhol Gustavo Adolfo Bécquer, a influência do poeta surrealista francês parece
ser “más importante en el tono general.” Larraz justifica sua afirmação com palavras do próprio
Buñuel: “Benjamin Péret me entusiasmaba con su humor poético. Lo leíamos Dalí y yo y nos
caíamos al suelo de risa. Había algo allí dentro, un motorcito extraño y perverso, un humor delicioso
de tipo compulsivo. Algo parecido quise hacer con mi última película El fantasma de la libertad.”
(Emmanuel Larraz, op. cit., p. 157).
336
Ibidem.
337
Jean Renoir não pertencia a nenhum movimento de vanguarda e sua obra não possui esta classifi-
cação. Porém, La fille de l’eau, seu filme de estréia, suscitou algumas dúvidas se deveria ou não ser
incluído na vanguarda cinematográfica por sua preocupação pictórica levada ao extremo. (Ver
Georges Sadoul, op. cit., p. 242). Vemos que, para Buñuel, pelo menos a sequência do sonho
tornava o filme de Renoir uma amostra do que era o cinema de vanguarda.
338
Luis Buñuel, op. cit., p. 117.
339
J. F. Aranda, “Luis Buñuel écrivain”, p. 5.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Assim sendo, o seu primeiro filme é construído dentro das técnicas propostas
pelos surrealistas, como por exemplo, a escrita automática e a evocação de esta-
dos oníricos, quase alucinatórios, capazes de trazer à tona aquilo que nosso cons-
ciente reprime e organiza. “Esta película nació de la confluencia de dos sueños.
[...]. Escribimos el guión en menos de una semana, siguiendo una regla muy sim-
ple, adoptada de común acordo: no aceptar idea ni imagen alguna que pudiera 119
dar lugar a una explicación racional, psicológica o cultural. Abrir todas las puertas
a lo irracional”340. Dos sonhos de Dalí e Buñuel surge o filme, um dos poucos que
é considerado verdadeiramente surrealista.
No primeiro Manifeste du surréalisme, Breton afirma que Desnos é um dos
poucos que fala o idioma surrealista por conseguir dar livre curso ao fluxo dos seus
pensamentos e oralizá-los sem tentar retê-los. O cadavre exquis341, a escrita auto-
mática, a indução de sonhos durante um estado de vigília, até mesmo o uso de psi-
cotrópicos na busca de libertar a verdade do inconsciente (método também usado
no início da psicanálise por Freud), são técnicas de criação que dificilmente podem
ser seguidas à risca pelo cinema, pois a materialidade do meio suscita um outro
método de construção, que vem a ser a montagem. A base desta montagem,
porém, pode ser vivamente surrealista, e é isto que vai diferenciar o cinema de Bu-
ñuel de toda uma cinematografia que utilizou a montagem com outros fins (como
por exemplo, o cinema americano e, com as devidas diferenças, o soviético).
Em 1923, no jornal Le Soir, Robert Desnos publica um artigo que convoca os
cineastas a transportarem para a tela os seus sonhos, convocação já feita ante-
riormente no Paris-Journal, em 1923. Mas ele compreendia a dificuldade de rea-
lizar tal intento, conseguido até aquele momento por pessoas como Buster Keaton
e Chaplin. As características essenciais do sonho, por ele enumeradas, ou seja, “a
sensualidade, a liberdade absoluta, o próprio barroco e certa atmosfera que invoca
o infinito [...]”342, eram como territórios inexplorados e alguns estavam fadados
ao fracasso. O grande desafio do cinema surrealista consistia em domar a matéria
até que ela perdesse o seu caráter sólido, torná-la liquefeita como a matéria dos
sonhos. Se não concretizou totalmente esta predestinação natural do cinema, se-
gundo Desnos, Un chien andalou foi o filme que, através de todo seu processo de
construção, chegou mais perto da estrutura do sonho.
Para compreendermos melhor o processo de construção da obra de Buñuel,
e o que faz com que seus primeiros filmes, prólogos de toda a sua cinematografia,
340
Luis Buñuel, Mi último suspiro, p. 118.
341
O Cadavre exquis era um jogo que tentava romper com as mentalidades codificadas. “Várias
pessoas reunidas vão passando sucessivamente um papel, sobre o qual cada um escreve uma
palavra ou faz um traço; acaba-se por obter uma sucessão de frases inverosímeis ou um desenho
que desafia qualquer realidade. O exemplo tornado clássico, e que deu nome ao jogo, refere-se à
primeira frase obtida dessa maneira: Le cadavre exquis - boira le vin noveau”. (Y. Duplessis, op. cit.,
p. 45).
342
Robert Desnos, “Os sonhos da noite transportados para a tela” in Ismail Xavier, A Experiência do
Cinema, Rio de Janeiro, Graal, 1983, p. 320.
MIRIAN TAVARES
IV.1.1. A montagem
O conceito de montagem é muito importante para a teoria do cinema. É con-
siderada por alguns como “el elemento más específico del lenguaje cinematográfico.
Su importancia entre los medios de expressión del séptimo arte ha ido variando en
el transcurso de la historia del cine, pero no parece que su preponderancia se pueda
poner en duda.”343 Se não podemos pôr em causa a sua importância, ou mesmo
preponderância em relação às outras etapas de consecução do filme, não podemos
porém nos esquecer de que o conceito de montagem não é premissa apenas do ci-
nema, sendo herdada tanto da literatura quanto da pintura e da música.
Antes de mais nada, cabe-nos definir em termos técnicos o que vem a ser,
no cinema, a montagem. Segundo Dominique Villain, “Monter un film, c’est le
construire, à partir de la matière, de la pelicule qui a été tournée, et à destination
d’un public de spectateurs sur lesquels certains effets son recherchés – intérêt,
rire, peur, émotion, prise de conscience, etc.”344 Talvez por ser a última etapa na
realização de um filme é que tantos diretores acreditam no poder deste processo,
que, em alguns casos, pode até aperfeiçoar ou mesmo salvar um filme345.
As teorias do cinema, de uma certa maneira, movem-se em torno do conceito
de montagem346. Em alguns casos para defendê-lo (Eisenstein acreditava que “La
343
Albert Jurgenson e Sophie Brunet, La práctica del montaje, Barcelona, Editorial Gedisa, 1992, p. 17.
Vários são os autores que apontam para a importância da montagem, sendo esta considerada um
dos pontos fundamentais da formação da linguagem cinematográfica. Cf. Aumont et al., sendo o
cinema uma arte da combinação e da organização, e sendo que a noção de montagem inclui precisa-
mente estas características, “é possível notar de imediato que se trata de uma noção totalmente
central em qualquer teorização do fílmico.” (Jacques Aumont et al., A Estética do Filme, Campinas,
Papirus, 1995, p. 53). Yuri Lotman reconhece também a importância da montagem, sem deixar de
ressaltar, contudo, que este conceito sempre foi extremamente polêmico. (Y. Lotman, op. cit., p. 67).
344
Dominique Villain, Le montage au cinéma, Paris, Editions Cahiers du cinéma, 1991, p. 7.
345
“[…] el montaje parece gozar de una posición privilegiada, pues su ubicación al final del proceso de
elaboración de un filme le otorga el inesperado poder de confirmar, corregir, transgredir y, en todo
caso, dar forma definitiva al producto que ha atravesado las otras etapas.” (Vicente Sánchez-Biosca,
El montaje cinematográfico, Barcelona, Paidós, 1996, p. 26). Para Orson Welles, a montagem é o
grande momento da realização de um filme. “No puedo creer que el montaje no sea lo fundamental
para el director, único momento en que supervisa de modo integral la forma de su película. El
único lugar donde ejerzo un control absoluto es la sala de montaje. En la sala de montaje se fabrica
toda la elocuencia del cine.” (Apud Albert Jurgenson y Sophie Brunet, op. cit., p. 20).
346
“A história dos filmes a partir do final dos anos 10 e a história das teorias do cinema desde suas
origens manifestavam, de fato, a existência de duas tendências que, sob os nomes de diversos au-
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
tores e escolas e sob formas variáveis, praticamente não cessaram de se opor de maneira frequen-
temente muito polêmica:
- uma primeira tendência é a de todos os cineastas e teóricos, para quem a montagem, enquanto
técnica de produção (de sentidos, de afetos), é mais ou menos considerada o elemento dinâ-
mico e essencial do cinema. Como indica a expressão ‘montagem-rei’, às vezes utilizada para
designar, entre os filmes dos anos 20, aqueles (principalmente soviéticos) que representaram
esta tendência, baseia-se em uma valorização muito forte do princípio de montagem (e até,
em alguns casos extremos, em uma avaliação exagerada de suas possibilidades);
- ao contrário, a outra tendência baseia-se em uma desvalorização da montagem enquanto tal
na submissão estrita de seus efeitos à instância narrativa ou à representação realista do mundo,
consideradas como o desígnio essencial do cinema. Esta tendência, aliás amplamente predo-
minante na maioria da história dos filmes, é muito bem descrita pela noção de ‘transparência’
do discurso fílmico.” (J. Aumont et. al., op. cit., p. 71).
347
Eisenstein apud Y. Lotman, op. cit., p. 67.
348
Albert Jurgenson y Sophie Brunet, op. cit., p. 17.
349
Kulechov, como seus companheiros do formalismo russo, sempre esteve preocupado em realizar
experimentos no intuito de aperfeiçoar e compreender a linguagem do cinema. Seu experimento
mais famoso ficou conhecido por “efeito Kulechov”: “Montando em três segmentos diferentes os
mesmos planos não especialmente expressivos do ator Mozzuchin, em sequência com os planos
de: a) um prato de sopa, b) o corpo de uma mulher arrumado num caixão, c) uma menina brincando,
Kulechov verificou experimentalmente os seguintes resultados: os grupos de espectadores a quem
foram mostrados os três segmentos atribuíram unanimemente à idêntica imagem de Mozzuchin
três expressões de significado completamente diferente: a) de fome, b) de dor, c) de alegria e se-
renidade.” (Antonio Costa, op. cit., p. 213).
350
Marcel Martin apud J. Aumont et al., op. cit., p. 54-55.
MIRIAN TAVARES
O próprio Griffith não se considerava um inventor356, mas alguém que soube ler as
obras de Dickens e perceber o potencial dramático de suas narrativas. Eisenstein se
pergunta ainda por que não outro escritor qualquer, já que o recurso da ação para-
lela não estava presente só na obra de Dickens, mas na de muitos romancistas do
período. O que Dickens possuía, e que de alguma maneira é transmitido para o ci-
nema americano, era uma enorme popularidade, que levava as pessoas a acompa- 123
nhar suas obras com a mesma avidez, a mesma que, por ventura, mais tarde levaria
outras pessoas ao cinema. O que nos importa aqui é reter a presença de uma marca
do romance do século XIX, a ação paralela, como ponto de partida para um modelo
de montagem presente até nossos dias em quase toda a cinematografia clássica357.
Se Griffith e o cinema americano do princípio do século chegaram ao conceito
de montagem, principalmente devido ao uso do recurso da ação paralela, foram os
soviéticos que o aperfeiçoaram e fizeram dele um uso consciente e revolucionário.
Eisenstein e os formalistas estavam criando de fato uma nova linguagem baseada, prin-
cipalmente, nos conceitos de montagem desenvolvidos por eles. Iremos deter-nos ape-
nas nas ideias de Eisenstein, porque ele conseguiu sistematizar um pensamento que
funcionará como um divisor de águas em termos de teoria do cinema.
O artigo a que me refiro, publicado na revista inglesa Close Up, é onde Ei-
senstein fala, pela primeira vez, sobre o conceito de montagem tonal. Apesar de
possuir em sua base, como a montagem rítmica, a ideia da montagem métrica, a
montagem tonal pode ser considerada uma complexificação da montagem rítmica.
Enquanto que a última é impulsionada pelo movimento dentro do quadro, na pri-
meira o movimento é percebido num sentido mais amplo. “O conceito de movi-
mentação engloba todas as sensações do fragmento de montagem. Aqui a
montagem se baseia no característico som emocional do fragmento – de sua do-
minante. O tom geral do fragmento.”361 Por exemplo, se um fragmento possui uma
luminosidade mais sombria, imprime-se aí um determinado tipo de emoção que
será o tom dominante da sequência. Para Eisenstein é possível determinar o som
emocional que predomina em cada fragmento. Apesar da presença do ritmo, o
que vai prevalecer é a organização de vibrações. O som emocional vai determinar
o movimento de uma forma até mais sutil do que na montagem rítmica.
A montagem atonal é, segundo Eisenstein, “o desenvolvimento mais avan-
çado ao longo da linha de montagem tonal.”362 Na verdade os tipos de montagem
360
Op. cit., pp. 78-79.
361
Op. cit., p. 79.
362
Op. cit., p. 81.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
são percebidos a partir do momento em que atuam entre si, em conflito perma-
nente, o que permite uma evolução na passagem da métrica para a rítmica e desta
para a tonal e finalmente, chega-se à atonalidade. O processo torna-se cada vez
mais complexo, pois agora a montagem não é apenas a medida de um fragmento
ou o ritmo que pode ser impresso através da colagem de fragmentos maiores e/ou
menores. O próprio fragmento torna-se fundamental. Trabalha-se a partir do que 125
ele possui de significativo e a montagem será regida por uma ordem interna de-
terminada pelo próprio tom emocional de cada pequena parte.
Para explicar o efeito produzido por este tipo de montagem, Eisenstein re-
corre, mais uma vez, à música, já que é da música que ele retira as leis que regem
sua tipologia. O aumento do grau de intensidade emocional (que decorre da mon-
tagem atonal), “na música [...] é explicado pelo fato de que, a partir do momento
em que tons harmônicos podem ser ouvidos paralelamente ao som básico, tam-
bém podem ser sentidas vibrações, oscilações que deixam de impressionar como
tons, mas sim, em vez disso, como substituições puramente físicas da impressão
percebida.”363 Como exemplo temos algumas sequências de A Linha Geral, se-
quências estas que evidenciam a junção entre as linhas tonal e atonal: “Como nos
vários ‘ângulos’ da procissão religiosa: os que caem de joelhos diante dos ícones,
as velas que derretem, os suspiros de êxtase, etc.”364
Da montagem atonal parte-se para a montagem intelectual. Neste caso
temos um “conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas.”365 No
filme Outubro, a sequência dos deuses é determinada pelo conhecimento intelec-
tual que se tenha de cada fragmento para que faça sentido a associação entre
eles. Para Eisenstein este não era ainda o seu desejado cinema intelectual, mas
apenas um passo em direção a uma nova cinematografia, capaz de produzir uma
verdadeira revolução na história geral da cultura, “construindo uma síntese de
ciência, arte e militância de classe.”366 Alejandro Montiel, ao analisar os métodos
de montagem propostos por Eisenstein, sugere que a sua explicação da montagem
intelectual acaba por se tornar confusa, quando no fundo o que seria importante
frisar era a incorporação do conceito à imagem.
Eisenstein chegou a ser criticado por Kulechov e Pudovkin devido à inserção,
no filme, de alguns conceitos que prescindiam mesmo da ordem narrativa. Ambos
entendiam que
363
Op. cit., p. 83.
364
Ibidem.
365
Ibidem.
366
Op. cit., p. 84.
MIRIAN TAVARES
Apesar das críticas, a montagem intelectual, que acaba por incorporar todas
as outras e elevá-las a um nível mais alto, exigindo não só a cumplicidade emo-
126 cional mas, principalmente, exigindo do espectador uma cumplicidade intelectual,
torna-se a marca de um cinema construído com um intuito básico de promover
uma verdadeira revolução cultural.
O cinema de Eisenstein jamais perdia de vista o espectador. Seus filmes eram
realizados pensando no efeito exato que poderia causar, por isso, sua concepção de
montagem envolvia um estudo aprofundado das possibilidades que o cinema pos-
suía de atingir o espectador. Alejandro Montiel acredita mesmo que “cada uno de
los dispositivos estéticos del film (concebido como una ‘máquina de arte’) debía
estar previsto para controlar sus emociones como una especie de ‘reflejos condi-
cionados’.”368 É importante ressaltarmos este aspecto para que mais tarde possamos
compará-lo com outro tipo de cinema, o surrealista, que apostava na montagem
baseada no devir e não em estratégias pré-concebidas de ação e reações.
Em 1923, Eisenstein escreve seu primeiro ensaio que será constantemente
citado, pois nele encontramos a base de suas concepções sobre a montagem. Em
“Montagem de atrações”, escrito para a encenação no Proletkult de Todo Sabichão
tem um Pouco de Tolo, de A. N. Ostróvski, além de apresentar as ideias do teatro
do proletariado, desenvolve o conceito de atração. Eisenstein diz-nos que, do
ponto de vista teatral:
A sua proposta nada tem a ver com a dos surrealistas, ou mesmo dadaístas,
porque o seu objetivo é atingir um certo efeito temático final, e no caso dos sur-
realistas, o efeito é, quase sempre, imprevisível371.
Um dos fatores a destacar ainda na montagem de Eisenstein é que, partindo
de uma imagem concreta, era possível chegar-se a um conceito puramente abs-
trato. Da mesma forma que nos ideogramas orientais, estudados detidamente
pelo cineasta russo, parte-se de duas figuras diferentes para atingir-se uma abs-
tração, algo que, a princípio, não é representável por meios concretos, no cinema
de Eisenstein as ideias são fruto da junção de dois elementos diversos que, isola-
dos podem significar uma outra coisa, mas quando colocados lado a lado, adqui-
rem a significação desejada pelo cineasta.
370
Op. cit., p. 191.
371
Conforme Alejandro Montiel, quando Eisenstein diz que o objetivo da montagem de atrações é
chegar a um determinado efeito temático final, oferece a chave armônica de sua teoria, “sólo apa-
rentemente similar a la escritura automática de los surrealistas o a la reivindicación de las provi-
dencias del azar del dadaísmo y otros movimientos de vanguardia, porque si bien estos impactos
estéticos pueden provocar extrañamiento (lo que beneficiará el distanciamiento crítico y la reflexión
del espectador, como quería por aquella misma época Brecht) y pueden incluso independizarse de
la linealidad narrativa (como en el célebre caso de La huelga, donde las imágenes de la represión
zarista se alternam con reses sacrificadas en el matadero), siempre deben estar sometidas a la
tiranía del tema o, repetiendo sus propias palabras, deben estar orientadas ‘hacia un determinado
efecto temático final’.” (Op. cit., p. 46).
MIRIAN TAVARES
Portanto, a montagem não pode ferir a autenticidade das cenas, devendo ser
utilizada apenas dentro de limites precisos, sob pena de atentar contra a própria
ontologia da fábula cinematográfica. O cinema defendido por Bazin é aquele que
deixa a imagem fluir de modo quase imperceptível, tornando os cortes o menos
traumáticos possível, para que se tenha uma ilusão de continuidade espacial,
muito próxima daquela calcada na realidade375.
As concepções de Bazin relativas à montagem, conforme Jacques Aumont,
podem ser descritas a partir de três eixos: a montagem proibida; a transparência
e a recusa da montagem sem raccord. A questão da montagem proibida aparece
em um ensaio do mesmo nome, onde Bazin afirma: “Quando o essencial de um
evento depende de uma presença simultânea de dois ou vários fatores da ação, a
montagem é proibida.”376
374
André Bazin, O Cinema, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 60.
375
“O sistema de Bazin baseia-se em um postulado ideológico de base, articulado em duas teses
complementares, que seria possível formular da seguinte maneira:
na realidade, no mundo real, nenhum evento jamais é dotado de um sentido totalmente determi-
nado a priori (é o que Bazin designa pela ideia de uma ‘ambiguidade imanente ao real’);
a vocação ‘ontológica’ do cinema é reproduzir o real respeitando ao máximo essa característica es-
sencial: o cinema deve portanto produzir representações dotadas da mesma ‘ambiguidade’ – ou
se esforçar para isso.” (J. Aumont et al., op. cit., p. 72).
376
André Bazin, Cinema, op. cit., p. 62.
MIRIAN TAVARES
Neste caso, temos que Bazin defende um cinema que mascare a sua quali-
dade de ser cinema, colando-se o mais possível numa impressão de realidade. A
criação do cinema da transparência só foi possível a partir da noção de raccord,
que pode ser definido como “qualquer mudaça de plano em que há esforço de
preservar, de ambos os lados da colagem, elementos de continuidade.”379 E é exa-
tamente a noção de continuidade e de raccord que complementam a visão que
Bazin possuía da montagem – ao recusar a montagem sem raccord ele está apenas
377
J. Aumont et al., op. cit., pp. 73-74.
378
André Bazin apud J. Aumont et al., op. cit., p. 74.
379
Op. cit., p. 77. Aumont vai mais além e cita algumas das figuras de raccord criadas pelo cinema
clássico. A saber:
“- o raccord sobre um olhar: um primeiro plano mostra-nos um personagem que olha algo (em
geral fora do campo); o plano seguinte mostra o objeto desse olhar […];
- o raccord em um gesto: um gesto feito por um personagem começa no primeiro plano, termina
no seguinte (com mudança de ponto de vista);
- o raccord no eixo: dois momentos sucessivos (eventualmente separados por uma leve elipse
temporal) de um mesmo evento são tratados em dois planos, o segundo sendo filmado seguindo
a mesma direção, mas tendo a câmera se aproximando ou afastando com relação ao primeiro.”
(Ibidem.).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
reiterando as outras questões levantadas, pois ao ocultar o processo (que ele re-
conhece inevitável) da montagem, interdita-se o processo em si. Daí a sua prefe-
rência pelos planos longos e pela filmagem em profundidade de campo, em que
mais realidade aparece com o mínimo de cortes possível.
Do mesmo modo que podemos condenar os formalistas por sua paixão des-
medida pela montagem, podemos contestar a visão de Bazin, que propõe o mas- 131
caramento e defende um tipo de cinema em detrimento dos demais. O que nos
interessa deste longo debate entre teóricos com diferentes posições é retermos
que, seja através de uma escolha consciente, no caso de Eisenstein, ou da dene-
gação, no caso de Bazin, a montagem constitui-se no eixo sobre o qual desliza o
cinema. A partir desta conceituação da montagem é que tentaremos desvendar
qual o processo que Buñuel utiliza afinal na construção de seus filmes.
Hauser acredita que nenhum meio foi tão capaz de expressar este novo con-
ceito de tempo, como o cinema381. Mas, se no cinema as fronteiras entre espaço
e tempo são fluidas, nas artes plásticas e na literatura o espaço não possui esta
mesma mobilidade, o que não impediu, por exemplo, o surgimento de obras como
a de Proust, que molda o tempo e o espaço como se estivera num filme.
A montagem é a possibilidade técnica que o cinema possui para tornar-se
fluido e pluridirecional – jogando com as possibilidades múltiplas de inserção de
momentos, que podem deslocar-se no espaço e no tempo para, em seguida, voltar
a recompor-se, dando uma ideia de unidade narrativa a um verdadeiro quebra-
380
Arnold Hauser, op. cit., p. 970.
381
Hauser, na mesma obra e página, escreverá: “A concordância entre os métodos técnicos do cinema
e as características do novo conceito de tempo é tão completa que se tem a sensação de que as
categorias temporais da arte moderna, como um todo, devem ter surgido do espírito de forma ci-
nematográfica, e fica-se propenso a considerar o próprio cinema como o gênero estilisticamente
mais representativo da arte contemporânea, embora qualitativamente talvez não o mais fértil.”
MIRIAN TAVARES
cabeças de planos. Não foi por acaso que as teorias de Eisenstein andaram em
torno da ideia de montagem – ele estava sendo fiel ao seu tempo e ao ideário das
vanguardas que, de um modo geral, estavam dispostas a fazer explodir as formas
convencionais de representação e a remontá-las a partir de outras diretrizes (ou
mesmo da total ausência delas).
132 O que Hauser encontra de revolucionário na montagem eisensteineana não
é apenas o fato de ela permitir dar novo ritmo ao filme, mas o embate promovido
entre os objetos, retirando-os da sua condição de fenômenos de um mundo ho-
mogêneo e transformando-os em “elementos totalmente heterogêneos da reali-
dade que se encontravam face a face.”382 O confronto entre duas realidades
diferentes tais como o homem e a máquina, a máquina e o homem, transforma
uma realidade única num continuum de interrelações onde um acaba por originar
o outro e vice-versa. Hauser acredita que “Uma tal transgressão consciente e de-
liberada, no entanto, pressupõe uma filosofia que nega a autonomia das esferas
individuais da vida, como faz o surrealismo e como fez, desde o começo, o mate-
rialismo histórico.”383
O conceito de montagem dos formalistas foi aos poucos sendo apoderado
por cineastas das mais diversas tendências que retiraram dali a carga ideológica e
transformaram-na em um expediente estritamente técnico, e como tal, passível
de ser usado como uma fórmula. Mas, no caso das vanguardas, a montagem surgiu
como um novo modo de reorganizar e ver o mundo, não apenas como uma fór-
mula estanque e esvaziada de sentido. A montagem é um conceito que se coaduna
com o tempo da simultaneidade e das possibilidades de retirar a arte de um lugar
estanque e recriá-la a partir de um novo olhar. (É o que Duchamp faz, por exemplo,
com a Mona Lisa, e Magritte faz com O balcão de Manet).
O conceito de montagem que nos interessa é aquele que diz respeito ao des-
manche promovido pelo contraste entre imagens que nunca estiveram interliga-
das, e que, ao serem postas lado a lado, desmontam as expectativas que as
tornariam coerentes384. A partir da montagem é possível promover um levante
contra o lugar comum; deixar que a percepção salte e que não seja disciplinada,
pois antes de mais nada, a montagem é algo que se realiza no tempo, mas num
tempo que funciona sob o signo do devir – tudo afeta tudo que com ele se rela-
cione. Enquanto a visão cronológica implica em linearidade, a montagem implica
em simultaneidade. E é este o tipo de montagem que é promovido pelo surrea-
lismo e que encontramos no cinema de Buñuel.
382
Op. cit., p. 986.
383
Ibidem.
384
A ideia de montagem à qual me refiro foi apresentada pelo Prof. Dr. João Mário Grilo em um semi-
nário que ele ministrou na Universidade Nova de Lisboa no ano letivo 97/98.
V.
A ARQUITETURA DO SONHO
V.1. A ARQUITETURA DO SONHO
385
“D’une manière générale, les surréalistes reconnaissent dans la technique cinématographique un
ensemble de moyens particulièrement aptes à transcrire les rêves, les désirs et l’activité de l’in-
conscient. Le montage autorise un bouleversement complet de l’espace et du temps quotidiens
[...]” (Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, Le surréalisme, p. 207).
386
Paul Ramain, “The influence of dream on the cinema” in Richard Abel (ed.), French Film Theory
and Criticism, vol. I, New Jersey, Princenton University Press, p. 362.
387
Op. cit., p. 363.
MIRIAN TAVARES
Maurice Drouzy, o cinema de Epstein era o inverso do cinema de Buñuel. Pois, enquanto Epstein
“s’efforce de [...] créer une atmosphère ‘poétique’, une impression esthétique de mystère”, Buñuel
busca o insólito na própria realidade dos objetos. O que não o impedia de admirar a pessoa de
Epstein, conforme afirmou Georges Sadoul. (Maurice Drouzy, Luis Buñuel architecte du rêve, Paris,
L’Herminier, 1978, pp. 31-32).
392
Cf. Hauser: “O novo século está repleto desses profundos antagonismos; a unidade de sua concepção
de vida está tão profundamente ameaçada que a combinação dos extremos mais distantes, a uni-
ficação das maiores contradições, torna-se o tema principal, freqüentemente o único tema, de sua
arte.” Assim, o surrealismo que “procurou ser entendido sem os meios de entendimento, conver-
teu-se numa arte que fez do paradoxo de todas as formas, e do absurdo de toda a existência
humana, a base de seus pontos de vista.” Para Hauser, apesar de os surrealistas buscarem a
salvação da arte no inconsciente e no caos, “ainda se refugiam na racionalização do irracional e na
re-produção metódica do espontâneo.” (Arnold Hauser, op. cit., p. 966).
393
Jean Goudal, “Surrealism and cinema” in Richard Abel (ed.), op. cit., p. 353.
394
Op. cit., p. 355.
395
Ramona Fotiade explica-nos melhor o que Goudal entende por “conscious hallucination”: “The
conscious hallucination brought about by the rapid succession of film images surpasses the similar
hallucinatory state obtained through automatic speech and automatic writing insofar as the repu-
diation of logic can be more convincingly achieved in a purely visual medium, freed from the cons-
traints of spoken or written language.” (Ramona Fotiade, op. cit., p. 397).
396
Op. cit., p. 357.
MIRIAN TAVARES
cionar como um sonho. O que não quer dizer que tenha sido esta a sua utilização.
Por isso Goudal afirma: “It is time cinéastes saw clearly what profits they may gain
in opening up their art to unexplored regions of the dream.”397 São três, segundo
Goudal, as características essenciais do sonho que podem ser exploradas pelo ci-
nema. A saber: “the visual”; “the illogical” e “the pervasive”.
138 Quanto à visualidade, “the cinema is already so by force of circumstance,”398
pois o cinema é, antes de mais nada, imagens em movimento. Por ser imagens
em movimento não é necessário que elas sejam dispostas com um respeito, que
Goudal considera old-fashioned, pela lógica. Mas será que o encadeamento de
imagens não comandado pela lógica não faria com que o público se alienasse do
cinema? O que Goudal assevera então é que, se todo o cinema partisse desta pre-
missa, o público seria, pouco a pouco, educado. Quando propõe que o cinema
desrespeite a lógica, não está sugerindo uma perda total de referenciais. Pois,
como ele mesmo diz: “Man is only interested in what is close to him.”399 É neces-
sário, portanto, que as pessoas reconheçam elementos que pertencem ao seu
próprio processo inconsciente ali na tela.
Para resolver a questão da aproximação entre o que se passa na tela e os so-
nhos, Goudal lembra que: “the dream is pervasive.”400 Ou seja, o sonho penetra
tão profundamente em cada um que revela o que há de mais escondido em nossas
mentes. Sendo assim, como pode algo que diz respeito apenas à minha verdade
interior, ser reproduzido na tela atingindo de forma indiscriminada a maior quan-
tidade de pessoas possível? De certa forma, a resposta é dada pelo surrealismo:
397
Op. cit., p. 358.
398
Ibidem.
399
Op. cit., p. 359.
400
Ibidem.
401
Ibidem.
402
Ibidem.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
aqui a escrita automática. A precisão da navalha que corta o olho é a mesma que
promove o encadeamento de imagens. Se a estrutura de associação é a dos so-
nhos, a sua realização está longe de ser delirante ou não-controlada.
Só alguém com um grande domínio técnico409, além de um conhecimento
profundo do outro cinema (o industrial), poderia transgredir com tanta mestria
140 as regras impostas, sem cair porém nos excessos cometidos pela vanguarda da
época. Para Jean-André Fieschi, Un chien andalou é um “Film sans incongruités,
l’envers même du cinéma dadaiste, l’anti-Entr’acte”410. O filme opõe-se à exube-
rância da vanguarda francesa; Buñuel é extremamente sóbrio na construção de
suas imagens, que apesar de apontarem para o inconsciente, não perdem o refe-
rencial do objeto captado pela câmara. O objeto é modificado, mas não diluído411.
Uma das marcas do cinema da vanguarda francesa do início do século era o
uso excessivo de truques em busca de se criar uma atmosfera lírica. Vimos, no ca-
pítulo sobre o cinema surrealista, a crítica que Desnos fazia a estes cineastas. Bu-
ñuel, que, como já foi dito, trabalhou com Epstein, antes de realizar seu primeiro
filme, compartilhava com Desnos a sua posição contra um cinema que ele consi-
derava artificial. Não eram apenas os impressionistas franceses (Epstein, Abel
Gance, Germaine Dulac) que o incomodavam. Os excessos do expressionismo ale-
mão também foram duramente criticados por ele. Para Buñuel “Ils travaillent ‘à
la limite de l’acrobacie’ ”.412 Maurice Drouzy tem uma hipótese muito aceitável
sobre a reação de Buñuel a este cinema dos excessos: antes de mais nada, por
uma questão pura e simples de economia.
Quando Buñuel decide fazer seu primeiro filme, ele não era propriamente
um estreante na área, pois além de trabalhar com Epstein, já havia escrito roteiros
e críticas de cinema em jornais e revistas. Ele sabia o quanto custava produzir um
filme, algo que, mesmo na época, era bastante caro413. Quando Fritz Lang lança
Metropolis, Buñuel escreve uma crítica escandalizado com a grandiosidade do
filme que custara 40 milhõs de marcos, exigira a presença de 40.000 atores e fi-
gurantes, além de gastar 2 milhões de metros de película para um aproveitamento
final apenas de 5.000 metros. Ele irá concluir que “l’argent n’est pas l’essentiel de
la production cinématographique moderne”, porque o dinheiro não é sinônimo
de qualidade. Buñuel dá como exemplo o filme de Cavalcanti, Rien que les heures,
que custara apenas 35.000 francos.414
409
“Buñuel, aunque no se preocupa de los tecnicismos, es un gran técnico. Monta sus películas en
ocho días [...].” (Jean-Claude Carrière apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 23).
410
Jean-André Fieschi, op. cit., p. 183.
411
Cf. Roy Armes, em Buñuel “the refusal of surface realism is complete - though the action may be
placed in a clearly recognizable world.” (Roy Armes, The Ambiguous Image, Indianapolis, Indiana
University Press, 1976, p. 31).
412
Cf. Maurice Drouzy, op. cit., p. 29.
413
Cf. Maurice Drouzy: “Dans les années 1920 il était impossible en France de réaliser un métrage
normal pour moins de cent à cent vingt mille francs (environ un million d’aujourd’hui). Les ‘grands’
films dépassaient cinq cent mille francs, voire même le million.” (Op. cit., p. 19).
414
Op. cit., p. 20.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
418
Op. cit., p. 231.
419
Maurice Drouzy, op. cit., p. 23. Para exemplificar o que diz, Drouzy conta um episódio que ocorreu
durante as filmagens de Nazarín. Episódio este também narrado por Augustín Sánchez Vidal em
seu livro, Luis Buñuel. Buñuel estava trabalhando com Gabriel Figueroa (grande fotógrafo do
cinema, influenciado por Eisenstein e pelo expressionismo alemão, como ele mesmo afirmou em
um entrevista a Antonio Castro na revista Dirigido, nº 258, junho de 1997), que declarou ter apren-
dido um truque para trabalhar com Buñuel. “No hay más que plantar la cámara frente a un paisaje
soberbio, con nubes magníficas, flores maravillosas, y cuando estás listo le vuelves la espalda a
todas esas bellezas y filmas un camino lleno de pedruscos o una roca pelada.” (Apud Augustín Sán-
chez Vidal, Luis Buñuel, p. 214).
420
Jacques Aumont, A imagem, p. 125. Aumont explica-nos ainda a noção de pulsão, termo essencial
à psicanálise freudiana. Pulsão, a princípio, seria uma remodelação da noção anterior de instinto.
“Para Freud, a pulsão é ‘a representação psíquica das excitações provenientes do interior do corpo
e que chegam ao psiquismo’: é pois o lugar do encontro entre uma excitação corporal e sua ex-
pressão em um aparelho psíquico que visa dominar essa excitação.” A palavra pulsão, que em
latim significa empurrar, tem exatamente por objetivo empurrar o sujeito para que seja satisfeita
determinada pulsão. (Op. cit., p. 124).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
425
A inclusão de um vocábulo como “essencialmente” prende-se com o caráter plástico configurado
à poesia ao longo do século XX a partir das premissas estabelecidas pelos movimentos de vanguarda.
Assim, tenham-se em conta as manifestações levadas a cabo, entre muitos outros, por Guillaume
Apollinaire, ou, mais recentemente, a poesia concreta. Por sua vez, não nos esqueçamos também
de que as próprias artes plásticas exibirão textos poéticos nas suas telas.
426
André Breton, op. cit., p. 271.
427
Augustín Sánchez Vidal, para explicar as possibilidades que o uso desses objetos teriam na tela,
utliza uma citação de Epstein. Para o cineasta e teórico francês, “El aislamiento de todo primer
plano ocasiona una especie de objeto surrealista, es decir, de objeto desplazado, hurtado en su
sentido y empleo común a favor de un sentido y un empleo especiales; a veces muy concreto y li-
mitado, otras muy amplio en su simbolismo; pero siempre de acuerdo con el clima sentimental,
con las ensoñaciones suscitadas por la película.” (Jean Epstein apud Augustín Sánchez Vidal, op.
cit., p. 116).
428
Max Ersnt apud André Breton, op. cit., p. 290.
429
Ibidem.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
430
Ibidem.
431
Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel, p. 22.
MIRIAN TAVARES
Em 1928, Buñuel e Dalí escrevem uma carta a Juan Ramón Jimenez, após este
ter lançado um livro, Platero y yo, pelo qual ganhará um Nobel na década de 50.
A carta, que era duríssima, dizia entre outras coisas: “Merde! Para o seu Platero e
eu, para o seu fácil e mal intencionado Platero e eu, o burro menos burro, o burro
mais odioso com que temos tropeçado.”433 É possível que o cruzamento de me-
mórias entre o burro apodrecido da adolescência e Platero, o burro odioso, este-
jam na origem da presença dos burros apodrecidos em seu primeiro filme.
O objeto surrealista que surge do deslocamento e que, no caso do cinema de
Buñuel, é construído através do primeiro plano, possui uma função importante nos
seus filmes, pois a construção de seu cinema é feita a partir da colagem de ele-
mentos isolados, unidos pelo fio das relações que eles possam vir a despertar.
Sejam relações entrelaçadas pela memória, sejam relações que funcionam como
“una serie de minas que estallen no fuera, sino en el interior del espectador.”434 O
cinema presta-se perfeitamente ao papel destinado a ele pelo cineasta, pois é um
meio que vive quase que exclusivamente só de associações.435 A Buñuel resta então
trabalhar estas associações de um modo surrealista, ou seja, deixar que elas sejam
despertadas por explosões do inconsciente provocadas por objetos/imagens-chave,
de tal forma que cada espectador sinta-se incomodado, ou obcecado, como Ernst,
por um elemento, aparentemente inocente, que fustiga as suas pulsões.
437
Maurice Drouzy, op. cit., p. 28.
438
Cf. Augustín Sánchez Vidal: “Muy capaz de despertar y sacudir al más pasivo de los espectadores
cuando así le conviene (basta recordar el ojo seccionado de Un perro andaluz), Buñuel también es
muy consciente de la capacidad de manipulación y convicción de la imagen en movimiento, que
emplea para sus fines con singular habilidad. En una entrevista declaraba que no precisaba para nada
de grandes alardes técnicos, sin embargo - insistía – ‘lo que siempre necesito es poder tener la cámara
en movimiento (claro que sin que sea evidente) porque creo en el poder hipnótico de la imágen diná-
mica; lo que yo llamo adormecer al espectador’.” (Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel, p. 23).
439
Augustín Sánchez Vidal, “Imaginación sin hilos”, p. 117.
MIRIAN TAVARES
148 Em seu primeiro filme, sistematicamente encontramos este recurso que sub-
verte a lógica da narração. Sem diluir os objetos, Buñuel procura que eles sejam
ligados por movimentos regidos pelas obsessões da pulsão. Mas, ao mesmo
tempo, ele não deixa que estas pulsões encontrem tão facilmente a sua satisfação.
Freud acreditava que os sonhos infantis, geralmente, estavam diretamente ligados
à satisfação de um desejo. Ao contrário, nos adultos, mesmo quando há a busca
da satisfação de um desejo, esta aparece de uma forma mais complexa. Para
Freud: “No con escasa frecuencia resalta en un largo sueño complicado, y en ge-
neral confuso, un trozo especialmente claro, que contiene una inegable realización
de deseos, pero que está ligado con el restante material incomprensible.”441
Mesmo apresentando uma aparente relação com a satisfação imediata de
um desejo, Freud ressalta que nem sempre as aparências correspondem à ver-
dade. Muitos sonhos são tão intricados que não nos é facultada a chave de sua
decifração. O que os torna mais confusos é precisamente um dos processos pelo
qual eles são construídos, a saber, a chamada condensação. Em uma só imagem
vários pedaços de lembranças, fatos, pessoas e até desejos. Uma imagem que pre-
cisa ser decupada para que se possa chegar a uma qualquer compreensão.
Os sonhos, em sua maioria, ainda segundo Freud, são compostos de elemen-
tos latentes que necessitam ser transformados em manifestos para que possamos
compreendê-los. É fácil então perceber que o processo de construção de Buñuel
parte precisamente da utilização de elementos latentes, que aparecem conden-
sados, e que, com alguma dificuldade, torna-se possível torná-los manifesto. Desta
maneira é que ele provoca curto-circuitos em nosso inconsciente.
As condensações e os deslocamentos que ligam as imagens de Un chien an-
dalou, e que são reiteradas na obra de Buñuel, são a forma encontrada por ele para
esculpir o tempo – esta entidade fugidia que, milagrosamente, o movimento do ci-
nema procura reter. “É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada,
ainda presente e já passada, a um só tempo, ao mesmo tempo”442, palavras de De-
leuze, que utiliza Bergson, tentando desvendar o mistério do tempo, que é atual e
virtual, pois cada momento de nossa vida oferece a possibilidade de sermos me-
mória e percepção. Desta maneira, o cinema de Buñuel atualiza o paradoxo da exis-
tência: imbricar o tempo, tornando-o circular. Estamos em movimento e parados,
numa suspensão temporal já prevista nas telas dos pintores surrealistas, só que,
como já disse, uma suspensão falsa, criada pela invisibilidade do movimento.
440
Jean-Claude Carrière, op. cit., p. 116.
441
S. Freud, Los sueños, Madrid, Alianza Cien, 1995, p. 30.
442
Gilles Deleuze, op. cit., p. 99.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
Por mais que Buñuel estivesse próximo do surrealismo, ele carregava consigo
uma visão profundamente espanhola do mundo, herdeira de Goya446 e Zurbarán,
como vimos, herdeira também de seus companheiros da Geração de 27, cons-
truída por uma “obcessão [sic] [...] pela morte, o tema espanhol da decomposição
carnal”447.
443
Gilles Deleuze, op. cit., 1990, p. 74.
444
Apud Tomás Pérez Turrent e José de la Colina, Conversations avec Luis Buñuel, Paris, Cahiers du Ci-
néma, 1993, p. 31.
445
Apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 17.
446
Goya será sempre uma figura emblemática para Buñuel. Tal como o pintor, ele também foi acusado
de um certo afrancesamento. Entre os anos 1926-1927, Buñuel planejara realizar um filme sobre
Goya para aproveitar as celebrações do centenário de sua morte (que seria em 1928). O projeto,
infelizmente, ficou apenas no roteiro escrito pelo cineasta.
447
J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, p. 51.
MIRIAN TAVARES
chien andalou são elementos de um universo que não estava preocupado com as
abluções, preferia ter moscas pousando, carne apodrecendo, mutilações, do que
disfarçar este horror, que não era de Buñuel, mas do próprio mundo. As intenções
de Bataille não eram as mesmas de Buñuel, mas o revolver das entranhas, ausente
no espírito surrealista, animava a obra de ambos. Além de um olhar de naturalista
sobre a natureza humana, através de um jogo de contrastes, era possível revelar 151
mais da alma humana e de seu pseudo processo civilizatório do que muitos dis-
cursos proferidos até hoje.
Mas Buñuel era profundamente surrealista, permanecendo assim mesmo
após a saída do movimento. Porém possuía um modo particular de jogar com o
surrealismo, de usar os seus métodos para atingir o (aparentemente) inatingível:
esculpir a matéria do filme para torná-la evanescente. Atrair o olhar para uma
nova maneira de olhar. Não é por acaso que a cena mais marcante de sua obra é
exatamente um olho cortado: “Es una auténtica declaración de principios, un cegar
la mirada externa para que surja la interna, una petición de un ojo distinto al ha-
bitual, un romper la barrera defensiva entre el sujeto y los objetos, entre percep-
ción y representación.”452
Un chien andalou, com sua estrutura circular e reiterativa, apresenta-nos ao
cosmos do criador – Buñuel. A lua atravessada pela nuvem, o olho cortado, o ou-
riço, o círculo de pessoas em volta da mulher que encontra uma mão, são círculos
dentro de círculos. Percebemos isso ao lermos o roteiro, que em vários momentos
retoma cenas já mostradas, remontadas numa nova sequência, que, com varia-
ções, é sempre a mesma: o caminho circular do desejo, do desejo do cineasta em
falar do inconsciente e deixá-lo falar segundo suas próprias leis.
Para Buñuel, o surrealismo foi uma espécie de chamada ouvida por uns e ou-
tros ao redor do mundo, que já, de alguma forma, eram surrealistas sem etiqueta453.
Poderíamos ir além e dizer que mais do que uma chamada no espaço, o surrealismo
foi uma chamada no tempo. Atravessando fronteiras temporais, os surrealistas con-
vocaram todos aqueles que, como eles, mergulharam no abismo. Un chien andalou
é o retrato do mergulho, mesclando imagens novas e antigas, sobrepondo-as, le-
vando-nos a um tempo que não anda em linha reta, mas consegue ser, como queria
Deleuze, real e virtual, memória e percepção. Conforme Albert Lewin, “L’habitude
qu’avaient les surréalistes de juxtaposer des images anciennes et modernes, [...] m’a
surtout troublé.”454 Os pintores surrealistas pintavam não só imagens do incons-
ciente, mas imagens que estavam impregnando seu inconsciente; imagens de ou-
trem que saíam recriadas de suas mãos, reescrevendo a História da Arte, que não
poderia ser cristalizada para não transformar a todos em cadáveres.
A obra do grande aragonês começa com um corte. Mas também com a Ren-
dilheira de Vermeer, imagem que em Un chien andalou serve para compor mais
452
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 133.
453
Luis Buñuel, op. cit., p. 120.
454
“Témoignages”, Etudes cinématographiques, nº 40-42, p. 168.
MIRIAN TAVARES
Ce qui est beau dans l’Art, c’est ce que l’artiste ne saurait expliquer.
Braque 153
ñuel possuía a força das pulsões que eles tentaram sempre despertar através de
suas obras. Ali estava plenamente realizada a transposição para as telas de um
sonho instigado pela leitura de Sade e Lautréamont.
No manifesto que os surrealistas publicaram em defesa do filme, está contido
um apelo aos artistas da época: desatar a mordaça que os impede de deixar a energia
154 sublimada explodir em suas obras. E é exatamente o que Buñuel faz, permitindo que
dois instintos que estão indissoluvelmente ligados, o instinto sexual e o de morte, apa-
reçam em sua plenitude. Assim, as últimas palavras do manifesto são: “En dépit de
toutes les menaces d’étouffement, ce film servira très utilement, pensons-nous, à cre-
ver des cieux toujours moins beaux que ceux qu’il nous montre dans un miroir.”459
O segundo filme do diretor aragonês possui a marca da violência que aparece
no seu primeiro filme. O olho seccionado funciona como um aviso daquilo que
estaria por vir. Buñuel disse, a respeito de Un chien andalou, que seu filme nada
mais era que um apelo ao assassinato. Tanto um quanto o outro filme, de fato,
lançam um apelo direto às pulsões mais primevas e que tentamos o tempo inteiro
sublimar. Por isso a presença de Sade – autor admirado pelos surrealistas, que
soube como ninguém unir prazer e morte. Há, porém, uma violência mais pro-
funda que subjaz em toda a sua obra. Uma violência herdada de seu profundo en-
raizamento na cultura española, pois, como bem disse Kyrou, “Buñuel l’est aussi
essentiellement qu’il est espagnol.”460
O afrancesado Buñuel carregou consigo a eterna ambiguidade de ser ao
mesmo tempo profundamente espanhol e profundamente surrealista, a qual se
encontra presente mesmo em sua vida. Luis Pérez Bastías, em seu livro Las dos
caras de Luis Buñuel, traça o percurso da vida e da obra deste diretor, que conse-
guiu ser ao mesmo tempo revolucionário e pacificamente burguês. A rebeldia de
Buñuel, que o acompanhou desde a juventude, perpassando toda a sua obra, con-
trastava vivamente com o que Pérez Bastías vai chamar de “la satisfactoria edu-
cación en su infancia y su ordenada biografía posterior.” Ao contrário de seus
filmes, a sua vida privada “estuvo exenta de escándalos.”461
A ambiguidade pode ser considerada a marca registrada de Buñuel. Eduardo
Peñuela Cañizal, em um ensaio intitulado “O obscuro objeto da ambiguidade”,
459
O manifesto é assinado por Maxime Alexandre, Aragon, André Breton, René Char, René Crevel,
Salvador Dalí, Paul Eluard, Benjamin Péret, Georges Sadoul, André Thirion, Tristan Tzara, Pierre
Unik e Albert Valentin. A edição do manifesto à qual me refiro nesta tese é a reproduzida pela
revista L’Avant-scène, Paris, nº 27-28, 15jun/15jul de 1963, pp. 24-27.
460
Ado Kyrou, op. cit., p. 9. Claude Murcia em um ensaio sobre L’âge d’or procura ressaltar os elementos
que destacam Buñuel do surrealismo francês, elementos estes que estão presentes em sua obra,
lado a lado com as influências do grupo de Breton. Assim, para Murcia, Buñuel, “Hispanique de
culture et de tempérament, s’inscrivant dans la tradition du picaresque, de l’humour noir, d’une
brutalité parfois féroce, il rend visible ce que conventionnellement on cache: les mécanismes les
plus dérangeants de la nature humaine, qu’il fouille et met à nu avec une lucidité et une absence
de complaisance rarement égalées au cinéma.” (Claude Murcia et Gilles Menegaldo, L’expression
du sentiment au cinéma, Poitiers, La Licorne, 1996, p. 128).
461
Luis Pérez Bastías, Las dos caras de Luis Buñuel, Barcelona, Royal Books, 1994, p. 79.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO
tece uma rigorosa análise de um ponto que ele considera não ter sido ainda levado
devidamente em consideração: “a importância que têm as ambiguidades cons-
truídas por Luis Buñuel para delimitar um instigante espaço expressivo.”462 Neste
ensaio os filmes da fase mexicana ocuparão um lugar de destaque, o que serve
mais ainda para ressaltar que, mesmo em uma produção considerada por muitos
como puramente comercial, os elementos que estavam presentes desde o pri- 155
meiro filme, deixarão vir à tona os traços estilísticos do diretor. Mesmo com a saída
definitiva de Buñuel do movimento surrealista, talvez fosse possível colar aos seus
filmes o selo proposto por Man Ray para identificar aqueles que seriam os legíti-
mos objetos surrealistas.
Maurice Drouzy considerava Buñuel um arquiteto. Ao contrário de Godard
ou Rivette, que construíam seus filmes aos poucos, contando inclusive com im-
provisos, Buñuel “n’opère pas ainsi. Il n’improvise pour ainsi dire jamais avec une
caméra en main.”463 Como um arquiteto ele planejava tudo detalhadamente antes
de ir para o terreno. E assim, em suas obras, temos a realização plena de um pa-
radoxo: uma arquitetura esmerada é oculta pelo resultado que parece ser fruto
do mais puro automatismo e improvisação.
Se o cinema, para os surrealistas, deveria romper o círculo que atava a todos
nas teias do consciente e da lógica, deixando que o inconsciente falasse sem amar-
ras, deveria ser então a própria estrutura do filme que conteria a chave deste pro-
cesso. Ao contrário do surrealismo encenado de Cocteau, cheio de truques e
piruetas, os primeiros filmes de Buñuel tentaram ser estruturalmente surrealistas.
Já foi dito anteriormente que a montagem é um dos processos responsáveis pela
construção do filme. Vimos ainda que a montagem em Buñuel era extremamente
sóbria e de um modo geral feita através da utilização de raccords. Como poderia
então de uma estrutura tão clássica surgir os filmes que foram, ao longo do tempo,
unanimemente considerados as verdadeiras transposições do surrealismo para as
telas do cinema?
Conforme Ismail Xavier, para alcançar seu intento os surrealistas possuíam
uma opção: “introduzir a ruptura no próprio nível da estruturação das imagens,
no nível da construção do espaço, quebrando a tranqüilidade do olhar submisso
às regras.” Assim, a montagem do cinema surrealista deveria obedecer apenas
“aos imperativos únicos da imaginação.”464 Para Ismail Xavier isto só seria possível
se houvesse uma agressão direta às convenções da decupagem clássica. E é neste
ponto que retorno ao que já disse anteriormente acerca de Buñuel. Ele conseguiu
ser profundamente clássico no seu modo de conceber a montagem e, ao mesmo
tempo, profundamente transgresor, pois, sem ferir tecnicamente os conceitos de
uma decupagem clássica, subverteu o seu sentido, criando uma nova forma de
462
Eduardo Peñuela Cañizal (org.), Um Jato na Contramão - Buñuel no México, São Paulo, Perspectiva,
1993, p. 19.
463
Maurice Drouzy, Luis Buñuel architecte du rêve, p. 25.
464
Ismail Xavier, O Discurso Cinematográfico, p. 95.
MIRIAN TAVARES
conseguiram ultrapassar com suas obras um mestre que nunca admitiram possuir.
Buñuel foi surrealista, antes de mais nada, por ser alguém que carregou consigo,
em sua vida e obra, a ambiguidade como uma marca registrada. Seu primeiro filme
iria se chamar Il est dangereux de se pencher au-dedans. Talvez fosse uma adver-
tência.
Ao falar do desencanto que os surrealistas tiveram em relação ao cinema, ao 157
falar de Buñuel como um dos poucos que foram considerados verdadeiramente
surrealistas, não quero dizer que a lição do surrealismo se perdeu. Como foi dito
no princípio, houve o movimento surrealista, com data de nascimento e de morte.
Mas os princípios por eles aventados, presentes já em vários surrealistas avant la
lettre, não morreram com o fim do movimento. O cinema, em muitos momentos,
consegue a magia de ser uma alucinação consciente. Como afirmou Jørgen Roos,
“Sans le surréalisme, l’histoire du cinéma serait bien pauvre!”469
Vários cineastas, à sua maneira, utilizaram o legado do surrealismo, pois se
compreendermos o surrealismo como “volonté de connaissance, et exigence
d’une unité retrouvée dans la totalité de l’expérience,”470 encontramos realizado-
res que também estavam preocupados com esta questão. Ao longo dos números
especiais da revista Etudes cinématographiques, vários testemunhos e ensaios
mencionam cineastas que, mesmo não tendo jamais pertencido ao movimento,
foram, em algum momento, surrealistas em seus filmes.
469
Jørgen Roos, op. cit., p. 173.
470
Cf. Georges-Albert Astre, op. cit., p. 5.
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Em setembro de 1966 morria André Breton, o pai-fundador do surrealismo, cujo
1º Manifesto, publicado em 1924, oficializa a existência do movimento. Para mui-
tos, a morte de Breton marca também a morte do surrealismo, embora, de facto,
o ideário de um dos mais importantes movimentos de vanguarda do séc. XX não
tivesse deixado de existir com este acontecimento. Este livro celebra, de certa ma-
neira, o cinquentenário da morte do surrealismo e, mais ainda, celebra a sua per-
sistência em continuar a existir, como movimento, como ato de criação, como
revolução permanente do pensamento. Ao entrar no mundo fascinante (e peri-
goso) do surrealismo, procura-se aqui desvendar esse conceito, contextualizá-lo
e utilizá-lo, na medida do possível, no seu sentido mais estrito. A obra de Luís Bu-
ñuel, cineasta e surrealista, é, pois, analisada a partir da sua relação com o movi-
mento francês e com as manifestações poéticas que ocorriam pela mesma altura
no seu país de origem, a Espanha. Através da arquitetura do cinema de Buñuel,
nomeadamente de seus primeiros filmes, é possível perceber por que ele foi con-
siderado, unanimemente, o verdadeiro representante do cinema surrealista. A
sua obra, que é estruturalmente surrealista, constrói-se a partir dos princípios pre-
conizados por Breton e pelo seu grupo. Por sua vez, os seus filmes não são apenas
uma encenação das ideias apregoadas nos Manifestos do movimento, mas con-
figuram autênticos poemas audiovisuais. Neste livro pretende-se, também, traçar
uma linha entre o que se considera o surrealismo stricto sensu e o denominado
espírito surrealista, o qual continuaria a animar a obra de muitos autores, inspira-
dos no cinema de Buñuel e na obra intemporal de André Breton.
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