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Resumo
O presente artigo tem por objetivo compartilhar o processo de formação docente de quatro
estudantes de Pedagogia na participação no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
docência (Pibid) em parceria com o Colégio Pedro II de Realengo, na turma Liga dos
Detetives. As vivências seguiram o caminho da escuta desse espaço, das crianças e de cada
um dos participantes consigo próprio no encontro com emoções, reflexões e questionamentos
provocados por essa experiência. A partir de algumas inquietações e curiosidades o novo foi
surgindo com estranhamento, curiosidade e encantamento. Na relação com as crianças, suas
falas e escutas que ressignificam o mundo, provocando suspiros por conta da profundidade de
seus conteúdos, se tornando a temática principal desse artigo. Nessas vivências a escuta das
crianças se tornou um aprendizado quando uma delas falou que iria dizer como serem
professoras, a outra se posicionou de forma diferente diante de um conflito, uma falou sobre o
processo de metamorfose da borboleta e ainda uma situação que era uma questão somente de
escuta. Mais do que ouvir com os ouvidos, foi uma experiência de ouvir com todos os
sentidos.
Palavras-chave: Escuta; Formação docente; Infâncias.
Introdução
entendimento a todos os sentidos, falas e gestos. Segundo Rinaldi, ação que afeta o corpo
todo:
Como podemos definir o termo escuta? Escuta como sensibilidade aos padrões que
conecta, ao que nos conecta aos outros; entregando-nos à convicção de que nosso
entendimento e próprio ser são apenas pequenas partes de um conhecimento mais
amplo, integrado, que mantém o universo unido. Escuta, portanto, como metáfora
para a abertura e sensibilidade de ouvir e ser ouvido – ouvir não somente com as
orelhas, mas com todos os nossos sentidos (visão, tato, olfato, paladar, audição e
também direção). (RINALDI, 2012, p.124).
Uma situação que chamou a atenção e que foi assinalada nos encontros de supervisão
foi a da Maria3, que até então nas relações observadas parecia precisar da mediação da amiga
Márcia para se relacionar, fazer escolhas, muitas vezes demonstrando até solicitar uma ajuda
dela na verbalização de seus desejos.
Contrariando essa afirmação, em determinada ocasião ela defendeu a amizade com o
amigo João de uma maneira que não tínhamos visto antes em suas ações. Eles sentaram um ao
lado do outro para assistirem um filme e João se levantou para pegar um brinquedo, tendo seu
lugar ocupado por Marcos. Maria, de maneira firme, pediu que ele se levantasse, e na
suposição da negação do Marcos o advertiu informando que os amigos pretendiam sentar
juntos e que cortariam laços com ele, definitivamente, caso ocupasse esse lugar, mas que se
fosse “bonzinho” poderia participar da companhia da dupla, colocando uma cadeira próximo.
Marcos não contestou e aceitou se levantar de imediato.
A mudança de seu comportamento muitas vezes tímido, para a segurança de alguém
decidido impediu uma intervenção dos adultos no diálogo. Apontamento retratado no diário
de campo de Bruna:
3 Os nomes das crianças foram modificados com o objetivo de preservar suas identidades.
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Foi uma atitude instintiva, imaginei que se fizesse algum tipo de observação ou
mesmo tentasse chamar atenção da Maria ao fato do Marcos também ser seu amigo
e ter a liberdade de escolher um lugar, uma vez que estava vazio, poderia acabar
com aquela coragem que eu não tinha visto ainda. Talvez, a dependência que
demonstrava ter da amiga Márcia se tornasse maior e impedisse que ambas
ampliassem seus círculos de amizade. Não quis que qualquer atitude minha,
interferisse no diálogo que estava sendo assertivo.”4
Talvez… Incertezas que apesar de todo cuidado na observação jamais teremos. Mas e
Marcos, não foi preterido? O Marcos muitas vezes demonstrou atitudes de confronto com
seus colegas, e aquela poderia ter sido mais uma. Talvez também ele tenha sido pego de
surpresa pela menina que sempre demonstrou afastamento, mas que com firmeza conseguiu -
a sua maneira, utilizando uma fala direta, sem levantar o tom da voz - ter seu desejo
respeitado. Maria apresentou o problema e a solução. Marcos que sempre reagiu, dessa vez
recuou.
Na relação com as crianças, rememorar situações vivenciadas com elas é um
importante processo de formação docente. Os registros, realizados em um caderno de campo,
são uma possibilidade de avaliação, uma ferramenta valiosa de documentação que implica
uma autopercepção nas relações:
Fiquei um tempo ainda pensando na situação, se eu tinha sido justa, se deveria ter
adotado outra atitude, ou valorizado a fala da Maria, apenas avisado que não se
comunicasse em tom de ameaça, contudo estava feliz em vê-la se manifestar
autonomamente. A novidade da conquista desta criança me fez pensar em atitudes
futuras como educadora e na importância da valorização da fala da criança. Algo
que até então pareceu tão teórico, que eu jamais imaginaria presenciar. (Bruna,
estudante do PIBID, 2018).
do vínculo afetivo entre criança e professora foi muito importante. Uma contribuição também
para a vida em sociedade, valorizando desde cedo à fala e a escuta, o ouvir e refletir,
comunicação não violenta e possuidora de reflexões. Em uma de suas citações no livro
Buscando caminhos para a Pré-Escola, Léa Tiriba faz menção à escritora Neide Nogueira,
onde fica clara a necessidade de reflexão do trabalho do professor no processo de crescimento
profissional por meio das práticas adotadas e do pensar sobre quem são os agentes que
compõem cada grupo, suas questões particulares, o planejamento de algumas propostas
baseado em experiências passadas, processo de avaliação que vai muito além de resultados:
Nesse processo de vivências no CREIR foi possível observar, nas atitudes das crianças
e no trabalho das professoras, uma autonomia que vai além do cuidado, que se reflete em suas
escutas. A atenção individual não era apenas um acalanto, mas sim um reconhecimento da
identidade de cada criança. A reflexão cotidiana do que a fala das crianças tem a dizer, se
torna um instrumento indispensável para a construção de um relacionamento de confiança e
afeto.
No livro mencionado anteriormente, Léa Tiriba, no capítulo III, menciona que “pra
começo de conversa, gostar de criança não é tudo” e argumenta sobre o trabalho
desenvolvido sem um aprofundamento dos conhecimentos emocionais e do desenvolvimento
respeitoso das crianças. Refletindo sobre essas realidades acreditamos que a empatia é
primordial, assim como a reflexão de até que ponto uma criança que se sente emocionalmente
insegura se bloqueia no contexto escolar:
A questão da Maria me fez pensar diversas vezes, se meu comportamento foi o mais
correto, porém, ainda que instintivamente, teve base em algumas leituras e
pensamentos pessoais, principalmente em ajudá-la a se enxergar de uma maneira
empoderada, assim como, dar continuidade a escuta e a fala sensível, sem receio e
sem ofensas. Cada qual em sua descoberta e seu espaço, ambas agindo da maneira
que julgaram ser mais correta e inconscientemente de acordo com seus
aprendizados. Participar da pesquisa docente em um espaço onde as questões ficam
expostas, que são discutidas e argumentadas me fazem acreditar no caminho a ser
trilhado. Perceber que o cenário educacional está mudando mesmo com tantas
dificuldades, barreiras e imposições externas de quem pouco ou nada conhece o
universo infantil e a sala de aula, também são fatores determinantes na caminhada,
e tornam cada experiência mais fortalecedora e colaborativa neste processo.
(Bruna, estudante do PIBID, 2018).
Abordar caso empírico torna-se uma desafiante, mas também pode ser uma doce
missão no universo das pesquisas. Logo no início da reunião de supervisão, uma criança por
nome Laura de cinco anos de idade, entrou na sala e pediu para participar. O que fazer? Dizer:
“Não! O momento é para adultos?” Estávamos falando sobre ela também. Impedir que a
criança contribuísse com algo que ela tinha de valor e relevante para o momento não era o
melhor caminho. Nesse momento iniciou nossa escuta para ela, para seus dizeres e saberes.
Um grande desafio na escuta da criança é perceber que esse ato reflete a concepção de
um sujeito que é ator em seus processos. Neste caso Laura propôs dar dicas para uma “boa
conduta” do professor: “A gente tem que tirar essas coisas de cocô e xixi da cabeça das
crianças. Temos que fazer coisas muito legais”. Em uma intervenção, foi perguntando a
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criança se então, fazendo coisas legais, tiraria isso da cabeça das crianças. Ela continuou seu
raciocínio: “Sim, e a gente tem que relaxar. Uma prática para o relaxamento é a meditação.
Se a criança não conseguir relaxar e estiver muito agitada, aí faz tudo acelerado mesmo.”
Percebemos nesse trecho, e em outros a seguir, que a criança a todo o momento se
coloca como a educadora da reunião, se tornando a mediadora desse momento. No caso
relatado, a escuta a incluiu nesse momento trazendo a sua contribuição, vista como um direito
seu.
Talvez a postura mais comum fosse impelir a participação da criança, pedir que a
mesma se retirasse da sala para que os adultos pudessem falar. Todavia, essa postura seria a
ideal? Em muitas situações as crianças são impedidas de se manifestarem pela ideia de que
suas falas não são relevantes. Mas na oportunidade de escuta em questão, percebe-se o quanto
elas têm a falar sobre o cotidiano que vivem e observam na escola.
Laura continuou a conversa trazendo suas ideias: “A gente tem que ver o que a criança
está sentindo, a gente tem que ver as coisas que ela está fazendo. Temos que ter olhos de
águia, quando a gente tem que entender as crianças. Então a gente tem que tirar as crianças
do confuso”. O que será que estava querendo dizer por meio dessas falas? Será que são
questões que ela já vivenciou e até mesmo tenta entender? Ela relata muito sobre a
importância do educador perceber a criança, seus medos, suas questões. Será que em algum
momento se sentiu desamparada? Ou acolhida? Rinadi amplia a conversa trazendo a presença
das emoções na escuta que vai muito além de ouvir alguém, que quando fala, diz sobre si:
Por trás do ato de escuta existe normalmente uma curiosidade, um desejo, uma
dúvida, um interesse; há sempre alguma emoção. Escuta é emoção; é um ato
originado por emoções e que estimula emoções. As emoções dos outros nos
influenciam por meio de processos fortes, diretos, não mediados e intrínsecos à
interação entre sujeitos comunicantes. Escutar como forma de aceitar de bom grado
e estar aberto às diferenças, reconhecendo o valor do ponto de vista e da
interpretação dos outros. (RINALDI, 2012, p.124).
Ao ser questionada sobre suas dicas, se dariam ou não certo, ela disse que se não
dessem, então seguíssemos as nossas. Em sua fala Laura está relatando percepções sobre seu
olhar.
A criança é um ser sócio-criativo, que intervém no processo de existir no mundo e
corrobora simultaneamente para a transformação da sociedade. Precisamos valorizar esse
espaço das crianças na concepção de que elas tem cem linguagens e que a escola tem
responsabilidade na afirmação dessa ideia, como diz o poema de Loris Malaguzzi:
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A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos cem pensamentos cem modos de
pensar de jogar e de falar. Cem sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar.
Cem alegrias para cantar e compreender. Cem mundos para descobrir. Cem mundos
para inventar. Cem mundos para sonhar. A criança tem cem linguagens (e depois
cem cem cem) mas roubaram-lhe noventa e nove. A escola e a cultura lhe separam a
cabeça do corpo. Dizem-lhe: de pensar sem as mãos, de fazer sem a cabeça, de
escutar e de não falar, de compreender sem alegrias, de amar e de maravilhar-se só
na Páscoa e no Natal. Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já existe e de cem
roubaram-lhe noventa e nove. Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho a realidade e a
fantasia, a ciência e a imaginação, o céu e a terra, a razão e o sonho são coisas que
não estão juntas. Dizem-lhe enfim: que as cem não existem. A criança diz: ao
contrário, as cem existem. (MALLAGUZZI, 1999, p.5)
A cada ato surge uma ou várias questões que trazem reflexões sobre a afirmação de
que na Educação Infantil a criança é um sujeito em ação.
A primeira ofereceu roupas de banho emprestadas para que ela tomasse banho
também. A resposta foi “Não!”. A segunda perguntou se ela não queria entrar com as suas
próprias roupas, e sua única reação foi cruzar os braços e olhar para a parede.
Foram oferecidas opções para ela se reunir ao grupo nas brincadeiras, e nada pareceu
convencer a menina. Eis que surgiu uma ideia e uma das professoras perguntou: “Mas por que
você está tão chateada?” Ninguém havia perguntado antes.
Rapidamente ela descruzou os braços e explicou: “Não quero ficar aqui fora, está
muito calor, e também não quero me molhar, quero ficar dentro da sala no ar-
condicionado.” Como um estalo, tudo fez sentido. A professora sentou e conversou com a
criança explicando os motivos de permanecer com o grupo e ofereceu abrir a porta da sala
para ela receber um pouco do vento gelado. Problema solucionado, e com a situação
explicada, a menina começou a brincar e se divertir com as outras crianças.
O livro “Eu tenho um pequeno problema”, disse o urso conta a história de um urso
que tenta falar sobre seu problema com diversas pessoas, mas todas estão ocupadas demais
para ouvi-lo ou acham que sabem o que ele precisa, assim como acontece com as crianças:
Embora eu tenha certo pavor a borboletas, sempre fui curiosa ao fato delas fazerem
metamorfose, e serem ligadas a seres espirituais. A partir de uma frase
despretensiosa, sem nenhuma intenção, me vi pensando, analisando e questionando
esse inseto por outra visão. Você já percebeu a beleza tênue de uma borboleta
enquanto ela voa? E que apesar de passar muito tempo em seu processo de
transformação até chegar ao estágio final de borboleta, ela pode somente durar
alguns dias ou semanas até a sua morte? (Victória, estudante PIBID, 2018).
A temática abre caminho para uma significativa discussão filosófica sobre o sentido da
vida. Borboletas nos mostram que temos que aproveitar o tempo presente, aproveitar ao
máximo nossa permanência aqui no mundo. Elas também nos lembram que a morte é apenas
outra transformação. O voo da borboleta remete também a sua liberdade, ao passo que se não
lhe for permitido voar, não lhe resta mais nada, porque ela jamais conseguirá chegar ao seu
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destino.
A escuta atenta traz mais humanização aos processos do cotidiano escolar, sendo
importante valorizar a sensibilidade para essas escutas e para o diálogo, sabendo os limites
dos mesmos, a fim de desenvolver uma compreensão maior acerca de como isso nos afeta,
conforme afirma Carla Rinaldi:
Escuta das cem, das mil linguagens, símbolos e códigos que usamos para nos
expressar, comunicar, e com os quais a vida expressa a si mesma e se comunica com
aqueles que sabem ouvir. Escuta como tempo, tempo de ouvir, um tempo situado
fora do tempo cronológico – um tempo cheio de silêncios, de longas pausas, um
tempo interior. Escuta interior, escuta de nós mesmos, como uma pausa, uma
suspensão, um elemento que engendra ouvir os outros, mas que também é gerado
pelo escutar o que os outros tem de nós. (RINALDI, 2012, p. 124).
A escuta das crianças nos permite escutar a nós mesmos, muitas vezes as crianças nos
fornecem materiais de pesquisa e reflexão sobre o eu, o outro, sobre nós. Quando nós
humanos somos impedidos de fazer algo que gostamos, ou necessitamos para nós mesmos,
não ficamos mal? Pode acontecer de nos sentir até mesmo doentes diante da situação, como a
borboleta da Monique, podendo nos levar a uma doença muito pior do que física, uma doença
da alma.
Considerações finais
Referências Bibliográficas
JANISCH, Heinz; LEFFLER, Silke. “Eu tenho um pequeno problema”, disse o urso. São
Paulo, Moderna, 2008.
NOGUEIRA, Neide. In: TIRIBA, Lea. Pré-escola popular: buscando caminhos, ontem e
hoje. São Paulo: Cortez, 2018.
QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Os Cinco sentidos. São Paulo: Global, 2009.
RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. São Paulo:
Paz e Terra, 2012.
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TIRIBA, Lea. Pré-escola popular: buscando caminhos, ontem e hoje. São Paulo: Cortez,
2018.
TONUCCI, Francesco. Quando as crianças dizem: agora chega! Porto Alegre: Artmed,
2005.