Você está na página 1de 13

PRÁTICAS

Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 134


ISSN 2447-620X

A ESCUTA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UM OLHAR SOBRE O CENTRO DE


REFERÊNCIA EM EDUCAÇÃO INFANTIL DE REALENGO

Bruna Fonseca Teixeira


ang113707@gmail.com
Licencianda Pedagogia UNIRIO / Bolsista PIBID

Camila da Silva Perrotta


camila.sperrotta@gmail.com
Professora EI CPII / Professora Supervisora PIBID UNIRIO

Fabiane da Costa Morais


fabianeipanema@yahoo.com.br
Licencianda Pedagogia UNIRIO / Bolsista PIBID

Luiza Bastos Carvalho


luizabastos09@hotmail.com
Licencianda Pedagogia UNIRIO / Bolsista PIBID

Victória Viana Vivarini da Silva


victoriavivarini@gmail.com
Licencianda Pedagogia UNIRIO / Bolsista PIBID

Resumo
O presente artigo tem por objetivo compartilhar o processo de formação docente de quatro
estudantes de Pedagogia na participação no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
docência (Pibid) em parceria com o Colégio Pedro II de Realengo, na turma Liga dos
Detetives. As vivências seguiram o caminho da escuta desse espaço, das crianças e de cada
um dos participantes consigo próprio no encontro com emoções, reflexões e questionamentos
provocados por essa experiência. A partir de algumas inquietações e curiosidades o novo foi
surgindo com estranhamento, curiosidade e encantamento. Na relação com as crianças, suas
falas e escutas que ressignificam o mundo, provocando suspiros por conta da profundidade de
seus conteúdos, se tornando a temática principal desse artigo. Nessas vivências a escuta das
crianças se tornou um aprendizado quando uma delas falou que iria dizer como serem
professoras, a outra se posicionou de forma diferente diante de um conflito, uma falou sobre o
processo de metamorfose da borboleta e ainda uma situação que era uma questão somente de
escuta. Mais do que ouvir com os ouvidos, foi uma experiência de ouvir com todos os
sentidos.
Palavras-chave: Escuta; Formação docente; Infâncias.

Introdução

A todo o momento as crianças estão se expressando e querendo dizer algo. E quais as


formas de escutá-las na escola? Na roda de conversa, durante a alimentação, higiene,
brincadeiras? As crianças nas suas múltiplas linguagens se comunicam com o corpo todo, nos
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 135
ISSN 2447-620X

seus desenhos, falas e ações.


A escuta desempenha um forte papel social e dialogando com uma visão acadêmica
nos propomos seguir uma formação na área da docência com fundamentos que reconheçam a
potência da voz das crianças, incluindo-as em uma proposta educacional que contribua na
garantia de seus direitos de maneira emancipatória, democrática e inclusiva. A Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) afirma a importância da Educação Infantil na
vida das crianças. Esta Lei regulamenta o sistema educacional de todo o país, da educação
básica ao ensino superior, conforme o Art. 29 que diz: “A educação infantil, primeira etapa da
educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de
idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, completando a ação da família
e da comunidade” (BRASIL, 1996).
O reconhecimento da importância da escuta no exercício da docência exige
incansáveis recursos a fim de desenvolver a sensibilidade para a fala infantil. O olhar
cuidadoso é a base do respeito por cada indivíduo, considerando-o um sujeito que possui
múltiplas visões e linguagens. A idade cronológica pode ser um fator determinante no âmbito
biológico, mas o desenvolvimento educacional é único, devendo ser observado, ouvido,
sentido.
O PIBID1 aproxima escola e universidade no aperfeiçoamento e aprofundamento a
iniciação à docência, a experiência no CREIR 2 em parceria com a UNIRIO, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, se deu por meio de muitas vivências, observações
reflexivas do cotidiano escolar, possibilitando a ampliação do olhar com leituras de artigos,
conversas, dentre outras trocas.
A escuta, assunto que envolve muitos debates, é pensada no percurso formativo das
estudantes em reflexão da importância que é ouvir as crianças, uma vez que ouvi-las envolve
uma atitude docente de abrir mão do controle, desenvolvimento de confiança na construção de
uma relação segura e afetuosa, isto é, caminhar na contramão de uma educação repressora e
controladora.
Esse artigo foi construído a partir da observação da multiplicidade de linguagens
pedagógicas que constroem a rotina escolar desse espaço, os desdobramentos e diálogos
baseados nas descobertas que permeiam o relacionamento entre a criança e o professor,
vivenciados nas rodas de conversas, no pátio, em algumas propostas de atividades. Portanto, a
escuta costura esse trabalho que provoca a além de ouvir com os ouvidos, se amplie seu

1 PIBID - Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à docência


2
CREIR – Centro de Referencia em Educação Infantil de Realengo
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 136
ISSN 2447-620X

entendimento a todos os sentidos, falas e gestos. Segundo Rinaldi, ação que afeta o corpo
todo:

Como podemos definir o termo escuta? Escuta como sensibilidade aos padrões que
conecta, ao que nos conecta aos outros; entregando-nos à convicção de que nosso
entendimento e próprio ser são apenas pequenas partes de um conhecimento mais
amplo, integrado, que mantém o universo unido. Escuta, portanto, como metáfora
para a abertura e sensibilidade de ouvir e ser ouvido – ouvir não somente com as
orelhas, mas com todos os nossos sentidos (visão, tato, olfato, paladar, audição e
também direção). (RINALDI, 2012, p.124).

A narrativa apresentada envolve conversas que semanalmente ocorriam em encontros


de supervisão das pibdianas com a supervisora, o que se configurou como espaço de troca e
reflexão do vivido, onde eram compartilhadas observações, dúvidas, angústias, belezas. A
partir de quatro cenas escolhidas, na leitura de um diário de campo, a questão da escuta é
pensada, ampliando olhares.

A fala como lugar de emancipação e a escuta como caminho de reflexão

Uma situação que chamou a atenção e que foi assinalada nos encontros de supervisão
foi a da Maria3, que até então nas relações observadas parecia precisar da mediação da amiga
Márcia para se relacionar, fazer escolhas, muitas vezes demonstrando até solicitar uma ajuda
dela na verbalização de seus desejos.
Contrariando essa afirmação, em determinada ocasião ela defendeu a amizade com o
amigo João de uma maneira que não tínhamos visto antes em suas ações. Eles sentaram um ao
lado do outro para assistirem um filme e João se levantou para pegar um brinquedo, tendo seu
lugar ocupado por Marcos. Maria, de maneira firme, pediu que ele se levantasse, e na
suposição da negação do Marcos o advertiu informando que os amigos pretendiam sentar
juntos e que cortariam laços com ele, definitivamente, caso ocupasse esse lugar, mas que se
fosse “bonzinho” poderia participar da companhia da dupla, colocando uma cadeira próximo.
Marcos não contestou e aceitou se levantar de imediato.
A mudança de seu comportamento muitas vezes tímido, para a segurança de alguém
decidido impediu uma intervenção dos adultos no diálogo. Apontamento retratado no diário
de campo de Bruna:

3 Os nomes das crianças foram modificados com o objetivo de preservar suas identidades.
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 137
ISSN 2447-620X

Foi uma atitude instintiva, imaginei que se fizesse algum tipo de observação ou
mesmo tentasse chamar atenção da Maria ao fato do Marcos também ser seu amigo
e ter a liberdade de escolher um lugar, uma vez que estava vazio, poderia acabar
com aquela coragem que eu não tinha visto ainda. Talvez, a dependência que
demonstrava ter da amiga Márcia se tornasse maior e impedisse que ambas
ampliassem seus círculos de amizade. Não quis que qualquer atitude minha,
interferisse no diálogo que estava sendo assertivo.”4

Talvez… Incertezas que apesar de todo cuidado na observação jamais teremos. Mas e
Marcos, não foi preterido? O Marcos muitas vezes demonstrou atitudes de confronto com
seus colegas, e aquela poderia ter sido mais uma. Talvez também ele tenha sido pego de
surpresa pela menina que sempre demonstrou afastamento, mas que com firmeza conseguiu -
a sua maneira, utilizando uma fala direta, sem levantar o tom da voz - ter seu desejo
respeitado. Maria apresentou o problema e a solução. Marcos que sempre reagiu, dessa vez
recuou.
Na relação com as crianças, rememorar situações vivenciadas com elas é um
importante processo de formação docente. Os registros, realizados em um caderno de campo,
são uma possibilidade de avaliação, uma ferramenta valiosa de documentação que implica
uma autopercepção nas relações:

Fiquei um tempo ainda pensando na situação, se eu tinha sido justa, se deveria ter
adotado outra atitude, ou valorizado a fala da Maria, apenas avisado que não se
comunicasse em tom de ameaça, contudo estava feliz em vê-la se manifestar
autonomamente. A novidade da conquista desta criança me fez pensar em atitudes
futuras como educadora e na importância da valorização da fala da criança. Algo
que até então pareceu tão teórico, que eu jamais imaginaria presenciar. (Bruna,
estudante do PIBID, 2018).

Analisando o relato, talvez se os pedidos de colo e as demonstrações de insegurança


da Maria não tivessem sido atendidos com o devido acolhimento pelas professoras, a mesma
não teria sido corajosa e detentora de argumentos capazes de questionarem Marcos nessa
situação. Talvez mostrar a Maria que ela sempre teria naquele lugar pessoas que a ajudariam a
vencer seus fantasmas, que a existência deles não seria banalizada, que seria ouvida com a
devida atenção e carinho, tenha destruído a atmosfera de insegurança que cerceava seu
universo. Tais demonstrações podem ter construído a possibilidade de olhar com mais
cuidado em volta e ver com atenção que havia mais espaço para suas brincadeiras, para sua
criatividade, para sua fala do que para as barreiras impostas pelos seus receios.
E se ao invés de receber a devida atenção Maria tivesse sua fala negligenciada ou
ainda advertida, minimizando seus apelos? A adoção da cultura do acolhimento, a construção
4 Registro do diário de bordo de uma das pibidianas.
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 138
ISSN 2447-620X

do vínculo afetivo entre criança e professora foi muito importante. Uma contribuição também
para a vida em sociedade, valorizando desde cedo à fala e a escuta, o ouvir e refletir,
comunicação não violenta e possuidora de reflexões. Em uma de suas citações no livro
Buscando caminhos para a Pré-Escola, Léa Tiriba faz menção à escritora Neide Nogueira,
onde fica clara a necessidade de reflexão do trabalho do professor no processo de crescimento
profissional por meio das práticas adotadas e do pensar sobre quem são os agentes que
compõem cada grupo, suas questões particulares, o planejamento de algumas propostas
baseado em experiências passadas, processo de avaliação que vai muito além de resultados:

O planejamento é, para o professor, um momento de reflexão sobre o próprio


trabalho, sobre seus próprios desafios de crescimento e enfrentamento de
dificuldades - momento de troca entre companheiros de trabalho - momento de
tomada de consciência da realidade na qual está inserido (como é a minha classe?
Quais as suas necessidades? No que estão interessados? O que pedem? Por quê?) e
de levantamento de hipóteses de trabalho: linhas de ação, objetivos, momentos de
fecundação (...). A avaliação não é o momento isolado do processo onde a grande e
irrevogável decisão será tomada: sucesso ou fracasso de alunos e professores. É
antes um instrumento de trabalho cotidiano do professor que permite entender a
vivência de seus alunos e recolocar seus próprios objetivos e encaminhamentos.
Avaliar é ler a realidade para poder oferecer o material que se faça necessário.
Assim, a avaliação final, aquela que necessita ser formalizada, é construída no
cotidiano junto com todo o trabalho, por professor e alunos. (NOGUEIRA in
TIRIBA, 1985, p.82).

Nesse processo de vivências no CREIR foi possível observar, nas atitudes das crianças
e no trabalho das professoras, uma autonomia que vai além do cuidado, que se reflete em suas
escutas. A atenção individual não era apenas um acalanto, mas sim um reconhecimento da
identidade de cada criança. A reflexão cotidiana do que a fala das crianças tem a dizer, se
torna um instrumento indispensável para a construção de um relacionamento de confiança e
afeto.
No livro mencionado anteriormente, Léa Tiriba, no capítulo III, menciona que “pra
começo de conversa, gostar de criança não é tudo” e argumenta sobre o trabalho
desenvolvido sem um aprofundamento dos conhecimentos emocionais e do desenvolvimento
respeitoso das crianças. Refletindo sobre essas realidades acreditamos que a empatia é
primordial, assim como a reflexão de até que ponto uma criança que se sente emocionalmente
insegura se bloqueia no contexto escolar:

O desconhecimento do complexo processo de desenvolvimento infantil (que se


concretiza em um não saber o que observar e propor), aliado a uma concepção
autoritária de educação (que pretende moldar as crianças às normas do mundo
adulto), resultava num cotidiano aborrecido, onde grande parte do tempo as crianças
passavam sentadas, esperando o lápis, o papel, a massinha, a história, a sua vez, ou
em filas, para lavar as mãos, para lanchar, para entrar ou sair da escola. (...) A falta
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 139
ISSN 2447-620X

de conhecimentos teóricos a respeito do desenvolvimento emocional das crianças


não permitia que as educadoras compreendessem o significado mais profundo de
algumas de suas brincadeiras. Consequentemente, assumiam uma postura que
deixava clara a não consciência das funções de seu trabalho: Eu nem ligo mais… Tá
chorando porque é manhoso tá chorão igual ao irmão. (TIRIBA, 1982, p. 84).

Os registros do caderno de campo da Bruna trouxeram a reflexão da autopercepção, da


implicação do adulto que faz parte do grupo, que é presente em pensamentos, ações e
emoções:

A questão da Maria me fez pensar diversas vezes, se meu comportamento foi o mais
correto, porém, ainda que instintivamente, teve base em algumas leituras e
pensamentos pessoais, principalmente em ajudá-la a se enxergar de uma maneira
empoderada, assim como, dar continuidade a escuta e a fala sensível, sem receio e
sem ofensas. Cada qual em sua descoberta e seu espaço, ambas agindo da maneira
que julgaram ser mais correta e inconscientemente de acordo com seus
aprendizados. Participar da pesquisa docente em um espaço onde as questões ficam
expostas, que são discutidas e argumentadas me fazem acreditar no caminho a ser
trilhado. Perceber que o cenário educacional está mudando mesmo com tantas
dificuldades, barreiras e imposições externas de quem pouco ou nada conhece o
universo infantil e a sala de aula, também são fatores determinantes na caminhada,
e tornam cada experiência mais fortalecedora e colaborativa neste processo.
(Bruna, estudante do PIBID, 2018).

O ato de refletir e questionar aponta novos caminhos. Não seguir um padrão


educacional refletido na padronização de comportamentos, abrir espaço para questões e
reflexões, enxergar a necessidade das crianças de serem respeitadas como indivíduos com
seus medos e dúvidas, fazem parte de um processo não apenas para a criança, mas para quem
participa da escola e pretende, futuramente, atuar na educação básica.

O olhar das crianças sobre o processo de formação docente

Abordar caso empírico torna-se uma desafiante, mas também pode ser uma doce
missão no universo das pesquisas. Logo no início da reunião de supervisão, uma criança por
nome Laura de cinco anos de idade, entrou na sala e pediu para participar. O que fazer? Dizer:
“Não! O momento é para adultos?” Estávamos falando sobre ela também. Impedir que a
criança contribuísse com algo que ela tinha de valor e relevante para o momento não era o
melhor caminho. Nesse momento iniciou nossa escuta para ela, para seus dizeres e saberes.
Um grande desafio na escuta da criança é perceber que esse ato reflete a concepção de
um sujeito que é ator em seus processos. Neste caso Laura propôs dar dicas para uma “boa
conduta” do professor: “A gente tem que tirar essas coisas de cocô e xixi da cabeça das
crianças. Temos que fazer coisas muito legais”. Em uma intervenção, foi perguntando a
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 140
ISSN 2447-620X

criança se então, fazendo coisas legais, tiraria isso da cabeça das crianças. Ela continuou seu
raciocínio: “Sim, e a gente tem que relaxar. Uma prática para o relaxamento é a meditação.
Se a criança não conseguir relaxar e estiver muito agitada, aí faz tudo acelerado mesmo.”
Percebemos nesse trecho, e em outros a seguir, que a criança a todo o momento se
coloca como a educadora da reunião, se tornando a mediadora desse momento. No caso
relatado, a escuta a incluiu nesse momento trazendo a sua contribuição, vista como um direito
seu.
Talvez a postura mais comum fosse impelir a participação da criança, pedir que a
mesma se retirasse da sala para que os adultos pudessem falar. Todavia, essa postura seria a
ideal? Em muitas situações as crianças são impedidas de se manifestarem pela ideia de que
suas falas não são relevantes. Mas na oportunidade de escuta em questão, percebe-se o quanto
elas têm a falar sobre o cotidiano que vivem e observam na escola.
Laura continuou a conversa trazendo suas ideias: “A gente tem que ver o que a criança
está sentindo, a gente tem que ver as coisas que ela está fazendo. Temos que ter olhos de
águia, quando a gente tem que entender as crianças. Então a gente tem que tirar as crianças
do confuso”. O que será que estava querendo dizer por meio dessas falas? Será que são
questões que ela já vivenciou e até mesmo tenta entender? Ela relata muito sobre a
importância do educador perceber a criança, seus medos, suas questões. Será que em algum
momento se sentiu desamparada? Ou acolhida? Rinadi amplia a conversa trazendo a presença
das emoções na escuta que vai muito além de ouvir alguém, que quando fala, diz sobre si:

Por trás do ato de escuta existe normalmente uma curiosidade, um desejo, uma
dúvida, um interesse; há sempre alguma emoção. Escuta é emoção; é um ato
originado por emoções e que estimula emoções. As emoções dos outros nos
influenciam por meio de processos fortes, diretos, não mediados e intrínsecos à
interação entre sujeitos comunicantes. Escutar como forma de aceitar de bom grado
e estar aberto às diferenças, reconhecendo o valor do ponto de vista e da
interpretação dos outros. (RINALDI, 2012, p.124).

Ao ser questionada sobre suas dicas, se dariam ou não certo, ela disse que se não
dessem, então seguíssemos as nossas. Em sua fala Laura está relatando percepções sobre seu
olhar.
A criança é um ser sócio-criativo, que intervém no processo de existir no mundo e
corrobora simultaneamente para a transformação da sociedade. Precisamos valorizar esse
espaço das crianças na concepção de que elas tem cem linguagens e que a escola tem
responsabilidade na afirmação dessa ideia, como diz o poema de Loris Malaguzzi:
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 141
ISSN 2447-620X

A criança é feita de cem. A criança tem cem mãos cem pensamentos cem modos de
pensar de jogar e de falar. Cem sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar.
Cem alegrias para cantar e compreender. Cem mundos para descobrir. Cem mundos
para inventar. Cem mundos para sonhar. A criança tem cem linguagens (e depois
cem cem cem) mas roubaram-lhe noventa e nove. A escola e a cultura lhe separam a
cabeça do corpo. Dizem-lhe: de pensar sem as mãos, de fazer sem a cabeça, de
escutar e de não falar, de compreender sem alegrias, de amar e de maravilhar-se só
na Páscoa e no Natal. Dizem-lhe: de descobrir um mundo que já existe e de cem
roubaram-lhe noventa e nove. Dizem-lhe: que o jogo e o trabalho a realidade e a
fantasia, a ciência e a imaginação, o céu e a terra, a razão e o sonho são coisas que
não estão juntas. Dizem-lhe enfim: que as cem não existem. A criança diz: ao
contrário, as cem existem. (MALLAGUZZI, 1999, p.5)

A cada ato surge uma ou várias questões que trazem reflexões sobre a afirmação de
que na Educação Infantil a criança é um sujeito em ação.

“Eu tenho um pequeno problema, disse o urso!”

Em muitos momentos do dia a dia, crianças ocupam um lugar de invisibilidade: os


sentidos que constituem na relação com o ambiente e as atividades preparadas pelos
adultos ficam obscurecidos. (GUIMARÃES; BARBOSA, 2009, p. 56).

Uma das práticas existentes no CREIR é o banho de mangueira – ou banho de piscina


– quando está muito quente (o calor é frequente no Rio de Janeiro). As crianças levam suas
roupas de banho e sempre empolgadas brincam com a água como grandes exploradoras.
Descobrem de diferentes formas a lama, a sombra, o efeito do calor do sol sobre a água, como
manusear a mangueira e por aí vão observando partes do mundo que não haviam notado
antes, junto com os colegas.
Em um dia de sol da primavera carioca, as crianças receberam no momento da roda a
notícia de que a professora de Educação Física iria levá-las para mais um banho de piscina, e
a empolgação foi quase geral. As crianças rapidamente foram até a mochila tirar suas roupas
de banho e se vestirem, prontas para explorar, mas uma das crianças não havia levado seu
maiô e demonstrou ter ficado chateada. Ela se escondeu embaixo da mesa enquanto seus
colegas se trocavam e dali se recusou a sair, as professoras da turma decidiram dar a ela seu
espaço e continuaram a ajudar aos outros, enquanto ela teve seu momento de ficar sozinha
respeitado.
Depois de um tempo saíram todos da sala e foram para o solário onde estavam mais
professoras e outras turmas. Rapidamente a maioria das crianças se ocupou em alguma
atividade, e a menina encostou-se na parede demonstrando estar triste. Então, uma a uma,
professoras e pibidianas presentes tentaram conversar com ela.
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 142
ISSN 2447-620X

A primeira ofereceu roupas de banho emprestadas para que ela tomasse banho
também. A resposta foi “Não!”. A segunda perguntou se ela não queria entrar com as suas
próprias roupas, e sua única reação foi cruzar os braços e olhar para a parede.
Foram oferecidas opções para ela se reunir ao grupo nas brincadeiras, e nada pareceu
convencer a menina. Eis que surgiu uma ideia e uma das professoras perguntou: “Mas por que
você está tão chateada?” Ninguém havia perguntado antes.
Rapidamente ela descruzou os braços e explicou: “Não quero ficar aqui fora, está
muito calor, e também não quero me molhar, quero ficar dentro da sala no ar-
condicionado.” Como um estalo, tudo fez sentido. A professora sentou e conversou com a
criança explicando os motivos de permanecer com o grupo e ofereceu abrir a porta da sala
para ela receber um pouco do vento gelado. Problema solucionado, e com a situação
explicada, a menina começou a brincar e se divertir com as outras crianças.
O livro “Eu tenho um pequeno problema”, disse o urso conta a história de um urso
que tenta falar sobre seu problema com diversas pessoas, mas todas estão ocupadas demais
para ouvi-lo ou acham que sabem o que ele precisa, assim como acontece com as crianças:

O urso desamarrou as asas. Tirou o chapéu da cabeça e os óculos de cima do nariz.


Desvencilhou-se do cachecol e do colar com o amuleto da sorte. Livrou-se das
botas. Deixou de lado o pote com o mel puro, assim como a caixa com os remédios
coloridos. Então suspirou. – O que está acontecendo com você? – Perguntou uma
voz miúda ao seu lado. Uma mosca estava sentada numa folinha de grama e olhava-
o curiosa. – Ah, é que não quero nada disso – Disse o urso. – Ninguém quer prestar
atenção ao que digo. – Eu estou aqui, e vou ouvi-lo – Disse a mosca. – O que está
havendo? – Eu tenho um pequeno problema - disse o urso. – Tenho medo do escuro,
sozinho em minha caverna. E não conheço nenhum outro urso nem ninguém que
queira dormir comigo na caverna. Passo o dia inteiro com medo da noite.
(JANISCH; LEFFLER, 2008, p. 19-22).

Na situação apresentada, a invisibilidade (Guimarães e Barbosa, 2009) se mostra, mas


é rapidamente revertida quando a menina consegue expressar por si só o que a incomodava e
junto com a professora, dentro das possibilidades do momento, criaram uma solução através
da conversa.
Quantas vezes durante a rotina do dia a dia é perguntado e ouvido o que a criança tem
a dizer? O momento de conversa, da escuta do outro, é um movimento contrário à correria
cotidiana e várias vezes o “ouvir o outro” pode estar carregado de parar e abrir mão do
controle. Quando o outro é uma criança, cercada da concepção de que adultos sabem o que é
melhor pra ela, esse momento é ainda mais raro e exige mais trabalho.
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 143
ISSN 2447-620X

Quando a fala se transforma em uma grande metamorfose

A montagem do portfólio pela criança, como um formato de avaliação é muito mais do


que uma organização de propostas aceitas, são as memórias e registros da jornada percorrida
por ela no Colégio Pedro II ao longo de um ano inteiro. O que foi vivido durante esse tempo?
Que experiências vivenciaram no colégio? Perguntas como essas são feitas ao analisarmos a
ideia do portfólio, e nos levam a pensar que o mesmo se torna algo tão precioso como um baú
de recordações. Ao sentar com as crianças e ver esses processos que viveram ao longo do ano,
percebemos a memória e os sentimentos em relação àqueles momentos, além de tornar
visíveis experiências.
Em meio às vivências observadas nos trabalhos havia um em específico em que a
folha era dobrada ao meio e de um lado a criança fazia desenhos com tinta e depois colocava
a outra parte da folha dobrada por cima, duplicando o efeito, surgindo então à figura de uma
borboleta. Ao perceber essa transformação e observar que uma das professoras tinha uma
tatuagem de borboleta no braço, Monique comentou que “Quando a borboleta não consegue
voar é porque ela está doente”.
Apesar de talvez para ela essa ter sido somente uma fala, nos adultos que a
observavam gerou reflexões. Será que alguém havia dito isso para ela? Ou essa fala veio de
uma lógica construída por alguma experiência vivenciada? Suas palavras impactaram os que
ouviram, enquanto que para Monique talvez tenha sido só uma constatação. Será?!
O registro do diário de bordo de Victória trouxe as memórias provicadas com essa
fala, cheias de emoção e que suscitaram elementos para a conversa no encontro de supervisão
sobre a cena observada:

Embora eu tenha certo pavor a borboletas, sempre fui curiosa ao fato delas fazerem
metamorfose, e serem ligadas a seres espirituais. A partir de uma frase
despretensiosa, sem nenhuma intenção, me vi pensando, analisando e questionando
esse inseto por outra visão. Você já percebeu a beleza tênue de uma borboleta
enquanto ela voa? E que apesar de passar muito tempo em seu processo de
transformação até chegar ao estágio final de borboleta, ela pode somente durar
alguns dias ou semanas até a sua morte? (Victória, estudante PIBID, 2018).

A temática abre caminho para uma significativa discussão filosófica sobre o sentido da
vida. Borboletas nos mostram que temos que aproveitar o tempo presente, aproveitar ao
máximo nossa permanência aqui no mundo. Elas também nos lembram que a morte é apenas
outra transformação. O voo da borboleta remete também a sua liberdade, ao passo que se não
lhe for permitido voar, não lhe resta mais nada, porque ela jamais conseguirá chegar ao seu
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 144
ISSN 2447-620X

destino.
A escuta atenta traz mais humanização aos processos do cotidiano escolar, sendo
importante valorizar a sensibilidade para essas escutas e para o diálogo, sabendo os limites
dos mesmos, a fim de desenvolver uma compreensão maior acerca de como isso nos afeta,
conforme afirma Carla Rinaldi:

Escuta das cem, das mil linguagens, símbolos e códigos que usamos para nos
expressar, comunicar, e com os quais a vida expressa a si mesma e se comunica com
aqueles que sabem ouvir. Escuta como tempo, tempo de ouvir, um tempo situado
fora do tempo cronológico – um tempo cheio de silêncios, de longas pausas, um
tempo interior. Escuta interior, escuta de nós mesmos, como uma pausa, uma
suspensão, um elemento que engendra ouvir os outros, mas que também é gerado
pelo escutar o que os outros tem de nós. (RINALDI, 2012, p. 124).

A escuta das crianças nos permite escutar a nós mesmos, muitas vezes as crianças nos
fornecem materiais de pesquisa e reflexão sobre o eu, o outro, sobre nós. Quando nós
humanos somos impedidos de fazer algo que gostamos, ou necessitamos para nós mesmos,
não ficamos mal? Pode acontecer de nos sentir até mesmo doentes diante da situação, como a
borboleta da Monique, podendo nos levar a uma doença muito pior do que física, uma doença
da alma.

Considerações finais

Um espaço de infâncias de convivências de crianças, de vida e expressão de


sentimentos, torna-se um espaço profícuo para o desenvolvimento de aprendizagens e
múltiplas experiências. Tonucci (2005) lembra que rememorar a nossa infância pode ser bom
na relação com a vida, com as crianças. Nesse sentido, podemos complementar sua fala que
dizendo que as chances de construirmos um mundo melhor são grandes se essas recordações
se deram de forma positiva e se, a partir delas, aprendemos a lidar com as negativas.
As crianças por meio das falas ou de atitudes falam sobre seus sentimentos,
demonstram e comunicam o que estão achando do outro e como vêem a si e ao mundo: “A
escola é muito legal. A gente vai para casa muito feliz. Não gosto de ir de transporte. Quando
eu chegar em casa minha mãe vai comprar um biscoito. Amo Informática, brincar no
computador e gosto de pintar de tinta.”
Escutar as crianças é se perceber também. Falamos, escutamos, sentimos, vivemos a
escrita deste texto com o corpo todo, com os cinco sentidos, pelo olhar de Bartolomeu
Campos de Queirós.
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 145
ISSN 2447-620X

Com os ouvidos nós escutamos o silêncio do mundo. E dentro do silêncio moram


todos os sons: canto, choro, riso, lamento. No silêncio vivem barulhos de vento e
chuva, de asa e mergulho. É preciso silêncio para poder escutar. E quando uma voz
invade nossoss ouvidos, adivinhamos a felicidade de quem fala. Nossos ouvidos
leem o tom das vozes. E o ruído do voo das abelhas adoça o nosso dia. Se escutamos
música, nosso corpo descansa com a melodia das notas. Se ficamos em repouso e
prestamos sentido aos ruídos, nosso pensamento viaja. Visita montanha e planície,
primavera e verão. Escutar também é um jeito de ver. Quando nós escutamos,
imaginamos distâncias, construímos histórias, desvendamos novas paisagens. Os
ouvidos têm raízes pelo corpo inteiro. (QUEIRÓS, 2009, p.10-11).

As crianças fazem parte do processo de construir suas infâncias e precisam ser


escutadas, precisam participar de fato das propostas, que são para elas mesmas pensadas.
Fazem parte do mundo e devem ter espaço para suas críticas, sugestões, questionamentos,
exercendo seu papel como um indivíduo da sociedade. Dar espaço a essas vozes é perceber as
reais necessidades de seus universos, assim como seus desafios.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, 20 de dezembro de


1996.

GUIMARÃES, Daniela; BARBOSA, Silvia. Cadê a Viviane? Cadê a Ingrid? Visibilidade e


Invisibilidade das Crianças na Creche. In: Retratos de um Desafio - Crianças e Adultos na
Educação Infantil. KRAMER, Sonia (org). São Paulo: Ática, 2009.

JANISCH, Heinz; LEFFLER, Silke. “Eu tenho um pequeno problema”, disse o urso. São
Paulo, Moderna, 2008.

MALAGUZZI, Loris. Ao contrário, as cem existem. In: As cem lingaugens da criança: a


abordagem de Reggio Emilia na educação da primeira infância. EDWARDS, Carolyn;
LELLA, Gandini; FORMAN, George. Porto Alegre: Artmed, 1999.

NOGUEIRA, Neide. In: TIRIBA, Lea. Pré-escola popular: buscando caminhos, ontem e
hoje. São Paulo: Cortez, 2018.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Os Cinco sentidos. São Paulo: Global, 2009.

RINALDI, Carla. Diálogos com Reggio Emilia: escutar, investigar e aprender. São Paulo:
Paz e Terra, 2012.
PRÁTICAS
Revista Práticas em Educação Infantil – vol.4; nº 5 146
ISSN 2447-620X

TIRIBA, Lea. Pré-escola popular: buscando caminhos, ontem e hoje. São Paulo: Cortez,
2018.

TONUCCI, Francesco. Quando as crianças dizem: agora chega! Porto Alegre: Artmed,
2005.

Você também pode gostar