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Intervenções no Fórum de Debate 2020 (Seminário 11, Lacan) – Escola Lacaniana de Psicanálise 13/04/2021 14:10

Intervenções no Fórum de Debate


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2020 (Seminário 11, Lacan)

Leitura explicativa do capítulo V, Tiquê e Autômaton


André V. L. Niffinegger

psicanalista e membro da ELP-Brasília

O tema da lição de 12 de fevereiro de 1964 é mais amplo do que parece. Ele se inicia no fim da aula
anterior e termina no início da subsequente.

Ao fim da anterior, Lacan nos apresenta o que ele entende por função da repetição e recorda que Freud
articulou essa noção inicialmente em 1914, no artigo Rememoração, repetição e perlaboração.

Logo nos alerta para uma distinção inicial entre rememoração e repetição. Em análise, o sujeito é capaz de
rememorar sua biografia até um certo limite. Encontrando o real, a rememoração encontra um muro.

Nesse momento, Lacan define o real como aquilo que sempre retorna ao mesmo lugar. Lugar em que o
sujeito enquanto res cogitans não o encontra. De fato, a história da descoberta freudiana do fenômeno
darepetição se define por ter apontado para relação entre pensamento e real.

Dá mais um passo e indica que, em Freud, repetição também não se confunde com reprodução(aquilo que
se acreditava fazer com o método catártico). A repetição havia aparecido inicialmente de modo obscuro,
como uma reprodução ou presentificação em ato.

“Ato” parece ser uma palavra valiosa, pois Lacan a escreve em seu quadro negro, acompanhada de um
ponto de interrogação, e alerta que, ao falarmos da relação da repetição com o real, “ato” estará no
horizonte. Vamos aceitá-la como uma bússola. Afinal, já entramos no tema perdidos, porque nada é tão
misterioso na teoria de Freud, Lacan admite, quanto o conceito de repetição. Principalmente, se
articularmos repetição àquela bipartição de base, opondo principio do prazer ao princípio de realidade.

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Lacan anuncia o tema da aula de que vou tratar, e se refere à Física de Aristóteles e a duas noções ali
tratadas na teoria das causas. Trata-se de revisar a contribuição do filósofo, utilizando-se dos conceitos de
automaton e tuchè, traduzindo-os, respectivamente pelas ideias de “rede de significantes” e “encontro do
real”.

Inicia a quinta sessão do seminário para continuar o exame do conceito de repetição no discurso de Freud
e na experiência da psicanálise.

No gesto de abertura da lição, defende a psicanálise da acusação de que ela conduziria a um “idealismo” –
o que parece ser, à época do seminário, uma crítica marxista. Nenhuma praxis é mais orientada do que a
análise em direção ao que, no centro da experiencia, é o núcleo do real. O que a psicanálise descobriu
seria precisamente esse encontro essencial de um real que, contudo, esquiva-se.

Lacan escreve duas palavras do grego clássico em seu quadro-negro: tuché e automaton. O real está para
além do automaton – entendido como a insitência dos signos (sob o comando do princípio do prazer) – fato
que justificaria a preocupação da pesquisa freudiana. Preocupação evidente em “Homem dos Lobos”, caso
clínico em que Freud relata o esforço para descobrir qual o encontro inicial, o real por detrás da fantasia.

Por que razão Lacan convoca essas noções para elaborar o conceito de repetição? Afinal, ele está
pesquisando a lógica de causação do fenômeno? Efetivamente, Aristóteles trata de tuché e automaton –
acaso e espontaneidade – no seio da sua classificação das causas dos eventos.

Seguindo a sugestão de Lacan, vamos dar uma passada de olhos no texto do filósofo grego.

Aristóteles diz que é necessário examinar o acaso e a espontaneidade para descobrir se são uma só e
mesma coisa ou coisas diferentes e de que maneira eles são de fato causas.

Considera que, em meio aos eventos, alguns se produzem com um propósito, outros, não. Entre aqueles
com propósito, uns se produzem por meio de uma escolha refletida e outros não.

O acaso e o espontâneo se referem ao evento que se produz em vista de uma finalidade ou propósito. É
proposital tudo aquilo que pode ser produzido pelo pensamento e tudo o que acontece do fato da natureza.

Quando os eventos se produzem por acidente, dizemos que são efeitos do acaso. Assim, para Aristóteles,
o acaso é uma causa por acidente, em se tratando dos eventos que têm um propósito e são
consequências de uma escolha.

Em suma, o acaso e a espontaneidade são duas causas por acidente no domínio das coisas que não
podem se produzir de maneira absoluta e, dentre elas, das coisas que se produzem com um propósito.

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Sobre a diferença entre acaso e espontaneidade, a espontaneidade é mais extensa: tudo que se produz
por acaso é também espontâneo. Dentre o que se produz espontaneamente, se produzem por acaso todas
aquelas objeto de uma escolha racional. Uma prova disso é o uso da expressão “em vão”. É empregada
quando o propósito não se produz, mas somente em relação àquilo que é feito em vista de uma finalidade.
Por exemplo, se fizermos um passeio com o objetivo de distração, mas aquele que passeia não se distrai,
dizemos que o passeio foi em vão.

Aristóteles conclui que um evento é espontâneo quando se produz de si mesmo em vão [automatonforma-
se da união de “auto”, de si mesmo e “matèn”, em vão. Automaton significa literalmente, o que se produz
em vão e de si mesmo]. Uma pedra que cai sem o propósito de atingir e machucar alguém, teve uma
queda “automática”, espontânea.

Voltando ao seminário… (I, §5)

Lacan ensina que não se deve confundir a repetição com o retorno espontâneo dos signos (automaton!),
nem com a reprodução (rememoração atuada).

A natureza da repetição foi obscurecida por sua identificação ao conceito de “transferência”. Recordando
Freud, afirma que, quanto à relação ao real na tranferência nada pode ser apreendido in effigie, in
absentia.

Ora, a tranferência nos é dada conceitualmente precisamente como uma relação à ausência. O sujeito se
dirige ao analista, reiterando uma fala ou comportamento que é endereçada a uma imago irreal, a uma
efígie. Portanto, para Lacan, a ambiguidade da realidade em causa na transferência deve ser desfeita a
partir do exame da função do real na repetição.

Está claro para vocês por que a confusão dos dois conceitos é um obstáculo no caminho da pesquisa de
Lacan?

Até esse ponto do argumento, ainda não era evidente o porquê das noções aristotélicas escritas no
quadro. Mas, neste momento, Lacan articula a ideia de tuché na expressão: “o que se repete é algo
sempre produzido como por acaso”[1] (applewebdata://512FF2F7-D4EA-4572-AEEA-
EE671FBE73C1#_ftn1) (I, §6) O sujeito perde acidentalmente uma sessão ou relata ter ocorrido por acaso
algo que lhe impediu realizar sua vontade. É precisamente com essas dificuldades, tropeços e embaraços,
narrados como acasos, que o psicanalista vai ter que se deparar.

Lacan prossegue. A função da tuché, i.e., do real como encontro enquanto falho, apresentou-se
primeiramente na história psicanalítica sob forma de traumatismo. (I, §7)

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Não é notável que, na origem da experiência analítica, o real seja apresentado na forma
do que nele há de inassimilável – na forma do trauma, determinando toda a sua
sequência e lhe impondo uma origem na aparência acidental? Encontramo-nos aí no
cerne do que pode nos permitir compreender o caráter radical da noção conflictual
introduzida pela oposição do princípio do prazer ao princípio da realidade – é por isso
que não se poderia conceber o princípio da realidade como tendo, por sua ascendência,
a última palavra.[2] (applewebdata://512FF2F7-D4EA-4572-AEEA-
EE671FBE73C1#_ftn2)

Para Lacan entender por que há esse retono (no sonho) de algo que demonstra a insistência do trauma,
ele relaciona traumatismo e repetição. Se o princípio do prazer recusa o desprazer, o que explica o retorno
da cena traumática no que, segundo Freud, seria o instrumento de realização do Wunsh do sujeito? Afinal,
qual é a função da repetição do trauma se nada parece justificá-la do ponto de vista do princípio do prazer?

Para Lacan (I, §10), o sistema da realidade deixa prisioneira uma parte essencial do que está em relação
ao real, prisioneira nas redes do processo primário (correlato do princípio do prazer). O processo primário –
aquilo que Lacan tentou definir sob a forma de inconsciente – deve ser apreendido na sua experiência de
ruptura entre percepção e consciência, no local intemporal apelidado de “outra cena” por Freud. Nessa
direção, Lacan cerne precisamente o campo da experiência analítica em que o fenômeno da repetição
pode ser melhor contemplado.

O argumento ganha força com um exemplo pessoal. Ele descreve a situação em que, dormindo, ouve
barulhos provocados por batidas. A percepção do barulho acarreta um sonho que manifestava outra coisa
que não as batidas. Finalmente, atinge o momento do despertar e forma-se a consciência de que estava
dormindo há pouco. Ele se pergunta o que é o sonhador no momento entre a percepção do barulho e a
tomada de consciência desperta, no momento preciso em que a percepção deu lugar ao sonho, mas ainda
não havia adentrado na representação consciente de si mesmo e da sua situação. (II, §2,3,4)

Para aprofundar, Lacan invoca outro exemplo mais revelador, um sonho relatado na Traumdeutung.[3]
(applewebdata://512FF2F7-D4EA-4572-AEEA-EE671FBE73C1#_ftn3)

Um pai passara dias e noites de vigília à cabeceira do leito de seu filho enfermo. Após a morte do menino,
ele foi para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta aberta, de maneira a poder enxergar o
aposento em que jazia o corpo.

Após horas de sono, o pai sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o tomou pelo braço e
lhe sussurrou em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?” Acordou, notou um clarão intenso
no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o velho vigia caíra no sono e a mortalha e um dos braços

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do cadáver tinham sido queimados por uma vela tombada.

A explicação desse sonho é simples. O clarão de luz chegou aos olhos do homem adormecido e o levou à
conclusão a que teria chegado se estivesse acordado: que uma vela ateara fogo nas proximidades do
corpo. O conteúdo do sonho deve ter sido sobredeterminado e as palavras proferidas pelo menino devem
ter sido compostas de expressões que ele realmente proferira em vida. Por exemplo, “Estou queimando”
pode ter sido dito em meio à febre e “Pai, não vês?” talvez tenha derivado de alguma outra situação
carregada de afeto.

Por que produzir um sonho em tais circunstâncias, quando se fazia necessário o despertar rápido? E aqui
observaremos que esse sonho serviu à realização de um desejo. O filho morto comportou-se no sonho
como se estivesse vivo. Em nome da realização desse desejo, o pai prolongou seu sono.

Até aqui, Freud se concentrou no sentido secreto dos sonhos, bem como no trabalho do sonho para ocultá-
lo. Mas agora esbarrou num sonho que não levanta problemas de interpretação e cujo sentido é óbvio.

Me pergunto por que Lacan evoca esse sonho para tratar da repetição e cogito uma resposta. Lacan vai
tratar da repetição utilizando-se desse momento em que o sonho propicia, entre a percepção e a
consciência, a emergência da “outra cena”. Lacan delimita esse espaço, que é propriamente um espaço de
formação do inconsciente, no caso, formações oníricas, e recorta aí o fenômeno da repetição e o que seria
a sua causa.

Temos em mãos um exemplo onírico que dificilmente confirma a tese de que o sonho é a realização de
uma desejo frustrado. Vemos surgir, na Traumdeutung, uma função do sonho aparentemente secundária.
Então, o que Freud quer dizer ao sublinhar que esse sonho confirma sua tese?

Se a função do sonho é proteger e prolongar o sono; se o sonho, afinal de contas, pode se aproximar tão
de perto da realidade externa que o provoca, não poderia responder a esse estímulo sem que o sonhador
precise despertar? O fenômeno do sonambulismo não seria uma prova disso? A questão seria então:
“Qu’est-ce qui réveille ?” O que acorda? O que produz o despertar? Não seria, no sonho, uma outra
realidade?

Lacan afirma que há mais realidade na mensagem do garoto ao pai do que no barulho e na luz da chama.
(Especula: talvez não fosse a causa da morte do filho ou o remorso do pai?). Parece jogar com a
significação da palavra “realidade”. Trata-se da mesma realidade até então evocada para a elaboração do
conceito de repetição, do encontro com o real? Estaria se perguntando qual é a realidade mais relevante
para a psicanálise e definindo suas condições teóricas?

Nesse movimento, Lacan formula uma pergunta cuja escolha das palavras novamente nos remete à tuché:

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Que encontro pode haver daí por diante com esse ser inerte para sempre – mesmo a
ser devorado pelas chamas – senão aquele que se passa justamente no momento em
que a chama, por acidente como por acaso, vem se juntar a ele? Onde está ela, a
realidade, neste acidente? senão que algo se repete, mais fatal em suma, por meio da
realidade (…)[4] (applewebdata://512FF2F7-D4EA-4572-AEEA-EE671FBE73C1#_ftn4)

O encontro, sempre perdido (manquée) se passou entre o sonho e o despertar; entre aquele que ainda
dorme e aquele que sonhou para não ser derpertado. Quanto à realização do desejo, não se trata de
sustentar o filho vivo, e a criança morta tomando o pai pelo braço aponta para um além que se faz “ouvir”
no sonho. (II, §14)

É uma passagem enigmática. Lacan critica a conclusão de Freud para dizer que o sonho não se presta a
realizar o desejo de preservar a vida do filho. Lacan vai dizer: “Le désir s’y présentifie de la perte imagée au
point le plus cruel de l’objet”. O desejo está presente nesse sonho, segundo Lacan, não porque ele fantasia
que a criança ainda estaria viva, mas está presente no sonho pela perda do objeto. A perda, transformada
em imagem no ponto mais cruel, i. e., a criança pegando fogo. É a perda do objeto que equivaleao desejo.

Em seguida, Lacan diz “C’est que dans le rêve, se fasse la rencontre vraiment unique, après quoi le désir
n’a plus à subsister que comme deuil (…)” [staferla][5] (applewebdata://512FF2F7-D4EA-4572-AEEA-
EE671FBE73C1#_ftn5) Ou seja, o sonho representa o encontro do pai com o filho, que ele chama de um
encontro verdadeiramente único, o encontro sempre falho, que nunca se realiza, no real.

Após o pai despertar, esse desejo vai dar lugar ao luto. (É o que Lacan quer dizer com o oração suprimida
na transcrição de J.A. Miller: “après quoi le désir n’a plus à subsister que comme deuil”). Depois desse
encontro único que o sonho permite realizar de forma imagética, o desejo não persistirá a não ser como
luto.

[Digressão]: Lacan havia chamado nossa atenção para a noção de “ato”, que deveria sempre estar no
horizonte como um ponto de fuga para nosso olhar investigativo, mas, contrariando nossa expectativa, até
agora nesta lição, não dá nenhum exemplo do que seria a repetição por meio da atuação do sujeito. Talvez
o fará, ao final desse capítulo, com a análise do jogo da bobina manipulada por um bebê de que Freud
extraiu o famoso binômio alemão do “fort-da”, mencionado em “Além do princípio do prazer”.

Em relação ao “ato”, Freud diz que o sujeito consegue narrar suas memórias em análise, até um certo
ponto, a partir do qual sua forma de se lembrar passa a ser a atuação, a repetição de atos não percebida
como tal pelo sujeito, aos modos de um ator que encena, sem perceber que está no palco e que a cortina
está aberta.[6] (applewebdata://512FF2F7-D4EA-4572-AEEA-EE671FBE73C1#_ftn6) No artigo
Rememoração, repetição e elaboração, leremos:

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(…) o paciente não recorda coisa alguma do que acontenceu e reprimiu, mas expressa-
o pela atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como
ação; repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo. Por exemplo, o paciente
não diz que recorda que costumava ser desafiador e crítico em relação à autoridade
dos pais; em vez disso, comporta-se dessa maneira para com o médico (…)[7]
(applewebdata://512FF2F7-D4EA-4572-AEEA-EE671FBE73C1#_ftn7)

Lacan aborda o tema nesta lição, não pelo exemplo de um ato físico, mas pelo exemplo de um sonho.
Haveria então uma correlação entre o ato onírico, produzido na “outra cena” e o ato motor, encenado no
palco do quotidiano?

Pensando nesses termos, poderíamos dizer que o fenômeno da repetição se manifesta, durante o sono por
meio de formação onírica do inconciente e, em estado de vigília, a repetição – ocasionada pela tuché, o
encontro sempre perdido frente ao real – se daria por meio da encenação de um texto cujo dramaturgo foi
barrado na porta da consciência.

Voltando ao percurso do seminário (II, §18), Lacan revela o que gostaria que fosse retido por seus
ouvintes: aquilo que é fulcral a respeito desse “encontro como para sempre perdido”.

O lugar do real tem precedência e determina a função de repetição; real que vai do trauma à fantasia,
sendo a fantasia a tela que o disfarça. Essa realidade, o acidente, o barulhinho, que pode levar ao
despertar só tem o condão de fazer acordar em razão de uma “outra realidade escondida atrás da falta
daquilo que tem o lugar de representação”, a pulsão (Trieb) (II, §19) Lacan introduz aqui a noção de
pulsão, mas nos adverte que é algo ainda a ser elaborado futuramente.

Quanto ao real, temos que procurá-lo para além do sonho, do disfarce, por detrás da falta da
representação que é falsificada por algo que lhe faz as vezes em seu lugar (tenant-lieu).

Lacan conclui esse momento da aula afirmando que é o real que comanda, em última instância, nossas
atividades. É o que a psicanálise nos revela.

Leitura explicativa do capítulo XIV, “A pulsão parcial e seu circuito”


André V. L. Niffinegger

psicanalista e membro da ELP-Brasília

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3 de setembro de 2020

Nesta lição, Lacan retoma seu discurso sobre a pulsão. Relembra que iniciou sua abordagem do conceito
após ter postulado que a transferência é o que se manifesta, na experiência, como a atuação (mise en
acte) da realidade do inconsciente. Realidade esta que Lacan afirma ser a sexualidade.

Lacan se debruçará principalmente sobre esse ponto, sobre o sentido e alcance dessa afirmação.

Iniciando a reflexão, diz que a sexualidade, ou a ação que a presentifica, é desnudada pelo aparecimento
do amor, e pergunta aos ouvintes: “– O amor representa o ápice inequívoco que torna presente a
sexualidade no aqui e agora da transferência?”. “– De modo algum”, responderia Freud em A pulsão e seus
destinos (texto trabalhado por Lacan nesta lição).

O artigo de Freud divide-se em duas vertentes: na primeira parte, há a decomposição da pulsão; na


segunda, o exame do ato do amor (das Lieben). Lacan nos alerta para o fato de que tratará do segundo
tema.

Freud é claro em dizer que o amor de modo algum poderia ser considerado como o representante da
convergência do esforço do sexual, i.e., da totalidade que resumiria a essência e função da sexualidade
(die ganze Sexualstrebung).

Em uma das traduções brasileiras, esta é a passagem mencionada:

O caso do amor e do ódio adquire interesse particular pela circunstância de resistir ao


enquadramento em nossa descrição dos instintos. Não se pode duvidar da íntima
relação entre esses dois afetos contrários e a vida sexual, mas é preciso naturalmente
se recusar a conceber o amor como um instinto parcial particular da sexualidade, de
maneira igual aos outros. É preferível ver o amor como expressão da totalidade da
tendência sexual, mas com isso não se vai muito longe também, e não se sabe como
entender um contrário material dessa tendência.[1] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-
48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn1)

Segundo Lacan, o artigo está aí para mostrar que, em se tratando da finalidade biológica da sexualidade,
ou seja, a reprodução, as pulsões são parciais. Acrescenta que as pulsões, em sua estrutura, estão
vinculadas a um “fator econômico”. À primeira vista, Lacan parece se referir a uma das três “polaridades
que governam a vida psíquica”, no caso, a polaridade econômica prazer-desprazer, valendo-se diretamente
de Freud:

Resumindo, podemos sublinhar que os destino dos instintos consistem essencialmente


no fato de que os impulsos instintuais são submetidos às influências das três grandes
polaridades que governam a vida psíquica. Dessas três polaridades, pode-se designer a

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da atividade-passividade como a biológica, a do Eu-mundo exterior como a real, e por


fim a de prazer-desprazer como a econômica.[2] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-
48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn2)

Por que qualificar esse aspecto com o adjetivo “econômico”? Vejamos. Lacan ensina que o fator
econômico depende das condições de operação do princípio do prazer no âmbito do Real-Ich(Eu-
realidade). O Real-Ich é concebido como o sistema nervoso central em sua função de controle
homeostático das tensões internas. Assim, em razão da realidade do sistema homeostático, a sexualidade
entra em jogo sob a forma das pulsões parciais.

Nesse ponto, Lacan subitamente avança um conceito de pulsão, articulando numa só frase pulsão,
inconsciente e sexualidade. Ele diz: “A pulsão é precisamente a composição, o arranjo [montage] por meio
da qual a sexualidade participa da vida psíquica, de uma maneira que deve se conformar à estrutura de
lacuna/hiato [béance] do inconsciente”[3] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-
1F2324F10105#_ftn3) [tradução minha]. É um conceito ainda obscuro…

Para avançar a explicação, Lacan nos situa entre os dois extremos da experiência analítica. De um lado, o
reprimido/recalcado e o sintôma – homogêneos e redutíveis às funções significantes em estrutura
sincrônica. Na outra extremidade, a interpretação, estruturada metonimicamente (dimensão diacrônica),
análoga ao desejo.

Dominando a economia desse intervalo entre os extremos, Lacan situa a sexualidade, sob a forma das
pulsões sexuais. Se assim não o fosse, a experiência analítica seria apenas uma prática divinatória,
segundo Lacan.

Mais um passo e Lacan evoca a sexualidade infantil nos termos em que Freud a apresenta em Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, ou seja, a sexualidade polimorfa, aberrante. Lacan, obediente a seu
“retorno a Freud”, critica a leitura apressada que não enxerga o que essa sexualidade representa em
essência, isto é, que todos os sujeito, da criança ao adulto, estão em pé de igualdade no que diz respeito à
instância da sexualidade. É uma afirmação que parece absurda, sob a perspectiva do senso comum. Pois
bem, em que termos esse argumento será viável?

Os sujeitos estão em pé de igualdade porque sua relação com a sexualidade se inscreve nas redes
significantes, responsáveis pela constituição subjetiva. A sexualidade apenas se realiza por meio da
operação pulsional no que as pulsões têm de parcial em relação à finalidade biológica da sexualidade (a
reprodução). Essa análise de Lacan lança luz sobre o significado do adjetivo “parcial” quando qualifica o
substantivo pulsão.

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A linha argumentativa toma uma nova inflexão. Lacan agora associa, numa só frase, três noções cruciais –
sexualidade, desejo e corpo – afirmando que a integração da sexualidade à dialética do desejo pressupõe
uma espécie de aparelhamento do corpo.[4] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-
1F2324F10105#_ftn4)

Sem desenvolver essa idéia, Lacan finaliza esse tópico com o que seria o obstáculo ao bom entendimento
do conceito de pulsão, isto é, não enxergamos que a pulsão representa, mas apenas representa, e
parcialmente, a “curva de realização da sexualidade, cujo término é a morte. De fato, o ser sexuado dirige-
se à morte.

É nesse ponto que Lacan faz incidir o fragmento de Heráclito que havia escrito no quadro-negro logo no
início da lição. A tradução do grego seria aproximadamente “o nome do arco é vida, sua obra é a morte”. O
fragmento faz sentido se atentarmos para o jogo de palavras do original grego, utilizando as palavras
homônimas que se referem à vida e ao arco. Para situar a pulsão na economia psíquica, Lacan termina a
reflexão atribuindo ao modo de existência pulsional o que ele chamou de “dialética do arco-e-flecha”.

Lacan retoma o texto de Freud e aponta para o caminho ali trilhado para abordar o tema da pulsão:
recursos linguísticos, gramaticais, jogando com as formas verbais ativa, passiva e o reflexivo. Para Lacan,
esse método revelaria apenas o envelope, a superfície do fenômeno:

Resultados diversos, e mais simples, são proporcionados pela investigação de outro par
de opostos, o dos instintos que têm por metas olhar e mostrar-se. (Voyeur e
exibicionista, na linguagem das perversões.) Neste caso pode-se estabelecer os
mesmos estágios do anterior: a) olhar como atividade dirigida a um outro objeto; b) o
abandono do objeto, a volta do instinto de olhar para uma parte do próprio corpo, e com
isso a reversão em passividade e a constituição da nova meta: ser olhado; c) a
introdução de um novo sujeito, ao qual o indivíduo se mostra, para ser olhado por ele.
(…) O esquema para o instinto de olhar poderia ser este:[5]
(applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn5)

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O fundamental é compreender a estrutura de vai-e-vém, o movimento de ida e retorno em caráter circular


esboçado no artifício grammatical no texto de Freud.

Lacan diz ser notável que Freud tenha escolhido a Schaulust (o prazer de ver) e o sadomasoquismo para
ilustrar esse tráfego pulsional.

Quanto a essas duas pulsões, Freud sublinha que não há apenas dois tempos, mas três. Temos então que
distinguir o retorno no circuito pulsional do que aparece em um terceiro tempo, fase em que “aparece um
novo sujeito”. Quando a pulsão fecha seu trajeto circular, aparece um sujeito no “nível do outro”, afirma
Lacan. E é somente aí que se perfaz a função da pulsão.

Lacan chama nossa atenção para o esquema de um circuito desenhado no quadro-negro:

O esquema esboça uma topologia simples com os elements do conceito de pulsão. Há uma flecha em
forma de curva, ilustrativa do movimento de ida e volta. A origem da flecha está associada a Drang
(pressão ou impulso da pulsão). Vemos um círculo como em um plano inclinado, formando uma oval, que
delimita uma superfície que Lacan define como borda, análoga ao Quelle, a fonte pulsional, i. e., a zona
erógena. A tensão pulsional é sempre boucle (anel, fivela, circuito, etc) e está intimamente ligada ao seu
retorno à zona erógina.

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Lacan quer lançar luz sobre o mistério da modalidade de satisfação da pulsão sem que ela tenha atingido
seu suposto alvo (but), a finalidade biológica da cópula reprodutiva.

Qual é então o verdadeiro alvo da pulsão parcial? Lacan faz suspense quanto à resposta e volta-se para a
noção de alvo em sua equivocidade, cuja polissemia é captada pela língua inglesa.

O inglês nos fornece as palavras aim e goal, dualidade que Lacan utiliza para, respectivamente, evidenciar
os sentidos de trajeto e de realização do objetivo ou acerto do alvo.

Se utilizarmos o futebol como metáfora, teríamos a distinção entre o tiro do atacante que lança a bola em
direção ao gol adversário e a bola que ultrapassa o goleiro e atinge a rede, efetivamente marcando um
ponto.

Lacan avança uma conclusão hipotética: se a pulsão pode ser satisfeita sem atingir a finalidade biológica,
resta-nos qualificá-la de pulsão parcial, sendo sua finalidade o próprio retorno em circuito.

Na metáfora do futebol, seria um jogo em que um boomerang faria às vezes da bola, e o jogador marcaria
o gol tão somente com o retorno do que havia lançado.

Cabe então perguntar o que explicaria essa satisfação do auto-erotismo da zona erógena.De fato, essa
satisfação não é nada intuitiva em termos teóricos. Se partirmos do paradigma instinctual, ela não fará
sentido algum. Para Lacan, há algo que permite explicar e distinguir esse modo de satisfação pulsional
autoerótico: um “objeto”. Objeto que tendemos a confundir com aquilo em torno do qual a pulsão encerra-
se no encontro da satisfação. Esse objeto é nada mais do que a presença – ideia aparentemente paradoxal
– de um vão, de um vazio, ocupável em última instância por qualquer objeto, no sentido ordinário do termo.
Nesse ponto, Lacan nomeia esse vazio com o rótulo teórico “objeto perdido pequeno a”.

Boa parte da elaboração teórica de Lacan é condensada em matemas (mathème), fórmulas algébricas
compostas de símbolos que representam postulados, conceitos ou os modos como se relacionam em uma
estrutura.

Um dos elementos centrais da “matematização” descritiva do funcionamento do insconciente é o objeto “a”.


Para representar o aquela “presença de um vazio”, pressuposto gnosiológico do circuito pulsional, Lacan
escolheu a primeira letra do alfabeto e, não me parece coincidência, a inicial da palavra francesa autre.

Curiosamente, a escolha do “a” para representar o objeto apto a abarcar qualquer outro objeto remete a
um célebre exemplo literário. Em um conto publicado em 1945, J. L. Borges descreve um pequena esfera
que condensava, em seu volume, toda a extensão do espaço, todos os lugares possíveis. A essa pequena
esfera fantástica, Borges deu o nome aleph, primeira letra dos sistemas de escrita das línguas semíticas. A
analogia à invenção de Lacan salta aos olhos. Que todos os temas da psicanálise já foram tratados nas
artes, disso Freud já nos havia prevenido.

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Essa letrinha, esse objeto lógico não é, segundo Lacan, a origem da pulsão oral, por exemplo. Não teria a
função de representar o alimento primitivo, ele é introduzido na teoria que explica a lógica pulsional, a partir
do fato de que nenhum alimento tem o condão de jamais satisfazer a pulsão oral, a não ser pela aptidão
pulsional a contornar o objeto eternamente perdido.

Estabelecido o circuito pulsional e seus elementos, Lacan dá mais um passo e levanta a questão de saber
como encaixar esse circuito na dinâmica pulsional mais ampla, no conjunto das pulsões parciais e na
suposta sucessão de fases do amadurecimento libidinal.[6] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-
1F2324F10105#_ftn6)

Responde categoricamente que “não há nenhuma relação de dedução ou gênese de uma pulsão parcial à
pulsão seguinte”.[7] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn7) Não há uma
metamorfose natural entre elas. Por exemplo, a passagem da pulsão oral à anal não se dá via maturação,
mas pela intervenção de algo estranho ao campo da pulsão, dirá Lacan, pela intervenção e
redirecionamento (renversement)[8] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn8)
da demanda do Outro.

O último parágrafo desse segundo movimento da lição nos surpreende com a inserção repentina do
conceito de sujeito na discussão da estrutura pulsional.

Os argumentos prévios – nas palavras de Lacan – nos levam à manifestação da pulsão à maneira de um
sujeito acéfalo, já que tudo se articula em termos de tensão. O objeto da pulsão está situado no nível dessa
subjetivação sem sujeito, o que Lacan chamou metaforiacamente de uma subjetivação acéfala, uma
estrutura que representa uma face da topolgia. A outra face é que de um sujeito em sua relação ao
significante, um sujeito furado.[9] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn9)

Em seguida, Lacan passa a articular a pulsão ao inconsciente por meio de um terceiro elemento. Dirá:
“Pois bem!, porque há algo, no aparelho do corpo, estruturado da mesma maneira [em que se estrutura o
sujeito pela distribuição dos investimentos significantes] a pulsão presta-se ao seu papel no funcionamento
do insconciente em razão da unidade topológica dos hiatos/lacunas em jogo”.[10]
(applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn10)

O terceiro elemento a que aludi – e aqui saio da perspectiva explicativa e para ousar uma interpretação – é
a homologia topológica entre os orifícios e bordas corporais e as descontinuidades da estrutura
significante. Ou seja, o esquema da estrutura da pulsão, como esboçado por Lacan no quadro-negro, tem
seu suporte na topologia corporal.

Marcel Czermak[11] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn11) ajudou-me a


perceber essa relação do que chamei acima uma homologia topológica. Na clínica da psicose,
especialmente, no tratamento de pacientes diagnosticados com síndrome de Cotard, o autor explica a

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lógica da fala e dos sintomas dessa psicose por meio da teoria de Lacan. Baseando-me em seu ensino oral
e escrito, pude escrever em um artigo recente:

Parece óbvio que nossos orifícios anatômicos coincidem com os furos topológicos. Nas
melhores hipóteses, bem ou mal, eles se superpõem. Contudo, a experiência clínica
demonstra que há sujeitos para os quais não há essa coincidência. Hipótese que
implica a questão de saber o que é um furo para o parlêtre. Para tentar respondê-la,
Czermak avança uma fórmula que ele atribui a Lacan: « les pulsions ne se raccordent à
nos orifices que par faveur anatomique ». Um favor não equivale a uma obrigação e,
efetivamente, o que nós consideramos ser orifícios naturais não os são senão em
relação às nossas certezas neuróticas. A coincidência entre os efeitos da linguagem e a
anatomia não é da ordem do necessário.[12] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-
9A59-1F2324F10105#_ftn12)

A preocupação de Czermak, no caso, é com a situação de indistinção dos orifícios (despécification des
trous) e suas consequências para o funcionamento orgânico de seus pacientes psicóticos. Nossa
preocupação é mais singela: esclarecer como Lacan concebe o conceito de pulsão.

No terceiro e último movimento da lição, Lacan nos convida a Freud e sua análise da Schaulust, a pulsão
escópica, desdobrada no par ver/ser visto. “Os dois pólos desse par são uma só e mesma coisa?”,
pergunta Lacan. Para tratar de responder à questão, invoca o campo da perversão.

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Temos agora uma pedra no caminho. Lacan vê um enigma na abordagem de Freud: quer chegar a uma
estrutura radical da pulsão escópica, porém sem situar o sujeito. Contudo, o que define a perversão é
justamente, diz Lacan, a maneira como o sujeito aí se localiza.

O que é o voyeurismo? Onde está situado o sujeito e o objeto no momento do ato do voyeur ? O sujeito,
diz Lacan, não está presente no ver, no nível da pulsão de ver. Está presente enquanto perverso, situando-
se na chegada final do circuito representado pela flecha do esquema. O objeto é contornado e só assim o
alvo é atingido.

No caso, “o objeto é aqui olhar (regard), e olhar que é o sujeito” que o atinge acertando o alvo na mosca.
Podemos extrair dessa frase de Lacan o circuito, i.e., o movimento de retorno do esquema, em que
aparentemente há uma equivalência sujeito-objeto pela mediação do olhar?

Retomando sua crítica à análise da instância do olhar em Sartre, Lacan diz que o sujeito não é
surpreendido em seu voyeurismo (olhando pelo buraco da fechadura) pelo olhar no nível do outro. Lacan o
corrige dizendo que o outro surpreende o sujeito enquanto este é inteiramente olhar ocultado. De fato, a
pulsão escópica em sua satisfação perversa, digamos clássica, é o voyeur que fita escondido a cena
erótica através da fechadura. Não se espera que o objeto da visão, o outro espreitado lance seu olhar em
direção ao voyeur para que este alcance a fruição do ato.

“O olhar é este objeto perdido e, reencontrado repentinamente, emergente da vergonha uma vez
introduzido o outro”[13] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn13) Nesse
intervalo, o que o sujeito quer ver? Lacan responde: o que ele procura ver é o objeto ausência. O voyeur
procura e acha a sombra atrás da cortina: não procura o falo, mas sua ausência. Aí está a ambiguidade
que se nos apodera ao falarmos da pulsão escópica. O que olhamos é o que não pode ser visto.

O conceito de pulsão ficou um pouco mais claro. Lacan adiciona mais uma peça do quebra-cabeça, e
podemos vislumbrar melhor a estrutura da pulsão, que ficou aparente graças à introdução do elemento
designado como “outro”. Essa estrutura completa-se com o movimento de retorno, a sua “forma revertida”,
que nas palavras de Lacan é a verdadeira pulsão ativa.

Quanto à vertente do masoquismo, Lacan se refere a um nó que dificulta compreender essa modalidade
pulsional: a questão da dor infligida. Em Freud, temos:

A compreensão do sadismo é prejudicada também pela circunstância de que esse


instinto parece buscar, além da sua meta geral (melhor, talvez: no interior dela) uma
ação bem especial dotada de objetivo. Além da humilhação, do subjugamento, a inflição
de dor. Mas a psicanálise parece mostrar que infligir dores não se relaciona com as
originais ações do instinto dotadas de objetivo. A criança sádica não leva em conta a
imposição de dor e não tem esse propósito. Uma vez efetuada a transformação em

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masoquismo, porém, as dores se prestam muito bem apara uma meta masoquista
passiva (…). Quando sentir dores se torna uma meta masoquista, pode surgir também,
retroativamente, a meta sádica de infligir dores, que o próprio indivíduo, ao suscitá-la
em outros, frui masoquisticamente na identificação com o objeto sofredor.[14]
(applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn14)

A possibilidade da dor, em se tratando da pulsão sadomasoquista, se dá no momento em que o circuito se


fecha após a reversão, uma vez que o outro tenha entrado em jogo e o sujeito situa-se como parada final
da pulsão, apto a sofrer a dor pela ação do outro. Emerge então o sujeito sádico pela identificação ao
objeto sofredor.

Lacan, antes de finalizar a exposição, lança ao seu auditório uma pérola, ao articular pulsão (perversa?) ao
princípio do prazer: “Aqui se revela do que se trata na pulsão: a via da pulsão é a única forma de
transgressão permitida ao sujeito em relação ao princípio do prazer.”[15] (applewebdata://7F50A9CE-
9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftn15)

As pulsões parciais instalam-se no limite da manutenção da homeostase (função do princípio do prazer,


por meio da diminuição da tensão pela polaridade prazer-desprazer). A incidência da pulsão parcial
bloqueia o princípio do prazer. Fato que testemunha que, além do Real-Ich, há outra realidade que
intervém, e que, em última instância configurou a estrutura e a diversidade do Real-Ich. Esse é um tema
para as exposições futuras do Fórum de Debate.

[1] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref1) FREUD, Sigmund. Introdução


ao narcissismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12;
tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 72.

[2] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref2) Idem, p. 80.

[3] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref3) (S11, xiv, I, 4)

[4] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref4) (p.161)

[5] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref5) Idem, p. 68.

[6] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref6) Alerta-nos para o fato de que se


deve considerer a pulsão uma força constante (konstant Kraft), e sua consequente tensão estacionária
(que não prograde nem regride, que não aumenta nem diminue). Quanto a isso, Lacan retoma a imagem
da atividade vulcânica utilizada por Freud, as erupções sucessivas de lava. Metáfora que nos permite
visualizer a estrutura fundamental esquematizada previamente por Lacan. Algo que sai de um orifício e sua
borda, que replica sua estrutura fechada, seguindo um trajeto de retorno e cuja consistência é garantida
pelo objeto a ser contornado. No texto de Freud: “Assim, encontramos a essência do instinto,
primeiramente, em suas características principais: a origem em fontes de estímulo no interior do

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organismo, o aparecimento como força constante; e derivamos daí um outro de seus traços: sua
irredutibilidade por meio de ações de fuga.” (FREUD, Sigmund. Introdução ao narcissismo: ensaios de
metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12; tradução e notas Paulo César de
Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 55.)

[7] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref7) (p.164, 4 in fine)

[8] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref8) [reviravolta, reorganização ou


inversão, são traduções possíveis]

[9] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref9) (p. 167 in fine).

[10] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref10) (p. 165, 3)

[11] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref11) Marcel Czermak é psychiatre


des hôpitaux honoraire no hospital Sainte-Anne de Paris, psicanalista, membro da Association Lacanienne
Internationale-ALI e fundador da École psychanalytique de Sainte-Anne. É co-redator do Journal français
de psychiatrie. Foi aluno e colaborador direto de J. Lacan, especialmente na teorização e tratamento da
psicose.

[12] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref12) NIFFINEGGER, André V. L.


(http://lattes.cnpq.br/3078131684883558) A oralidade na psicose: considerações clínicas de Marcel
Czermak. 2019. (Artigo apresentado em conferência).

[13] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref13) (p 166,4)

[14] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref14) FREUD, Sigmund.


Introdução ao narcissismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas,
volume 12; tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010; p. 66-67.

[15] (applewebdata://7F50A9CE-9FC2-48B5-9A59-1F2324F10105#_ftnref15) (167, 3 in fine)

Capítulo XVIII, Do sujeito suposto saber, da Díade Primeira e do Bem

Tópicos para debate

André V. L. Niffinegger

psicanalista e membro da ELP-Brasília

1o de outubro de 2020

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§2 – [« autorizar-se de si-mesmo »]. Na experiência da formação do psicanalista, à insuficiência de


critérios se substitui algo da ordem da cerimônia, traduzida pela simulação. Não há, para o psicanalista,
nenhum além substancial que sirva de referência para fundar o exercício de sua função.

§3-4 – No entanto, ele obtém algo inestimável: a confiança do sujeito e os resultados dessa confiança
pela via de certa técnica. O que significa essa confiança e em torno do que ela e a direção do tratamento
giram ? Esse ponto pivô é o que designo « desejo do psicanalista».

[Fenomenologia da transferência]

[1]

§1 – A transferência é um fenômeno em que estão incluídos, juntos, o sujeito e o psicanalista. Dividi-la em


tranferência e contratransferência é eludir aquilo de que se trata.

§2-4 – A transferência é um fenômeno essencial, ligado ao desejo como fenômeno nodal do ser humano.
Foi perfeitamente articulado, bem antes de Freud, em O Banquete de Platão. O momento essencial que
toca a questão da ação do analista é aquele em se diz que Sócrates nunca pretendeu saber nada além do
que diz respeito a Eros, ao desejo. Platão precisou o lugar da transferência. Desde que haja o sujeito
suposto saber (S.s.S.), há transferência.

(§5 – a organização dos psicanalistas como S.s.S.)

§6-7 – [Freud e a função do S.s.S.] Freud, enquanto vivo, ocupou o lugar do « apenas un », legítimo
sujeito suposto saber a respeito do inconsciente. Não somente foi S.s.S., como de fato sabia, e nos deu
esse saber indestrutível (no sentido de suportar uma interrogação jamais esgotada).

§9 – Quem pode se sentir plenamente investido desse S.s.S. ? Não é essa a questão. A questão é,
primeiramente, saber em que o sujeito se baliza para se dirigir ao S.s.S. Cada vez que essa função
incarna-se em quem quer que seja, analista ou não, a transferência está desde já fundada.

§12-14 – A psicanálise nos demonstra que, principalmente na fase inicial, o que mais limita a confidência
do paciente e seu abandono à regra analítica (i.e. a associação livre) é a ameaça de que o psicanalista
seja enganado, ou melhor, de que o analista será enganado se o paciente lhe der certos elementos.

§15-16 – Aquele que pode ser enganado, não deveria estar, com mais forte razão, sob a suspeita de poder
simplesmente enganar-se ? É em torno desse enganar-se que está o ponto sutil que quero marcar.
Admitindo-se que se suspeite que a análise possa ser um logro, por que algo se estanca em torno desse
enganar-se ?

§19-20 – O que pode significar não querer desejar? Desejar comporta uma fase de defesa que o torna
idêntico a não querer desejar. Não querer desejar é querer não desejar. O sujeito sabe que não querer
desejar segue a lógica da banda de Moebius : ao percorrê-la retornará à superfície que a unifica.

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§21 – É nesse ponto de encontro que o analista é esperado. Enquanto suposto saber, ele é suposto saber
partir ao encontro do desejo inconsciente. Por isso, digo que o desejo do analista é o eixo que sustenta a
inércia da demanda do paciente, i.e., a transferência.

§22 – Esse desejo só é articulável pela relação do desejo ao desejo. Essa relação é interna. O desejo do
homem é o desejo do Outro. Se é só no nível do desejo do Outro que o homem pode reconhecer seu
desejo, e enquanto desejo do Outro, não estará aí um ponto em que seu desejo jamais pode se
reconhecer? A experiência nos mostra que o desejo do sujeito se constitui quando vemos estar em jogo
toda uma cadeia significante no nível do desejo do Outro.

[2]

[Fórmulas a conservar como balizas]

§1 – A alienação está essencialmente vinculada à função da dupla de significantes (S1-S2).

§2 – Para bem entender a função do sujeito nessa articulação significante, devemos operar com dois,
porque só com dois ele é isolável/definível na alienação. Se há três, o deslizamento torna-se circular.

§2 – O efeito de afânise que se produz sob um dos dois significantes vincula-se à definição de um conjunto
de significantes. Conjunto de elementos tal que, se existem apenas dois, o fenômeno da alienação se
produz, i.e., que o significante é o que representa o sujeito para o outro significante. Resultando que,
no nível do outro significante, o sujeito desaparece.

[« Fort-da » como ilustração da operação de alienação]

§12 – [em referência a um texto criticado]: Apresenta-se ali o fort-da e tomam-no como exemplo de
simbolização primordial. É um erro grosseiro, pois não é da oposição pura e simples do fort e do daque ele
tira a força inaugural explicada por sua essência repetitiva. Tolice dizer que se trata de o sujeito se instituir
numa função de domínio. Nos dois fonemas se encarnam os mecanismos propriamente de alienação (que
se exprimem, em aparente paradoxo, no nível do fort).

§13 – Não há Dasein [existência, ser-aí] com o fort. Não há escolha. Se o pequeno sujeito pode se
exercitar nesse jogo do fort-da, é que precisamente ele de modo algum se exercita, pois o sujeito não é
capaz de apreender essa articulação radical. Ele se exercita com a ajuda do carretel, objeto a. Trata-se de
uma alienação e não de um suposto domínio. Ora, a repetição indefinida do jogo fort-damanifesta
claramente a vacilação radical do sujeito.

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