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Coleção

Mirian Tavares

BUÑUEL E O SURREALISMO:
A ARQUITETURA DO SONHO
Coleção

Mirian Tavares

BUÑUEL E O SURREALISMO:
A ARQUITETURA DO SONHO
[Ficha Técnica]

Título
Buñuel e o Surrealismo: a arquitetura do sonho

Autora
Mirian Tavares

Coleção Humanitas, dirigida por:


Sandra Boto

Coordenação Editorial
Rui Alexandre Grácio

Capa
Grácio Editor | Desenho da capa de Ana Ciscar

Design gráfico e paginação


Grácio Editor

1ª edição em novembro de 2016

ISBN: 978-989-99682-4-0

© Mirian Tavares e Grácio Editor


Travessa da Vila União, n.º 16, 7.º drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
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Esta obra foi financiada através do Projeto UID/Multi/04019/2013, Concurso * Programa * Área: F. Base
UID - 2013/2015 * 6817 - DCRRNI ID * Área Multidisciplinar, da Fundação para a Ciência e Tecnologia"
A AUTORA:
Mirian Tavares é Professora Associada da Universidade do Algarve,
Portugal. Com formação académica nas Ciências da Comunicação,
Semiótica e Estudos Culturais, tem desenvolvido o seu trabalho de
investigação e de produção teórica em domínios relacionados com
o Cinema, a Literatura e outras Artes, bem como nas áreas de esté-
tica fílmica e artística.
Como professora da Universidade do Algarve, participou na elabora-
ção do projeto de licenciatura em Artes Visuais, do mestrado e dou-
toramento em Comunicação, Cultura e Artes e do doutoramento em
Média-Arte Digital. Atualmente é Coordenadora do CIAC (Centro de
Investigação em Artes e Comunicação) e Diretora da Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve.

A COLEÇÃO HUMANITAS:
A Humanitas do CIAC – Centro de Investigação em Artes e Comuni-
cação, em parceria com a Grácio Editor, é uma coleção ensaística de
divulgação dos resultados da investigação produzida neste centro.
Pretende oferecer, através das obras aqui publicadas, o nosso con-
tributo no domínio científico das Humanidades.
A saudável transversalidade caracterizadora da investigação do
CIAC, que abarca as Artes, a Comunicação e a Cultura, as Letras e
as Humanidades Digitais, constitui a justificação para a apresentação
de uma coleção que acompanhe esse espírito plural de reflexão.
Este reside, no fundo, na capacidade para abarcar o Homem en-
quanto ser que se exprime das mais variadas formas. Celebrar o re-
gresso aos estudos humanísticos, às Humanidades, portanto, no
sentido primordial e lato que os gregos e latinos lhes atribuíram,
como resposta aos constantes reptos que a contemporaneidade nos
lança, é o objetivo da Humanitas.
Deste modo, esta coleção espelha a desejável harmonia entre o es-
tudo das novas linguagens, dos novos processos e métodos e a so-
lidez de saberes que prolongam tradições teóricas e críticas. A
revisitação de produtos artísticos e culturais do passado, seja para
os (re)questionar à luz do paradigma atual, seja para os (re)conhecer
enquanto objetos humanísticos sem tempo estimulará, por sua vez,
o pensamento sobre os modos coetâneos de expressão artística e
cultural.
SUMÁRIO

SONHO-OBJECTO DA NOITE CINQUENTENÁRIA


- CARTA PARA MIRIAN TAVARES PODENDO SERVIR DE PREFÁCIO,
POR MIGUEL DE CARVALHO ................................................................................9

NOTA INTRODUTÓRIA........................................................................................11

I. O SURREALISMO .............................................................................................13
I.1. Crise da Cultura – as vanguardas do início do século..............................15
I.2. O movimento surrealista.........................................................................23
I.2.1. Alguns precursores ...................................................................26
I.2.2 O Dada e o surrealismo..............................................................29
I.2.3. A aventura surrealista: os primeiros passos .............................33
I.2.4. As técnicas surrealistas .............................................................37

II. SURREALISMO E CINEMA ..............................................................................39


II.1. Surrealismo e cinema.............................................................................41
II.1.1. Os primeiros teóricos...............................................................46
II.1.2. A vanguarda russa....................................................................50
II.1.3. O cinema Dada e a vanguarda francesa: o caminho ....................
para o surrealismo ...................................................................52
II.1.4. Le cinéma est surnaturel par essence ......................................55
II.1.5. Surrealismo e cinema – From enchantement to rage..............66

III. O SURREALISMO ESPANHOL.........................................................................73


III.1. O surrealismo espanhol ........................................................................75
III.1.1. La generación de la amistad ...................................................78
III.1.2. O caminho para o surrealismo................................................81
III.1.3. O paraíso perdido na Geração de 27 ......................................90
III.2. Buñuel e os surrealistas espanhóis .....................................................103

IV. LUIS BUÑUEL: IL EST DANGEREUX DE SE PENCHER AU-DEDANS ...............115


IV.1. Luis Buñuel: Il est dangereux de se pencher au-dedans......................117
IV.1.1. A montagem .........................................................................120
IV.1.2. A montagem segundo Eisenstein..........................................123
IV.1.3. André Bazin e o cinema da transparência.............................128
IV.1.4. Vanguardas ou a arte da montagem.....................................131
V. A ARQUITETURA DO SONHO .......................................................................133
V.1. A arquitetura do sonho ........................................................................135
V.1.1. Buñuel: arquiteto do sonho ...................................................139
V.1.2. O objeto surrealista................................................................143
V.1.3. A chave de ouro ....................................................................146

NOTAS FINAIS...................................................................................................153

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................159
SONHO-OBJECTO DA NOITE CINQUENTENÁRIA — CARTA
PARA MIRIAN TAVARES PODENDO SERVIR DE PREFÁCIO

9
“… Je n’ai jamais rient connu de plus magnétisant: il vas sans dire que le plus
souvent nous quittions nos fauteuils sans même savoir le titre du film, qui ne
nous importait d’aucune manière. …”
(André Breton “Comme dans un bois” in L’Age du Cinema, nº especial de 1951)

Querida Mirian,

Tal como escreveu o poeta-Damasceno, cuja obra escrita muito admiro (a


outra desconheço-a de todo, se é que tem – poetas assim têm de certeza mais
que uma obra), eu também pertenço a uma comunidade de homens que acordam
a meio da noite para sonhar. De facto, esta noite, acordei para continuar a sonhar.
Refiro este verso do poeta pois tornei este sonho acordado em objecto escrito, a
partir do momento que saí do outro (sonho, entenda-se) não menos objecto, e
que aqui te vou relatar porque nele foste protagonista. Este relato não passa pela
forma de contar-te simplesmente um sonho do qual fizeste parte, mas pelo poder
do fascínio que esta imagem onírica teve, de uma determinada maneira, e pela
qual se tornou num acaso objectivo (talvez um dia ele possa ser materializado
com a realização de um objecto de funcionamento simbólico); lembro que este
ocorreu numa data comemorativa coincidente com a possível conclusão da tua
investigação do cinema surrealista. Temos aqui três linhas que se cruzam num
ponto – o ponto triplo, que constitui a estrutura de suporte mais resistente da na-
tureza de qualquer coisa. São também, no meu entender, e aqui neste caso parti-
cular, a chave da celebração do mistério do cinema enquanto fusão da poesia na
imagem em movimento através do fascínio, da surpresa, da provocação e criação
do maravilhoso a partir da realidade.

Naveguemos então pelo referido sonho:

Estavas tu, Mirian, silenciosa de pé junto de uma porta fechada, numa sala
de estar, enquanto eu, na parede oposta, respirava ofegantemente a olhar para o
chão com as mãos repousadas nos meus joelhos, sentado numa cadeira de ma-
deira. A dada altura, chamaste-me em voz baixa com o olhar concentrado na tua
mão direita. Quando me interpelaste, sorrias com olhos perplexos a observar algo
que acontecia na palma da tua mão virada para o teu rosto. Com a outra mão, a
esquerda, acenavas gestos demorados e ondulatórios como se estivesses a cha-
mar-me. E continuavas a sorrir e a chamar-me com gestos de silêncios, ao mesmo
tempo que compunhas o cabelo atrás da tua orelha. Levantei-me e fui ao teu en-
contro. À medida que me aproximava, fazias-me um sinal com a mão para avançar
com calma. Só quando cheguei perto de ti, percebi que da tua mão afloravam de-
zenas de formigas negras através de um orifício do diâmetro de uma moeda pe-
10 quena. Levavas então ao teu seio a mão com que me acenaste, deslizando-a
cintura acima sobre o teu vestido de brancura fosforescente. Tentei pegar numa
das formigas, mas quando a agarrei com o polegar e o indicador, ela transformou-
se num pequeno morcego. Tu assustaste-te e deixaste-as cair de seguida num im-
pulso de defesa. Em queda lenta, elas iam caindo de forma ordenada, uma após
a outra. Assim que atingiam a superfície do soalho de madeira envernizada, elas
iam-se transformando em morcegos brancos, esvoaçando pela sala até ao lustre
de cristais, onde passaram a voar em movimentos circulatórios centrados na luz.
Uma das janelas abriu-se e entraram refregas de vento, culminando com um ne-
voeiro denso e frio. O único morcego negro era aquele que se transformou na
ponta dos dedos …

É sabido que nos finais dos anos 30, coincidindo com a primeira projecção
pública do controverso filme de Luis Buñuel – Chien andalou, o cinema mudo
atinge a sua extinção levando com ele, na opinião de Breton, a capacidade do
filme revelar a imaginação do espectador. Nesta linha de pensamento, e na esteira
dos sonhos, silenciosos no ambiente de quem os sonha, tornam-se de alguma
forma mudos os “diálogos” e as visões com que se descrevem as recordações re-
manescentes. E neste teatro de operações oníricas, o palco compõe-se por prota-
gonistas que estão condicionados e absolutamente limitados a eles mesmos e
isolados do resto do mundo manifestando, no entanto, os seus desejos de uma
maneira livre e tranquila que, de outra forma, não se concretizam. Recentemente,
cheguei também de uma viagem madrilena onde visitei a casa de um amigo, casa
esta muito frequentada por Buñuel nos idos anos 70. De alguma maneira, rela-
ciono este sonho com a viagem, ainda muito fresca na memória, conjugado com
a minha preocupação de responder ao teu convite para este prefácio uma vez que,
na realidade, esvoaçam imensos morcegos brancos pela minha mente.

Je termine à la façon d’ici

Teu dedicado amigo admirador

Miguel de Carvalho

Em Coimbra no dia 29 de Setembro 2016


NOTA INTRODUTÓRIA

Las imágenes, cuando no constituyen espejos (incluso deformantes) de la


11
sociedad que las ha creado, suelen constituir espejos elocuentes de sus
imaginarios, de sus deseos y aspiraciones, de sus ensueños reprimidos o prohibidos.
Román Gubern

Há 17 anos nascia o meu filho. E há 17 anos defendia eu a minha tese de dou-


toramento. Foram dois partos quase simultâneos, ambos felizes e consequentes,
ambos enriqueceram o meu percurso e prepararam-me para novos desafios que fui
vencendo ao longo dos anos. E que continuam a me interpelar constantemente.
Não se compara um filho a uma tese, bem sei. O primeiro seguirá o seu per-
curso, com alguma ajuda e cuidados, a segunda quase ficou nas prateleiras de
uma biblioteca a criar pó.
Passado tanto tempo surge uma questão procedente: faz sentido ainda trans-
formar aquele texto, que outrora serviu de escudo para a minha defesa, num livro?
O que dizer da sua atualidade, ou mesmo, da sua necessidade de sair das prate-
leiras e espraiar-se noutros formatos, media ou mãos? Italo Calvino disse que clás-
sico é toda aquela obra à qual voltamos vezes sem conta, porque ela nunca deixa
de nos dizer qualquer coisa. E a obra de Luís Buñuel, o obscuro objeto desse livro,
é um clássico incontestável, cuja leitura é sempre outra quando feita por diferentes
pessoas, quando revista sob perspetivas diversas.
Muito se escreveu sobre o realizador espanhol e sobre os seus filmes. Mas
nunca se juntou, numa única leitura, as suas relações mais diretas ou indiretas
com o surrealismo francês e espanhol, com a poesia produzida por seus pares e
com os ecos de Paris que ressoavam em Madrid, apesar da persistência dos sons
dos tambores de Calanda que nunca o abandonaram.
Este livro é uma visita que faço a duas obras, a clássica, do Buñuel, e a menos
perene e mais desconhecida, a minha própria tese. Que nasceu no mesmo ano
em que o meu filho. E que, espero, tenha envelhecido bem.
I.
O SURREALISMO
I.1. CRISE DA CULTURA – AS VANgUARDAS DO INíCIO DO SéCULO
Não seria exagerado afirmar que o século XX foi, definitivamente, um novo
século. Assentará esta novidade, entre outras, numa profunda modificação da
visão do mundo, cristalizada a partir de constantes relativizações na relação entre
o homem e a sua apreensão da realidade, não sendo menos importante, para esta
15
reapreciação, as inúmeras manifestações artísticas. Mesmo que suas raízes esti-
vessem fincadas no século XIX, o seu limiar arrasta consigo um outro homem,
construído de fragmentos e espelhos, o homem das passagens de Paris, como des-
creveu Baudelaire no ensaio “O pintor da vida moderna”, o homem das imagens
fotográficas e cinematográficas que vieram para alterar definitivamente a nossa
percepção do mundo.
É preciso, antes de mais nada, termos consciência de que a arte absorve o
sentido do tempo e acaba por realizá-lo, seja em palavras seja em imagens. Apesar
de apontar para o futuro, os artistas refletem as descobertas e visões de seu pró-
prio tempo1 – A dança, de Matisse, por exemplo, é composta a partir dum espaço
surgido no Renascimento, diferente daquele imaginado pela Idade Média e repre-
sentado pelos artistas desta época. A perspectiva renascentista atravessa os sé-
culos e continua presente na nossa era, que foi quando se principiou a sua
destruição. A imagem do universo de Matisse, ao mesmo tempo que atualiza a
visão renascentista, propõe a desestabilização de um determinado olhar sobre o
espaço. Conforme Francastel:

O espaço aparece dotado de novas qualidades: extensão


ponderal, plasticidade, indeterminação dos limites. Desta
vez, estamos nitidamente fora das hipóteses fundamen-
tais do século passado. Mais uma vez, constatamos que
a arte moderna retorna a fontes permanentes da visão
para elaborar novos sistemas ilusionistas.2

Neste livro, Pierre Francastel propõe-se traçar um panorama da arte no século


XX. O texto original é de 1950 e cinge-se, praticamente, a uma análise do cubismo
e do fauvismo. Para ele o importante era desconstruir a ideologia do espaço renas-
centista, que se assumiu como o espaço, ou como a forma correta de representar o
mundo e refletir sobre o início da destruição do mesmo, passando pelo romantismo,
impressionismo e pelos caminhos que levaram à criação de uma nova dimensão es-
pacial, inaugurada no princípio do século com as vanguardas artísticas.
Para falarmos do surrealismo é necessário conhecer o contexto do seu nas-
cimento e que papel ele ocupou dentro das vanguardas e da arte do século XX.
Por isso, retornando a Francastel e suas teorias sobre a arte moderna e as formas
1
Pierre Francastel, Pintura e Sociedade, São Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 230.
2
Pierre Francastel, op. cit., pp. 198-199.
MIRIAN TAVARES

de representação por ela utilizada, que promove principalmente com o cubismo,


o surgimento de uma nova arte que seria, de fato, uma necessidade de um novo
homem e de sua própria consciência espaço-temporal. Há um deslocamento per-
ceptivo que o obriga a ver-se no objeto, que se torna o ponto de partida das re-
presentações cubistas3.
16 Quando Matisse pinta A dança estamos em 1909, dois anos depois de Les
demoiselles d’Avignon, de Picasso, obra que, segundo Lièvre-Crosson, já deitara
por terra “[...] quatre siècles de tradition picturale.”4 Ao aludir a Matisse, utiliza-
mos apenas um exemplo aleatório da arte do princípio do século; aleatório, mas
não menos importante, pois além do quadro em questão servir para ilustrar muito
bem a ideia do surgimento de outro espaço plástico, ele pertenceu aos primeiros
movimentos de vanguarda (fauvismo), ligado ainda a uma certa influência pós-
impressionista (Gauguin), tendo sido o primeiro a recorrer à palavra “cubos” ao
referir-se a um quadro de Braque5. Poderia ter iniciado com o quadro de Picasso,
até por razões cronológicas, mas o que interessa neste instante é mostrar que a
proposta de A dança, flutuar além do universo, ultrapassando as barreiras físicas,
plásticas e até gravitacionais, é, de alguma forma, a proposta de todas as vanguar-
das artísticas.
O termo avant-garde, de origem militar, surge em França no período da I
Grande Guerra. Apesar de aparecer vinculado mais diretamente aos movimentos
literários, foi expandido para as artes de um modo geral, visto que a maior parte
destes movimentos – mais uma característica das vanguardas – estava envolvida
em várias instâncias, passando das letras às imagens e até mesmo à música. Para
nós o que interessa deste conceito é determinar um certo funcionamento geral
das artes no princípio do século XX, que, mesmo com diferenças, partiram de al-
guns pontos em comum, tais como: consciência de grupo, caráter revolucionário
e, de um modo geral, vida curta, já que, buscando a superação, esgotavam-se na
própria busca.
O que as vanguardas pretendiam era fazer explodir as formas de expressão
até então conhecidas e expressar a angústia de um tempo que se iniciava sob os
escombros de uma Guerra Mundial, da qual eles não queriam participar. Foram
desertores de uma batalha que não reconheciam como deles. A sua luta era no
campo das ideias, sobretudo para combatê-las. O fim do século XIX deixou no ar
questões de fé, razão e lógica. Deixou também o desejo de re-ordenar o olhar
sobre as coisas e sobre a própria humanidade. Das perguntas lançadas no fim do
século anterior, de uma guerra que os obrigava a todos a reagir de alguma ma-
neira, surgem os movimentos de vanguarda. Se o termo avant-garde tem origens
3
Cf. Pierre Francastel, op. cit., p. 193.
4
Elisabeth Lièvre-Crosson, Du cubisme au surréalisme, Toulouse, Éditions Milan, 1995, p. 12.
5
“Le mot de “cubes” est prononcé par Matisse devant les paysages que Braque peint en 1908.” ( Eli-
zabeth Lièvre-Crosson, op. cit., p. 10).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

militares, a existência dos movimentos está exatamente compreendida no período


anterior e imediatamente posterior às duas Grandes Guerras.
Vários foram os movimentos de vanguarda. Alguns deles eram profunda-
mente antitéticos, mas traziam consigo a noção de um conflito que pertencia a
todos: qual seria a nova concepção do Homem e da História? Qual seria a melhor
maneira de acordar um mundo que já se habituara à miséria e à destruição? Como 17
lidar com o desenvolvimento tecnológico que atingia proporções até então nunca
imaginadas? Surge daí o fascínio pela máquina, que se tornou definitivamente
uma intermediária entre o homem e o mundo.
O papel fundamental das vanguardas foi então construir um olhar, transfor-
mar a percepção, lançar a todos num espaço novo que exigia uma mudança radical
de ponto de vista. Segundo Ortega y Gasset: “Para ver un objeto tenemos que
acomodar de una cierta manera nuestro aparato ocular. Si nuestra acomodación
visual es inadecuada no veremos el objeto o lo veremos mal.”6 Para este filósofo
espanhol o que as vanguardas fizeram, dentre outras coisas, foi obrigar-nos a
mudar a direção do nosso olhar: antes o que interessava era o jardim (referência
a um certo realismo presente nas obras anteriores às vanguardas), que podia ser
visto através do vidro da janela. Agora, o que realmente importa é o próprio vidro
(ou seja, o objeto em si e não o que ele representa) e os reflexos que ele absorve
e devolve para o mundo.
O deslocamento do olhar seria um regresso para a própria arte, fugindo da
necessidade intrínseca, provocada por certas correntes artísticas do séc. XIX, de
reproduzir o mundo. O que interessava para as vanguardas não eram as histórias
e possíveis identificações que elas pudessem promover, mas, pelo contrário, o
efeito de estranhamento, procurando dirigir o olhar para o objeto, para sua cons-
trução, para sua possibilidade de instaurar um desvio no texto da vida. Mais que
a aceitação, buscavam a provocação e mesmo o escândalo.
Falar das vanguardas do início do século, é, também, falar da crise da cultura
provocada por questões que vão desde a religião à ciência, passando, é claro, pelas
artes. O processo de dessacralização do mundo, da quebra dos mitos e da liqui-
dação do Estado divino, suscita uma reação por parte dos mesmos que ajudaram
a promover esta derrocada: “Com os destroços do mito, que são os destroços de
Deus, a burguesia esforça-se por fundar uma nova unidade que transcenda, re-
solvendo-as pelo poder da ilusão, as separações e as contradições que os homens
privados da religião (no sentido do «que liga colectivamente a Deus») ressentem
em si e entre si.”7
Era preciso, pois, subsumir uma outra unidade que substituísse magicamente
a unidade perdida. A cultura adquire aqui um papel fundamental, como sustentá-
culo de uma ideologia do espetacular, capaz de reproduzir o sentido do uno. O
6
José Ortega y Gasset, La deshumanización del arte y otros ensayos de estética, 11ª ed., Madrid, Edi-
ciones de la Revista de occidente, 1976, p. 20.
7
Jules François Dupuis, História Desenvolta do Surrealismo, Lisboa, Antígona, 1979, p. 12.
MIRIAN TAVARES

paradoxo do fim do século XIX, a tensão entre o desprezo solene dos valores bur-
gueses e o usufruto de suas benesses, entre a recusa do mercado cultural e a for-
mação do mesmo que vai, a partir de agora, gerir o mundo das artes, atravessa as
fronteiras do século XX, obrigando os artistas a uma tomada de posição: ou acei-
tam fabricar produtos culturais como mercadorias, ou rompem com o ciclo que
18
os leva irremediavelmente a coadunar-se com valores que eles desejam combater.
Eis as palavras de Jean-François Dupuis a este respeito:

Não há artista, na primeira metade do século XIX, que não baseie a


sua obra no desprezo dos valores burgueses e do valor mercantil (isso
de forma alguma o impede de se conduzir como um burguês e de
procurar o dinheiro onde há – o caso de Flaubert). O estetismo apre-
senta-se como a ideologia do antivalor mercantil que torna o mundo
viável e detém, por isso, o segredo dum certo estilo de vida, duma
certa valorização do ser, oposto ao ser reduzido ao ter, que é do ca-
pitalista.8

As vanguardas do início do século são, como já se disse, de alguma forma,


herdeiras do período anterior, reassumindo a crise da cultura ocidental ensaiada
em vários momentos do século XIX, e a crise do próprio homem diante de guerras
cada vez mais poderosas, capazes de provocar tanto repulsa como fascínio, por
sua grandiosidade, pelo uso das máquinas e pela transformação dos homens atra-
vés destas máquinas possuidoras do poder de criar a destruição9. “ ‘Fiat ars – pe-
reat mundus’, diz o fascismo e, como Marinetti reconhece, espera que a guerra
forneça a satisfação artística da percepção dos sentidos alterados pela técnica.”10
Para Walter Benjamin, os grandes períodos históricos reorganizam o modo
como percebemos o mundo. A era da reprodutibilidade técnica traz-nos uma outra
relação com a arte, que não é mais a contemplação senão o choque. As vanguar-
das buscam não a aceitação ou a compreensão, pois sabem que concorrem com
algo – a guerra – mais grandioso à sua volta. Precisam retirar a arte de um coti-
8
Julius François Dupuis, op. cit., p. 14.
9
Ao referir-se à Guerra colonial etíope, Marinetti em um manifesto afirma: “Há vinte e sete anos
que nós, futuristas, nos manifestamos contra o facto de se designar a guerra com [sic] antiestética...
por conseguinte, declaramos: ... a guerra é bela porque fundamenta o domínio do homem sobre a
maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas
e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. [...]. A guerra
é bela porque cria novas arquitecturas, como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões em
formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder, e muitas outras... poetas e artistas do futurismo...
lembrai-vos destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar
uma nova poesia e uma nova escultura!” (Marinetti apud Walter Benjamin, Sobre Arte, Técnica,
Linguagem e Política, Lisboa, Relógio D’Água, 1992, p. 112).
10
Op. cit., p. 113.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

diano sufocante, para torná-la, de fato, participante de seu próprio tempo, simul-
taneamente traduzindo-o e antecipando o porvir.
A arte distancia-se da natureza e cria um novo mundo. Alterando a estrutura
espacial utilizada no renascimento, busca formas novas de traduzir um outro es-
paço. A perspectiva renascentista e seu desejo de reproduzir o mundo o mais fiel-
mente possível será relegada para dentro das objetivas das câmeras fotográficas 19
e cinematográficas. Liberadas de uma certa função reprodutora e identificatória,
as artes plásticas ficam mais próximas das letras e da poesia, com toda a possibi-
lidade de criar imagens que são próprias delas: “A arte pós-impressionista não
pode mais ser considerada, em qualquer sentido, uma reprodução da natureza;
sua relação com a natureza é de violação. Podemos falar, no máximo, de uma es-
pécie de naturalismo mágico, da produção de objetos que existem a par da reali-
dade mas não desejam tomar o lugar desta.”11
Ao renunciar à reprodução do mundo, as vanguardas renunciam também aos
conceitos que guiavam até então a criação de um objeto artístico: a noção de belo,
presente nas obras de arte e nos estudos que vão acompanhá-las ao longo dos
séculos, não pode ser mais utilizada agora. Segundo Hauser, a arte moderna é
“fundamentalmente uma arte ‘feia’”12, que não busca o deleite mas privilegia o
intelecto, renunciando ao hedonismo e aos excessos sentimentais cometidos por
alguns dos seus artífices do passado.
Se os cubistas inauguram um novo tempo, deixando para trás, conforme Éli-
zabeth Lièvre-Crosson, “quatre siècles de tradition picturale”, serão os dadaístas
que levarão mais a fundo a destruição dos meios convencionais de expressão,
rompendo com a tradição artística oitocentista, sem entretanto a renegar em sua
totalidade, pois herdará características importantes de algumas de suas manifes-
tações. Surgido em plena guerra, acaba por incorporar o sentimento geral de der-
rota trazido por esta nos meios intelectuais. Não era um movimento que possuísse
um longo alcance. Na sua gênese já estava contida a sua destruição, um sentido
negativo do mundo, da criação e da própria arte que, ao fazer explodir as formas
de representação, não tem outra alternativa logo após senão o suicídio, pois de
um modo ou de outro, o dadaísmo estava condenado à morte.
“O dadaísmo, tal como o surrealismo, com o qual concorda totalmente a esse
respeito, é uma luta pela expressão direta, espontânea, ou seja, é um movimento
essencialmente romântico.”13 Vários são os pontos que ligam o dadaísmo ao sur-
realismo. Principalmente o fato de alguns membros do surrealismo terem aderido
ao dadaísmo, senão de modo atuante, pelo menos como defensores de algo que
11
Arnold Hauser, História Social da Arte e da Literatura, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 961.
12
Élizabeth Lièvre-Crosson, op. cit., p. 44.
13
“Desde o século XVIII, paralelamente a William Blake, cuja dupla carreira define bem a colusão da
arte com a poesia e a literatura, proclamou a falência e a rejeição do racional. Não é sem razão que
o surrealismo do século XX reconheceu nele um longínquo precursor: à lógica ordenadora, opunha
a estranha eclosão do sonho, do pesadelo e, através destes, do inconsciente.” (René Huyghe, O
Poder da Imagem, Lisboa, Edições 70, 1998, p. 259).
MIRIAN TAVARES

para eles era uma busca da verdadeira expressão. Giulio Carlo Argan14 considera
o surrealismo uma transformação do Dada, por ser também uma teoria do irra-
cional ou do inconsciente na arte. Mas não houve, de fato, uma fusão entre os
dois movimentos, pois no surrealismo não encontramos o negativismo radical pre-
sente no dadaísmo.
20 Não pretendo destrinçar toda uma complexa rede de relações e compor um
histórico completo das vanguardas do princípio do século. Procuro apenas con-
textualizar o surrealismo no momento de seu nascimento. Assim, rodeado por
esse clima, conforme Élizabeth Lièvre-Crosson, em 1924, Breton lança oficialmente
o movimento:

Sous la houlette de André Breton, le groupe surréaliste “s’officialise”


avec un premier manifeste publié en 1924 qui définit ses orientations
esthétiques, morales et politiques. [...] Son but n’est pas de produire
de l’art ou de l’anti-art, mais de concevoir une autre vision du
monde.15

O surrealismo, como o dadaísmo fizera anteriormente, vai propor um mer-


gulho no irracional, trazendo de volta conceitos que já estavam presentes desde,
pelo menos, o século XVIII16. Como movimento de vanguarda, deu vazão a um
sentimento comum de revolver as entranhas da velha arte e criar algo que refle-
tisse seu próprio tempo. Se o cubismo promoveu uma derrocada da representação
realista do mundo, o dadaísmo e o surrealismo, dentre outros, vão desestruturar
a lógica racionalista e deixar vir à tona o horror antevisto por Goya, pois, de fato,
o adormecer da razão gera monstros.
René Huyghe analisa o fim do século XIX e o caminho inexorável que os ar-
tistas vão trilhar no século XX. Um caminho que reflete a incomunicabilidade e o
declínio, não só da civilização ocidental, mas do próprio conceito de civilização.17
Segundo ele, parte-se para a não figuratividade, deixa-se de respeitar os “sobejos
do mundo visível”, e mesmo quando temos uma obra como a de Giorgio De Chi-
rico, cuja arquitetura sóbria e geométrica parece retomar os princípios da renas-
cença, não há, no entanto, um retorno ao tipo de figuração renascentista, mas
sim um jogo feito com formas que já não significam nada e que estão ali dispostas
precisamente para isto: são estruturas obsessivas que excluem qualquer possibi-
lidade de vida, são manequins e autômatos que atualizam o pesadelo de Goya.
14
René Huygue, op. cit., pp. 251-283.
15
Élizabeth Lièvre-Crosson, op. cit., p. 44.
16
“Desde o século XVIII, paralelamente a William Blake, cuja dupla carreira define bem a colusão da
arte com a poesia e a literatura, proclamou a falência e a rejeição do racional. Não é sem razão que
o surrealismo do século XX reconheceu nele um longínquo precursor: à lógica ordenadora, opunha
a estranha eclosão do sonho, do pesadelo e, através destes, do inconsciente.” (René Huyghe, O
Poder da Imagem, Lisboa, Edições 70, 1998, p. 259).
17
René Huygue, op. cit., pp. 251-283.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Os monstros gerados pela arte irão cada vez mais levar-nos a uma descida às trevas
que pairam sobre a civilização europeia.
Diante das descobertas da ciência que derrubam antigas crenças, da desa-
gregação de conceitos, de uma sensação de desrealização que acompanha o sur-
gimento das vanguardas, ainda é possível (e talvez mais do que nunca é
necessário) que a arte atue no mundo, se não para preencher o vazio deixado pela 21
derrocada da ideia de unidade, pelo menos para retratá-lo.

No entanto, neste vazio, os artistas constroem muitas vezes uma rea-


lidade, mas a do obstáculo. Já no Surrealismo, Max Ernst gostava de
erigir, como uma muralha intransponível, blocos de pedra numa es-
quadria curiosa onde, por vezes, se abrem estranhamente olhos.18

Desnaturalizar o mundo, torná-lo estranho, para que, contraditoriamente,


ele possa ser novamente conhecido. O surrealismo, como a arte do seu tempo,
propõe uma nova estética, capaz de extrair o belo do absurdo e de instaurar o
desvio para que daí surja, de fato, o real. André Breton começa o I Manifesto do
surrealismo dizendo: “Tant va la croyance à la vie, à ce que la vie a du plus précaire,
la vie réelle s’entend, qu’a la fin cette croyance se perd”. Talvez a grande tarefa
proposta pelos surrealistas seja exatamente a de reinstaurar a crença na vida.

18
Op. cit., p. 270.
I. 2. O MOVIMENTO SURREALISTA
O Primeiro manifesto do surrealismo, escrito por André Breton em 1924,
antes de mais nada é uma verdadeira profissão de fé. Iremos aos poucos descobrir
por que a crença é tão importante para Breton e seus seguidores e porque este
primeiro manifesto não é apenas uma peça literária, mas uma reflexão profunda 23
sobre a situação do homem no mundo naquele instante e, ousamos dizer, uma
condição que atravessa todo o século XX.

[...] o Surrealismo nunca se propôs como um fim, mas justamente,


como um ponto de partida para o homem, para o humano no mundo
e diante dele, para o homem entre os homens e diante do outro,
numa afirmação dialética incessante e permanente, guiado pelo co-
nhecimento sensível das analogias e não das teorias.19

Desde o primeiro manifesto que Breton aponta para o sensível como forma
de apreensão do mundo. Não é simplesmente esquecermo-nos da razão e da ló-
gica, mas tentarmos buscar uma outra lógica que não está presente nos meios
convencionais.
Ao analisar as vanguardas, Ortega y Gasset afirma que “Lo importante es que
existe en el mundo el hecho indubitable de una nueva sensibilidad estética.”20 Sen-
sibilidade esta que provoca uma “desumanização da arte”, de acordo com o filó-
sofo espanhol, sendo vários os motivos que levam a este caminho. O principal
deles é, sem dúvida, o fato de o olhar do artista não tentar mimeticamente repro-
duzir a natureza, mas procurar, de várias formas, ultrapassá-la. Para Ortega y Gas-
set, os artistas caminham em direção ao objeto humano. Não em direção à figura
do homem, mas à de um homem transfigurado e não calcado totalmente no real.
Na realidade, ultrapassar o real, escolher um caminho diferente das possibi-
lidades cotidianas de mostrar o mundo, não é uma escolha fácil. “Cree el vulgo
que es cosa fácil huir de la realidad, cuando es el más difícil del mundo. [...] La
‘realidad’ acecha constantemente el artista para impedir su evasión.”21 Poderíamos
afirmar até que, mais que fugir da realidade ou mesmo ultrapassá-la, o que os ar-
tistas queriam era ultrapassar, isso sim, um modo de representação do mundo.
Os surrealistas, como a vanguarda da época, buscavam também uma forma
diferente de estar no mundo, de re(a)presentá-lo. Mas eles não tinham a intenção
de fugir à realidade. Pelo contrário, eles gostariam de penetrá-la tão a fundo ao
ponto de expor suas entranhas e tudo aquilo que (quase) sempre fora relegado
por uma cultura classicizante. Temos a tendência de entender o termo surrealismo
como algo fora da realidade, enquanto o que de fato eles propunham era um mer-
19
Sérgio Lima, A Aventura Surrealista, São Paulo, Vozes, 1995, p. 23.
20
José Ortega y Gasset, op. cit., p. 30.
21
Op. cit., pp. 33-34.
MIRIAN TAVARES

gulho até então não ousado, no que havia de mais profundo desta realidade: o
espaço do inconsciente e dos sonhos.
Em seu ensaio La deshumanización del arte, Ortega y Gasset traz-nos uma
imagem que, se para ele traduz toda a vanguarda, acredito que se aplica de forma
muito particular ao surrealismo: ele imagina que a fuga da realidade proposta
24 pelas vanguardas seria como a história de Ulisses ao contrário – ao invés de buscar
sua Penélope cotidiana, ele navega em direção à bruxaria de Circe. O desejo da
humanidade pela ordem segura do cotidiano é subvertido, assim, pelo desejo do
desassossego e do abismo. O surrealismo propõe a vertigem.
“Vertige – tige, vers quel litige?” [...] Une monstrueuse aberration fait croire
aux hommes que le langage est né pour faciliter leurs relations mutuelles.”22 Michel
Leiris, ao longo dos números da revista La révolution surréaliste, propunha um glos-
sário que desestruturava as palavras, recriando o seu sentido através de um jogo de
desmontagem. A linguagem não serve apenas para facilitar as relações, mas para
ser também perscrutada em busca de novos sentidos, ou velhos sentidos já esque-
cidos, devidamente ocultados pelo uso comum. A proposta de Leiris para a liguagem
era a proposta de todo o grupo para a arte, e consequentemente, para os sentidos
cristalizados do mundo. Para os surrealistas, era preciso (e urgente) sair do lugar-
comum, procurar caminhos alternativos que ressuscitassem a crença na vida. Para
Leiris, dissecar palavras não era um simples jogo, mas uma tentativa de desvendar
os seus segredos para que a linguagem fosse transformada num “[...] oracle et nous
avons là (si ténu qu’il soit) un fil pour nous guider, dans la Babel de notre esprit.”23
Como foi dito anteriormente, tal como o dadaísmo, a origem do surrealismo
está ligada ao romantismo pois, “segundo Baudelaire, Victor Hugo teve o mérito
de sugerir o ‘mistério da vida’”24. O romantismo, ao sugerir o mistério da vida,
permite que a poesia seja mais que o seu sentido inteligível. Assim, os surrealistas
aprofundaram este mistério e buscaram também, segundo Duplessis, “uma obs-
curidade reveladora de um outro universo.” Passando por Rimbaud e Lautréa-
mont, os surrealistas acreditavam no universo do sensível como a possibilidade
do múltiplo e do plural, pois o mundo permite várias leituras. Vejamos um exem-
plo tirado dos jogos surrealistas:

N. Qu’est-ce qu’un parapluie?


Q. L’appareil de reproduction chez les gastéropodes.25

22
Michel Leiris, “Glossaire: j’y serre mes gloses”, La révolution surréaliste, n. 3, 15 de abril de 1925, p.
7. Citarei esta revista a partir da edição facsimilada publicada por Édition Jean-Michel Place, em
Paris (1975).
23
Ibidem.
24
Yvonne Duplessis, O Surrealismo, Lisboa, Inquérito, 1983, p. 13.
25
Louis Aragon et André Breton, “Le dialogue en 1928”, La révolution surréaliste, nº11, 15 de março
de 1928, p. 7.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Desnaturalizar o mundo, torná-lo estranho, para que, contraditoriamente,


ele pudesse ser novamente conhecido, eis a proposta. Surge uma estética que ex-
trai o belo do absurdo:

Max Ernst explica-nos por que é que o belo pode nascer, segundo a
fórmula de Isidore Ducasse, ‘do encontro de uma mesa de dissecação 25
de uma máquina de coser e de um chapéu-de-chuva’. Com efeito,
‘uma realidade completamente acabada, cujo ingénuo destino pa-
rece ter sido fixado de uma vez por todas (um chapéu-de-chuva), ao
encontrar-se em presença de uma outra realidade muito distante e
não menos absurda (uma máquina de coser), num lugar onde ambos
se devem sentir fora do sítio (sobre uma mesa de dissecação), esca-
pará exactamente por isso ao seu ingénuo destino e à sua identidade,
passará do seu falso absoluto, pelo desvio de uma relação, a um ab-
soluto novo, verdadeiro e poético.26

O surrealismo está profundamente inserido no seu tempo. Mais que perten-


cer a um período, ele funcionou como um instântaneo de uma época marcada
por acontecimentos que iriam definir a História do século. As ideias do surrealismo
ultrapassaram o próprio movimento27. Em um primeiro momento irei concentrar-
me no movimento em si, que pode ser enquadrado, segundo Maurice Nadeau28,
entre duas datas – 1918-1939, ou seja, coincide mais ou menos com o fim da I
Guerra e o início da segunda. E coincide precisamente com o “Fracaso universal
de una civilización que se vuelve contra sí misma para devorarse.”29
O fracasso da civilização inspirou o nascimento das vanguardas que não con-
seguiam mais ver a arte como uma camuflagem para a crise pela qual passava a
humanidade. A arte precisava sair do lugar-comum e dar continuidade a movi-
mentos que, mesmo no século anterior, já se revoltavam contra a ordem estabe-
lecida. Desde sempre encontramos pessoas e/ou movimentos que iam de
encontro àquilo que era estabelecido pela ordem vigente. Arcimboldo, por exem-
plo, considerado um ancestral dos surrealistas, deu vazão aos seus retratos fan-
tásticos construídos com frutas, vegetais ou flores, em pleno Renascimento. Da
mesma forma, os românticos, séculos mais tarde, lutaram contra a tirania da
ordem neo-classicizante.
Para teóricos como Maurice Nadeau e Gaëtan Picon, a primeira fase do mo-
vimento começa mais ou menos em 1919, estendendo-se até 1924, ano de publi-
cação do I Manifesto. Para Franco Fortini, esta fase compreendida entre 1919-1925
é o momento de ruptura entre os surrealistas e movimentos análogos, onde são
26
Yvonne Duplessis, op. cit., pp. 30-31.
27
“El espíritu surrealista, o, mejor dicho, el comportamiento surrealista, es eterno.” (Maurice Nadeau,
Historia del surrealismo, Montevideo, Altamira, 1993, p. 11).
28
Op. cit., p. 17.
29
Op. cit., p 18.
MIRIAN TAVARES

desenvolvidas as técnicas e lançados os fundamentos teóricos.30 Fortini considera


ainda que o grande mestre de todos vem a ser Apollinaire, que em seu manifesto
de 1917 (o espírito novo) propõe “sublevar liricamente o mundo.”31
O surrealismo, como movimento de vanguarda, surge então no momento de
explosão da forma vigente de se apresentar o mundo através da arte. Apesar de
26 oficialmente ter-se iniciado em 1924, dois anos após o colapso do dadaísmo, a
sua origem remete-nos à morte de Apollinaire: “Le 11 novembre 1918, 202 bou-
levard Saint-Germain, quelques amis veillent le corps de Guillaume Apollinaire.”
Um dia antes

[...] Breton avait écrit en PS à une lettre-collage:


Mais Guillaume
APOLLINAIRE
vient de
mourir.32

I.2.1. Alguns precursores


Morto Apollinaire, fica o termo com o qual ele designou a peça de sua auto-
ria, Les Mamelles de Tirésias, um drama “surrealista”. Em sua homenagem, Breton,
Aragon e Soupault adotam o termo surrealismo. “Apollinaire vient de mourir. Le
surréalisme peut naïtre – et ce n’est pas trop dire puisque le premier texte auto-
matique, Les Champs magnétiques, fuit écrit six mois après.”33 Para o triunvirato
do surrealismo, Apollinaire era um deus que os havia fustigado com suas ideias
de um espírito novo,34 espírito este capaz de lançá-los em busca de novas expe-
riências: “Un pañuelo que cae puede ser para el poeta la palanca con la cual le-
vantará todo un universo...”35
Para Breton (que conhece Apollinaire em 1916, após um período em que tro-
cavam correspondência), Guillaume Apollinaire era “[...] uma personagem de
vulto, como não encontrei mais nenhuma depois. É verdade que um tanto alou-
cada. O lirismo em pessoa. Arrastava atrás de si o cortejo de Orfeu.”36 Um homem
pleno de contradições, que ao lado da figura de Paul Valéry37, vai exercer enorme
influência no pensamento de Breton. Por um lado, Apollinaire projetava-se para
30
Franco Fortini, O Movimento Surrealista, Lisboa, Presença, 1980, p. 15.
31
Op. cit., p. 16.
32
Philippe Audoin, Les surréalistes, Paris, Seuil, 1995, p. 10.
33
Op. cit, p. 11.
34
Segundo Maurice Nadeau, op. cit., p. 26.
35
Ibidem.
36
André Breton, Entrevistas, Lisboa, Salamandra, 1994, p. 33.
37
Quando André Parinaud pergunta a Breton se existia algum homem capaz de assegurar a ligação
entre o século XIX e o século XX, ele responde prontamente: Paul Valéry. (Op. cit., pp. 24-25).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

o futuro; enquanto isso Valéry rompia o silêncio de anos com os versos alexandri-
nos de La jeune parque.38
Apesar de atirar-se para o futuro, de ter sido um dos primeiros a reconhecer
o gênio de Henri Rousseau, de ser um homem de seu tempo, capaz de detectar o
“pintor da vida moderna”, como o fizera Baudelaire, faltava em Apollinaire uma
dose de desafio e desapego que Breton vai encontrar em Jacques Vaché. Diante 27
da guerra, Apollinaire, segundo Breton, apesar de alistar-se no exército, não toma
consciência do que se passa: “Perante o horrível facto que a guerra era, Apollinaire
reagiu por uma vontade de imersão na infância [...].”39 A poesia não vencera a pro-
vação da guerra, daí a importância de alguém como Vaché, um desafiador, que se
não desertou em tempos de guerra, mostrou a sua insubmissão “[...] qu’on pour-
rait appeler la désertion à l’intérieur de soi-même.”40
Vaché aparece como uma figura quase mítica, capaz de executar ações que
mais tarde transformam-se em literatura nas mãos de Breton. O grande enfren-
tamento dos dois estilos antagônicos, Apollinaire e Vaché, acontece na estréia da
peça do primeiro, Les Mamelles Tirésias. A apresentação é medíocre, o que pro-
voca uma grande agitação no público presente, agitação esta que aumenta com o
aparecimento de uma figura vestida com o uniforme do exército inglês, empu-
nhando um revólver e disposta a descarregá-lo ao acaso. “El eco de este recuerdo
lo encontramos, diez años despúes, en el Segundo manifiesto del surrealismo,
donde Breton declara que ‘el acto surrealista más simple consiste en empuñar los
revólveres y descargalos al azar sobre la multitud’.”41
Em Lettres de guerre, única obra publicada de Vaché42, este deixava vir à tona
suas opiniões sobre o mundo e principalmente sobre a arte: “[...] L’ART n’existe
pas, sans doute [...].”43 Um poeta que nunca escreveu uma linha de poesia, mas
que, para Breton, viveu-a intensamente, vindo a suicidar-se em 1919. As cartas
de guerra são o seu legado para jovens como Breton ou Aragon: “As suas cartas
tinham o efeito de um oráculo, cuja particularidade era ser inesgotável.”44
A figura de Arthur Cravan, não menos mítica que a de Vaché, vai impor sua
presença na alma de Breton e na dos surrealistas de primeira hora (Aragon, Sou-
pault). Desertor de dezassete nações, como ele mesmo se proclamava, Cravan,
ex-boxeur, publicou entre 1912-1915 uma revista intitulada Maintenant, impressa
em papel de embrulho e distribuída pelo próprio Cravan, que empurrava pelas
ruas um carrinho de vendedor ambulante de frutas e hortaliças. Nele é possível
38
Breton, de certa forma, não perdoa o que considera uma traição de Valéry, ou seja, desonrar o res-
peitoso silêncio literário com uma obra que, para Breton, era injustificável: “Valera a pena ocultar-
se tanto tempo para reaparecer nesta figura?” (Op. cit., p. 50).
39
Op. cit., p. 35.
40
A. Breton, Anthologie de l’humour noir, Paris, Le Livre de Poche, 1995, p. 376.
41
Maurice Nadeau, op. cit., p. 27.
42
Breton publica Lettres de guerre em 1919 na revista Littérature, dirigida por ele, após o choque do
suicídio de Vaché. (Cf. Gaëtan Picon, Le surréalisme, Genève, Skira, 1995, p. 21).
43
Jacques Vaché apud André Breton, Anthologie de l’humour noir, p. 380.
44
André Breton, Entrevistas, pp. 54-55.
MIRIAN TAVARES

encontrar elementos que o tornam um precursor do dadaísmo, apesar de que


“[...] la solution au malaise intellectuel soit ici cherchée d’un tout autre côté.”45
Além de Apollinaire, Vaché e Cravan, Alfred Jarry, com o humor que impregna
sua obra, deixou também marcas no caminho em direção ao surrealismo: “Au-des-
sus de ‘l’ironie romantique’ sur ce monde, de l’esthétisme démiurgique et illusoire,
28 il a l’humour de pousser jusque dans les dernières conséquences de la parfaite ab-
surdité les ‘valeurs’ et ‘spéculations’ de l’humanité.”46 O humor, pedra fundamental
na construção artística do grupo, na vida de Jarry, segundo Duplessis, “[...[ não pas-
sou de uma constante provocação a todas as convenções burguesas.”47
A lista de influências do surrealismo é muito grande, porque, além dos con-
temporâneos, Breton e seu grupo não renegaram figuras que a História tratou de
deixar em segundo plano, como Isidore Ducasse, conde de Lautréamont, pois, se-
gundo Breton: “Tout ce qui, durant des siècles, se pensera et s’entreprendra de
plus audacieux a trouvé ici à se formuler par avance dans sa loi magique.”48 Os
Surrealistas não ocultam suas influências, pelo contrário, reconhecem publica-
mente suas dívidas, maiores ou menores com todos aqueles que, de alguma
forma, iluminaram o movimento49. Não é possível, porém, esquecer Rimbaud,
“[...] que viveu tragicamente este conflito de uma alma simultaneamente apaixo-
nada pelo absoluto e prisioneiro no inferno terrestre.”50
De Rimbaud a Vaché, de Lautreámont a Apollinaire, passando por Baudelaire,
Poe, Reverdy e ainda por Mallarmé, que vai influenciar os primeiros poemas de
Breton51, chegamos ao dadaísmo, que vai ser de tal forma importante para o mo-
vimento que alguns autores irão apontar o surrealismo como uma continuação
da aventura de Tristan Tzara e do seu grupo, do qual Breton tomou parte ativa.
Em 1915, em Nova Iorque, M. Duchamp inicia um processo de ridicularização da
45
André Breton, Anthologie de l’humour noir, p. 323.
46
G. Durozoi et B. Lecherbonnier, Le surréalisme, Paris, Larousse, 1972, p. 26.
47
Yvonne Duplessis, op. cit., p. 15.
48
André Breton, Anthologie de l’humour noir, p. 176.
49
“O Manifesto do Surrealismo enunciará muitos deles, tais como Young (autor de Noites), Swift,
Chateaubriand, Hugo, Aloysius Bertrand, Germain Noveau, Raymond Roussel [...] São aqui lembrados
apenas para constar que o surrealismo jamais fez mistério do que podia alimentar suas raízes.”
(André Breton, Entrevistas, p. 101).
50
Yvonne Duplessis, op. cit., p. 13.
51
“On sait que les premiers poèmes de Breton étaient ‘mallarméens’ [...]” (G. Durozoi et B. Lecher-
bonnier, op. cit., p. 25). Além da influência clara de Mallarmé, Breton recorre ainda aos simbolistas.
Falando sobre seu primeiro livro de poemas, Gaëtan Picon afirma que “[...] leur diversité est pourtant
assumée par l’auteur, qui laisse imprimer les uns et les autres.” Picon vai adiante mostrando que a
colagem de elementos descontínuos é constituinte da própria obra. (Gaëtan Picon, op. cit., p. 14).
A tentativa de colar elementos descontínuos e mesmo antinômicos estará presente em todo o mo-
vimento e já aparece na revista Littérature, de 1919. Os seis primeiros números, classificados por
Breton de “très ‘sages’ et de bonne tenue”, colocam lado a lado os últimos simbolistas, os poetas
que gravitavam em torno de Apollinaire, além de jovens escritores. “Un tel ressemblement sera
plus tard qualifié de tentative de ‘synthèse impossible entre des éléments dont le rapprochement
satisfait le sens de la qualité, mais qui n’auront jamais rien à faire les uns avec les autres’.” (G.
Durozoi et B. Lercherbonnier, op. cit., p. 28).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

arte normal – apresenta objetos manufaturados, que ao serem selecionados por


ele, passam a ser considerados obras de arte: são os ready-made. Ao mesmo
tempo, também em Nova Iorque, Francis Picabia, na luta contra o esteticismo,
inaugura seu período mecânico, imitando, em seus desenhos, mecanismos de ver-
dade que parecem tirados de um livro técnico. Mas é apenas em 1916, em Zuri-
que, que tem início o dadaísmo. 29

I.2.2. O Dada e o surrealismo


O movimento é anunciado por Tzara e o seu nome, Dada, “[...] volontaire-
ment non-signifiant, indique à lui seul la volonté nihiliste.”52 Se a admiração de
Breton por Vaché e Cravan vinha do fato de ambos, apesar das diferenças, nutri-
rem uma atitude niilista diante da vida53, com provocações e escândalos que irão
remeter-nos aos atos dadaístas, a sua sedução pelo grupo de Tzara não tardou a
acontecer. Breton e seus amigos, Aragon e Soupault, que até 1919 não conheciam
muito das atividades dadaístas, vão encontrar em seu manifesto de 1918 “une in-
quiétude semblable à la leur et partageront sa conviction de la nécessité d’ ‘un
grand travail négatif à accomplir’.”54
A revista Littérature, dirigida por Breton, Aragon e Soupault, que de início apre-
sentava textos dos mais variados autores que tinham prestígio junto ao grupo, sem-
pre com a preocupação de explicar a criação artística e compreender o papel do
artista no mundo, realiza um célebre questionamento: “Por que você escreve?” A
pergunta reflete a preocupação dos diretores com o impulso que levava ao ato da
criação literária. Se as respostas não foram satisfatórias, não fez com que o grupo
desistisse de fazer pesquisas e avançar nas suas investigações que os levaria ao sur-
realismo. Nesta época começam a ser difundidos os trabalhos de Sigmund Freud,
que vai impressioná-los largamente, pois ele “parece tener la clave de un misterioso
escondite que el trío dirigente de Littérature está ansioso de explorar.”55
Em busca da chave de suas investigações, Breton e seus amigos publicam as
Poésies de Lautréamont e um inédito de Rimbaud, Les Mains de Jeanne-Marie,
penetrando ainda mais fundo nos mistérios da poesia e na busca das raízes que
fazem parte de seu processo de construção. Apesar da atração pelo niilismo, her-
52
G. Durozoi et B. Lercherbonnier, op. cit., p. 29.
53
Maurice Nadeau, em sua História do Surrealismo, vai encontrar os pontos que haviam em comum
entre Vaché e o dadaísmo. Vaché não chegou a conhecer o movimento, mas, em suas Cartas de
Guerra, encontramos passagens que se encaixam perfeitamente nas ideias propagadas pelo grupo
de Tzara: “No queremos ni al arte ni a los artistas (!abajo Apollinaire!)... Desconocemos Mallarmé,
sin ningún odio, pero está muerto.” (Maurice Nadeau, op. cit., p. 31). Breton amava Mallarmé e
Apollinaire, mas não deixava de amar profundamente seu amigo Vaché: “La rencontre avec Jacques
Vaché a sans doute déterminé l’adhésion de Breton à Dada dont l’attrait du vide pour le vide cor-
respondait apparentement à l’attitude à la fois hautaine, indifférent, dissonante et isolée ‘sous le
couvert d’une acceptation de pure forme poussée très loin’.” (Op. cit., p. 27).
54
Ibidem.
55
Op. cit., p. 33.
MIRIAN TAVARES

dada de Vaché56, entre outros, o grupo de Littérature não se movimentava por


vias tão radicais; seus princípios de reflexão sobre a poesia separavam-no de uma
prática Dada. Mesmo com a chegada de Tzara, Breton, Aragon e Soupault, pros-
seguiram suas investigações que forçosamente conduziram-nos à delimitação de
um outro ismo.
30 A chegada de Tzara a Paris é fundamental para amplificar as tendências re-
volucionárias já presentes no grupo de Littérature. Em seu livro de 1924, Les pas
perdus, Breton, ao falar sobre as características da evolução moderna, afirma que
“Toutes ces considérations sur les idées et sur les hommes me conduisent, mes-
sieurs, à vous présenter Dada comme l’inévitable explosion qu’appelait cette at-
mosphère surchargée.”57 O dadaísmo era uma inevitável explosão que encontrou
um campo fértil para expandir-se junto a Breton e seu grupo, que desde sempre
estiveram interessados no que havia de novo e explosivo em termos de criação
artística e literária.
Dada aparece na reunião de Littérature de janeiro de 1920. Após uma série
de leituras de poesias pouco artísticas (máscaras que recitam de maneira desar-
ticulada poemas de Breton, Tzara lendo artigos de jornais ao som de campainhas
e matracas), estabelece-se o caos que será a ordem do dia do movimento. A rea-
ção do público, já esperada, é a de unir-se ao caos com gritos e assobios. Para Bre-
ton, um pouco mais tarde, o grande problema de Tzara foi nunca ter ultrapassado
a barreira dos escândalos em suas manifestações. E os escândalos foram, paulati-
namente, tornando-se lugar comum. Mas esta é uma reflexão posterior pois Bre-
ton, Aragon e Eluard, nomes fundamentais do surrealismo, assinam junto com
Duchamp, Picabia e Tzara, entre outros, o Boletim Dada.58
Os jovens diretores de Littérature não só participam ativamente do movi-
mento de Tzara, como a própria revista torna-se uma espécie de órgão oficial do
Dada: “Les gens de Littérature ne s’y trompèrent pas, et la révue, sous une cou-
verture blanche ilustrée des faces et attrapes graphiques de Picabia, devint l’or-
gane officiel et presque unique de Dada.” Por dois ou três anos, “Ses directeurs se
firent incontinent dadas”59. Mas a ideia de um outro movimento, que já estava
presente nos primeiros números da revista, não foi sufocada pela força do da-
daísmo, porque se, por um lado, era o que havia de mais revolucionário e o que
empreendeu uma luta de certa maneira eficaz contra a literatura e a arte oficiais,
56
“[...] Vaché, ‘mestre na arte de dar a tudo muito pouca importância’, foi o símbolo daquele derrotismo
integral que se encontra na origem do dadaísmo e do surrealismo.” (Franco Fortini, op. cit., p. 81.)
Vaché admirava um único poeta, Jarry, e sua única crença era no UMOR (que ele grafava sem o H).
Mas, mesmo acreditando no humor e em Jarry, não por acaso, mestre do humor negro, a impotência
de Vaché revela-se através desta declaração: “el humor no debe producir”. (Apud Maurice Nadeau,
op. cit., p. 31).
57
A. Breton, Les pas perdus, Paris, Gallimard, 1969, p. 169.
58
“El ambiente está creado. El Bulletin Dada de febrero reúne los nombres de Picabia, Tzara, Aragon,
Breton, Ribemont-Dessaignes, Eluard, Duchamp, Dermée y Cravan, y proclama: “Los verdaderos
dadaístas están contra Dada. Todo el mundo es director de Dada.” (Ibidem).
59
Philippe Audoin, op. cit., p. 27.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

por outro, esgotou-se em suas próprias fórmulas que encaminhavam a todos para
o grande nada. Um nada que já não levava a lugar algum.
O surrealismo já estava presente e convivia lado a lado com o dadaísmo. “É, por-
tanto, inexacto e cronologicamente abusivo apresentar o surrealismo como um mo-
vimento saído de Dadá ou ver nele uma espécie de reorientação do Dadá no plano
construtivo.”60 Estas são palavras de Breton, em uma série de entrevistas concedidas 31
a André Paurinad entre março e junho de 1952. Além de negar uma filiação direta
do surrealismo ao Dada, Breton lembra ainda que Champs magnétiques, primeiro
texto surrealista, escrito por ele e por Soupault, foi publicado em Littérature, entre
outubro e dezembro de 1919. Assim, mesmo com a invasão Dada, as experiências
que levariam ao manifesto de 1924 continuaram a existir nas páginas da revista.
É inegável, porém, a influência exercida por Tzara, Picabia e, principalmente,
o fascínio que Duchamp possuía sobre Breton e seu grupo. As provocações da-
daístas foram levadas a cabo entusiaticamente por todos que queriam desestabi-
lizar o mundo das artes, tirando-a de uma oficiosidade que acabava por sufocá-la.
O problema é que se o dadaísmo abriu as portas de par em par, segundo Breton
“acaba-se por descobrir que essas portas dão para um corredor que serpenteia
sem sair do mesmo sítio.”61 Um movimento que surge contra toda a forma de con-
sagração acaba por ser consagrado por um texto de Jacques Rivière, publicado
em agosto de 1920, na Nouvelle révue française. Para Breton, “Reconnaissance a
Dada”, texto de Rivière, põe o dadaísmo à beira da consagração literária.
O Dada não era uma simples busca, o Dada alimentava-se das hostilidades a
ele dirigidas. Como provocar escândalos se houvesse quaisquer formas de simpatia
ou aceitação? Além de estar a um passo da consagração, o movimento esgotou-se
por causa das ideias que estavam em sua gênese: a busca do nada não sobrevive
a atos de criação. O rompimento definitivo do grupo de Breton com o dadaísmo
surge após o famoso “Processo Barrés”. Os espetáculos dadaístas estavam à beira
de um esgotamento; quase nada de realmente novo ou provocador era lançado
ao público. Aragon e Breton assumem o controle de uma manifestação que, a prin-
cípio, ainda era Dada, mas que já fugia completamente do programa de Tzara.
Como vimos anteriormente, antes da entrada de Tzara e seu grupo, a Litté-
rature estava empenhada em empreender buscas para responder a questões tão
importantes como: por que você escreve? As pesquisas do grupo de Breton diri-
giam-nos a uma incessante procura de soluções que recolocassem em evidência
não só poetas esquecidos, marginalizados, mas também escritores oficiais, ou que
se perderam ao longo do percurso de suas vidas. Era o caso de Maurice Barrès62.
60
André Breton, Entrevistas, p. 66.
61
Op. cit., p. 69.
62
“Barrès era o anarquista literário do ‘culto do eu’ convertido em cantor do fascínio nacionalista, o
mesmo é dizer o símbolo perfeito dessa intelligentsia fim de século reconciliada com a poesia do
clarim, e que justificava a contrario os paladinos de uma cultura sem ‘mancha de sangue intelectual’.”
(Jules François Dupuis, op. cit., p. 24).
MIRIAN TAVARES

Como podia o autor de Un homme livre transformar-se num traidor capaz de es-
crever o propagandista L’Écho de Paris? Assim, Barrès é acusado de crime contra
a segurança do espírito. O problema foi que, enquanto Breton levava o processo
a sério, queria de fato discutir o crime, Tzara, imbuído do puro espírito Dada, pas-
sou o processo dizendo disparates e chistes que não condiziam com o interesse
32 de Breton. Foi montado um tribunal que iria proceder ao julgamento. Tzara, con-
vocado como testemunha disse: “Vous conviendrez avec moi, M. le Président, que
nous ne sommes tous qu’une band de salauds et par conséquent, les petites diffé-
rences, salauds plus grands ou salauds plus petits, n’ont aucune importance.” Ao
que o presidente Breton contesta: “Le témoin tient-il à passer pour un parfait im-
bécile, ou cherche-t-il à se faire interner?”63. Para Tzara era mais um jogo Dada,
para Breton, havia implicações morais e estéticas que serão de suma importância
em todo o movimento surrealista.
Não era só Breton que detectava o declínio do Dada. Já em 1921, o movi-
mento foi perdendo nomes importantes como o de Picabia. A ruptura definitiva
de Breton com o Dada e, sem dúvida, o grande salto em direção ao surrealismo,
acontece no Congrès international pour la détermination et la défense des ten-
dances de l’esprit moderne, convocado por ele em Paris em 1922. Os principais
diretores das revistas de vanguarda são chamados a participar de um congresso
que tinha a intenção de “définir une attitude de large convergence autour de cer-
taines propositions”. Tzara recusa-se a participar, pois “entre la négativité dogma-
tique de Dada et cette tentative de conciliation positive, on voit l’abîme...”64
O congresso idealizado por Breton fracassou, pois seria impossível conceber
um encontro para estabelecer as diretivas da arte moderna sem a presença
Dada65. Se, por um lado, o congresso fracassou, por outro ajudou a constituir o
grupo que iria estar ligado mais diretamente ao surrealismo. O último episódio
que marcou definitivamente a separação entre Breton e seu grupo e o Dada, foi
aquando da representação de Couer à gaz de Tzara. Breton, Eluard e Péret (que
então estavam já ligados aos princípios das experiências surrealistas), foram mal-
tratados durante a representação, reagindo como o público convencional dos es-
petáculos Dada. Tzara chamou a polícia e apontou os três como perturbadores.
“Como se ve, Tzara no gustaba mucho, cuando se ejercían contra él, de procedi-
mientos que él mismo contribuyó a crear.”66

63
Apud Gaëtan Picon, op. cit., p. 39.
64
Ibidem.
65
Para Tzara a ideia do congresso era algo já superado. Como poderia participar de um evento sobre
arte moderna se ele havia dito “Dadá não é moderno.” (Apud Maurice Nadeau, op. cit., p. 37)?
66
Ibidem.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

I.2.3. A aventura surrealista: os primeiros passos


Segundo Maurice Nadeau67, foi com certo alívio que o grupo ligado a Breton
abandonou o dadaísmo. Já há algum tempo que suas pesquisas e produções estavam
longe dos ideais de Tzara e próximo daquilo que vai ser oficializado a partir de I Ma-
nifesto. Como já foi dito, o termo surrealismo é herança direta de Apollinaire – sua
33
peça, Les mamelles de Tirésias, é de 1917. Já em 1919 surge Les champs magnétiques,
de Breton e Soupault – o primeiro texto feito a partir da escrita automática.
“Prisonniers des gouttes d’eau, nous ne sommes que des animaux perpétuels.
Nous courons dans la ville sans bruits et les affiches enchantées ne nous touchent
plus.”68 Assim começa a verdadeira aventura surrealista. Encontramos neste texto, que
Philippe Audoin, em 1971, considera “un livre de jeunesse”,69 várias indicações que
nos levam às questões que serão exploradas pelos surrealistas ao longo do tempo.
Les champs magnétiques, texto de jeunesse ou de jouvence, como quer Au-
doin, deixa brotar a voz automática, que anuncia o porvir, já a partir do próprio tí-
tulo, ao mesmo tempo em que segue a tradição de Isidore Ducasse e os seus
Cantos de Maldoror. Escrito em conjunto por Breton e Soupault (desejo de Breton
presente no I Manifesto – a poesia como um ato de criação coletiva), evoca, se-
gundo ainda Audoin, um tempo mítico, surgindo como um paradigma que estará
presente em todo o surrealismo, especialmente no idealizado por Breton, que é
o de deixar vir à tona o inconsciente, o puro automatismo, cercando-o, porém, de
uma aplicação e de um sentido científico de pesquisa e experimentação70.
Uma leitura de Les champs magnétiques dá-nos pistas que serão depois apro-
fundadas nos textos, sejam visuais ou escritos, das obras posteriores do surrea-
lismo. Temos a presença dos sonhos: “Nous touchons du doigt ces étoiles tendres
qui peuplaient nos rêves”; da janela, como uma possibilidade de abertura para
dentro: “La fenêtre dans notre chair s’ouvre sur notre cœur”; do desconhecido
que habita a nossa memória e convive com nossos olhos cotidianamente domes-
ticados: “Il n’y a plus que des reflets dans ces bois repeuplés d’animaux absurdes,
de plantes connues.”71 Continuaríamos exaustivamente a seguir os primeiros pas-
sos de Breton, e não só, pois estavam surgindo nesta mesma época os textos au-
tomáticos de Aragon, para mostrarmos que o surrealismo já existia antes da
aproximação com o Dada, e que, de certa forma, o que foi feito mais tarde – o
67
Ibidem.
68
André Breton et P. Soupault, Les champs magnétiques, 3. ed., Paris, Gallimard, 1996, p. 27.
69
Extraio esta referência a partir do prefácio de Ph. Audoin a Les champs magnétiques, citado na
nota anterior.
70
“Cette volonté de rigueur est avant tout d’ordre expérimental. Ennemies du vague et de l’effusion,
les séductions de la science d’alors (qui poursuit le recensement et les mensurations des ondes,
des forces, des rayonnements qui sous-tendent l’invisible) comme aussi la formation et la pratique
médicales de Breton, vont concourir à orienter la disponibilité des deux auteurs vers une enterprise
sans précédent.” (Ph. Audoin, op. cit., p. 13).
71
Op. cit., pp. 28- 33.
MIRIAN TAVARES

manifesto –, surgiu de forma inevitável, pois o grupo que iria constituí-lo, já havia
criado, de fato, o que será conhecido como movimento surrealista.
A poesia de Les champs magnétiques é introduzida pela presença de um ani-
mal que diz: Les sentiments sont gratuits. O pagure, que está no início dos poemas
de Breton e Soupault, definido por Audoin como “animal-totem”, é um crustáceo
34 que vive em conchas abandonadas, ou seja, vive em casas emprestadas por ani-
mais que morreram, sendo conhecido ainda como bernard-l’ermite. “Outre le cha-
pitre intitulé Le pagure dit, Les Champs contiennent une description analogique
de cet ‘animal admirable’ (selon que Breton le notera plus tard en marge).”72 No
capítulo de Les champs magnétiques intitulado “Gants blancs”, um viajante diz a
seu companheiro: “J’ai marché devant moi et j’ai compris la fatalité des courses
perpétuelles et des orgies solitaires.” O viajante é, antes de mais nada, um foras-
teiro. No texto, aparece como alguém cuja alma, outrora, estava “ouverte à tous
vents est maintenant si bien obstruée qu’ils ne donnent plus prise malheur.” Agora
ele será julgado “sur un habit qui ne leur appartient pas.”73
O viajante perde-se nas viagens. Hoje, habita uma roupa que não é, real-
mente, sua. Para Audoin, o pagure “a pour caractéristique d’habiter une carapace
qui n’est pas la sienne.”74 Constitui-se assim num “híbrido simulado”, que lança as
importantes perguntas: quem sou eu? quem é o outro? A imbricação do eu e o
outro, do fora e dentro na mesma carapaça, aparece como paradigma máximo
das antíteses que Breton, mais tarde, tentará conciliar.
Podemos considerar Les champs magnétiques o mergulho no maravilhoso –
palavra de ordem do manifesto surrealista: “[...] le merveilleux est toujours beau,
n’importe quel merveilleux est beau, il n’y a même que le merveilleux qui soit
beau.”75 O maravilhoso deve persistir contra um embotamento cotidiano dos sen-
tidos. Da mesma forma que o que os atraiu a Rimbaud foi o fato de o poeta ser,
antes de tudo, alguém que “pretendeu ir além das fronteiras da literatura.”76 O
que os surrealistas pretendiam era ir além das fronteiras do puramente racional
e deixar transbordar as franjas do inconsciente. Enquanto Freud desvendava para
o mundo das ciências o que possuímos de mais recôndito, os surrealistas desven-
davam o inconsciente para o mundo das artes, ou mesmo, para o mundo.
Apesar de empreender uma luta contra o racionalismo, para Lima “O Surrea-
lismo não é o irracionalismo.”77, o surrealismo é uma experiência “do/e/no real
de uma mais consciência da Poesia e dos questionamentos do ser como um querer
humano.” Surgido em um momento de crise da cultura, o espírito surrealista vai
animar grande parte do século XX, em fases diferentes, mas levando consigo os
mesmos componentes que estavam presentes desde o I Manifesto: vontade de
72
Op. cit., p. 18.
73
Op. cit., p. 90.
74
Op. cit., p. 18.
75
André Breton, Manifestes du surréalisme, Paris, Gallimard, 1972, p. 24.
76
Franco Fortini, op. cit., p. 57.
77
Sérgio Lima, op. cit., p. 47.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

expressão do inconsciente, intuito de unificação do homem, negação da ordem


social, compromisso ético-político.
O surrealismo constrói, assim, uma operação dialética entre o racional/irra-
cional. Ao mesmo tempo que “poneva l’arte come irrazionalità assoluta”, como
afirma Argan em um ensaio sobre o sublime em Max Ernst78 (considerado por ele
“il più surrealista degli artisti surrealisti”), o movimento não nega a sua inserção 35
na sociedade, pois Breton sempre buscou uma ação política efetiva para construir
a sua Revolução. Talvez os surrealistas tenham conseguido encontrar um equilíbrio
entre as duas formas de se estar no mundo, racional/irracional, jogando com as
suas antíteses. Estendemos ao restante do grupo uma afirmação sobre Ernst feita
por Argan: “Desmistifica el Diavolo-inconscio, ma per desmistificare bisogna essere
uno scaltro mistificatore, sapere giocare con le contradizzioni.”79 O prazer do jogo
surrealista consiste exatamente em ir até às profundezas do inconsciente e retor-
nar com matéria suficiente para fazer um poema.
“Tant va la croyance à la vie, à ce que la vie a du plus précaire, la vie réelle s’en-
tend, qu’à la fin cette croyance se perd”, assim começa André Breton o I Manifesto
do Surrealismo. É interessante o uso da palavra crença, logo no início, porque mais
que um simples movimento de vanguarda, o surrealismo constituiu-se numa pro-
fissão de fé: no homem, no amor, no maravilhoso, no humor e na possibilidade –
real – de promover-se uma verdadeira Revolução, além das filiações políticas (ten-
tada várias vezes pelo grupo e incompreendidas por uma esquerda ortodoxa, inca-
paz de ver na ousadia das propostas surrealistas um ponto de convergência com
seu ideário stalinista). Breton encerra o Manifesto dizendo: “Le surréalisme, tel que
je l’envisage, déclare assez notre non-conformisme absolu pour qu’il ne puisse être
question de le traduire, au procès du monde réel, comme témoin à décharge. [...]
C’est vivre et cesser de vivre qui sont des solutions imaginaires. L’existence est ail-
leurs.”80 Se a existência está além, é preciso descobrir os meios que levam ao seu
encontro. Desta forma, o surrealismo irá propor técnicas81 como a escrita automá-
tica, o cadavre exquis, o sonho, a loucura, atravessados pelo humor. Tudo isto no in-
tuito de fugir da solidez cotidiana (navegar para os braços de Circe).82
78
Giulio Carlo Argan, “Il sublime subliminale di Max Ernst”, in G. C. Argan et al., Studi sul surrealismo,
Roma, Officina Edizioni, 1977, pp. 13-25.
79
Op. cit., p. 106.
80
André Breton, Manifestes du surréalisme, p. 11.
81
As técnicas surrealistas são, antes de mais nada, um processo de auto-ironia. Já no I Manifesto,
Breton revela os segredos da arte mágica surrealista, afirmando que, entre outras coisas, estes se-
gredos podem ajudá-lo a escrever falsas novelas e a não se deixar aborrecer em companhia de
outras pessoas.
82
O cineasta e surrealista Luis Buñuel, antes de aventurar-se pelo cinema, construiu poemas utilizando
as técnicas propostas por Breton, como podemos constatar em Não me parece bem, não me parece
mal, poema do livro que permaneceu inédito, O Cão Andaluz: (publicado em Juan Francisco Aranda,
Os poemas de Luis Buñuel, Lisboa, Assírio e Alvim, 1996, p. 100):

Eu creio que por vezes nos contemplam


à nossa frente atrás de nós ao nosso lado
MIRIAN TAVARES

O importante é perceber que o movimento surrealista se propõe invadir a vida


cotidiana, e não permanecer afastado, como se fosse outra esfera da existência,
ou mesmo, como se fosse algo alheio à vida, que estivesse ali apenas como uma
ilustração. Breton e seus amigos desejaram muito mais. Sua intenção não era ape-
nas fazer poesia, mas conseguir que esta poesia invadisse o dia a dia; aliás, em ne-
36 nhum momento foi declaradamente a sua intenção fazer literatura, pelo menos
não aquela que merecesse a aprovação de todos (traços constantes das vanguar-
das, principalmente do Dada); tanto que, quando alguém, como por exemplo,
Eluard, deixou-se encantar pela própria escrita, transformando-se num grande
poeta, respeitado e lido, estava assinando a sua carta de ruptura com o movimento.
Ferdinand Alquié, no seu livro Philosophie du surréalisme, ao analisar deti-
damente o projeto surrealista, diz: “Le surréalisme est vie. Il ne lui importe pas de
faire l’œuvre littéraire, mais d’exterioriser des forces humaines, d’aimer, d’espérer
et découvrir.”83 No primeiro manifesto, Breton aponta para as possibilidades de
intervenção no cotidiano, chegando mesmo a mostrar que o surrealismo é como
um vício, não se pode entrar e sair dele com tanta facilidade, depois de se com-
preender que a racionalidade empobrece o discurso. Quando elementos de de-
sordem entram na escrita e na fala, é como se fossem tomados por um estado de
loucura e a partir daí surge a criação sem amarras e sem preocupações dialéticas;
o diálogo não deve pretender montar uma tese, mas oferecer-se como “tremplins
à l’esprit de celui qui écoute.”84
As palavras e o seu uso (da mesma forma que as imagens) são a matéria bá-
sica do surrealismo. Claro que de qualquer movimento artístico, mas a importância
de cada palavra, a busca de seu significado intrínseco, foi um dos motores do mo-
vimento. Vimos como Leiris brincava com os significados (“Académie – macadam
pour les mites”85), como os diálogos surrealistas desordenavam uma sequência de
sentidos (“P. Pourquoi les chiens aboient-ils à la lune? B. Parce que les cheminées
d’usines sont rouges”86) e como os cadavre exquis construíam imagens a partir de

uns olhos rancorosos de galinha


mais temíveis do que a água podre das grutas
incestuosos como olhos da mãe
que morreu no patíbulo
pegajoso como um coito
como a gelatina que os abutres engolem
Creio que hei-de morrer
de mãos espetadas na lama dos caminhos
Creio que se me nascesse um filho
ele quedar-se-ia eternamente a olhar
as bestas que copulam ao entardecer.
83
Ferdinand Alquié, Philosophie du surréalisme, Paris, Flammarion, 1955, p. 29.
84
André Breton, Manifestes du surréalisme, p. 49.
85
M. Leiris, “Glossaire : j’y serre mes gloses”, La révolution surréaliste, n. 6, março de 1926, p. 20.
86
Diálogos entre Breton e Péret, publicados no n. 15 da La révolution surréaliste de março de 1928, p. 8.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

termos colocados lado a lado sem que nenhuma sequência lógica pudesse justi-
ficá-los (“La vapeur ailée séduit l’oiseau fermé a clé”87). As técnicas surrealistas
foram largamente divulgadas por seus criadores e/ou usuários, sendo mesmo
constituído um Bureau de recherches, que teve a sua atividade explicada por Ar-
taud em um número de La révolution surréaliste88. A intenção era fazer com que
o maior número de pessoas participasse desta aventura. 37

I.2.4. As técnicas surrealistas


Yvonne Duplessis descreve o que ela considera como sendo “as técnicas sur-
realistas”: o humor, o maravilhoso, o sonho, a loucura, o cadavre exquis e a escrita
automática. No I Manifesto, Breton revela o que ele considera como sendo os se-
gredos da arte mágica surrealista, ensinando como fazer um texto surrealista e
qual pode vir a ser a utilidade de ser-se mestre em tal ofício. O que Breton faz,
ironicamente, é não só uma crítica à literatura de um modo geral, como também
utiliza de uma de suas técnicas, o humor, para melhor se fazer entender. Assim
sendo, vemos o surrealismo a ser construído a partir dos autores de eleição do
grupo (como já vimos anteriormente) e de modos de trabalhar a palavra e/ou a
imagem fugindo do lugar comum.
Já vimos que tanto Jarry quanto Cravan e, principalmente, Jacques Vaché, pos-
suíam uma noção muito especial do humor (que para ele era o UMOR) e como
todos foram importantes influências para Breton e para o surrealismo de um modo
geral. Em 1905, Freud escreve um tratado sobre o chiste, que segundo ele, merecia
um estudo mais aprofundado e uma melhor análise que o recolocasse em seu de-
vido lugar, não sendo apenas uma subdivisão do Cômico, mas tendo inclusive dife-
renças fundamentais de conceito. Em 1939, Breton escreve Anthologie de l’humour
noir, ressaltando, no prefácio, comentários de Freud que afirmavam a importância
do humor como fonte de libertação. E é exatamente este sentido de libertação e
busca do prazer intrínsecos a certo tipo de humor que vai encantar os surrealistas.
Além do humor, como elemento capaz de desestabilizar o cotidiano, os sur-
realistas buscaram outras formas de criar, escapando das teias da racionalidade.
Várias foram as experiências executadas pelo grupo (quando surge o I Manifesto
já trazia atrás de si cinco anos de experimentações), passando pela escrita auto-
mática, revelação dos sonhos, hipnose, jogos, tudo que os levasse aos estados se-
gundos, sendo que, para Breton: “O que neles apaixonadamente nos interessou
87
La révolution surréaliste, outubro de 1927, p.11.
88
Antonin Artaud, em um texto publicado no n. 3 de La révolution surréaliste, de abril de 1925,
explicava o que era e qual a importância de um espaço onde pudessem ser desenvolvidas as
pesquisas surrealistas: “Le bureau central des recherches surréalistes s’applique de toutes ses forces
à ce reclassement de la vie.” (p. 31).
MIRIAN TAVARES

foi a possibilidade que nos davam de escapar aos constrangimentos que pesam
sobre o pensamento vigiado.”89
Os surrealistas possuíam o que Breton chama de “apetite do maravilhoso”,
um maravilhoso irrecuperável, presente apenas na infância. O que eles tentavam
era agarrar o impossível, ou, pelo menos, recriá-lo. Outro elemento fundamental
38 para o surrealismo era o amor, um amor total, idealizado principalmente por Bre-
ton. Como tudo no movimento, o amor ideal flertava com Sade, sem, contudo,
perder o sentido ético de tentativa de salvação do mundo. “Se o surrealismo levou
ao zénite o sentido desse amor ‘cortês’ de que geralmente se faz partir a tradição
dos cátaros, também frequentemente se debruçou com angústia sobre o seu nadir
e foram essas diligências poéticas que lhe impuseram o resplendor do gênio de
Sade, à maneira de um sol negro.”90
O movimento surrealista teve data de nascimento e morte de alguma ma-
neira precisos91, mas o espírito surrealista pode-se considerar eterno. Já existia
antes do movimento e perdura até os nossos dias92. Em 1932, Breton escreve em
Les vases communicants:

Le poète à venir surmontera l’idée déprimante du divorce irréparable


de l’action et du rêve. Il tendra le fruit magnifique de l’arbre aux ra-
cines enchevêtrées et saura persuader ceux qui le goûtent qu’il n’a
rien d’amer. [...] Ils seront déjà dehors, mêlés aux autres en plein so-
leil et n’ auront pas un regard plus complice et plus intime qu’eux
pour la vérité lorsqu’elle viendra secouer sa chevelure ruisselante de
lumière à leur fenêtre noire.93

Era mais que uma definição de um poeta do futuro, mas uma clara descrição
do que fez o movimento e de seu legado.

89
André Breton, Entrevistas, pp. 88-89.
90
Op. cit., p. 144.
91
“O movimento surrealista viveu um período bem preciso: dos anos pós-Primeira Guerra Mundial,
quando nasceu, até 1969, data de sua dissolução.” (R. Ponge, “Mais Luz!” in Robert Ponge (org.), O
Surrealismo, Porto Alegre, Ed. da Universidade/UFRGS, 1991, p. 26).
92
“Em função desta dupla realidade - de um lado, a dissolução do surrealismo enquanto grupo organizado;
por outro lado, a permanência e antiguidade das ideias-força que o surrealismo defendeu - é que se
passou a distinguir o ‘surrealismo histórico’ (c. 1922-1969) do ‘surrealismo eterno’ (conforme termi-
nologia adotada por Jean Schuster no manifesto de dissolução, O quarto canto).” (Op. cit., p. 29).
93
André Breton, Les vases communicants, Paris, Gallimard, 1955, p. 170.
II.
SURREALISMO E CINEMA
II.1. SURREALISMO E CINEMA

L’aventure du cinéma – du latin adventurus: qui doit arriver –


sera convulsion, surréalisme. Ou elle ne sera pas.
41
Nelly Kaplan

O cinema é, antes de mais nada, um dos mais importantes textos culturais


do nosso século. Surgido na passagem do séc. XIX para o séc. XX, trilhou, junto
com as manifestações artísticas do seu tempo, um longo caminho para instaurar-
se finalmente no imaginário do séc. XX, sendo, talvez, o próprio gerador deste
imaginário. Inscrever o cinema no contexto do seu nascimento é tomar consciên-
cia de que ele esteve lado a lado com as vanguardas artísticas do início do século,
sendo por elas influenciado, ao mesmo tempo que tornava possível a concretiza-
ção do ideário de muitas delas.
O cinema surge então no momento em que as vanguardas, em seu desespero
iconoclasta, buscam novos meios para expressar o novo mundo que se instaura
no limiar do século XX. As velhas formas de representá-lo, a velha sensibilidade e
mesmo o sentido estético que acompanhava as artes, precisam ser postos em
causa. Como já vimos, a I Guerra deixa, entre os destroços, o desejo irreprimível
de mostrar o horror de uma era que se iniciava de modo tão brutal. Era, pois, pre-
ciso ir além para expressar o novo, mesmo que este ir além fosse retornar a velhas
questões falsamente ultrapassadas.
Surge um outro sujeito, detectado por Baudelaire94, um homem que vagueia,
cercado de espelhos, cercado de imagens: o homem da multidão, do conto de
Edgar A. Poe95, desconhecido, sem rumo certo e sem propósito definido; um
94
Baudelaire em “O pintor da vida moderna”, ao falar da obra de Constantin Guys, desenhista, aqua-
relista e gravador do séc. XIX, famoso por suas representações dos dândis e cortesãos da época,
acaba por captar e definir o espírito de todo um período. Ao definir o belo como sendo “constituído
por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil determinar, e de um
elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época,
a moda, a moral, a paixão”, Baudelaire exibe o caráter de transitoriedade que expressa o sentimento
da modernidade. O pintor de costumes, como o homem moderno, é um “observador, um flâneur.”
(Charles Baudelaire, Sobre a Modernidade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 10).
95
No artigo de Baudelaire citado anteriormente (originalmente incluído no volume L’art romantique,
coletânea de artigos sobre crítica de arte publicado postumamente em 1869), encontramos algumas
referências acerca do conto de Edgar A. Poe. “Lembram-se de um quadro (e um quadro, na verdade!)
escrito pelo mais poderoso autor desta época e que se intitula L’Homme des Foules (O Homem das
Multidões)? Atrás das vidraças de um café, um convalescente, contemplando com prazer a multidão,
mistura-se mentalmente a todos os pensamentos que se agitam à sua volta. Resgatado há pouco
das sombras da morte, ele aspira com deleite todos os indícios e eflúvios da vida; como estava
prestes a tudo esquecer, lembra-se e quer ardentemente lembrar-se de tudo.” (Op. cit., p. 17). O
homem acaba por confundir-se com a multidão à procura de um rosto anônimo que o impressionou
vivamente deixando-se fascinar pelo desconhecido.
MIRIAN TAVARES

homem assustado e encurralado num espaço que se transforma diante de seus


olhos atônitos. Em síntese, um novo homem que precisa de uma nova forma de
expressão.
Mais que contemporâneo das vanguardas do início do século, o cinema par-
ticipa ativamente do processo de criação de uma outra forma de se apresentar o
42 mundo, bem como da desestabilização de um olhar cotidiano que é desequili-
brado pela força dos projéteis atirados nos espectadores a uma velocidade incrí-
vel96. O cinema é utilizado para recriar a noção de tempo e espaço, além de
retrabalhar a relação homem-máquina.
O fascínio exercido pelas máquinas atinge, de uma maneira ou de outra, as
vanguardas, que viam nas novas tecnologias não só um fator de desumanização,
mas uma possibilidade de integração com esta nova realidade, como é o caso dos
Futuristas97. Conforme Umbro Apollonio, quando Marinetti afirma que “a roaring
motor car is more beautiful than the Victoria of Samothrace”, não era apenas uma
declaração iconoclasta mas uma importante proposição: a alteração completa dos
estatutos da arte vigente. A arte não pode ser confinada aos museus e academias:
“it is widely admitted that schools of all kinds are in need of substantial change,
and that art should not be created to sit in museums, in shrine full of dead heroes,
but exist for the people”98 (o itálico é meu).
Gino Severini, que segundo Apollonio foi um dos maiores teóricos produzidos
pelo futurismo, asseverava entusiasticamente as possibilidades estéticas da ciên-
cia, chegando mesmo a acreditar que “the process of creating a machine did not
differ in essence from the process of creating a work of art”99. Desta maneira
torna-se fácil compreendermos a relação das vanguardas com o cinema, que antes
de mais nada deriva diretamente da técnica, apesar de reconhecermos que ini-
96
Walter Benjamin, ao falar sobre a relação que o espectador tem com o cinema, explicita as caracterís-
ticas de um medium que, ao contrário das artes contemplativas como a pintura, não permite estar-se
diante dele dando vazão ao livre curso dos pensamentos, pois: “Diante do filme não pode fazê-lo, mal
regista uma imagem com o olhar e já ela se alterou. Não pode ser fixada.” A nossa recepção concre-
tiza-se através do choque causado pela velocidade com que as imagens passam diante de nós. Em
uma nota, Benjamin comenta este estatuto do “choque”, que vem responder, de certa forma, a uma
necessidade contemporânea. “O cinema é a forma de arte correspondente à vida cada vez mais
perigosa que levam os contemporâneos. A necessidade de se submeter a efeitos de choque é uma
adaptação das pessoas aos perigos que as ameaçam. O filme corresponde a alterações profundas do
aparelho de percepção, alterações como as com que se confronta, na sua existência privada, qualquer
transeunte no trânsito de uma grande cidade, ou como as que, numa pespectiva histórica, actualmente,
qualquer cidadão experimente.” (“A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” in Sobre
Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio D’Água, 1992, p. 107).
97
“Futurism, in short, is a complex and composite phenomenon. In it we find various fruitful and vivid
intuitions concerning the near future, and, at the same time, laborious revivals of declining themes
which had already had their day; genuinely new formal solutions, accompanied by derivative and
artificial manneirisms; impulses aiming at a free and progressive society, alongside an arrogantly
imperialist and autocratic political viewpoint.” (Umbro Apollonio (ed.), Futurist Manifestos, London,
Thames and Hudson, 1973, p. 8).
98
Op. cit., p. 10.
99
Op. cit., pp. 10-11.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

cialmente a vocação do cinema era a de responder a “una gran aspiración que


viene a ser la portadora de la ideología burguesa de la representación”100. Mas
apesar desta vocação de uma representação naturalista divulgada pela ideologia
dominante da época, as vanguardas conseguem realizar com o cinema o que ele
continha apenas em potencial.
Não foi só o futurismo que se interrelacionou direta ou indiretamente com o 43
cinema. Para Walter Benjamin, as manifestações dadaístas que procuravam o es-
cândalo faziam-no através do choque, desestabilizando o espectador e tirando-o
do lugar da contemplação, gerando em contrapartida uma nova forma de fruição,
presente também, em outro grau, no cinema. Deste modo, afirmará: “De espetá-
culo atraente para o olhar ou sedutor para o ouvido, a obra de arte tornou-se, no
dadaísmo, um choque.”101 A rapidez com que as imagens se sucedem não permite
estados contemplativos. Assim, para Benjamin, o cinema através da sua estrutura
técnica “libertou o efeito de choque físico do invólucro moral em que o dadaísmo
ainda o mantinha, de certo modo, envolvido.”102
A relação de pertença do cinema com a época de seu surgimento é de ex-
trema importância, pois da mesma forma que podemos compreendê-lo à luz das
vanguardas, muitos dos princípios vanguardistas são explicitados por este meio
que consegue, através da técnica, levar adiante a decomposição e reconstrução
do olhar proposta por cubistas, dadaístas e futuristas. Em 1916, aquando da pu-
blicação do manifesto do cinema futurista103, percebemos o vivo interesse que
essa máquina, em particular, exerce sobre aquele movimento. Os futuristas olham-
na com fascinação, pois o cinema, “born only a few years ago, [...], lacking a past
and free from traditions”, pode tornar-se o instrumento ideal para a nova arte,
dentre outras coisas pela sua “pollyexpressiveness towards which all the most mo-
dern artistic researches are moving.”104
O cinema exercia atração sobre os futuristas pelas possibilidades expressivas
e também porque, em sua busca do absolutamente novo, os futuristas viam nele
100
Conforme Noël Burch, o século XIX presencia o surgimento de tecnologias variadas que vão de-
sembocar no aparecimento do cinematógrapho. Cada uma delas era um novo passo em direção a
uma recriação da realidade, “hacia la realización de una ilusión perfecta del mundo perceptual”. O
século burguês apropria-se da fotografia (e posteriormente do cinema), que acaba por substituir o
sistema de representação do espaço surgido no Quattrocento. (Noël Burch, El tragaluz del infinito,
3ª ed., Madrid, Cátedra, 1995. Ver especialmente as pp. 21-24).
101
Walter Benjamin, op. cit., p. 107.
102
Ibidem.
103
“Tal manifesto, na realidade, antecipa uma realização cinematográfica das provocações e expe-
riências já postas em prática pelos futuristas, durante suas ‘noitadas’, com a poesia e o teatro:
fusão das várias artes num ímpeto único de superação dos valores estéticos tradicionais, choque
caótico e dissonante de materiais visuais tomados dos mais diversos contextos, plena liberdade de
qualquer uso lógico, coerente, codificado ou codificável do novo meio.” (Antonio Costa, Compreender
o Cinema, Rio de Janeiro, Globo, 1987, p. 73).
104
Umbro Apollonio (ed.), op. cit., pp. 207-208. O manifesto do cinema futurista foi publicado origi-
nalmente em 11 de setembro de 1916 em L’Italia futurista e foi assinado por F. T. Marinetti, Bruno
Corra, Emilio Settimelli, Arnaldo Ginna, Giacomo Balla, Remo Chiti.
MIRIAN TAVARES

um meio dinâmico, já que o livro, segundo eles, era “static companion of the se-
dentary, the nostalgic, the neutralist, cannot entertain or exalt the new Futurist
generations intoxicated with revolutionary and bellicose dynamism.” O cinema fu-
turista iria cooperar para uma renovação geral, tomando o lugar da literatura e
“killing the book (always tedious and oppressive).”105 Jean Epstein no seu texto “O
44 Cinema e as Letras Modernas” enumera uma série de “estéticas” da Sétima Arte
que contaminam a literatura. A velocidade do novo século, bem traduzida pelo ci-
nema, é também uma das marcas determinantes das vanguardas:

Nas Iluminações de Rimbaud, a média é de uma imagem por cada


segundo de leitura em voz alta. Nos Dezenove Poemas Elásticos de
Blaise Cendrars, a média é a mesma: às vezes um pouco mais baixa.
Por outro lado, em Marinetti, não há mais que uma imagem a cada
cinco segundos. Nos filmes, a relação é a mesma.106

Uma forma de expressão tão recente conseguia já a proeza de interrelacio-


nar-se com a milenar literatura, sofrendo influências e, em troca, proporcionando
um novo ritmo às artes do séc. XX, bem como à própria maneira de apreendê-las.
A partir do novo olhar que o cinema instaurava, trazendo a ideia de continuidade
e movimento, de tempo recomposto, de montagem, foi possível rever toda a his-
tória da arte, reconstituindo-a a partir de um novo ponto de vista107.
Herdeiro direto da fotografia, o novo meio de expressão trouxe consigo a
marca do Real108. Além da possibilidade de captar o mundo tal qual ele se nos
apresentava, trazia ainda o movimento do mundo. O cinema era então a fotografia
que se realizava no tempo, arrastando consigo uma indicialidade até então pro-
curada no mundo das imagens, mas não alcançada. Nem o Renascimento, no auge
da sua perfeição representativa, trazia em si as marcas do mundo, os sinais de
uma realidade que aderiam como pegadas ao olho da câmara109. O artista é atra-
105
Ibidem.
106
Op. cit., p. 272.
107
Em seu ensaio “Sobre el punto de vista en las artes” in La deshumanización del arte y otros ensayos
de estética, 11ª ed., Madrid, El Arquero, 1976, na página 158 Ortega y Gasset escreverá: “La
Historia, cuando es lo que debe ser, es una elaboración de films. No se contenta con instalarse en
cada fecha y ver el paisaje moral que desde ella se divisa, sino que, a esa serie de imágenes
estáticas, cada una encerrada en sí misma, sustituye la imagen de un movimiento”. Ele prossegue
criticando o fato de cristalizar-se os feitos históricos, fragmentando-os e colocando-os num frigorífico
(o museu), enfim, transformando-os em cadáveres. E para exumar este cadáver “Bastaría colocar
los cuadros en un cierto orden y resbalar la mirada velozmente sobre ellos - y si no la mirada, la
meditación. Entonces se haría patente que el movimiento de la pintura, desde Giotto hasta nuestros
días, es un gesto único y sencillo, con su comienzo y su fin”. (Op. cit., p. 159). Assim ao invés de
buscar objetos estáticos, Ortega y Gasset busca o próprio movimento.
108
“Todo filme é uma sucessão de reproduções fotográficas, e uma foto (não importa o que você faça
com ela) é sempre algo que já existiu, que, em certo momento específico, foi real.” (Jean-Claude
Carrière, A Linguagem Secreta do Cinema, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 57).
109
“Sem discutir o que está por trás da semelhança ou da indexalidade, vamos reter a ideia de
fidelidade de reprodução de certas propriedades visíveis do objeto e a ideia de que uma fotografia
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

vessado pela realidade – uma imagem que nos remete a um sonho de André Bre-
ton – um homem que caminhava com o corpo cortado perpendicularmente por
uma janela. O princípio do surrealismo e, de alguma forma, o princípio do cinema.
Como a janela que cortava ao meio o homem do sonho de Breton, a realidade
atravessa o corpo da criação artística: a fotografia e o cinema, mesmo em suas
manifestações mais radicais110, trazem consigo a marca feita de luz da realidade 45
captada. Ao capturar o mundo, temos uma indicialidade inegável, que, por vezes,
afastou cinema e fotografia, do status de ARTE.
Yuri Lotman111 afirma que o caráter de verdade que o cinema possuía no prin-
cípio foi um dos factores que menos contribuíram para a transformação desta au-
tenticidade em instrumento de cognição, ou seja, da sua transformação numa
verdadeira arte. Porém, como tudo em nosso século supersônico, logo descobri-
ram o caráter poético do novo meio e sua liberação do automatismo técnico, fa-
zendo com que intelectuais de vanguarda o aceitassem como a Sétima Arte.
O cinema foi rapidamente mostrando como transformava a realidade que o
atravessava em imagens muito particulares. Foi aprendendo a caminhar com seus
próprios meios e, para alguns, como André Malraux, o ato inaugural da Arte cine-
matográfica foi o corte dentro da cena. Ou seja, o ato inaugural, que fez o cinema
afirmar-se enquanto arte, foi o aparecimento da montagem. Para outros, talvez,
a importância do corte dentro da cena e a possibilidade de reorganizar o mundo
filmado não seja tão importante e definidor. Sabemos que as querelas em torno
da montagem dividiram os teóricos realistas e formalistas, diríamos até, os teóricos
como Bazin, com uma forte tendência fenomenológica (o mundo que se apresenta
à câmera, como uma epifania, que não deve ser maculada pela manipulação da
montagem112). A montagem constitui-se, portanto, num centro convergente/di-

pode ser encarada como um documento apontado para a pré-existência do elemento que ela de-
nota.” (Ismail Xavier (org.), O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência, 2ª ed., Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 12).
110
Mesmo nos experimentos do Cinema Puro, onde Brakhage, Kubelka e outros tentaram não fazer
filmes (abandono da narrativa), mas trabalhar com a materialidade do cinema, não fugiram da
realidade da luz para criar seus experimentos. (Ver op. cit., pp. 85-90).
111
Yuri M. Lotman, Estética y semiótica del cine, Barcelona, Gustavo Gili, 1979, passim.
112
Falar sobre André Bazin é sempre uma tarefa complexa. Se por um lado podemos classificar a sua
teoria de realista, em contraponto à teoria formalista do cinema, não podemos negar que, como
Amédée Ayfre, Bazin conseguiu manter uma abordagem fenomenológica do cinema bastante bem
fundamentada. Se Ayfre defendia que “O cinema, longe de ser um frio registro do mundo, é um re-
gistro daquela relação simbiótica entre intenção e resistência, entre autor e material, mente e as-
sunto.” (Cf. Dudley Andrew, As Principais Teorias do Cinema, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1989, p.
248), Bazin, em seu já antológico ensaio “Ontologia da Imagem fotográfica”, defende que “A foto-
grafia se beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução.” (André
Bazin, “Ontologia da imagem fotográfica” in O Cinema, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 22). Portanto,
para ambos, o registro da imagem feita pela fotografia e/ou pelo cinema tem a capacidade de
transcender e revelar o mundo, pois ambos contêm traços do mundo em suas representações. O
que Bazin afirma sobre a fotografia pode ser estendido ao cinema pois, para ele, “o cinema vem a
ser a consecução no tempo da objetividade fotográfica.” (Op. cit., p. 24). Por isso o que Dudley An-
drew diz sobre Ayfre em relação ao cinema neo-realista pode ser aplicado a Bazin: “Ele (Ayfre) o
MIRIAN TAVARES

vergente de opiniões, mas, sem dúvida, numa das principais questões propostas
pelo cinema.
Partindo da montagem como ato inaugural, ou ponto crucial do cinema, ire-
mos analisar com mais detalhe a relação entre o cinema e as vanguardas do início
do século, principalmente a sua relação com o surrealismo. Os surrealistas sempre
46 admiraram o cinema, fundamentalmente aquele que se aproximava bastante da
estrutura dos sonhos, como os primeiros filmes de Chaplin e Buster Keaton. Para
Breton, dois filmes conseguiram ser, de fato, surrealistas: Un chien andalou e L’âge
d’Or. Aliás, o cartão de visitas de Buñuel para o movimento foi precisamente o
primeiro filme que realizou conjuntamente com Dalí. Por isso a importância de
um cineasta, que como poucos fez o cruzamento do cinema com a vanguarda,
participando da criação de vários atos inaugurais que iriam perdurar na cinema-
tografia do nosso século. Luis Buñuel, cineasta e surrealista (ou vice-versa) – par-
ticipante ativo de um movimento vanguardístico, poeta das imagens, construtor
de um universo peculiar e aterrador, capaz de deixar explodir na tela todo o horror
e fascínio de uma super realidade que está escondida sob o nome de inconsciente
– conseguiu, através de sua obra cinematográfica, abrir o olho de um mundo que
se obstinava na cegueira.
Le plaisir du jeu, o prazer que animou o movimento surrealista, é o que dá
vida à obra de Luis Buñuel e do cinema de vanguarda de um modo geral. Os ele-
mentos agônicos presentes na obra de Buñuel lembram-nos que a regra funda-
mental do jogo do cinema é a ambiguidade e a entrega ao abismo, segundo o
glossário de Leiris, Abîme = vie secrète des amibes113, o jogo de palavras e a busca
do sentido que está além do nosso olhar cotidiano.

II.1.1. Os primeiros teóricos


Não pretendo traçar um panorama completo dos primeiros teóricos do ci-
nema. Dou apenas uma amostra de como é construído o pensamento cinemato-
gráfico e a sua relação com as vanguardas, principalmente com o surrealismo, por
isso uma maior ênfase nos teóricos de cinema franceses.
Segundo Joël Magny, os primeiros escritos sobre o cinema que podem ser
levados em consideração aparecem na Itália em 1907. Edmondo de Amicis e Gio-
vanni Papini lançavam em seus textos a ideia de ver o cinema até mesmo como

opôs ao ‘verismo’ e ao ‘realismo socialista’ nos quais o homem controla aquilo que a realidade sig-
nifica.” (Op. cit., p. 248). No fundo, o que ambos pretendiam era defender a imagem do mundo
que se revela para a câmera da manipulação desta revelação processada no realismo socialista ou
do cinema verdade que ignorava “os desejos e valores do homem [...] em favor de uma realidade
bruta. O neo-realismo foi, para ele e para Bazin, um realismo humano que ilustrou com sua própria
técnica o incessante diálogo do homem com a realidade física.” (Ibidem).
113
Eduardo Peñuela Cañizal, ao analisar as mutações que podem vir a ser evocadas por uma simples
palavra, cita algumas definições do glossário de Leiris, dentre elas, a acima citada. (Surrealismo,
pp. 41-42).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

um campo para especulações metafísicas, reclamando também as possibilidades


artísticas do meio. Neste mesmo ano, Georges Méliès publica um texto que, ape-
sar de técnico, aponta para as possibilidades de produzir um cinema fantástico
através das trucagens ópticas ou mecânicas. Para Méliès a originalidade do cinema
consistia em “réaliser tout, même ce qui semble impossible, et (de) donner l’ap-
parence de la réalité aux rêves le plus chimériques.”114 Para Magny, Méliès é o pri- 47
meiro a perceber “cette originalité du cinématographe où la capacité de
reproduction est mise au service de l’imaginaire”.115
Se Méliès propôs que o cinema funcionasse a serviço do imaginário, Ricciotto
Canudo será o primeiro a elaborar uma teoria do cinema. Canudo não conseguiu
montar uma teoria sistemática, mas foi o mentor da ideia do cinema como sétima
arte, herdeiro das que vinham antes dele, mas, superior, por ser l’art de la vie116.
Pode-se contestar a validade das ideias de Canudo e acusá-lo de idealista117, mas,
a partir dele surgem outros teóricos que iriam em busca da especificidade do ci-
nema, naquele momento essencial, para que o cinema se libertasse enfim das ou-
tras artes e pudesse ser considerado uma outra forma de arte, não teatro filmado,
114
Georges Méliès apud Joël Magny, op. cit., p. 13.
115
Ibidem. Se, para Magny, Méliès é o primeiro a perceber a capacidade de reprodução do imaginário
que o cinema possui, não deixamos, entretanto, de concordar com Henri Langlois que considera
Méliès o mais anti-surrealista de todos os cineastas. Apesar das formulações do surrealismo sobre
o cinema estarem calcadas na possibilidade deste de reproduzir o imaginário, a produção de Méliès
está longe do desejo, acima de tudo, que os surrealistas possuíam de fazer do cinema um poema
construído através das imagens. Cf. Langlois: “Je ne suis pas comme une de mes collègues à
prétendre que les primitifs et Méliès, que virent les surréalistes dans leur enfance, furent à l’origine
de leur vocation. Cela part d’un esprit pédagogue et superficiel, d’abord parce que Méliès est le
plus anti-surréaliste de tous les cinéastes, ensuite parce que c’est nier la vie.” Langlois acredita que
a fonte de inspiração dos poetas que nos levaram ao cinema estava em outro lugar. (“Témoignages”,
Etudes cinématographiques, 38-39, prim/1965, p. 42).
116
Cf. Magny, “Pour Canudo, ‘art de la vie’ ne veut pas dire simple reproduction: ‘L’art n’est pas le
spetacle de quelques faits réels; il est l’évocation des sentiments qui enveloppent ces faits.’ Il ne
s’agit pas de photographier des faits extérieurs, ‘mais de jouer avec les lumières pour évoquer des
états d’ âme’.” (Op. cit., p. 13).
117
Em seu livro sobre estética do cinema, Gérard Betton comenta as atitudes estéticas, que são os di-
ferentes modos de representação da palavra e do pensamento. Encontramos então uma divisão
entre o realismo cinematográfico e os idealismos. Na verdade, é mais uma divisão didática que
efetiva, pois o conceito de realismo, como ele mesmo reconhece, tem um sentido muito amplo e
vago. Assim sendo ele cita Roger Boussinot, que assinala: “Há tantos realismos quantos métodos
de conhecimento: realismo dialético platônico, realismo cartesiano, realismos hegeliano, marxista,
naturalista, impressionista, expressionista, realismo surrealista, realismo onírico ou freudiano, rea-
lismo tecnológico, etc.” (o itálico é meu). Ao que Betton assevera: “E, no limite, podemos dizer que
todo filme – assim como toda obra de arte – é realista.” Para diferenciá-lo do idealismo é preciso
compreendê-lo então como “uma tendência contra as tendências irrealistas”. Enquanto no idealismo
encontramos uma transfiguração da realidade. (Gérard Betton, Estética do Cinema, São Paulo,
Martins Fontes, 1987, pp. 5-16). Percebemos aqui o quão difícil é definir os limites entre duas ten-
dências que, no mundo das artes, acabam por cruzar-se em vários momentos. Da mesma forma
que Betton coloca o surrealismo como um dos idealismos, encontramos na supracitada afirmação
de Boussinot um realismo surrealista. De qualquer forma os surrealistas estão mais próximos de
um cinema pensado pelos teóricos ditos idealistas que dos chamados realistas.
MIRIAN TAVARES

nem fotografia animada, mas um meio com possibilidades distintas e caracterís-


ticas próprias.
“Em 1911... quando o filme ainda era, na prática e na teoria, uma distração
para colegiais... Canudo compreendera que o cinema podia e devia ser um mara-
vilhoso instrumento de novo lirismo, que só existia então em potencial.”118 Para
48 Epstein é inegável a importância de Canudo, pois este fora o primeiro a detectar
a potencialidade lírica de um meio e de influenciar um grupo de intelectuais da
época fazendo-os ver que a vocação do cinema era evocar estados da alma e não
eventos exteriores. Segundo Magny, o próprio Epstein tenta compreender o ci-
nema a partir de uma dupla vinculação: não esquecendo o carácter técnico aposta
no cinema como “moyen d’accès à un au-delà du monde sensible”119.
Quase ao mesmo tempo em que Canudo divulgava as suas ideias sobre o ci-
nema, que influenciaram toda uma gama de teóricos da vanguarda francesa, o
ator teatral e cineasta alemão Paul Wegener pronunciava uma conferência que
foi publicada logo a seguir intitulada Das possibilidades artísticas da imagem ani-
mada. Ángel Luis Hueso não compreende por que os estudiosos da estética do ci-
nema raramente citam Wegener, já que este aponta para uma característica muito
importante do novo meio, de certa forma não totalmente contemplada por Ca-
nudo. Pois enquanto o italiano destacava as possibilidades até visionárias da arte
cinematográfica, o alemão fincava o pé nas possibilidades artísticas do meio, que
surgem exatamente de suas possibilidades técnicas.
Wegener acreditava que “el verdadero poeta dentro del cine debe ser la cá-
mara tomavista”120. O que Wegener propunha não era tirar das mãos do realizador
a capacidade lírica do meio, mas compreender que estávamos diante de algo to-
talmente novo e não de uma mera fusão da contribuição de outras perspectivas
artísticas. Reconhecer o cinema como um meio novo e revolucionário com carac-
terísticas próprias era o corolário das vanguardas do início do século que se de-
bruçaram sobre o cinema. Se Wegener vai mais adiante que Canudo, encontramos
em Epstein, de certa forma, o cruzamento destas duas teorias: de um lado a com-
preensão do cinema como a arte da vida, de outro a aceitação do caráter técnico
do meio como forma também de criação artística.
Da mesma forma que Wegener via a câmera como o verdadeiro poeta do
filme, em Bonjour cinéma, encontramos esta afirmação de Epstein: “A câmera Bell-
Howell é um cérebro de metal, padronizado, fabricado, reproduzido em alguns
milhares de exemplares, que transforma em arte o mundo exterior.”121 (o itálico é
meu). Joel Magny, ao traçar um breve histórico dos primeiros escritos sobre o ci-
nema produzidos pela vanguarda francesa e o surrealismo, chama este estudo A
118
Jean Epstein apud Henri Agel, Estética do Cinema, São Paulo, Cultrix, 1982, pp. 9-10.
119
Joël Magny, op. cit., p. 15.
120
Paul Wegener apud Ángel Luis Hueso, op. cit., p. 33.
121
Jean Epstein, “Bonjour Cinéma – excertos” in Ismail Xavier (org.), A Experiência do Cinema, op. cit.,
p. 277.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

la recherche d’une spécificité. Partindo de Canudo, o pére-fondateur, encontramos


em Louis Delluc o mesmo desejo de separar o cinema das outras artes, e a procura
do que seria específico do meio, compreendendo que o cinema, filho da mecânica
e do ideal do homem, tinha o poder de nos ajudar a perceber melhor o mundo.122
A importância desses pensadores ou teóricos de primeira hora é inegável, fi-
cando difícil destacarmos qual dentre eles deixou-nos um legado maior. Porém, 49
Jean Epstein, que, como a maior parte deles, era também cineasta, deixou-nos
um contributo bastante sólido, pois mais que buscar apenas a especificidade do
cinema ou tentar provar a sua artisticidade, ele foi mais longe tentando compreen-
der o cinema como uma máquina inteligente, com as limitações e possibilidades
de uma máquina, mas com a capacidade de transcender a sua mera condição de
técnica e revelar, de alguma forma, o mundo exterior.
Em Epstein encontramos, lado a lado, reflexões que estavam presentes em
teorias como as de Wegener, vistas anteriormente, e como as de Munsterberg,
por exemplo, que entendia o cinema como um fenômeno psíquico123:

Ele nos apresenta uma quintessência, um produto duas vezes disti-


lado. Meu olho me propicia a ideia de uma forma. Também a película
contém a ideia de uma forma, ideia inscrita fora da minha consciên-
cia, ideia sem consciência, ideia latente, secreta mas maravilhosa; e
da tela eu obtenho uma ideia de ideia, a ideia de meu olho tirada da
ideia da objetiva (ideia), de uma álgebra tão leve, que é uma raiz qua-
drada de ideia.124

O pensamento de Epstein, segundo Magny, “s’inscrit dans une vision mysti-


que, voire ésoterique, du cinéma comme moyen d’accès à un au-delà du monde
sensible.”125, visão esta que será compartilhada pelos surrealistas. É interessante
ressaltarmos que, enquanto movimento, os surrealistas não escreveram teorias
122
Cf. Joël Magny, op. cit., p. 14.
123
Hugo Munsterberg escreveu em 1916 The Photoplay: a Psychological Study, considerada ainda
hoje uma das principais teorias do cinema. Apesar da evolução da técnica cinematográfica, que de
certa forma era rejeitada por Munsterberg, os princípios básicos da sua teoria ainda são válidos.
Proveniente da Filosofia e da Psicologia, Munsterberg divide a sua obra em estética e psicologia do
cinema, dando um importante contributo à então quase inexistente teoria cinematográfica. A
mente humana era, para ele, a verdadeira matéria-prima do cinema, pois é a mente que possui a
capacidade de organizar o nosso campo perceptual. De certa forma, quando Epstein aponta para
o caráter psíquico do cinema, ele aponta para a organização que fazemos das imagens que aparecem
na tela. É meu olho que propicia a ideia de uma forma e a partir daí posso perceber a ambiguidade
da imagem, que está fora e dentro de mim. Não queremos com isso ver convergências absolutas
entre as duas visões do cinema, mas apontarmos para convergências comuns em um tempo em
que a todos interessava descortinar os segredos do novo meio. Assim, Epsteisn, mesmo não tendo
quaisquer relações com Munsterberg, de alguma forma, tocava em pontos que foram centrais na
obra do alemão, o que nos revela o alcance do pensamento de Epstein, pois este supera o dos teó-
ricos franceses do início do século aos quais ele estava estreitamente ligado.
124
Jean Epstein, “Bonjour cinéma – excertos” in Ismail Xavier, op. cit, p. 277.
125
Joël Magny, op. cit., p. 15.
MIRIAN TAVARES

sobre o cinema, apontaram apenas para as características que eles acreditavam


que este possuía, como a supracitada, e esperavam realizar no cinema as formu-
lações contidas em seus ensaios sobre a arte de um modo geral.
Como teórico, Epstein aprofunda as ideias lançadas por Canudo e Delluc,
além de chegar à conclusão que o cinema é a arte que leva em consideração a
50 quatrième dimension do mundo: o tempo, concluindo Magny que “C’est ainsi
qu’Epstein s’intéresse à tous les procédés qui travaillent la durée et le temps.”126

II.1.2. A vanguarda russa


Não nos é possível ignorar que ao mesmo tempo em que surgia uma teoria
de cinema em França, na Rússia era desenvolvido todo um arsenal teórico e prá-
tico que apontava na direção de um cinema revolucionário, tanto política quanto
esteticamente. Após 1917, as relações entre o cinema e as vanguardas consistem
em atribuir ao novo meio um papel central em seus experimentos, tornando-o
um instrumento de luta e formação de consciências.
Conforme Antonio Costa, o que caracteriza a experiência do cinema de van-
guarda russo é a convivência de dois projetos interligados entre si: “De um lado,
o estudo sobre bases experimentais, como se pretendia fazer no laboratório de
Kulechov; por outro lado, o projeto revolucionário”127. De um modo geral esta pro-
posta que por si só era radicalmente revolucionária (ou seja, provocava mudanças
a partir da raiz mesma de todas as coisas), não atraiu nem as multidões ao cinema,
nem deixou satisfeitos os membros do Partido Comunista que desejavam algo
mais eficiente enquanto propaganda. De qualquer maneira, a cinematografia e
teorias ali desenvolvidas serão fundamentais em toda a história do cinema.
Um dos princípios básicos dos formalistas russos era tornar o objeto estranho.
A ideia de estranhamento, postulada inicialmente por Viktor Skloviskii, exigia que
o objeto saísse de seu lugar comum e assumisse uma outra significação. A nossa
visão dos objetos tornou-se automática. É como se já não os víssemos. Quando
126
Ibidem.
127
Antonio Costa, op. cit., p. 78. Cabe-nos frisar a importância dos experimentos, já clássicos, realizados
por Kulechov. “Segundo o espírito científico do tempo, Kulechov e seus alunos estudavam as leis
constitutivas da comunicação fílmica e os elementos específicos da linguagem cinematográfica.”
(Ibidem). Ao mesmo tempo que Kulechov realizava seus experimentos, o grupo formalista, consti-
tuído por linguistas e críticos como Jakobson, Sklovskii, Tynianov e Eichembaum realizavam pesquisas
na área da linguagem, além de participarem da formação do próprio cinema soviético como rotei-
ristas e teóricos. Desta forma, tendo de um lado uma teoria assentada em bases tão importantes,
a prática cinematográfica da vanguarda, por outro lado, não se furtava de um forte comprometi-
mento político. “Ao mesmo tempo em que elaboravam uma espécie de gramática da comunicação
baseada essencialmente na montagem, os cineastas russos participavam de um movimento político
que acreditava na possibilidade de libertar a arte da condição de separação e isolamento na qual
a havia colocado a cultura ‘burguesa’ e de fazer dela um dos elementos propulsores da construção
de uma nova sociedade.” (Ibidem).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

eles se nos apresentam deslocados do cotidiano, passamos a enxergá-los e, con-


sequentemente, a (re)conhecermos o mundo a nossa volta.
Hans Richter (que além de participar do dadaísmo tornou-se depois um dos
seus principais historiadores) conseguiu resumir a angústia que movia os cineastas
formalistas quando disse: “o principal problema estético do cinema, que foi inven-
tado para reproduzir, é, paradoxalmente, ultrapassar a reprodução”128. O desejo 51
de ultrapassar a reprodução e capturar o efeito espetacular do objeto fez com que,
em alguns casos, para os formalistas, a técnica estivesse acima da própria obra.
Para Dudley Andrew, antes de ser uma “filosofia aplicável aos trabalhos ar-
tísticos de todos os estilos”, o formalismo apresentava uma “tendência a se tornar
partidário de um estilo particular de arte”129. É inegável, porém, a importância do
formalismo russo, não só na teoria como na criação de grandes filmes que serão
marcos na história do cinema. Apesar de Pudovkin afirmar certa vez que “a teoria
do cinema soviético é o setor mais atrasado do filme”130, a teoria formalista con-
tinua, até hoje, a influenciar o modo de alguns teóricos pensarem o cinema.
Torna-se difícil fazer uma sistematização do pensamento formalista e agrupá-
lo em um só corpus teórico. Esta tarefa é difícil porque não havia uma “clara cons-
ciência teórica” e cada um desenvolveu suas particularidades e paradoxos. Joaquín
Jordá, na introdução do livro de Sklovskii, Cine y lenguaje, afirma: “es la dificultad
señalada por algunos críticos y sentida casi unánimemente por todo el grupo for-
malista de compendiar sus investigaciones en un corpus teórico orgánico.”131
Apesar de não constituir um corpus teórico orgânico, um fundamento estava
presente em toda a criação formalista: romper com o automatismo da visão coti-
diana. Além de alguns nomes que ficaram individualmente conhecidos, encontra-
mos no formalismo um autêntico exemplar de um grupo de vanguarda: a FEKS
(Fábrica do Ator Excêntrico). Reunidos em torno das figuras de Kozintsev e Trau-
berg, seus manifestos do Excentrismo foram inspirados nos manifestos de Mari-
netti (de quem eles herdaram algumas ideias, que vieram, posteriormente, a
refutar132).
Para a FEKS, estava chegando ao fim o misticismo e o simbolismo europeus.
Era preciso dar valor ao que realmente importava: os objetos. Fazer da forma o
assunto da obra: “A forma é uma carga de dinamite colocada embaixo da banali-
dade cotidiana.”133 A técnica assume aqui grande importância, junto com um sen-
128
Hans Richter apud Dudley Andrew, op. cit., p. 90.
129
Op. cit., p. 93.
130
Pudovkin apud Guido Aristarco, História das Teorias do Cinema, 2 vols., Lisboa, 1963, p. 224.
131
Joaquín Jordá, “Introducción” a Viktor Sklovskii, Cine y lenguaje, Barcelona, Anagrama, 1971, p. 17.
132
Ao mesmo tempo em que a FEKS aderia a algumas ideias de Marinetti, em um dos seus manifestos
eles procuram renegar esta influência: “Qué atrasados nos parecen los consejos del ‘loco’ MARINETTI
cuando nos dice que hay que untar con cola las butacas del público, o esparcir por la platea polvos
que hagan estornudar! Un gracioso petit jeu de salón... ¡No! No queremos diabluras.” (G. Rapisarda
(org.), Cine y vanguardia en la Unión Soviética, Barcelona, Gustavo Gili, 1978, p. 38.)
133
Kozintsev apud Kraiski in G. Rapisarda, op. cit., p. 271.
MIRIAN TAVARES

timento geral de modernolatría. Eles buscavam compreender o procedimento da


sua linguagem e evidenciá-la na obra pronta, trazer para seus contemporâneos a
consciência da velocidade e o fascínio pelas máquinas.
Não é difícil, portanto, imaginar o fascínio que o cinema exerceu sobre o
grupo. Apaixonados pelos filmes americanos de aventura e pelas comédias de
52 Chaplin, eles fizeram uma síntese entre o music-hall, o formalismo russo e o ca-
baret alemão. Um dos seus filmes mais conhecidos, Shinel, está mais próximo do
expressionismo, por exemplo, que do formalismo russo. Além de experiências na
realização cinematográfica, a FEKS deixou também deixou uma contribuição para
a teoria. Como em todas as vanguardas, aqui também é difícil delinear uma fron-
teira clara entre realização e reflexão.
Há, no entanto, dentro do formalismo russo, uma figura que pode ser consi-
dearada de proa: Eisenstein. Não só como teórico, mas como autor de uma obra
de referência dentro da história do cinema. Conforme Sklovskii, “É fácil reconhecer
a genialidade de Eisenstein porque a genialidade de um indivíduo não é muito
ofensiva [...] mas é difícil reconhecer a genialidade de toda uma época.”134 Eisens-
tein pertence a um grande período na história das artes do nosso século. Mas a
sua genialidade é incontestável, basta reparamos no legado que ele nos deixou.
As suas concepções sobre a montagem irão revolucionar a construção do filme.
Apesar das diferenças que colocam surrealismo e formalismo em lados opos-
tos, é possível encontrarmos algo em comum. Tanto surrealistas quanto formalis-
tas desejavam afastar-se do pessimismo de algumas vanguardas. Além do gosto
em comum pelos filmes de Mark Sennet, a visão poética do cinema marcou bas-
tante o pensamento destes dois grupos de vanguarda.

II.1.3. O cinema Dada e a vanguarda francesa:


o caminho para o surrealismo
É importante ressaltar que o cinema só é de fato apropriado pelas vanguardas
em torno de 1925, ou seja, com um atraso considerável em relação à pintura ou
à poesia. Antes havia um interesse de espectador, e também já um certo cinema,
que poderíamos considerar como precursor daquilo que vai explodir, efetiva-
mente, nas mãos de nomes como René Clair, Hans Richter, Man Ray e, claro, Bu-
ñuel. Georges Sadoul, na sua História do Cinema Mundial, aponta o início da
relação cinema/vanguarda principalmente com a constituição de um público es-
pecífico. São criados cineclubes e o cinema atinge um status bem maior que o de
simples atração de feiras. Mas as experimentações cinematográficas das vanguar-
das surgem em 1921, pelas mãos dos dadaístas.
Os primeiros filmes dadaístas eram praticamente uma nova forma de pintura:
utilizando as possibilidades do cinema, pintores como Viking Eggeling, Hans Richter
134
V. Sklovskii, Cine y lenguaje, Barcelona, Anagrama, 1971, p. 138.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

ou Walter Ruttmann ampliavam as experiências de sua própria arte em filmes que


eram basicamente abstratos, mais sinfonia visual que, efetivamente, cinema. Para
os dadaístas, “Le cinéma détient la capacité d’unir en une forme exemplaire et in-
définiment répétable dans la sucession temporelle, l’image, la musique et le dis-
cours.”135 O fascínio da imagem do cinema estava ligado a esta possibilidade múltipla
de transformar uma obra de arte, como uma pintura, por exemplo, em um meio 53
mais completo, não apenas visual, estático, mas sonoro e com movimento.
Apesar de possuir alguns pontos em comum, o cinema dadaísta difere bas-
tante do cinema surrealista. Se tomarmos como exemplo o uso do acaso como o
móbil que vai ajudar no encadeamento das imagens, presente tanto num como no
outro, temos que: “La volonté d’éliminer la dépendance causale conduit Dada à la
rencontre du hasard, causalité dont on ne peut contrôler les enchaînements.”136
Porém o uso do hasard, como bem ressalta Philippe Sers, não era exatamente o
mesmo para os dadaístas e os surrealistas. Enquanto os primeiros estavam mais
voltados para explorar a imagem em si, descobrindo os novos conteúdos aí reve-
lados, os surrealistas atravessavam a descoberta com postulados discursivos.137
O cinema abstrato e experimental que surge do dadaísmo constitui-se, con-
forme Philippe Sers, na possibilidade, face a uma linguagem discursiva, “d’un ordre
de l’image nanti de son autonomie et de sa spécificité dans la marche vers la con-
naissance.”138 Os surrealistas sempre reagiram contra o cinema abstrato, para An-
tonin Artaud. Por exemplo, o cinema puro era um erro. No entanto, havia algo que
estava presente em surrealistas e dadaístas (e de um modo geral na vanguarda
francesa do início do século): o desejo de revelar, através do cinema, o invisível.
Sobre esta questão, Hans Richter afirmou: “J’ai toujours été particulièrement fas-
ciné par les possibilités qu’a le film de rendre l’invisible visible: le fonctionnement
du subconscient invisible, qu’aucun autre art ne peut exprimer aussi complète-
ment et aussi efficacement que le film.”139
Mas falar do cinema dadaísta é falar também das tensões que o movimenta-
vam. Não havia o cinema dadaísta, mas experimentos realizados por pessoas tão
diversas como Hans Richter e Viking Eggeling. Para Rudolf E. Kuenzli, “the relan-
tionship between Richter’s and Eggelin’s experiments and Dada can only be re-
cognized if we do not ignore the dynamic tension in the Dada movement between
destructive and constructive tendencies.”140
135
Philippe Sers, Sur dada - essai sur l’experiénce dadaïste de l’image. Entretiens avec Hans Richter,
Nîmes, Éd. Jacqueline Chambon, 1997, p. 43.
136
Philippe Sers, op. cit., p. 12.
137
Cf. Philippe Sers : “Toutefois, le dadaïsme aura la prudence (étrangère au surréalisme), de ne pas s’en-
gager plus avant dans la formulation ou l’explicitation de cette loi de chance, mais de concentrer sur sa
mise en pratique en vue de la découverte des nouveaux contenus. Cela permet de comprendre que
l’étude de l’image dadaïste puisse mettre à jour des richesses inattendues dans la voie de l’établissement
d’un ordre de l’image exploré en tant que tel, et non en vertu de postulats discursifs.” (Op. cit., p. 12).
138
Op. cit., p. 6.
139
Hans Richter apud Philippe Sers, op. cit., pp. 7-8.
140
Rudolf E. Kuenzli (ed.), Dada and Surrealist Film, Cambridge, The MIT Press, 1996, p. 2.
MIRIAN TAVARES

Apesar de utilizar o acaso como móbil e da procura em revelar o oculto ou


invisível, o ponto de chegada não é o mesmo para dadaístas e surrealistas. Mesmo
com as diferenças no seio do próprio grupo Dada, alguns pontos ligavam-nos (e
distanciavam-nos das concepções do surrealismo):

54 […] they disrupt the viewer’s expectations of a conventional narra-


tive, their belief in film as present reality, and their desire to identify
with characters in the film. Dada films are radically non-narrative,
non-psychological; they are highly self-referential by constantly poin-
ting to the film apparatus as an ilusion-producing machine.141

Conforme Walter Benjamin, o cinema possui o estatuto do choque, estatuto


este que está também presente de forma intensa no Dada. É possível afirmarmos
que a relação entre o dadaísmo e o cinema é quase estrutural. Um e outro partem
de processos comuns para construir os seus produtos, sendo ambos fruto da im-
possibilidade, surgida a partir do século XIX, de separar a tecnologia da técnica.142
Assim sendo, a relação Dada/cinema dá-se na medida exata em que o cinema pos-
sibilita o exercício pleno das formulações dadaístas.
Quando Marcel Duchamp realiza experimentos como o seu Nude descending
a staircase, obra que envolve plenamente a questão do movimento, vemos repre-
sentada a sua busca em ultrapassar o estado estático do quadro. Talvez nunca a
expressão moving pictures fez tanto sentido: o que os dadaístas buscavam, mais
que realizar filmes, era a possibilidade física de dotar os seus quadros de movi-
mento, utilizando a técnica para revelar também o próprio processo da técnica
que estava embutido na criação.
A vanguarda francesa, ao contrário da alemã, possuía um caráter irônico
acentuado, uma ironia alegre, inspirada no cinema burlesco onde os vários leit-
motifs eram dominados pelo humor. Os filmes emblemáticos do período são Ballet
Mécanique do pintor cubista Fernand Léger e Entr’acte de René Clair. Assim, “De-
pois de Ballet Mécanique e do êxito triunfal de Entr’acte, a vanguarda cinemato-
gráfica francesa procurava confusamente o seu caminho”143. René Clair tentou,
sem sucesso, repetir o que realizara com Entr’acte. Os filmes de vanguarda limi-
tavam-se então a algumas experiências de Man Ray, que podem ser consideradas
141
Op. cit., p. 7.
142
“The cinema, displaying a flagrant (and ironic) discrepancy between the bricolage of its mechanical,
optical, chemical processes on the one hand, and the homogeneity, unity, illusory cohesion of its
effects on the other, would seem to be a quintessentially Dada artifact - a contention which con-
versely might suggest that Dada artifacts are quintessentially nineteenth-century technological
fantasies.” (Thomas Elsaesser, “Dada/cinema” in Rudolf E. Kuenzli (ed.), op. cit., pp. 13-14). Para
Thomas Elsaesser, o desenvolvimento de novos meios de representação que surgem no século
XIX provoca um deslocamento do efeito estético que pode passar a ser atribuído “to machine-
made objects or images”, o que causa uma profunda ruptura com a relação entre arte e mimese.
Além disso, “cruelly exposed the delicate relationship between crafted object and art object in
respect to labor, skill, and value.” (Ibidem).
143
Georges Sadoul, História Mundial do Cinema, II, Lisboa, Horizonte, 1983, p. 241.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

mais uma continuação de seu trabalho fotográfico, apesar da sua inserção total
no ideário surrealista, e de que seus filmes, juntamente com os primeiros de Bu-
ñuel, constam de todas as listas de filmes considerados surrealistas. Além destes
filmes, surgiram outros, considerados por Sadoul como obras sem importância:
Reflets de Lumière et de Vitesse, de Henri Chomette (irmão de René Clair), que,
segundo Sadoul, “limitou-se a amontoar cristais debaixo de projectores e a uma 55
montagem bastante desajeitada dos negativos de uma floresta vista de um auto-
móvel”.144 Será, contudo, no surrealismo, que irá surgir uma das obras-primas da
vanguarda: Un chien andalou.
O dadaísmo e a arte abstrata deram lugar ao surrealismo. O primeiro filme
surrealista é La Coquille et le Clergyman, de Germaine Dulac. O poeta Antonin Ar-
taud fez o argumento e depois rejeitou o filme. Vários foram os motivos, o princi-
pal talvez tenha sido a realização de Germaine Dulac que não atingiu o objetivo
do poeta: “He pensado que se podía escribir un guión que no tuviera en cuenta el
conocimiento y la ligazón lógica de los hechos [...]. Es decir, hasta qué punto este
guión puede asemejarse y emparentarse a la mecánica de un sueño sin ser el
mismo sueño, por ejemplo”.145 Se Dulac não realizou a ambição de Artaud, Buñuel
e Dalí, com Un chien andalou, chegaram bem perto.
Jorge Luis Borges escreveu certa vez: “É uma observação vulgar dizer que as
alegorias são toleráveis na razão directa de sua inconsistência e da sua indefinição;
o que não significa uma apologia da inconsistência e da indefinição, mas sim uma
prova – um indício, pelo menos – de que o gênero alegórico é um erro”.146 Un
chien andalou não é um filme alegórico. Nem tão pouco um tratado de psicanálise
sujeito a interpretações. É uma grande metáfora surrealista147, construído com as
mesmas técnicas propostas por pintores e poetas do movimento, aproximando-
se ainda do conceito de montagem de atração de Eisenstein.
Talvez por não possuir um programa fechado de intenções, o filme de Buñuel
e Dalí conseguiu o tão almejado intento de trazer à tona a estrutura dos sonhos.
Concretizar nas telas o desejo do surrealismo.

II.1.4. Le cinéma est surnaturel par essence


Em 1965, ainda no âmbito das comemorações dos 40 anos de surrealismo
(1924-1964), que suscitaram exposições e debates, a revista Etudes Cinématogra-
phiques lança dois volumes dedicados ao surrealismo, especificamente sobre a
144
Ibidem.
145
Antonin Artaud, El cine, 4ª reimpressão, Madrid, Alianza Editorial, 1995, pp 13-14.
146
Jorge Luis Borges, Do Cinema, Lisboa, Horizonte, 1983, p. 38.
147
“A poesia de Benjamin Péret ou a pintura de Max Ernst, baseavam-se nessa altura, na ‘montagem’
paradoxal e desarmónica, de formas ou palavras. [...]. Era possível recorrer, conjuntamente, ao
gratuito e ao absurdo ou às novas formas de metáfora poética. Foi o que fez Luis Buñuel ao escrever
o seu argumento com a colaboração do pintor Salvador Dalí.” (Georges Sadoul, op. cit., p. 243)
MIRIAN TAVARES

sua relação com o cinema, tentando esclarecer, não só o que seria um cinema sur-
realista, como também o que havia de surrealismo no cinema tout court. De um
modo geral, quando se fala de cinema e vanguardas, com seus manifestos e teo-
rias, pouco se fala de uma teoria surrealista do cinema, ou mesmo de um movi-
mento concreto que agrupe cineastas e teóricos do cinema e do surrealismo. Mas
56 é inegável a relação entre ambos e como, de várias maneiras, sofreram interpe-
netrações. O que os estudos e depoimentos publicados nesta revista fazem é ten-
tar recolocar a relação entre cinema e surrealismo, não só como um encantamento
que o primeiro exerceu sobre o segundo (e vice-versa), e provando como, de fato,
é possível se falar de um cinema surrealista.
“S’INTERROGER sur les relations qu’entretinrent et qu’entretiennent encore
le Cinéma et le Surréalisme, c’est considérer en fait la persistance ou le déclin de
cette aventure étonnante que constitue le Surréalisme tout entier.”148 Se formos
buscar dados concretos encontraremos poucos textos que se relacionam direta-
mente com o cinema e que foram produzidos pelo movimento. Um deles é Hands
off Love e o outro Manifeste des surréalistes a propos de L’âge d’or.
Alguns membros do surrealismo, como Aragon e Artaud, escreveram textos
sobre o cinema, mas sem formular propostas concretas para a realização de filmes
surrealistas. O que encontramos são impressões gerais que inserem o cinema no
meio da produção do movimento149, ou seja, falar sobre surrealismo e cinema é com-
preender o movimento em si e sua aventura no campo das artes de um modo geral.
Quando os surrealistas publicam, em La révolution surréaliste de 1º de ou-
tubro de 1927, um editorial em defesa de Chaplin, não estava se colocando aqui
nenhuma questão estética à primeira vista. Em Hands off Love, título do texto, os
148
Cf. Georges-Albert Astre, no prefácio do primeiro volume da revista Etudes cinématographiques
dedicados ao surrealismo. Para Astre, a importância do surrealismo em nossa era é inegável, pois
o surrealismo “n’a jamais cessé de vivre” a sua atitude de exploração contínua dos limites e, prin-
cipalmente, a sua exploração “de tous émerveillements et tentative pour rendre possible tout le
soi-disant impossible.” Astre acredita que o movimento conseguiu aproximar-nos de uma realidade
mais rica, mais complexa e mais fascinante. Breton, logo ao princípio, percebeu “cette magie ex-
ceptionelle des dépaysements filmiques”, o ato surrealista diante do cinema é mais que um ato de
construção do filme, mas também um ato renovado de recepção. “Inutile de dissimuler : l’intérêt
de la relation Cinéma-Surréalisme est ailleurs” (pp. 3-5). Da mesma forma que Breton, no final do
I Manifesto proclama : “C’est vivre et cesser de vivre qui sont des solutions imaginaires. L’existence
est ailleurs.” O que está em qualquer outra parte é que nos interessa então.
149
Cf. Joël Magny: “Si le cinéma est très souvent évoqué dans les escrits surréalistes, s’il est souvent
annexé aux diverses champs d’application du surréalisme, rares sont cependant les textes qui
tentent de théoriser l’articulation de la pratique cinématographique au projet surréaliste.” (“Prémiers
écrits, avant-garde français et surréalisme”, CinémAction, nº 20, ago/82, pp. 12-20). Para Ramona
Fotiade, os surrealistas desenvolveram a sua estética no cinema, principalmente através dos textos
e roteiros, apesar da produção de filmes ter sido muito pequena. E esta estética do filme surrealista
“concentrates on the essentially visual nature of the medium and reflects the influence of avant-
garde painting and of early experiments in photography.” (“The untamed eye: surrealism and film
theory”, Screen, vol. 36, nº 4, inv/95 p. 403), o que reforça a ideia de que os escritos surrealistas
sobre o cinema estavam dentro de um contexto maior que envolvia as ideias defendidas pelos sur-
realistas em todos os campos artísticos.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

surrealistas defendiam Chaplin de acusações contra a sua moral, advogando em


causa própria, pois estavam marcando ali um dos pontos de seu ideário, o direito
ao amor total. Para Maurice Nadeau, o que eles fazem é, mais que defender Cha-
plin diante de uma sociedade obtusa, atacar o amor burguês e tudo o que ele re-
presenta. Mas não podemos esquecer que, se saem em defesa de Chaplin, é
porque sua obra já os havia tocado de várias maneiras. É o cinema dele que os 57
encanta e, sem dúvida, a sua pessoa, já que para os surrealistas sempre foi muito
difícil, senão impossível, separar a obra do autor.
Interrogar-se sobre as relações entre o cinema e o surrealismo é também en-
tender tudo o que estava em torno destas relações, porque, conforme Gianni Ron-
dolino, a formulação entre o cinema e o surrealismo é “etica prima ancora che
estetica alla cui base era superamento della realtà quotidiana in una esperienza
globale”150 Assim sendo, as preocupações básicas do surrealismo, a sua formula-
ção ética e moral, irão reger a aproximação entre os surrealistas e o cinema, pri-
meiro apenas como espectadores, para logo após passarem então a produzir seus
próprios sonhos materializados nas telas.
Hands off Love, que leva a assinatura, entre outros, de Breton, Aragon, Ernst,
Sadoul151, comenta a acusação feita pela sra. Chaplin de então, contra o marido:
“Elle croyait dénoncer son mari, la stupide, la vache”, mas, para os surrealistas,
quem estava sendo julgado era um gênio, capaz de viver intensamente segundo
suas ideias, sem trair sua poesia, possuindo uma moralidade muito singular, que
aparecia em seus filmes “auxquels nous avons pris plus d’un plaisir, un intérêt pres-
que sans égal.” O que os surrealistas tentam neste momento é defender alguém
que, segundo eles julgavam, praticava a arte no dia a dia, não podendo portanto
ser ignorado o seu gênio e sua força, que era a força da sua obra152.
Os surrealistas sabiam que um processo contra Chaplin era um processo contra
um dos artistas mais conhecidos do mundo naquele momento. O que não podemos
esquecer é que a linha de defesa utilizada pelo grupo, naquele caso, não se desviava
em nada da proposta da revista e das ideias defendidas por eles. A defesa do amor
150
Gianni Rondolino, “Cinema e surrealismo”, in Studi sul surrealismo, Roma, Officina Edizioni, 1977,
pp. 375-403.
151
Assinam o editorial de La révolution surréaliste de 1º de outubro de 1927: Maxime Alexandre,
Louis Aragon, Arp, Jacques Baron, Jacques-André Boiffard, André Breton, Jean Carrive, Robert Des-
nos, Marcel Duhamel, Paul Eluard, Max Ernst, Jean Genbach, Camille Goemans, Paul Hooreman,
Eugène Jolas, Michel Leiris, Georges Limbour, Georges Malkine, André Masson, Max Morise, Pierre
Naville, Marcel Noll, Paul Nougé, Elliot Paul, Benjamin Péret, Jacques Prévert, Raymond Queneau,
Man Ray, Georges Sadoul, Yves Tanguy, Roland Tual e Pierre Unik. Pela lista de nomes podemos
perceber que, já em 1927, três anos após o I Manifesto, o surrealismo contava com a participação
de artistas de várias áreas, ampliando bastante o seu quadro inicial, Aragon, Breton e Soupault. A
história do movimento é também a história daqueles que por ali passaram e que foram em deter-
minado momento considerados traidores ou não pelas ideias e ideais implacáveis de Breton.
152
Em um dos momentos de Hands off love, os surrealistas lembram trechos de um filme de Chaplin,
Charlot et le comte (The Count), onde, para eles, Chaplin proclama estar “Aux ordres de l’amour, il
a toujours été aux ordres de l’amour, et voilà ce que très unanimement proclament et sa vie et
tous ses films.” (Op. cit., pp. 1-6).
MIRIAN TAVARES

e da sua livre manifestação estava presente na revista desde o princípio. O amor e


a morte153, o amor acima de tudo. Se o segundo número da revista questiona o sui-
cídio, o último questiona o amor: Quelle sorte d’espoir mettez-vous dans l’amour?
Anos mais tarde, nas Entrevistas, Breton continua acreditando que este inquérito
revela o que, teoricamente e liricamente, era defendido pelos surrealistas.
58 Se os surrealistas defendiam o amor, não podiam calar diante de um processo
que, para eles, era sobre o amor. Passando por vários textos do grupo e pelas pes-
quisas sobre sexualidade e a enquete sobre o amor, Gaëtan Picon acredita que o
amor é “l’un des élans majeurs éprouvés en commun.”154 Por isso a defesa de Chaplin,
sem contudo nos esquecermos de que era a defesa de um gênio, alguém cujos filmes
resvalavam para a vida extra-tela. O processo Chaplin ajuda-nos a compreender que
as relações entre o surrealismo e o cinema estão ailleurs sem deixarem jamais de
estar também no próprio cinema e nas possibilidades criadoras que este possuía.
Philippe Soupault, em uma entrevista a Jean-Marie Mabire, publicada nos ci-
tados números de Etudes cinématographiques, diz: “Le cinéma a été pour nous
une immense découverte, au moment où nous élaborions le surréalisme. [...] nous
considérions alors le film comme un merveilleux mode d’expression du rêve.”155
O cinema possui uma característica que vai concretizar o sonho de Breton: a pos-
sibilidade de fragmentar o tempo. De mostrar simultaneamente passado, presente
e futuro. “(o tempo) é mutilado, saqueado, aniquilado. O presente e o futuro não
mais se contradizem. Vivemos hoje e amanhã, tão facilmente quanto hoje; vive-
mos até, simultaneamente, ontem e amanhã”.156 O tempo157 do cinema serve per-
feitamente para aqueles que queriam fazer vir à tona a estrutura dos sonhos.
153
“Je n’imagine pas d’amour sans que le gôut de la mort, dépourvue d’ailleurs de toute sentimentalité
et de toute tristesse, y soit mêlé. [...] Le caractère fugitif de l’amour est aussi le sien.” (Robert
Desnos, “La mort : la muraille de chêne”, La révolution surréaliste, nº 2, 15 de janeiro de 1925, p.
22). Neste mesmo número da revista foi publicada uma enquete: Le suicide est-il une solution?, a
cuja pergunta pessoas do grupo e fora dele respondiam. Enquanto que os surrealistas viam-na
como uma questão moral, para alguns não passava de mais um absurdo de um grupo de inconse-
quentes necessitando uma confissão. “Non seulement je vous autorise à publier cette lettre in-ex-
tenso, mais encore à l’envoyer à madame votre mère.” (Op. cit., p. 8). Na realidade, o suicídio era
uma questão que invocava o livre arbítrio e devolvia às pessoas a liberdade total de pôr e dispor,
não só da própria vida, como de tudo que se relacionasse com ela, como o amor.
154
Gaëtan Picon, op. cit., p. 82.
155
Pp. 29-33, n. 38-39.
156
André Breton apud Henri Agel, op. cit., p. 27.
157
A questão do tempo no cinema foi uma das que mais despertaram o interesse de Jean Epstein.
Para ele o conceito de photogénie, desenvolvido por Louis Delluc, precisava ser aprofundado, pois
“L’aspect photogénique d’un object est une résultante de ses variations dans l’espace-temps.”
(Jean Epstein apud Joël Magny, op. cit., p. 15). Por isso os processos que se relacionam com a
duração e o tempo serão estudados largamente por Epstein: “ralenti, accéleré, inversion de la
chronologie, etc. C’est-à-dire à tout ce qui permet d’explorer dans la réalité des aspects invisibles
à l’œil nu, et que le cinéma est seul à permettre de découvrir.” (Ibidem). Como já foi dito anterior-
mente, em seu texto “O cinema e as letras modernas”, Epstein analisa a relação entre ambos a
partir da premissa do tempo e da velocidade com que o cinema e as letras modernas trabalham as
imagens por eles criadas. A questão do tempo no cinema é também fundamental para os surrealistas,
principalmente pela possibilidade que o cinema oferece de manipulá-lo.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

“Les surréalistes s’enthousiasment pour le cinéma qui fait apparaître «les om-
bres des grandes réalités»”.158 O caráter onírico do filme, a imagem que surge das
e nas sombras, vai permitir o desenvolvimento de um cinema dito surrealista. Nas
telas, tenta-se recriar a poesia feita de palavras e de objetos pertencentes ao
mundo da pintura. Mas se os surrealistas defendiam uma criação espontânea atra-
vés das várias técnicas propostas por eles (como a escrita automática), como falar 59
de um cinema surrealista, já que não é possível este grau de espontaneidade na
realização de um filme?159 Se Man Ray, segundo M. Beaujour, consegue aproximar-
se ao máximo do automatismo, Buñuel aproxima-se mais aos pintores surrealistas,
como Magritte que “pèche par son abandon théorique de l’automatisme.”160
Talvez tanto Buñuel como Magritte tenham pecado contra um dos princípios
do surrealismo. Resta-nos perguntar então se, de fato, houve uma escrita auto-
mática pura em toda a arte surrealista. O próprio Breton reconhece a dificuldade
de se atingir os estados segundos tão desejados pelos surrealistas. A escrita (ou a
arte de um modo geral) verdadeiramente automática era uma utopia. Com o olhar
da distância temporal, Breton faz reflexões muito lúcidas que comprovam a im-
possibilidade de deixar-se dominar totalmente pelo automatismo no ato de cria-
ção. Reconhece ainda que mesmo os que utilizaram a escrita automática para
produzir um poema, mais tarde selecionaram os trechos que eles consideravam
mais conseguidos literariamente.
Michel Beaujour acredita que tanto o cinema como as artes que se reclamam
surrealistas estão condenadas “à des compromis bâtards par la rigidité d’une doc-
trine elaborée dans l’intention d’amener une révolution, non pas esthétique, mais
morale et sociale”161; esta condenação não é mais que todo o comprometimento
ético que guiou o surrealismo em todas as suas ações. Não nos esqueçamos das
palavras de Gianni Rondolino quando diz que as relações entre o surrealismo e o
cinema eram antes éticas do que puramente estéticas. Da mesma forma que anos
mais tarde Buñuel vai dizer que a necessidade de comer não justifica a prostituição
da arte162, também na defesa a Chaplin feita pelos surrealistas deparámo-nos es-
sencialmente com questões éticas.
158
E. Lièvre-Crosson, op. cit., p. 55.
159
Michel Beaujour em um ensaio intitulado “Surréalisme ou cinéma ?” (Etudes cinématographiques,
38-39, pp. 57-63), afirma: “Le cinéma, par essence, n’est pas un art de spontanéité et d’improvisation.
[...] l’homme à caméra est condamné à ne pouvoir se passer du monde sensible, médiatisé par
une machine et par une organisation sociale assez complexe.”. O que ele vai discutir é também até
que ponto havia automatismo em certas obras da pintura surrealista. Breton vai reconhecer uma
espécie de para-surréalisme em obras mais elaboradas de Miró ou Dalí, distantes das frottages de
Max Ernst pela não aceitação de uma criação puramente irracional.
160
Op. cit., p. 61.
161
Michel Beaujour, op. cit., p. 61.
162
Glauber Rocha em um artigo publicado na revista Trafic (este texto fora escrito inicialmente em
1962 e o que a revista publica é fruto de várias reescrituras de Glauber), “Les douze commandements
de Notre Seigneur Buñuel” cita uma entrevista que Buñuel concede a um jornalista, na qual ele
afirma: “Oui j’ai fait des films commerciaux, mais j’ai toujours suivi mon principe surrealiste: la né-
cessité de manger n’excuse jamais la prostitution de l’art.” (Trafic, inv. 93, nº 5, p. 97).
MIRIAN TAVARES

Se falar sobre surrealismo e cinema é, de alguma maneira, falar sobre o que


está ailleurs, leva-nos a pensar que não houve um cinema surrealista. Em seu livro
Surrealism and cinema, Michael Gould começa pedindo desculpas pelo título da
obra, que pode ser enganoso. Ele não vai se dedicar ali a falar somente sobre aque-
les que são considerados surrealistas, ligados ao movimento em algum momento
60 de suas vidas, mas vai falar sobre uma sensibilidade surrealista pois, segundo ele:
“If surrealism is anything, it is not what one would expect it to be; it is something
else”163 (o itálico é meu). Para Gould, limitar a experiência surrealista ao movi-
mento surrealista e, mais ainda, tentar classificar o cinema a partir de categorias
utilizadas para outras artes, é correr sempre o risco de cair em simplificações.
“Jean Cocteau once remarked that all films are surreal”164. Para Gould, de
certa forma, ele tinha razão. Porque a experiência surrealista pode ocorrer no pró-
prio processo de recepção do filme, da mesma forma que Buñuel convida “every
spectator of his films [...] to use the pictures as most useful to him”165, é então o
público que precisa possuir uma sensibilidade surrealista e consumir os filmes
como tal. O cinema possui características que o permitem participar do surrea-
lismo, direta ou indiretamente, seja através da construção do filme ou do simples
ato de vê-lo. Mas Gould reconhece que esta sensibilidade, apesar de potencial-
mente presente em todos, aparece nos verdadeiros surrealistas, capazes de, como
Dalí, ver cada coisa como a possible surreal goldmine. O que no fundo vai ser im-
portante para Gould é determinar que a relação surrealismo/cinema está além
do movimento e pode ser encontrada em cineastas tão diversos como Sternberg,
Samuel Fuller e Hitchcock.166
Gould traça uma linha entre o movimento per se e uma sensibilidade que
pode ser considerada quite another matter167. Mesmo não concordando com al-
gumas posições de Gould em relação ao movimento, não posso deixar de coadu-
nar-me com ele quando reconhece a importância das experiências realizadas pelos
163
Michael Gould, Surrealism and Cinema, London, The Tanitivy Press, 1976, p. 11.
164
Op. cit., p. 12.
165
Ibidem. Não podemos deixar de observar que o papel do espectador, que será sempre ressaltado
pelos surrealistas, constitui-se como parte importante do próprio cinema. Segundo Gérard Betton:
“Essa transmutação do real em imagens que refletem a sensibilidade, a personalidade ou as inten-
ções deliberadas do autor, pode ser encontrada, em diversos níveis, em todos os filmes, sendo
também essa reorganização do real, em grande medida, fruto da imaginação criadora do especta-
dor.” (o itálico é meu). (Estética do Cinema, São Paulo, Martins Fontes, 1987, p. 13).
166
Gould, op.cit., p. 12, teme a simplificação excessiva de definições como, por exemplo, a de cinema
expressionista ou impressionista, que para ele limitam o cinema a um grupo de características, in-
clusive epocais. Ver o surrealismo no cinema “as mesmerising montages of shock images (eyeballs
and decapted statues) with a feeling of anarchic defiance and irrational logic (as related to the Sur-
realist art movement of the Twenties) - and goes no further.” Para não cair nas simplificações é
melhor ampliar o conceito de surrealismo, retirando-o do movimento em si: “Surrealism is a mind
game, one that has influenced the entire history of Twentieth-century art and thought. The people
of this century are the people of introspection.” (Ibidem).
167
Op. cit., p. 21.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

surrealistas no cinema. Experiências estas que perduram até nossos dias presentes
nas obras de cineastas tão diversos como os anteriormente citados.
A definição de uma sensibilidade surrealista é fundamental para percebermos
que o surrealismo está além do movimento e que influenciou o cinema de diversas
formas. O reconhecimento desta influência ultrapassa as barreiras das vanguardas
quando Vincente Minnelli, um clássico diretor hollywoodiano, diz que: “As possi- 61
bilidades de emprego do surrealismo no cinema são amplas e excitantes.”168, assim
sendo, falar de surrealismo e cinema é sempre falar de algo que ultrapassa as teo-
rias cinematográficas tornando-se necessário entender a concepção que os sur-
realistas possuíam do cinema para definirmos o que pode ser considerado,
efetivamente, cinema surrealista.
Como regra geral diz-se que “Poucos filmes são, na essência, puramente sur-
realistas”169. Aqueles que são assim considerados, La coquille et le clergyman, de
Germaine Dulac; L’étoile de mer, de Man Ray e Robert Desnos e os dois primeiros
de Buñuel e Dalí, Un chien andalou e L’âge d’or170, são normalmente acompanha-
dos do primeiro filme de Cocteau, de alguns filmes de Jean Vigo indo até Animal
Crackers dos irmãos Marx, além de alguns desenhos animados. Mas, se retomar-
mos Cocteau, quando afirma que todos os filmes são surrealistas, fica difícil en-
contrarmos o cinema surrealista que, conforme acreditamos, está além dos filmes
acima citados, mas também não abrange todos os filmes.
Já em 1979, na “XV Confrontation Cinématographique de Perpinyà”, que foi
dedicada ao cinema surrealista, encontrou-se uma grande dificuldade em carac-
terizar este dito cinema171. Só aqueles filmes que estavam ligados diretamente ao
movimento é que possuíam esta classificação, apesar de apontar-se para a influên-
cia muito mais vasta do surrealismo pelo cinema de um modo geral. O que iremos
tentar aqui é ultrapassar um pouco esta definição de cinema surrealista puro e
perceber que muitos filmes, além do movimento, permaneceram surrealistas. Ao
invés de partirmos das teorias de cinema, faremos o caminho inverso, iremos ao
encontro do que o surrealismo pensou sobre o cinema e qual a sua concepção
deste meio maravilhoso capaz de reproduzir a estrutura dos sonhos.
Em 1924, Max Morise publica uma crônica, Les beaux- arts, no nº 1 de La ré-
volution surréaliste. Dentre outras coisas ele defende que “la sucession des ima-
ges, la fuite des idées sont une condition fondamentale de toute manifestation
surréaliste.”172 Para Morise existe uma plástica surrealista presente na literatura,
pintura ou fotografia realizadas pelo grupo. Ora, a possibilidade que o cinema ofe-
recia de sucessão de imagens e, principalmente, de promover uma simultaneidade
168
Apud G. Betton, op. cit., p. 15.
169
Ibidem.
170
Esta lista nos é fornecida por G. Betton. No livro Textos y manifiestos del cine, o filme de Man Ray
e Desnos não consta do rol do considerado cinema surrealista puro.
171
Cf. Joaquim Romanguera i Ramio e Homero Alsina Thevenet, op. cit., p. 112.
172
Pp. 16-17.
MIRIAN TAVARES

maior que em outras artes, como a pintura e a escultura, “ouvre une voie vers la
solution de ce problème.” Além disso, o cinema, arte que acontece no tempo, está
muito próximo do desejo surrealista de concretizar uma imagem que começa num
instante e vai, e volta, traçando uma curva comparável “à la courbe de la pensée”.
Portanto, se para os surrealistas, como já foi dito, a possibilidade de recuperar
62 o curso do pensamento, ou seja, a correnteza do inconsciente e deixá-la aflorar
na sua própria extensão temporal, é componente essencial do seu fazer artístico,
o cinema surge como algo que possibilita tecnicamente a realização desta arte173.
Outra componente importante da arte surrealista é a tentativa de recuperar não
só o curso dos pensamentos como o do próprio sonho.
O espírito que está presente na criação de La révolution surréaliste em 1924
é o espírito de empreender uma luta contra o domínio cartesiano da razão. Con-
forme Breton, os colaboradores da revista estavam de acordo quanto aos seguin-
tes pontos: “o mundo circundante, que se diz cartesiano, é insustentável,
mistificador, sem graça, e são justificadas quaisquer formas de insurreição contra
ele.”174 Era preciso alterar o estado das coisas e buscar uma via que não mais di-
vidisse o homem em dois: razão e instintos. Partindo dos ensinamentos de Freud,
o que os surrealistas buscavam, principalmente no campo dos sonhos, era mostrar
a capacidade destes de revelar mais sobre o homem que a razão pura dos estados
de vigília: “Para Freud, este mundo é o símbolo de desejos inconscientes, de ten-
dências inconfessadas; e, ao decifrá-lo, o homem chegaria a uma consciência in-
tegral de si próprio.”175
Tendo então o cinema a capacidade de reproduzir a estrutura dos sonhos,
permitindo uma circularidade promovida pelas condensações e deslocamentos
presentes nos mesmos, a atenção que os surrealistas vão dedicar a esta arte será
ainda maior do que o que o movimento irá efetivamente realizar neste campo. O
que não significa que o modo de pensar e de fazer cinema surrealista não tenha
influenciado um conjunto significativo de cineastas ao longo do tempo. Além da
possibilidade de trabalhar temporalmente as imagens e de promover uma narra-
tiva que pode prescindir da linearidade, o humor, presente sobretudo nos primei-
173
Cf. Y. Duplessis: “É, pois, o cinema que irá oferecer o máximo de possibilidades aos surrealistas.
Primeiro, porque se desenrola no tempo, reproduzindo assim o decurso do pensamento; depois,
porque é constituído por fotografias objectivas que, graças à colagem, permitem que o maravilhoso
se integre no real, restituindo-lhe a sua profundidade.” (Op. cit., p. 73).
174
A. Breton, Entrevistas, pp. 109-110. Breton continua citando Ferdinand Alquié, que, “num texto dos
mais circunspectos intitulado “Humanismo surrealista e existencialista”, publicado em 1948 nos Ca-
hiers du Collège Philosophique, coloca o problema com a maior das clarezas: “Declarar que a razão
é a essência do homem significa já cortá-lo em dois, coisa que a tradição clássica nunca deixou de
fazer, ao separar no homem o que é a razão, e por isso mesmo verdadeiramente humano, daquilo
que não o é, ou seja, instintos e sentimentos, assim considerados humanamente indignos.”
175
Cf. Y. Duplessis, op. cit, p. 37. Duplessis ainda afirma que: “O Surrealismo teve, pois, a originalidade
de reabilitar o sonho, de lhe atribuir tanta ou mais importância que à vigília, sob o ponto de vista
psicológico e mesmo metafísico.” (p. 38).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

ros filmes de Mack Sennet, Chaplin e dos Irmãos Marx176, constitui-se num ponto
de atração que o cinema irá exercer sobre o movimento.
No capítulo anterior vimos que o humor é uma das componentes da criação
surrealista, principalmente o humor negro presente nas obras de Cravan, Vaché e
Jarry. Breton, em sua Anthologie de l’humour noir, recorre a Freud para mostar a
importância do humour, que não só é profundamente libertador como também 63
possui quelque chose de sublime et d’élevé. Se para Freud o humour ajuda a su-
perar o sofrimento das realidades exteriores, para Breton, o humor negro nasceu,
dentre outras coisas, para ser l’ennemi mortel de la sentimentalité.177
Freud, no ensaio El chiste y su relación con el inconsciente, faz uma lista das
diversas técnicas do chiste.178 Ali encontramos técnicas também utilizadas pelos
surrealistas na elaboração de seus textos como a condensação feita através da
formação de palavras/imagens mistas e o uso do duplo sentido, pois ao criar uti-
176
“Le cinéma, dans la mesure où non seulement comme la poésie il représente les situations succes-
sives de la vie, mais encore il prétend rendre compte de leur enchaînement, dans la mesure où,
pour émouvoir, il est condamné à pencher vers les solutions extrêmes, devait rencontrer l’humour
presque d’emblée.” (A. Breton, Anthologie de l’humour noir, p. 14). Em seu livro Babaouo, roteiro
para um futuro filme surrealista (que não se realizou), Salvador Dalí tece comentários numa espécie
de introdução do livro, que funciona também como um compêndio, muito particular, da história
do cinema. Para Dalí, poucos são os filmes que valem a pena ser vistos e que, de fato, possuem
algo de lírico, sem ser sentimentalóide ou cheio do que ele chama de lixo psicológico. Dalí não
gosta de Chaplin, mas aplaude Mack Sennet e os Irmãos Marx com seu antológico Animal Crackers,
filme de 1930, ano de lançamento de L’âge d’or. (S. Dalí, Babaouo, Barcelona, Ed. Labor, 1978, pp.
20-41). Em um dicionário muito particular, Fernando Trueba comenta a atração que os surrealistas
sentiam por filmes como, por exemplo, os dos irmãos Marx. Para Trueba, o que os surrealistas
exaltavam nos filmes cômicos americanos era o que eles viam como anarquia destruidora, em seu
estado mais puro e infantil. Trueba acredita que “las películas más surrealistas son aquellas que lo
son involuntariamente, inconscientemente.” (Fernando Trueba, Diccionario de cine, 3ª ed., Barcelona,
Planeta, 1998, pp. 270-272).
177
A. Breton, Anthologie de l’humour noir, pp. 9-16. Segundo Y. Duplessis: “O humor não é só a marca
de um espírito que se não deixa submergir pelos acontecimentos, tem também o seu lado grandioso,
pois exprime a vontade do eu se libertar da realidade, ao ponto de se tornar insensível às suas in-
vestidas.” (Op. cit., p. 28).
178
“Hemos llegado a conocer ya tantas y tan diversas técnicas del chiste, que convendrá formar una
relación de ellas para evitar olvidos o confusiones. Tratemos entonces de resumirlas:
I. Condensación:
a) con formacion de palabras mixtas;
b) con modificaciones.
II. Empleo múltiple de un mismo material:
c) total o fragmentariamente;
d) con variación del orden;
e) con ligeras modificaciones;
f) con las mismas palabras, con o sin sentido.
III. Doble sentido:
g) significando tanto un nombre como una cosa;
h) significación metafórica y literal;
i) doble sentido propiamente dicho (juego de palabras);
j) equívoco (double entendre);
k) doble sentido con alusión. (S. Freud, “El chiste y su relación con el inconsciente” in Obras
completas, tomo 3, Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1997, p. 1049).
MIRIAN TAVARES

lizando o humor, os surrealistas encontraram uma forma de subverter a linguagem


convencional, conseguida através de uma associação aparentemente desconexa
de objetos e/ou situações, que a princípio não se relacionam. Por isso um filme
como Animal Crackers atraiu o interesse do grupo, até mesmo o de Salvador Dalí,
que diz: “En este film admirable, culminan los deseos de irracionalidad sistemática
64 y concreta latente a lo largo de los films cómicos, deseos que se despojan progre-
sivamente de toda justificación, pretexto, humor subjetivo”.179
Falando sobre a importância do humor no universo de criação do surrealismo,
Octavio Paz afirma que: “Ningún arma más poderosa que la del humor: al absurdo
del mundo la conciencia responde con otro y el humor establece así una suerte de
‘empate’ entre objecto y sujeto”. Para ele o humor era mais que um método, um
exercício estético cujo propósito era subversivo: “abolir esta realidad que una civi-
lización vacilante nos ha impuesto como la sola y única verdadera”.180 O humor que
atrai os surrealistas é o humor calcado no absurdo e prenhe de uma violência ta-
manha que é capaz de desestabilizar a ordem racional dada à vida. Animal Crackers,
primeiro filme dos Irmãos Marx, traz a marca desta violência surgida do absurdo
de situações que não se tenta explicar. De uma outra maneira, Isidore Ducasse con-
segue atingir os espíritos com a violência presente no absurdo, uma violência irô-
nica que ultrapassa quaisquer tentativas de enquadrá-la dentro do senso comum.
Em seus Cantos de Maldoror, ele invoca precisamente este absurdo violento e cria-
dor, capaz de revolver as entranhas e revelar o outro lado do ser humano, o lado
escuro e nebuloso que, de um modo geral, somos convidados a esconder.181
Encontramos nos Cantos passagens carregadas de um humor muito especial,
como nesta do canto segundo: “Menina, não és um anjo e tornar-te-ás igual às
outras mulheres. [...] Poderia, levantando teu corpo virgem com braço de ferro,
pegar-te pelas pernas, fazer-te girar ao meu redor como uma funda, concentrando
minhas forças ao descrever a última circunferência, e jogar-te contra o muro. [...]
Fica tranquila, ordenarei a uma meia dúzia de criados que guardem os restos ve-
neráveis do corpo, protegendo-o da fúria dos cães vorazes.”182 A tessitura do texto
de Isidore Ducasse, o conde de Lautréamont, é composta de fragmentos calcados
179
S. Dalí, op. cit., p. 39.
180
Octavio Paz, “Estrella de tres puntas: El surrealismo” in Estrella de tres puntas. André Breton y el
surrealismo, México, Vuelta, 1996, p. 19.
181
Dalí também utiliza recursos tirados do absurdo para chocar o bom gosto convencional, não só em
suas pinturas, mas principalmente em seus textos, longos exercícios de provocação. Em Diario de
un genio, transcreve fragmentos de um texto do século XIX denominado: El arte de tirarse pedos o
Manual del artillero socarrón. O livro que teria então uma função didática, começa assim: “Es ver-
gonzoso, querido lector, que, con el tiempo que lleva usted tirándose pedos, no sepa todavía cómo
los tira ni cómo debe tirarlos.” Na conclusão encontramos uma lista complementar de tipos de
pedos que não apareceram anteriormente na obra. Encontramos aqui los pedos de provincia:
“gente con experiencia nos asegura que estos pedos no están tan contaminados como los de la ca-
pital, donde todo es más sofisticado. No se sirven con tanto aparato; pero son naturales y tienen
un regusto salado parecido al de las ostras verdes. Despiertan agradablemente el apetito.” (Diario
de un genio, Barcelona, Fábula, 1996, pp. 243-253).
182
Lautréamont, Cantos de Maldoror, São Paulo, Max Limonad, 1986, p. 85.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

no absurdo e nas delícias da crueldade. O autor adverte no início: só aqueles que


se mantiverem desconfiados e agarrados a uma lógica rigorosa não serão conta-
minados pelas emanações mortais do livro.
Os surrealistas não desconfiaram de Lautréamont, pelo contrário, embarca-
ram com ele nas profundezas do absurdo e do horror. Compreenderam o quão
subversiva, (por isso rechaçada), era a obra de um autor vinculado ao romantismo, 65
mas, como Rimbaud, adiante do seu próprio tempo. A assunção do mal, neste
caso, é uma forma de contestação contra uma ordem vigente. É a procura do caos
como resposta e uma tentativa de integração neste caos, ou numa ordem primeira
que suplanta a lógica humana. No “Canto Sexto” aparece a fórmula do belo como,
uma beleza extraída do encontro entre elementos que dificilmente estariam lado
a lado: “é belo como [...] o encontro fortuito de uma máquina de costura e de um
guarda chuva sobre uma mesa de dissecção!”183
O belo é um paradoxo. Surge não só da reunião de elementos díspares, mas
da força dos momentos que antecedem uma captura: “É belo como a retratibili-
dade das garras nas aves de rapina; [...] ou melhor, como essa ratoeira perpétua,
que sempre é armada pelo animal capturado e que consegue pegar sozinho, in-
definidamente, os roedores [...]”184. Maldoror, personagem dos Cantos, é o mal
assumpto que se infiltra por todos os buracos para contaminar o bom gosto bur-
guês. Prefere os escombros e coroa um louco como rei das inteligências. Não é
preciso irmos mais longe para perceber a influência que Lautréamont irá exercer
sobre os surrealistas, influência que transcende as ideias do autor e que está pre-
sente na subversão que este faz da escrita, sublinhada por um humor, surgido da
junção de uma máquina de costura e um guarda-chuva em cima de uma mesa de
dissecção, que devasta a lógica.
Para compreender melhor o que atraía os surrealistas, não só ao cinema,
como aos autores de sua predileção (pois o surrealismo tem que ser entendido
como um todo: o que eles esperavam do cinema era o que estava presente em
sua poesia e pintura), recorremos aos comentários de Antonin Artaud sobre o
filme dos irmãos Marx. Além de considerar o filme um legítimo participante do
surrealismo, Artaud defende a forma de humor dos Irmãos Marx, e ressalta que
para entendermos seus filmes, sem ficarmos apenas às margens de uma comici-
dade fácil, era preciso “añadir al humor la noción de algo inquietante y trágico, de
una fatalidad (ni feliz ni desgraciada, sino de penosa formulación) que se deslizaría
por detrás de él como la revelación de una enfermedad atroz sobre el perfil de
una absoluta belleza.”185
Se Langlois considera a obra de Méliès anti-surrealista é porque os surrealis-
tas procuravam a poesia que o cinema tinha a capacidade de criar. Mostrar o ima-
ginário ou o fantástico através de truques que, sem dúvida, participaram da
183
Op. cit., p. 249.
184
Ibidem.
185
Antonin Artaud, El cine, 4ª ed., Madrid, Alianza Editorial, 1995, p. 37.
MIRIAN TAVARES

criação do e no cinema, não era exatamente a ideia de um cinema surrealista.


Antes do truque, o que eles buscavam era a desestabilização da narrativa e a ins-
tauração de uma anarquia visual e narrativa que o cinema teria meios de executar.
Não podemos nos esquecer ainda da importância do olhar surrealista sobre o ci-
nema, pois para alguns, Animal Crackers era um exemplo bem acabado do cinema
66 burlesco e nada tinha de surrealista.
Claude-Jean Philippe, em um ensaio sobre a comédia burlesca e o surrea-
lismo, afirma que, apesar da distância, não só oceânica, mas de ideias que havia
entre os surrealistas e os filmes americanos dos irmãos Marx, por exemplo, en-
contra uma inesperada convergência dos temas surrealistas e burlescos: “D’un
côté comme de l’autre, on retrouve la même contestation des valeurs réputées
sacrées.”186 Podemos dizer que o cinema burlesco encontrara o tom do humor
que os surrealistas utilizavam, um humor que está sempre a um passo do deses-
pero, pois como defendia Antonin Artaud, para compreender os irmãos Marx era
preciso somar o humor com a tragédia.

II.1.5. Surrealismo e cinema – From enchantement to rage


Escreveu, um dia, Péret:

Nunca ningún medio de expresión ha generado tanta esperanza


como el cine. Para él no solamente todo es posible, sino que incluso
tiene a mano lo maravilloso. Y, sin embargo, nunca se ha visto tanta
desproporción entre la inmensidad de las posibilidades y lo irrisorio
de los resultados.187 (o itálico é meu).

Para Benjamin Péret, como para outros surrealistas, o próprio Breton, inclu-
sive, as possibilidades aventadas pelo cinema não foram muito longe. O cinema
distanciou-se cada vez mais daquilo que eles desejavam ver nas telas. Da poesia
de alguns filmes ficou apenas a sombra de um desejo não realizado plenamente.188
Vincente Minnelli (em um depoimento à revista Etudes cinématographiques)
reconhece que o surrealismo, ao pregar a liberdade absoluta na criação e ao re-
correr a uma “libre assemblage de ces objects”, corre o risco de cair em mãos de
talentos superficiais capazes de acreditar que um caos amorfo pode ser conside-
rado uma obra de arte surrealista. Ao contrário, Minnelli afirma que a liberdade
da forma pregada pelos surrealistas impõe “une discipline plus sévère, à la usage,
186
Claude-Jean Philippe, “La comédie burlesque et le surréalisme”, Etudes cinématographiques, 40-
42, 1965, pp. 247-251.
187
Benjamin Péret apud Ángel Pariente, Diccionario temático del surrealismo, Madrid, Alianza Editorial,
1996, pp. 88-89.
188
Para Salvador Dalí, “Contrariamente a la opinión común, el cine es infinitamente más pobre y más
limitado, para la expresión del funcionamiento real del pensamiento, que la escritura, la pintura, la
escultura y la arquitectura.” (Babauou, Barcelona, Ed. Labor, 1978, p. 21).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

que les formes plus conventionelles d’expression”189. Por isso ele considera o filme
de Cocteau, Le sang d’un poète, a despeito da confusão de símbolos e imagens, le
chef d’ Œuvre de l’utilisation du surréalisme au cinéma. O que Minnelli defende
do filme de Cocteau é a profunda disciplina presente no ato de construção do
filme em que nada escapa ao realizador: se vemos na tela um encadeamento de
imagens que parece surgir do acaso, é pura ilusão, pois tudo foi devidamente tra- 67
balhado e possui uma cadeia de sentidos muito própria.190
O testemunho de Minnelli é muito lúcido, mas traz-nos de volta o problema
da possibilidade de existência de um filme surrealista ao considerar que a obra de
Cocteau é exemplo máximo da boa utilização do surrealismo no cinema, ao
mesmo tempo que reconhece que a construção do filme é extremamente traba-
lhada e que a sequência de imagens que aparentemente não se relacionam não
são frutos do acaso ou da escrita automática, mas de uma logique inéluctable trés
personelle. Podemos, assim, pensar que os princípios básicos do surrealismo não
estão presentes neste filme e que, consequentemente, Le sang d’un poète não
pode ser considerado um legítimo filme surrealista.
Voltamos novamente a um paradoxo da criação surrealista, que, diga-se de
passagem, não é pertença exclusiva do cinema: um dos princípios básicos do sur-
realismo era atingir os chamados estados segundos no ato da criação, ou seja,
criar a partir do livre ditar do inconsciente, deixando vir à tona tudo aquilo que
tentamos domesticar ou compreender. A base do surrealismo são as imagens,
mesmo quando tratamos da literatura, porque, como Freud, os surrealistas acre-
ditam que a narração imagética é muito mais capaz de atingir o espaço do incons-
ciente e dos sonhos. Ao mesmo tempo, o próprio Breton reconheceu mais tarde
a dificuldade, senão a quase impossibilidade, de ser-se fiel a este princípio na con-
secução final de uma obra. Por outro lado, os filmes que os surrealistas consideram
mais próximos de si são justamente aqueles que se aproximam mais de uma es-
crita automática, como, por exemplo, os primeiros de Buñuel.
Ao analisar a linguagem poética do surrealismo, Robert Bréchon diz que a
mesma não obedece a uma lógica discursiva no encadeamento das ideias, apre-
sentando-se como “une construction où on n’emploierait ni joints ni ciment”.191
Muitas vezes há uma discordância entre o sentido e a sintaxe causando uma rup-
tura acentuada no discurso, mais ainda pelo uso muito particular da pontuação,
chegando, em alguns casos, a suprimi-la pura e simplesmente. Para Bréchon a re-
jeição da pontuação, processo, segundo ele, criado por Apollinaire e Cendrars e
generalizado pelo surrealismo, tem a função de “rétablir la continuité de la parole
poétique”192. O texto surrealista compõe-se então do movimento contínuo da pa-
lavra (ausência de pontuação) e da descontinuidade das imagens.
189
Vincente Minnelli in “Témoignages”, Etudes cinématographiques, pp. 170-171.
190
Ibidem.
191
Robert Bréchon, op. cit., pp. 176-177.
192
Ibidem.
MIRIAN TAVARES

Em 1925, Jean Goudal, que segundo Ramona Fotiade foi um dos primeiros a
comentar a relação entre o surrealismo e o cinema, afirma que a imagem cine-
matográfica representava “a conscious hallucination, and utilizes this fusion of
dream and consciousness which Surrealism would like to see realized in the literary
domain”193. A fusão do sonho com estados de consciência, uma das bandeiras sur-
68 realistas, não deve ser ignorada, porque dá-nos a exata medida do que eles con-
sideravam como sendo tradução fiel de seus princípios. E o filme de Jean Cocteau
estava longe de enquadrar-se no modelo de cinema imaginado pelos surrealistas.
O que os surrealistas propunham era desmontar a construção da lógica nar-
rativa (tanto a nível sintático como semântico), o que explica largamente a sua
atração por autores como Mallarmé, Rimbaud e, claro, Isidore Ducasse. Explica
também a atração por um meio, como o cinema, capaz de, através da montagem
e de suas outras possibilidades técnicas, romper com regras de escrita e construir
uma narratividade completamente imagética. Mas este rompimento não prescin-
dia de uma ligação com o real pois eles buscavam o maravilhoso e, conforme Bré-
chon, o maravilhoso para os surrealistas nascia de uma presença advinhada e
desejada, ao contrário do mistério, que era sempre uma ausência194.
O cinema de Cocteau ilustra, junto ao de Marcel L’Herbier, uma tendência
contra a qual os surrealistas se insurgiram. Da mesma forma que eles rejeitaram
o cinema abstrato195, opuseram-se também ao cinema estético dos realizadores
acima citados196. Em uma crônica publicada no nº 7 da revista Documents, Robert
Desnos condena vivamente cineastas que os surrealistas não aprovavam:

L’utilisation de procédés techniques que l’action ne rend pas néces-


saire, un jeu conventionnel, la prétention à exprimer les mouvements
arbitraires et compliqués de l’âme sont les principales caractéristi-
ques de ce cinéma que je nommerais volontiers cinéma des cheveux
sur la soupe.197

193
Jean Goudal apud Ramona Fotiade, op. cit., p. 396.
194
Op. cit., p. 90.
195
Em 1927, Antonin Artaud, a propósito do roteiro que escrevera a partir de um sonho e que logo
seria realizado por Germaine Dulac, Le coquille et le clergyman, tece algumas considerações sobre
o cinema e o que deveria ser o cinema, atacando a ideia de um cinema puro (abstrato) por este
distanciar-se dos meios de representação mais objetivos. Assim, para Artaud, o cinema puro era
um erro: “Es un principio muy particularmente terrenal que las cosas no pueden actuar sobre el
espíritu más que a través de un cierto estado material, un mínimo de formas sustanciales suficien-
temente realizadas. Existe quizá una pintura abstracta que prescinde de los objetos, pero el placer
que se obtiene de ella conserva una cierta apariencia hipotética, con la cual, verdaderamente, el
espíritu puede contentarse.” (Antonin Artaud, “El cine y la abstracción” in op. cit., p. 9).
196
Cf. Ramona Fotiade: “It was both the ‘pure’ or abstracte cinema and the aestheticist tendencies -
as illustrated by Jean Cocteau and Marcel L’Herbier - that Surrealists most strongly opposed and
from which they dissociated themselves on various occasions.”(Op. cit., p. 401).
197
Robert Desnos, “Cinéma d’avant-garde”, Documents, nº 7, dezembro 1929, pp. 385-387. Cito a
partir da edição facsimilada publicada pela Éditions Jean-Michel Place, Paris, 1991.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Desnos não podia perdoar uma certa pretensão vanguardista em relação ao


cinema, porque “Un mode erroné de penser dû à la persistante influence d’Oscar
Wilde et des esthètes de 1890, influence à laquelle nous devons entre autres les
manifestations de M. Jean Cocteau, a créé dans le cinéma une néfaste confu-
sion.”198. Para Desnos, o cinema de vanguarda que surge a partir de uma mística
da expressão conduziu à realização de um cinema carente de emoção humana e 69
conhecido pela rapidez com que suas produções “se démodent”. Ainda por cima,
todo o cinema corria o risco de ser influenciado por um esteticismo pernicioso
que precisava ser combatido.
Mesmo não nos esquecendo de que Desnos pertencia à vanguarda, não en-
contramos contradições em sua crônica. Ao lembrarmos as formulações básicas
do surrealismo, percebemos que este não defendia nada mais, nada menos que
um comprometimento ético com a obra a ser realizada. O que ele não podia per-
mitir era o artificialismo que impregnava determinada vanguarda francesa, prenhe
de fórmulas que acabavam por imitar obras anteriores, como os filmes de Sauvage
e Cavalcanti, por exemplo, que eram indiscutivelmente originais. É por isso que
Desnos vai defender ainda Un chien andalou, considerado por ele, junto com ou-
tros filmes do período, “les vrais films révolutionnaires”.199
Mas não era só Desnos que condenava as ideias e realizações de Cocteau
(usado aqui apenas como um exemplo do tipo de cinema que os surrealistas não
aprovavam). O próprio Breton200 condenava sua conduta ética, no que era seguido
de perto pelas opiniões de Buñuel: “Cocteau no era de los nuestros ni podía serlo.
A él le importaban otras cosas. La ética le tenía sin cuidado. Sin olvidar que su des-
vergüenza hería a Breton y algunos más.”201 A concepção de arte partilhada pelos
surrealistas era não só profundamente marcada por ideiais revolucionários, como
por um sentido muito estrito de ética.
“ETICA. Toda virtud se corresponde con una inocencia específica. Inocencia
es instinto moral. Virtud es prosa. Inocencia es poesía. Inocencia bruta – inocencia
culta. – La virtud debe desaparecer de nuevo y convertirse en inocencia.”202 Creio
que este conceito de Novalis corresponde precisamente à ideia de ética que per-
198
Ibidem.
199
Desnos acredita que não há nada mais revolucionário que a franqueza, por isso “Et c’est franchise
qui nous permet aujourd’hui de placer sur le même plan les vrais films révolutionnaires: le Potem-
kine, la Ruée vers l’or, la Symphonie nuptiale et Un chien andalou tandis que nous confondons
dans les mêmes tenèbres la Chute de la maison Usher où se révéla le manque d’imagination ou
plutôt l’imagination paralysée d’Epstein, l’Inhumaine, Panam n’est pas Paris.” (Ibidem).
200
“Paul Claudel y Cocteau, autores de poemas patrióticos infames, de profesiones de fe católica
nauseabundas, ignominiosos medradores del régimen y contrarrevolucionarios de marca mayor.”
(André Breton apud Ángel Pariente, op. cit., p. 92). Paul Eluard foi ainda mais longe em suas
opiniões sobre Cocteau: “Sin enrojecer, pues conseguiremos abatirle como a una bestia ‘hedionda’,
pronunciemos el nombre de Jean Cocteau. La prudencia no ha impedido nunca a nadie ser
inmundo.” (Ibidem).
201
Luis Buñuel apud Ángel Pariente, op. cit., p. 92.
202
Novalis, “El borrador general” in Javier Arnaldo (edit.), Fragmentos para una teoría romántica del
arte, 2ª ed., Madrid, Tecnos, 1994, p. 70.
MIRIAN TAVARES

meia o pensamento surrealista, ou seja, a uma inocência necessária aos atos de


criação. A virtude converte-se em inocência para permanecer virtuosa. Quando
há uma contaminação, perde-se o essencial. Esta inocência é também a busca dos
estados de alma que os românticos, e de uma outra maneira, os surrealistas, em-
preenderam para tornar a sua poesia “pintura y música interiores”.203
70 Os surrealistas não poderiam tolerar artificialismos, por isso é que, segundo
Ferdinand Alquié, “l’activité surréaliste échappe à la rhétorique: elle s’efforce d’en-
tendre l’expérience humaine, de l’interpréter en dehors des limites et des cadres
d’un rationalisme étroit, de prendre, en un mot, les mesures de l’homme.”204 Assim
sendo, os surrealistas não aceitavam um cinema que, para eles, era construído
apenas como retórica, um discurso vazio que não preenchia os seus ideais de
transformação e da busca de meios originais para transformar a arte e, através
dela, o mundo.
Da mesma forma que Buñuel acreditava que o mundo não sofrera as trans-
formações desejadas pelos surrealistas, também a realização artística dos surrea-
listas ficou aquém dos seus anseios, não no sentido da qualidade inegável de suas
obras, mas pela dificuldade da tarefa proposta por eles mesmos, fugir da retórica
empobrecedora e penetrar nos mistérios da alma humana – o inconsciente – dei-
xando que este comandasse o processo de criação.
Fernando Trueba comenta, em seu Diccionario de cine, que Dalí “detestaba
el cine de vanguardia que se practicaba, principalmente en Francia, en los años
veinte. Y cierto es que nada podía estar más lejos del automatismo surrealista que
aquellos elaborados ejercicios formalistas.”205 Ironicamente, quando Dalí envia a
Harpo um argumento para um filme dos irmãos Marx, este é rechaçado, prova-
velmente por assemelhar-se bastante aos filmes que ele mesmo desprezava. O
que, à primeira vista, parece apenas um fato do anedotário surgido em torno da
figura de Dalí, pode ser aplicado para explicar o dilema dos surrealistas, e a sua
grande frustração: em muitos momentos as suas intenções suplantaram à própria
realização.
De qualquer modo, é notório que a relação dos surrealistas com o cinema é
muito mais como espectadores do que como realizadores. Para Artaud (e para os
surrealistas de um modo geral) “le cinéma est essentiellement révélateur de toute
une vie occulte avec laquelle il nous met directement en relation [...]; le cinéma
203
Novalis, “Fragmentos y estudios II” in Javier Arnaldo (ed.), op. cit., p. 115.
204
Ferdinand Alquié, op. cit., p. 35. Para Joël Magny também é importante traçar uma linha que
separa a retórica da criação surrealista. Falando sobre o surrealismo pur et dur (essencialmente o
de Breton), ele reafirma a posição que Breton possui sobre o cinema e a pintura: ambos são consi-
derados purs véhicules de l’esprit surréaliste. Assim, “Ne peut être qualifié de ‘surréaliste’ que le
contenu manifeste (ce qui implique le rejet de l’abstraction, qui caractérise pourtant une grande
partie de la peinture moderne depuis 1913), qui ressortit aussi bien à une idéologie surréaliste
qu’à une rhétorique.” (Joël Magny, op. cit., p. 19).
205
Fernado Trueba, op. cit., p. 270.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

me semble surtout fait pour exprimer les choses de la pensée”206. Concretizar, na


tela, esta crença, já não era tão fácil. Principalmente pelo que já foi observado, o
cinema, mesmo sendo matéria moldável, não é tão evanescente como os surrea-
listas desejariam e promove sempre um tipo de criação, que, via de regra, trai os
princípios do surrealismo207.
Voltando à querela entre os surrealistas e Cocteau208, que serve bem para 71
ilustrar o que pretendiam e o que não pretendiam os surrealistas do cinema, to-
memos uma frase de Man Ray (citada por Buñuel)209: “em todos os filmes, bons
ou maus, acima e apesar das intenções dos realizadores, a poesia cinematográfica
luta para vir à tona e manifestar-se.”210 A poesia luta para vir à tona... O que o ci-
neasta pode fazer é revelá-la. Mas o processo de revelação não pode ser confun-
dido com criações artificiais. A revelação está ligada ao automatismo e aos
processos que regem o inconsciente. As condensações e deslocamentos do sonho
não são por nós percebidos na hora em que ocorrem. No preciso momento do
sonho não temos consciência do seu processo.
Vimos que a definição de ética de Novalis prega a virtude da inocência. Assim,
temos que os surrealistas preferem deixar brotar a poesia, com uma certa frescura
primeva, sem mascará-la através de intrincados meios de consecução. Claro que
existe uma distância entre a intenção e o gesto surrealista. Mas, guiados pela ética,
eles procuram ser fiéis aos seus princípios. Desta forma, rejeitam o trabalho de
Cocteau – este, ao invés de deixar brotar a poesia, obriga-a a aparecer através de
truques. Em 1932, Jean Cocteau, antes de uma exibição de Le sang d’un poète,
fala sobre o filme, explicando, inclusive, os truques e o significado das passagens
mais obscuras. “I won’t conceal the fact that I have use tricks in order to make
206
Antonin Artaud apud Joël Magny, op. cit., p. 20.
207
“L’incapacité des surréalistes à prendre en considération la specificité de la pratique cinématogra-
phique ne risquait pas de la favoriser, et il est en fait peu probable que les avant-gardistes formels
aient souhaité un changement social, idéologique et politique profond.” (Joël Magny, op. cit., p. 20).
208
Apesar de os surrealistas terem recusado veementemente o cinema de Cocteau, este é constante-
mente incluído no rol de filmes ditos surrealistas. Tomemos como exemplo o testemunho de
Jørgen Roos à revista Etudes cinématographiques, falando a propósito dos filmes surrealistas: “Les
plus importants films classiques, comme L’âge d’or, Un chien andalou et Le sang d’un poète ne sont
pas seulement des jalons dans l’histoire du film, mais ils montrent aussi le chemin pour le futur.”(“Té-
moignages: Jørgen Roos”, Etudes cinématographiques, p. 173).
209
Esta frase além de ser importante pelas ideias que contém, possui ainda um outro interesse, pois
em 1958 Buñuel profere uma conferência que foi mais tarde editada na revista Universidad de Mé-
xico, vol. XIII, nº 4, de dezembro de 1958. Nesta conferência, ele cita Man Ray, encaixando-se per-
feitamente no argumento defendido por Buñuel: a possibilidade de um cinema poético e sua luta
contra os neo-realistas mais radicais. Em 1965, nos já referidos números especiais da Etudes ciné-
matographiques dedicados ao surrealismo, encontramos a mesma frase em um testemunho de
Georges Franju, só que agora atribuída ao próprio Buñuel. “Buñuel a dit un jour: ‘Dans tous les
films, bons ou mauvais, au-delà et malgré les intentions des réalisateurs, la poésie cinématogra-
phique lutte pour venir à la surface et se manifester’.” (Op. cit., p. 160).
210
Man Ray apud Luis Buñuel, “Cinema : instrumento de poesia” in Ismail Xavier, A Experiência do Ci-
nema, p. 335.
MIRIAN TAVARES

poetry visible and audible.”211 Para Philippe Soupault, Cocteau é um truqueur, uti-
lizando recursos fáceis para exprimir a complexidade de um poema.
Jean Cocteau, conforme Soupault, “a dénaturé ce mouvement qui commen-
çait à se former avec René Clair, Picabia et Man Ray; son Sang d’un poète, comme
d’ailleurs ses autres films, est une espèce de contrefaçon des tendances surréalis-
72 tes, de l’inspiration surréaliste, de ce que nous aurions pu et voulu faire.”212 (o itá-
lico é meu). Encontramos no termo contrefaçon a definição perfeita de um cinema
que não estava inserido dentro dos ideais do movimento surrealista, mas bebia
de suas fontes, transformando o que era legítimo e original em mera falsificação.
A insistência no tema Cocteau provém do fato de acreditar que as contrafac-
ções acabaram por ser confundidas com os originais, o que gera até hoje bastante
confusão na hora de delimitarmos o que é, ou o que foi, o cinema surrealista. Se
pensarmos no movimento surrealista em si, com data de nascimento e óbito,
vemos que poucas foram as produções, apesar de que, como espectadores, mui-
tos foram os filmes incluídos na lista do grupo de Breton. Se pensarmos no espírito
surrealista, considerado eterno, ou se pensarmos – como disse o próprio Cocteau
–, que todos os filmes são surrealistas, não haveria necessidade desta angústia da
definição. Mas o que pretendo é recuperar as ideias centrais do surrealismo en-
quanto movimento, o que foi por eles produzido na área do cinema e que influên-
cias reais tiveram sobre o restante das produções cinematográficas.
É bastante sintomática esta afirmação de Buñuel: “Em nenhuma das artes
tradicionais há, como no cinema, tamanha desproporção entre possibilidade e
realização”213. Para aqueles que participaram do surrealismo, que pensaram que
o cinema era um veículo perfeito para suas realizações, a vitória das contrafacta
é patente. Contudo, a influência que este grupo exerceu sobre o cinema não pode
ser negada. Se a relação entre os surrealistas e o cinema está ailleurs, não quer
dizer que não exista efetivamente, e que um cineasta como Buñuel não a tenha
carregado ao longo de sua obra.

211
Jean Cocteau, “La sang d’un poète” in Richard Abel (ed.), French Film Theory and Criticism, 1907-
1939, vol. II, Princenton, Princenton University Press, 1988, p. 89.
212
Philippe Soupault, “Entretien avec Philippe Soupault par Jean-Marie Mabire”, Etudes cinémato-
graphiques, p. 31.
213
Luis Buñuel, “Cinema: instrumento de poesia” in Ismail Xavier, A Experiência do Cinema, p. 334.
III.
O SURREALISMO ESPANHOL
III.1. O SURREALISMO ESPANHOL
Para compreendermos a relação de Buñuel com o surrealismo espanhol, atra-
vés das manifestações artísticas da geração poética de 27, é necessário, antes de
mais nada, compreendermos o que foi este movimento de vanguarda. Partindo
da obra de Ortega y Gasset, La deshumanización del arte, por ser uma obra-chave
75
para a compreensão das vanguardas (não só das espanholas), empreenderei uma
caminhada em torno de figuras bem diferenciadas, mas unidas por um traço ge-
racional, como Lorca, Alberti, Cernuda ou Aleixandre. Tentarei ainda delimitar os
pontos de contaminação entre a obra destes poetas e o cinema de Buñuel.
O tema da desumanização da arte na geração poética de 27 ocupou um largo
espaço na crítica. Na realidade, quase obsessivamente, o célebre ensaio de Ortega
y Gasset serviu de ponto de partida para rotular um momento da lírica espanhola
e hispano-americana sem que fosse desmistificado aquilo que não passava apenas
de mais uma das intuições do conhecido pensador. É preciso redescobrir o texto
e tentar empreender uma nova leitura que seja mais acertada e aproxime-se ver-
dadeiramente do que era feito então pelo grupo que ficou conhecido como La ge-
neración del 27.
O clima vanguardista que se vivia em toda Europa também estava presente
em Espanha. Desde o afrancesamento da cultura espanhola, observado em todo
o século XVIII, não se respirava um ambiente tão distante do tradicionalismo214,
traço que caracterizou os pontos altos das expressões artísticas espanholas215. Em
1918 surge em Espanha o movimento ultraísta que em 1923 já se teria esvaído,
como disse Guillermo de Torre, “sin pena ni glória”. No ultraísmo há uma conver-
gência de todos os conceitos vanguardistas do momento (futurismo, dadaísmo,
etc.)216. O seu primeiro manifesto limita-se a proclamar a urgência de criar uma
arte nova, bem como sua necessidade de renovação. Não obstante, em 1920, Guil-
lermo de Torre superará o simples desejo de renovação, considerando que o poé-
tico deverá ser forjado com o que há de mais puro e eterno na poesia.
214
“[...] el afrancesado ilustre y talentudo Don Leandro Fernández de Moratín (1760-1828) para el
que, como hemos visto, ya la literatura de los siglos XVI y XVII entera y el teatro, sobre todo,
estaban dominados por el mal gusto y las ideias estragadas de los libros de caballerías, que en su
tiempo se seguían leyendo por el ‘pueblo’”. (Julio Caro Baroja, Ensayo sobre la literatura de cordel,
Madrid, Ediciones de la Revista de Occidente, 1969, p. 24). “Confusamente el ultraísmo intentó ser
una ruptura y una inauguración a la par. Consiguió lo primero, ¿pero logró enteramente lo segundo?
Aparte las incorporaciones extranjeras ¿se apoyaba en algo sólido, propio, contaba, en una palabra,
con antecedentes inmediatos válidos? (Guillermo de Torre, Historia de las literaturas de vanguardia,
II, Madrid, Ediciones Guadarrama, 1971, pp. 191-192).
215
Cf. Octavio Paz: “lo primero que hay que decir es que, en realidad, no hay una literatura española:
hay una literatura europea, más exactamente una literatura euroamericana (desde el siglo XVI)”.
(Octavio Paz, Las cosas en su sítio, México, Finisterre, 1971).
216
Guillermo de Torre em 1920, através de seu “El manifiesto vertical”, declara: “Nuestra literatura
debe renovarse; debe lograr su ultra, y en nuestro credo cabrán todas las tendencias, sin distinción,
con tal que expresen un anhelo nuevo. Más tarde, estas tendencias lograrán su núcleo y se definirán
[...]”. (Apud Gustav Siebenmann, Los estilos poéticos en España desde 1900, Madrid, Ed. Gredos,
1973, p. 228).
MIRIAN TAVARES

Gustav Siebermann define o ultraísmo e o creacionismo como “revoluciones


efímeras”, acrescentando ainda que “ambas teorías caben señaladamente en el
concepto orteguiano de la deshumanización del arte. Ambos representaron un
desenfrenamiento de lo creador, de la voluntad de renovación, en consonancia
con las conocidas revoluciones artísticas europeas.”217
76 O creacionismo foi representado pelo chileno Vicente Huidobro e pode ser
assim definido em sua “Arte poética”:

Que el verso sea como una llave


Que abra mil puertas.
[...]
Inventa mundos nuevos y cuida tu palabra;
el adjetivo cuando no da vida, mata.
[...]
El vigor verdadero
reside en la cabeza;
Por qué cantáis la rosa. Oh! poetas!,
Hacedla florecer en poema;
[...]
El poeta es un pequeño Dios.218

De qualquer maneira, ultraísmo e creacionismo, em síntese, são duas cor-


rentes estéticas vanguardistas cujas diferenças entre si encontram-se, fundamen-
talmente, nos estilos pessoais de seus mestres e epígonos, visto que ambas
pertencem “en espíritu al cosmopolitismo modernista. No en el sentido superficial
y formal, sino en su actitud de recepción de apertura hacia otras culturas, manera
única de devolver España a esa Europa que con tanto contribuyó a formar.”219
Entre os anos 20 e 30, apareceram os primeiros livros de uma nova geração
poética. García Lorca, em 1922, lança Libro de poemas, seguido por Gerardo Diego
com Imagen, em 1923; Tiempo, de Emilio Prado, sai em 1925; também em 1925,
Marinero en tierra, de Alberti; Las islas invitadas, de Manuel Altolaguirre em 1926
e, em 1928, Ámbito, de Vicente Aleixandre, e Cántico, de Jorge Guillén.
Voltemos à deshumanización del arte. Não podemos nos esquecer da data
de publicação deste ensaio: 1925. Ao relacionarmos esta data com o que foi dito
sobre as vanguardas espanholas, temos que Ortega y Gasset, ao falar da arte da-
quele tempo, referia-se aos experimentos que até ali haviam sido concretizados.
Não é possível afirmar-se então que o tom de suas considerações tivesse caráter
profético, projetando-se a mesma opinião no que foi realizado nos anos seguintes.
Com isso, não pretendo afirmar que as manifestações artísticas são encerradas
217
Gustav Siebenmann, Los estilos poéticos en España desde 1900, Madrid, Ed. Gredos, 1973, p. 225.
218
Vicente Huidobro, El espejo de agua, Buenos Aires, 1916.
219
E. Caracciolo Trejo, La poesía de Vicente Huidobro y la vanguardia. Madrid, Editorial Gredos, 1974,
p. 63.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

em tempos e espaços isolados uns dos outros e que, portanto, as vanguardas


sobre as quais Ortega y Gasset se refere seriam interrompidas abruptamente
dando lugar a algo absolutamente novo.
Os experimentalismos do começo do século deixam marcas saídas precisa-
mente do seu próprio fracasso, pois perdurará o que neles existia de epocal e não
pontual, em síntese, o que Taine denominava de temperatura moral e que so- 77
mente a perspectiva histórica permite definir com precisão. Assim sendo, apesar
do ensaio de Ortega y Gasset abarcar um espaço de tempo maior que o das van-
guardas a que ele se referia, não há dúvidas que foi profundamente condicionado
por estas mesmas vanguardas que o inspiraram.
Em seu famoso ensaio, Ortega y Gasset irá apontar as características do novo
estilo, que tenderia para: “1º, a la deshumanización del arte; 2º, a evitar las formas
vivas; 3º, a hacer que la obra de arte no sea, sino obra de arte; 4º, a considerar el
arte como juego, y nada más; 5º, a una esencial ironía; 6º, a eludir toda falsedad,
y, por tanto, a una escrupulosa realización. En fin, 7º, el arte, según los artistas jó-
venes, es una cosa sin transcendencia alguna.”220
É possível detectar alguns dos pontos referidos pelo filósofo através de algu-
mas citações de Huidobro que, em 1916, afirmou: “La verdad del arte empieza allí
donde termina la verdad de la vida.”221 Os creacionistas, do mesmo modo que as
correntes estéticas finisseculares, sempre lutaram por uma arte autônoma, inde-
pendente da realidade embrutecedora. Arte ou realidade. Desta maneira a criação
poética responderia a uma total inversão do que desde Platão e Aristóteles foi
considerado como tal. Arte amimética, em suma: “el poeta en plena conciencia
de su pasado y su futuro, lanza al mundo la declaración de su independencia frente
a la naturaleza. Ya no quiere servirla más en calidad de esclavo”222
Como o próprio Ortega y Gasset afirmara, nada é mais difícil que fugir da rea-
lidade, assim, as pretensões amiméticas dessas duas correntes redundaram em
um enorme fracasso. Conforme Siebenmann:

La más original metáfora no hace por sí poesía. Si detrás de lo capri-


choso de la imagen no hay correspondencias intuibles, no hay una
estructura que confiera a las imágenes función y necesidad, en vano
iremos a buscar el arte.223

Quanto ao ludismo, ironia e intranscendência, assinalados por Ortega y Gasset,


não parece tão evidente que tenham sido pertença exclusiva das vanguardas, ape-
sar de que, naqueles anos, adquiriram fundamental importância. De qualquer ma-
neira, as revoluções efêmeras não desenvolveram ao máximo a possibilidade
220
Ortega y Gasset, op. cit., p. 24.
221
Vicente Huidobro apud Carlos Bousoño, El irracionalismo poético (el símbolo), Madrid, Editorial
Gredos, 1977, p. 319.
222
Ibidem.
223
G. Siebenmann, op. cit., p. 226.
MIRIAN TAVARES

desses traços que irão atingir seu mais alto grau, principalmente no sobrerrea-
lismo224, designação hispânica para o surrealismo, construída pela pertinente tra-
dução do termo francês.225

78 III.1.1. La generación de la amistad 226


Falar sobre o surrealismo em Espanha é sempre, por vários motivos, uma ta-
refa árdua; dentre eles destacamos a particular relação ou mesmo não assunção
do termo por aqueles que foram considerados os representantes do movimento
neste país. Estamos nos referindo, em especial, a García Lorca, Vicente Aleixandre,
Alberti e Cernuda. Por outro lado, é necessário dizer que neste trabalho não será
desenvolvida toda a história do movimento em Espanha nem as influências que a
mesma deixou em gerações futuras. Interessam-nos, precisamente, os poetas
acima citados, pelo fato de que, além de terem sido os primeiros, em Espanha, a
serem consideradas surrealistas, estão, de alguma forma profundamente ligados
à obra de Buñuel.
Antes de mais nada é necessário definir alguns pontos. Lorca, Cernuda, Alei-
xandre e Alberti são conhecidos por participar da chamada Geração de 27. Ao lado
deles constam outros nomes como: Salinas, Guillén e Gerardo Diego. A própria
denominação, Geração de 27, causa enorme polêmica entre os críticos que ana-
224
Não nos é possível negar a importância do creacionismo e do ultraísmo, mas concordamos com Sie-
benmann quando afirma: “vistos históricamente los dos han jugado un papel fructífero: han que-
brantado los últimos tabúes, han hecho caer las últimas convenciones métricas y rítmicas, han cortado
las últimas ligaduras con la razón y han celebrado la anarquía de las imágenes.” (Op. cit., p. 232).
225
Além da denominação sobrerrealismo, ainda encontramos em alguns autores o termo superrealismo.
Guillermo de Torre em seu livro Qué es el superrealismo, explica porque prefere este termo a sur-
realismo. Ele entende que: “esta última forma - aunque lamentablemente haya cundido tanto - no
pasa de ser (según escribió Díez-Canedo, maestro de traductores, y no sólo en estas minucias)
‘una transcripción bárbara, aceptada sin discernimiento’, esto es, vertida en crudo desde la jerga
hablada al lenguaje escrito.” (Qué es el superrealismo, 3ª ed., Buenos Aires, Editorial Columba,
1967, p. 7). Neste trabalho, no entanto, adotamos, como explicado anteriormente, o termo genérico
surrealismo por ser utilizado por vários autores espanhóis, além de ser a denominação pela qual o
movimento é conhecido no Brasil.
226
Cf. Carlos Marcial de Onís, José Luis Cano não concordava com nenhuma das outras denominações,
preferindo chamá-los de “la generación de la amistad”. (Op. cit., p. 65). Recentemente, em um
magnífico ensaio sobre a Geração de 27, Claudio Guillén, filho de Jorge Guillén, traça um panorama
desta geração tentando compreendê-la e ultrapassar inclusive os próprios rótulos. Nestes ensaios,
Claudio Guillén destaca, sobretudo, a amizade que unia o grupo, ressaltando ainda os fatores que
os juntaram, tais como: “premisas mayores en cuanto a su poética, o su lenguaje, o sus admiraciones
y filiaciones, o su sentido de la historia, o su entrega a empresas compartidas. Son muchas las di-
mensiones que tenían en común: la deuda con la tradición del simbolismo francés; la preocupación
española; el magisterio de Juan Ramón Jiménez; el ideal mallarmeano del libro; la constancia, el
rigor y la sabiduría en el cultivo poético; la capacidad, en cuanto post-, pero no anti-vanguardia, de
la liberación y de experimentación, pero sin instinto de ruptura y sin manifestos; la admiración por
los poetas clásicos de la lengua; el antirretoricismo; el rechazo del egocentrismo sentimental y
confesional.” (Claudio Guillén, “Usos y abusos de 27”, Madrid, Revista de Occidente, abril/97, nº
191, pp. 126-151).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

lisaram o período. Desde Geração de 1925, passando por Geração da ditadura,


Netos de 98, Geração Guillén-Lorca, Geração da Revista de Occidente e até Ul-
traísmo227, tentou-se encontrar um termo que melhor definisse um grupo de poe-
tas que iria marcar profundamente o conceito de modernidade em Espanha.
Ao discutir a precisão dos termos pelos quais este grupo de poetas ficou co-
nhecido, Carlos Marcial de Onís acredita que, se não for a mais acertada, pelo 79
menos a mais neutra é Geração da Revista de Occidente. Porém, antes de mais
nada Onís irá discutir um conceito que, segundo ele, se encontra em crise, que é
o conceito de geração literária. Mas concorda com Ricardo Gullón quando este
defende a posição adotada por Dámaso Alonso sobre a “conveniencia de agrupar
a los artistas en ciertas estructuras orientadoras, útiles para situar al hombre en
su tiempo y en relación con sus coetáneos, pero de ningún modo suficientes para
revelar lo esencial de cada caso”228. Apesar das diferenças, inclusive de idade229, é
possível agrupá-los, pois há um paralelismo evidente entre suas obras, resguar-
dando-se, é claro, as diferenças pessoais.
Como é sabido, a denominação Geração de 1927 deve-se à celebração, neste
ano, do tricentenário da morte de Góngora. Se, por um lado, estes poetas tiveram
uma participação intensa nas comemorações, a influência de Góngora, conforme
Onís, é muito relativa e, inclusive, passageira. Por este motivo é que esta denomi-
nação, apesar de ser uma das mais difundidas, leva-nos a cometer alguns equívo-
cos. De qualquer forma, é inegável a importância da recuperação do poeta barroco
feita por este grupo, pois, se por um lado, os labirintos metafóricos de Góngora
possuíam um desvendamento230 que não é encontrado, principalmente, na poesia
dos mais jovens desta Geração revestida da obscuridade plena do surrealismo,
por outro lado, recuperar a figura de Góngora, é também tornar possível uma es-
227
Carlos Marcial de Onís, em seu livro El surrealismo y cuatro poetas de la generación del 27, dá-nos
um painel da discussão sobre a denominação Geração de 1927, inclusive discutindo ainda o próprio
conceito de geração. Além de refutar vários rótulos como por exemplo, Geração de 1925, nome
escolhido por Cernuda pelo simples fato de ser uma espécie “término médio de la aparición de sus
primeros libros” (Cernuda apud C. M. de Onís, El surrealismo y cuatro poetas de la generación del
27, Madrid, Ed. José Porrúa Turanzas, 1974, p. 59), Onís discute e aponta os problemas das outras
denominações, chegando a um possível entendimento (apesar das muitas reservas) apenas com
Dámaso Alonso e vários seguidores, que optam pelo termo Geração de 1927 e com a chamada Ge-
ração da Revista de Occidente, por ter sido ali que muitos deles apresentaram seus primeiros tra-
balhos. (Op. cit., pp. 57-67).
228
Ricardo Gullón apud Carlos Marcial de Onís, op. cit., p. 62.
229
Para provar a existência da Geração de 98, Salinas, segundo Onís, utiliza as notas propostas por
Petersen para definir o que seria uma geração literária. Dentre elas consta a coincidência da data
do nascimento, senão no mesmo ano, em datas muito próximas. No caso da Geração de 1927 há
uma distância temporal (e não só), entre Guillén e Salinas (o primeiro nasce em 1891 e o segundo
em 1893, portanto quase 10 anos separam-nos dos outros) e o restante do grupo, o que, para
Onís, não invalida pô-los lado a lado como participantes de uma mesma geração. (Op. cit., p. 66).
230
Segundo Amado Alonso, há em Góngora, apesar da dificuldade de sua poesia, “un pensamiento
claro, artísticamente ocultado con riguroso sistema de equivalencias, que sigue la vía compleja
pero estricta de la estructura sintáctica: laberinto con un hilo racional.” (Amado Alonso, Poesía y
estilo en Pablo Neruda, Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1966, p. 56).
MIRIAN TAVARES

crita metafórica e labiríntica e lutar contra o que havia de mais tradicional e clás-
sico na cultura hispânica que obrigou este poeta a uma espécie de marginalidade
literária.
De certa forma, a Geração de 1927 não vai de encontro ao que havia ante-
riormente em termos de criação artística. Se ao recuperar Góngora entram em
80 confronto com certa tradição que o rejeitara, não deixam, entretanto, de aprovei-
tar-se das lições desta mesma tradição. Como dirá Aleixandre: “Nuestra generación
no fue una generación parricida; ha querido continuar una tradición, no rom-
perla”.231 Segundo Arturo Ramoneda, na introdução a Antología poética de la ge-
neración del 27, estes poetas “sólo se alzaron contra el modernismo apolillado,
contra el amaneramiento, la ramplonería, el sentimentalismo melodramático, la
rutina, la vulgaridad, y, en definitiva, contra la mala poesía y contra todo lo que
en el arte significara rutina y adocenamiento.”232
Quando Federico de Onís chama a estes poetas de ultraístas, encontra uma
certa justificativa para sua afirmação. Afinal, os ultraístas eram o fruto da junção
de diversas referências vanguardistas. O problema é que a coincidência neste
ponto, a aceitação de várias influências, não justifica a (con)fusão das duas corren-
tes. Como acertadamente critica Guillermo de Torre, “el término de ultraístas ni si-
quiera en un sentido muy lato, puede servir para designar indistintamente a todos
los poetas españoles surgidos desde 1918. […] Porque ese rótulo sirvió para nom-
brar de modo unívoco a los cultivadores de una tendencia muy determinada.”233
Para evitar algumas confusões é que Carlos Marcial de Onís, como já foi dito
anteriormente, prefere a denominação Geração da Revista de Occidente. Esta re-
vista iniciada por Ortega y Gasset irá introduzir em Espanha as mais diversas ten-
dências da arte que se respiravam por toda a Europa. Também é nesta revista que
todos irão publicar, não só poemas, como ensaios sobre poesia, sendo inclusive
uma das principais responsáveis pela entrada do surrealismo no país. De qualquer
forma, não irei deter-me mais na discussão sobre a validade ou não de um ou
outro rótulo pelo qual estes poetas tornaram-se conhecidos; talvez a mais acer-
tada delas seja a preferida por José Luis Cano, “la generación de la amistad”, apesar
de que a mais conhecida e adotada até hoje, seja mesmo Geração de 1927.234
“Hay que destacar, en primer lugar, la estrecha amistad que los unió” e,
assim, para Ramoneda,235 a importância da amizade que os ligava não pode ser
ignorada. Pois dentre as muitas diferenças, que torna tão difícil classificá-los como
participantes de um mesmo grupo, a amizade cultivada por todos, não presente,
231
Aleixandre apud Arturo Ramoneda, Antología poética de la generación del 27, Madrid, Ed. Castalia,
1990, p. 43.
232
Arturo Ramoneda, op. cit., p. 43.
233
Guillermo de Torre, Historia de las literaturas de vanguardia, Madrid, Guadarrama, 1965, p. 368.
234
Cf. Arturo Ramoneda: “Sin embargo, aunque destacados críticos recientes se inclinen por el rótulo
‘Generación de la vanguardia’, las denominaciones más aceptadas y populares han sido, por motivos
bastante defendibles, las de ‘Generación del 27’ y ‘Grupo poético del 27’.” (Op. cit., p. 34).
235
Arturo Ramoneda, op. cit., p. 40.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

por exemplo, na Geração de 98, constitui-se em um traço distintivo desta cor-


rente. Mesmo assim, “el hecho de la comunidad personal no basta por sí solo,
no basta para caracterizar a una generación”, afirma Carlos Marcial Onís236. De
qualquer forma, a amizade, fruto de raízes comuns, em alguns casos, e de uma
participação em conjunto em vários atos culturais e uma certa convergência em
suas ideias, torna a Geração de 1927 única, pois apesar de muitas diferenças 81
entre suas obras, mesmo entre obras do mesmo autor, ainda é possível vê-los
como um grupo.
É mais fácil percebermos o elo que une Cernuda, Lorca, Aleixandre e Alberti,
principalmente pelo posterior desenvolvimento dos seus trabalhos, indo desem-
bocar no surrealismo. É mais fácil, inclusive, pela relação espacial que os une, pois
todos são andaluzes. Onís irá encontrar então a forma de uni-los ao restante do
grupo. Para ele, Salinas e Guillén seriam poetas de transição, não sendo, portanto,
influenciados pelo surrealismo que irá aparecer plenamente em alguma poesia
daqueles que, apesar de não levantarem uma bandeira ao movimento surrealista,
chegando mesmo a refutá-lo veementemente (como Lorca), deixaram que o sur-
realismo agisse na construção de seus poemas.

III.1.2. O caminho para o surrealismo


Gustav Siebenmann levanta uma importante questão: seria o surrealismo es-
panhol autóctone ou francês? Na verdade, é uma questão que suscita outra: como
poderia existir um surrealismo não influenciado pelo francês, já que é aí que surge
o movimento? Se tomarmos como Siebenmann uma definição mais geral do
termo surrealismo, “todo lo que es nuestro espíritu más allá de la razón; es lo es-
pontáneo y lo arbitrario en nuestra personalidad”237, poderíamos aceitar a ideia
de um surrealismo autóctone. Mas, apesar de o movimento francês, segundo Sie-
benmann, possuir mais manifestos que obras, não há como negar que tenha sido
ele um dos propulsores do desenrolar da poesia mais fecunda da Geração de 1927.
O que Siebenmann tenta fazer é, antes de mais nada, mostrar que havia uma
confluência de ideias entre as vanguardas238, que traços do surrealismo estavam
236
C. M. de Onís, op. cit., p. 65.
237
Gustav Siebenmann, op. cit., p. 328.
238
De um modo geral, esta confluência é bastante clara, não só em Espanha como em toda a Europa.
Se os primeiros poemas de Breton sofreram a influência de Mallarmé e Apollinaire, nomeadamente
no que diz respeito ao apelo visual e à supressão da pontuação corrente, substituída por espaços
tipográficos, traços recorrentes também em alguma poesia surrealista, é possível detectar esta
mesma influência em poetas vanguardistas espanhóis. Vejamos o exemplo dado por Siebenmann,
um poema de Gerardo Diego, participante tanto do ultraísmo como do creacionismo:

ÁNGELUS
Sentado en el columpio
el ángelus dormita
Enmudecem los astros y los frutos
MIRIAN TAVARES

presentes, por exemplo, no creacionismo, e que, de fato, não houve uma revolução
surrealista em Espanha – sequer possuíam uma revista e nem a denominação foi
unificada: surrealismo, superrealismo e suprarrealismo. Mas a revolução surrea-
lista francesa vai eclodir também em Espanha, deixando suas marcas, apesar da
resistência de poetas que, como Lorca, jamais aceitariam este rótulo239.
82 “El surrealismo no es en la poesía española un movimiento que surja de la
nada, ya que tiene un período de incubación y una razón de ser en la dinámica de
los movimientos literários.”240 Para Onís, o surrealismo espanhol ou a poesia por
ele influenciada parece ser o ápice de uma evolução que principia já no roman-
tismo e é renovada com o modernismo. Seu período mais fértil vai de 1928 até
1935, data da publicação de La destrucción o el amor de Aleixandre. Principia exa-
tamente no ano seguinte ao das comemorações do tricentenário de Góngora.
Neste momento, Onís acredita que os preciosismos formais do poeta barroco já
não cabiam na nova poesia de Cernuda, Aleixandre, Alberti e Lorca.
É importante observar, no entanto, que, conforme Bodini,

vedremo su un piatto l’assoluta carenza teorica e ideologica, la man-


canza del piú piccolo gesto o ammissione che riveli una presa di po-
sizione cosciente; sull’altro piatto invece una tal quantità di
surrealismo realizzato poeticamente de aver poco de invidiare alla
corrispondente poesia francese.241

Y los hombres heridos


pasean sus surtidores
como delfines líricos
Otros más
agobiados
con los ríos al hombro
peregrinan sin llamar en las posadas
La vida es un único verso interminable
Nadie llegó a su fin
Nadie sabe que el cielo es un jardín
Olvido
El ángelus ha fallecido

Con la guadaña ensangrentada


un segador cantando se alejaba

Siebenmann vai sublinhar aqui a influência de Apollinaire, ressaltando que a construção gráfica do
poema torna-o plurissignificativo. (G. Siebenmann, op. cit., pp. 230-231). Não é portanto de estra-
nhar a presença de outros ismos no surrealismo espanhol.
239
Em uma carta a Sebastiá Gasch, Lorca diz: “Aquí te mando los dos poemas. Yo quisiera que fueran
de tu agrado. Responden a mi nueva manera espiritualista, emoción pura descarnada, desligada
del control lógico, pero ¡cuidado!, con una fuerte lógica poética. Nos es surrealismo, ¡ojo!, ¡ojo!,
con una tremenda lógica poética.” (Apud G. Siebenmann, op. cit., p. 333).
240
C. M. de Onís, op. cit., p. 67.
241
Vittorio Bodini, I poeti surrealisti spagnoli. Saggio introduttivo e antología, Torino, Einaudi, 1963,
pp. XXVII-XXVIII.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

A carência de um verdadeiro movimento surrealista em Espanha não invali-


dou uma vasta e importante produção poética. Produção esta que quase antro-
pofagicamente absorve as influências francesas e transforma-as em obras
autenticamente espanholas.
As revoluções efêmeras deixam seus traços inscritos na poesia que irá pro-
duzir-se com o grupo da Geração de 1927. A utilização das metáforas, tão cara ao 83
ultraísmo e creacionismo, ressurge aqui, só que revestida de uma humanização
reveladora, que nada possuía dos estatutos aventados por Ortega para a arte mo-
derna. Do mesmo modo, o gongorismo, como um movimento de retomada de al-
guns valores espanhóis e antineoclassicizantes, perdurará na poesia do grupo.
Mas, conforme Siebenmann, de uma forma renovada242.
Góngora243, el ángel de tinieblas, poeta obscuro, encontra uma senda para
repousar na poesia daqueles que, como Gerardo Diego, estavam plenamente in-
seridos no que Ortega chamou de deshumanización del arte. Bodini afirma: “L’er-
metismo della sua vita coincide in pieno con la predicazione di Ortega y Gasset
sulla necessità per il poeta puro di tener rigorosamente distinte vita e lettera-
tura”244. A preponderância, na poesia de Góngora, da técnica sobre o sentimento,
é também fundamental para aqueles que cultivavam a metáfora até que ela se
convertesse em poesia.
Em um texto de 1927 (editado apenas em 1932) Dámaso Alonso vai refletir
sobre a relação de Góngora com a literatura de então. Após analisar o gongorismo,
chega à conclusão de que promover o renascimento da poesia de Góngora na li-
teratura espanhola não significava uma filiação cega aos princípios por ele defen-
didos. Para Alonso, os sentimentos que a sua geração nutria pelo poeta barroco
são “absolutamente distintos de la ciega y postiza admiración, sin conocimiento
verdadero, de los escritores de 1900”; por outro lado, não é possível encontrar
uma influência direta de Góngora no que se refere ao estilo e aos elementos for-
mais da língua poética daquele grupo.245
242
“El gongorismo como contrahechura arcaizante, como ejercício erudito de oscuridad no merecería
ser citado. Pero allí donde los líricos de nuestro siglo confiaron a ese estilo una manifestación
propia, personal, se hace interesante.” (G. Siebenmann, op. cit., p. 236).
243
Bodini analisa a relação de Góngora com os poetas que resolveram comemorar o tricentenário de
sua morte e o porquê da recuperação deste poeta barroco. “Qual era la situazione di Góngora al
tempo della celebrazione? Alla sua morte, avvenuta a Córdoba il 20 maggio de 1627, dopo una
vita vissuta nel modo piú impoetico, senza una linea unitaria, con una netta dicotomia fra vita e
letteratura, erano cessate la poemiche tra i sostenitori e gli avversari della sua poesia con la vittoria
provvisoria di questi ultimi: da quel momento la sua fama restò per cosi dire congelata per circa
due secoli.” O princípio do movimento de libertação de Góngora do seu período de hibernação dá-se
em Paris, pelas mãos de Verlaine e Rubén Darío. Segundo Bodini, Verlaine sentiu-se, provavelmente,
atraído pela fama de maldito que Góngora possuía. Do seu entusiasmo e da curiosidade despertada
em Darío, que a levará consigo para Madrid, explodirá, mais tarde, o encontro de Góngora com a
Geração de 1927. (V. Bodini, op. cit., pp. XXIII-XXIV).
244
V. Bodini, op. cit., p. XXV.
245
Como que para confirmar a regra, Dámaso Alonso assinala uma exceção: Alberti. Para ele foi o
único poeta daquela geração que sofre influências diretas do estilo de Góngora em duas composi-
MIRIAN TAVARES

Podemos utilizar, como o fez Dámaso Alonso, as palavras de José Bergamín


para resumir a posição da Geração de 1927 em relação a Góngora:

El arte poético de Góngora vale hoy para los nuevos porque es arte
y porque es poético: Nada más. Otros paralelismos no existen, si no
84 es el de la verdadera intención estética que anima, como a Góngora,
a los poetas del nuevo renacimiento lírico... Admirar, comprender a
Góngora, no es ser gongorino ni gongorista, es ser persona; tener
gusto y entendimiento de persona humana, simplemente.246

Naquele momento a influência de Góngora247 precisava ser superada para


que a nova geração pudesse afirmar-se em seus próprios caminhos. Era preciso
romper com os vínculos que os ligavam a uma geração juvenil e despontar em di-
reção aos seus trabalhos mais pessoais e, talvez por isso mesmo, mais universais.
Alonso aponta aqueles que seguiram o caminho do surrealismo: Lorca, Alberti,
Aleixandre, Cernuda, Hijonosa. Mas a volta “hacia la raíz subterránea de la inspi-
ración poética”248, foi fundamental para que mesmo o surrealismo, que chega atra-
vés da França, adquirisse toda a cor local.
O conceito de Ortega y Gasset da desumanização da arte não irá resistir ao
surrealismo espanhol. Nunca no século XX a poesia espanhola adquiriu um tão
elevado grau de humanização, humanização no sentido mais pleno e cabal, já que
não se limitou a perceber, recordar ou descrever, senão que pretendeu trabalhar
melhor “dans le mystère de la matière et qui veut plus suggérer que décrire.”249
Sugestões cósmicas e não morais através de uma fusão do homem com a natureza,
objetivo único de um longo caminho apenas recordado na memória ancestral e
coletiva ou individual, por isso mesmo, inesquecível, por mais que as sombras
opostas à verdadeira ideia construam falsos paraísos.
Os poetas que iremos analisar com mais acuidade, Lorca, Cernuda, Alberti e
Aleixandre, pela relação que mantiveram com a obra de Buñuel, longe de esque-
cerem o homem, ou a figura humana, reiteradamente invocam-no e reclamam-no.
Permanece em suas obras o pensamento mítico, inseparável também do de toda
a imaginação humana, em uma palavra: paraíso, paraíso perdido e retorno até ele.

ções. Mas o trabalho de Alberti não é motivado por um espírito de imitação. De um modo geral, as
influências, “Si las hay, predominio de la metáfora, gusto de lo perfecto en muchos de ellos, etc.,
no son fundamentales, sino adjetivas, y no vienen de Góngora, sino van coincidir con Góngora,
para cobrar en su ejemplo augusto nuevo aliento y nuevo impulso. Góngora no influye, reinfluye.”
(Dámaso Alonso, “Góngora y la literatura contemporánea” in Obras completas, V, Madrid, Gredos,
1978, p. 768).
246
José Bergamín apud Dámaso Alonso, op. cit., p. 769.
247
Buñuel não se sentiu atraído pelos gongoristas, pois para ele Góngora era “la bestia más inmunda
que ha parido madre.” (Apud Juan Cano Ballesta, “Luis Buñuel: el joven cineasta y el mundo de las
vanguardias”, Turia. Revista cultural, nº 28-29, maio de 1994, pp. 171-191).
248
Dámaso Alonso, op. cit., p. 769.
249
Gaston Bachelard, La terre et les rêveries de la volonté, Gallimard, Paris, 1976, p. 8.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Não significa, porém, que haja uma identidade ou uniformidade em suas obras. As
experiências pessoais, bem como sua própria sensibilidade, traçaram distintos ca-
minhos. Fica, porém, a mesma angústia (pelo homem) e a mesma fé (no homem).
A partir destes fatores torna-se evidente que o que mudou na estética dos
finais dos anos 20 – e que se prolongará em Aleixandre até mais tarde – foi a cons-
ciência: consciência do que é ser homem; consciência da relação do homem com 85
a natureza e, principalmente, consciência de sua inconsciência. Esta lucidez joga
nesta sinfonia estética como contraponto da já assinalada visão mítica. São ambos
inseparáveis e complementares. Voltando até as suas origens o homem torna-se
dono do seu passado num afã de construir, a partir de seu processo de construção,
ou seja, voltar atrás em busca de um tempo perdido e remoto do qual descolou-se
há muito tempo.
Há que se fazer notar algumas diferenças entre o surrealismo espanhol e o
francês. Cernuda irá apontar uma forte influência do creacionismo nos poetas sur-
realistas espanhóis. Talvez mesmo uma confluência de intenções. Mas, como bem
observa Cernuda, “el creacionismo carece de la rebeldía, que era el rasgo del su-
perrealismo, así como del aspecto mágico de éste.”250 Por outro lado, temos que,
enquanto os franceses aprofundaram a teoria e enriqueceram o mundo com seus
manifestos, os espanhóis quase que simplesmente poetaram.
Muitas são as obras que se debruçaram sobre o problema do surrealismo es-
panhol e as questões das suas origens. Aqui, limitar-nos-emos a apontar alguns
dados fundamentais da entrada do surrealismo em Espanha. O primeiro contato
direto dos espanhóis com o surrealismo deu-se através de uma conferência pro-
ferida por Aragon em 18 de abril de 1925 na Residência dos Estudantes251, em Ma-
drid. Mas mesmo antes do manifesto surrealista existir, Breton havia estado no
Ateneu de Barcelona em 17 de novembro de 1922. Picasso já residia em Paris
quando aparece o manifesto, em 1924, chegando mesmo a escrever alguns poe-
250
Luis Cernuda, Estudios sobre poesía espanõla contemporánea, 4ª ed., Madrid, Guadarrama, 1975,
p. 147.
251
Juan Manuel Bonet, em seu Diccionário de las vanguardias en España (1907-1936), Madrid, Alianza
Editorial, 1995, pp. 57-58, considera a conferência de Aragon bastante provocadora. Alguns frag-
mentos desta conferência serão publicados no nº 4 da revista La Révolution surréaliste de 15 de
julho 1925. Sob o título “Fragments d’une conférence”, encontramos um texto que procura ser
surrealista não só no significado das palavras, mas na sua própria construção. A grande preocupação
de Aragon é fazer-se compreender por pessoas que, além de não participarem do movimento,
provinham de uma outra cultura e vivência. Assim sendo, Aragon principia: “Qui sont ces gens?
Qu’ai-je à faire avec eux? Etrangers je sors du train noir. Il n’y a rien de commun entre vous et moi.
Voici que vous êtes devant moi comme l’alcool au fond d’un verre, et je bois le lac de vos regards.
Quels chemins, quels signes d’encre, quelles conjonctions d’astres, quels dessins purs dans le ciel
transparent, non rien, toute explication serait dérisoire.” Mais adiante, Aragon pergunta: “Mais
vous, hommes d’ailleurs, comment entendriez-vous ce que je vais vous dire?” O texto de Aragon é
pontuado de provocações que, de alguma maneira, buscam a reação e o envolvimento daqueles
que o escutam. Finaliza por dizer: “Riez bien. Nous sommes ceux-là qui donneront toujours la
main à l’ennemi.” (Louis Aragon, “Fragments d’une Conférence”, La révolution surréaliste, nº 4, 15
de julho/25, pp. 23-25).
MIRIAN TAVARES

mas surrealistas; Fernando Vela publica na Revista de Occidente um artigo sobre


o surrealismo, em 1924; em 1925 esta mesma revista publica o manifesto de Bre-
ton; a amizade de Lorca com Dalí e Buñuel não deixa também de ter sua impor-
tância, além de muitos outros fatores que concomitantemente explodiam em
Espanha naqueles tempos252.
86 Houve sempre uma resistência, entre os próprios poetas surrealistas, em de-
nominar-se como tal, talvez porque o surrealismo, em sua poesia, apesar da força
e da grandeza de seus versos, foi uma revolução efêmera, quase particular, que
não perdurou por muito tempo, nem foi marca registrada de toda uma obra. Por
outro lado, eles nunca abandonaram o desejo de manter uma lógica poética contra
as inventivas da falta de lógica total promulgadas por Breton. A proposta do auto-
matismo, da perda do controle sobre o poema, não atraía os poetas desta geração.
(Sabemos que, efetivamente, mesmo em França, pouco se produziu sob o signo
do automatismo absoluto). A lógica poética precisava permanecer como um fio
condutor que ligava os seus versos, dando-lhes algum sentido.
Siebenmann considera que Alberti, Lorca e Aleixandre foram os únicos “que
han escrito obras largas y ciclos en estilo surrealista”, sendo que nestes três casos
pode-se falar, com rigor, “de una poesía enteramente amétrica y alógica, de con-
tenido irracional, irreal y alucinado.”253 Além destes poetas, temos também Luis
Cernuda, que será um dos poucos a admitir expressamente a influência do sur-
realismo em sua obra entre 1929-1931. De qualquer maneira, é necessário escla-
recer que o surrealismo não se constituiu uma escola organizada naquela geração:

Fieles a su propia individualidad, estos poetas no se organizan en es-


cuela, ni mucho menos adoptan la dogmática bretoniana, que venía
a negar, por otra parte, el princípio de libertad, la rebelión básica que
hay en la raíz del surrealismo.254

252
“Aunque francés de origen, el superrealismo llegó a convertirse en movimiento internacional, y eso,
más que la influencia literaria, se debió quizá a que respondía a una rebeldía de la juventud, a un
estado de ánimo general entre la mocedad por aquellos años.” (Luis Cernuda, op. cit., pp. 147-148).
Se o surrealismo, como uma vez dissera Buñuel, era um chamado geral através do espaço que poderia
ser respondido por todos aqueles que se identificassem com seus valores, alguns poetas espanhóis
ouviram este chamado das mais diversas formas. Carlos Marcial Onís, em seu já citado livro, El sur-
realismo y cuatro poetas de la generación del 27, dá-nos um quadro bastante completo de como este
chamado surrealista fez-se ouvir em Espanha. (Veja-se C. M. de Onís, op. cit., pp. 67-85).
253
G. Siebenmann, op. cit., p. 333.
254
Cf. Carlos Marcial de Onís, op. cit., p. 84. Onís vai identificar ainda três períodos no surrealismo es-
panhol, a saber:
“1. Un período de incubación, que va desde 1924 a 1927, período en que va entrando en España
las nuevas corrientes y los poetas más jóvenes de la generación van tomando conciencia de un
nuevo modo literario que van a transformar en un producto español.
2. Un período de asimilación y plenitud, que va desde 1928 a 1935, fecha esta última de la publi-
cación de La destrucción o el amor, de Aleixandre. [...]
3. Un período de desintegración, que se opera durante y después de la guerra civil, quedando, sin
embargo, operantes o en disponibilidad, ciertas adquisiciones permanentes, siendo el verso
libre y la intensificación del fenómeno visionário las más importantes.” (Op. cit., pp. 84-85).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Em 1927, Lorca escreve uma carta a Ana Maria Dalí, na qual evoca imagens
já nitidamente surrealistas: “Los peces de plata salen a tomar la luna..., Entonces
mi recuerdo se sienta en una butaca...”255. Os peixes de Lorca fazem-nos pensar
em Breton: “A verdade apoia-se nos juncos matemáticos do infinito e tudo avança
à ordem da águia à garupa, enquanto o génio das esquadrilhas vegetais bate nas
mãos e o oráculo é pronunciado por fluidos peixes eléctricos”256. Ainda em Poisson 87
soluble, texto que Breton edita em 1924, encontramos uma bela definição para a
tarefa dos poetas surrealistas: “Somos os criadores de destroços; nada há no nosso
espírito que se possa vir a desencalhar. Tomamos lugar no posto de comando
aquático destes balões, destes maus navios construídos segundo o princípio da
alavanca, do guindaste e do plano inclinado.”257
O peixe assume um lugar importante no imaginário surrealista. Sendo parte
constituinte deste imaginário, tal como os pássaros e todo um bestiário que evoca
sempre o inconsciente, o não domesticado. Na contracapa do primeiro número
de La révolution surréaliste encontramos a palavra “surréalisme” escrita sobre o
corpo de um peixe. Conforme Jean-Paul Clébert, “Cet anonymat du poisson sur-
réaliste n’est pas fortuit. Et si l’on s’étonne de la rareté des termes ichtyologiques
dans la póesie surréaliste, c’est qu’on n’a pas bien compris le rôle particulier de
cet animal habitant des profondeurs aquatiques, et comme tel symbole du sub-
conscient ou de l’inconscient colectif.”258
O Poisson soluble de Breton foi considerado por Ferdinand Alquié uma obra
chave do surrealismo259. Talvez por ser fruto de “ ‘cinq années d’activité expérimen-
tale’, est en ce qui concerne la prise de conscience, un point de départ, non un
point d’arrivée”260. Um ponto de partida para alcançar a verdadeira existência, que,
para Breton, está sempre ailleurs. O peixe, símbolo do inconsciente261, é solúvel no
seu próprio elemento, a água. O retorno perfeito em busca do paraíso perdido da
inconsciência absoluta e da integração mais profunda aos elementos primevos.
Para Julien Gracq, “Les poèmes de Poisson soluble témoignent de l’accord
parfait, dans toute l’étendue de la gamme du clair à la obscur, d’un écrivain qui
n’as pas à se soucier de mettre sa pensée d’accord avec ses rêves”262. A ambigui-
255
Federico García Lorca apud G. Siebenmann, op. cit., p. 332.
256
André Breton, “Peixe solúvel” in Manifestos do Surrealismo, 4ª ed., Lisboa, Salamandra, 1993, p.
64. O Manifeste du surréalisme (1924) é seguido por 32 textos automáticos produzidos por Breton
para ilustrar o procedimento da escrita surrealista. Estes textos são reunidos sob o título de Poisson
soluble. No próprio manifesto Breton afirma: “N’est-ce pas moi le poisson soluble, je suis né sous
le signe des Poissons et l’homme est soluble dans sa pensée.”
257
Op. cit., p. 69.
258
Jean Paul-Clébert, Dictionnaire du surréalisme, Paris, Seuil, 1996, p. 90.
259
“Poisson soluble me paraît, encore aujourd’hui, non certes la plus forte, mais la plus significative
des l’œuvres surréalistes: c’est, en tout cas, une l’œuvres clé.” (Ferdinand Alquié, op. cit., p. 13).
260
F. Alquié, op. cit., p. 14.
261
É importante observarmos que os surrealistas rejeitavam a interpretação cristã para o peixe. Ver
Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 90.
262
Julien Gracq apud Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 479.
MIRIAN TAVARES

dade do surrealismo, seus meandros de luz e obscuridade, vão sendo desfiados


ao longo dos 32 poemas, que revelam o espírito que guiava a revolução surrealista,
uma entrada, se possível sem retorno, para os abismos do inconsciente, ampliando
o próprio espaço poético.
Não é por acaso que os peixes aparecem em Lorca. De alguma forma eles
88 marcam aqui também a entrada para um outro espaço poético, cuja lógica, se
existir, é tão obscura quanto a poesia que será produzida por estes poetas, não-
surrealistas de teoria, mas profundamente imersos no surrealismo tout court. É
interessante observarmos que, para Breton e seu grupo, a Espanha era um país
surrealista: “par son climat excessif, sa nature primordiale, sa passion de la déme-
seure et de l’excès, son éternel défi à la mort que concrétise la tauromachie.”263
Apesar de rejeitar o surrealismo constantemente, a entrada de Lorca no uni-
verso da criação surrealista ocorre de vez em sua passagem por Nova York (1929-
1930). Em um poema de 1929, “Niña ahogada en el pozo”, Siebenmann vai
encontrar vários elementos que são constantes surrealistas, tais como: “Las esta-
tuas de ojos de piedra metidas en ataúdes, el instrumento musical sin cuerdas,
los edifícios vacíos [...]”264. E apesar de tais elementos, da cadência do poema, das
263
Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 255.
264
G. Siebenmann, op. cit., pp. 340-341. A seguir transcrevemos o poema de Lorca em sua totalidade
para que se perceba os elementos que foram enumerados por Siebenmann.

NIÑA AHOGADA EN EL POZO


(Granada y Newburgh)

I Las estatuas sufren por los ojos con la oscuridad de los ataúdes,
pero sufren mucho más por el água que no desemboca.
Que no desemboca.

2 El pueblo corría por las almenas rompiendo las canãs de los pescadores.
¡Pronto!!Los bordes!!De prisa! Y croaban las estrellas tiernas.
...que no desemboca.

3 Tranquila en mi recuerdo, astro, círculo, meta,


lloras por las orillas de un ojo de caballo.
...que no desemboca.

4 Pero nadie en lo oscuro podrá darte distancias,


sin afilado límite, porvenir de diamante.
...que no desemboca.

5 Mientras la gente busca silencios de almohada


tú lates para siempre definida en tu anillo.
...que no desemboca.

6 Eterna en los finales de unas ondas que aceptan


combate de raíces y soledad prevista.
...que no desemboca.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

reiterações, da especularidade de um verso que atravessa todo o poema, um verso


que transmite a imobilidade e não realização de um ato – que não desemboca,
da ambiguidade presente em possíveis interpretações, tudo levando-nos a crer
estarmos diante de um exercício de automatismo e liberação das imagens incons-
cientes, o poema de Lorca está pleno de sua lógica poética.
Há um ordenamento lógico na construção do poema; a figura da água que 89
não desemboca, para Siebenmann, tem aqui dupla função: “no es sólo la figura
central de la escena y la causa de la muerte, sino que crece, merced sobre todo al
estribillo, hasta convertirse en poderoso símbolo del fracaso sin salida que es la
vida ante la muerte”265. Se o poema denota uma maneira de fazer, atrelada a uma
lógica do consciente, o resultado é a revelação de imagens do inconsciente. Atra-
vés de um elaborado processo de montagem, deparamo-nos com algo que só
existe nas profundezas do imaginário e do sonho. O espaço criado por Lorca é o
espaço dos sonhos da poesia surrealista, presente no imaginário coletivo de todos
aqueles que, através de imagens evocadas ou apresentadas, conceberam o mundo
das sombras e com elas fizeram luz.
Se pensarmos nas reiterações do poema de Lorca, somos remetidos para a
circularidade do tempo que se devora a si mesmo. Ele anda para não sair do lugar.
É um tempo mítico, regido por outro sistema que não a racionalidade pura e linear.
É o tempo, por exemplo, de Un chien andalou, que fere a certeza cartesiana das
palavras – não acredite no que está escrito. Apesar das legendas que indicam um
tempo preciso e lógico, o filme move-se, ou permanece, em uma temporalidade
própria, que não está fora, mas dentro do abismo do inconsciente.
O tempo é quase uma obsessão na obra dos surrealistas. É só pensarmos nos
relógios de Dalí ou mesmo na suspensão do tempo presente em De Chirico. “Aux
yeux des surréalistes, le temps doit apparaître moins comme une succession d’é-
vénements que comme un événement éternellement prolongé”266. O que os sur-
realistas pretendiam era expor o tempo onírico em detrimento do tempo real, o

7 ¡Ya vienen por las rampas!!Levántate del agua!


¡Cada punto de luz te dará una cadena!
...que no desemboca.

8 Pero el pozo te alarga manecitas de musgo,


insospechada ondina de su casta ignorancia.
...que no desemboca.

9 No, que no desemboca. Agua fija en un punto,


respirando con todos sus violines sin cuerdas

en la escala de las heridas y los edificios deshabitados.


…¡Agua que no desemboca!

265
G. Siebenmann, op. cit., p. 341.
266
Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 570.
MIRIAN TAVARES

que permitia uma reatualização “de l’enfance, de l’âge d’or, des pouvoirs per-
dus”267. Com a possibilidade de cristalizar o tempo, torná-lo liquefeito, a aventura
surrealista inscreve-se in illo tempore, porque se pretende eterna.
Apesar de, na poesia de Lorca, não se detectarem, com frequência, elemen-
tos característicos do surrealismo francês, sempre que se observam apresentam
90 uma cor local que irá demarcar uma certa distância entre ambos. Atrever-nos-
íamos a dizer que o surrealismo espanhol viveu de uma práxis poética, enquanto
que o francês foi mais real em seus manifestos268. De qualquer maneira, há uma
busca em comum que direciona as suas obras: o paraíso perdido. Resta-nos ana-
lisar se a ideia de paraíso era a mesma para todos os surrealistas.

III.1.3. O paraíso perdido na geração de 27


Rafael Alberti invoca o paraíso perdido em um poema intitulado “Sobre los
ángeles” (1929), obra que causa algumas controvérsias quanto à sua classificação
como surrealista, mas onde é possível encontrar elementos claramente ligados às
ideias de Breton:

A través de los siglos,


por la nada del mundo,
yo, sin sueño, buscándote.

Tras de mí, imperceptible,


sin rozarme los hombros,
mi ángel muerto, vigía.

¿Adónde el Paraíso,
sombra, tú que has estado?
Pregunta con silencio.

Ciudades sin respuesta,


ríos sin habla, cumbres
sin ecos, mares mudos.

Nadie lo sabe. Hombres


fijos, de pie, a la orilla
parada de las tumbas,

me ignoram. Aves tristes,


cantos petrificados,
en éxtasis el rumbo,

267
Ibidem.
268
Para obter-se um panorama mais completo da discussão acerca desta obra de Lorca, ver Carlos
Marcial de Onís, op. cit., pp. 92-95.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

ciegas. No saben nada.


Sin sol, vientos antiguos,
inertes en las leguas
por andar, levantándose
calcinados, cayéndose
de espaldas, poco dicen.
91

Diluidos, sin forma


la verdad que en sí ocultan,
huyen de mí los cielos.

Ya en el fin de la Tierra,
sobre el último filo,
resbalando los ojos,

muerta en mí la esperanza,
ese pórtico verde
busco en las negras simas.

¡Oh boquete de sombras!


¡Hervidero del mundo!
¡Qué confusion de siglos!

¡Atrás, atrás!!Qué espanto


de tinieblas sin voces!
¡Qué perdida mi alma!

- Ángel muerto, despierta.


¿Dónde estás? Ilumina
con tu rayo el retorno.

Silencio. Más silencio.


Inmóviles los pulsos
del sinfín de la noche.

¡Paraíso perdido!
Perdido por buscarte,
yo, sin luz para siempre.269

Apesar de não encontrarmos neste poema de Alberti a supressão da pontua-


ção típica dos poemas surrealistas, detectamos, além do tema em si, o paraíso
perdido, inumeráveis traços do imaginário surrealista. A saber, logo no primeiro
verso, “A través de los siglos”, deparamo-nos com a indefinição e ao mesmo tempo
269
Op. cit., p. 96.
MIRIAN TAVARES

uma ideia de continuidade temporal que é a marca do tempo surrealista. Além


desta marca que atravessa todo o poema, há ainda imagens de degradação, inco-
municabilidade, imobilidade, aves cegas, e as sombras que pairam sobre tudo,
porque o poeta, impotente, já não alcança o paraíso.
O paraíso perdido de Alberti remete-nos, por exemplo, ao universo plástico
92 de Max Ernst, em 2 Enfants sont menacés par un rossignol, considerada uma obra
capital do artista alemão, data do mesmo ano do I Manifesto do Surrealismo. A
utilização de uma técnica mista, em que o contraste dos elementos materiais é
evidente, é fundamental para compreender a própria obra: o quadro projeta-se
para fora do espaço plástico, fazendo uma ponte entre o interior e o exterior do
quadro e do pintor, que esboça elementos presentes na mitologia surrealista,
como as figuras sem olhos, que vão em direções opostas, mas sem de fato saírem
do lugar, causando a suspensão do movimento, que é um não-movimento ou a
impossibilidade da fuga. A ameaça é um pássaro, presença constante no bestiário
surrealista. Um pássaro minúsculo que só poderia tornar-se ameaçador no espaço
onírico-plástico evocado por Ernst270.
Em Ernst, não só na obra citada, mas em praticamente todo seu trabalho, as
muralhas erguidas, as figuras sem olhos, o espaço vazio povoado por uma sombra
suspensa que paira ameaçadora, sem sabermos de onde ela vem, remetem-nos
a um objetivo: salvar a infância (o paraíso perdido) da ameaça maior da incerteza
e do caos que vigiam, muito de perto, o mundo. A ideia de incomunicabilidade,
presente em Ernst, eiva o poema de Alberti, e é reiterada através dos “mares
mudos”; “cantos petrificados”; “cumbres sin ecos”.
Conforme Argan, “L’universo d’immagini di Ernst è quello del sogno: le ima-
gini oniriche sono labili, insostanziali, incoerenti, irriferibili soprattutto. [...] Più che
un sognatore è un fabbricante d’immagini sulla trama inconsistente dei sogni.”271
Um fabricante de imagens, que constrói uma aparente não construção – o auto-
matismo em Ernst é o do efeito e não necessariamente o da consecução – o que
vem a ser precisamente o caso dos surrealistas espanhóis.
As imagens de Lorca também estão presentes em Ernst, em Alberti, em Bu-
ñuel. Se tomarmos como exemplo “Oda al rey de Harlem”, encontramos imagens
que são freqüentes na poesia visual de Buñuel:
Con una cuchara,

270
“En 1924, Ernst signe un tableau capital: Deux Enfants sont menacés par un rossignol où le contraste
des éléments matériels (barrière, bouton, manette) et des éléments peints témoigne de la colla-
boration de l’externe et de l’interne: les figures - l’homme penché et instable, comme dans les
chutes et les lévitations oniriques - les petites filles qui s’enfuient investissent trop de significations
pour qu’on puisse croire que le peintre n’ait pas attendu et même réglé le spetacle auquel il semble
avoir seulement assisté.” (Gaëtan Picon, op. cit., p. 96). Esta obra de Ernst foi largamente analisada
por vários críticos, não iremos aqui proceder a um desvendamento (impossível) dela, mas elencar
alguns elementos que a aproximam da poesia de Alberti e mesmo do cinema de Buñuel. (Para
uma análise mais detalhada ver Jean-Paul Clébert, op. cit., pp. 243-251; Giulio Carlo Argan, “Il
sublime subliminale di Marx Ernst”, op. cit., pp.13-25).
271
Giulio Carlo Argan, op. cit., p. 16.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

arrancaba los ojos a los cocodrilos


y golpeaba el trasero de los monos.
Con una cuchara.

Fuego de siempre dormía en los pedernales


y los escarabajos borrachos de anís
93
olvidaban el musgo de las aldeas.

[...]

Es preciso matar al rubio vendedor de aguardiente,


a todos los amigos de la manzana y de la arena,
y es necesario dar con los puños cerrados
a las pequeñas judías que tiemblan llenas de burbujas,
para que el rey de Harlem cante con su muchedumbre,
para que los cocodrilos duerman en largas filas
bajo el amianto de la luna,
y para que nadie dude de la infinita belleza
de los plumeros, los ralladores, los cobres y las cacerolas de las
cocinas. 272

“Con una cuchara”… Os olhos do crocodilo eram arrancados, enquanto o olho


é cortado por uma navalha em Un chien andalou. O olho cortado e a lua atraves-
sada pelas nuvens são imagens circulares que reiteram a ideia de uma rima plás-
tica no filme de Buñuel. As formas circulares no filme não possuem apenas o
significado imediato, mas revelam a própria construção centrípeta do filme: são
círculos em movimento de fuga para dentro de si mesmos. O olho é emblemático
em Buñuel – um corte que convida a todos a olhar para dentro. Em Lorca e Buñuel
há uma mutilação – do olho. E há a lua, além de um convite para sair-se do coti-
diano e enfrentar os demônios inconscientes.
Em “Luna y panorama de los insectos”, de Lorca, onde o poeta contempla-se
a si mesmo devorado pelos insetos, encontramos de novo a lua e os insetos (como
o escaravelho do poema anterior, que aparece também em L’Âge d’or):

Los insectos,
Los muertos diminutos por las riberas,
dolor en longitud,
yodo en un punto,
las muchedumbres en el alfiler,
el desnudo que amasa la sangre de todos
y mi amor que no es un caballo ni una quemadura,
criatura de pecho devorado. […].

272
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, pp. 236 e 238.
MIRIAN TAVARES

Poeta en Nueva York não é uma obra fácil. Para alguns críticos está acima da
produção de Lorca, enquanto que para outros não passa de um equívoco273. Carlos
Marcial de Onís, no entanto, tem uma visão do livro, que, para nós, está muito
próxima do modo surrealista de se estar no mundo: “la ideia obsesionante que
penetra agudísimamente todo el libro, es la ideia de que sólo a través del amor
94 por lo elemental y lo puro, por lo espontáneo de la vida, es posible la salvación
del mundo moderno”274.
Em “Oda al rey de Harlem”, e em todo o livro, está presente a ideia do paraíso
perdido, que de certa forma o poeta acha que reencontra quando chega a Cuba:

Cuando llegue a la luna llena,


iré a Santiago de Cuba,
iré a Santiago
en un coche de aguas negras.

[…]

Iré a Santiago.
Brisa y alcohol en las ruedas.
Iré a Santiago.
Mi coral en la tiniebla.275

A ideia de mutilação, presente em Buñuel (e em Lorca e Alberti), aparece cla-


ramente em “La canción del oeste”, de Cernuda:

Jinete sin cabeza,


Jinete como un niño buscando entre rastrojos
Llaves recién cortadas,
Víboras seductoras, desastres suntuosos,
Navíos para tierra lentamente de carne,
De carne hasta morir igual que muere un hombre

A lo lejos
Una hoguera transforma en ceniza recuerdos,
Noches como una sola estrella,
Sangre extraviada por las venas un día,
Furia color de amor,
Amor color de olvido,
Aptos ya solamente para triste buhardilla. […]276

273
Para obter-se um panorama mais completo da discussão acerca desta obra de Lorca, ver Carlos
Marcial de Onís, op. cit., pp. 92-95.
274
Op. cit., p. 96.
275
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 302. O poema intitula-se “Son de negros
en Cuba.”
276
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 434.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

“Llaves recién cortadas”… A chave tem um peso simbólico muito importante


na obra de Breton: “le symbolisme de la clé est constamment employé par Breton
dans ses poèmes et ses textes théoriques. Il était obsédé par l’Ouvert comme il
l’etait par le Transparent. Il croyait que le dynamisme intellectuel de l’homme avait
pour fonction de s’attaquer à tous les systèmes de fermeture”277. Em Cernuda as
chaves estão cortadas, a abertura está interdita, porque o desejo do poeta está 95
distante, no tempo e no espaço, e só resta a ele a rememoração.
A memória é um fio que conduz a poesia dos surrealistas espanhóis. Memó-
rias reais e obsessivas de algo que está longe e já inalcançável. Estes versos de
Cernuda (do poema “Daytona”) traduzem bem a visão de um paraíso, do qual ele
já não possui as chaves:

Hubo un día en que el día no engañaba,


En que sus manos tristes no sostenían un cuervo
Indiferente como los labios de la lluvia,
Como el rojizo astío.

Mas hoy es imposible


Buscar la luz entre barcas nocturnas;
Alguién cortó la piedra en flor,
Sin que pudiera el mundo
Incendiar la tristeza. […]278

Em Vicente Aleixandre encontramos também a mémoria como fio condutor,


mesmo que seja feita de recordações nitidamente surrealistas, em que os objetos
mais díspares encontram-se para formar lembranças afetivas:

Me acuerdo que un día una sirena verde del color


de la luna sacó su pecho herido, partido en dos como
la boca, y me quiso besar sobre la sombra muerta,
sobre las aguas quietas seguidoras. Le faltaba otro
seno. No volaban abismos.279

Em busca de um tempo perdido como o motor proustiano, se bem que com


matizes diferentes. Em um importante estudo comparativo sobre Proust e Lezama
Lima, Álvaro Manuel Machado afirma que “para Lezama Lima a memória, muito
mais que um elemento meramente psicológico, é antes de mais uma memória an-
cestral através da qual o autor procura exprimir a desmedida do invisível no visível,
o rasto do sobrenatural na natureza”280. Memória e memória ancestral são dois
277
S. Alexandrian apud Jean-Paul Clébert, op. cit., p. 155.
278
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 406.
279
Apud Onís, op. cit., p. 284.
280
Álvaro Manuel Machado, Introdução à Literatura Latino-americana Contemporânea, Lisboa, Ed.
Presença, 1979, p. 23.
MIRIAN TAVARES

conceitos habilmente utlizados pelo autor que nos permitirão apontar algumas
conclusões. Ainda que este crítico considere a segunda um atributo da literatura
latinoamericana, com a devida distância é possível afirmar que na literatura sur-
realista espanhola existe uma participação desta Edad del oro281, se bem que haja
uma fusão desta edad com uma visão utópica do homem e da natureza.
96 No mesmo livro, Machado, ao citar Cioranescu, ajuda-nos a mostrar porque
não é possível simplesmente incluir os textos surrealistas destes autores da Gera-
ção de 27 no marco do utópico: “l’utopie, en sa qualité de véhicule d’idées, invite
à la reflexion plutôt qu’au rêve e ne solicite l’imagination que pour l’appliquer et
la réduire a la raison”282. O movimento pendular entre memória e memória an-
cestral, assim como entre Edad del oro e utopia, está presente na poética dos sur-
realistas espanhóis aqui mencionados, bem como na obra de Buñuel.
Para Luis Cernuda, que um dia escreve sobre a ideia que tinha do Éden numa
revista madrileña dos anos 20, Cruz y Raya, o paraíso edénico localizava-se na An-
daluzia e traduzia, para o poeta, a ideia de felicidade. Corresponderá “Daytona” a
este paraíso andaluz? Não é possível afirmá-lo ao certo, mas pode-se dizer que a
visão paradisíaca de Cernuda tem os pés fincados à terra:

Solo un lugar existe, cuyos días


nada saben de aquello,
aunque todo allí sea mortal, el miedo hasta las plumas;
mas las olas abrazan
a tanta luz aún viva.283

Afirma-se a existência do paraíso em um só lugar, ainda que apareça no


mesmo poema: “Hubo un día en que el día no engañaba, [...] Mas hoy es imposible
buscar la luz entre barcas nocturnas”. Como muito bem assinalou José Luis Cano284,
em Cernuda a visão do paraíso oscila entre uma visão edênica de sua terra en-
quanto paraíso humano e uma visão pagã intimamente helênica. Assim é possível
entendermos a alusão ao barqueiro da noite em um poema definidor dos atributos
do jardim perdido. Para Cernuda, a perda do paraíso situa-se num forçado exílio
imposto por uma guerra. No momento em que alguém “cortó la piedra en flor”,
sem que esta mesma flor pudesse dar seus frutos prometidos corta-se toda a pos-
sibilidade de continuação da vida. Fica, no entanto, como vimos, um lugar, real ou
desejado. A luz segue iluminando:

281
Álvaro Manuel Machado entende por Edad del oro o período em que o conquistado (o Inca, o
Azteca, etc.) ainda não havia sofrido as pragas emanadas do conquistador. Este termo é aqui
utilizado para diferenciar a visão nostálgica intelectualizada da verdadeira imaginação.
282
Cioranescu apud Álvaro Manuel Machado, op. cit., p. 18.
283
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 406.
284
José Luis Cano, La poesía de la generación del 27, Madrid, Gredos, 1970.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

[...] desbordando en la arena


desbordando en las nubes, desbordando en el tiempo,
que dormita sin voz entre las ramas.

Esta visão de um tempo suspenso tem uma importância transcendental: um


tempo que transcorre sem transcorrer, antagônico à velocidade imposta pela so- 97
ciedade moderna. O tempo suspenso de Cernuda remete-nos ao conceito de mon-
tagem invisível de Buñuel – a aparente ausência de movimiento não significa que
este não esteja presente de uma maneira muito mais sutil, relacionando-se mais
aos movimentos internos que aos acontecimentos externos.
Mais amplamente delimita-se o paraíso em Aleixandre e Alberti. A postura
do primeiro no que diz respeito aos operadores homem-natureza já foi ampla-
mente debatida. Aqui nos distanciamos de todos aqueles que falam do neorro-
mantismo aleixandriano. Acreditamos que Aleixandre, em grande parte de sua
obra, foi um consequente surrealista. A natureza não é neste poeta uma caixa de
ressonância, senão partícula de um todo (o cosmos) no qual se inclui o homem. E
esta é precisamente a sua visão paradisíaca:

Entre las flores silvestres recogisteis cada mañana


el último, el pálido eco de la postrer estrella.
Bebisteis ese cristalino fulgor
que como una mano purísima
dice adiós a los hombres detrás de la fantástica presencia
montañosa.285

Sua visão do Éden é ainda mais palpável: “cuando la vida sonaba en las gar-
gantas felices / de las aves, los ríos, los aires y los hombres”. Dos quatro poetas
aqui referidos é este também o que mais inspiração encontra, em seu ideário pa-
radisíaco, no Génesis:

Iahweh Deus plantou um jardín em Éden, no oriente, e aí colocou o


homem que modelara. Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie
de árvores formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no
meio do jardim, e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Um
rio saía de Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando qua-
tro braços. (…). Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim
de Éden para o cultivar e o guardar. E Iahweh Deus deu ao homem
este mandamento: Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas
da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás, porque
no dia em que dela comeres terás que morrer.286

285
Vicente Aleixandre, Poesías completas, Madrid, Aguilar, 1960, p. 74.
286
Génesis 2, 8-17, Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Ed. Paulus, 2002, p. 36.
MIRIAN TAVARES

A vegetação luxuriante do jardim perdido assim como as funções vitais dos


elementos são uma constante na poesia de Aleixandre. Claro que também a ve-
getação deste poeta corresponde ao mundo andaluz:

Desde esta tierra esteparia veo la curva


98 de los dulces naranjos. Allí libre la palma,
el albérchigo, allí la vid madura,
allí el limonero que sorbe al sol su jugo agraz en la
mañana virgen.287

O rio bíblico tem também sua correspondência na obra deste autor. Não po-
demos deixar de notar que da mesma maneira em outras cosmogonias o céu é
condição sine qua non da vida, da fertilidade e do alimento. Não somente nestes
pontos é possível encontrar paralelismos entre o Génesis e Aleixandre. Na Bíblia,
Deus ordena ao homem que lavre e cuide do jardim; em Aleixandre, os filhos do
campo são confundidos com Adão288. Há como que uma secreta harmonia e en-
tendimento entre os filhos de Adão e o paraíso. O mesmo Aleixandre dirá neste
poema:

Yo os veo como la verdad más profunda,


modestos y únicos habitantes del mundo,
última expresión de la noble certeza,
por la que todavía la tierra puede hablar con palabras.

Fusão íntima e perfeita, último enlace que permite a comunicação cósmica.


É importante, porém, sublinhar, que, em Aleixandre, com exceção de “Hijos
del campo”, somente o poeta entrevê o paraíso. Em Cernuda esta postura é ainda
mais radical: o poeta-daimon, pelo seu carácter visionário, alcança a consciência
do paraíso perdido. Em Aleixandre esta visão opera-se através de duas memórias:
uma, a mais abundante em referências, a qual designaremos a partir do já men-
cionado estudo de Álvaro Manuel Machado, memória individual. O recordar uma
infância cujos olhos inocentes formaram imagens do paraíso; em outras palavras,
o presente rememora um passado florescente, livre de angústias, totalizador, cós-
mico. Curioso é que os hijos del campo sejam tachados de ignorantes e sabios del
vivir. Infância, inocência, ignorância e sabedoria, filhos do campo. O homem antes
da queda tinha a propriedade de comunicar-se com os elementos, era sábio, ape-
287
Vicente Aleixandre, “El río”, op. cit., p. 115.
288
Em “Hijos del campo”, poema de Aleixandre, temos:

Vosotros los que consumís vuestras horas


en el trabajo gozoso y amor tranquilo pedís al mundo,
día a día gastáis vuestras fuerzas, y la noche benévola
os vela nutricia, y en el alba otra vez brotáis enteros. (Vicente Aleixandre, “El río”, op. cit.)
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

sar de não haver comido da árvore da ciência. Assim temos que ignorância e in-
genuidade se assemelham, confundindo-se mesmo com sabedoria.
Como uma grande chave que encerrará em si todos estes conceitos, está a
luz, elemento primeiro da Criação, elemento defensor do paraíso que em Aleixan-
dre fala da Edad del oro; o sol desperta no poeta a memória ancestral.
Em Alberti encontramos a definição do paraíso em “Tres recuerdos del cielo”, 99
poema de Sobre los ángeles:

No habían cumplido años ni la rosa ni el arcángel.


Todo, anterior al balido y al llanto.
Cuando la luz ignoraba todavía
si el mar nacería niño o niña.
Cuando el viento soñaba melenas que peinar
y claveles en fuego que encender y mejillas
y el agua unos labios parados donde beber.
Todo, anterior al cuerpo, al nombre y al tiempo.
Entonces, yo recuerdo que, una vez, en el cielo[...]289

Alberti definiu o paraíso como um estado mais que um lugar. Claro que o
lugar – o céu – é designado; no entanto deverá ser entendido como espaço sim-
bólico, como elemento de ascensão e não como topos. Pressentimos neste pró-
logo um estado pré-natal em que o sexo, o corpo, o nome, em síntese, a forma,
todavia não fora criada. Espaço do sonho, tempo mítico que necessita de um his-
tórico una vez (recordemos Cernuda: “Hubo un tiempo”...) suficientemente am-
bíguo para mediar uma eternidade e um presente. Mais uma vez aparece a luz
presidindo a Criação.
Mas se em Cernuda, Aleixandre e Alberti encontramos claras visões do pa-
raíso, Éden estabelecido como produto de uma memória, como aspiração e desejo
da Edad del oro, em Lorca, como já vimos, este lugar constrói-se em oposição ao
mundo degradado que envolve o homem. O paraíso pode estar em Santiago de
Cuba, nunca em Nova York. Assim existe uma visão profética mais que uma nos-
talgia do paraíso. Apesar de que em alguns casos, como o citado poema “Oda al
rey de Harlem”, há uma memória ancestral do negro novaiorquino, que, para o
poeta, aspira a sua velha África290. García Lorca forja o paraíso por antítese a Nova
York, cidade que “encarna la forma extrema de la negación de lo especificamente
humano, de la libertad y del amor”291.

289
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 174.
290
Ao analisar o poema em questão, Carlos Marcial de Onís afirma: “Según mi interpretación, Lorca
está descubriendo y visualizando, más bien, materializando, una realidade espiritual de los negros
de Harlem: seres elementales que, por debajo de la capa impuesta por la civilización, tienen una
esencia selvática y primitiva.” (Op. cit., p. 112).
291
Emilia de Zuleta, Cinco poetas españoles, Madrid, 1971, p. 253.
MIRIAN TAVARES

Se existe a nostalgia por um paraíso ou se se visiona profeticamente este


lugar, é porque algo mudou nas relações que o homem estabeleceu com o cosmos
e consigo mesmo. Por isto creio poder considerar que na sociedade atual se al-
cançou o limite mesmo da amputação do humano. Isso não quer dizer que as teo-
rias orteguianas da desumanização da arte possam ser aplicadas aqui, pelo
100 contrário. Neste caso pode-se dizer que a humanização da arte é inversamente
proporcional à degradação do homem.
Em sua mutilação, o homem, de inserido em uma criação, passa a incompa-
tibilizar com ela, alterando as leis fundamentais que regeram o princípio criador.
Há o enfrentamento com a natureza. Como resultado desta subversão ao natural,
através dos séculos vem sendo processada uma lenta degradação não somente
do ser pensante como também da própria natureza. A natureza já não é o refúgio,
como o foi perante uma visão neorromântica e neobarroca que subsistia ainda
neste período.
Escreveu Breton, certa vez, que “l’homme originellement en possession de
certaines clés qui le gardaient en communion étroite avec la nature, les a perdues
et, depuis lors, de plus en plus febrilement s’obstine a en essayer d’autres qui ne
vont pas”292. A degradação nos poetas surrealistas espanhóis, principalmente em
Cernuda, pode-se considerar um fato. (Basta só pensarmos em “La canción del
oeste”).
Alberti, Aleixandre e Cernuda falam da degradação como um estado, uma
atitude. Mas nunca as palavras deles logram a violência lorquiana. Em Lorca, ela
alcança uma dimensão desmesurada. Em Poeta en Nueva York a visão do inferno
é acentuada por meio de distorções. Cessa por completo a vida. O vômito, a fu-
maça, a velocidade, a podridão, engendram um ritual de crueldade e sangue. Em
“Vuelta del paseo”, García Lorca retira ao homem quatro dos seus cinco sentidos:

Con el árbol de muñones que canta


y el niño con el blanco rostro de huevo.

Con los animalitos de cabeza rota


y el agua herapienta de los pies secos.293

O menino está privado de seus olhos, orelhas, nariz e boca. A árvore mutilada
já não tem onde acolher o canto dos pássaros, os animais estão feridos e a água,
que deveria regar o paraíso, está podre, impura, infecta. Este poema funciona
como prólogo de uma visão obsessiva e febril da degradação que amputou o
mundo. A mutilação é o mote de uma civilização que do paraíso só tem a memória.
Da mesma forma que na natureza os órgãos das espécies sofrem alterações que
permitem uma melhor sobrevivência, o mesmo ocorre ao homem da cidade. É
292
André Breton, Entretiens, Paris, Gallimard, 1952, p. 248.
293
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 232.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

melhor ser autômato, sem olhos, ouvidos ou olfato que cheirar os excrementos,
ouvir os gritos e sentir o sabor da “selva del vómito”. Só lhes resta esperar pela
destruição:

que ya las cobras silbarán por los últimos pisos,


que ya las ortigas estremecerán patios y terrazas, 101
que ya la Bolsa será una pirámide de musgo,
que ya vendrán lianas después de los fusiles.294

São muitas as dificuldades que se colocam ao homem em sua busca do pa-


raíso perdido. O silêncio, a incomunicabilidade entre os seres, as barreiras e/ou
petrificações que condicionam o movimento, os profundos abismos que magne-
ticamente atraem impedindo a ascensão... chegamos ao momento da solidão e
da angústia que, se bem que manifestada com diferente intensidade nos distintos
poetas estudados, encontra eco em todos eles:

ciudades sin respuesta,


ríos sin habla, cumbres
sin ecos, mares mudos295.

Dentro da temática das barreiras, Sobre los ángeles, de Alberti, desempenha


um papel fundamental, já que este tema encontra aí sua mais completa definição.
Associa-se sempre petrificação como sinônimo de morte. A questão da perda dos
sentidos alcança em Alberti uma das visões mais dramáticas. A ave, habitante do
paraíso, por toda uma simbologia da beleza, harmônica sonoridade e leveza, em
“Paríso perdido”, aparece petrificada em seu canto e cega. O homem encontra-se
também petrificado como a morte mesma, a morte cósmica e por este motivo as
brechas, as profundidades, os poços sem ar aparecem frequentemente neste poeta.
Em Aleixandre podemos dizer que a petrificação quase não existe. A degra-
dação do homem engendrará a incomunicabilidade resultante da perda do diálogo
com a natureza. Até o regresso do homem à terra não poderá nunca ser conside-
rado como petrificação ou encarceramento. É somente uma fusão com tudo o que
de positivo possui este conceito. Quais serão, então, as consequências da queda?
(Talvez nunca se haja pronunciado com tanta propriedade esta palavra, posto que
o que o homem perdeu foi a capacidade de se comunicar com as alturas):

He aquí que por fín llega al verbo también el pequeño escarabajo,


tristíssimo minuto,
lento rodar del día miserable,
diminuto captor de lo que nunca puede aspirar al vuelo296

294
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 254.
295
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 80.
296
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 320.
MIRIAN TAVARES

Em “El escarabajo” existe uma memória – opaca297- que lhe recorda que um
dia fue de oro, quer dizer, membro da luz. No entanto, orgulhoso do seu passado,
não pretende ser confundido con una mariposa. O escaravelho tem asas, asas que
foram, mas já não são. Tem o duro caparazón que lhe impede de voar.
O tema do paraíso perdido (e da consciência da perda) é a tônica das visões
102 poéticas de Alberti, Cernuda, Aleixandre e Lorca, obsessão culturalmente entra-
nhada no homem e compartilhada vivamente por estes quatro poetas da Geração
de 27. Toda consciência obriga à ação e, a partir do momento em que se conhece
a perda, passa-se a desejar o perdido e a tentar recuperá-lo. Assim, Alberti escreve:

Te invito sombra, al aire.


Sombra de veinte siglos,
a la verdad del aire,
del aire, aire, aire.
Sombra que nunca sales
de tu cueva, y al mundo
no devolviste el silbo
que al nacer te dió el aire,
el aire, aire, aire.
Sombra sin luz, minera
por las profundidades
de veinte tumbas, veinte
siglos huecos sin aire, sin aire, aire, aire.
¡Sombra, a los picos, sombra
de la verdad del aire,
del aire, aire, aire!298

297
O adjetivo “opaco” corresponde sempre a um depois ou a um tempo posterior ao paraíso.
298
Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 116.
III.2. BUñUEL E OS SURREALISTAS ESPANHÓIS
Ao longo deste trabalho aponto algumas obsessões que são constantes na
obra dos quatro poetas da Geração de 27, tais como: o paraíso perdido, a mutila-
ção, as estátuas, a idade do ouro, os insetos e outros animais que participam de
um bestiário também presente no surrealismo francês, referências religiosas e
103
místicas. Enfim, elementos que ligam, apesar das diferenças, a poesia de Lorca,
Alberti, Cernuda e Aleixandre. Ao analisarmos o cinema de Buñuel, acabamos por
deparar-nos com praticamente todas esta obsessões, que, apesar de participarem
também da cosmogonia do surrealismo francês em alguns momentos, estão mais
presentes na obra dos espanhóis, principalmente porque esta obra reitera o tempo
inteiro a sua hispanidad299.
Max Morise, em uma crônica já citada anteriormente, diz: “Ce que l’écriture
surréaliste est à la littérature, une plastique surréaliste doit l’être à la peinture, à
la photographie, à tout ce qui est fait pour être vu.”300 Vimos que a plástica sur-
realista espraia-se por todas as artes, sendo a mesma tanto na pintura quanto na
literatura e no cinema. O cinema de Buñuel realiza plasticamente uma certa lite-
ratura, que não é só dos seus compatriotas, mas de sua própria poesia, escrita
antes de tornar-se um realizador de cinema301.
Em suas memórias, Buñuel recorda o período passado na Residência de Es-
tudantes em Madrid, importante ponto de encontro entre os elementos das van-
guardas espanholas, onde, por exemplo, foi realizada a conferência de Aragon,
um dos marcos da entrada oficial do surrealismo em Espanha. Local também onde
Buñuel conheceu e tornou-se amigo de Lorca e Dalí. Vários episódios vividos por
Buñuel na Residência transformaram-se em cenas de filmes futuros. Naqueles
dias, porém, o cinema ainda não era o centro de suas atenções, mas sim a litera-
tura, que ele confessa ter conhecido mais profundamente pelas mãos de Lorca:
“Juntos, los dos solos o en compañía de otros, pasamos horas inolvidables. Lorca
299
Juan Francisco Aranda, em um ensaio sobre a realização de Un chien andalou, tece o seguinte co-
mentário: “Il nous reste à mentionner le caractère espagnol d’Un chien andalou, aspect qui n’a pas
été étudié par la critique étrangère et auquel je me suis référé dans mon livre Cinéma d’avant-
garde en Espagne. La confusion de l’espace et du temps, parallèlement au fondement théorique
auquel nous avons déjà fait allusion, constitue également une tradition importante du théâtre et
du roman espagnol. La nervosité rythmique est typiquement latine. La brutalité est caractéristique
de notre art.” Aranda complementa ainda o seu raciocíno, lembrando que a técnica de choque uti-
lizada por Buñuel, com a utilização de cenas de impacto violento das quais o espectador não pode
retirar qualquer prazer, onde não há preocupação com a beleza estética, é também uma caracte-
rística da arte tradicional espanhola. (Juan Francisco Aranda, “La réalisation d’Un chien andalou”,
Revue belge du cinéma, 33-35, 1993, p. 20).
300
Max Morise, op. cit., p. 26.
301
“En el principio fue la palabra, por lo menos en el caso de Buñuel. Su carrera artística se inicia en
la literatura [...]. Sus comienzos están ligados a los planteamientos propios de la vanguardia
española de aquel momento, y llevan la huella de uno de sus pioneros y divulgadores más desta-
cados.” (Antonio Monegal, Luis Buñuel - de la literatura al cine, Barcelona, Anthropos, 1993, p. 25).
É óbvio que os “planteamientos” [...] de la vanguardia española” são os da etapa surrealista da Ge-
ração de 27.
MIRIAN TAVARES

me hizo descubrir la poesía, en especial la poesía española, que conocía admira-


blemente, y también otros libros.”302
O tosco aragonês, como o próprio Buñuel se define, encantou-se com o refi-
nado andaluz e esta amizade fez com que o cineasta fosse transformando-se “poco
a poco ante un mundo nuevo que él iba revelándome día tras día.”303 Buñuel re-
104 conhece-se ainda participante da Geração de 27, não escondendo a sua admiração
por vários poetas, que, como ele, fizeram parte deste movimento, como Alberti,
que também conviveu, em Madrid, com os poetas da Residência. Aliás, Buñuel
conta que Alberti era conhecido como pintor e que foi Dámaso Alonso que lhe
disse um dia: ¿Sabes quién es un gran poeta? ¡Alberti!”304
É importante observarmos que, antes de Buñuel entrar para o surrealismo
francês, foi fortemente influenciado pelo clima geral que se vivia então em Espa-
nha, não só através da Geração de 27, mas também pelas mãos de importantes
figuras como Ramón Gómez de la Serna305. Antonio Monegal, ao falar da relação
entre o mestre da greguería e Buñuel, afirma que: “La herencia más permanente
de Gómez de la Serna en la obra de Buñuel se encuentra en su anti-simbolismo,
que conecta con la intranscendencia de la que habla Ortega, porque la greguería
puede ser metafórica, pero difícilmente simbólica.”306
Se Buñuel utiliza a greguería em seu sentido mais pleno (o humor como
forma de subversão), segundo Augustín Sánchez Vidal ele acaba por ultrapassar
o mestre ao dar o salto definitivo em direção ao surrealismo307. No entanto, para
Sánchez Vidal, a influência de Gómez de la Serna em autores da Geração de 27 é
inegável, mesmo que alguns, como Alberti, procurem ressaltar um certo distan-
ciamento entre eles: “A Ramón yo lo traté poco, como a casi todos los escritores
de las generaciones precedentes a la mía.”308. Cernuda, pelo contrário, reconhece
a influência das greguerías na poesia espanhola contemporânea, “restituyendo a
Ramón el reconocimiento que otros le niegan, en su papel de puente entre las
vanguardias europeas y el ambiente literario hispánico.”309
302
Luis Buñuel, Mi ultimo suspiro, Barcelona, Plaza & Janés Editores, 1982, p. 72.
303
Op. cit., p. 71.
304
Op. cit., p. 70.
305
“Novelista, inventor de la greguería y figura central de la vanguardia española. Fernández Almagro
habló, en un artículo memorable de comienzos de los años veinte, de la ‘generación unipersonal
de Ramón Gómez de la Serna’: una manera de subrayar lo incatalogable que resulta este escritor
[...]” (Juan Manuel Bonet, op. cit., p. 298).
306
Antonio Monegal, op. cit, p. 38. Monegal utiliza-se ainda das palavras de Max Aub para marcar a
distância entre a greguería e o simbolismo: “La greguería es una forma de no tomarse la vida en serio.
No se trata de simbolismo; quien diga que el cine de Buñuel está lleno de símbolos no sabe lo que dice;
si dijera que está lleno de greguerías, estaría en lo cierto.” (Max Aub apud Antonio Monegal, ibidem).
307
“Precisamente, la importancia de la obra literaria de Buñuel reside en haber dado ese paso hasta
el surrealismo que Ramón no pudo, no quiso o no supo dar.” (Augustín Sánchez Vidal, Buñuel,
Lorca, Dalí: el enigma sin fin, Barcelona, Planeta, 1996, p. 100).
308
Alberti apud Augustín Sánchez Vidal, ibidem.
309
Augustín Sánchez Vidal, ibidem. Este mesmo autor vai ainda detectar a presença de Gómez de la
Serna na obra de Dalí. Além das greguerías visuais, Dalí também as utilizava em seus escritos. Como
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

O primeiro filme que Buñuel pensou em realizar seria baseado em um roteiro


de Ramón Gómez de la Serna. Mas antes da entrada no cinema, Buñuel escreveu
um poema que, segundo J. F. Aranda, “Estilisticamente, é uma homenagem, mais
do que um plágio, às famosas Greguerías de Ramón Gómez de la Serna, frases
breves ou aforismos metafóricos cujas premissas conduziam a uma conclusão não
coerente, de absurdo ou humor.”310 O poema intitulado “Instrumentação” foi pu- 105
blicado na revista de vanguarda Horizonte:

INSTRUMENTAÇÃO
para Adolfo Salazar

Violinos
Meninas pirosas da orquestra, insuportáveis e pedantes.
Serras de som.

Violas
Violinos que já chegaram à menopausa. Estas solteironas
ainda conservam bem sua voz de meia tinta.

Violoncelos
Rumores de selvas e de mar. Serenidade. Olhos profundos.
Têm a persuasão e a grandeza dos discursos de Jesus no deserto.

Contrabaixos
Diplodocus dos instrumentos. O dia em que se decidam
a dar o grande berro, pondo em fuga os espectadores espavoridos!
Actualmente, vêmo-los cabecear e grunhir de contentes
com as cócegas que os contrabaixistas lhes fazem na barriga.

Flautim
Formigueiro do som.

Flauta
A flauta é de todos os instrumentos o mais nostálgico.
Ver-se nas mãos de um bom senhor gordo e calvo, ela que,
nas de Pã, era a voz emocionada da pradaria e do bosque!
Mesmo assim continua a ser a princesa dos instrumentos.

por exemplo em Vida secreta: “Lisboa, bajo el frenético canto de los grillos, era una especie de
sartén gigantesca, chisporroteante con todo el hirviente aceite de las circunstancias, donde se
guisaba el porvenir de millares de peces migrantes y voladores, en que se habían convertido los mil-
lares de refugiados de todas clases, nacionalidades y razas.” (apud Augustín Sánchez Vidal, ibidem).
310
J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, op. cit., p. 49. Aranda ressalta ainda que o texto é revelador
de uma visão que Buñuel já possuía da orquestra: um monopólio representativo da burguesia.
Visão esta que será reiterada em vários filmes, como por exemplo, na orquestra de L’âge d’or.
MIRIAN TAVARES

Clarinete
Flauta hiper-atrofiada. Às vezes, o coitado, soa bem.

Oboé
Balido feito madeira. Suas ondas, profundos mistérios líricos.
O oboé foi irmão gémeo de Verlaine.
106

Corno Inglês
É o oboé já maduro, com experiência. Viajou. O temperamento
requintado tornou-se mais grave, mais genial.
Assim, como o oboé tem quinze anos o corno tem trinta.

Fagote
Os professores de fagote são os faquires da orquestra. Às
vezes olham para o tremendo réptil que têm nas mãos e que
lhes mostra a língua bífida. Depois de hipnotizado deitam-no
nos braços e ali se fica, extático.

Contrafagote
É o fagote da terra terciária.

Xilofone
Jogo infantil. Água de madeira. Princesas a fiar no
jardim, raios de luar.

Trompete com surdina


Clown da orquestra. Contorção, pirueta. Esgares.

Trompas
Ascensão a um cume. Emersão do sol. Anunciação. Oh
o dia em que se desenrolem como um ‘mata-sogras’!

Trombones
Temperamento um tanto alemão. Voz profética. Chantres
de velha catedral com era e catavento bolorento.

Tuba
Dragão lendário. O seu vozeirão subterrâneo faz tremer
de medo os outros instrumentos, que desatam a perguntar
quando virá o princípio de luzida armadura que os libere.

Pratos
Luz feita em estilhas.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Triângulo
Carro eléctrico de prata através da orquestra.

Tambor
Trovãozinho de sanefa. ‘Algo’ ameaçador.
107
Bombo
Obcecação. Grosseria. Bum. Bum. Bum.

Tímbales
Cestos de azeitonas.311

Buñuel, ao contrário dos outros de sua geração, não esconde a influência de


Gómez de la Serna e deixa que ela brote livremente em suas manifestações artís-
ticas. A atitude de Alberti e de outros de sua geração, que negavam quaisquer re-
lações com a obra de Gómez de la Serna, remete-nos para a atitude de Buñuel
quando rejeita, em alguns momentos, a presença sempiterna dos companheiros
de 27 em sua obra. Em uma carta datada de 1929, ele dirá:

Federico quer fazer coisas surrealistas, mas falsas, feitas com a inte-
ligência, A QUAL É INCAPAZ DE ACHAR O QUE ACHA O INSTINTO. [...].
Apesar de tudo, dentro do irremediavelmente tradicional, Federico
é do melhor, ou até o melhor, que existe. Alberti chega a produzir em
mim um mal-estar maior que a ideia de um Deus, do que a matéria
fecal que flui no ventre das mulheres bonitas, do que a Sociedade de
Cursos e Conferências, do que a Jota Aragoneza, do que os concertos
da Sinfónica, do que Aladrén; Alberti repugna-me dos quatro costa-
dos.312

Isto o impediu, contudo, de, em suas memórias, muito tempo depois, recor-
dar-se ainda de uns versos de Alberti:

La noche ajusticiada
en el patíbulo de un árbol,
alegrías arrodilladas
le besan y ungen las sandalias [...]313

311
In J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, pp. 63-67. Tendo sido completamente impossível consultar
o original, tive de recorrer à tradução portuguesa. Apesar de a mesma ser da responsabilidade do
poeta surrealista Mário Cesariny, bom conhecedor da língua castelhana, reconheço nesta tradução
alguns problemas.
312
Luis Buñuel apud J. F. Aranda, op. cit., p. 40.
313
Buñuel dirá: “Aquella poesía, que fue publicada en la revista Horizonte y marcó el comienzo de Al-
berti, me gustó en seguida.” (Mi ultimo suspiro, p. 70).
MIRIAN TAVARES

Antes de realizar Un chien andalou, o filme, Buñuel escreveu um livro de poemas


com o mesmo título. Um título que foi inspiração conjunta dele e de Salvador Dalí314,
sendo depois escolhido para seu primeiro filme. Aranda acredita, ao contrário do que
afirmara Buñuel, que havia uma enorme fúria deste diretor contra os cães andaluzes
(não podemos nos esquecer de que quase todos os poetas da Geração de 27 eram
108 andaluzes), fúria esta que seria evocada de uma maneira quase clínica e psico-analí-
tica315 em seu livro/filme. Já Augustín Sánchez Vidal, questiona “¿por qué un perro y
no otro animal o palabra cualquiera para aludir a Lorca o su mundo poético?”316
Contudo, e seguindo a interpretação de Sánchez Vidal, o “perro” não repre-
sentava apenas Lorca: na obra de Salvador Dalí, por exemplo, tanto Lorca, quanto
o próprio Dalí e até Buñuel, eram representados como cães, o que Sánchez Vidal
justifica como sendo influências da obra de Isidore Ducasse, conde de Lautréa-
mont. Dalí, em Vida Secreta, confessa o peso que Lorca teve sobre uma parte de
sua vida, associando-o muitas vezes à “sombra de Maldoror”317. Georges Bataille
encontra na pintura de Dalí a presença clara dos Cantos de Maldoror:

Des chiens obscurément malades d’avoir si longtemps léché les doigts


de leurs maîtres hurlent à la mort dans la campagne au beau milieu
de la nuit. A ces hurlements effrayants répondent, de la même façon
qu’un coup de tonnerre au fracas de la pluie tels cris dont il est diffi-
cile de parler sans excitation.318

314
“O título do meu livro de agora é O Cão Andaluz, o que nos fez mijar de riso, a mim e a Dalí,
quando o encontrámos. Devo advertir-te de que não há um só cão em todo o livro. Mas fica muito
bem e muito dócil. Além de risonho e idiota”. (Luis Buñuel apud J. F. Aranda, Os Poemas de Luis Bu-
ñuel, p. 31). Quando surge o filme, Lorca sente-se ofendido com o título pois, para o escritor
andaluz, Buñuel e Dalí faziam alusão não só a sua pessoa como ao grupo gongorino e a sua estética.
Buñuel acaba por negar esta hipótese: “No es así. La gente cree encontrar alusiones donde quiera,
si se empeña en sentirse aludida. Federico García Lorca y yo estuvimos enfadados por algunos
años. Cuando en los años 30 estuve en Nueva York, Angel del Río me contó que Federico, que
había estado tambíen por allí, le había dicho: ‘Buñuel ha hecho una mierdesita así de pequeñita
que se llama Un perro andaluz y el perro andaluz soy yo’ [...]”. (Luis Buñuel apud Augustín Sánchez
Vidal, Luis Buñuel, Madrid, Cátedra, 1994, p. 131).
315
Ver J. F. Aranda, op. cit., p. 40.
316
Augustín Sánchez Vidal, Buñuel, Lorca, Dalí: el enigma sin fin, p. 216.
317
Augustín Sánchez Vidal, ibidem.
318
Georges Bataille, “Le ‘jeu lugubre’ ”, Documents, nº 7, dezembro de 1929, pp. 369-372. Em uma
nota neste mesmo ensaio (p. 370), Bataille tece comentários sobre o olho cortado de Un chien an-
dalou e afirma que: “Buñuel lui même m’a raconté que cet épisode était de l’invention de Dalí
auquel il a été directement suggéré par la vision réelle d’un nuage étroit et long tranchant la
surface lunaire (je pluis ajouter ici les ânes morts et decomposés, qui se retrouvent dans Un chien
andalou représentent une obsession partagée par Dalí et Buñuel et remontant chez l’un et chez
l’autre à la rencontre semblable, au cours de l’enfance, d’un cadavre d’âne en décomposition dans
la campagne)”. Neste ensaio Bataille analisa o quadro de Dalí, “Jeu lugubre”, remetendo ainda a
“Le sang est plus doux que le miel”, expressão utilizada pelo Conde de Lautréamont em seus
Cantos de Maldoror. É interessante notarmos que a influência de Lautreámont, ou sua sombra,
pesa tanto na obra de Dalí (como na de Buñuel), quanto as memórias da infância e de elementos
típicos da cultura a que ambos acabam por pertencer.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Augustín Sánchez Vidal associa esta passagem do ensaio de Bataille a “la tre-
menda estrofa octava del canto primero del libro de Lautréamont”319, estrofe esta
que, segundo ele, serviu de modelo para Lorca em seu primeiro livro, Impresiones
y paisajes. A figura, ou figuras, dos cães, estará presente na obra de Lorca, sendo
que as imagens sucitadas pelo poema “Paisaje con dos tumbas y un perro asirio”,
contêm, sem sombra de dúvida, coincidências inegáveis com algumas passagens 109
de Un chien andalou. O que faz com que Sánchez Vidal questione: “¿Vió Lorca esta
película antes de escribir esos versos? Y si la vió, ¿cuándo? ¿Antes, durante o des-
pués de su estancia neoyorquina?”.320
O que nos interessa deste questionamento de Augustín Sánchez Vidal é, prin-
cipalmente, a possibilidade de estendê-lo a outras coincidências na obra de Buñuel
e de seus companheiros de geração. Vimos que o cão andaluz não era apenas
Lorca, mas era um elemento presente no imaginário comum dos três amigos
(Lorca, Dalí e Buñuel), alimentado pelas imagens dos Cantos de Maldoror. Mas se
a imagem de um cão, presente emblematicamente na obra de Dalí e presente/au-
sente no primeiro filme de Buñuel, reforça a ideia de ligação entre os que saíram
de Espanha (Dalí e Buñuel), ligando-se mais diretamente ao surrealismo francês,
e os que permaneceram, como Lorca, sem sequer assumirem-se como surrealis-
tas, encontramos ainda outros elementos que comprovam a existência de um ima-
ginário comum, no qual eles se moviam, e que não está necessariamente
conectado com o imaginário francês.
A ideia do paraíso perdido não é pertença exclusiva dos surrealistas espa-
nhóis. Podemos dizer que, de um modo geral, todas as vanguardas são utópicas
– vivem em função de alcançar um determinado topos que está sempre além. O
surrealismo, que sofre influências do romantismo, desloca o conceito de utopia,
já que a ideia do romantismo surge, justamente, de um voltar-se para dentro de
si mesmo, como se este fosse o único lugar possível de salvação. Conforme Giulio
Carlo Argan, “O final da epopéia napoleônica trouxe profundas consequências
para a arte. À queda do herói segue-se uma sensação de vazio, o desânimo dos
319
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 217. Reproduziremos a seguir a estrofe à qual Sánchez Vidal se
refere: “Então os cães, enfurecidos, rompem suas correntes, escapam das fazendas distantes:
correm pelos campos, aqui e ali, possuídos pela loucura. De repente param, olham para todos os
lados com uma inquietação feroz, o olhar em fogo; e assim como os elefantes, antes de morrerem,
erguem no deserto um último olhar ao céu, levantando desesperadamente a tromba, deixando
cair suas orelhas inertes, assim também os cães deixam cair inertes as orelhas, levantam a cabeça,
incham seu pescoço terrível e se põem a uivar, um por vez, como a criança que grita de fome [...].
Ai do viajante retardatário! Os cães se lançarão sobre ele para despedaçá-lo e comê-lo com suas
bocas escorrendo sangue, pois eles não têm os dentes estragados. [...]. Não é por crueldade que
fazem isso. Um dia, com o olhar vítreo, minha mãe me disse: ‘Quando estiveres na cama e ouvires
o uivo dos cães pela campina, esconde-te sob as cobertas e não aches graça no que eles fazem:
eles têm uma sede insaciável de infinito, assim como tu, assim como eu, assim como os homens
de rosto longo e pálido. Permito até mesmo, que fiques junto à janela para contemplares o espe-
táculo tão sublime.’ Desde então, tenho respeitado o pedido da morta. Eu, assim como os cães,
sinto a necessidade de infinito[...]” (Lautréamont, op. cit., pp. 40-42).
320
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 218.
MIRIAN TAVARES

jovens destituídos de seus sonhos de glória (pense-se em Stendhal).” O que faz


com que o sentido da arte sofra uma modificação profunda: “Volta-se à ideia da
arte como inspiração; mas a inspiração não é intuição do mundo, nem revelação
ou profecia de verdades arcanas, e sim, um estado de recolhimento e reflexão”321
(o itálico é meu).
110 Assim sendo, temos que o surrealismo constrói uma utopia do espírito – um
lugar que precisa ser alcançado para a realização plena de sua arte. No surrealismo
espanhol, este lugar está no passado: o paraíso perdido, a edad del oro, um circuito
a ser percorrido pela memória para que ela consiga fazer-nos reencontrar o que
foi perdido e que poderá ser recuperado através da arte. O paraíso dos poetas a
que nos referimos, como já foi dito antes, em alguns casos mais que em outros,
está também intimamente ligado ao paraíso adâmico. No surrealismo francês a
ideia de paraíso está mais próxima de um estado de alma que nos liga ao passado,
ao princípio, à infância, do que mesmo ao paraíso revelado pelo Génesis.322
Na obra de Buñuel, apesar de sua inserção no surrealismo francês, detecta-
mos a presença do paraíso adâmico. No filme La mort en ce jardin, a selva envolve
a cidade e é através dela que os foragidos podem encontrar a salvação (e também
a perdição). Freddy Buache diz: “Así, tanto Robinsonm [sic], confinado en una isla,
como el grupo de La mort en ce jardin, caminando por una selva virgen [...], todas
estas gentes se han visto impelidas hasta el límite de sí mismas, condenadas a
abandonar cualquier disfraz intelectual o moral y a mostrarse sin fingimientos tal
como son; es decir, como aquello que, consiguientemente, perfila la razón de ser
de las máscaras y los disfraces en nuestra civilización, y en un modo particular la
razón de ser de la Máscara de las máscaras: Dios.”323
Mesmo com seu professado ateísmo, graças a Deus, as presenças de elemen-
tos ligados à mitologia cristã eivam a obra de Buñuel. Elementos presentes já em
L’âge d’or. Sabemos que aqui estes elementos aparecem, de um modo geral, em
forma de paródia – como no caso de Viridiana, mas são obsessivos, expondo os
traços de hispanidad que vão acompanhá-lo sempre. Em La mort en ce jardin, a
presença da selva é emblemática. A volta ao paraíso é o caminho da salvação e
também da perdição. Em vez de ser uma volta a Deus é um retorno ao homem.
Como em Breton, l’homme propose et dispose. Conforme Kyrou, o papel da reli-
321
Giulio Carlo Argan, Arte Moderna, p. 28.
322
No prefácio ao livro de Breton e Soupault, Les champs magnétiques, Philippe Audoin, na p. 24,
afirma: “Sans doute Breton ne pouvait-il que rejeter les présupposés spiritualistes de la théorie de
Myers. Mais il reste - en ceci l’analyse de Starobinski est pleinement convaincante - que pour lui,
l’inconscient apparaît moins comme un ‘réservoir de pulsions’, un animal honteux enfoui dans les
culs-de-basse-fosse de notre mémoire, que comme une sorte de dieu caché. Qu’on s’entend: pour
Breton, nulle transcendance n’est concevable, ni même tolérable. A ses yeux, ce que certains
tiennent pour le divin, n’est qu’une faculté humaine détournée et mystifiée par les soins des ‘dres-
seurs’ et en ceci, il se situe pleinement dans la ligne de Rousseau. Il suffit que l’homme ‘propose et
dispose’ ”.
323
Freddy Buache apud Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel - obra cinematografica, Madrid, Ediciones
J. C., 1984, p. 207.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

gião é o autêntico protagonista deste filme: “Se mire como se mire, este filme es
un admirable grito de afirmación del hombre y una negación total, absoluta, de la
mística religiosa.”324
Apesar de condenar vivamente a religião, Buñuel não deixa de encená-la. E mais
que a religião, a sua condenação recai sobre a civilização – o homem perde-se a si
mesmo quando é domesticado pelos processos civilizatórios. O retorno às origens 111
é a saída possível para curar uma civilização doente, que além de promover pro-
cessos de mascaramento, aprisiona os homens em atos e gestos que já nada sig-
nificam. Cai-se então no vazio. É importante observarmos que no surrealismo
francês há um ataque a um determinado processo civilizatório que levou ao abur-
guesamento (e consequente embotamento) dos sentidos. Mas as imagens que
povoam as obras francesas não possuem o sentido místico e religioso dos espa-
nhóis. O cinema de Buñuel constrói-se então sobre um duplo eixo – fiel ao imagi-
nário espanhol, não deixa de recorrer ao ideário dos franceses.
Quanto aos outros aspectos citados anteriormente: a mutilação, as estátuas,
e o bestiário que obceca os poetas do surrealismo espanhol, facilmente encon-
tramos correspondentes na obra de Buñuel. A mutilação está presente desde seu
primeiro ato: o olho cortado de Un chien andalou325. Como em Lorca onde, “Con
una cuchara, arrancaba los ojos a los cocodrilos”, com uma navalha Buñuel corta
um olho, tornando este gesto o emblema de toda a sua obra.
As estátuas que em Alberti significam não comunicação, paralisia, morte,
estão presentes, por exemplo, em L’âge d’or. Buñuel, em sua autobiografía diz:

Mi infancia transcurrió en una atmósfera casi medieval […]. Creo ne-


cesario hacer notar aquí (dado que ello explica en parte la tendencia
de la modesta obra que luego realizaría) que los dos sentimientos bá-
sicos de mi infancia, que perduraron hasta bien entrada la adolescen-
cia, fueron los de un profundo erotismo, al principio sublimado en una
gran fe religiosa, y una permanente conciencia de la muerte.326

Erotismo e morte entrelaçados nas estátuas de L’âge d’or, revelando que,


324
Ado Kyrou apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 211.
325
Em La arboleda perdida, livro de memórias de Rafael Alberti, este recorda: “En medio de estos
días y de este campo de batalla, no literaria ya, sino verdadera, apareció, como un cometa, Luis
Buñuel. Venía de París, la cabeza rapada, el rostro aún más fuerte, más redondos y salidos los ojos.
Llegaba para mostrar su primera película, hecha en colaboración con Salvador Dalí [...] El filme im-
presionó, desconcertando a muchos y estremeciendo a todos aquella imagen de la Luna, partida
en dos por una nube, que conduce inmediatamente a la otra, tremenda, del ojo cortado por una
navaja de afeitar. Cuando el público, sobrecogido, pidió luego a Buñuel unas palabras explicativas,
recuerdo que éste, incorporándose un momento, dijo, más o menos, desde su palco: “Se trata so-
lamente de un desesperado, un apasionado llamamiento al crimen.” (Apud Augustín Sánchez Vidal,
Luis Buñuel, pp. 90-91).
326
Buñuel apud Augustín Sánchez Vidal, “Buñuel and the flesh”, in C. Brian Morris (Ed.), The Surrealist
Adventure in Spain, Ottawa, Dovehouse Editions, 1991, p. 206.
MIRIAN TAVARES

apesar da tentativa de imersão total no surrealismo francês, Buñuel permaneceu


espanhol.
Concordamos com a afirmação de Sánchez Vidal quando diz que:

Spanish Surrealism represents more than adoption of the most ex-


112 ternal symptoms that characterize the French movement, more than
total immersion in its techniques, or the exploration of its themes:
in the most intense and authentic cases, the creator penetrated to
the very heart of methods and motifs, assimilating totally their very
raison d’être.”327

O surrealismo espanhol não gerou manifestos, chegou mesmo a refutar a


ideia de um surrealismo, mas acabou por, efetivamente, ir até mais fundo no des-
vio proposto pelos franceses. Sánchez Vidal refere-se a Dalí e Buñuel, mas pode-
mos estender esta afirmação para os poetas que deixaram um vasto legado
imagético que atravessa todo o século.
Em 1930, García Lorca, “dans sa chambre de bousier de l’Université de Co-
lombia (New York)” escreve um roteiro inspirado nas ideias de Buñuel, “et en
même temps que son chef d’œuvre Le poète à New York”. Un voyage à la lune,
roteiro nunca transformado em filme, era uma homenagem que Lorca prestava a
Buñuel. E segundo Aranda, “l’œuvre surréaliste la plus orthodoxe de Federico.”
Buñuel só veio a conhecer este roteiro em 1973328. Assim começa Voyage à la lune:

1
Un lit blanc contre un mur gris. Sur les couvertures surgit une danse
de chiffres: 13 et 22.
Deux d’abord, ils finissent par couvrir le lit comme des fourmis mi-
nuscules.
2
Une main invisible arrache les couvertures.
3
De grands pieds courent rapidement avec de gros bas à losanges
blancs et noirs.
4
Une tête effrayée qui regarde fixement un point et se fond pour faire
place
à une tête en fil de fer sur fond d’eau.
5
Une légende qui dit Au secours Au secours Au secours se déplace de
haut en bas
en surimpression sur un sexe de femme.329

327
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 205.
328
Juan Francisco Aranda, “La réalisation d’Un chien andalou”, p. 21.
329
Federico García Lorca, “Voyage à la lune” in Christian Janicot (ed.), Anthologie du cinéma invisible,
Paris, Éditions Jean-Michel Place/ARTE Éditions, 1995, p. 273.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

O roteiro de Lorca, sua obra mais surrealista e também a mais próxima do ci-
nema de Buñuel, apresenta as mesmas questões que povoaram os poemas escri-
tos em Nova York. Nesta obra, Lorca revelava um “Monde du masque et du viol:
amitié languissante, sensualité assassine, amours feintes: dérision, solitude.”330,
o mesmo mundo que habitou o cinema do seu amigo aragonês.
Para Sánchez Vidal, a relação de Buñuel com o grupo liderado por Breton era 113
muito mais de cunho moral que estético. Ele já era surrealista antes mesmo de
entrar no grupo, e sua iniciação deu-se precisamente com os companheiros da
Geração de 27, principalmente por sua amizade com Lorca e pelo fato de frequen-
tar os principais círculos da vanguarda madrilena. O cinema de Buñuel constrói-
se então sobre o eixo da memória, que o liga ao passado e à sua geração em
Espanha, e por uma formulação, mais moral que estética, que ele irá aprimorar a
partir da sua entrada no surrealismo francês. Apesar dos ares parisinos, o som dos
tambores de Calanda nunca desapareceu dos seus ouvidos.

330
Marie Laffranque, “Federico García Lorca” in Christian Janicot (ed.), op. cit., p. 272.
IV.
LUIS BUñUEL:
IL EST DANGEREUX DE SE PENCHER AU-DEDANS
IV.1. LUIS BUñUEL: IL EST DANGEREUX DE SE PENCHER AU-DEDANS

Más allá, fuera de mí, en la espesura verde y oro,


entre las ramas trémulas, canta lo desconocido.
117
Octavio Paz

Como vimos no capítulo anterior, Buñuel é considerado por muitos o único


cineasta verdadeiramente surrealista. O que define a sua obra e o torna diferente
dos demais? É o que tentaremos descobrir. Se os espanhóis, conforme Sánchez
Vidal, “penetrated to the very heart of those methods and motifs”, Buñuel torna-se
então a síntese perfeita do ideário do movimento. Sendo profundamente espa-
nhol, adota uma práxis influenciada pelo surrealismo francês331. Nele encontramos
um cruzamento pertinente entre o ideário surrealista, presente em seus manifes-
tos, e a criação. Por isso, talvez, mesmo com sua saída oficial do movimento, ele
jamais deixou de ser, profundamente, surrealista.
Buñuel foi um surrealista avant la lettre: antes mesmo de ser aceito no mo-
vimento, nutria um grande interesse pelas ideias do grupo de Breton332, além de
possuir uma obra (como o livro O Cão Andaluz – não publicado – e o filme homô-
nimo) que estava construída com as técnicas surrealistas. Em carta a um amigo,
na tentativa de iniciá-lo na ortodoxia surrealista, ele escreve: “No fundo, tu sempre
foste um surrealista e nada mais, e chega, porque o surrealismo É A ÚNICA COISA
INTERESSANTE NO CAMPO DA CRIAÇÃO ARTÍSTICA?”333
A vanguarda madrilena não o atraía334. Mesmo assim, deixou marcas indelé-
veis em sua obra, conforme constatamos no capítulo anterior. Quando trabalhou
331
Em um ensaio intitulado “Buñuel el afrancesado”, Emmanuel Larraz comenta a relação de Buñuel com
a cultura francesa, ressaltando que, apesar de tudo, ele permaneceu profundamente espanhol, pois
podemos compreender o afrancesamento do diretor aragonês como uma herança “de aquellos patriotas
llamados afrancesados que durante la Guerra de la Independencia adoptaron las ideias de la Revolución
Francesa para oponerse a la tiranía política y clerical.” Assim, para Larraz, “Buñuel aparece como un
artista profundamente español que se ha nutrido de las corrientes más revolucionarias del pensamiento
francés para crear su obra, perseguiendo sin tregua el inasequible fantasma de la libertad.” (Emmanuel
Larraz, “Buñuel el afrancesado”, Turia. Revista de cultura, nº 28-29, maio de 1994, p. 149). No entanto,
Buñuel, apesar de se filiar no surrealismo francês, em detrimento da vanguarda madrilena da época,
chegou a afirmar que até 1927 quase não havia lido nada dos surrealistas franceses porque lhe pareciam
“una partida de maricones.” (Buñuel apud Emmanuel Larraz, op. cit., p. 156).
332
Larraz considera que a fidelidade ao surrealismo era uma das principais manifestações do afrance-
samento de Buñuel. Mesmo que até 1927 ele não tenha sido um grande leitor dos surrealistas, as
ideias deles encantavam-no. Além disso, conforme Larraz, “había bebido en las mismas fuentes
que ellos, ya en la Residencia de Estudiantes, a Guillaume Apollinaire, inventor de la palabra ‘sur-
realismo’ en 1917 y propagandista de L’esprit nouveau.” (Emmanuel Larraz, op. cit., pp. 156-157).
333
Buñuel apud J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, p. 33.
334
Quando foi assistir à estréia de Yerma, de García Lorca, saiu profundamente aborrecido do teatro.
Aquela representação moderna, que encantava Madrid, não lhe dizia mais nada. “Mi paso al sur-
realismo me había alejado - y así me mantendría durante mucho tiempo - de esta pretendida ‘van-
guardia’ ”. (Luis Buñuel, Mi ultimo suspiro, p. 116).
MIRIAN TAVARES

como assistente de Jean Epstein em La chute de la Maison Usher, este tentou pre-
veni-lo contra a forma de expressão irracional proposta pelos surrealistas. Mas a
foto de Benjamín Péret335 insultando um sacerdote, publicada na revista La révo-
lution surréaliste, deixou em Buñuel marcas profundas336. Além da foto de Péret,
a revista trazia um inquérito sobre sexualidade, tratando de uma forma, até então
118 inédita, temas como masturbação, lugares onde fazer amor, preferências sexuais,
etc. Podemos observar que os dois temas da revista, a religião e o erotismo, vão
estar presentes em toda a obra de Buñuel.
Buñuel, desde o princípio, sentiu-se atraído por um certo cinema de van-
guarda, uma produção inexistente em Espanha. Assim, “En 1928, por iniciativa de
la Sociedad de Cursos y Conferencias de la Residencia, vine a Madrid para hablar
del cine de vanguardia y presentar varias películas: Entreacte, de René Clair, la se-
cuencia del sueño de La fille de l'eau, de Renoir337, Rien que les heures, de Caval-
canti [...]”338. Além de apresentar os filmes, Buñuel pensou em lançar uma
provocação surrealista à plateia ali presente, que, em suas palavras, era “o melhor
da sociedade madrilena”. Para ele, aquele momento parecia muito indicado para
anunciar a abertura de um concurso de menstruação e entregar o primeiro prê-
mio. Ato surrealista que ficou apenas na intenção do cineasta.
O livro nunca impresso de Buñuel (que publicou vários dos seus poemas em
revistas de vanguarda da época) torna-se filme. Com o dinheiro dado pela mãe e
com a ajuda de Dalí, Un chien andalou é realizado em 1929, ano em que Buñuel
entra de fato para o movimento surrealista. Mas a memória do livro fica impressa
nas imagens do filme. Para Aranda, “Il est ainsi fascinant d’observer comment les
préoccupations fondamentales de l’auteur de films surgissent déjà dans l’oeuvre
littéraire”. Além disso, a importância do escritor reaparece na elaboração dos ro-
teiros: “Ses scénarios révèlent un travail important d’écrivain”339. Ao lermos os
poemas de Buñuel estamos vendo, em palavras, o que ele concretizou na tela atra-
vés de imagens.
335
Talvez Péret seja o autor do surrealismo francês que mais influenciou a obra de Buñuel. Larraz
acredita que a influência de Péret irá arrastar-se até os últimos filmes do diretor, como é o caso,
por exemplo, de El fantasma de la libertad. Apesar de o filme ter sido baseado em um conto do
poeta romântico espanhol Gustavo Adolfo Bécquer, a influência do poeta surrealista francês parece
ser “más importante en el tono general.” Larraz justifica sua afirmação com palavras do próprio
Buñuel: “Benjamin Péret me entusiasmaba con su humor poético. Lo leíamos Dalí y yo y nos
caíamos al suelo de risa. Había algo allí dentro, un motorcito extraño y perverso, un humor delicioso
de tipo compulsivo. Algo parecido quise hacer con mi última película El fantasma de la libertad.”
(Emmanuel Larraz, op. cit., p. 157).
336
Ibidem.
337
Jean Renoir não pertencia a nenhum movimento de vanguarda e sua obra não possui esta classifi-
cação. Porém, La fille de l’eau, seu filme de estréia, suscitou algumas dúvidas se deveria ou não ser
incluído na vanguarda cinematográfica por sua preocupação pictórica levada ao extremo. (Ver
Georges Sadoul, op. cit., p. 242). Vemos que, para Buñuel, pelo menos a sequência do sonho
tornava o filme de Renoir uma amostra do que era o cinema de vanguarda.
338
Luis Buñuel, op. cit., p. 117.
339
J. F. Aranda, “Luis Buñuel écrivain”, p. 5.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Assim sendo, o seu primeiro filme é construído dentro das técnicas propostas
pelos surrealistas, como por exemplo, a escrita automática e a evocação de esta-
dos oníricos, quase alucinatórios, capazes de trazer à tona aquilo que nosso cons-
ciente reprime e organiza. “Esta película nació de la confluencia de dos sueños.
[...]. Escribimos el guión en menos de una semana, siguiendo una regla muy sim-
ple, adoptada de común acordo: no aceptar idea ni imagen alguna que pudiera 119
dar lugar a una explicación racional, psicológica o cultural. Abrir todas las puertas
a lo irracional”340. Dos sonhos de Dalí e Buñuel surge o filme, um dos poucos que
é considerado verdadeiramente surrealista.
No primeiro Manifeste du surréalisme, Breton afirma que Desnos é um dos
poucos que fala o idioma surrealista por conseguir dar livre curso ao fluxo dos seus
pensamentos e oralizá-los sem tentar retê-los. O cadavre exquis341, a escrita auto-
mática, a indução de sonhos durante um estado de vigília, até mesmo o uso de psi-
cotrópicos na busca de libertar a verdade do inconsciente (método também usado
no início da psicanálise por Freud), são técnicas de criação que dificilmente podem
ser seguidas à risca pelo cinema, pois a materialidade do meio suscita um outro
método de construção, que vem a ser a montagem. A base desta montagem,
porém, pode ser vivamente surrealista, e é isto que vai diferenciar o cinema de Bu-
ñuel de toda uma cinematografia que utilizou a montagem com outros fins (como
por exemplo, o cinema americano e, com as devidas diferenças, o soviético).
Em 1923, no jornal Le Soir, Robert Desnos publica um artigo que convoca os
cineastas a transportarem para a tela os seus sonhos, convocação já feita ante-
riormente no Paris-Journal, em 1923. Mas ele compreendia a dificuldade de rea-
lizar tal intento, conseguido até aquele momento por pessoas como Buster Keaton
e Chaplin. As características essenciais do sonho, por ele enumeradas, ou seja, “a
sensualidade, a liberdade absoluta, o próprio barroco e certa atmosfera que invoca
o infinito [...]”342, eram como territórios inexplorados e alguns estavam fadados
ao fracasso. O grande desafio do cinema surrealista consistia em domar a matéria
até que ela perdesse o seu caráter sólido, torná-la liquefeita como a matéria dos
sonhos. Se não concretizou totalmente esta predestinação natural do cinema, se-
gundo Desnos, Un chien andalou foi o filme que, através de todo seu processo de
construção, chegou mais perto da estrutura do sonho.
Para compreendermos melhor o processo de construção da obra de Buñuel,
e o que faz com que seus primeiros filmes, prólogos de toda a sua cinematografia,
340
Luis Buñuel, Mi último suspiro, p. 118.
341
O Cadavre exquis era um jogo que tentava romper com as mentalidades codificadas. “Várias
pessoas reunidas vão passando sucessivamente um papel, sobre o qual cada um escreve uma
palavra ou faz um traço; acaba-se por obter uma sucessão de frases inverosímeis ou um desenho
que desafia qualquer realidade. O exemplo tornado clássico, e que deu nome ao jogo, refere-se à
primeira frase obtida dessa maneira: Le cadavre exquis - boira le vin noveau”. (Y. Duplessis, op. cit.,
p. 45).
342
Robert Desnos, “Os sonhos da noite transportados para a tela” in Ismail Xavier, A Experiência do
Cinema, Rio de Janeiro, Graal, 1983, p. 320.
MIRIAN TAVARES

sejam considerados por unanimidade, verdadeiros filmes surrealistas, torna-se


necessário descortinarmos alguns processos de construção dos filmes. Processos
estes relacionados com a montagem, conceito que vem atravessando todo este
trabalho. Um dos fatores de diferenciação do cinema de Buñuel é, precisamente,
a sua montagem, que chamaremos de montagem onírica. Mas antes de entrar na
120 matéria propriamente dita, a arquitetura de seus primeiros filmes, abrirei um pa-
rêntese para expor melhor os tipos de montagem cinematográfica.

IV.1.1. A montagem
O conceito de montagem é muito importante para a teoria do cinema. É con-
siderada por alguns como “el elemento más específico del lenguaje cinematográfico.
Su importancia entre los medios de expressión del séptimo arte ha ido variando en
el transcurso de la historia del cine, pero no parece que su preponderancia se pueda
poner en duda.”343 Se não podemos pôr em causa a sua importância, ou mesmo
preponderância em relação às outras etapas de consecução do filme, não podemos
porém nos esquecer de que o conceito de montagem não é premissa apenas do ci-
nema, sendo herdada tanto da literatura quanto da pintura e da música.
Antes de mais nada, cabe-nos definir em termos técnicos o que vem a ser,
no cinema, a montagem. Segundo Dominique Villain, “Monter un film, c’est le
construire, à partir de la matière, de la pelicule qui a été tournée, et à destination
d’un public de spectateurs sur lesquels certains effets son recherchés – intérêt,
rire, peur, émotion, prise de conscience, etc.”344 Talvez por ser a última etapa na
realização de um filme é que tantos diretores acreditam no poder deste processo,
que, em alguns casos, pode até aperfeiçoar ou mesmo salvar um filme345.
As teorias do cinema, de uma certa maneira, movem-se em torno do conceito
de montagem346. Em alguns casos para defendê-lo (Eisenstein acreditava que “La
343
Albert Jurgenson e Sophie Brunet, La práctica del montaje, Barcelona, Editorial Gedisa, 1992, p. 17.
Vários são os autores que apontam para a importância da montagem, sendo esta considerada um
dos pontos fundamentais da formação da linguagem cinematográfica. Cf. Aumont et al., sendo o
cinema uma arte da combinação e da organização, e sendo que a noção de montagem inclui precisa-
mente estas características, “é possível notar de imediato que se trata de uma noção totalmente
central em qualquer teorização do fílmico.” (Jacques Aumont et al., A Estética do Filme, Campinas,
Papirus, 1995, p. 53). Yuri Lotman reconhece também a importância da montagem, sem deixar de
ressaltar, contudo, que este conceito sempre foi extremamente polêmico. (Y. Lotman, op. cit., p. 67).
344
Dominique Villain, Le montage au cinéma, Paris, Editions Cahiers du cinéma, 1991, p. 7.
345
“[…] el montaje parece gozar de una posición privilegiada, pues su ubicación al final del proceso de
elaboración de un filme le otorga el inesperado poder de confirmar, corregir, transgredir y, en todo
caso, dar forma definitiva al producto que ha atravesado las otras etapas.” (Vicente Sánchez-Biosca,
El montaje cinematográfico, Barcelona, Paidós, 1996, p. 26). Para Orson Welles, a montagem é o
grande momento da realização de um filme. “No puedo creer que el montaje no sea lo fundamental
para el director, único momento en que supervisa de modo integral la forma de su película. El
único lugar donde ejerzo un control absoluto es la sala de montaje. En la sala de montaje se fabrica
toda la elocuencia del cine.” (Apud Albert Jurgenson y Sophie Brunet, op. cit., p. 20).
346
“A história dos filmes a partir do final dos anos 10 e a história das teorias do cinema desde suas
origens manifestavam, de fato, a existência de duas tendências que, sob os nomes de diversos au-
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

cinematografía es, antes de nada, montaje”347), outros, como é o caso de Bazin,


para tentar desmistificá-la em busca da afirmação de um outro tipo de cinema,
que para ele era mais verdadeiro, pois, ao manipular as imagens através de um
processo violento de corte e bricolage, acabava por se eliminar uma possível trans-
cendência. Como já foi dito anteriormente, Bazin optava por um cinema calcado
o mais possível no real, capaz de revelar o mundo para o olho da câmera. Assim, 121
o cinema que era ostensivamente manipulado violentava a realidade que se nos
apresentava na tela.
O conceito de montagem não surge logo no princípio do cinema: “su naci-
miento data del día en que se pensó en modificar el punto de vista de la cámara
en una escena, durante esa escena; es decir, cuando se pensó en cambiarla de
lugar sin otra finalidad más que la de una más clara descripción de la acción o una
mejor construcción dramática.”348 Se no início do cinema a montagem foi adqui-
rindo pouco a pouco importância, ela atinge o seu auge com os experimentos dos
cineastas formalistas. Experimentos como o “efeito Kulechov,”349 por exemplo, tor-
naram-se clássicos, servindo de ponto de partida para o desenvolvimento de várias
teorias relativas à montagem.
Partimos da definição de Marcel Martin, para quem “a montagem é a orga-
nização dos planos de um filme em certas condições de ordem e duração”350, de-
finição esta que aparece praticamente em todos os manuais de montagem. Sendo
por um lado excessivamente generalista, não deixa de corresponder à ideia básica
do processo, que pode ser entendido como algo que atua sobre um objeto e que

tores e escolas e sob formas variáveis, praticamente não cessaram de se opor de maneira frequen-
temente muito polêmica:
- uma primeira tendência é a de todos os cineastas e teóricos, para quem a montagem, enquanto
técnica de produção (de sentidos, de afetos), é mais ou menos considerada o elemento dinâ-
mico e essencial do cinema. Como indica a expressão ‘montagem-rei’, às vezes utilizada para
designar, entre os filmes dos anos 20, aqueles (principalmente soviéticos) que representaram
esta tendência, baseia-se em uma valorização muito forte do princípio de montagem (e até,
em alguns casos extremos, em uma avaliação exagerada de suas possibilidades);
- ao contrário, a outra tendência baseia-se em uma desvalorização da montagem enquanto tal
na submissão estrita de seus efeitos à instância narrativa ou à representação realista do mundo,
consideradas como o desígnio essencial do cinema. Esta tendência, aliás amplamente predo-
minante na maioria da história dos filmes, é muito bem descrita pela noção de ‘transparência’
do discurso fílmico.” (J. Aumont et. al., op. cit., p. 71).
347
Eisenstein apud Y. Lotman, op. cit., p. 67.
348
Albert Jurgenson y Sophie Brunet, op. cit., p. 17.
349
Kulechov, como seus companheiros do formalismo russo, sempre esteve preocupado em realizar
experimentos no intuito de aperfeiçoar e compreender a linguagem do cinema. Seu experimento
mais famoso ficou conhecido por “efeito Kulechov”: “Montando em três segmentos diferentes os
mesmos planos não especialmente expressivos do ator Mozzuchin, em sequência com os planos
de: a) um prato de sopa, b) o corpo de uma mulher arrumado num caixão, c) uma menina brincando,
Kulechov verificou experimentalmente os seguintes resultados: os grupos de espectadores a quem
foram mostrados os três segmentos atribuíram unanimemente à idêntica imagem de Mozzuchin
três expressões de significado completamente diferente: a) de fome, b) de dor, c) de alegria e se-
renidade.” (Antonio Costa, op. cit., p. 213).
350
Marcel Martin apud J. Aumont et al., op. cit., p. 54-55.
MIRIAN TAVARES

possui algumas modalidades: “O objeto sobre o qual a montagem se exerce são


os planos de um filme (ou seja, para explicitar ainda mais: a montagem consiste
em manipular planos com o intuito de constituir um outro objeto, o filme); as mo-
dalidades de ação da montagem são duas: ela organiza a sucessão das unidades
de montagem que são os planos; e estabelece sua duração.”351
122 A ideia de montagem, conforme Vicente Sánchez-Biosca, está presente em
toda a arte do século XX.352 Se pensarmos, por exemplo, na collage, presente no
cubismo analítico, ou mesmo em alguns métodos de construção do próprio texto
surrealista, perceberemos que trabalhar a partir da fragmentos, recolocando-os
numa nova relação de espaço e significações, marca profundamente a arte das
vanguardas. Talvez a atração que elas sentiram pelo cinema estivesse profunda-
mente ligada a uma possibilidade que é intrínseca a este tipo de arte. Mas talvez
possamos recuar um pouco mais e encontrar os princípios da montagem cinema-
tográfica nos romances do séc. XIX, principalmente na obra de Charles Dickens.
Em um ensaio intitulado “Dickens, Griffith y el filme de hoy,”353 Eisenstein
tece comentários sobre o cinema de Griffith e a importância deste na história do
cinema, principalmente na do cinema soviético de então. Como é que alguém de
uma cultura tão diferente, principalmente no campo ideológico, poderia encantar,
e mesmo influenciar, um cinema revolucionário354? Os filmes de Griffith, apesar
de profundamente reacionários enquanto discurso, foram revolucionários en-
quanto forma. Para aqueles que, como Eisenstein, estavam interessados em com-
preender e criar uma verdadeira linguagem cinematográfica, o contato com aquele
cinema serviu-lhes de lição. Uma lição que logo foi ultrapassada e, de certa ma-
neira, rechaçada. A vanguarda soviética não cabia em um tipo de filme que será
o modelo básico do cinema clássico hollywoodiano.
Para Eisenstein, a figura de Griffith destacava-se, “porque sus obras fueron las
primeras que hicieron del cine algo más que un pasatiempo o entretenimiento.”355
351
Ibidem.
352
Cf. Vicente Sánchez-Biosca, op. cit., pp. 15-22.
353
S. Eisenstein, Teoria y tecnica cinematograficas, 4ª ed., Madrid, Ediciones Rialp, 1989, pp.
249-308.
354
Para Arnold Hauser não é difícil compreender como dois povos de mentalidades tão distintas pu-
dessem, de alguma maneira, partilhar o envolvimento com o cinema. Assim sendo, Hauser afirma:
“é compreensível que os russos e os americanos, como dois povos de mentalidade mais voltada
para a tecnologia, fossem parceiros e rivais no desenvolvimento dessa arte.” (Arnold Hauser,
História Social da Arte e da Literatura, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 989).
355
Op. cit., p. 258. O discurso de Eisenstein deixa bem claro que a admiração que sentiam pelo cinema
americano, sendo que o cinema expressionista não lhes dizia grande coisa, era o que estes filmes
traziam de possibilidades do uso daquele novo e maravilhoso instrumento. Talvez por não possuir
um passado artístico tão presente e referencial como o dos europeus, o cinema, na mão dos ame-
ricanos, era aceito como tal, algo novo que precisava ser descoberto e aperfeiçoado. Pudovkin
chega mesmo a afirmar que “Os americanos foram os primeiros a descobrir a presença de possibi-
lidades peculiares ao cinema.” (V. Pudovkin, “Os métodos do cinema”, in Ismail Xavier (org.), A Ex-
periência do Cinema, op. cit., p. 66).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

O próprio Griffith não se considerava um inventor356, mas alguém que soube ler as
obras de Dickens e perceber o potencial dramático de suas narrativas. Eisenstein se
pergunta ainda por que não outro escritor qualquer, já que o recurso da ação para-
lela não estava presente só na obra de Dickens, mas na de muitos romancistas do
período. O que Dickens possuía, e que de alguma maneira é transmitido para o ci-
nema americano, era uma enorme popularidade, que levava as pessoas a acompa- 123
nhar suas obras com a mesma avidez, a mesma que, por ventura, mais tarde levaria
outras pessoas ao cinema. O que nos importa aqui é reter a presença de uma marca
do romance do século XIX, a ação paralela, como ponto de partida para um modelo
de montagem presente até nossos dias em quase toda a cinematografia clássica357.
Se Griffith e o cinema americano do princípio do século chegaram ao conceito
de montagem, principalmente devido ao uso do recurso da ação paralela, foram os
soviéticos que o aperfeiçoaram e fizeram dele um uso consciente e revolucionário.
Eisenstein e os formalistas estavam criando de fato uma nova linguagem baseada, prin-
cipalmente, nos conceitos de montagem desenvolvidos por eles. Iremos deter-nos ape-
nas nas ideias de Eisenstein, porque ele conseguiu sistematizar um pensamento que
funcionará como um divisor de águas em termos de teoria do cinema.

IV.1.2. A montagem segundo Eisenstein


Eisenstein considerava a montagem como o ponto em torno do qual girava a
linguagem do cinema. Pensando assim, foi aos poucos desenvolvendo uma teoria
que vai finalmente levá-lo a conceituar os vários tipos de montagem e, através
desta tipologia, criar um cinema que ele acreditava verdadeiramente revolucio-
nário358. Em um texto escrito em setembro de 1929, Eisenstein faz um elenco das
categorias formais da montagem que existiam até aquele momento, a saber: mon-
tagem métrica; montagem rítmica; montagem tonal; montagem atonal e monta-
gem intelectual.
A montagem métrica baseia-se nos “comprimentos absolutos dos fragmen-
tos.”359 Assim temos que os fragmentos serão reunidos de acordo com seus com-
356
Eisenstein, op. cit., p. 259, reproduz um texto publicado no The Times, de Londres, em 26 de abril
de 1922, onde o autor, A. B. Walkley, comenta: “Según él mismo admite, Griffith es más un
precursor que un inventor. Esto significa que ha abierto nuevos caminos en el País del Cine, bajo la
dirección de ideas que le han sido inspiradas por otros.”
357
Cf. Arnold Hauser: “O famoso desfecho dos primeiros e já clássicos filmes de Griffith, em que o
final de um excitante enredo fica na dependência de quem alcança primeiro o objetivo – se um
trem ou um automóvel, se o conspirador ou ‘mensageiro do rei a cavalo’, se o assassino ou o
salvador -, usando a então revolucionária técnica de quadros continuamente mudando, em flashes
que surgem e desaparecem como relâmpagos, tornou-se o modelo que passou a ser seguido pela
maioria dos filmes em situações semelhantes.” (Op. cit., pp. 974-975)
358
Convém ressaltar que tão importante quanto os trabalhos de Eisenstein foi o de outros formalistas
como Pudovkin, Vertov e a FEKS. No entanto, limitar-nos-emos a comentar o trabalho de Eisenstein
por ter sido este o que mais profundamente dedicou-se à questão da montagem.
359
Sergei Eisenstein, A Forma do Filme, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 77.
MIRIAN TAVARES

primentos, numa fórmula que se equivale a um compasso musical. O resultado


final depende do arranjo destes compassos, arranjo feito com uma certa precisão
matemática para que o filme ganhe em tensão e não se torne caótico. Podem-se
unir pedaços maiores e menores, alternadamente ou rearranjados de acordo com
o efeito que se deseja produzir. Um exemplo deste tipo de montagem, dado pelo
124 próprio Eisenstein, é o do filme O Undécimo Ano, de Dziga Vertov.
A famosa sequência da escadaria de Odessa, do filme O Encouraçado Potemkin,
foi construída a partir do conceito de montagem rítmica. Aqui o que vai interessar
não é apenas o comprimento dos fragmentos, mas o conteúdo de cada quadro.
Desta maneira, dependendo do tipo de fragmento que se escolhe, a ideia de com-
primento real é alterada, pois é o conteúdo do quadro que vai determinar o ritmo
da montagem. Partindo-se de um plano base, violenta-se este plano com a inserção
de imagens que não estão exatamente sincronizadas com o ritmo dos cortes. É por
isso que a descida da escadaria sofre um crescendo de tensão pela alteração que é
feita quando uma nova imagem atravessa o quadro. Segundo o diretor:

O impulso final da tensão é proporcionado pela transferência do


ritmo dos pés descendo para outro ritmo – um novo tipo de movi-
mento para baixo – o próximo nível de intensidade da mesma ativi-
dade – o carrinho de bebê rolando escada abaixo. O carrinho
funciona como um acelerador, diretamente progressivo, dos pés que
avançam. A descida degrau a degrau passa a descida de roldão.360

O artigo a que me refiro, publicado na revista inglesa Close Up, é onde Ei-
senstein fala, pela primeira vez, sobre o conceito de montagem tonal. Apesar de
possuir em sua base, como a montagem rítmica, a ideia da montagem métrica, a
montagem tonal pode ser considerada uma complexificação da montagem rítmica.
Enquanto que a última é impulsionada pelo movimento dentro do quadro, na pri-
meira o movimento é percebido num sentido mais amplo. “O conceito de movi-
mentação engloba todas as sensações do fragmento de montagem. Aqui a
montagem se baseia no característico som emocional do fragmento – de sua do-
minante. O tom geral do fragmento.”361 Por exemplo, se um fragmento possui uma
luminosidade mais sombria, imprime-se aí um determinado tipo de emoção que
será o tom dominante da sequência. Para Eisenstein é possível determinar o som
emocional que predomina em cada fragmento. Apesar da presença do ritmo, o
que vai prevalecer é a organização de vibrações. O som emocional vai determinar
o movimento de uma forma até mais sutil do que na montagem rítmica.
A montagem atonal é, segundo Eisenstein, “o desenvolvimento mais avan-
çado ao longo da linha de montagem tonal.”362 Na verdade os tipos de montagem
360
Op. cit., pp. 78-79.
361
Op. cit., p. 79.
362
Op. cit., p. 81.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

são percebidos a partir do momento em que atuam entre si, em conflito perma-
nente, o que permite uma evolução na passagem da métrica para a rítmica e desta
para a tonal e finalmente, chega-se à atonalidade. O processo torna-se cada vez
mais complexo, pois agora a montagem não é apenas a medida de um fragmento
ou o ritmo que pode ser impresso através da colagem de fragmentos maiores e/ou
menores. O próprio fragmento torna-se fundamental. Trabalha-se a partir do que 125
ele possui de significativo e a montagem será regida por uma ordem interna de-
terminada pelo próprio tom emocional de cada pequena parte.
Para explicar o efeito produzido por este tipo de montagem, Eisenstein re-
corre, mais uma vez, à música, já que é da música que ele retira as leis que regem
sua tipologia. O aumento do grau de intensidade emocional (que decorre da mon-
tagem atonal), “na música [...] é explicado pelo fato de que, a partir do momento
em que tons harmônicos podem ser ouvidos paralelamente ao som básico, tam-
bém podem ser sentidas vibrações, oscilações que deixam de impressionar como
tons, mas sim, em vez disso, como substituições puramente físicas da impressão
percebida.”363 Como exemplo temos algumas sequências de A Linha Geral, se-
quências estas que evidenciam a junção entre as linhas tonal e atonal: “Como nos
vários ‘ângulos’ da procissão religiosa: os que caem de joelhos diante dos ícones,
as velas que derretem, os suspiros de êxtase, etc.”364
Da montagem atonal parte-se para a montagem intelectual. Neste caso
temos um “conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas.”365 No
filme Outubro, a sequência dos deuses é determinada pelo conhecimento intelec-
tual que se tenha de cada fragmento para que faça sentido a associação entre
eles. Para Eisenstein este não era ainda o seu desejado cinema intelectual, mas
apenas um passo em direção a uma nova cinematografia, capaz de produzir uma
verdadeira revolução na história geral da cultura, “construindo uma síntese de
ciência, arte e militância de classe.”366 Alejandro Montiel, ao analisar os métodos
de montagem propostos por Eisenstein, sugere que a sua explicação da montagem
intelectual acaba por se tornar confusa, quando no fundo o que seria importante
frisar era a incorporação do conceito à imagem.
Eisenstein chegou a ser criticado por Kulechov e Pudovkin devido à inserção,
no filme, de alguns conceitos que prescindiam mesmo da ordem narrativa. Ambos
entendiam que

estas figuras retóricas resultaban más eficaces no como choques (tal


como quería Eisenstein) sino dentro de la lógica del relato (tal como
el propio Eisenstein utilizó en ocasiones; por ejemplo cuando, en Oc-

363
Op. cit., p. 83.
364
Ibidem.
365
Ibidem.
366
Op. cit., p. 84.
MIRIAN TAVARES

tubre, un asaltante al Palacio de Invierno pisa la corona del zar


cuando trata de trepar por la puerta).367

Apesar das críticas, a montagem intelectual, que acaba por incorporar todas
as outras e elevá-las a um nível mais alto, exigindo não só a cumplicidade emo-
126 cional mas, principalmente, exigindo do espectador uma cumplicidade intelectual,
torna-se a marca de um cinema construído com um intuito básico de promover
uma verdadeira revolução cultural.
O cinema de Eisenstein jamais perdia de vista o espectador. Seus filmes eram
realizados pensando no efeito exato que poderia causar, por isso, sua concepção de
montagem envolvia um estudo aprofundado das possibilidades que o cinema pos-
suía de atingir o espectador. Alejandro Montiel acredita mesmo que “cada uno de
los dispositivos estéticos del film (concebido como una ‘máquina de arte’) debía
estar previsto para controlar sus emociones como una especie de ‘reflejos condi-
cionados’.”368 É importante ressaltarmos este aspecto para que mais tarde possamos
compará-lo com outro tipo de cinema, o surrealista, que apostava na montagem
baseada no devir e não em estratégias pré-concebidas de ação e reações.
Em 1923, Eisenstein escreve seu primeiro ensaio que será constantemente
citado, pois nele encontramos a base de suas concepções sobre a montagem. Em
“Montagem de atrações”, escrito para a encenação no Proletkult de Todo Sabichão
tem um Pouco de Tolo, de A. N. Ostróvski, além de apresentar as ideias do teatro
do proletariado, desenvolve o conceito de atração. Eisenstein diz-nos que, do
ponto de vista teatral:

atração [...] é todo aspecto agressivo do teatro, ou seja, todo ele-


mento que submete o espectador a uma ação sensorial ou psicoló-
gica, experimentalmente verificada e matematicamente calculada,
com o propósito de nele produzir certos choques emocionais que,
por sua vez, determinem em seu conjunto precisamente a possibili-
dade do espectador perceber o aspecto ideológico daquilo que foi
exposto, sua conclusão ideológica final.369 (o itálico é meu).

Partindo então do conceito de atração no teatro, Eisenstein aponta as possi-


bilidades da utilização deste conceito no cinema. Visto que a atração, no teatro,
funciona como um elemento autônomo, poderíamos até dizer, como uma mô-
nada, responsável pela construção do próprio espetáculo, pode-se inseri-la em
quaisquer momentos em que se deseje produzir algum efeito. Ao contrário do
truque, que para Eisenstein é o resultado acabado no plano de uma determinada
habilidade artística, a atração concretiza-se com a cumplicidade do espectador.
367
Alejandro Montiel, Teorias del cine - un balance histórico, Barcelona, Montesinos, 1992, p. 49.
368
Op. cit., p. 44.
369
S. Eisenstein, “Montagem de atrações” in Ismail Xavier (org.), A Experiência do Cinema, p. 189.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Se observarmos a ideia da atração que irrompe na narrativa, sem ter necessaria-


mente uma relação efetiva ou de continuidade com esta, notamos que era preci-
samente o que Pudovkin e Kulechov condenavam em Eisenstein. Outra observação
importante é que, aparentemente, o conceito de montagem de atrações, visto
como a inserção de fragmentos aleatórios interrompendo o curso linear da nar-
rativa, pode levar-nos a pensar, por exemplo, na montagem surrealista, onde a ló- 127
gica que liga as partes não é submetida a uma lógica narrativa. Porém, logo
veremos que elas estão distantes entre si no que diz respeito ao efeito produzido
no espectador.
Quando Eisenstein nos explica o que vem a ser uma atração, destacamos os
seguintes termos: experimentalmente verificada e matematicamente calculada.
Logo se vê que seria impossível utilizar a mesma terminologia para uma obra sur-
realista. Apesar de Eisenstein, em dado momento, afirmar:

em lugar do reflexo ‘estático’ de um determinado fato que é exigido


pelo tema e cuja solução é admitida unicamente por meio de ações,
logicamente relacionadas a um tal acontecimento, um novo proce-
dimento é proposto: a montagem livre de ações (atrações) arbitra-
riamente escolhidas e independentes (também exteriores à
composição e ao enredo vivido pelos atores).370

A sua proposta nada tem a ver com a dos surrealistas, ou mesmo dadaístas,
porque o seu objetivo é atingir um certo efeito temático final, e no caso dos sur-
realistas, o efeito é, quase sempre, imprevisível371.
Um dos fatores a destacar ainda na montagem de Eisenstein é que, partindo
de uma imagem concreta, era possível chegar-se a um conceito puramente abs-
trato. Da mesma forma que nos ideogramas orientais, estudados detidamente
pelo cineasta russo, parte-se de duas figuras diferentes para atingir-se uma abs-
tração, algo que, a princípio, não é representável por meios concretos, no cinema
de Eisenstein as ideias são fruto da junção de dois elementos diversos que, isola-
dos podem significar uma outra coisa, mas quando colocados lado a lado, adqui-
rem a significação desejada pelo cineasta.
370
Op. cit., p. 191.
371
Conforme Alejandro Montiel, quando Eisenstein diz que o objetivo da montagem de atrações é
chegar a um determinado efeito temático final, oferece a chave armônica de sua teoria, “sólo apa-
rentemente similar a la escritura automática de los surrealistas o a la reivindicación de las provi-
dencias del azar del dadaísmo y otros movimientos de vanguardia, porque si bien estos impactos
estéticos pueden provocar extrañamiento (lo que beneficiará el distanciamiento crítico y la reflexión
del espectador, como quería por aquella misma época Brecht) y pueden incluso independizarse de
la linealidad narrativa (como en el célebre caso de La huelga, donde las imágenes de la represión
zarista se alternam con reses sacrificadas en el matadero), siempre deben estar sometidas a la
tiranía del tema o, repetiendo sus propias palabras, deben estar orientadas ‘hacia un determinado
efecto temático final’.” (Op. cit., p. 46).
MIRIAN TAVARES

O que me interessa reter sobre o conceito de montagem eisensteiniana, é


que em alguns momentos, principalmente no caso da montagem de atrações, teo-
ricamente temos uma convergência entre a quebra promovida por ele na linea-
riade narrativa e a violação dos sentidos, que é constantemente promovida pelos
surrealistas em seus textos artísticos. Outro ponto a salientarmos é que na filmo-
128 grafia de Eisenstein aparece muito claramente a fusão de todas as artes (marca
registrada das vanguardas do início do século). Detecta-se em seus filmes, de uma
forma quase cristalina, a presença do teatro (de onde, afinal, ele veio), da música
e das artes plásticas, além, é claro, da construção teórica e da produção de mani-
festos que se confundem mesmo com a obra em si.
Se de um lado temos as teorias da montagem dos formalistas, nomeada-
mente as de Eisenstein, por outro, como já foi dito, encontramos um tipo de mon-
tagem que prefere ocultar-se, não se tornando o centro das atenções do filme e
nem figurando como eixo teórico central, segundo o qual o filme se move. Vere-
mos a seguir alguns conceitos centrais que foram defendidos, principalmente, por
André Bazin, onde a montagem acaba por tornar-se um elemento periférico que
deve ser ocultado. Iremos falar sobre a montagem invisível.

IV.1.3. André Bazin e o cinema da transparência


Bazin, em 1953, escreveu que: “el montaje no puede utilizarse más que den-
tro de límites precisos, bajo pena de atentar contra la ontología misma de la fábula
cinematográfica.”372 Considerado um teórico realista (em oposição aos formalis-
tas), podemos inscrever melhor a obra de Bazin na fenomenologia, pois para este,
o cinema sustenta-se na possibilidade de revelar, como numa epifania, o mundo.
Assim, torna-se clara a sua reação contra um tipo de cinema que violentava esta
revelação, manipulando-a para obter efeitos pré-programados. A um cinema de
cortes visíveis, ele preferia um documentário, mais fiel ao mundo que se lhe apre-
sentava diante dos olhos. Se a câmera possuía o poder de perscrutar o mundo e
torná-lo mais visível, porque não deixar que esta cumprisse a sua missão?
A importância do pensamento de Bazin para a teoria cinematógrafica é ine-
gável373. Apesar de ter vivido apenas 40 anos, deixou um incontornável legado que
foi seguido por um grupo de jovens cineastas que provocaram o aparecimento de
uma nova vaga de possibilidades na realização cinematográfica. Não é nossa in-
tenção, como não o foi em relação a Eisenstein, desenvolver um profundo estudo
sobre suas teorias, mas trazer à tona algumas questões levantadas por ele no de-
correr da sua vida. A principal delas é a que diz respeito à montagem.
372
André Bazin apud Alejandro Montiel, op. cit., p. 62.
373
Para Margarita Schmidt Noguera, “fue André Bazin quien, desde una postura realista, no sólo
criticó fuertemente lo que consideró como excesos de los formalistas rusos, sino que impulsó en
toda Europa la crítica rigurosa y el estudio del cine en el ámbito universitario.” (Análisis de la reali-
zación cinematográfica, Madrid, Editorial Síntesis, 1997, pp. 16-17).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Em seu célebre e amplamente reeditado ensaio “Ontologia da imagem foto-


gráfica”, Bazin revela a sua posição em relação às imagens fotográfica e cinema-
tográfica. Neste ensaio é possível detectarmos as nuances de seu pensamento,
que parece, em alguns momentos, contradizer-se. Católico de formação, mergu-
lhado na fenomenologia e no existencialismo que povoavam o pensamento fran-
cês da época, Bazin constrói uma interessante teoria sobre o cinema: se, por um 129
lado, a imagem fotográfica, para ele, possui um caráter ontológico, pois a realidade
acaba por colar-se à sua reprodução, por outro lado ele reconhece que o cinema,
fotografia em movimento, é uma linguagem.
Assim, o cinema, ao mesmo tempo que revela o mundo, possui uma linguagem
que o constitui e distancia do real. O cinema não é só revelação, mas também cons-
trução, manipulação. O que Bazin nunca admitiu foi o excesso de cortes que atra-
vessavam o plano básico, tornando a revelação impossível, pois a manipulação ao
extremo das imagens acabava por desvirtuá-las, direcionando o olhar para o ato em
si e não para o que do mundo estava contido em determinada sequência.
Ao falar sobre Crin blanc, filme de Albert Lamorisse, Bazin comenta:

a tela reproduz o fluxo e refluxo de nossa imaginação, que se nutre


da realidade à qual ela projeta se substituir; a fábula nasce da expe-
riência que ela transcende. Mas, reciprocamente, é preciso que o
imaginário tenha na tela a densidade espacial do real.374

Portanto, a montagem não pode ferir a autenticidade das cenas, devendo ser
utilizada apenas dentro de limites precisos, sob pena de atentar contra a própria
ontologia da fábula cinematográfica. O cinema defendido por Bazin é aquele que
deixa a imagem fluir de modo quase imperceptível, tornando os cortes o menos
traumáticos possível, para que se tenha uma ilusão de continuidade espacial,
muito próxima daquela calcada na realidade375.
As concepções de Bazin relativas à montagem, conforme Jacques Aumont,
podem ser descritas a partir de três eixos: a montagem proibida; a transparência
e a recusa da montagem sem raccord. A questão da montagem proibida aparece
em um ensaio do mesmo nome, onde Bazin afirma: “Quando o essencial de um
evento depende de uma presença simultânea de dois ou vários fatores da ação, a
montagem é proibida.”376
374
André Bazin, O Cinema, São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 60.
375
“O sistema de Bazin baseia-se em um postulado ideológico de base, articulado em duas teses
complementares, que seria possível formular da seguinte maneira:
na realidade, no mundo real, nenhum evento jamais é dotado de um sentido totalmente determi-
nado a priori (é o que Bazin designa pela ideia de uma ‘ambiguidade imanente ao real’);
a vocação ‘ontológica’ do cinema é reproduzir o real respeitando ao máximo essa característica es-
sencial: o cinema deve portanto produzir representações dotadas da mesma ‘ambiguidade’ – ou
se esforçar para isso.” (J. Aumont et al., op. cit., p. 72).
376
André Bazin, Cinema, op. cit., p. 62.
MIRIAN TAVARES

Jacques Aumont explica-nos esta afirmação da seguinte maneira: se temos


cara a cara na diegese dois antagonistas, um caçador e uma caça, por exemplo,
cujo resultado do evento é indeterminado – não sabemos quem vencerá a con-
tenda –, usar o jogo da montagem, como a montagem alternada, mostrando su-
cessivamente planos ora de um, ora de outro, seria um engodo, pois a
130 indeterminação do resultado estaria sendo manipulada.377
O cinema da transparência é todo aquele que escamoteia a montagem, mos-
trando os eventos como que dotados de uma continuidade espaço-temporal que
de fato eles não possuem. Esta é uma noção dominante no chamado cinema clás-
sico. Bazin dá-nos uma definição deste tipo de cinema em seu livro sobre Orson
Welles:

Qualquer que seja o filme, seu objetivo é dar-nos a ilusão de assistir


a eventos reais que se desenvolvem diante de nós como na realidade
cotidiana. Essa ilusão esconde, porém, uma fraude essencial, pois a
realidade existe em um espaço contínuo, e a tela apresenta-nos de
fato uma sucessão de pequenos fragmentos chamados ‘planos’, cuja
escolha, cuja ordem e cuja duração constituem prescisamente o que
se chama ‘decupagem’ de um filme. Se tentarmos, por um esforço
de atenção voluntária, perceber as rupturas impostas pela câmera
ao desenrolar contínuo do acontecimento representado e compreen-
der bem por que eles nos são naturalmente insensíveis, vemos que
os toleramos porque deixam subsistir em nós, de algum modo, a im-
pressão de uma realidade contínua e homogênea.378

Neste caso, temos que Bazin defende um cinema que mascare a sua quali-
dade de ser cinema, colando-se o mais possível numa impressão de realidade. A
criação do cinema da transparência só foi possível a partir da noção de raccord,
que pode ser definido como “qualquer mudaça de plano em que há esforço de
preservar, de ambos os lados da colagem, elementos de continuidade.”379 E é exa-
tamente a noção de continuidade e de raccord que complementam a visão que
Bazin possuía da montagem – ao recusar a montagem sem raccord ele está apenas
377
J. Aumont et al., op. cit., pp. 73-74.
378
André Bazin apud J. Aumont et al., op. cit., p. 74.
379
Op. cit., p. 77. Aumont vai mais além e cita algumas das figuras de raccord criadas pelo cinema
clássico. A saber:
“- o raccord sobre um olhar: um primeiro plano mostra-nos um personagem que olha algo (em
geral fora do campo); o plano seguinte mostra o objeto desse olhar […];
- o raccord em um gesto: um gesto feito por um personagem começa no primeiro plano, termina
no seguinte (com mudança de ponto de vista);
- o raccord no eixo: dois momentos sucessivos (eventualmente separados por uma leve elipse
temporal) de um mesmo evento são tratados em dois planos, o segundo sendo filmado seguindo
a mesma direção, mas tendo a câmera se aproximando ou afastando com relação ao primeiro.”
(Ibidem.).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

reiterando as outras questões levantadas, pois ao ocultar o processo (que ele re-
conhece inevitável) da montagem, interdita-se o processo em si. Daí a sua prefe-
rência pelos planos longos e pela filmagem em profundidade de campo, em que
mais realidade aparece com o mínimo de cortes possível.
Do mesmo modo que podemos condenar os formalistas por sua paixão des-
medida pela montagem, podemos contestar a visão de Bazin, que propõe o mas- 131
caramento e defende um tipo de cinema em detrimento dos demais. O que nos
interessa deste longo debate entre teóricos com diferentes posições é retermos
que, seja através de uma escolha consciente, no caso de Eisenstein, ou da dene-
gação, no caso de Bazin, a montagem constitui-se no eixo sobre o qual desliza o
cinema. A partir desta conceituação da montagem é que tentaremos desvendar
qual o processo que Buñuel utiliza afinal na construção de seus filmes.

IV.1.4. Vanguardas ou a arte da montagem


Se a ideia de montagem não é premissa apenas do cinema, quando é que as
artes, de um modo geral, acabam por incorporá-la? Arnold Hauser considera que
o conceito bergsoniano de tempo, que se refere a uma ideia de continuidade e si-
multaneidade, marcará intensamente a arte do nosso século, pois para ele:

Nessa nova concepção de tempo quase todos os elementos da tes-


situra que formam a substância da arte moderna convergem: o aban-
dono do enredo, a eliminação do protagonista, a renúncia à
psicologia, o ‘método automático da escrita’ e, sobretudo, a monta-
gem técnica e a combinação de formas temporais e espaciais do
filme.380 (O itálico é meu).

Hauser acredita que nenhum meio foi tão capaz de expressar este novo con-
ceito de tempo, como o cinema381. Mas, se no cinema as fronteiras entre espaço
e tempo são fluidas, nas artes plásticas e na literatura o espaço não possui esta
mesma mobilidade, o que não impediu, por exemplo, o surgimento de obras como
a de Proust, que molda o tempo e o espaço como se estivera num filme.
A montagem é a possibilidade técnica que o cinema possui para tornar-se
fluido e pluridirecional – jogando com as possibilidades múltiplas de inserção de
momentos, que podem deslocar-se no espaço e no tempo para, em seguida, voltar
a recompor-se, dando uma ideia de unidade narrativa a um verdadeiro quebra-
380
Arnold Hauser, op. cit., p. 970.
381
Hauser, na mesma obra e página, escreverá: “A concordância entre os métodos técnicos do cinema
e as características do novo conceito de tempo é tão completa que se tem a sensação de que as
categorias temporais da arte moderna, como um todo, devem ter surgido do espírito de forma ci-
nematográfica, e fica-se propenso a considerar o próprio cinema como o gênero estilisticamente
mais representativo da arte contemporânea, embora qualitativamente talvez não o mais fértil.”
MIRIAN TAVARES

cabeças de planos. Não foi por acaso que as teorias de Eisenstein andaram em
torno da ideia de montagem – ele estava sendo fiel ao seu tempo e ao ideário das
vanguardas que, de um modo geral, estavam dispostas a fazer explodir as formas
convencionais de representação e a remontá-las a partir de outras diretrizes (ou
mesmo da total ausência delas).
132 O que Hauser encontra de revolucionário na montagem eisensteineana não
é apenas o fato de ela permitir dar novo ritmo ao filme, mas o embate promovido
entre os objetos, retirando-os da sua condição de fenômenos de um mundo ho-
mogêneo e transformando-os em “elementos totalmente heterogêneos da reali-
dade que se encontravam face a face.”382 O confronto entre duas realidades
diferentes tais como o homem e a máquina, a máquina e o homem, transforma
uma realidade única num continuum de interrelações onde um acaba por originar
o outro e vice-versa. Hauser acredita que “Uma tal transgressão consciente e de-
liberada, no entanto, pressupõe uma filosofia que nega a autonomia das esferas
individuais da vida, como faz o surrealismo e como fez, desde o começo, o mate-
rialismo histórico.”383
O conceito de montagem dos formalistas foi aos poucos sendo apoderado
por cineastas das mais diversas tendências que retiraram dali a carga ideológica e
transformaram-na em um expediente estritamente técnico, e como tal, passível
de ser usado como uma fórmula. Mas, no caso das vanguardas, a montagem surgiu
como um novo modo de reorganizar e ver o mundo, não apenas como uma fór-
mula estanque e esvaziada de sentido. A montagem é um conceito que se coaduna
com o tempo da simultaneidade e das possibilidades de retirar a arte de um lugar
estanque e recriá-la a partir de um novo olhar. (É o que Duchamp faz, por exemplo,
com a Mona Lisa, e Magritte faz com O balcão de Manet).
O conceito de montagem que nos interessa é aquele que diz respeito ao des-
manche promovido pelo contraste entre imagens que nunca estiveram interliga-
das, e que, ao serem postas lado a lado, desmontam as expectativas que as
tornariam coerentes384. A partir da montagem é possível promover um levante
contra o lugar comum; deixar que a percepção salte e que não seja disciplinada,
pois antes de mais nada, a montagem é algo que se realiza no tempo, mas num
tempo que funciona sob o signo do devir – tudo afeta tudo que com ele se rela-
cione. Enquanto a visão cronológica implica em linearidade, a montagem implica
em simultaneidade. E é este o tipo de montagem que é promovido pelo surrea-
lismo e que encontramos no cinema de Buñuel.

382
Op. cit., p. 986.
383
Ibidem.
384
A ideia de montagem à qual me refiro foi apresentada pelo Prof. Dr. João Mário Grilo em um semi-
nário que ele ministrou na Universidade Nova de Lisboa no ano letivo 97/98.
V.
A ARQUITETURA DO SONHO
V.1. A ARQUITETURA DO SONHO

Um plessiossauro adormecido entre os meus olhos


enquanto a música ardia num candeeiro
135
e a paisagem tomava uma paixão Tristão e Isolda
Buñuel

Um dos atos inaugurais da linguagem cinematográfica, a montagem, permite


a fragmentação do tempo e da vida, formando imagens que antes estavam pre-
sentes apenas nos sonhos385. Em um artigo publicado em 1925, Paul Ramain, en-
tusiasta do cinema e fundador de um dos primeiros cineclubes fora de Paris, tece
comentários sobre a influência do sonho nos filmes. Partindo das ideias de Freud,
que afirmara que o sonho seria “untranslatable in words, [and] can only be ex-
pressed by means of images”, Ramain acredita que o cinema, “like a dream, it is a
spontaneous manifestation of the unconscious or subconscious which is translated
into images.”386
As afinidades entre o cinema e o sonho são expressas por Ramain de diversas
maneiras: “The simultaneity of actions, soft-focus images, dissolves, superimpo-
sitions, distortions, the doubling of images, slow motion, movement in silence –
are these not the soul of dream and daydream?”387 Além disso, o sonho não é es-
tático, tal como o filme, move-se num continuum que permite recuos e avanços,
sem obedecer a uma linearidade cronológica. Da mesma forma, Epstein, ao estu-
dar o cinema, encontra no movimento deste uma ponte que o conecta direta-
mente com o imaginário humano.
Jean Epstein estava profundamente interessado na quarta dimensão da ima-
gem: o tempo. Esta entidade é analisada pelo cineasta e teórico francês através
de um estudo detalhado dos movimentos do cinema, que jogam com as perspec-
tivas temporais, através de processos de aceleração e retardamento. Apesar de,
neste ensaio, não relacionar diretamente a estrutura de funcionamento do cinema
com a do sonho, encontramos em Epstein a questão da condensação e do deslo-
camento que são tão bem conseguidos pela máquina cinematográfica, fazendo-
nos lembrar a construção mesma de um pensamento. Para ele:

385
“D’une manière générale, les surréalistes reconnaissent dans la technique cinématographique un
ensemble de moyens particulièrement aptes à transcrire les rêves, les désirs et l’activité de l’in-
conscient. Le montage autorise un bouleversement complet de l’espace et du temps quotidiens
[...]” (Gérard Durozoi e Bernard Lecherbonnier, Le surréalisme, p. 207).
386
Paul Ramain, “The influence of dream on the cinema” in Richard Abel (ed.), French Film Theory
and Criticism, vol. I, New Jersey, Princenton University Press, p. 362.
387
Op. cit., p. 363.
MIRIAN TAVARES

Ela [a máquina do cinema] é um instrumento material, sem dúvida,


mas com um jogo que oferece uma aparência tão elaborada, tão pre-
parada para o uso do espírito que já se pode considerá-la um meio
pensamento, um pensamento segundo regras de análise e síntese
que, sem o instrumento cinematográfico, o homem teria sido incapaz
136 de realizar.388

Em outro ensaio, “O cinema do diabo”, Epstein chega mesmo a comparar o


funcionamento do cinema com o do sonho. Segundo ele, “tanto quanto o filme,
o sonho amplia, isola detalhes representativos, produzindo-os no primeiro plano
dessa atenção que eles mobilizam inteiramente.”389 Além desta constatação, en-
contramos ainda a, talvez mais óbvia, de que tanto sonho como cinema são dis-
cursos visuais. É interessante observar que Epstein aponta para um certo
ordenamento que existe no sonho. Apesar da aparente anarquia, as imagens são
associadas por contiguidade e/ou por semelhança, sendo que a disposição geral
está submetida a uma orientação afetiva. As palavras de Epstein não estão distan-
tes das de Freud quando nos fala dos sonhos. Segundo Freud, mesmo nos sonhos
mais complicados de interpretar, onde não encontramos nenhuma conexão ime-
diata, é possível, após um trabalho minuncioso de análise, detectar os fios que
promovem a ligação entre aquilo que era aparentemente puro caos.
Epstein reconhece, porém, que, a despeito de o cinema ser um meio indicado
para reproduzir as imagens dos sonhos, a sua utilização neste sentido foi bastante
reduzida. Ele cita alguns exemplos de filmes que

marcam os primeiríssimos passos dados timidamente para a revela-


ção na tela de uma vida interior mais profunda com seu eterno mo-
vimento, seu secreto simbolismo, suas trevas impenetráveis para a
consciência e a vontade, seu império inquietante de sombras carre-
gadas de sentimento e instintos.390

A lista de Epstein é muito curta e nela encontramos apenas três filmes: o de


Germaine Dulac seguindo o roteiro de Artaud, o primeiro de Buñuel e o primeiro
de Cocteau. Os filmes citados por Epstein correspondem praticamente à lista dos
filmes considerados surrealistas391. Temos então que, tanto para os surrealistas
388
Jean Epstein, “A inteligência de uma máquina – Excertos” in Ismail Xavier (org.), A Experiência do
Cinema, pp. 289-290.
389
Jean Epstein, “O cinema do diabo - Excertos” in Ismail Xavier (org.), op. cit., p. 297.
390
Op. cit., p. 298.
391
É importante observar que, apesar da aparente convergência entre as ideias de Epstein e as dos
surrealistas, não havia uma ligação efetiva entre os seus trabalhos. Os surrealistas não gostavam
do cinema de Epstein por considerá-lo fruto de um excesso de preocupações estéticas. Por outro
lado, Epstein, a princípio, alertou Buñuel contra os surrealistas, quando este trabalhava como as-
sistente em seu filme La chute de la Maison Usher. Buñuel também não era um admirador do
cinema de Epstein, que estava mais próximo de Abel Gance, a quem Buñuel tecera crítica feroz. Cf.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

como para os teóricos franceses da época, as possibilidades que o cinema possuía


de revelar o inconsciente eram infinitas. No fim, porém, todos lamentam que tudo
não tenha passado de uma mera possibilidade pouco aproveitada pela cinemato-
grafia em geral.
Em fevereiro de 1925, Jean Goudal, como já foi mencionado, escreve um
texto que é considerado o primeiro a relacionar o surrealismo com o cinema. 137
Neste ensaio, Goudal, que não era surrealista, analisa o grande paradoxo do mé-
todo de criação surrealista que supõe colocar no mesmo plano o consciente e o
inconsciente. Goudal parte da premissa de que, por maior que fosse o desejo de
irracionalidade e de incomunicabilidade presentes no manifesto de Breton, foi ne-
cessário um mínimo de ordenação lógica para que sua mensagem fosse com-
preendida.392 Assim, a literatura, que era o alvo natural do surrealismo, não se
prestava tão bem aos seus fins. Enquanto que “Applied to the technique of cinema
the correctness and fecundity of the Surrealist thesis is all the more striking.”393
Porque Goudal acreditava na união perfeita entre as ideias dos surrealistas e
o cinema? Antes de mais nada porque, para ele: “The objection to method (the
difficulty of uniting the conscious and the unconscious on the same plane) does
not hold for cinema, in which the thing seen corresponds exactly to a conscious
hallucination.”394 O autor traça ainda várias analogias entre o cinema e o sonho,
chegando à conclusão, como foi dito anteriormente, que o cinema, então, como
uma “conscious hallucination”,395 “utilizes this fusion of dream and consciousness
which Surrealism would like to see realised in the literary domain.”396
É fundamental observarmos que as analogias feitas entre o cinema e o sonho
não se referem a um tipo de cinema que tornaria possível esta conexão, mas ao
cinema como um todo. Portanto, é pertença do cinema a potencialidade de fun-

Maurice Drouzy, o cinema de Epstein era o inverso do cinema de Buñuel. Pois, enquanto Epstein
“s’efforce de [...] créer une atmosphère ‘poétique’, une impression esthétique de mystère”, Buñuel
busca o insólito na própria realidade dos objetos. O que não o impedia de admirar a pessoa de
Epstein, conforme afirmou Georges Sadoul. (Maurice Drouzy, Luis Buñuel architecte du rêve, Paris,
L’Herminier, 1978, pp. 31-32).
392
Cf. Hauser: “O novo século está repleto desses profundos antagonismos; a unidade de sua concepção
de vida está tão profundamente ameaçada que a combinação dos extremos mais distantes, a uni-
ficação das maiores contradições, torna-se o tema principal, freqüentemente o único tema, de sua
arte.” Assim, o surrealismo que “procurou ser entendido sem os meios de entendimento, conver-
teu-se numa arte que fez do paradoxo de todas as formas, e do absurdo de toda a existência
humana, a base de seus pontos de vista.” Para Hauser, apesar de os surrealistas buscarem a
salvação da arte no inconsciente e no caos, “ainda se refugiam na racionalização do irracional e na
re-produção metódica do espontâneo.” (Arnold Hauser, op. cit., p. 966).
393
Jean Goudal, “Surrealism and cinema” in Richard Abel (ed.), op. cit., p. 353.
394
Op. cit., p. 355.
395
Ramona Fotiade explica-nos melhor o que Goudal entende por “conscious hallucination”: “The
conscious hallucination brought about by the rapid succession of film images surpasses the similar
hallucinatory state obtained through automatic speech and automatic writing insofar as the repu-
diation of logic can be more convincingly achieved in a purely visual medium, freed from the cons-
traints of spoken or written language.” (Ramona Fotiade, op. cit., p. 397).
396
Op. cit., p. 357.
MIRIAN TAVARES

cionar como um sonho. O que não quer dizer que tenha sido esta a sua utilização.
Por isso Goudal afirma: “It is time cinéastes saw clearly what profits they may gain
in opening up their art to unexplored regions of the dream.”397 São três, segundo
Goudal, as características essenciais do sonho que podem ser exploradas pelo ci-
nema. A saber: “the visual”; “the illogical” e “the pervasive”.
138 Quanto à visualidade, “the cinema is already so by force of circumstance,”398
pois o cinema é, antes de mais nada, imagens em movimento. Por ser imagens
em movimento não é necessário que elas sejam dispostas com um respeito, que
Goudal considera old-fashioned, pela lógica. Mas será que o encadeamento de
imagens não comandado pela lógica não faria com que o público se alienasse do
cinema? O que Goudal assevera então é que, se todo o cinema partisse desta pre-
missa, o público seria, pouco a pouco, educado. Quando propõe que o cinema
desrespeite a lógica, não está sugerindo uma perda total de referenciais. Pois,
como ele mesmo diz: “Man is only interested in what is close to him.”399 É neces-
sário, portanto, que as pessoas reconheçam elementos que pertencem ao seu
próprio processo inconsciente ali na tela.
Para resolver a questão da aproximação entre o que se passa na tela e os so-
nhos, Goudal lembra que: “the dream is pervasive.”400 Ou seja, o sonho penetra
tão profundamente em cada um que revela o que há de mais escondido em nossas
mentes. Sendo assim, como pode algo que diz respeito apenas à minha verdade
interior, ser reproduzido na tela atingindo de forma indiscriminada a maior quan-
tidade de pessoas possível? De certa forma, a resposta é dada pelo surrealismo:

One of Surrealism’s points of departure is the observation that every-


thing that emerges from the mind, even without logical form, inevi-
tably reveals the singularity of that mind. Man retains his personality
(all the more so perhaps) in his most spontaneous productions.401

O filme torna-se então, para Goudal, algo que penetrou suficientemente no


caráter humano por vir, exatamente, “from the brain of one of my peers.”402
Assim, o que há de humano, demasiado humano, nos cineastas, atinge a
mente de todos os demais, pois, no fundo, nossos processos de funcionamento
são os mesmos. A possibilidade de os filmes transformarem-se em veículo dos so-
nhos não se tornou, como podemos observar na história do cinema, em uma
regra. Os primeiros filmes de Buñuel, portanto, constituem-se numa exceção.

397
Op. cit., p. 358.
398
Ibidem.
399
Op. cit., p. 359.
400
Ibidem.
401
Ibidem.
402
Ibidem.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

V.1.1. Buñuel: arquiteto do sonho


A arquitetura do cinema de Buñuel realiza-se através de paradoxos. Por um
lado, o desejo de ser fiel à criação surrealista, por outro, o desejo de hipnotizar a
todos com um movimento constante, movimento este que não pertencia ao mundo
de imagens da pintura surrealista. O cineasta Stan Brakhage403, falando do seu fas-
139
cínio pelas imagens surrealistas, ressalta a “virtude da imobilidade” que elas pos-
suem. O movimento, quando existe, é suspenso, como nas telas de Ernst ou de Dalí.
Os poemas surrealistas também criam a suspensão do movimento, como se, por
um instante, conseguissem suprimir ou congelar o tempo. Mas ao falar desta su-
pressão no cinema, Brakhage está na verdade sob o efeito da hipnose buñueliana,
pois seu cinema não suprime o movimento404, o que ele faz é torná-lo invisível.
Tornar o movimento invisível. Intencionalmente Buñuel mexe com nosso me-
canismo de atenção, percebemos apenas o que estamos interessados em perce-
ber. Para Bergson, por questões de economia, crenças e exigências psicológicas405,
percebemos sempre menos. A imagem acaba sempre por escapar. O cineasta con-
segue manipular o tempo, utilizando reiterações com variações mínimas e, con-
comitantemente, profundas406. O tempo do cinema de Buñuel é o tempo cósmico,
cíclico, que começa e termina no mesmo ponto, saímos do lugar para permane-
cermos nele, estamos atados a um cosmos único e absoluto que é regido por leis
temporais próximas das do sonho. Para Deleuze407, o que Buñuel faz é aprofundar
o problema do tempo, aprofundamento que se torna cada vez mais visível no de-
correr da sua obra.
Em seu texto, “L’œil tranché”, Jean-André Fieschi vai destrinçar o que ele
chama de dispositivo do tríptico buñueliano, Un chien andalou, L’âge d’or e Las
Hurdes, que eiva toda a obra do cineasta. E qual é este dispositivo que move prin-
cipalmente o primeiro filme? A sua estruturação, já contida no prólogo408, que
constrói o filme através de condensações e deslocamentos, sem perder contudo
uma lógica, que faz da violência e transgressão um modo de montagem. Não existe
403
Em entrevista a Yves Kovacs recolhida em “Témoignages”, Etudes cinématographiques, 40-42, p. 157.
404
Jean-Claude Carrière, falando sobre o cinema de Buñuel afirma: “Cree firmemente en la fascinación
de la cámara en movimiento [...] No concibe, ni aun siquiera cuando trabaja en el guión, un plano
fijo. Sin embargo, no quiere que se noten jamás los movimientos. Éstos son imperceptibles [...]”
(apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 23). Ao contrário de Carrière, que fala sobre o movimento
em Buñuel, Maurice Drouzy, acredita que “il est le cinéaste des plans fixes.” (Op. cit., p. 23). Temos
aqui mais um paradoxo do cinema de Buñuel - o movimento existe, mas é quase como se fosse um
movimento provocado dentro da mente dos espectadores.
405
Apud Gilles Deleuze, A Imagem-tempo, São Paulo, Brasiliense, 1990, p. 31.
406
Se tomarmos como exemplo a transcrição do filme Un chien andalou, perceberemos que muitos
planos são repetidos em momentos diferentes do filme, como por exemplo:
“121 As 119. Dissolve.
122 Similar to 116, but hands now kneading buttocks on naked torso. Dissolve.
123 As 121.” (Luis Buñuel e Salvador Dalí, Un chien andalou, Londres, Faber and Faber, 1994, p. 23).
407
Gilles Deleuze, op. cit., p. 126.
408
Jean-André Fieschi, “L’oeil tranché”, Revue belge du cinéma, 33-5, 1993, p. 183.
MIRIAN TAVARES

aqui a escrita automática. A precisão da navalha que corta o olho é a mesma que
promove o encadeamento de imagens. Se a estrutura de associação é a dos so-
nhos, a sua realização está longe de ser delirante ou não-controlada.
Só alguém com um grande domínio técnico409, além de um conhecimento
profundo do outro cinema (o industrial), poderia transgredir com tanta mestria
140 as regras impostas, sem cair porém nos excessos cometidos pela vanguarda da
época. Para Jean-André Fieschi, Un chien andalou é um “Film sans incongruités,
l’envers même du cinéma dadaiste, l’anti-Entr’acte”410. O filme opõe-se à exube-
rância da vanguarda francesa; Buñuel é extremamente sóbrio na construção de
suas imagens, que apesar de apontarem para o inconsciente, não perdem o refe-
rencial do objeto captado pela câmara. O objeto é modificado, mas não diluído411.
Uma das marcas do cinema da vanguarda francesa do início do século era o
uso excessivo de truques em busca de se criar uma atmosfera lírica. Vimos, no ca-
pítulo sobre o cinema surrealista, a crítica que Desnos fazia a estes cineastas. Bu-
ñuel, que, como já foi dito, trabalhou com Epstein, antes de realizar seu primeiro
filme, compartilhava com Desnos a sua posição contra um cinema que ele consi-
derava artificial. Não eram apenas os impressionistas franceses (Epstein, Abel
Gance, Germaine Dulac) que o incomodavam. Os excessos do expressionismo ale-
mão também foram duramente criticados por ele. Para Buñuel “Ils travaillent ‘à
la limite de l’acrobacie’ ”.412 Maurice Drouzy tem uma hipótese muito aceitável
sobre a reação de Buñuel a este cinema dos excessos: antes de mais nada, por
uma questão pura e simples de economia.
Quando Buñuel decide fazer seu primeiro filme, ele não era propriamente
um estreante na área, pois além de trabalhar com Epstein, já havia escrito roteiros
e críticas de cinema em jornais e revistas. Ele sabia o quanto custava produzir um
filme, algo que, mesmo na época, era bastante caro413. Quando Fritz Lang lança
Metropolis, Buñuel escreve uma crítica escandalizado com a grandiosidade do
filme que custara 40 milhõs de marcos, exigira a presença de 40.000 atores e fi-
gurantes, além de gastar 2 milhões de metros de película para um aproveitamento
final apenas de 5.000 metros. Ele irá concluir que “l’argent n’est pas l’essentiel de
la production cinématographique moderne”, porque o dinheiro não é sinônimo
de qualidade. Buñuel dá como exemplo o filme de Cavalcanti, Rien que les heures,
que custara apenas 35.000 francos.414
409
“Buñuel, aunque no se preocupa de los tecnicismos, es un gran técnico. Monta sus películas en
ocho días [...].” (Jean-Claude Carrière apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 23).
410
Jean-André Fieschi, op. cit., p. 183.
411
Cf. Roy Armes, em Buñuel “the refusal of surface realism is complete - though the action may be
placed in a clearly recognizable world.” (Roy Armes, The Ambiguous Image, Indianapolis, Indiana
University Press, 1976, p. 31).
412
Cf. Maurice Drouzy, op. cit., p. 29.
413
Cf. Maurice Drouzy: “Dans les années 1920 il était impossible en France de réaliser un métrage
normal pour moins de cent à cent vingt mille francs (environ un million d’aujourd’hui). Les ‘grands’
films dépassaient cinq cent mille francs, voire même le million.” (Op. cit., p. 19).
414
Op. cit., p. 20.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

É interessante acompanhar o raciocínio de Drouzy, que vai aos poucos rela-


cionando uma questão que a princípio é puramente prática, a economia dos meios
de produção, com uma questão de fundo na construção da obra do cineasta ara-
gonês. Ele fala por exemplo que Buñuel nunca gastou mais do que o necessário
para realizar um filme, sendo um cineasta extremamente cumpridor de prazos e
orçamentos. Aliás, se assim não o fosse, dificilmente ele teria conseguido realizar 141
filmes no México. Mas, qual seria então a solução para realizar filmes sem gastar
demasiado e, principalmente, sem transigir da qualidade? A resposta de Buñuel,
segundo Drouzy, era muito simples: “réduire au maximum la période de tour-
nage.”, ponto sobre o qual o cineasta insistia sempre em suas entrevistas.415
A questão da economia não se refletia apenas na redução do tempo da rea-
lização, mas numa atitude que comandava todo o seu processo de criação. Para
reduzir o tempo de realização, era necessário contar com um planejamento mi-
nucioso que evitasse o desperdício de cenas e, consequentemente, de metros de
filme. Este era um dos segredos de Buñuel: “l’essentiel du film est fait avant que
la mise en scène commence.”416 Tal preparação foge completamente da ideia que
possamos ter de um cinema feito de puro automatismo. Como já disse anterior-
mente, o automatismo, como método, não foi tão utilizado quanto preconizado.
André Breton, em 1935, ao falar sobre a posição política do surrealismo, faz
referências ao automatismo, que é considerado por muitos a chave da criação sur-
realista:

O automatismo psíquico – será mesmo indispensável voltar ao as-


sunto? – nunca constituiu para o surrealismo um fim em si mesmo,
e pretender o contrário é demonstrar má fé. [...] Tratava-se de frus-
trar, de frustrar para sempre a aliança das forças que vela por que o
inconsciente seja incapaz de qualquer violenta erupção: uma socie-
dade que se sente ameaçada por todos os lados, como a sociedade
burguesa, pensa efectivamente, com razão, que tal erupção lhe pode
ser fatal.417

Reduzir o ato de criação surrealista apenas ao automatismo é, como bem


disse Breton, uma questão de má fé. De uma vez por todas é necessário com-
preendermos que o automatismo, bem como as outras técnicas surrealistas, fazia
parte de um ideário ético e estético muito maior. O desejo de libertar o incons-
ciente de toda e quaisquer repressões impostas pela sociedade burguesa era a fi-
415
Op. cit., p. 22. Drouzy dá-nos alguns exemplos do tempo que Buñuel gastava para rodar um filme:
“Susana a été tourné en vingt jours et El bruto en dix-huit jours. Ses autres films mexicains n’ont ja-
mais demandé plus de quatre semaines de tournage. [...] Pour Le charm discret il avait été prévu
dans le contract quarante-huit jours de tournage. Buñuel parvient à en économiser quatre et à
tourner son film en quarante-quatre jours.” (Ibidem).
416
Buñuel apud Drouzy, op. cit., p. 24.
417
André Breton, Manifestos do Surrealismo, p. 230.
MIRIAN TAVARES

nalidade de tudo. Na verdade, o automatismo pode ser visto como um resquício


do ideal romântico da inspiração acima da racionalização cartesiana do saber.
O cinema de Buñuel pode ser arquitetado segundo normas que estão longe
de ser consideradas automatismo, sem que com isso fira a sua condição de ser
surrealista. Para Breton “o texto automático e o poema surrealista não são menos
142 interpretáveis que o relato de um sonho, e [...] nada se deve desprezar para levar
a cabo, de cada vez que podemos ser postos nesse caminho, tais interpreta-
ções.”418 O que nos resta é levantar quais são os pontos que tornam o primeiro
filme de Buñuel a concretização do sonho dos surrealistas.
Se Buñuel não reproduziu os excessos dos seus contemporâneos cineastas
de vanguarda, como é que ele conseguiu projetar na tela uma ilusão mais que
perfeita de um pesadelo compartilhado? Tecnicamente o cinema de Buñuel é bas-
tante simples. Uma pirueta técnica só teria lugar em seus filmes se fosse plena-
mente justificada. De acordo com Drouzy, ele não corria o risco de sucumbir “au
péché d’esthétisme en prenant de trop belles images.”419 Na realidade, o que Bu-
ñuel faz, conhecendo muito bem o meio, é utilizar as possibilidades que este pos-
sui de atuar na mente do espectador. Paul Ramain, ao falar do cinema, ressaltava
o caráter hypnogenic – neologismo criado por ele a partir das palavras hypnotic e
photogenic – que este possuía. Vimos também as aproximações que Goudal pro-
põe entre o cinema e o sonho, ou seja, entre o cinema e a nossa capacidade de
criar imagens. Segundo Jacques Aumont “o cinema, ao conjugar imagem visual e
narração, articula mais manifestamente o desejo e as pulsões”,420 portanto ele age
como um provocador que reordena o nosso desejo e alimenta voyeristicamente
as nossas pulsões.

418
Op. cit., p. 231.
419
Maurice Drouzy, op. cit., p. 23. Para exemplificar o que diz, Drouzy conta um episódio que ocorreu
durante as filmagens de Nazarín. Episódio este também narrado por Augustín Sánchez Vidal em
seu livro, Luis Buñuel. Buñuel estava trabalhando com Gabriel Figueroa (grande fotógrafo do
cinema, influenciado por Eisenstein e pelo expressionismo alemão, como ele mesmo afirmou em
um entrevista a Antonio Castro na revista Dirigido, nº 258, junho de 1997), que declarou ter apren-
dido um truque para trabalhar com Buñuel. “No hay más que plantar la cámara frente a un paisaje
soberbio, con nubes magníficas, flores maravillosas, y cuando estás listo le vuelves la espalda a
todas esas bellezas y filmas un camino lleno de pedruscos o una roca pelada.” (Apud Augustín Sán-
chez Vidal, Luis Buñuel, p. 214).
420
Jacques Aumont, A imagem, p. 125. Aumont explica-nos ainda a noção de pulsão, termo essencial
à psicanálise freudiana. Pulsão, a princípio, seria uma remodelação da noção anterior de instinto.
“Para Freud, a pulsão é ‘a representação psíquica das excitações provenientes do interior do corpo
e que chegam ao psiquismo’: é pois o lugar do encontro entre uma excitação corporal e sua ex-
pressão em um aparelho psíquico que visa dominar essa excitação.” A palavra pulsão, que em
latim significa empurrar, tem exatamente por objetivo empurrar o sujeito para que seja satisfeita
determinada pulsão. (Op. cit., p. 124).
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

V.1.2. O objeto surrealista


Augustín Sánchez Vidal aponta uma característica que ele acha fundamental
no cinema de Buñuel: “su peculiar utilización de los recursos subliminales, de ese
flujo o magma que subyace bajo la conciencia y que él modula mediante unos me-
canismos que no son muy distintos de la técnica empleada para construir, por 143
ejemplo, los ‘objetos surrealistas’.”421
Em 1935, Breton pronuncia uma conferência em Praga intitulada “Situação
surrealista do objeto”. O que ele pretendia nesta conferência era separar o joio
do trigo, ou seja, definir o que era, efetivamente, um objeto surrealista para evitar
que “todas as espécies de produções mais ou menos discutíveis tendam a cobrir-
se com a sua etiqueta.”422 Man Ray havia sugerido que se criasse uma espécie de
etiqueta ou selo que tornasse o objeto surrealista reconhecível por todos. Seria
algo como colar ao objeto a seguinte frase: é um objeto surrealista. Apesar da iro-
nia da sugestão, Breton acreditava que não seria uma má ideia. Todavia seria me-
lhor que todos compreendessem o modo como o surrealismo concebia o objeto423.
Para avaliarmos o modo como Buñuel trata as imagens, aproximando-as de
um legítimo objeto surrealista, acredito que seja necessário ter como ponto de
partida uma definição do mesmo. A preocupação de Breton era legítima, porque
houve sempre uma tendência a utlizar a etiqueta surrealismo para criações que
estavam, na verdade, bem distantes daquilo que foi concebido pelos idealizadores
do movimento. Se, por um lado, o dito objeto possui uma materialidade quando
realizado a partir da ideia dos ready-mades de Duchamp424, ele também está pre-
421
Augustín Sánchez Vidal, “Imaginación sin hilos”, Turia. Revista cultural, nº 28-29, maio de 1994,
p. 115.
422
Para Breton era inadmissível que “obras de tendência ‘abstractivista’, na Holanda, na Suíça e, se-
gundo as últimas notícias, na Inglaterra” pudessem travar “com as obras surrealistas relações equí-
vocas de vizinhança, é assim até que o inominável senhor Cocteau conseguiu imiscuir-se em expo-
sições surrealistas na América, em publicações surrealistas no Japão.” (André Breton, “Situação
surrealista do objeto” in Manifestos do Surrealismo, pp. 267-268).
423
Para evitar mal-entendidos, Breton afirma: “Especifico que na expressão «objecto surrealista»
tomo a palavra objecto no seu sentido filosófico mais lato, abstraindo-o provisoriamente da acepção
muito particular que entre nós correu nos últimos tempos: sabem que se criou o hábito de entender
por «objecto surrealista» um tipo de pequena construção não escultórica, cuja importância, aliás,
espero depois fazer compreender, mas que nem por isso pode pretender exclusivamente esse
título, que recebeu por falta de designação mais apropriada.” (Op. cit., p. 269).
424
Salvador Dalí define o objeto surrealista de funcionamento simbólico como sendo um “objecto
que se presta a um mínimo de funcionamento mecânico e que se baseia nos fantasmas e repre-
sentações susceptíveis de serem provocados pela realização de actos inconscientes” e que estes
objetos poderiam corresponder “a fantasias e desejos eróticos nitidamente caracterizados” de-
pendendo apenas “da imaginação amorosa de cada um.” É importante frisar que, para Dalí, os ob-
jetos surrealistas, de funcionamento simbólico, são extraplásticos. Breton acredita que é importante
fixar a importância de Duchamp na elaboração desses objetos. Os seus ready-mades (objetos ma-
nufaturados promovidos à dignidade de obra de arte pela escolha do artista) estão, sem dúvida,
na base da criação do objeto surrealista. O que os diferencia é o sentido simbólico com o qual os
surrealistas irão revestir seus objetos. (Op. cit., pp. 291-292).
MIRIAN TAVARES

sente, em potência, em um meio essencialmente não plástico como a poesia425.


Essa afirmação se faz necessária para que se possa apreciar que, mais importante
do que o objeto em si, o que interessa é a utilização surrealista que se faz do
mesmo, seja na poesia, na pintura, ou no caso de Buñuel, no cinema.
André Breton acreditava que era necessário fazer, como o fez muito bem Pi-
144 casso “apreender o objecto na sua generalidade e, logo que o conseguiu, tenta então
esse caminho supremo que é o caminho poético por excelência: excluir (relativa-
mente) o objecto exterior como tal e considerar a natureza apenas na sua relação
com o mundo interior da consciência.”426 Em outras palavras, o que Breton pretendia
era isolar o objeto e (re)transformá-lo a partir da suas relações com o inconsciente,
despertando ali um fluxo de imagens relacionáveis com o objeto inicial.427
Acredito na possibilidade de relacionar a utilização do objeto surrealista em
Buñuel com a construção das obras de Max Ernst a partir do processo denominado
por este frottage. Ernst acreditava que o objecto surrealista surgira a partir da cé-
lebre frase de Lautréamont (o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma má-
quina de costura sobre uma mesa de dissecção), ou seja a junção de realidades
“aparentemente inacasaláveis num plano que, aparentemente, não se harmoniza
com elas”428, provocava o surgimento de uma outra realidade, criada a partir do
que ele classifica como “a cultura dos efeitos de um despaisamento sistemático”429.
Retirar os objetos de seus lugares comuns e isolá-los em outro contexto, é o mesmo
que dotá-los da capacidade de fugir de um destino ingênuo, que parece ter sido fi-
xado para sempre. A fórmula de Lautréamont transforma-se num método.
Ernst considerava legítimo o processo concebido por Lautréamont e utlizado
largamente pelos surrealistas, incluindo ele próprio. Mas na sua evolução pessoal
ele encontrou um outro processo, que não deixa de estar enraizado nas ideias do
anterior. A este novo processo ele dará o nome de frottage:

Partindo de uma recordação de infância, em que um painel de imita-


ção de mogno, situado diante da minha cama, desempenhou a função
de provocador óptico de uma visão de semi-sono, e encontrando-me,

425
A inclusão de um vocábulo como “essencialmente” prende-se com o caráter plástico configurado
à poesia ao longo do século XX a partir das premissas estabelecidas pelos movimentos de vanguarda.
Assim, tenham-se em conta as manifestações levadas a cabo, entre muitos outros, por Guillaume
Apollinaire, ou, mais recentemente, a poesia concreta. Por sua vez, não nos esqueçamos também
de que as próprias artes plásticas exibirão textos poéticos nas suas telas.
426
André Breton, op. cit., p. 271.
427
Augustín Sánchez Vidal, para explicar as possibilidades que o uso desses objetos teriam na tela,
utliza uma citação de Epstein. Para o cineasta e teórico francês, “El aislamiento de todo primer
plano ocasiona una especie de objeto surrealista, es decir, de objeto desplazado, hurtado en su
sentido y empleo común a favor de un sentido y un empleo especiales; a veces muy concreto y li-
mitado, otras muy amplio en su simbolismo; pero siempre de acuerdo con el clima sentimental,
con las ensoñaciones suscitadas por la película.” (Jean Epstein apud Augustín Sánchez Vidal, op.
cit., p. 116).
428
Max Ersnt apud André Breton, op. cit., p. 290.
429
Ibidem.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

num dia de chuva, numa estalagem à beira-mar, fui impressionado


pela obsessão exercida, sobre o meu olhar irritado, pelo soalho cujas
ranhuras tinham sido acentuadas por mil e uma lavagens.430

A partir dessa obsessão, Ernst decidiu interrogar-se sobre o simbolismo que


ela poderia possuir. Assim, colocou ao acaso folhas de papel sobre as tábuas do 145
chão, depois esfregou um lápis de grafite sobre elas obtendo uma série de dese-
nhos, que aos poucos foram se transformando em imagens muito precisas. O que
era inicialmente uma obsessão, tornou-se um método: objetos como folhas, sacos
desfiados, linha de um carrinho desenrolada, criavam, quase que a despeito do
pintor, novas imagens. Partindo de um fio de memória que o atava a determinado
objeto, Ernst permitia que esta impressão o dominasse tão intensamente que de-
senrolasse todo o fio de relações que ela suscitava. Deste processo surgiram qua-
dros como Mulheres atravessando uma ribeira gritando e Homem caminhando
sobre a água, agarrando pela mão uma menina e abandonando outra. Obras que
foram provocadas pela simples visão de um cordel em cima de uma mesa ou pelas
palavras o pai imóvel.
O cinema de Buñuel é atravessado pelas memórias do autor. Memórias da
infância, da época em que viveu na Residência em Madrid. Memórias até mesmo
ancestrais, que são retiradas por ele, através de técnicas surrealistas, das profun-
dezas de seu inconsciente. Ao falarmos que no cinema de Buñuel existe uma cons-
trução muito precisa distante do que poderíamos chamar automatismo, não
significa que o processo inicial de construção não esteja de acordo com os pro-
cessos de criação preconizado pelos surrealistas. Conforme Sánchez Vidal:

Su coguionista Carriére ha dejado testimonio del dominio buñuelesco


de la técnica cinematográfica, pero también – y sobre todo – de
aquellas que permiten desbloquear el flujo de imágenes irracionales
desde el subconsciente hasta la conciencia, entrenando la imagina-
ción como un atleta sus músculos.431

Vimos também como Un chien andalou nasceu, segundo Buñuel, da confluên-


cia de dois sonhos.
Da mesma forma que um objeto despertava em Max Ernst um fluxo de ima-
gens, Buñuel desenrolava as suas narrativas a partir de elementos da memória.
Podemos tomar como exemplo os burros apodrecidos que aparecem em Un chien
andalou. A imagem da decomposição carnal está presente em Buñuel desde a sua
adolescência. Em suas memórias ele conta o seguinte episódio:

430
Ibidem.
431
Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel, p. 22.
MIRIAN TAVARES

Un día, mientras paseaba con mi padre por un olivar, la brisa trajo


hasta mí un olor dulzón y repugnante. A unos cien metros, un burro
muerto, horriblemente hinchado y picoteado, servía de banquete a
una docena de buitres y varios perros. [...]. Yo me quedé fascinado
por el espectáculo, adivinando no sé qué significado metafísico más
146 allá de la podredumbre.432

Em 1928, Buñuel e Dalí escrevem uma carta a Juan Ramón Jimenez, após este
ter lançado um livro, Platero y yo, pelo qual ganhará um Nobel na década de 50.
A carta, que era duríssima, dizia entre outras coisas: “Merde! Para o seu Platero e
eu, para o seu fácil e mal intencionado Platero e eu, o burro menos burro, o burro
mais odioso com que temos tropeçado.”433 É possível que o cruzamento de me-
mórias entre o burro apodrecido da adolescência e Platero, o burro odioso, este-
jam na origem da presença dos burros apodrecidos em seu primeiro filme.
O objeto surrealista que surge do deslocamento e que, no caso do cinema de
Buñuel, é construído através do primeiro plano, possui uma função importante nos
seus filmes, pois a construção de seu cinema é feita a partir da colagem de ele-
mentos isolados, unidos pelo fio das relações que eles possam vir a despertar.
Sejam relações entrelaçadas pela memória, sejam relações que funcionam como
“una serie de minas que estallen no fuera, sino en el interior del espectador.”434 O
cinema presta-se perfeitamente ao papel destinado a ele pelo cineasta, pois é um
meio que vive quase que exclusivamente só de associações.435 A Buñuel resta então
trabalhar estas associações de um modo surrealista, ou seja, deixar que elas sejam
despertadas por explosões do inconsciente provocadas por objetos/imagens-chave,
de tal forma que cada espectador sinta-se incomodado, ou obcecado, como Ernst,
por um elemento, aparentemente inocente, que fustiga as suas pulsões.

V.1.3. A chave de ouro


Buñuel disse certa vez que a montagem era a “clé d’or du film”436. É uma afir-
mação muito interessante se observarmos que, em seu cinema, a desmontagem
(decupagem) ocupava um lugar mais importante, por isso que ele não gastava,
conforme Carrière, mais de oito dias para montar um filme. Está claro que os dois
processos são faces da mesma moeda, ambos dizem respeito a uma questão de
432
Luis Buñuel, Mi ultimo suspiro, p. 17.
433
Cf. J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, p. 35. Aranda diz ainda que passados 45 anos Buñuel
permanecia com a mesma opinião sobre o livro. Lamentava apenas esse arrebato juvenil que pro-
vocou um desgosto tal a Juan Ramón Jimenez que este caiu de cama durante três dias.
434
Augustín Sánchez Vidal, “Imaginación sin hilos”, p. 117.
435
Cf. Jean-Claude Carrière: “O cinema [...] desempenhou um papel insubstituível na exploração de
associações. Em primeiro lugar, porque vive exclusivamente de associações: entre imagens, emoções,
personagens.” (Jean-Claude Carrière, A linguagem Secreta do Cinema, p. 34).
436
Luis Buñuel apud Maurice Drouzy, op. cit., pp. 26-27.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

ordenar as imagens. Enquanto a montagem é uma reconstrução, a decupagem é


exatamente o seu oposto – uma desconstrução. Processo que Drouzy, em oposição
a montagem, considera negativo. E, pegando na ideia de negação, Drouzy encontra
uma maneira de definir o cinema de Buñuel: “La définition de son propre cinéma
sera donc en premier lieu une définition négative: il exclut un certain nombre de
possibilités, prend ses distances par rapport à la majorité des cinéastes patentés 147
ou reconnus.”437
O cinema de Buñuel é a negação da própria exuberância vanguardística. É o
cinema da contenção. Apesar de admirar Eisenstein, o seu conceito de montagem
está muito mais próximo daquele preferido por Bazin, onde a montagem, quando
existe, deve ser ocultada para tornar-se invisível. Mas, em Buñuel, o desejo de in-
visibilidade estava ligado diretamente ao desejo de hipnotizar a todos438, de pro-
vocar, como bem disse Sánchez Vidal, “cortocircuitos” no inconsciente. Assim, esse
processo, em Buñuel, busca criar uma tensão “subliminal que va se arrastrando
en ocasiones durantes secuencias enteras, hasta resolverla imprimiendo un giro
a la acción.”439
Se o cinema de Buñuel, como disse Drouzy, pode ser definido pela negação,
encontramos elementos que comprovam esta assertiva. Como já foi reiterado al-
gumas vezes, Buñuel, apesar de participar ativamente de um movimento de van-
guarda, faz do seu primeiro filme uma negação dos métodos utilizados pelo
cinema vanguardista da época; por outro lado, mesmo inserido no contexto das
vanguardas, seu filme, tecnicamente, está mais próximo da decupagem clássica.
E é neste ponto que encontramos um dos elementos que reafirmam a genialidade
do cineasta: utilizando o cinema clássico, aquele da montagem invisível, que pro-
cura envolver a tal ponto o espectador que este esqueça estar diante de um filme,
ele simplesmente ignora as suas regras ao colocar elementos perturbadores na
ordem linear da narração.
Como um exemplo desse uso subversivo que Buñuel faz da decupagem clás-
sica, temos a sequência de Un chien andalou onde:

Um personagem se aproxima de uma porta e move a mão em direção


à maçaneta. No quadro seguinte, que se encadeia perfeitamente com
o anterior, sua mão, em closes, abre a porta. Entre esses dois qua-
dros, que justamente sucedem um ao outro, Buñuel inseriu um fade-

437
Maurice Drouzy, op. cit., p. 28.
438
Cf. Augustín Sánchez Vidal: “Muy capaz de despertar y sacudir al más pasivo de los espectadores
cuando así le conviene (basta recordar el ojo seccionado de Un perro andaluz), Buñuel también es
muy consciente de la capacidad de manipulación y convicción de la imagen en movimiento, que
emplea para sus fines con singular habilidad. En una entrevista declaraba que no precisaba para nada
de grandes alardes técnicos, sin embargo - insistía – ‘lo que siempre necesito es poder tener la cámara
en movimiento (claro que sin que sea evidente) porque creo en el poder hipnótico de la imágen diná-
mica; lo que yo llamo adormecer al espectador’.” (Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel, p. 23).
439
Augustín Sánchez Vidal, “Imaginación sin hilos”, p. 117.
MIRIAN TAVARES

in. As duas imagens sucessivas se fundem uma na outra num curioso


desequilíbrio – um feito acrobático, um floreio, uma fanfarronice –,
como que contrabandeando um misterioso pedaço de tempo para
dentro de uma aparente continuidade.440

148 Em seu primeiro filme, sistematicamente encontramos este recurso que sub-
verte a lógica da narração. Sem diluir os objetos, Buñuel procura que eles sejam
ligados por movimentos regidos pelas obsessões da pulsão. Mas, ao mesmo
tempo, ele não deixa que estas pulsões encontrem tão facilmente a sua satisfação.
Freud acreditava que os sonhos infantis, geralmente, estavam diretamente ligados
à satisfação de um desejo. Ao contrário, nos adultos, mesmo quando há a busca
da satisfação de um desejo, esta aparece de uma forma mais complexa. Para
Freud: “No con escasa frecuencia resalta en un largo sueño complicado, y en ge-
neral confuso, un trozo especialmente claro, que contiene una inegable realización
de deseos, pero que está ligado con el restante material incomprensible.”441
Mesmo apresentando uma aparente relação com a satisfação imediata de
um desejo, Freud ressalta que nem sempre as aparências correspondem à ver-
dade. Muitos sonhos são tão intricados que não nos é facultada a chave de sua
decifração. O que os torna mais confusos é precisamente um dos processos pelo
qual eles são construídos, a saber, a chamada condensação. Em uma só imagem
vários pedaços de lembranças, fatos, pessoas e até desejos. Uma imagem que pre-
cisa ser decupada para que se possa chegar a uma qualquer compreensão.
Os sonhos, em sua maioria, ainda segundo Freud, são compostos de elemen-
tos latentes que necessitam ser transformados em manifestos para que possamos
compreendê-los. É fácil então perceber que o processo de construção de Buñuel
parte precisamente da utilização de elementos latentes, que aparecem conden-
sados, e que, com alguma dificuldade, torna-se possível torná-los manifesto. Desta
maneira é que ele provoca curto-circuitos em nosso inconsciente.
As condensações e os deslocamentos que ligam as imagens de Un chien an-
dalou, e que são reiteradas na obra de Buñuel, são a forma encontrada por ele para
esculpir o tempo – esta entidade fugidia que, milagrosamente, o movimento do ci-
nema procura reter. “É preciso, portanto, que a imagem seja presente e passada,
ainda presente e já passada, a um só tempo, ao mesmo tempo”442, palavras de De-
leuze, que utiliza Bergson, tentando desvendar o mistério do tempo, que é atual e
virtual, pois cada momento de nossa vida oferece a possibilidade de sermos me-
mória e percepção. Desta maneira, o cinema de Buñuel atualiza o paradoxo da exis-
tência: imbricar o tempo, tornando-o circular. Estamos em movimento e parados,
numa suspensão temporal já prevista nas telas dos pintores surrealistas, só que,
como já disse, uma suspensão falsa, criada pela invisibilidade do movimento.
440
Jean-Claude Carrière, op. cit., p. 116.
441
S. Freud, Los sueños, Madrid, Alianza Cien, 1995, p. 30.
442
Gilles Deleuze, op. cit., p. 99.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

Ao contrário da montagem eisensteineana, a montagem de Buñuel é feita do


devir: “Um tufo de pelos se torna um ouriço, que se transforma em cabeleira cir-
cular, para dar lugar a um círculo de curiosos”443. Um devir feito de imagens con-
cretas e circulares, criando rimas plásticas, transformando a escritura do filme na
realização de um poema. Buñuel tentou, toda a sua vida, fugir das amarras da in-
149
terpretação. Ao falar de seu primeiro filme, ele pedia: “Au lieu d’essayer d’expliquer
les images, on ferait mieux de les accepter comme elles sont. Nous devrions nous
contenter de savoir si elles nous répugnent, nous émeuvent, ou nous attirent”444.
Seu desejo (?) não poderia ser realizado, as imagens são tão perturbadoras, de uma
violência tão primitiva, que seria impossível resistir à tentação de analisá-las, como
ele próprio fez com outros filmes quando era crítico dos Cahiers d’art. Uma violên-
cia que também o afastava do imaginário do surrealismo francês. Não que esta vio-
lência fosse negada, pois pelo contrário ela era uma força tão poderosa do
inconsciente que precisava ser exposta. Mas a forma de expô-la, tão cruamente
como em um documentário, não fazia parte do programa do movimento.
Quando Un chien andalou estréia em Paris, Eugenio Montes publica uma re-
senha na Gaceta literaria:

La belleza bárbara, elemental – luna y tierra – del desierto, en donde


‘la sangre es más dulce que la miel’, reaparece ante el mundo. No.
No busquéis rosas de Francia. España no es un jardín, ni el español
es jardinero. España es planeta. Las rosas del desierto son los burros
podridos. Nada, pues, de sprit. Nada de decorativismos. Lo español
es lo esencial. No lo refinado. España no refina. No falsifica. España
no puede pintar tortugas ni disfrazar burros con cristal en vez de piel.
¡Los Cristos en España sangran! Cuando salen a la calle van entre pa-
rejas de la Guardia Civil.445

Por mais que Buñuel estivesse próximo do surrealismo, ele carregava consigo
uma visão profundamente espanhola do mundo, herdeira de Goya446 e Zurbarán,
como vimos, herdeira também de seus companheiros da Geração de 27, cons-
truída por uma “obcessão [sic] [...] pela morte, o tema espanhol da decomposição
carnal”447.
443
Gilles Deleuze, op. cit., 1990, p. 74.
444
Apud Tomás Pérez Turrent e José de la Colina, Conversations avec Luis Buñuel, Paris, Cahiers du Ci-
néma, 1993, p. 31.
445
Apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 17.
446
Goya será sempre uma figura emblemática para Buñuel. Tal como o pintor, ele também foi acusado
de um certo afrancesamento. Entre os anos 1926-1927, Buñuel planejara realizar um filme sobre
Goya para aproveitar as celebrações do centenário de sua morte (que seria em 1928). O projeto,
infelizmente, ficou apenas no roteiro escrito pelo cineasta.
447
J. F. Aranda, Os poemas de Luis Buñuel, p. 51.
MIRIAN TAVARES

Os desertos de Espanha vão estar explicitados em seu filme Las Hurdes, um


documentário surrealista448, pois apesar de uma aparente consonância com o gé-
nero documentário, é realizado com o mesmo espírito dos filmes anteriores (para
Fieschi, no estudo já citado o tríptico buñueliano é um grande prólogo ao seu ci-
nema). Assim, Buñuel faz uma montagem entre os ideais surrealistas e uma tra-
150 dição que o acompanha e emerge em seu imaginário. A precisão documental
como ele trabalha as imagens acaba por destacá-lo do cinema vanguardista fran-
cês e, de certa forma, aproxima-o de uma outra concepção de montagem, pre-
sente na obra de Georges Bataille.
A relação de Bataille com os surrealistas sempre foi muito ambígua, ora apro-
vando manifestações destes, ora reagindo violentamente contra Breton. Um dos
principais pontos de divergência entre ambos estava no sentido do horror que im-
pregnava a obra de Bataille, que tentava chegar ao mundo através do sórdido e de
um choque provocado pela reorientação do olhar através do embate com outras
culturas449, enquanto que Breton pregava no II Manifesto a necessidade de uma
purificação para ser-se digno da Revolução Surrealista: “M. Bataille fait profession
de ne vouloir considérer au monde que ce qu’il y a de plus vil, de plus décourageant
et de plus corrompu.” Para Breton, que no II Manifesto dedica um largo espaço
para falar de Bataille, este possuía um sentido negativo da vida que convidava o
homem “[...] pour éviter de se rendre utile à quoi que ce soit de déterminé [...]”450.
A investida de Breton contra Bataille era uma forma de marcar diferenças. O
que separava, por exemplo, dentre outras coisas, o surrealismo do Dada, como
vimos, era um espírito positivo que só o primeiro possuía, além de uma noção de
moral e ética rígida que permeava todo o pensamento de Breton: “[...] M. Bataille
aime les mouches. Nous non: nous aimons la mitre des anciens évocateurs, la
mitre de lin pur à la partie antérieure de laquelle était fixée une lame d’or et sur
laquelle les mouches ne se posaient pas, parce qu’on avait fait des ablutions pour
les chasser.”451
Buñuel, como Bataille, aime les mouches e as formigas e os insetos e toda a
podridão que pudesse ser revelada. Os burros apodrecidos que aparecem em Un
448
Cf. Steven Kovàcs: “The concept of a Surrealist documentary is not a contradiction in terms. The
Surrealists, strongly scientific in their research, aimed to penetrate appearances in order to arrive
at a more profound understanding of reality. Aragon and Artaud both commented on the ability of
film to focus on particular objects and magnify them on the screen, a process which strengthened
the confrontation between the viewer and various selected aspects of reality. Desnos and Soupault
both claimed the documentary film to be one of the most successful applications of the cinema
since it revealed the true workings of things.” (From Enchantment to Rage – The Story of Surrealist
Cinema, New Jersey, Associeted University Presses, 1980, p. 255).
449
“[...] quelques pages en amont, une gravure d’ ‘indiens Cuna’ en procession était déjà produite
pour illustrer un article très spécialisé sur le ‘balancier à fardeaux’ en Amérique précolombienne;
quelques pages en aval, c’est l’intrusion photographique des ‘sauvages’ eux-mêmes qui proposera
sa théorie de nudités en contrepoint à la bourgeoise ‘Figure humaine’.” (Georges Didi-Huberman,
La ressemblance informe, Paris, Macula, 1995, p. 47).
450
André Breton, op. cit., p. 144.
451
André Breton, op. cit., p. 146.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

chien andalou são elementos de um universo que não estava preocupado com as
abluções, preferia ter moscas pousando, carne apodrecendo, mutilações, do que
disfarçar este horror, que não era de Buñuel, mas do próprio mundo. As intenções
de Bataille não eram as mesmas de Buñuel, mas o revolver das entranhas, ausente
no espírito surrealista, animava a obra de ambos. Além de um olhar de naturalista
sobre a natureza humana, através de um jogo de contrastes, era possível revelar 151
mais da alma humana e de seu pseudo processo civilizatório do que muitos dis-
cursos proferidos até hoje.
Mas Buñuel era profundamente surrealista, permanecendo assim mesmo
após a saída do movimento. Porém possuía um modo particular de jogar com o
surrealismo, de usar os seus métodos para atingir o (aparentemente) inatingível:
esculpir a matéria do filme para torná-la evanescente. Atrair o olhar para uma
nova maneira de olhar. Não é por acaso que a cena mais marcante de sua obra é
exatamente um olho cortado: “Es una auténtica declaración de principios, un cegar
la mirada externa para que surja la interna, una petición de un ojo distinto al ha-
bitual, un romper la barrera defensiva entre el sujeto y los objetos, entre percep-
ción y representación.”452
Un chien andalou, com sua estrutura circular e reiterativa, apresenta-nos ao
cosmos do criador – Buñuel. A lua atravessada pela nuvem, o olho cortado, o ou-
riço, o círculo de pessoas em volta da mulher que encontra uma mão, são círculos
dentro de círculos. Percebemos isso ao lermos o roteiro, que em vários momentos
retoma cenas já mostradas, remontadas numa nova sequência, que, com varia-
ções, é sempre a mesma: o caminho circular do desejo, do desejo do cineasta em
falar do inconsciente e deixá-lo falar segundo suas próprias leis.
Para Buñuel, o surrealismo foi uma espécie de chamada ouvida por uns e ou-
tros ao redor do mundo, que já, de alguma forma, eram surrealistas sem etiqueta453.
Poderíamos ir além e dizer que mais do que uma chamada no espaço, o surrealismo
foi uma chamada no tempo. Atravessando fronteiras temporais, os surrealistas con-
vocaram todos aqueles que, como eles, mergulharam no abismo. Un chien andalou
é o retrato do mergulho, mesclando imagens novas e antigas, sobrepondo-as, le-
vando-nos a um tempo que não anda em linha reta, mas consegue ser, como queria
Deleuze, real e virtual, memória e percepção. Conforme Albert Lewin, “L’habitude
qu’avaient les surréalistes de juxtaposer des images anciennes et modernes, [...] m’a
surtout troublé.”454 Os pintores surrealistas pintavam não só imagens do incons-
ciente, mas imagens que estavam impregnando seu inconsciente; imagens de ou-
trem que saíam recriadas de suas mãos, reescrevendo a História da Arte, que não
poderia ser cristalizada para não transformar a todos em cadáveres.
A obra do grande aragonês começa com um corte. Mas também com a Ren-
dilheira de Vermeer, imagem que em Un chien andalou serve para compor mais
452
Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 133.
453
Luis Buñuel, op. cit., p. 120.
454
“Témoignages”, Etudes cinématographiques, nº 40-42, p. 168.
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uma rima plástica e participa também de um modo de criação e de uma profissão


de fé. Fé num tempo deslocado, que não obedece às regras da racionalidade linear.
O último filme de Buñuel acaba com uma bordadeira que, numa vitrine, tece a in-
terminável teia de relações circulares que fizeram de Buñuel um poeta de imagens,
criador de um universo onde a sensação de despaisamento e atemporalidade
152 ligam-no irremediavelmente ao espaço dos sonhos.
NOTAS FINAIS

Ce qui est beau dans l’Art, c’est ce que l’artiste ne saurait expliquer.
Braque 153

O primeiro filme de Buñuel funcionou como uma carta de referências para a


sua entrada no grupo de Breton. O seu segundo filme, que causou mais escândalo
que o primeiro, provocou o aparecimento do segundo documento assinado pelo
grupo surrealista diretamente relacionado com o cinema. L’âge d’or, filme reali-
zado com o patrocínio do Visconde de Noailles455, de acordo com a vontade de
Buñuel, deveria estrear no circuito comercial. A este respeito escreveu a Charles
Noailles: “cualquier cosa menos la vanguardia.”456 O problema é que só o circuito
das vanguardas dispôs-se a projetar seu filme. Assim a partir de 28 de novembro
de 1930, o Studio 28 começa a exibir L’âge d’or. Os primeiros dias transcorrem
sem problemas. Porém, “El 3 de diciembre, sin embargo, la proyección se está de-
sarrollando como de costumbre cuando de pronto unos jóvenes, armados con
porras y bombas fumígenas, interrumpen la proyección, manchan de tinta la pan-
talla, y maltratan ligeramente a algunos espectadores.”457
Os jovens, que se diziam membros da Liga dos patriotas e da Liga antisemita,
são levados à chefatura de polícia. A partir daí é a própria chefatura de polícia
quem passa a exigir alguns cortes no filme até que finalmente decide proibir a sua
exibição no dia 10 de dezembro. Logo a seguir, o filme é projetado para a Comissão
de censura que decide proibir a sua exibição durante 50 anos. Que filme causaria
tanto escândalo para sofrer tal sanção? A polêmica estava lançada e várias vozes
erguem-se contra e a favor de L’âge d’or. Mas encontramos no manifesto dos sur-
realistas a explicação mais plausível para que uma obra causasse tanto escândalo:
a sexualidade e a morte.
Conforme Ado Kyrou, “Les grands thèmes surréalistes se retrouvent dans
L’âge d’Or: l’amour fou, la violence mise en accusation de tous les sacro-saints
bourgeois, la révolte, l’athéïsme, etc.”458 Os surrealistas não poderiam deixar de
protestar contra uma violência dirigida aos seus próprios valores. O filme de Bu-
455
O Visconde de Noailles e sua esposa foram grandes mecenas das vanguardas francesas. A sua casa
era constantemente palco de encontros promovidos pelos surrealistas. Certa vez Buñuel juntamente
com Giacometti construiu um objeto surrealista que foi instalado em casa dos Noailles. O objeto
consistia em uma girafa em tamanho natural, cujas malhas deveriam ser destapadas e dentro
delas se encontravam frases de um texto de Buñuel.
456
Luis Buñuel apud Jean-Michel Bouhours, “De la prohibición a la restauración de ‘L’Age d’Or’, Turia.
Revista de cultura, nº 28-29, maio de 1994, p. 145.
457
Jean-Michel Bouhours, op. cit., p. 147.
458
Ado Kyrou, “Un itinéraire exemplaire”, L’Avant-scène, Paris, nº 27-28, 15 jun/15jul de 1963, p. 9.
MIRIAN TAVARES

ñuel possuía a força das pulsões que eles tentaram sempre despertar através de
suas obras. Ali estava plenamente realizada a transposição para as telas de um
sonho instigado pela leitura de Sade e Lautréamont.
No manifesto que os surrealistas publicaram em defesa do filme, está contido
um apelo aos artistas da época: desatar a mordaça que os impede de deixar a energia
154 sublimada explodir em suas obras. E é exatamente o que Buñuel faz, permitindo que
dois instintos que estão indissoluvelmente ligados, o instinto sexual e o de morte, apa-
reçam em sua plenitude. Assim, as últimas palavras do manifesto são: “En dépit de
toutes les menaces d’étouffement, ce film servira très utilement, pensons-nous, à cre-
ver des cieux toujours moins beaux que ceux qu’il nous montre dans un miroir.”459
O segundo filme do diretor aragonês possui a marca da violência que aparece
no seu primeiro filme. O olho seccionado funciona como um aviso daquilo que
estaria por vir. Buñuel disse, a respeito de Un chien andalou, que seu filme nada
mais era que um apelo ao assassinato. Tanto um quanto o outro filme, de fato,
lançam um apelo direto às pulsões mais primevas e que tentamos o tempo inteiro
sublimar. Por isso a presença de Sade – autor admirado pelos surrealistas, que
soube como ninguém unir prazer e morte. Há, porém, uma violência mais pro-
funda que subjaz em toda a sua obra. Uma violência herdada de seu profundo en-
raizamento na cultura española, pois, como bem disse Kyrou, “Buñuel l’est aussi
essentiellement qu’il est espagnol.”460
O afrancesado Buñuel carregou consigo a eterna ambiguidade de ser ao
mesmo tempo profundamente espanhol e profundamente surrealista, a qual se
encontra presente mesmo em sua vida. Luis Pérez Bastías, em seu livro Las dos
caras de Luis Buñuel, traça o percurso da vida e da obra deste diretor, que conse-
guiu ser ao mesmo tempo revolucionário e pacificamente burguês. A rebeldia de
Buñuel, que o acompanhou desde a juventude, perpassando toda a sua obra, con-
trastava vivamente com o que Pérez Bastías vai chamar de “la satisfactoria edu-
cación en su infancia y su ordenada biografía posterior.” Ao contrário de seus
filmes, a sua vida privada “estuvo exenta de escándalos.”461
A ambiguidade pode ser considerada a marca registrada de Buñuel. Eduardo
Peñuela Cañizal, em um ensaio intitulado “O obscuro objeto da ambiguidade”,
459
O manifesto é assinado por Maxime Alexandre, Aragon, André Breton, René Char, René Crevel,
Salvador Dalí, Paul Eluard, Benjamin Péret, Georges Sadoul, André Thirion, Tristan Tzara, Pierre
Unik e Albert Valentin. A edição do manifesto à qual me refiro nesta tese é a reproduzida pela
revista L’Avant-scène, Paris, nº 27-28, 15jun/15jul de 1963, pp. 24-27.
460
Ado Kyrou, op. cit., p. 9. Claude Murcia em um ensaio sobre L’âge d’or procura ressaltar os elementos
que destacam Buñuel do surrealismo francês, elementos estes que estão presentes em sua obra,
lado a lado com as influências do grupo de Breton. Assim, para Murcia, Buñuel, “Hispanique de
culture et de tempérament, s’inscrivant dans la tradition du picaresque, de l’humour noir, d’une
brutalité parfois féroce, il rend visible ce que conventionnellement on cache: les mécanismes les
plus dérangeants de la nature humaine, qu’il fouille et met à nu avec une lucidité et une absence
de complaisance rarement égalées au cinéma.” (Claude Murcia et Gilles Menegaldo, L’expression
du sentiment au cinéma, Poitiers, La Licorne, 1996, p. 128).
461
Luis Pérez Bastías, Las dos caras de Luis Buñuel, Barcelona, Royal Books, 1994, p. 79.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

tece uma rigorosa análise de um ponto que ele considera não ter sido ainda levado
devidamente em consideração: “a importância que têm as ambiguidades cons-
truídas por Luis Buñuel para delimitar um instigante espaço expressivo.”462 Neste
ensaio os filmes da fase mexicana ocuparão um lugar de destaque, o que serve
mais ainda para ressaltar que, mesmo em uma produção considerada por muitos
como puramente comercial, os elementos que estavam presentes desde o pri- 155
meiro filme, deixarão vir à tona os traços estilísticos do diretor. Mesmo com a saída
definitiva de Buñuel do movimento surrealista, talvez fosse possível colar aos seus
filmes o selo proposto por Man Ray para identificar aqueles que seriam os legíti-
mos objetos surrealistas.
Maurice Drouzy considerava Buñuel um arquiteto. Ao contrário de Godard
ou Rivette, que construíam seus filmes aos poucos, contando inclusive com im-
provisos, Buñuel “n’opère pas ainsi. Il n’improvise pour ainsi dire jamais avec une
caméra en main.”463 Como um arquiteto ele planejava tudo detalhadamente antes
de ir para o terreno. E assim, em suas obras, temos a realização plena de um pa-
radoxo: uma arquitetura esmerada é oculta pelo resultado que parece ser fruto
do mais puro automatismo e improvisação.
Se o cinema, para os surrealistas, deveria romper o círculo que atava a todos
nas teias do consciente e da lógica, deixando que o inconsciente falasse sem amar-
ras, deveria ser então a própria estrutura do filme que conteria a chave deste pro-
cesso. Ao contrário do surrealismo encenado de Cocteau, cheio de truques e
piruetas, os primeiros filmes de Buñuel tentaram ser estruturalmente surrealistas.
Já foi dito anteriormente que a montagem é um dos processos responsáveis pela
construção do filme. Vimos ainda que a montagem em Buñuel era extremamente
sóbria e de um modo geral feita através da utilização de raccords. Como poderia
então de uma estrutura tão clássica surgir os filmes que foram, ao longo do tempo,
unanimemente considerados as verdadeiras transposições do surrealismo para as
telas do cinema?
Conforme Ismail Xavier, para alcançar seu intento os surrealistas possuíam
uma opção: “introduzir a ruptura no próprio nível da estruturação das imagens,
no nível da construção do espaço, quebrando a tranqüilidade do olhar submisso
às regras.” Assim, a montagem do cinema surrealista deveria obedecer apenas
“aos imperativos únicos da imaginação.”464 Para Ismail Xavier isto só seria possível
se houvesse uma agressão direta às convenções da decupagem clássica. E é neste
ponto que retorno ao que já disse anteriormente acerca de Buñuel. Ele conseguiu
ser profundamente clássico no seu modo de conceber a montagem e, ao mesmo
tempo, profundamente transgresor, pois, sem ferir tecnicamente os conceitos de
uma decupagem clássica, subverteu o seu sentido, criando uma nova forma de
462
Eduardo Peñuela Cañizal (org.), Um Jato na Contramão - Buñuel no México, São Paulo, Perspectiva,
1993, p. 19.
463
Maurice Drouzy, Luis Buñuel architecte du rêve, p. 25.
464
Ismail Xavier, O Discurso Cinematográfico, p. 95.
MIRIAN TAVARES

encadeamento de imagens, forma esta submetida apenas às ligações propostas


pelo imaginário465.
Vimos que os surrealistas, no final, decepcionaram-se com o cinema. De
acordo com Breton: “ ‘Se sabe ahora, dije hace tiempo, que la poesía debe llevar
a algun sítio’. El cine tenía todo lo preciso para unirse a ella, pero en conjunto –
156 especifiquemos: en tanto que actividad dirigida – lo menos que pude decirse es
que no ha tomado ese camino.”466 O cinema, o meio perfeito para o desenvolvi-
mento das teses surrealistas, conforme Goudal, acabou por ser domesticado. A
tentativa de romper as amarras do inconsciente não passou de um projetado de-
sejo de deixar vir à tona tudo aquilo que aprendemos cotidianamente a sublimar.
Mas se os primeiros filmes de Buñuel são considerados herdeiros legítimos do le-
gado do movimento surrealista, acredito que ele espalhou as lições de Breton, em
toda a sua obra.
Ado Kyrou, em 1963, afirma: “Buñuel est toujours resté surréaliste, car n’étant
pas une discipline, ni une école, ni un parti, il n’est pas nécessaire de porter une
insigne, même pas de fréquenter un groupe pour être surréaliste.”467 Surrealista,
antes de mais nada, porque percebeu que o que Breton propunha não era um dis-
tanciamento do real, mas a possibilidade de penetrá-lo profundamente, revelando
o lado que todos acabam por ocultar. Antes de entrar no mundo das artes, Buñuel
pensara em estudar ciências naturais. Chegou mesmo a ser discípulo de Ignacio
Bolívar, que era, segundo o diretor, “el más célebre ortopterólogo del mundo por
aquella época.”468 Deste tempo restou-lhe na memória o nome em latim de muitos
insetos. E também o espírito do entomólogo que observa as suas criaturas e sabe
o que se esconde atrás da aparente fragilidade de um inseto.
Apresentei, ao longo deste livro, um emaranhado de paradoxos. Como pode
Buñuel possuir a precisão científica de quem frequentou o Museu de História Na-
tural e ser profundamente surrealista? Como pode um diretor propor uma estru-
tura que reproduza a ação do imaginário e ter o controle quase que absoluto da
sua obra? Poderia enumerar mais elementos antitéticos que foram aparecendo
ao longo do trabalho. Não vale a pena. Não vale a pena porque o que Buñuel fez
com a sua obra, foi, de alguma maneira, responder ao chamado de Breton. Um
chamado para promover uma revolução profunda, estética, ética e moral. Um cha-
mado para estilhaçar as barreiras que separavam o consciente do inconsciente.
Se os poetas da Geração de 27 foram surrealistas sem admiti-lo é porque, como
muitos outros, pensaram que o surrealismo era automatismo puro. E sem saber
465
Jean-Christophe Averty, em um testemunho recolhido por Yves Kovacs nos já citados números da
revista Etudes cinématographiques, afirma: “Au cinéma, un seul auteur a incarné, à lui tout seul, la
pensée surréaliste: Luis Buñuel. A travers son Moi, il réussit à recréer le monde. Comparés à lui,
tous les cinéastes ‘surréalistes’ sont quelque peu formalistes.” (Etudes cinématographiques, nº 40-
42, p. 153).
466
André Breton apud Ángel Pariente, Diccionário temático del surrealismo, p. 88.
467
Ado Kyrou, op. cit., p. 9.
468
Luis Buñuel, Mi ultimo suspiro, p. 61.
BUÑUEL E O SURREALISMO: A ARQUITETURA DO SONHO

conseguiram ultrapassar com suas obras um mestre que nunca admitiram possuir.
Buñuel foi surrealista, antes de mais nada, por ser alguém que carregou consigo,
em sua vida e obra, a ambiguidade como uma marca registrada. Seu primeiro filme
iria se chamar Il est dangereux de se pencher au-dedans. Talvez fosse uma adver-
tência.
Ao falar do desencanto que os surrealistas tiveram em relação ao cinema, ao 157
falar de Buñuel como um dos poucos que foram considerados verdadeiramente
surrealistas, não quero dizer que a lição do surrealismo se perdeu. Como foi dito
no princípio, houve o movimento surrealista, com data de nascimento e de morte.
Mas os princípios por eles aventados, presentes já em vários surrealistas avant la
lettre, não morreram com o fim do movimento. O cinema, em muitos momentos,
consegue a magia de ser uma alucinação consciente. Como afirmou Jørgen Roos,
“Sans le surréalisme, l’histoire du cinéma serait bien pauvre!”469
Vários cineastas, à sua maneira, utilizaram o legado do surrealismo, pois se
compreendermos o surrealismo como “volonté de connaissance, et exigence
d’une unité retrouvée dans la totalité de l’expérience,”470 encontramos realizado-
res que também estavam preocupados com esta questão. Ao longo dos números
especiais da revista Etudes cinématographiques, vários testemunhos e ensaios
mencionam cineastas que, mesmo não tendo jamais pertencido ao movimento,
foram, em algum momento, surrealistas em seus filmes.

469
Jørgen Roos, op. cit., p. 173.
470
Cf. Georges-Albert Astre, op. cit., p. 5.
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Em setembro de 1966 morria André Breton, o pai-fundador do surrealismo, cujo
1º Manifesto, publicado em 1924, oficializa a existência do movimento. Para mui-
tos, a morte de Breton marca também a morte do surrealismo, embora, de facto,
o ideário de um dos mais importantes movimentos de vanguarda do séc. XX não
tivesse deixado de existir com este acontecimento. Este livro celebra, de certa ma-
neira, o cinquentenário da morte do surrealismo e, mais ainda, celebra a sua per-
sistência em continuar a existir, como movimento, como ato de criação, como
revolução permanente do pensamento. Ao entrar no mundo fascinante (e peri-
goso) do surrealismo, procura-se aqui desvendar esse conceito, contextualizá-lo
e utilizá-lo, na medida do possível, no seu sentido mais estrito. A obra de Luís Bu-
ñuel, cineasta e surrealista, é, pois, analisada a partir da sua relação com o movi-
mento francês e com as manifestações poéticas que ocorriam pela mesma altura
no seu país de origem, a Espanha. Através da arquitetura do cinema de Buñuel,
nomeadamente de seus primeiros filmes, é possível perceber por que ele foi con-
siderado, unanimemente, o verdadeiro representante do cinema surrealista. A
sua obra, que é estruturalmente surrealista, constrói-se a partir dos princípios pre-
conizados por Breton e pelo seu grupo. Por sua vez, os seus filmes não são apenas
uma encenação das ideias apregoadas nos Manifestos do movimento, mas con-
figuram autênticos poemas audiovisuais. Neste livro pretende-se, também, traçar
uma linha entre o que se considera o surrealismo stricto sensu e o denominado
espírito surrealista, o qual continuaria a animar a obra de muitos autores, inspira-
dos no cinema de Buñuel e na obra intemporal de André Breton.

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