Você está na página 1de 5

28/02/2021 O aumento da fome no Brasil: várias faces de um mesmo problema | Nexo Jornal

ENSAIO (/ENSAIO/)

O aumento da fome no

FOTO: BRAZIL PHOTOS/GETTY IMAGES

Brasil: várias faces de

um mesmo problema

Francisco Menezes
11 de Janeiro de 2021

Há pelo menos quatro anos, a soma das desigualdades da


sociedade brasileira com o crescimento do desemprego e os
cortes nos programas sociais apontam para um preocupante
recrudescimento da questão

O Nexo é um jornal independente sem publicidade financiado por


assinaturas. A maior parte de nossos conteúdos são exclusivos para
assinantes, mas esta seção é de acesso livre sempre. Aproveite para
experimentar o jornal digital mais premiado do Brasil. Conheça nossos
planos (https://www.nexojornal.com.br/assine/?
flow=banner_acessolivre_conheca) . Junte-se ao Nexo!
(https://www.nexojornal.com.br/assine/?
flow=banner_acessolivre_juntese)

Na esteira dos vastos impactos da pandemia da covid-19, a fome voltou às


manchetes e a diferentes espaços públicos de discussão brasileiros. Se, antes
disso, até mesmo o presidente da República era capaz de afirmar que este era
um tema do passado, agora não há mais como negar: o Brasil está prestes a
voltar ao Mapa da Fome da ONU (Organização das Nações Unidas).

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/O-aumento-da-fome-no-Brasil-várias-faces-de-um-mesmo-problema 1/5
28/02/2021 O aumento da fome no Brasil: várias faces de um mesmo problema | Nexo Jornal

São muitos os indicadores que confirmam o agravamento desse quadro


lamentável. Dados divulgados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística) em setembro, referentes aos anos de 2017 e 2018, apontam que 5%
da população, algo acima de 10 milhões de pessoas, já vivenciavam uma situação
de insegurança alimentar grave mesmo antes da pandemia. O Brasil retrocedeu
15 anos em cinco, com mais de 84 milhões de pessoas enfrentando algum grau de
insegurança alimentar — número que tende a aumentar ainda mais daqui em
diante com o fim do auxílio emergencial (/expresso/2020/12/29/O-que-vem-
após-o-fim-do-auxílio-emergencial-aos-brasileiros) , afetando especialmente a
população rural, as regiões Norte e Nordeste, a população negra e as mulheres.

Para desvendar o cenário atual e refletir com responsabilidade sobre o tema, no


entanto, é necessário ir a fundo e conhecer as diferentes compreensões sobre
esse flagelo que ameaça e tira dignidade de tantos brasileiros e brasileiras. Afinal,
a fome não tem um só retrato, e é extremamente necessário entender suas
diversas faces.

A imagem mais forte que se tem em mente é a dos famélicos, geralmente vítimas
de guerras ou catástrofes naturais e que em grande número são levados à morte
por absoluta inanição. Reporta-se principalmente para os registros das duas
guerras mundiais ou para as tragédias humanitárias ocorridas na África. No
Brasil, fica a cena das vítimas da grande seca do Nordeste no início do século
passado. Em 1932, por exemplo, quando forte estiagem castigou o Ceará,
chegaram a ser estabelecidos sete dos chamados “campos de concentração da
seca”, em que milhares de retirantes que tentavam chegar à capital foram
retidos e morreram vítimas de fome, sede e doenças.

A FOME OCUPA OS CORPOS DA EXTREMA POBREZA, QUASE


SEMPRE NEGRA OU INDÍGENA OU DE OUTRAS
MISCIGENAÇÕES EXCLUÍDAS

Essa terrível imagem dos famélicos persistiu mesmo com o fim desses campos,
quase sempre associada a migrantes de um Brasil rural nordestino que se
dirigiam ao Sudeste. Esse retrato está descrito na obra de Josué de Castro, em
“Geografia da fome” (1946) e “Geopolítica da fome” (1952), que apontaram para
algo que até então não constava no debate: a fome como resultado do desnível
social, produzida pela ação dos próprios homens e não apenas determinada por
situações que acontecem sem a intervenção humana. Igualmente inovador foi
seu alerta para o que chamou de fome oculta, resultado de uma alimentação
deficiente em proteínas, sais minerais e vitaminas.
https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/O-aumento-da-fome-no-Brasil-várias-faces-de-um-mesmo-problema 2/5
28/02/2021 O aumento da fome no Brasil: várias faces de um mesmo problema | Nexo Jornal

Com as novas faces do problema, caem velhas máscaras. A partir da segunda


metade do século passado, o país se industrializa e cresce a população urbana. No
rastro da pobreza e da desigualdade, a fome chega também nas cidades. Persiste,
no entanto, a ideia de uma fatalidade à qual o país estava condenado a conviver.
Só nos anos 1990 é que, diante da fragilidade e mesmo omissão do Estado
brasileiro, parte importante da sociedade se organiza para agir no seu
enfrentamento, com milhares de comitês autônomos formados no âmbito do que
veio a se chamar “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida”. A
indiferença em relação à calamidade da fome torna-se difícil de sustentar.
Quebra-se o mito da fatalidade. Politiza-se a questão. Compreende-se ser
necessário que a luta contra a fome tenha a regência de políticas públicas que não
apenas atuem com ações emergenciais, mas que enfrentem com efetividade a
pobreza e a desigualdade. E que conte com a inestimável participação da
sociedade, de forma propositiva e com capacidade para o monitoramento dessas
políticas.

No enfrentamento da fome, então, novas percepções se impõem. Alarga-se a sua


identificação. Não se trata mais apenas dos famélicos já aqui descritos. A fome
ocupa os corpos da extrema pobreza. A fome é quase sempre negra ou indígena
ou de outras miscigenações excluídas. E já não se identifica apenas pela magreza,
mas também é aquela fome oculta que Josué de Castro alertou e que pode ser
configurada inclusive entre os que estão obesos, mas profundamente
desnutridos. A fome expressa de forma radical a negação do direito à própria
vida. Nega a dignidade humana, quando alguém para comer recorre à busca de
alimentos no lixo ou até mesmo a pequenos furtos.

“Qual é o quadro atual?”, já nos questionávamos antes mesmo da pandemia. E a


notícia já não parecia mesmo ser boa. Desde 2017, a ActionAid vem alertando
que a soma das desigualdades da sociedade brasileira com o crescimento do
desemprego e os cortes nos programas sociais apontavam para um preocupante
aumento da fome. Agora, os dados do IBGE confirmaram essa suspeita. Com a
crise agravada pela pandemia, especialistas — como o ex-diretor-geral da FAO
(agência da ONU para a erradicação da fome e combate à pobreza) José Graziano
da Silva — estimam que, em julho de 2020, os números de insegurança
alimentar grave chegariam a 6,6% da população brasileira, com cerca de 15
milhões de pessoas passando fome. É fundamental ressaltar, entretanto, que a
crise político-econômica que se aprofundou a partir de 2015 gerou e vem
gerando forte impacto sobre os mais pobres, pelo crescimento do desemprego,
pela perda de direitos trabalhistas e pela queda nas rendas domiciliares.

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/O-aumento-da-fome-no-Brasil-várias-faces-de-um-mesmo-problema 3/5
28/02/2021 O aumento da fome no Brasil: várias faces de um mesmo problema | Nexo Jornal

Paralelamente a isso, reduções orçamentárias dos programas de segurança


alimentar e assistenciais vêm desativando mecanismos de proteção social não só
necessários, mas essenciais, nessa difícil conjuntura.

“E o que pode ser feito?”, também nos perguntamos. Antes de qualquer atitude,
é importante que governos e sociedade reconheçam a fome como uma questão
coletiva, real, em suas diferentes esferas. É fundamental compreender que a
extrema pobreza é o ponto de partida dos elementos causadores da fome. E seu
enfrentamento deve se dar em duas frentes simultâneas. A primeira delas, na
atuação junto às políticas públicas de segurança alimentar e nutricional e àquelas
que propiciem renda para os mais pobres. Mas a intervenção da sociedade pela
garantia e extensão desse direito a todos também deve ser permanente. Em um
contexto sempre tão complexo como a realidade brasileira, o papel do apoio
social não significa pouco, seja fortalecendo iniciativas virtuosas que hoje ocorrem
em diferentes territórios — muitas delas que testemunhamos e apoiamos por
meio do trabalho da ActionAid —, ou mesmo apoiando campanhas que
contribuem para atenuar o problema. Apesar de correr sérios riscos, o Brasil não
precisa voltar a estampar o Mapa da Fome. Já provamos que, juntos, podemos
superar essa questão.

Francisco Menezes é analista de políticas da ActionAid no Brasil e ex-


presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional).

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de


colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou
opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como
objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes
para a agenda pública nacional e internacional. Para participar,
entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br
informando seu nome, telefone e email.

(https://thetrustproject.org/) SAIBA MAIS

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/O-aumento-da-fome-no-Brasil-várias-faces-de-um-mesmo-problema 4/5
28/02/2021 O aumento da fome no Brasil: várias faces de um mesmo problema | Nexo Jornal

https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/O-aumento-da-fome-no-Brasil-várias-faces-de-um-mesmo-problema 5/5

Você também pode gostar