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Artigo - A fragmentação do ensino

A modernidade nos deixou como herança um enorme desenvolvimento


tecnológico, possivelmente em função do investimento tecnicista
dirigido aos alunos que apresentavam alto desempenho, mas nos deixou
também um absurdo caos social, que deve resultar, entre outras coisas,
do descaso com relação aos distraídos, desobedientes, impulsivos, mal
vestidos.

O sonho do mundo moderno terminou por desabar sobre nossas cabeças, em


forma de violência, aquecimento global, fome. A sociedade moderna, com
seus projetos de futuro, acabou não beneficiando de fato ninguém, e
desmorona em conseqüência de sua própria exaustão: diante da violência
em grande escala e da iminência de desastres ecológicos, todos somos
iguais.

Mas o simples fracasso deste modelo moderno de sociedade, que nos


prometeu um futuro ordenado pela ciência, não significa que resultará
uma sociedade menos desigual e mais justa. Mas, como a tecnologia
produziu rachaduras irreversíveis no modo como a sociedade se
organizava, uma brecha sem dúvida se abriu, um ponto de vazão, capaz
de fazer ruir relações e conceitos opressivos, permitindo uma nova
configuração de forças, e gerando novos acordos. Mas, para isso,
precisamos ter coragem de rever valores e modelos, e o mais difícil
talvez seja encarar o quanto obsoletos estão nossos saberes.
Precisamos rever o modo como estruturamos nosso conhecimento, nosso
pensamento, nossa educação.

É lugar comum, em nossos dias, apontar a educação como a saída para os


impasses que vivemos. Mas será que a educação pode mesmo dar conta
desta enorme expectativa? Segundo o cientista da educação Rui Canário,
da Universidade de Lisboa, a imaturidade política e social que nos
caracteriza é proporcional ao grau de escolarização de nossa
sociedade. Quanto mais uma sociedade se escolariza, quanto mais coloca
suas crianças na escola, mais esta sociedade produz imaturos políticos
e sociais, e os responsáveis por isso são, entre outras coisas, a
excessiva fragmentação dos saberes e o isolamento da escola.

Influenciada, por um lado, pela industrialização que chegava, e, por


outro, pelo regime militar que passou a vigorar no Brasil, nossa
escola foi se estruturando como uma linha de montagem, um modo de
produção que fragmentou o trabalho humano, tendo em vista o aumento da
produtividade. A hiper-especialidade, o ensino voltado ao
“científico”, movido pela euforia tecnicista, as inúmeras aulas de 50
minutos, sem conexão entre si, sem contexto ─ nos levaram a uma
sociedade que desaprendeu o valor do todo, do global, do complexo.

E nos tornamos especialistas cada vez mais fragmentados, desvinculados


das grandes questões humanas, sociais, planetárias. E vamos vivendo
acoplados a uma parcela tão pequena da realidade que chegamos a
esquecer quem somos, o que buscamos. Se, por um lado, a fragmentação
do ensino respondia à necessidade de produzir uma educação “em massa”,
por outro, atendia à fundamentação ideológica do novo regime, avesso à
reflexão e à crítica, como mostram as denominações que ainda hoje
usamos: grade curricular, disciplina, prova.

Com tudo isso, fomos formando pessoas cada vez mais segmentadas,
incapazes de responder às grandes questões, e que hoje vivem em um
mundo que as obriga a dar conta de temas cada vez mais complexos, como
o destino do planeta, a internet, a globalização.

“Há uma inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os
saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas,
e, por outro, realidades ou problemas cada vez mais transversais,
multidimensionais, transnacionais, globais, planetários.”
Edgard Morin
Assistimos ao nascimento de um novo modelo de mundo, sem grandes
valores fixos e eixos centrais, mas fundado em diversas conexões,
formando uma imensa rede sem centro, composta de uma infinidade de
jogos e saberes, que se aglutinam e se afastam, que se estendem. Na
era tecnológica, a verdade, a certeza, a estabilidade, o princípio, a
causa, tão caras à ciência, se tornaram sinônimo de nada, perderam o
valor, mas, se estes grandes valores, que tanto já nos oprimiram,
desabaram, talvez a urgência seja exatamente de um novo olhar, um novo
posicionamento com relação ao mundo, nascido de uma nova correlação de
forças, de novas avaliações e novos valores. E isto exige pessoas
inteiras, capazes de olhar o mundo, as situações, como um todo, ao
mesmo tempo em que são capazes de neles se localizar de forma
singular, própria.

É muito difícil falar sobre este universo que nasce, tentar imaginar
qual será a estrutura gramatical capaz de dar conta destes infinitos
discursos. Mas precisamos admitir que os meios não são mais os mesmos,
hoje vivemos em rede. A palavra mais pronunciada é, provavelmente,
conexão, ou link. Mas nós, professores, alunos, pais, continuamos
apertando botões na linha de montagem de uma fábrica em extinção.
Torna-se, portanto, urgente reconstruir o modo como estruturamos
nossos saberes; a escola, começando pela universidade, precisa rever
seus modelos. E, para isto, é imprescindível enfrentar o problema da
fragmentação dos saberes, de uma escola desvinculada do contexto
social, ambiental, cultural, político.

A escola deve ser um corpo vivo. E deve envolver também os espaços


públicos e as festividades, deve ir aos concertos, as exposições de
arte, aos museus e bibliotecas, aos centros de pesquisa, as reservas
ambientais, enfim, a escola deve ir à cidade. E a cidade deve se
preparar para recebê-las, construindo espaços de convivência e de
relação, e assumindo seu papel no processo educativo, ao invés de
lavar as mãos, enquanto isola jovens e crianças em escolas, que mais
se parecem a presídios de alunos. E espera cidadania quando oferece
exclusão.

Torna-se urgente retomarmos a difícil complexidade que é viver,


pensar, criar, conhecer; todas as coisas se relacionam, não há nada
realmente isolado, cada gesto produz desdobramentos incalculáveis; um
saber, uma escola, uma pessoa não existe sem um contexto: talvez este
seja o aprendizado social, a maturidade política que precisamos, para
impedir que as coisas, de uma vez por todas, implodam.

Viviane Mosé
Filósofa

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