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Cristiana Mercuri

RESENHA TEMÁTICA
PIERRE BOURDIEU: polêmica da razão sociológica

Cristiana Mercuri

Este artigo analisa o discurso de Pierre Os textos centrais para a fundamentação


Bourdieu sobre a ciência, que supõe a deste trabalho foram: Le Métier de Sociologue, cuja
indissociabilidade das reflexões sociológica e primeira edição é de 1968; Le Champ Scientifique,
epistemológica. Nessa perspectiva, pensar a ciên- de 1975; Réponses, de 1992; Raisons Pratiques, de
cia significa tratar tanto das peculiaridades do jogo 1994; Méditations Pascaliennes, de 1997; Les Usages
científico, constituído em um campo de trocas Sociaux de la Science, de 1997; e Science de la
simbólicas marcado pela lógica escolástica, como Science et Réflexivité, de 2001.1
das concepções de uma prática específica, a do Para iniciar, é importante lembrar um tre-

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fazer científico e a da construção do conhecimen- cho do livro A profissão do sociólogo, onde
to científico, submetidas a uma historicização ra- Bourdieu afirma:
dical, na qual a ciência é, ao mesmo tempo, pro-
duto e produtora dessa história. ...não seria possível dar toda a força à ação polê-
mica da razão científica sem prolongar a “psica-
A inquietação que conduziu as reflexões a nálise do espírito científico” por uma análise das
seguir resume-se à questão: como, no discurso de condições sociais nas quais são produzidas as
obras sociológicas: o sociólogo pode encontrar um
Bourdieu, articulam-se os pressupostos epistemo- instrumento privilegiado da vigilância
epistemológica na sociologia do conhecimento,
lógicos e sociológicos? meio de aumentar e dar maior precisão ao co-

1
Os títulos traduzidos para o português são respectiva- parecem permanecer vigorosos ao longo dos mais de
mente: A Profissão de Sociólogo, O Campo Científico quarenta anos de suas publicações.
(artigo), Introdução a uma Sociologia Reflexiva em O Neste trabalho, foi adotado o sistema de chamada autor-
Poder Simbólico (publicado no Brasil e em Portugal em data para indicar as citações. Entretanto, para facilitar o
1989), Razões Práticas, Meditações Pascalianas e os Usos reconhecimento das obras de Bourdieu, usaremos a pri-
Sociais da Ciência. Science de la Science et Réflexivité foi meira palavra do título citado, seguida do ano e número
publicado somente em Francês, até então. da página.
A opção de utilizar obras de períodos tão distintos, como As citações dos textos originais em francês que não têm
a A Profissão do Sociólogo, de 1968, e a Science de la tradução consolidada em Português, ou cuja tradução
Science et la Reflexivité, de 2001, deve-se ao reconheci- não consideramos satisfatória, foram traduzidas pelo
mento de que os pressupostos da reflexão epistemológica professor George Mascarenhas.

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nhecimento do erro e das condições que o tor- tese de pontos de vista tomados historicamente como
nam possível e, por vezes, inevitável [...] (A pro-
fissão, 2000, p. 12).2 opostos – a tradição neokantiana de Humboldt-
Cassirer e Whorf-Sapir, o estruturalismo de
A questão enunciada acima revela os prin- Saussure e Lévi-Strauss e o marxismo – mas “...
cípios sociológicos e epistemológicos que norteiam trazem contribuição específica para uma mesma
a concepção de ciência “adotada” por Bourdieu. totalidade complexa: a ordem do simbólico.”
Ao reconhecer as condições sociais como Ao se referir aos objetivos de Réponses,5
obstáculo ao conhecimento científico, e propor a Wacquant (2004, p.102) não apenas identifica os
ampliação da psicanálise do espírito científico para conceitos-chave de Bourdieu como sendo os de
contemplar as condições sociais nas quais este co- habitus, campo e capital, como também enumera:
nhecimento é produzido, Bourdieu inscreve a so- “... seus principais núcleos conceituais:
ciologia na polêmica epistemológica. reflexividade, habitus,6 capital, campo, domina-
Tal afirmação suscita uma série de questões ção simbólica, doxa, a missão dos intelectuais etc.”
que se constituem em guias para a sistematização A essa relação acima somam-se outros ter-
das posições de Bourdieu sobre a ciência: Como a mos “carregados” de especificidades como nomos,
sociologia poderia ou, mais precisamente, “deve- illusio, prática, jogo, estratégia, trajetória etc., fun-
ria” se inscrever como uma dimensão do discurso dados na perspectiva de que o real é relacional,
epistemológico? Uma ciência poderia se constituir constituindo uma “teia” muito difícil de ser ex-
numa condição para o discurso sobre o discurso posta de maneira clara e sem sacrifício dos senti-
científico? Ou, ainda, por que e como a sociologia dos, como destaca Wacquant (2004).
constitui-se instrumento da reflexão propriamen- Embora tocando uma grande diversidade de
te epistemológica? Essas questões exigiram, con- temas, a unidade da obra de Bourdieu, para al-
seqüentemente, não apenas o desvelamento das guns, reside na preocupação reiterada com as rela-
preliminares epistemológicas de Bourdieu, mas ções de dominação, suas estruturas e reprodução
também a compreensão de sua teia conceitual so- expressas, desde seus primeiros trabalhos, em áre-
ciológica, especialmente em relação às análises do as como educação, cultura, literatura e arte.
campo científico. Bonnewitz (2004, p. 18), entretanto, afirma: “Na
A especificidade do universo teórico de verdade, esta aparente diversidade esconde ‘uma
Bourdieu, herdeiro de autores clássicos3 e contem- problemática unificada e uma vontade científica’
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porâneos4 pertencentes às diversas áreas do co- permanente: fazer da sociologia uma ciência total,
nhecimento, torna a apresentação de uma das di- capaz de restituir a unidade fundamental da práti-
mensões de sua obra – como o jogo científico – ca humana.”
dependente da elucidação de grande parte de suas Neste mesmo sentido, Wacquant (2004, p.
noções. 100) reitera:
Como afirma Pinto (2000, p. 77), as pro-
postas teóricas de Bourdieu, constituem uma sín- Bourdieu concebia uma Ciência Social unificada
como um “serviço público” cuja missão é
“desnaturalizar” e “desfatalizar” o mundo social
e “requerer condutas” por meio da descoberta
2
“Mais on ne saurait donner toute sa force à l’action das causas objetivas e das razões subjetivas que
polémique de la raison scientifique sans prolonger la fazem as pessoas fazerem o que fazem, serem
’psychanalyse de l’esprit scientifique’ par une analyse quem são, sentirem da maneira como sentem.
des conditions sociales dans lesquelles sont produites
les oeuvres sociologiques: le sociologue peut trouver un
instrument privilégié de la vigilance épistémologique dans
la sociologie de la connaissance, moyen d’accroître et de 5
Obra de responsabilidade de Pierre Bourdieu e Loïc J. D.
préciser la connaissance de l’erreur et des conditions Wacquant.
qui la rendent possible et parfois inévitable [...]” (Le
métier, 1983, p. 14).
6
Neste trabalho, todos os destaques nos trechos citados
fazem parte das obras consultadas. Deste modo, não
3
Cf. Bonnewitz, 2004, p. 18 et seq. será utilizada a expressão “grifo do autor” para indicar
4
Cf. Wacquant, 2004, p. 97. essa ocorrência.

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Portanto, de acordo com os autores citados, bado. O que tem como conseqüência a afirmação
as construções de Bourdieu parecem ter um outro da centralidade do fazer científico (entendida na
ponto de convergência, estritamente relacionado relação intrínseca entre prática social e lógica
ao propósito de uma Ciência Social unificada, que epistemológica).
se expressa em uma atenção permanente com o Nesse sentido, a concepção do fazer cientí-
rigor científico. A defesa de que as ciências sociais fico no pensamento de Bourdieu implica duas di-
podem ser tão científicas quanto as ciências da mensões que constituem para ele uma unidade: a
natureza sustenta-se em uma determinada compre- primeira dimensão é dada pelo discurso
ensão da ciência, centrada no fazer científico,7 re- epistemológico que enuncia os princípios
ferendada pelos pressupostos centrais de Gaston orientadores da atividade científica que Bourdieu
Bachelard,8 pensados no campo da física. reconhece como “ciência”; e a segunda é o discurso
Sobre o trabalho desenvolvido por Bourdieu sociológico, que compreende o fazer científico, como
em meados da década de 60, comenta Wacquant prática social que se realiza em um espaço social
(2004, p. 98): específico, produto e produtor dessa prática.

Ele procedeu no sentido de combinar em sua


prática de pesquisa o racionalismo de Bachelard
e o materialismo de Marx com o interesse SOBRE O DISCURSO EPISTEMOLÓGICO E
neokantiano de Durkheim pelas formas simbó- SEUS “LAÇOS” SOCIOLÓGICOS
licas, a visão agonística de Weber sobre os Lebens-
ordnungen em competição com as
fenomenologias de Husserl e Merleau-Ponty. O
resultado foi um quadro teórico original, elabo- O discurso epistemológico de Bourdieu ba-
rado por meio de e para a produção de novos seia-se, essencialmente, no racionalismo aplicado10
objetos de pesquisa, objetivando desvendar a
multifacetada dialética das estruturas sociais e de Gaston Bachelard, e este, por sua vez, é reco-
mentais no processo de dominação. nhecido como o arauto de uma filosofia da ciência
que nega a dissociação entre razão e empiria, e
Tanto em leituras de trabalhos que tratam defende a perspectiva da ação polêmica da razão.
do discurso explicitamente epistemológico, como A polêmica incessante da razão constitui
A Profissão do Sociólogo (2000), quanto em uma uma perspectiva epistemológica que, através do “di-
análise eminentemente sociológica, como As Re- álogo” entre razão e empiria, sustenta a possibili-
gras da Arte: Gênese e Estrutura do Campo Literá-

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rio (1996), Bourdieu suscita, a todo o momento, oria da prática”, como será explicitado no decorrer deste
trabalho. Sobre essa questão, Pinto (2000, p. 45) se
questões epistemológicas. posiciona: “Não separar o opus operatum do modus
Para dar conta dessas questões, faz-se ne- operandi, o tema do esquema, e o esquema do contexto:
o que Bourdieu nos ensina a respeito da prática dos agen-
cessário explicitar o discurso de Bourdieu sobre a tes se aplica, é claro, primeiramente a esse objeto de teoria
que ele nos propõe: a prática como tal. De fato, seria para-
ciência que, também de acordo com Bachelard, tem doxal, justo quando se pretende reconhecer o considerá-
vel aporte da noção, reduzi-la à condição de idéia inteligí-
como pressuposto que a compreensão da ciência vel, desligada de suas condições de produção.”
deve partir da revelação da ciência em vias de se 10
Diz Bourdieu (A profissão, 2000, p. 101): “Colocando-
se no centro epistemológico das oscilações, característi-
fazer9 e não a partir da ciência como produto aca- cas de todo pensamento científico, entre o poder de reti-
ficação próprio da experiência e o poder de ruptura e
criação peculiar à razão, Bachelard pode definir como
7
No caso das ciências sociais, Bonnewitz (2004, p. 7) refor- racionalismo aplicado e materialismo racional a filosofia
ça: “... Pierre Bourdieu, assim como Durkheim, afirma a que se atualiza na ‘ação polêmica incessante da Razão’.”
possibilidade de um conhecimento científico do mundo “En se plaçant au centre épistémologique des
social que se define menos pela especificidade do seu obje- oscillations, caractéristiques de toute pensée scientifique,
to do que pela especificidade do seu procedimento.” entre le pouvoir de rectification qui appartient à
l’expérience et le pouvoir de rupture et de création qui
8
Cf. Bachelard (1997). appartient à la raison, Bachelard peut définir comme
9
Cf. A profissão, 2000, p. 101. É importante sinalizar, rationalisme apliqué et matérialisme rationnel la
desde já, que a concepção que tem como foco a ciência philosophie qui s’actualise dans ‘l’action polémique in-
em vias de se fazer, aqui inscrita no discurso de Bourdieu cessante de la Raison’.” (Le métier, 1983, p. 109).
sobre as preliminares epistemológicas, pode ser articula- Esta obra, cuja primeira edição é datada de 1968, é assi-
da coerentemente aos princípios que norteiam a sua “te- nada por Bourdieu, Chamboredon e Passeron.

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dade de apreender a lógica do erro e o princípio nhecimento científico como obstáculos


de que o conhecimento científico se estabelece por inseparavelmente epistemológicos e sociais. Desse
sucessivas e permanentes retificações. Nesse sen- modo, a sociologia, notadamente a sociologia da
tido, Bachelard apresenta a concepção de psicaná- ciência, constitui-se num instrumento fundamen-
lise do espírito científico, que consiste em identifi- tal da vigilância epistemológica necessária para
car e submeter à objetivação os obstáculos ao co- manter esses “mecanismos” sob controle.
nhecimento científico.E Bourdieu afirma a neces- Assim, o fazer científico só se estabelece
sidade de estender a psicanálise do espírito cientí- como tal à medida que for capaz de operar as rup-
fico, através da análise de um obstáculo, qual seja, turas possíveis com qualquer conhecimento pré-
às condições sociais nas quais são produzidas as construído, destruindo sistemas de relações esta-
obras científicas, estas não apresentadas por belecidos a partir do senso comum; de realizar cons-
Bachelard. truções que consistam na substituição de totalida-
A defesa do racionalismo aplicado propõe a des concretas por um conjunto de critérios abstra-
polêmica incessante da razão, ou seja, assume que tos; e de reconhecer “o imperativo da constatação”
a construção dos objetos reconhecidos como cientí- que caracteriza uma “ciência experimental”.
ficos, impõe constantemente o questionamento dos Para Bourdieu, o que fundamenta a necessi-
pressupostos que orientam o trabalho de experi- dade dos atos epistemológicos são os princípios es-
mentação, definindo que o mesmo princípio que tabelecidos em sua teoria do conhecimento social.
admite a precedência da razão como condição do O primeiro dos princípios da teoria do conheci-
trabalho científico implica colocar tais pressupos- mento social defendida por ele consiste no princí-
tos, permanentemente, à prova da experimentação. pio da não-consciência. Esse princípio admite que
Nos termos de Bourdieu, a reflexão o investigador adota pressupostos de maneira não-
epistemológica, ao exigir o “diálogo” permanente consciente, compreendendo a atividade científica
entre razão e empiria, recusa a dicotomia entre apenas como manifestação de uma reflexão indivi-
epistemologia e metodologia e objetiva manter, sob dual do sujeito que conhece, e não como atividade
o controle possível, as operações pertinentes à estabelecida a partir de um conjunto de relações
objetivação. Esta, por sua vez, consiste no traba- constitutivo da ciência. Dessa perspectiva, o princí-
lho persistente de construção do objeto científico, pio da não consciência aponta para o fato de que as
sem o qual a ciência não se distingue de outras determinações do fazer científico não são “automa-
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formas de “conhecimento”, fundamentalmente do ticamente” colocadas no lugar do pensado.


senso comum. Portanto, o controle almejado su- Para Bourdieu, o reconhecimento desse
põe referências teórico-metodológicas que infor- princípio constitui-se numa condição fundamen-
mem os “parâmetros” a serem seguidos, ou seja, tal para o trabalho de ruptura e, portanto, impõe o
os pressupostos da ordem dos discursos seu “avesso” também como um princípio, que se
epistemológicos. torna ele próprio o segundo pressuposto da sua
Um dos pressupostos fundamentais defen- teoria do conhecimento, ou seja, a necessidade de
didos por Bourdieu consiste em assumir a nature- o pesquisador submeter sua prática aos princípios
za sócio-histórica da ciência. Nesse sentido, as con- da teoria do conhecimento sociológico. Referindo-
dições sociais do fazer científico são por Bourdieu se a esse segundo princípio como o avesso do prin-
reconhecidas como obstáculos epistemológicos, por- cípio da não-consciência, Bourdieu estabelece o
que identificadas por ele como um dos “mecanis- eixo central da sua teoria do conhecimento socio-
mos” responsáveis por engendrar possíveis erros lógico: a relação do intelectual com a cultura, ou a
na ciência. relação do intelectual com a condição de intelectu-
Ao assumir o universo científico como um al, afirmando que essa deve ser submetida à polê-
espaço social, ele apresenta os obstáculos ao co- mica da razão.

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Esse segundo princípio contém mais clara- efetivação requer instrumentos e técnicas relativos
mente um dos fundamentos cruciais para esta refle- aos riscos anteriormente apontados, inscritos nos
xão: ao mesmo tempo em que se trata de um princí- princípios da teoria do conhecimento social de
pio epistemológico, por apontar para um dos obstá- Bourdieu. São três os graus de vigilância: a vigi-
culos à construção do conhecimento científico, esse lância simples, que supõe a própria existência do
próprio obstáculo constitui-se em numa relação emi- método, porque admite as contingências imanentes
nentemente social e, para ser controlado, deve ser aos “objetos concretos”; a vigilância da vigilância
tomado como objeto da análise sociológica. simples, que implica o rigor na aplicação do méto-
O terceiro princípio admitido por Bourdieu do; e a vigilância de terceiro grau, identificada por
na construção de sua teoria do conhecimento so- Bourdieu como própria à ordem especificamente
ciológico é a ilusão da transparência, ou melhor, a epistemológica, e que se refere ao método. Esta, ao
ilusão de que a percepção seja capaz de conferir a colocar seus princípios na “mira”, por assim di-
possibilidade do conhecimento, e supõe a proxi- zer, da polêmica da razão científica, rompe com o
midade entre a experiência ingênua, ou as opini- caráter “absoluto” do método. Melhor dizendo, o
ões, e a experiência científica. A concepção de que terceiro grau da vigilância trata da polêmica relati-
o mundo social pode ser desvelado a “olho nu” é va à metaciência, imprescindível, para Bourdieu,
veementemente contestada por Bourdieu, que, to- ao conhecimento científico.
mando Durkheim, reafirma que o sociólogo deve A metaciência da sociologia, proposta por
penetrar no mundo social como em um mundo Bourdieu, ou a teoria do conhecimento do social,
desconhecido.11 apresenta-se, de acordo com os critérios defendi-
O quarto e último dos princípios, o empre- dos por ele, como o princípio unificador12 que, ao
go da linguagem comum, indica que é preciso ana- permitir o reconhecimento dos obstáculos
lisar a lógica da linguagem comum, para esclare- epistemológicos, torna-se capaz de estabelecer a iden-
cer como essa lógica pode estar introduzindo “clan- tidade propriamente sociológica e, nesses termos, a
destinamente”, na investigação, problemas e siste- identidade científica do discurso sociológico.
mas “formulados” pela própria lógica comum e Ao se referir às relações intrínsecas entre a
não por critérios científicos. sociologia da ciência e do conhecimento, Bourdieu
Esses princípios da teoria do conhecimento fundamenta o “lugar” especial que essa ciência – a
social de Pierre Bourdieu remetem ao que ele iden- sociologia – ocupa em relação às demais.

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tifica como obstáculos epistemológicos, uma noção
A sociologia que coloca para as outras ciências a
também bachelardiana. Estes são “mecanismos” que questão de seus fundamentos sociais não pode se
trazem o risco da inclusão de pré-noções não “com- eximir de colocar-se em questão. Estendendo so-
bre o mundo social um olhar irônico, que desvela
patíveis” com a polêmica da razão. Nesse sentido, a e desmascara, que coloca o escondido às claras,
ela não pode se dispensar de lançar este olhar
noção de obstáculo epistemológico, ao ser tomada sobre ela mesma. Em uma intenção que não é a de
como ferramenta teórica, “responsável” pela iden- destruir a sociologia, mas ao contrário de servi-la,
de se servir da sociologia da sociologia para fazer
tificação e explicitação de erros e dos mecanismos uma melhor sociologia. (Science, 2001, p. 16).13
que os engendram, é, ao mesmo tempo, uma con-
dição para o conhecimento destes e, também, para
12
“A teoria do conhecimento sociológico, como sistema
de regras que regem a produção de todos os atos e dis-
o exercício da vigilância epistemológica necessária cursos sociológicos possíveis, e somente destes, é o prin-
cípio gerador das diferentes teorias parciais do social (quer
para que a ruptura seja efetivada. se trate, por exemplo, da teoria das trocas matrimoniais,
ou da teoria da difusão cultural) e, por conseqüência, o
A vigilância epistemológica refere-se à ati- princípio unificador do discurso propriamente socioló-
tude de atenção permanente, necessária ao contro- gico, que não deve ser confundido com uma teoria uni-
tária do social.” (A profissão, 2000, p. 43).
le possível dos obstáculos epistemológicos. Sua 13
“La sociologie qui pose aux autres sciences la question
de leurs fondements sociaux ne peut s’exempter de cette
mise en question. Portant sur le monde social un regard
11
Cf. A profissão, 2000, p.26. ironique, qui dévoile, qui démasque, qui met au jour le

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A explicitação da precedência das análises tas. Portanto o habitus, para Bourdieu, somente se
sociológicas à reflexão propriamente epistemológica realiza em relação a espaços sociais específicos.
coloca a objetivação do sujeito da objetivação como A idéia de sentido prático encerra o caráter
um dos critérios fundamentais e distintivos do não consciente das ações, mas, ao mesmo tempo,
fazer propriamente científico, nos termos de revela o conhecimento comum a todos os agentes
Bourdieu, porque instrumento crucial para que a que partilham um habitus, conhecimento incorpo-
ilusão da ciência como ponto de vista absoluto seja rado no sentido mesmo de se tornar corpo e de
desfeita sem o risco da relativização. certo modo automatizar-se. Em decorrência da com-
preensão dos automatismos do habitus, Bourdieu
sugere a substituição da noção de regras pela de
SOBRE A TEORIA SOCIAL, O JOGO CIENTÍFI- estratégias, vez que a idéia de “seguir regras” traz o
CO E SEUS “LAÇOS” EPISTEMOLÓGICOS risco de que as ações dos agentes possam ser
identificadas como produtos de um cálculo a partir
A sociologia de Bourdieu tem suas bases nas de conhecimentos explícitos. Já o termo estratégia,
noções de campo, habitus e capital. Essas são ferra- para ele, define mais precisamente as ações como
mentas teóricas para o desvelamento do mundo so- produto das disposições incorporadas, portanto,
cial e encerram a concepção de que o real é como já foi dito, como produto do sentido do jogo
relacional.14 Para ele, as noções cumprem a função inscrito nos corpos e de “natureza” não-consciente.
de delimitar as escolhas no trabalho de construção Os espaços sociais específicos sobre os quais
do objeto, o que significa a construção de sistemas Bourdieu concentra suas análises são os campos
de relações dotadas de capacidade para elucidar os de produção cultural, espaços de posições relati-
dados sensíveis. Os sistemas de relações evidenci- vas umas às outras e definidas pela posse de capi-
am os vínculos entre práticas e posições, elas própri- tal. Desse modo, ele define a estrutura de um cam-
as relacionalmente definidas, como será exposto. po como sendo a configuração espacial que reúne
Em Bourdieu, as práticas são o mesmo que as diversas posições, cada uma detentora de um
habitus em ação. O habitus é a expressão do cor- determinado volume e composição de capital.
po socializado, é a incorporação da história das A noção de capital refere-se às proprieda-
relações vivenciadas em trajetórias sociais. Estas des dos agentes que, em um campo, são reconhe-
são definidas como sinônimos das sucessivas po- cidas como valores. Cada campo define, em sua
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sições ocupadas por cada agente nos espaços soci- história, seu capital simbólico específico. Capital
ais. O habitus se expressa em um conjunto de dis- simbólico, assim reconhecido pela lógica específi-
posições e categorias de percepção e avaliação. É ca de um coletivo de agentes que partilha categori-
nesse sentido que a história incorporada (habitus) as semelhantes de percepção e avaliação, partilha
é produto da história objetivada (campo), e, ao um mesmo habitus, e, por sua vez, reconhece o
mesmo tempo, ambas são produto das práticas ou valor que ele mesmo confere às propriedades.
ações dos agentes, e são também produtoras des- Bourdieu cita como espécies fundamentais
caché, elle ne peut se dispenser de jeter ce regard sur
de capital, o econômico, o cultural e o social. No
elle-même. Dans une intention qui n’est pas de détruire caso do campo científico, a posse de capital eco-
la sociologie, mais au contraire de la servir, de se servir
de la sociologie pour faire une meilleure sociologie.” nômico é importante, por favorecer o acesso ao
(Science, 2001, p. 16).
capital cultural ou informacional específico, por
14
De acordo com Pinto (2000, p. 102): “O ‘modo de pen-
sar relacional’ foi sistematizado em antropologia pelo favorecer a posse dos recursos científicos acumu-
estruturalismo, mas não é exclusividade deste, pois
muito deve, segundo Bourdieu, à reflexão de outros lados e disponíveis sob a forma de teorias.
autores, como Cassirer. Ao substituir a coisa pela rela-
ção, esse modo de pensamento satisfaz uma exigência Em termos ainda mais específicos, Bourdieu
muito geral, imposta em diferentes domínios: a exigên- identifica o capital científico sob duas formas: o
cia de criar entidades de nível mais abstrato, plenas de
novas possibilidades operatórias.” “poder temporal ou político” que

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...é o princípio burocrático dos poderes tempo- que instituíram uma dupla verdade.
rais sobre o campo científico como aqueles dos
ministros e dos ministérios, dos decanos, dos rei- A noção de dupla verdade permite refletir o
tores ou dos administradores científicos (esses que parece uma contradição introduzida pelas aná-
poderes temporais são antes nacionais, ou seja,
ligados a instituições nacionais, notadamente lises sociológicas desses universos: “... falar do
àquelas que regem a reprodução do corpo de ci-
entistas – como as academias, os comitês, as co- preço de coisas sem preço...” (Razões, 1996 p. 169).16
missões, etc.) (Science, 2001, p. 113-114).15 O que fundamenta a análise do que aparece inici-
almente como uma contradição é a noção de dupla
e o poder específico ou prestígio social. O verdade, porque permite o reconhecimento de que,
primeiro, relacionado às posições ocupadas nas na economia das trocas simbólicas, o que há é uma
instituições desse campo, confere a seus detento- produção coletiva de crenças incorporadas em um
res um poder de produção e reprodução da estru- processo de socialização comum, condição impres-
tura; o segundo se constitui no reconhecimento cindível às ações, suprimindo, por assim dizer, a
elevado dos pares. necessidade da consciência das trocas ao tempo
Sendo o campo científico um campo social em que as supõe.
como outro qualquer, é marcado por lutas, rela- A história incorporada, o habitus, como já
ções de força, estratégias, interesses e lucros movi- apresentado, é um capital que possibilita aos agen-
dos pela busca comum da acumulação de seu ca- tes disporem das mesmas estruturas de percepção
pital simbólico. e de avaliação dos bens simbólicos num dado uni-
Falar de campo impõe também explicitar o verso social. Portanto a produção e a reprodução
que Bourdieu denomina illusio, ou a crença fun- da crença coletiva são produtos e produtoras do
damental em um jogo. Cada campo tem sua illusio, campo, de uma estrutura social, em que os agentes
que, ao mesmo tempo em que constitui a condição são capazes de jogar de acordo com as estratégias
para seu funcionamento, apresenta-se como pro- condicionadas pelo jogo, ainda que sem a inten-
duto deste. Esse “acordo secreto” é base das dis- ção de fazê-lo.
putas e, assim, do próprio jogo. Em decorrência da compreensão favorecida
Para Bourdieu, compreender o fazer cientí- pela noção de dupla verdade, Bourdieu afirma que
fico supõe admiti-lo como uma prática histórica e é preciso não opor, por exemplo, no caso da ciên-
social inscrita em um campo de produção cultural cia, de um lado, o que a própria ciência assume
como outro qualquer; portanto, um campo de uma como verdade (a objetividade, a originalidade, a

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prática social, mas que é, ao mesmo tempo, dis- utilidade e suas normas, o universalismo, o co-
tinto, em razão das formas específicas de que se munismo intelectual, o desinteresse e o ceticismo)
revestiu e se constituiu historicamente. e, de outro, todas as propriedades de um jogo so-
Uma das características do jogo científico é cial com suas estruturas e lutas.17
o fato de ele ser jogado em um campo identificado Bourdieu acrescenta ainda que uma outra
por Bourdieu como um dos universos onde o in- característica do campo científico é o fato de ele ser
teresse econômico é “negado”, e essa condição o marcado pela lógica escolástica.18 Isso supõe
constitui como um mercado específico. A ambi-
güidade das práticas é constitutiva e constituidora 16
“[...] parler de prix des choses sans prix [...]” (Raisons,
desses mercados e, nesse sentido, são mercados 1994, p. 181).
17
Cf. Razões, 1996, p. 84-85.
“[...] est le principe bureaucratique de pouvoirs temporels
15 18
“ O ponto de vista escolástico se traduz nas ciências
sur le champ scientifique comme ceux des ministres et pelo erro epistemocêntrico, que consiste em projetar
des ministères, des doyens, des recteurs ou des numa prática a teoria construída para explicá-la [...], a
administrateurs scientifiques (ces pouvoirs temporels ver, entre outras coisas, a prática real em função da teo-
sont plutôt nationaux, c’est-à-dire liés aux institutions ria da ação racional, enfim em colocar um “intelectual
natinales, notamment à celles qui régissent la na máquina” (para parafrazear Ryle)”.
reproduction du corps des savants – comme les “ Le point de vue scolastique se traduit dans les sciences
Académies, les comités, les comissions, etc. [...]” (Science, par l’erreur épistémocentrique qui consiste à projeter
2001, p. 113-114). dans une pratique la théorie construite pour l’expliquer

331
PIERRE BOURDIEU: polêmica da razão sociológica

explicitar a análise dos “princípios” escolásticos, seus produtos, os cientistas necessitam impor sua
necessária à compreensão das especificidades desse definição de ciência, sua delimitação de proble-
campo e de sua illusio. mas, metodologias e teorias mais adequadas à
Os campos escolásticos (seja o religioso, ar- legitimação de seu trabalho. Portanto, uma de suas
tístico, jurídico ou científico), ao se estabelecerem conclusões é que a definição de ciência vigente no
como campos de produção simbólica distintos do campo científico é produto do jogo de forças entre
universo econômico, constituem-se em espaços so- as posições.
ciais específicos, cujo jogo de forças também pos- Embora o desvelamento das condições de
sui “regras” e princípios próprios. Perpetuando as produção da ciência exponham a própria prática
condutas instituídas na escola,19 os campos imbuída do seu sentido de jogo, Bourdieu, reco-
escolásticos seguem entendendo suas práticas sob nhecendo os mecanismos desse jogo, também ad-
a forma de “jogos sérios” e “exercícios gratuitos”.20 mite que as condições específicas do campo cientí-
Neles, as estruturas cognitivas, ao tempo em que fico produzem as condições de produção do fato
carregam o arbitrário ou a doxa em seus princípi- científico, o que, para ele, não permite tomar as cons-
os, também as incorporam às práticas como em truções científicas como ficções, pois isso significa-
um ciclo, à compreensão dessas práticas ou à “te- ria reduzir a lógica das trocas simbólicas à lógica
oria prática”, termo utilizado por Bourdieu em dos interesses pertinentes ao campo econômico.
oposição à teoria científica. O olhar científico é possível pela constitui-
A tarefa de colocar a doxa e a prática a ela ção das condições sociais específicas, as quais pos-
engendrada no “lugar do pensado” é destinada à sibilitam a existência do ponto de vista escolástico,
sociologia, ciência capaz de realizar, de dentro da ou seja, uma visão afastada das urgências do mun-
própria escolástica – respeitando as exigências do do. Esse afastamento, entretanto, que é intrínseco
jogo científico – a objetivação, o que permite sub- à sua própria condição de existência, apresenta-se
meter a prática científica às análises necessárias como um risco, porque a implicação dos merca-
para que se possa avançar na ruptura com a doxa dos de bens simbólicos no jogo escolástico e na
e, consequentemente, manter sob a vigilância pos- política específica leva o investigador a uma
sível o risco da adesão pré-reflexiva à ordem vulnerabilidade maior, a uma tendência a ignorar
estabelecida.21 tal condição.
Nessa perspectiva, Bourdieu compreende o Nesse sentido, mais uma vez, a sociologia é
CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006

fato científico como produto de um campo cultu- apresentada como meio científico que, ao consti-
ral, uma construção coletiva de agentes, aos quais tuir-se como instrumento da análise do campo ci-
é atribuída a autoridade sobre os “recursos cientí- entífico, é também instrumento para a realização
ficos acumulados”. Supõe, pois, tanto os “produ- da objetivação do sujeito que constrói a ciência e
tores” como os “consumidores”, em um jogo cujos para a objetivação das condições sociais da pró-
pares conferem reconhecimento mútuo. Nesse sen- pria objetivação.
tido, o espaço de posições é que delimita as possi- O trabalho de objetivação tem de ser com-
bilidades do reconhecimento. preendido como um ponto de vista sempre relati-
Como conseqüência dessa concepção do vo a uma posição na estrutura de distribuição do
jogo científico Bourdieu reconhece que, ao impor capital simbólico desse campo, e, portanto, deve
ser objetivado também. A exterioridade em relação
[…], à voir la pratique réelle en fonction de la théorie de ao objeto bem como a sua proximidade têm de ser
l’action rationelle, notamment, bref à mettre un “savant
dans le machine”(pour paraphraser Ryle)” (Chauviré e construídas como objetos. Essa construção inscre-
Fontaine, 2003, p. 65-66).
ve-se na vigilância epistemológica do terceiro grau,
19
Cf. Meditações. 2001. p. 22.(Meditations. 1997. p. 23)
20
Cf. Meditações, 2001, p. 28. (Méditations, 1997, p. 29). ou na vigilância relativa ao método, ao discurso
21
Cf. O campo científico, 1983, p. 145, nota 38. do discurso, à reflexão epistemológica.

332
Cristiana Mercuri

Desse reconhecimento decorre a concepção elas por um “olhar” que aponta as especificidades
de que as disputas características do campo cien- desse campo de produção muito especial, com
tífico e, portanto, travadas com as armas desse destaque sobre o ponto de vista escolástico e seus
campo, com o capital simbólico específico, são erros.
conflitos inscritos indissociavelmente na ordem Caso os pressupostos de Bourdieu sejam
social e na ordem da racionalidade científica. O assumidos até as “últimas” conseqüências, importa
progresso da razão está submetido às condições chamar a atenção para as redefinições profundas
sociais, ao tempo em que também as submete. Isso que o fazer científico “sofre”, ou deveria “sofrer”.
porque, na medida em que se torna condição soci- Isso impõe retomar as questões iniciais deste arti-
al dele mesmo, as institui. go – as “questões-guia” –, com a preocupação de
O esquecimento ou recalque22 das condi- enfatizar como a adoção das análises de Bourdieu
ções sociais, como denomina Bourdieu, é próprio pode repercutir sobre a construção de objetos na
dos mercados de trocas simbólicas, que supõem a ciência.
mentira coletiva sobre a verdade da troca. A cren- Para Bourdieu, o fazer científico está no
ça na cumplicidade de uma economia que garante mundo. Nesse sentido, a questão seria: Como fa-
as recompensas, a illusio, é uma condição emi- zer para “tomar” o mundo como objeto? Para res-
nentemente social e, portanto, somente pode ser ponder a essa pergunta, Bourdieu assume como
desvendada e objetivada, a partir de teorias socio- pré-requisito a idéia de “tomar” o próprio fazer
lógicas. Ao possibilitar a objetivação da crença, a científico como objeto. Isso supõe indagar-se: A
sociologia pode elucidar a produção do campo ci- partir de que pressupostos é possível “tomar” o
entífico e seus produtos, as ciências, seus objetos, fazer científico como objeto?
teorias, métodos etc., não no sentido de destruí- O primeiro desses pressupostos já foi dado:
los, mas de reforçá-los nos termos em que a pró- o fazer científico é histórico e social. Aceitá-lo im-
pria racionalidade científica propõe. plica pensar os pressupostos como
O campo científico, como condição social inseparavelmente inscritos na epistemologia e na
objetiva, é constituído de todas as implicações e sociologia, pois, como afirma Bourdieu (O poder,
pressupostos que incluem as lógicas do sentido prá- 1989, p. 71, nota 15): “[...] a epistemologia não
tico, da escolástica e do mercado de trocas simbóli- pode ser separada, nem de facto nem de direito,
cas, sustentado em uma illusio própria, fundadora, da história social da ciência.”23

CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006


por sua vez, de um nomos, ou esquemas de classi- Sendo a sociologia produto do fazer cientí-
ficação específicos. Em sua história, encontra-se o fico, para Bourdieu, portanto, produto de um fa-
fundamento para que se admita a dupla verdade: a zer circunscrito a limites sócio-históricos, como
ciência é histórica e, em sua história, é produtora ela pode inserir-se na polêmica epistemológica, que
de sua autonomia em relação à história. se situa na ordem dos princípios de busca de ver-
dades, sem estabelecer uma contradição com o que
ele mesmo afirma?
RAZÕES HISTÓRICAS DA RAZÃO Embora possa parecer procedente, essa
questão acima incorre em um erro de princípio, ao
Ao ratificar a natureza histórica da ciência, admitir a existência de algum princípio de busca
o pensamento de Bourdieu ultrapassa fronteiras, de verdades que não seja ele mesmo produto de
levando a polêmica indistintamente a todas as ci- uma prática histórica e social. O que interessa, de
ências, ao tempo em que também distingue todas fato, e sobre que Bourdieu chama a atenção, é que

22
No sentido dado pela psicologia, de exclusão de certas
idéias, consciência ou desejos que o indivíduo não quer Não foi possível o acesso ao original do capítulo terceiro
23

admitir. de O Poder Simbólico.

333
PIERRE BOURDIEU: polêmica da razão sociológica

todo discurso epistemológico deve ser visto como O princípio da compreensão prática não é a cons-
ciência conhecedora [...] mas o sentido prático
princípios de busca de verdades constituídos na do habitus habitado pelo mundo que ele habita,
história24 e, portanto, também, passíveis da pré-ocupado pelo mundo onde ele intervém ati-
vamente, numa relação imediata de
socioanálise. Isso, entretanto, não impede que eles envolvimento, de tensão e de atenção, que cons-
trói o mundo e lhe confere sentido. (Meditações,
sejam tomados como princípios, pois o fazer cien- 2001, p. 173).26
tífico instituído historicamente supõe um modus
operandi próprio, que deve ser “respeitado”. O O grande risco reconhecido, e para Bourdieu
único caminho para superar os erros escolásticos passível de ser controlado, é o fato de que “A ação
supõe, como afirma Bourdieu, a própria escolástica. do senso prático é uma espécie de coincidência ne-
O “problema”,25 então, não é a escolástica cessária [...]” (Meditações, 2001, p. 174).27 Em ter-
em si, mas o fato de não submetê-la à reflexividade, mos epistemológicos, esse risco pode ser relacio-
ao mesmo tempo epistemológica e sociológica, o nado à ilusão da transparência, aqui pensada atra-
que, segundo o ponto de vista defendido por vés das noções de habitus e campo. O habitus é o
Bourdieu, tem o poder de preservá-la e transformá- mundo feito corpo, portanto, identificado em prin-
la na direção mais essencial daquilo que caracteri- cípio, profundamente, com o campo, de tal modo
za o que o próprio pensamento escolástico susten- que “constrói” o agir “automático” de acordo com
ta, ou seja, colocar “tudo” no lugar do pensado. o jogo estabelecido no próprio campo.
Nesse sentido, há uma afinidade entre o Ao esclarecer o sentido do jogo inscrito no
racionalismo aplicado e a teoria sociológica de habitus, desfaz-se a idéia de ciência como um jogo
Bourdieu, notadamente os pressupostos da teoria que se joga por ser obediente às regras
da prática e da teoria dos campos de produção cul- preestabelecidas pelos discursos, ou melhor, por
tural, pois ambos supõem o deslocamento central: regras explícitas, no sentido de serem conscientes e
é preciso pensar a ciência a partir da ciência em submissas à vontade ou ao empenho do pesquisa-
vias de se fazer, e não a partir da obra acabada. dor. Para reforçar o que já foi expresso sobre as con-
Entender os critérios adotados por Bourdieu cepções de habitus e prática, o jogo com o qual todo
ao reivindicar uma ciência mais científica é, em pesquisador se depara não explicita todas as “re-
última instância, segundo ele, reforçar o que a pró- gras”, embora essas mesmas “regras” sejam de “co-
pria ciência instituiu historicamente como objeti- nhecimento” de todos os agentes de um campo. É
vo, e reconhecer que um conhecimento diferente do que se “conhece”
CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006

como tal; é o conhecimento inscrito no habitus.


Para possibilitar a análise do jogo científico
24
Para enfatizar uma reflexão fundamental: “Na verdade,
não é pelo prazer de diminuí-lo que se deve lembrar que sem recair na idéia da regra explícita, Bourdieu
o filósofo, tão inclinado a se pensar como atopos, sem
lugar, inclassificável, está, como todo mundo, compre- suscita a noção de estratégia. Reiteirando, o termo
endido no espaço que pretende compreender.” (Medita-
ções, 2001, p. 40). “regra”, para ele, carrega uma ambigüidade, por-
“En effet, s’il faut rappeler que le philosophe, qui se pen- que tanto significa um princípio explícito e conhe-
se volontiers comme atopos, sans lieu, inclassable, est,
comme tout le monde, compris dans l’espace qu’il pretend cido como tal, como “[...] um conjunto de regula-
comprendre.” (Méditations, 1997, p. 39-40). ridades objetivas que se impõem a todos aqueles
25
É importante salientar que Wacquant (2004) menciona
a existência de duas “versões” nas análises de Bourdieu:
a “versão dura” e a “tese suave”. Embora ressalte que em
Meditações Pascalianas haja uma certa ambigüidade em
relação à questão, afirma: “[...] há uma distância insupe-
rável entre o conhecimento prático e o conhecimento
26
“Le principe de la compréhension pratique n’est pas une
científico [...] porém [...] o dilema não é tanto uma aporia conscience connaissante [...] mais le sens pratique de
quanto um impasse; o hiato não pode ser preenchido. l’habitus habité par le monde qu’il habite, pré-occupé par le
Mas, então, afirmar novamente, a tese ‘dura’ não impe- monde où il intervient activement, dans une relation
de Bourdieu de levar adiante sua própria análise das con- immédiate d’engagement, de tension et d’attention, qui
dições sociais que leva em conta a ‘ambigüidade funda- construit le monde et lui donne sens.” (Méditation, 1997,
mental da disposição escolástica’ nomeadamente, que p. 170).
ela capacita-nos a conhecer o mundo enquanto o muti- 27
“L’action du sens pratique est une sorte de coïncidence
la.” (Wacquant, 2004, p. 104). nécessair [...]” (Méditations, 1997, p. 171).

334
Cristiana Mercuri

que entram no jogo.” (Choses dites, 1987, p. 77).28 priamente científico do fazer científico.
Nesse sentido: Escapar ao logicismo e ao relativismo, colo-
cando à prova um princípio que é identificado por
Para escapar a isso, é necessário inscrever na te-
oria o princípio real das estratégias, isto é, o sen- Bourdieu como o “avesso” do princípio da não-
tido prático, ou, se preferirmos, o que os consciência, é proporcionar aos pesquisadores não
desportistas chamam o sentido do jogo, como
domínio prático da lógica ou da necessidade apenas a “posse” da “natureza”, mas a “posse” “[...]
imanente de um jogo que se adquire pela experi-
ência do jogo e que funciona mais aquém da cons- do mundo social no qual se produz o conhecimen-
ciência e do discurso (ao modo, por exemplo, das to da natureza.” (Science, 2001, p. 8).32
técnicas de corpo). (Choses dites, 1987, p. 77).29
Como a reflexividade supõe a objetivação
do sujeito da objetivação, e esse “sujeito” é o pró-
O princípio da não-consciência pode ser
prio campo científico, a sociologia da ciência é um
relacionado à noção de estratégia e se colocar em
instrumento crucial para a realização da
face desta como a alternativa que explica o jogo,
reflexividade e, nesses termos, para a re-constru-
sem, no entanto, admitir a intencionalidade cons-
ção, tanto genérica como particular, de uma série
ciente por parte dos agentes.
de questões que orientam a pesquisa.
Chamando a atenção para a reflexão propri-
Assumindo esse ponto de vista específico
amente epistemológica, a sociologia da ciência, além
em relação à inclusão do sujeito conhecedor no
de estar diretamente vinculada à ruptura
objeto de conhecimento, Bourdieu apresenta três
epistemológica, inclusive ao negar as oposições
categorias de pressupostos que devem “orientar”
clássicas (como por exemplo, entre indivíduo e
a reflexividade: a posição no espaço social, o que
sociedade, entre objetivo e subjetivo) através das
inclui a trajetória particular do agente; os pressu-
noções de campo, habitus e estratégia, inscreve-se
postos da doxa do campo, com destaque para os
mais profundamente na polêmica da razão, pois,
mais diretamente ligados à posição do agente33 no
“Falar mais de estratégias do que de regras, é cons-
campo específico; e os pressupostos constitutivos
truir o objeto de outro modo, logo, interrogar os
da doxa escolástica.34 A análise da inserção do
informantes de outros modos e analisar de outro
sujeito conhecedor em relação a essas três catego-
modo suas práticas.” (Razões, 1996, p. 210).30 O
rias possibilita “[...] revelar os pressupostos que
fazer científico, de acordo com a unidade dos atos
ele ostenta por conta de sua inclusão no objeto de
epistemológicos, segundo Bourdieu, deve se alte-
conhecimento.” (Meditações, 2001, p. 20).35

CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006


rar significativamente, posto que a teoria da práti-
Resumidamente, o trabalho de objetivação
ca “[...] aparece como a condição de uma ciência
supõe, portanto, os atos de ruptura, construção e
rigorosa das práticas [...]” (Esboço, 2002, p. 137).31
constatação, sustentados no ponto de vista socio-
A teoria da prática permite o desvelamento pro-
lógico informado pelas noções de campo, habitus,
práticas, estratégia, trajetória, que possibilitam o
28
“[...] un ensemble de régularités objectives qui s’imposent
à tous ceux qui entrent dans un jeu.” (Choses dites, desvendamento da illusio (condição indiscutida da
1987, p. 77).
discussão),36 do nomos (“lei fundamental” ou “ato
29
“Pour y échapper, il faut inscrire dans la théorie le principe
réel des stratégies, c’est-à-dire le sens pratique, ou, si 32
“[...] du monde social dans lequel se produit la
l’on préfère, ce que les sportifs appellent le sens du jeu, connaissance de la nature.” (Science, 2001, p. 8).
comme maîtrise pratique de la logique ou de la nécessité
immanente d’un jeu qui s’acquiert par l’expérience du
33
Bourdieu avalia que os agentes em posições dominan-
jeu et qui fonctionne en deçà de la conscience et du tes tendem a defender mais veementemente os pressu-
discours (à la façon, par exemple, des techniques du postos da doxa do que os que ocupam posições domina-
corps).” (Choses dites, 1987, p. 77). das em um campo.
30
“Parler de stratégies plutôt que de règles, c’est construire
34
Cf. Meditações, 2001, p. 20. (Méditations, 1997, p. 22);
autrement l’objet, donc interroger autrement les (Science, 2001, p. 183).
informateurs et analyser autrement leurs pratiques.” 35
“[...] porter au jour les présupposés qu’il doit à son
(Raisons, 1994, p. 220). inclusion dans l’objet de connaissance.” (Méditations,
31
“[…] apparaît comme la condition d’une science 1997, p. 22).
rigoureuse des pratique […]” (Esquisse, 2000, p. 225- 36
Cf. Meditações, 2001, p. 123-124. (Méditations, 1997, p.
226). 122-123).

335
PIERRE BOURDIEU: polêmica da razão sociológica

prática sem aniquilar seu objeto. (Meditações,


de instituição arbitrária”)37 e da própria doxa asso- 2001, p. 62).41
ciados ao campo científico.
A sociologia da ciência de Pierre Bourdieu, Ao enfatizar, repetidas vezes, a necessidade
como já foi explicitado anteriormente, afirma: da teoria da prática, Bourdieu a coloca na posição
de instrumento fundamental, ou mesmo como
Participar da illusio, científica, literária, filosófi- condição sine qua non para a efetivação da vigi-
ca ou qualquer outra, é o mesmo que levar a sério
(por vezes a ponto de fazer, também aí, pergun- lância de terceiro grau, relativa à polêmica propri-
tas de vida e morte) os móveis dessa competição amente epistemológica. O objetivo de tais reflexões
os quais, nascidos da lógica do próprio jogo, con-
ferem seriedade ao jogo, ainda que possam esca- é a reorientação dos trabalhos de pesquisa. A teo-
par ou parecer “desinteressados” e “gratuitos” ria da prática deve ser o instrumento que impeça,
àqueles que por vezes são chamados de “profa-
nos” ou àqueles envolvidos em outros campos ou mantenha sob o controle possível, o que
[...] (Meditações, 2001, p. 21).38
Bourdieu denomina de risco conseqüente do
epistemocentrismo escolástico, que imputa “... a seu
A análise que admite a autonomia relativa
objeto o que de fato pertence à maneira de
das estruturas ou disposições cognitivas como es-
apreendê-lo, projeta na prática [...] uma relação
truturas mentais inscritas no habitus, portanto
social impensada que não é outra senão a relação
produto e produtora da lógica do campo, é parti-
escolástica com o mundo.” (Meditações, 2001, p.
cularmente importante para o campo científico,
65).42 Uma conclusão crucial é que não existe obje-
herdeiro dileto das disposições constituídas na
to sem um ponto de vista,43 o que impõe que o
história da ruptura escolástica.39
próprio código utilizado na análise seja permanente
A incorporação, a constituição do habitus
objeto de análise,44 porque sujeito à “invasão” de
escolástico, é a produção do esquecimento, do
pré-construções.
recalque,40 das coerções ou das condições sociais
Diante da “denúncia” dos erros escolásticos,
que permitiram a relativa autonomia das estrutu-
que parecem tão constitutivos dessa visão, o que
ras e disposições cognitivas. Para reconhecer es-
Bourdieu considera, nessa lógica, como necessá-
sas condições sociais,
rio ao fazer científico? Ou melhor: O que, na lógi-
... cumpre reorientar o movimento exaltado pelo ca escolástica, é por ele preservado?
mito da caverna, ideologia profissional do pen- Segundo Bourdieu (Meditações, 2001),45 a
sador profissional, e retornar ao mundo da exis-
CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006

tência cotidiana, desta feita munido de um pen- revelação dos pressupostos que são ostentados por
samento erudito bastante consciente de si mes- conta da inclusão do sujeito da objetivação no ob-
mo e de seus limites para ser capaz de pensar a
jeto de conhecimento – os pressupostos que são
produto da posição ocupada no espaço social, da
37
Cf. Meditações, 2001, p. 117. (Méditations. 1997, p. doxa do campo científico e da doxa escolástica –
116).
não impede a objetivação, mas, ao contrário, a fa-
38
“Participer de l’illusio, scientifique, littéraire,
philosophique ou autre, c’est prendre au sériaux (parfois
au point d’en faire, là aussi, des questions de vie et de
mort) des enjeux qui, nés de la logique du jeu lui-même, 41
“...il faut renverser le mouvement qu’exalte le mythe de
en fondent le sérieux, même s’ils peuvent échapper ou la caverne, idéologie profissionelle du penseur
paraître ‘désintéressés’ et ‘gratuits’ à ceux que l’on appelle professionel, et revenir au monde de l’existence
parfois les ‘profanes’, ou à ceux qui sont engagés dans quotidienne, mais armé d’une pensée savante assez cons-
d’autres champs [...]” (Méditations, 1997, p. 22-23). ciente d’elle-même et de ses limites pour être capable de
39
Cf. Meditações, 2001, p. 29-30. A ruptura escolástica penser la pratique sans anéantir son objet.”
caracteriza-se pela construção histórica de questões pró- (Méditations, 1997, p. 64).
prias como o “saber se a excelência pode ser ensinada” 42
“...à son objet ce qui appartient en fait à la manière de
ou mesmo pela introdução de “... o jogo intelectual gra- l’appréhender, il projette dans la pratique [...] un rapport
tuito, a erística e o interesse pelo discurso considerado social impensé qui n’est autre que le rapport scolastique
em si mesmo ...” (Meditações, 2001, p. 30). au monde.” (Méditations, 1997, p. 67).
“[...] le jeu intellectuel gratuit, l’éristique, et l’intérêt pour
le discours considéré en lui-même...” (Méditations, 1997,
43
Cf. Homo, 1984, p. 17.
p. 30). 44
Cf. Homo, 1984, p. 18.
40
Cf. Meditações, 2001, p. 62. (Méditations, 1997, p. 64). 45
(Méditations, 1997).

336
Cristiana Mercuri

vorece, na medida em que possibilita maior rigor. Ao se perguntar: “Como é possível que uma
Ao assumir a condição sócio-histórica da atividade histórica, inscrita na história, como a ati-
razão, o investigador, da mesma forma que se ocu- vidade científica, seja produtora de verdades trans-
pa em ter um maior controle de preconceitos reli- históricas, independentes da história, separadas
giosos ou políticos, como lembra Bourdieu, busca de toda ligação com o lugar e com o momento,
“combater” não a ciência em si, mas o que não é portanto válidas eterna e universalmente?” (Science,
ciência, e, de maneira “clandestina”, insere-se na 2001, p. 10)49 Bourdieu considera que a resposta
ciência e acaba por ser assumido como tal pelo está na própria história. Para ele, foi a história que
próprio poder do fazer científico. produziu as condições sociais que permitiram a
A prática deve ser refletida e metódica; deve construção de verdades trans-históricas, devido à
operar “... a reflexividade, que é sinônimo de mé- constituição da relativa autonomia dos campos
todo ...” (A miséria, 1997, p. 694),46 buscando escolásticos e, especificamente, do campo científi-
manter sob controle as “determinações” das con- co. Na história encontra-se o fundamento para que
dições sociais nas quais está imersa, inclusive a se admita a dupla verdade: a ciência é histórica e,
da “liberdade” escolástica, pois, em sua história, é produtora de sua autonomia em
relação à história. “Segundo Bourdieu, portanto, a
... talvez seja sob a condição de submeter a razão à razão é um produto histórico, mas um produto
prova da historização mais radical, sobretudo des-
truindo a ilusão do fundamento ao invocar o arbi- histórico altamente paradoxal no que pode, den-
trário da origem, ou, então, valendo-se da crítica tro de certos limites e sob certas condições, ‘esca-
histórica e sociológica dos instrumentos da pró-
pria ciência histórica e sociológica, que se possa par’ à história, ou seja, à particularidade.”
esperar livrá-la do arbitrário e da relativização
histórica. (Meditações, 2001, p. 113).47 (Réponses, 1992, p. 38-39).50
Tendo como pressuposto essa dupla verdade,
Ao trazer para a consciência o poder do fa- Bourdieu defende que a análise indissociavelmente
zer científico, entendendo-o como uma possibili- histórica e sociológica deve supor a compreensão
dade mas também como obstáculo epistemológico,48 desse universo social comum e, ao mesmo tempo,
Bourdieu entende que o investigador está mais pró- específico, que é o campo científico. Essa análise
ximo daquilo que a própria ciência eminentemente tem como objetivo “... fornecer instrumentos de
escolástica busca realizar: a produção de verdades. conhecimento que podem se voltar contra o sujei-
É em nome da crença na possibilidade de to do conhecimento, não para destruir ou desacre-

CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006


se fazer ciência, controlando, cada vez mais, as ditar o conhecimento (científico), mas ao contrário
condições sociais na qual ela é produzida, que para controlá-lo e reforçá-lo.” (Science, 2001, p.
Bourdieu justifica sua posição, explicitando clara- 15-16).51
mente o impasse entre duas convicções radicais e Decorrente da ruptura proposta por
aparentemente paradoxais: o caráter eminentemente Bourdieu, a ciência pode ser compreendida como
histórico e social da ciência e a crença na possibi-
49
“Comment est-il possible qu’une activité historique,
lidade de a ciência produzir o que ele denomina inscrite dans l’histoire, comme l’activité scientifique,
verdades trans-históricas. produise des vérités transhistoriques, indépendantes de
l’histoire, détachées de tous liens et avec le lieu et le
moment, donc valables éternellement et universellement?”
46
“... la réflexivité, qui est synonyme de méthode ...” (La (Science, 2001, p. 10).
misère, 1993, p. 1391). 50
“Selon Bourdieu, donc, la raison est un produit
47
“... c’est peut-être à condition de soumettre la raison à historique mais un produit historique hautement para-
l’épreuve de l’historicisation la plus radicale, notamment doxal en ce qu’il peut, dans certaines limites et sous
en ruinant l’illusion du fondement par le rappel de certaines conditions, ‘échapper’ à l’histoire, c’est-à-dire,
l’arbitraite de l’origine et par la critique historique et à la particularité.” (Résponses, 1992, p. 38-39).
sociologique des instruments de la science historique et 51
“... fournir des instruments de connaissance qui peuvent
sociologique elle-même, que l’on peut espérer l’arracher se retourner contre le sujet de la connaissance, non
à l’arbitraire et à la relativisation historique.” (Méditations, pour détruire ou discréditer la connaissance
1997, p. 113). (scientifique), mais au contraire pour la contrôler et la
48
Cf. Science, 2001, p. 173 et seq. renforcer.” (Science, 2001, p. 15-16).

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PIERRE BOURDIEU: polêmica da razão sociológica

construção histórica, mas não como ficção criada foi historicamente considerado inconciliável: as
por interesses explícitos. É preciso entender que a verdades trans-históricas e a história.
história desse campo também criou mecanismos
próprios e códigos específicos, que passaram a es- (Recebido para publicação em janeiro 2006)
tabelecer parâmetros para o jogo científico. (Aceito em abril de 2006)

“O advento da razão é inseparável da


autonomização progressiva de microcosmos so- REFERÊNCIAS (PIERRE BOURDIEU)
ciais fundados no privilégio, onde aos poucos fo-
ram sendo inventados modos de pensamento e BOURDIEU, Pierre. Le champ scientifique. Actes de
de ação teoricamente universais ...” (Meditações, laRrecherche en Scieces Sociales, Paris, n. 2-3, p. 88-104,
2001, p. 95).52 1976.
______. O campo científico. In: ORTIZ, Renato (Org.);
A dupla ruptura, então, refere-se à ruptura FERNANDES, Florestan (Coord.). Pierre Bourdieu. Tra-
dução de Paula Montero e Alícia Auzmendi. São Paulo:
com a visão dos logicistas, que supõe a possibili- Ática, 1983. p. 122-155
dade de uma ciência “pura” ou não histórica, mas ______. Homo academicus. Paris: Les Éditions de Minuit,
1984. p. 9-52.
também com a visão dos relativistas, que “negam”
______. Choses dites. Paris: Les Éditions de Minuit. 1987.
a autonomia relativa da razão. A perspectiva de (Colección le sens commun).
Bourdieu impõe tanto uma historicização radical, ______. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
para evitar o “abuso de poder”, ao qual a razão
______. La misère du monde. Paris: Éditions du Seuil,
está predisposta, como a compreensão da incor- 1993.
poração de invenções como a razão, que se consti- ______. Raisons pratiques: sur la théorie de l’action. Pa-
ris: Éditions du Seuil, 1994.
tuiu como condição objetiva da prática científica.
______. As regras da arte: gênese e estrutura do campo
Nesse sentido, a sociologia da ciência ou a literário. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo:
ciência da ciência,53 nos termos da reflexividade, é Companhia das Letras, 1996.

o instrumento de análise necessária ao maior con- ______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Tradução
de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus, 1996.
trole dos erros e, portanto, ao reforço da ciência. ______. Les usages sociaux de la science. Pour une
Esclarecendo sua concepção de reflexividade espe- sociologie clinique du champ scientifique. Paris: INRA,
1997.
cificamente relativa à análise sociológica da práti-
______. Méditations pascaliennes. Paris: Éditions du
ca científica, Bourdieu afirma: “... a solução do Seuil, 1997.
problema [...] não pode ser achada, salvo milagre, ______. A miséria do mundo. Tradução de Mateus S.
CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006

Soares Azevedo et al. Petrópolis: Vozes, 1997.


dentro e por um só homem, e ela reside sem dúvi-
______. Meditações pascalianas. Tradução de Miguel Ser-
da na construção de coletividades científicas ...” ras Pereira. Oeiras: Celta, 1998.
(Science, 2001, p. 18).54 ______. Esquisse d’une théorie de la pratique, précédé de
trois études d’ethnologie kabile. Paris: Du Seuil, 2000.
Para que as análises históricas e sociais não Deuxième parte.
produzam uma relativização simplista, é preciso ______. Science de la science et réflexivité. (Cours du
assumir uma determinada concepção sociológica Collège de France 2000-2001). Paris: Raisons d’agir, 2001.
______. Esboço de uma teoria da prática. In: ______.
que permita, segundo Bourdieu, “conciliar” o que Esboço de uma teoria da prática: Precedido de três estu-
dos de etnologia Cabila. Tradução de Miguel Serras Perei-
ra. Oeiras: Celta, 2002. p. 133-257.
______; CHAMBOREDON, J. C.; PASSERON, J. C. Le
métier de sociologue: Préalables épistémologiques. 4. ed.
52
“... L’avènement de la raison est inseparable de Paris: Mouton, 1983.
l’autonomisation progressive de microcosms sociaux
fondés sur le privilège, où se sont peu à peu inventés des ______; _______; ______. A profissão de sociólogo: pre-
modes de pensée et d’action théoriquement universels liminares epistemológicas. Tradução de Guilherme João
...” (Méditations, 1997, p. 93). de Freitas Teixeira. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
53
Cf. Science, 2001, p. 17. _______; WACQUANT, Loïc. Réponses: pour une
54
“... la solution du problème [...] ne peut pas être trouvée, anthropologie réflexive. Paris: Éditions du Seuil, 1992.
sauf miracle, dans et par un seul homme et elle reside
sans doute dans la construction de coletifs scientifiques
...” (Science, 2001, p. 18).

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Cristiana Mercuri

REFERÊNCIAS (OUTROS AUTORES) PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo soci-
al. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
WACQUANT, Loïq J. D. O legado sociológico de Pierre
BACHELARD, Gaston. O racionalismo aplicado. Tradu- Bourdieu: duas dimensões e uma nota pessoal. Rev. Sociol.
ção de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. Polit., Paris, n.19, p. 95-110, nov. 2002. Disponível em:
BONNEWITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia <http://www.scielo.br/scielo.php> Acesso em: 12 fev.
de Pierre Bourdieu. Rio de Janeiro: Vozes. 2004. 2004. [online]

CHAUVIRÉ, Christiane; FONTAINE, Olivier. L e


vocabulaire de Bourdieu. Paris: Ellipses Édition Marketing,
2003.

CADERNO CRH, Salvador, v. 19, n. 47, p. 325-339, Maio/Ago. 2006

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