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SUMÁRIO

CAPÍTULO 1 – EN PASSANT ...................................................................................... 3


CAPÍTULO 2 – UM CAVALO POR UMA TORRE ............................................ 16
CAPÍTULO 3 – CERQUEM O BISPO!................................................................. 38
CAPÍTULO 4 – REI EM XEQUE ........................................................................ 50
CAPÍTULO 5 - XEQUE ............................................................................................ 61
CAPÍTULO 6 - MATE ................................................................................................. 76
CAPÍTULO 7 – FIM DO JOGO ............................................................................ 93

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CAPÍTULO 1 – EN PASSANT

A PASSARELA METÁLICA tremeu logo que o núcleo do motor de combustão interna


atingiu sua temperatura de fusão. A caldeira expelia verdadeiros gêiseres de um vapor
escaldante dentro da termelétrica, aumentando sua temperatura a níveis insuportáveis. O
sistema de refrigeração de meu traje estava em nível máximo e não estava dando conta
daquele calor infernal. Quando o núcleo rompesse, a explosão do motor ia varrer aquele
bairro. O tempo agora era curto.

- Já disse! Se renda ou eu acabo com o seu amigo!

A voz eletrônica por dentro do capacete do soldado soou nervosa do outro lado da ponte, o
suficiente para que eu interrompesse meu avanço na passarela e começasse a erguer meus
braços lentamente. Mesmo com os filtros de ar internos em meu capuz, era difícil respirar. O
ar quente estalava ao nosso redor, brasas esvoaçavam por todos os lados e o ruído do
rompimento gradativo da caldeira nos obrigava a berrar para nos comunicar.

- Tudo bem. Eu não vou tentar nada. Apenas aponte a arma para mim e deixe meu amigo aí
no chão.

Thunderwing estava desmaiado sem sua máscara protetora, sendo soerguido do chão por seu
braço. O cano da AK-47 estava encostado em sua têmpora. O dedo do soldado não saía do
gatilho um só segundo. Qualquer coisa que eu tentasse jamais seria rápido o bastante para
evitar a execução à queima-roupa de Ricardo. Cada minuto que passava, aumentavam as
chances de a termelétrica ir para os ares, acabando com todos nós no processo. Espião Negro
e Ferina não tinham como ajudar, estavam ocupados demais. As paredes do local agora
tremiam ante a força do motor prestes a colapsar. Estávamos a uns dez metros do inferno e ele
estava nos alcançando ali em cima. Como eu deixei as coisas chegarem a esse ponto?

Eu sei que vocês querem saber como as coisas chegaram a esse ponto, por isso, voltaremos no
tempo alguns meses, quando a primeira fase de nosso treinamento com o mestre Sebá se
concluiu. Estávamos na primeira metade de fevereiro, no ano do javali de acordo com o
horóscopo chinês. Eu, Ricardo Costa e Antônio Rodrigues nos preparávamos para retornar à
cidade, de volta às nossas vidas, deixando para trás, nas dependências daquele sítio
arborizado, quem nós três tínhamos sido até então. Cada um sentia dentro de si que mudanças
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importantes tinham acontecido em seu âmago e era incrível imaginar que tal feito tinha
acontecido em tão pouco tempo. O início do aprendizado de Fei Hok Phai tinha mudado
nossas vidas.

Para nossas famílias, tínhamos passado as férias escolares numa colônia em Piracicaba e
quando retornamos, foi bom rever todos mais uma vez, bem como aproveitar do carinho e da
atenção familiar. Eu estava visivelmente mais magro em aparência, mas sentia todos meus
músculos fortalecidos. Voltei a me alimentar como estava acostumado - logo que tive a
oportunidade comprei um cheeseburguer de fast food - mas dessa vez a sequência de
exercícios ensinada por Sebá acompanhava minha rotina diária. Sessões de abdominais e
flexões de braço eram obrigatórias pela manhã e à noite. Até mesmo o costume de tomar ovos
crus em um copo antes da corrida matinal virou hábito e eu não permiti que nada me
impedisse de treinar meu corpo para os desafios que eu sabia que iria enfrentar naquele ano.

Com o início das aulas na nova escola, eu teria bem menos tempo para outras tarefas, e
aqueles primeiros seis meses passaram vagarosamente. Pela manhã, a turma de quarenta
alunos estudava matérias básicas de Ensino Médio como português, matemática, física e
química. Logo depois do almoço, começavam nossos estudos técnicos, e era hora de aprender
informática, programação avançada e noções de bancos de dados. Eu tinha passado em nono
lugar no Vestibulinho para frequentar aquela escola, e embora não tivesse demonstrado -
como era de costume dela -, minha mãe tinha ficado bastante orgulhosa que eu tinha
conseguido uma vaga em uma escola de qualidade tão alta e tão concorrida. Eu voltava para
casa somente no início da noite e não era raro já a encontrar à mesa com minha irmã Carina,
na hora do jantar. Eu tinha cada vez menos tempo agora para trabalhar com o C.A.D -
Computador de Acesso Direto, o antigo "Computador do Amanhã" - em meu esconderijo
subterrâneo, mas continuei acompanhando as notícias sobre os membros da Corporação pela
TV, jornais e internet. A guerra não podia parar.

Era sábado. Estávamos diante da TV, acomodados nos dois sofás da sala, quando uma
reportagem sobre o desenvolvimento de São Francisco d'Oeste chamou-nos a atenção.
Michael, meu sobrinho, brincava com dois bonecos de uns 15 cm no encosto de um dos sofás,
ao lado de meu irmão Lucas. Ele estava em pé, sobre o assento acolchoado, e dava para ouvir
a sonoplastia de socos e chutes que ele fazia, enquanto os dois brinquedos se engalfinhavam
no que parecia uma luta-livre. Eu sorri por um instante, de olho na cena, e então me voltei
para a TV, onde uma jornalista de camisa social branca enfatizava a conclusão das obras do
Elevado Intermunicipal Alceu Franco - que recebia esse nome em homenagem ao primeiro
prefeito de São Francisco d'Oeste - e ainda informava que a obra seria inaugurada no mês de
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maio, com a presença do governador do estado Geraldo Wasserman. Meu cenho se fechou
quando a reportagem da Oeste News começou a mostrar Edmundo Bispo em vídeos de suas
aparições públicas mais recentes, conectando-o à obra do Elevado e enaltecendo-o como
grande empresário, além de cidadão exemplar. Meu humor piorou mais ainda quando minha
mãe e meu irmão mais velho começaram a tecer comentários a favor do homem:

- Deviam fazer logo uma estátua em homenagem a esse Bispo. O tanto de obras que esse
homem já fez em São Francisco nos últimos 15 anos eu nunca vi prefeito nenhum fazer!

- É verdade, mãe. Além desse Elevado que vai facilitar bastante as viagens de carro daqui
para as cidades vizinhas, ele também deu início à construção da linha de metrô que vai ligar
São Francisco à São Paulo. Se esse cara se candidatasse a prefeito eu votava nele!

Eu teria vomitado se pudesse, mas preferi me manter em silêncio e nem discutir que eles
estavam completamente enganados a respeito de seu "ídolo".

Assim como minha família, boa parte da população de São Francisco também acreditava que
Edmundo Bispo era a figura mítica do herói salvador, e que ele era o empresário mais honesto
e generoso da face da Terra. E tinha como ser diferente? A mídia vendia diariamente a
imagem do cara como se ele fosse o grande Messias da salvação, o grande colaborador do
governo e o principal investidor no desenvolvimento tecnológico da cidade. O centro de São
Francisco d'Oeste hoje exalava modernidade e prosperidade. Novos prédios de estruturas
espelhadas e de fachadas marmorizadas eram construídos a cada ano. Havia cada vez mais
concessionárias e lojas de grife posicionadas em ótimos pontos. Um terceiro shopping center
estrearia em breve, tomando uma área onde caberiam diversos prédios populares e estava em
negociação um futuro projeto para a construção de um estádio de futebol em oito anos, além
claro, do já funcional Complexo Sônia Ubiratan - o complexo esportivo que homenageava a
jogadora da seleção brasileira de vôlei nascida em São Francisco, conhecida também como
"Soninha Foguete" - do Elevado Intermunicipal e da nova estação de metrô.

Não dava para negar que Bispo estava investindo pesado na modernização da cidade, mas a
que custo? Como as pessoas podiam saber que ele se beneficiava do tráfico de drogas e do
crime organizado do local onde elas moravam? Que ele contribuía diretamente para a falência
do sistema público de segurança, empregando policiais corruptos em suas operações e
deixando a justiça à sua mercê? Como os espectadores mais abastados de TV podiam saber
que os bairros periféricos da cidade sofriam diariamente com a falta de saneamento básico,
com a falta de leitos em hospital e com a falta de vagas para colocar suas crianças na creche e
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nas escolas? Como a população em geral saberia que a parcela mais pobre de São Francisco
nem sequer tinha acesso à informação, sem internet ou sinal de TV e que essas mesmas
pessoas morriam quando chuvas de verão mais pesadas castigavam seus bairros, levando
casas inteiras morro abaixo nos deslizamentos? Não tinha como saber. Manoela Santinni, seu
irmão Nicola e a mãe de ambos Domenica cuidavam para que notícias ruins e tristes não
fossem divulgadas através de seus canais de notícia e faziam de tudo para que os eleitores de
sua família vivessem em uma cápsula hermética, sem acesso nenhum à realidade. Aquilo
precisava acabar. Eu tinha que fazer algo a respeito.

Pelo menos três vezes por semana, depois da aula, eu pedalava em direção sul para continuar
meu treinamento com Sebá. Diferente de Ricardo, que era sobrinho do homem e de Antônio,
que só apareciam no sítio nos finais de semana, eu precisava canalizar minha energia no Kung
Fu e o jeito que encontrei foi fazendo um esforço maior para estar ali mais vezes. A viagem
de trem de São Paulo até São Francisco levava em geral uma hora, quando não aconteciam
atrasos na linha ou falta de energia na via, o que era costumeiro. Eu usava aquele tempo para
estudar meus livros de linguagem de programação e já que ainda não tinha grana para
comprar meu próprio PC ou mesmo um notebook, dava um jeito de rascunhar meus
fluxogramas e algoritmos à mão, passando à limpo no dia seguinte, já nos laboratórios da
escola. Para que o CAD se tornasse totalmente funcional, eu ainda precisava decifrar vários
códigos de seu sistema, por isso, eu não podia usá-lo para muitos outros fins além de
pesquisas, espionagem e criação dos equipamentos do Pássaro Noturno. Sendo assim, eu
dependia exclusivamente do laboratório da escola, que tinha à disposição dos alunos
vinte iMacs novos em folha, com acesso à internet, entrada USB e caixas de som. Toda
segunda, quarta e sexta, eu apanhava a bicicleta que guardava no bicicletário da estação de
trem e pedalava até o sítio de Sebá, que me recepcionava à margem de seu lago cristalino,
pronto para mais um dia de Fei Hok Phai.

Sebá tinha montado na parte de trás de seu quintal uma espécie de academia de treinamento,
onde ele nos ensinava técnicas de combate com instrumentos ou à mão livre. Embora ele
fosse versado quase que a vida inteira em Capoeira, a arte marcial brasileira de origem
africana, o homem era um fiel praticante de Kung Fu, e levava a sério seus ensinamentos,
como deveria ser. Com ele, aprendi movimentos importantes de defesa pessoal e estava
aprimorando cada vez mais meus reflexos, minha agilidade e minha velocidade. Os
movimentos da garça foram os primeiros que ele fez questão de transmitir a mim e a meus
amigos, mas não demorou até que estivéssemos aprendendo também a usar a força do
leopardo e a ferocidade do tigre. Aquele era só o começo.

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- Tudo que aprendi como ser humano, tudo que sei, aprendi das artes marciais. - Falou-me
uma vez Sebá, enquanto nos encarávamos em posição de lótus sobre o morro, ouvindo o oco
dos bambus se chocando à nossa direita e a leveza da água do rio atrás de nós. - Você
começou seu treinamento agora, Henrique. Sua mente ainda está fechada para o verdadeiro
ensinamento que o Fei Hok Phai quer lhe transmitir e há um motivo para isso. - Dava para
sentir uma brisa suave batendo em meu rosto. A noite já tinha enegrecido o céu salpicado de
estrelas quase que totalmente. Eu precisava saber:

- O que ainda está bloqueando meu aprendizado?

Ele olhou-me com seus olhos grandes, a íris negra contrastando perfeitamente com a
esclerótica branca e então sua mão enorme avançou em meu peito, e ele o tocou com o dedo
indicador.

- Há um visível desalinhamento entre as suas emoções e sua razão. Seu peito queima em fúria
e você ainda não conseguiu canalizar isso para as artes marciais. - Ele tinha toda razão.
Embora eu fosse uma pessoa na maioria das vezes racional, não era raro que eu deixasse
minhas emoções falarem mais alto. - Fei Hok Phai não é sobre controle da fúria. É sobre
equilíbrio. É sobre fluidez. Você precisa aprender a usar seus sentimentos em pró da arte.
Canalizar a força de sua raiva sem perder a leveza.

Depois daquela conversa com Sebá, eu passei a meditar mais e passei a procurar meu ponto
de equilíbrio, evitando os sentimentos conflitantes que me faziam perder o foco. Eu precisava
me tornar um hábil lutador e para que aquilo acontecesse, minha fúria e meu ódio precisavam
entrar em equilíbrio com a razão.

Estávamos no final de março quando Sebá indicou que eu tirasse meu quimono dos treinos
de Kung Fu e o acompanhasse em uma caminhada pela vizinhança de seu sítio. Aquela era
uma sexta-feira fria de outono, eu tremia dentro de meu casaco esportivo, enquanto Sebá
caminhava a meu lado de regata e bermuda. Andamos por volta de vinte minutos e
adentramos uma mata fechada que desembocava numa rica área de vegetação alta e extensa.
Enquanto eu arregalava os olhos na escuridão, já temendo o ataque de alguma cobra ou
qualquer outro animal silvestre naquele mato, Sebá que caminhava mais à frente, virou-se e
posicionou o indicador direito sobre seus lábios, mandando que a partir de então eu fizesse
silêncio. Obedeci, e logo em seguida adentramos um caminho de videiras, que se abriu numa
clareira larga. A mão de Sebá esmagou meu ombro e me obrigou a abaixar antes que
entrássemos na clareira. Enquanto nos acocorávamos atrás de uma moita, avistamos um grupo
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de homens munidos de lanternas, equipamentos de medição e roupas camufladas que
pareciam fazer um tipo de marcação naquelas terras. Eram cinco homens. Eles falavam baixo,
estávamos a uns dez metros, não dava para ouvi-los e ficamos a observá-los por um tempo,
até que eles recolheram seus instrumentos do solo, guardaram em malas e desapareceram na
mata, do outro lado.

- Eu os tenho observado há três meses. - A voz de Sebá rompeu o silêncio, quase como um
sussurro - Eles vêm e vão pelo menos duas vezes por semana. Chegam a bordo de veículos
com tração 4x4, fixam seus instrumentos, medem, fazem anotações, conversam e depois vão
embora. Já demarcaram pelo menos uns doze quilômetros de floresta. Tem outras equipes
fazendo a mesma coisa na divisa com Calheiras. Não dá para saber quem são. Às vezes
parecem militares, às vezes se comportam como cientistas. Uma vez estavam falando italiano.
Esgotei meus recursos. Preciso de ajuda para descobrir o que esse bando quer aqui nessas
terras e por qual motivo têm intensificado seu trabalho nas últimas semanas.

Aquele não me pareceu um pedido de ajuda ao Henrique Harone e sim ao Pássaro Noturno e
pela primeira vez suspeitei que Sebá sabia o que eu, Antônio e Ricardo fazíamos à noite em
nossas personalidades heroicas. Se ele sabia ou não nosso segredo, aquilo não importava no
momento. Aquelas demarcações de terra e o súbito interesse em uma área de preservação
ambiental parecia muito com algo perverso que só a Corporação seria capaz de fazer. Mas o
que eles estariam tramando dessa vez?

Era o começo de abril quando um serviço de manutenção no armário de rede do prédio da


Xeque-Mate nos fez perder totalmente o grampo que havíamos colocado num dos terminais
externos no ano passado. Ao checar o armário e substituir o equipamento, os técnicos tinham
removido nosso dispositivo hacker e aquilo nos causou um apagão de informações. Por algum
tempo, nós três não sabíamos mais o que estava acontecendo dentro da torre de Edmundo
Bispo e tínhamos perdido nossa única vantagem sobre o crápula. Enquanto procurávamos
uma forma de recuperar o grampo sem levantar suspeitas novamente, esquematizamos um
plano de ataque a duas das cinco refinarias de drogas de Toni Maranelli, um dos braços
direitos de Bispo dentro da Corporação que comandava São Francisco. Através de um chat de
internet, eu, Ricardo e Antônio procurávamos nos comunicar diariamente, agora que nossos
encontros físicos eram cada vez mais raros devido a distância das três escolas em que cada um
frequentava o Ensino Médio, e foi numa dessas conversas virtuais que planejamos a
destruição dos pontos de fabricação e distribuição de entorpecentes. Embora naquele
momento estivéssemos quase às cegas, tínhamos juntado bastante material nos meses em que
tivemos de olho na Xeque-Mate e por ora aquele conteúdo bastaria.
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Depois de nosso primeiro ataque no ano passado, Maranelli e Belo Falcão tinham desativado
a refinaria próxima à fronteira com a cidade de Marechal LaRocca e tinham reforçado a
proteção de sua terceira fábrica, aumentando também sua produção. A instalação ficava num
galpão de dois andares cedido pela Alfa-Rio, empresa de fachada que Edmundo Bispo usava
para adquirir e vender imóveis ilegalmente. Nos documentos que havíamos fuçado nos
servidores da Xeque-Mate todo aquele tempo, não havia qualquer conexão entre Bispo e a
Alfa-Rio, cujos papéis eram sempre assinados por um tal de Edir Caicedo. Se esse Caicedo
realmente existia, não havia qualquer indício de sua existência na internet, o que confirmava
nossas suspeitas de que ele era um pseudônimo do próprio Bispo.

Era noite de um sábado quando atacamos as duas refinarias mais importantes de Maranelli ao
mesmo tempo, pegando os bandidos com as calças nas mãos. Embora eles agora esperassem
por um novo ataque, haja visto o que tínhamos aprontado no ano passado em nossa investida
desastrosa, os bandidos não podiam conceber dois ataques concomitantes e nem tinham
reforçado as duas fábricas com homens o suficiente. Eu e Espião Negro atacamos a refinaria
menos protegida naquela noite e diferente do que tínhamos feito anteriormente, sabíamos
exatamente nosso objetivo.

O vidro do teto solar se rompeu assim que fiz minha entrada triunfal e caindo bem em cima
do balcão que os refinadores usavam para transformar a cocaína, agi depressa, antes que eles
reagissem. Os três usavam máscaras do tipo cirúrgicas e visores para se proteger dos vapores
do éter, do bicarbonato de sódio e de outras substâncias químicas usadas para aumentar a
pasta base da cocaína. Quando me viram descer do teto, investiram ao mesmo tempo contra
mim. Eu tinha uma consciência corporal muito melhor agora do que tinha na época do
primeiro ataque contra a Corporação, e foi incrível a forma como me desvencilhei deles
apenas usando sua força contra eles mesmos. Sem precisar aplicar-lhes nenhum soco ou
chute, eu consegui derrubar os três no chão, mantendo-os imobilizados tempo suficiente para
amarrá-los.

Aquela era a primeira vez que eu usava o quarto traje de Pássaro Noturno que eu tinha
confeccionado no Sarcófago, e precisava colocá-lo à prova logo. Como tinha aprendido em
minha última missão, não dava para manter uma abertura no capuz para respirar sem que
aquela mesma abertura representasse também uma desvantagem contra os ataques de gás ou
veneno vaporizado. Projetei a nova máscara sem nenhuma abertura na frente e alguns projetos
virtuais para trajes de batalha do CAD me ensinaram a internalizar um sistema de refrigeração
na roupa, além de possibilitar filtros de ar na parte de dentro da máscara, do mesmo tipo que
Antônio tinha instalado em seu capacete. Enquanto canaletas externas, que funcionavam
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como costuras do traje, levavam ar refrigerado para toda a extensão do uniforme, eu mantinha
minha temperatura corporal estável, não importando o calor que estivesse do lado de fora. Por
um breve período de tempo, eu também não precisava respirar o oxigênio externo, e pensando
nisso, coloquei o próximo passo do plano em ação.

Com uma bomba incendiária eu comecei a queimar o éter armazenado nas prateleiras da
"cozinha" e rapidamente o líquido se inflamou, começando a queimar uma balança de
precisão e uma prensa hidráulica que os homens usariam para os tabletes de drogas. O gás
tóxico começou a escapar pela vidraça quebrada do teto solar e o barulho que fiz
propositalmente chamou a atenção dos homens que começaram a subir do andar de baixo. Os
cinco primeiros se surpreenderam ao me ver ali, em meio àquela fumaça nociva, aguardando-
os. Burro o bastante, um deles sacou uma pistola 765 e disparou contra mim, ao que foi
repreendido por um sujeito grandalhão, usando touca preta que segurava um pé-de-cabra.

- Pare de atirar! Vai explodir tudo com essa pólvora!

Me sentindo à vontade com o que tinha aprendido em meu treinamento, mais uma vez eu os
deixei atacar primeiro e consegui me esquivar. Três dos cinco capangas tentavam me acertar
com socos e golpes de ferramentas pesadas como martelos e chaves inglesas, enquanto os
outros dois tentavam abrir as janelas para que o gás do éter se esvaísse. Não estava
funcionando. Uma nuvem cada vez mais espessa tinha se formado ali e o fogo ameaçava
atingir o reservatório de éter atrás de nós, o que ia causar uma explosão. Embora lutassem
bravamente, os homens mal conseguiam me enxergar, enquanto o gás fazia com que seus
olhos lacrimejassem sem parar e seus pulmões se enchessem daquela fumaça mortal. Eles
estavam nocauteados antes que pudessem contar até cinco e eu comecei a puxá-los inertes
para fora daquele lugar, antes que tudo fosse pelos ares.

Eu atingi o andar de baixo através de uma escadaria e avistei o elevador de serviço que eles
usavam para trazer as drogas fabricadas lá de cima até ali. Tinha empilhado os capangas
dentro do elevador e logo que coloquei a cara para fora da viga, após o último degrau, fui
recebido à bala:

- Mostra tua cara, desgraçado! Vamos te encher de chumbo!

Eu sabia que as camadas de proteção que havia incorporado ao novo traje segurariam uma
quantidade grande de tiros, mas não estava a fim de testá-la naquele momento. Segundos após
a primeira saraivada de tiros, eu rolei no chão diante da escadaria com uma cambalhota, ao
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mesmo tempo em que arremessei uma boleadeira contra o bandido mais à frente do bando de
doze que mirava em mim. Eu tinha substituído as estrelas ninja da última missão por um tipo
de armamento menos letal, e aquilo funcionou a contento num primeiro momento. A
boleadeira tinha enredado os pés do atirador e ele caiu no chão desequilibrado, atirando à
esmo nos próprios colegas. Protegido atrás de dois caixotes de madeira, dei o sinal via rádio e
o Espião Negro acionou as kunais explosivas que tinha espetado na carga dos quatro
caminhões de transporte do lado de fora. Quatro explosões fenomenais iluminaram o pátio do
prédio, mandando para o inferno as caixas de drogas que estavam prontas para serem
transportadas para a Boca do Crime e de lá para fora de São Francisco d'Oeste. Cada
carregamento daqueles valia sozinho pelo menos um milhão e meio de Reais.

- Caminhões destruídos, Pássaro Noturno. Nenhuma vítima no pátio. É sua vez.

Assim que a voz de Antônio silenciou em meu ouvido, eu surgi de trás dos caixotes e comecei
a pegar de surpresa os atônitos capangas de Toni Maranelli, que olhavam assustados para o
pátio ainda iluminado pela explosão. Disparei novas boleadeiras contra os alvos da frente e
diminuindo seu campo de visão, comecei a me movimentar próximo deles, impedindo que
continuassem atirando.

- Ele está querendo que a gente acerte um ao outro. Parem de atirar!

Com golpes precisos de Fei Hok Phai, atingindo pontos específicos entre o pescoço e a
jugular, usando de sua própria força para deslocar-lhes ombros e braços, comecei a derrubar
um a um os homens dentro daquele galpão. O som de sirenes começou a ser ouvido ao longe,
e naquele momento o Espião Negro surgiu lá de fora para me ajudar a nocautear nossos
adversários.

- Precisa de ajuda?

A voz eletrônica e alegre por dentro do capacete envidraçado trouxe um pouco mais de
emoção à luta e eu também o vi usando técnicas de Kung Fu para levar vantagem sobre os
homens de Maranelli, que mais pareciam búfalos enraivecidos correndo sobre a presa. Menor
do que eu, Antônio tinha ainda mais agilidade nos movimentos e nenhum dos capangas
conseguiu sequer encostar nele. Formávamos uma bela dupla em campo de batalha.

O gás do éter começou a descer para o andar de baixo em pouco tempo e enquanto a fumaça
venenosa avançava rapidamente, tomando quase todo o prédio, o fogo finalmente atingiu o
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reservatório dos produtos químicos lá em cima, o que ocasionou uma explosão gigantesca que
destruiu o andar superior. A estrutura do galpão tremeu inteira, e aquele que parecia ser o
líder do bando, um homem de ombros largos, usando um boné preto e com uma barba serrada
no rosto, começou a dar ordens para que todos abandonassem o lugar. Eu e Espião tínhamos
nocauteado oito capangas, e além do chefe deles, quatro outros ainda esperavam a
oportunidade de nos fulminar com suas M-16. Eu estava abaixado amarrando os braços de um
deles no chão, quando o grito de alerta de Espião Negro mandou que eu saísse da linha de
fogo. Um sujeito meio magro e careca apertou com firmeza o gatilho e sua arma cuspiu
centenas de projéteis em minha direção. Sem poder impedir o homem que eu imobilizava de
ser alvejado pelo colega, eu só tive tempo de rolar para longe dos disparos e ele foi morto sem
qualquer chance de reação, desacordado por um dos meus golpes. Com o peito cheio de fúria,
eu joguei minha capa de lado e apanhei dois discos de arremesso da parte de trás de meu
cinturão. As armas tinham sido incorporadas a meu arsenal como mais uma tentativa de não
apelar para dispositivos letais e elas serviam para atordoar meus alvos. A M-16 tinha
disparado cerca de 900 tiros em minha direção e tinha esfacelado a viga de sustentação perto
da escada. Protegido pela névoa branca que descia do andar de cima, e com um reservatório
de oxigênio puro ainda em meu traje, eu arremessei um dos discos contra o careca, pegando-o
desprevenido. Girando numa velocidade impressionante, a arma de 15 cm de diâmetro atingiu
o cara bem no nariz e ele me amaldiçoou, ajoelhando no chão a sangrar.

- Seu filho de uma... Quebrou meu nariz!

O nariz era uma das áreas mais sensíveis do corpo humano, e com ele quebrado, as lágrimas
de seus olhos iam cegá-lo o suficiente para que eu me aproximasse e o rendesse. Me livrei da
M-16 assim que ele a mirou à esmo, e por puro reflexo eu me joguei sobre o careca assim que
ouvi o gatilho de uma UZI ser pressionado do meu lado esquerdo.

- SE ABAIXA!

Eu salvei a vida do careca e deixando-o a se contorcer no chão, a segurar o nariz


ensanguentado, eu arremessei o outro disco em direção ao da UZI, mudando a direção de seus
tiros com o impacto da arma giratória. Do lado de fora, vi de relance o momento em que
Antônio rendeu o chefe, o sujeito de ombros largos, com uma pancada de seu bastão retrátil, e
enquanto os dois discos retornavam para minhas mãos, puxados por um campo magnético
emitido por meus novos braceletes, eu voei sobre o da UZI com um chute forte e veloz que o
desequilibrou. Com os reflexos lentos devido a quantidade de éter no ar, o sujeito acabou
largando a UZI e foi no momento em que eu posicionava um soco que o tiraria de vez de ação
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é que eu percebi que ele era um garoto como eu, e alguém que eu conhecia muito
bem. Cláudio Fontes? Era o Cláudio Fontes tentando me matar?

Quando a Polícia chegou ao galpão com suas viaturas barulhentas e as sirenes apitando, ela
encontrou treze elementos de Toni Maranelli devidamente embrulhados para presente e um
verdadeiro ambiente pós-guerra. A refinaria caía aos pedaços, com seu andar superior
completamente destruído e os caminhões de transporte explodidos perto da área de carga e
descarga. Um cheiro muito forte de gás ainda podia ser sentido no ar e os policiais protegiam
os narizes para se aproximar dos bandidos no chão. Eu e Antônio acompanhamos toda a ação
escondidos na penumbra de um morro ao lado da fábrica, e embora eu lamentasse a morte de
um dos homens de Maranelli, atingido pelo próprio colega, a nossa missão tinha sido um
sucesso.

- Dessa vez deu certo alertarmos a Polícia antes de nossa ação. Eles chegaram com apenas
meia hora de atraso. - Falou Antônio, enquanto sua viseira envidraçada refletia o fogo lá
embaixo.

- Sim. E valeu a pena pedirmos especialmente pela presença da policial Regiane Loyola ao
telefone. Lá está ela próximo de uma das viaturas, abotoando os próprios colegas de farda.

Antes do ataque à fábrica de drogas, nós tínhamos alertado a Polícia do que ia acontecer ali e
providenciamos até o endereço do local, para que dessa vez não tivesse erro. Nós tínhamos
ciência que boa parte do efetivo da equipe de Romero Assis, o delegado da cidade, tinha
ligações com o crime, mas até agora não tínhamos dado um jeito de provar. Dos treze homens
lá embaixo, pelo menos cinco deles eram policiais que agiam como parte da Milícia de Assis,
e nas mãos de uma das únicas policiais honestas de São Francisco, era bem difícil que eles
conseguissem escapar da cadeia, para onde provavelmente também iria Cláudio Fontes.

- Nem acredito que acabamos topando com o pior membro do Quinteto Macabro em plena
missão de ataque à Corporação. - Sussurrou Espião, tão perplexo quanto eu pela presença de
nosso ex-colega de escola ali. - Nem mudando de escola a gente consegue se livrar desses
caras!

- Agora que é maior de idade, Cláudio deve ter buscado subir de cargo dentro da organização
e passou de aviãozinho de periferia para entregador em carregamento pesado de drogas. O
idiota agora vai amargar alguns anos na prisão. Fim trágico para ele que nos infernizou ao
longo de todo o Ensino Fundamental.
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- Imagina a cara dele se soubesse que era você ali, sua vítima preferida de bullying,
derrubando ele com golpes de Kung Fu! - E Antônio riu por dentro do capacete, enquanto
víamos Cláudio ser conduzido para dentro da viatura pela policial Loyola e um outro oficial
de pele negra. Naquele mesmo instante, o rádio de uma das viaturas começou a tocar e um
policial em outra parte da cidade começou a pedir reforços. Uma explosão havia destruído
outro galpão na região leste da cidade e um grupo de mais de vinte homens se encontrava
preso entre os destroços, inconscientes por um tipo de gás dos nervos.

- Parece que o Natal chegou mais cedo esse ano e o Papai Noel já nos trouxe muitos
presentes. - Ironizou um dos oficiais lá embaixo, enquanto atendia o chamado do rádio.
Algum tempo depois foi a vez de nosso rádio auricular tocar e a voz rouca de Thunderwing
soar através dele:

- Como foi a missão de vocês? A minha foi sonolenta. Deu até pra tirar um cochilo dentro da
ASA depois que explodi o prédio da segunda refinaria e prendi os bandidos no pátio após
apagá-los com gás dos nervos. Será que ainda encontramos alguma lanchonete aberta a essa
hora pra gente comemorar?

A nossa missão foi muito bem-sucedida e rendeu manchetes de capa nos jornais A Hora
d'Oeste e A Gazeta, no dia seguinte. Os dois folhetins deram destaque à prisão dos policiais
milicianos e no desmantelamento das duas refinarias de drogas, que funcionavam em sigilo
dentro das propriedades da empresa Alfa-Rio. Durante seu jornal da tarde, o canal Oeste
News mencionou uma nota sobre as fortes explosões que foram ouvidas na vizinhança dos
dois galpões e sobre a descoberta de duas refinarias de drogas nos locais, mas nada
mencionou sobre os policiais que foram presos junto da quadrilha criminosa. Manoela e
Nicola Santinni também obrigaram seus jornalistas a fazerem silêncio sobre a ligação da
Polícia e do tráfico de drogas na cidade, mas era notório que o golpe tinha afetado a
Corporação. Se antes tínhamos sua curiosidade, agora tínhamos sua total atenção.

Eu e meus amigos ficamos de olho no noticiário o dia seguinte todo e a notícia sobre o
estouro das refinarias só perdeu força quando a TV começou a destacar um tumulto no centro
da cidade, que deu início a um conflito entre moradores de um conjunto habitacional
abandonado e a tropa de choque da Polícia. Enquanto dezenas de pessoas que não tinham para
onde ir se recusavam a sair dos prédios, a tropa forçava passagem, começando a disparar
bombas de efeito moral contra os moradores. Eu estava sentado no sofá central da sala quando
a câmera da Oeste News focalizou ao vivo uma garota de cabelo Chanel atrás da cerca que
havia sido levantada ao redor do prédio, gritando palavras de ordem contra a tropa. Enquanto
14
um dos soldados a empurrava de forma violenta, forçando também o cinegrafista a recuar, eu
a reconheci no mesmo momento:

- É a Silmara! Eles vão tirá-la à força do prédio!

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CAPÍTULO 2 – UM CAVALO POR UMA TORRE

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A TRANSMISSÃO DA TV cortou o link ao vivo no exato momento em que um novo
blindado da tropa de choque chegou ao local despejando seus soldados que começaram a
disparar balas de borracha contra os moradores do conjunto habitacional abandonado. Há dois
anos, aquele prédio já estava condenado pela prefeitura e dizia-se que ele ia ser implodido
para que fosse construído um estacionamento em seu lugar. Pelo menos cinco famílias
moravam nos andares superiores, sobrevivendo com "gatos" nas fiações elétricas e com água
encanada de péssima qualidade. Nenhuma delas tinha outro lugar para ir e usavam o teto
sobre suas cabeças para se proteger das intempéries climáticas, para não viver diretamente na
rua. Não havia trabalho na cidade para essas famílias, logo, elas viviam de "bicos" que
arranjavam ou qualquer atividade que lhes rendesse uns trocados. Como Silmara e seu pai,
que trabalhavam para a Corporação.

Logo que a programação dominical padrão substituiu a cobertura ao vivo da desapropriação


do conjunto habitacional, eu corri para meu quarto, onde vesti uma calça jeans e um tênis.
Não dava para ficar de braços cruzados em frente à TV vendo aquelas pessoas serem
escorraçadas de seu único lar. Minha mãe tinha percebido meu desconforto com a matéria
jornalística e me perguntou, assim que cheguei à porta de saída:

- Onde você está indo, Henrique?

- Uma amiga minha precisa de ajuda. Eu preciso ir até lá!

- O que você tem a ver com esses vagabundos que ocuparam esses prédios sem permissão?

Não dava tempo de responder aquele comentário preconceituoso e eu simplesmente saí,


caminhando até o ponto de ônibus.

A condução na periferia costumava ser lenta nos finais de semana, por isso, acabei levando
quase meia hora para chegar até o centro da cidade. Quando desembarquei bem próximo
da Pet Shop cujo teto eu havia usado certa vez para me esconder dos guardas da Xeque-Mate,
ainda havia vestígios da guerra civil que tinha atingido as ruas há pouco tempo. O cheiro do
gás lacrimogêneo da Polícia ainda estava pelo ar e por onde se passava, dava para ver pedras,
garrafas e pedaços de pau espalhados pelo chão. Cortei caminho pelo beco atrás da Xeque-
Mate, onde conheci Silmara, e conforme me aproximava da avenida que cruzava a frente do
conjunto habitacional onde ela morava, já dava para ver o caos. As paredes dos três prédios
velhos estavam bem castigadas com buracos de bala e marcas de fogo dos
coquetéis Molotov que tinham sido atirados. Cavaletes fechavam o acesso às portarias,
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enquanto soldados da tropa de choque montavam guarda em frente. A calçada diante dos
prédios tinha sido interditada momentaneamente e ninguém conseguia passar por ali, nem
mesmo os curiosos que se amontoavam em volta. Tinha pelo menos quatro carros blindados
da Polícia estacionados na esquina adjacente, perto da faixa de pedestre usada para alcançar o
outro lado da rua, onde eu estava, e não havia nenhum sinal dos moradores do conjunto ou de
outras pessoas em situação de rua das imediações que se juntaram ao protesto.

Eu encontrei Silmara a umas cinco quadras dali. Ela estava sentada atrás de uma caçamba de
lixo, próximo à saída dos fundos de um restaurante chinês. O cheiro de peixe e de resíduos em
decomposição se misturavam naquele beco. Quando me aproximei dela com cautela, notei
que ela estava ferida, com cortes nos braços nus e um hematoma no rosto ossudo.

- Silmara?

A menina deu um sobressalto ao ouvir minha voz e colou as costas na parede imunda atrás
dela, de olhos arregalados a me encarar. Sua aparência era ainda mais lastimável do que da
última vez que a vi.

- Q-Quem é você? Fica longe! FICA LONGE!

O berro dela ecoou naquele beco. A porta do restaurante a seu lado se abriu de repente e um
funcionário colocou a cara para fora. Um gato vira-latas de pêlo rajado saiu de dentro de um
latão de lixo no mesmo momento e correu assustado. O chinês nos encarou ali próximo da
saída de seu trabalho parecendo agitado e pronunciou alguma coisa em seu idioma que não
entendi. Assim que ele bateu a porta e sumiu de volta ao restaurante, me aproximei mais de
Silmara.

- Você me conhece. Você me ajudou há algum tempo. No beco atrás da Xeque-Mate.


Guardou meu traje...

Seus olhos enormes me encararam com ela ainda de costas para a parede, acuada. Os cabelos
ensebados grudavam em seu rosto sujo.

- M-Magrelo?

Eu não fazia ideia de como ajudar Silmara, mas sabia que precisava fazer alguma coisa, uma
vez que me sentia em dívida com a menina por ela ter me salvado no passado. Logo que a
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noite caiu, tomei a única atitude que podia tomar naquele momento e a levei para a minha
casa. Ainda não estava pronto para chegar com uma ex-moradora de rua no centro da minha
sala sem fazer com que minha mãe surtasse, por isso, decidi usar a garagem naquele primeiro
momento. Alguns vizinhos me viram erguer a porta de aço e conduzir a garota maltrapilha
para dentro da garagem, mas não me importei. Logo que eu a acomodasse em meu
esconderijo subterrâneo, ninguém mais saberia que ela estava ali.

Silmara estava trêmula quando me viu levantar a porta do alçapão e ceder espaço para que ela
entrasse por aquele buraco no chão. Ela não tinha falado nada o caminho todo até minha casa
e seu timbre saiu meio embargado quando ela me questionou:

- O que é isso? Você vai me esconder no porão de sua casa?

Com um olhar, pedi para que ela confiasse em mim, então ela começou a descer as escadas,
com um semblante infeliz no rosto. Logo que toquei o chão do corredor que precedia o
esconderijo lá embaixo, tomei a frente e pedi que ela me seguisse. As luzes automáticas,
como de costume, se acenderam com a nossa presença e a vi segurar os cortes que sofrera nos
braços ao tentar enfrentar a tropa de choque pelo direito de ter um lugar para dormir. Mesmo
com dor, ela ficou surpresa logo que o salão surgiu diante de seus olhos, e ela perdeu alguns
minutos antes de ser capaz de falar qualquer coisa de novo, observando maravilhada cada um
dos equipamentos guardados ali. Depois que ela percorreu seus olhos pelo CAD, passando
também pelo Sarcófago e a Matriz de Impressão, o par castanho brilhante se fixou no traje
escuro que eu guardei dentro de uma estante de vidro, ao fundo do esconderijo. Ela me olhou
com um meio-sorriso no rosto e um fulgor nos olhos repentinamente, reconhecendo o traje
que ela tinha guardado para mim certa vez. "O pássaro noturno aqui despencou do céu,
motorista!".

O ar gelado que circulava no subterrâneo a incomodou de início, mas Silmara já estava um


pouco menos arisca depois de algumas horas. Usando algumas bandagens e o álcool que eu
mantinha ali embaixo para emergências, eu a ajudei a fazer alguns curativos nos braços
feridos e enquanto isso, ela me contou tudo que tinha acontecido durante a ação da tropa de
choque. Após a resistência dos moradores, a Polícia havia decidido agir com truculência e
invadir os prédios à força, colocando as famílias para fora debaixo de pancada. Ninguém tinha
escapado sem ferimentos, e aqueles que não tinham tido a sorte de parar no xilindró,
acabaram no hospital.

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- Eu vi um dos policiais bater em uma mãe que carregava um bebê no colo. Eu conhecia
aquela mulher desde criança. Ela não merecia aquele tipo de tratamento. Covardes!

Havia fúria em sua expressão. Enfaixei seus antebraços logo que ela conteve as lágrimas que
ameaçavam escorrer de seus olhos e a deixei desabafar.

- Quando a tropa de choque começou a disparar gás lacrimogêneo e balas de borracha contra
as famílias, eu não pude fazer mais nada. Fui obrigada a fugir de lá. Eu não tinha mais para
onde ir... Quando você apareceu...

Eu estava meio embaraçado com aquela situação e comecei a tentar pensar à longo prazo o
que iria fazer com Silmara. Eu não posso escondê-la aqui no subterrâneo o resto da vida!

- E seu pai? O que aconteceu com ele?

Ela entristeceu ainda mais.

- M-Meu pai foi preso.

- Lamento muito...

- Lembra que eu te contei que ele trabalhava para o Antônio Maranelli? - Assenti com a
cabeça, me recordando da vez que a visitei em sua casa. - Ontem ele foi chamado para
coordenar um transporte de carga ilegal de um galpão para a estrada. Houve uma batida
policial e ele dançou, junto com a equipe inteira que coordenava.

Naquele momento, um frio tomou meu estômago quando ela disse as palavras "galpão" e
"transporte de carga", e a realidade me atingiu feito um soco na cara.

- O seu pai... Estava naquele galpão? Na tal refinaria de drogas?

- Estava. Ele estava chefiando um grupo de traficantes... Me sinto péssima em dizer isso...

O chefe? O cara de boné, ombros largos e barba serrada... Ele é o pai da Silmara?

Aquela era uma informação que eu não podia esconder dela. Embora achasse que não fosse o
momento certo, eu sabia que só ia lhe fazer ainda mais mal se escondesse.
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- E-Eu sinto muito... Fomos nós que chamamos a Polícia naquela batida. - Senti seus olhos
cravarem nos meus. - Estávamos em ação... Nós vínhamos rastreando aquela refinaria há
meses... Eu e meus amigos tínhamos que acabar com aquele lugar...

Silmara parecia possessa agora. Ela estava sentada em uma das três cadeiras da mesa onde eu
costumava me reunir com Antônio e Ricardo. Ela se levantou subitamente. O som da madeira
da cadeira ecoou no salão assim que atingiu o chão rústico, e ela avançou sobre mim.

- Foi você? Você que prendeu meu pai, seu idiota?

O braço fino dobrou-se contra meu peito com força quando ela me empurrou sobre o console
do CAD. A tela de cristal sacudiu com o impacto, e de repente, as palavras dela morreram
antes de sair de seus lábios puídos. A fúria em seus olhos escorreu para fora em forma de
lágrimas. Seu contato com meu corpo foi perdendo a força à medida que ela abaixava a
cabeça envergonhada.

- V-Você... Você não tem culpa. Você não fez nada de errado. - Ela me largou e voltou
vagarosamente para próximo da mesa. Assim que levantou a cadeira caída do chão, ela a
virou ao contrário e sentou-se com o tronco de frente para o encosto, apoiando os braços sobre
ele.

- Eu comecei esse lance de vigilante mascarado sem saber exatamente contra o que estava
lutando e foram as suas palavras aquela vez, em sua casa, que me deram um propósito a
seguir. "Derruba a Corporação. Não deixa um tijolo em pé". Lembra disso?

Ela assentiu com um semblante triste.

- Eu estava o tempo todo do lado errado, embora não tivesse escolha. Uma hora a casa iria
cair para meu pai. Para nós dois... Era uma questão de tempo. - Seus olhos se perderam e ela
ficou ali calada, imóvel, remoendo seu próprio infortúnio.

Naquela noite de outono, a temperatura começou a cair bastante do lado fora. Depois que
Silmara se acalmou, eu lhe levei um pouco de comida. Logo que viu os sanduíches de
presunto e queijo e os biscoitos de polvilho que tinha trazido numa bandeja para ela, a menina
avançou sem cerimônia, faminta. Sua aparência ainda não era das melhores e o cheiro que
exalava dela estava impregnando o esconderijo. A garota tinha passado por maus bocados
naqueles últimos dias, ficando bem judiada. Eu combinei com ela de esperar até que o dia
21
raiasse e minha mãe fosse trabalhar para levá-la até lá em cima, a fim de que tomasse um
banho e comesse algo mais decente que sanduíches e bolachas.

A rotina em casa começava quando minha mãe e minha irmã se levantavam cedo, se
arrumavam, tomavam café e iam cada uma para seu destino; minha mãe para o trabalho e
Carina para a escola. Minha mãe tinha aceitado voltar para a loja de vestuário feminino onde
trabalhava antes de eu arranjar o emprego na pizzaria e tinha largado a recepção do hotel. O
trabalho noturno lhe era muito desgastante e ela dera preferência à loja, onde fazia expediente
das 8h00 às 17h00. Carina tinha começado a estudar no período matutino, na mesma escola
onde eu estudara até o oitavo ano, e ainda estava se adaptando a acordar tão cedo. Eu
costumava levantar trinta minutos depois das duas e saía um pouco mais tarde que ambas de
casa. Naquele dia, no entanto, pretendia matar aula, devido à presença inesperada embaixo da
garagem, mas agi como se fosse normalmente para a escola.

Tão logo as duas se despediram de mim e saíram de casa, eu desci as escadas no subsolo da
garagem e trouxe Silmara para cima, sob os protestos de Suzy, nossa cadelinha, que estranhou
sua presença ali, latindo. Ela não tinha dormido muito bem, sentada na cadeira com o tronco
inclinado sobre a mesa, e reclamava de dores nas costas quando a levei para dentro de casa.
Na sala, a garota deu uma boa olhada ao redor, fazendo o reconhecimento do território, e tão
logo apanhei uma toalha limpa, uma camiseta e um calção para ela usar, a conduzi até o
banheiro.

- O chuveiro é todo seu. Bom banho!

Enquanto Silmara se lavava no banheiro, eu sentei em frente à TV e comecei a assistir o


noticiário da manhã. Os outros canais mostravam com detalhes a brutalidade da tropa de
choque de São Francisco contra os moradores do conjunto habitacional, com cenas revoltantes
de policiais batendo com cassetete em mulheres e crianças. Enquanto isso, a Oeste News
transmitia uma matéria sobre a construção do Elevado Intermunicipal Alceu Franco, logo
depois de exibir uma matéria sobre floriculturas na cidade. A condescendência da linha
jornalística da família Santinni me causava náuseas.

Foi num repente, e as duas ações aconteceram ao mesmo tempo. Assim que Silmara saiu do
banheiro enrolada na toalha, minha irmã Carina irrompeu esbaforida à porta da sala, não me
dando qualquer tempo de impedir que elas se encontrassem.

- Eu esqueci meu caderno e... Quem é essa garota, Henrique?!


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O plano de manter Silmara incólume em meu esconderijo tinha se esvaído com o flagra de
minha irmã e não foi nada fácil convencê-la de que a garota seminua ali parada à porta do
banheiro não era uma namorada minha e sim uma amiga sem-teto que eu estava ajudando.
Depois que nós dois nos sentamos com ela e explicamos toda a situação, Carina parou de
desconfiar de nosso caso e tomou uma atitude que eu não esperava, sendo ela sempre tão
temperamental e egoísta:

- Eu tenho algumas roupas que não estou usando mais. Devem servir em você.

Após voltar para casa para buscar o caderno que tinha esquecido e acabar descobrindo que eu
estava escondendo uma ex-moradora de rua em casa, Carina também decidiu matar aula e
passou até a se divertir em ajudar Silmara. Além das roupas que lhe dera - que encheram uma
mochila - minha irmã ainda a ajudou a cuidar do hematoma em seu rosto, dos cabelos curtos
maltratados e das unhas das mãos e dos pés, que pareciam nunca ter visto uma lixa ou esmalte
antes na vida. Embora retraída com todo aquele cuidado à princípio, Silmara começou a
gostar da atenção que estávamos lhe dando e depois sentou-se à mesa com nós dois, quando
Carina serviu o almoço que preparara com capricho.

Ainda exausta por tudo que tinha lhe acontecido no dia anterior e pela noite mal dormida
sentada numa cadeira, Silmara acabou cochilando no sofá enquanto nós três assistíamos TV.
Eu a carreguei no colo para o meu quarto com esforço, onde a deitei na cama, deixando a
dormir em paz. Da porta, enquanto observávamos a menina descansar, minha irmã cochichou:

- O que pretende fazer com ela? A mãe não vai deixar você trazer uma mendiga para dentro
de casa.

- Ela não é uma "mendiga", Carina. Eu vou escondê-la na garagem por enquanto, até pensar
em uma ideia melhor. A mãe nunca desce lá embaixo e ela chega tão cansada do trabalho que
nem vai imaginar que tem uma hóspede secreta. Me ajuda a levar o colchão extra até a
garagem?

Os dias foram se passando normalmente enquanto eu mantinha Silmara escondida embaixo da


garagem, longe dos olhos de minha mãe. Para Carina, a garota estava dormindo dentro da
garagem, com o colchão que tínhamos posicionado lá no primeiro dia, mas a verdade era que
Sil estava segura em meu esconderijo subterrâneo, aprendendo aos poucos a mexer no CAD
para se manter informada e entretida, enquanto as pessoas da casa trabalhavam e estudavam
durante o dia. Eu tinha lhe dado acesso pela porta dos fundos para que ela subisse e usasse a
23
casa quando quisesse, para suas necessidades básicas, mas solitária, se recuperando dos
ferimentos, ela passou uma semana enfurnada no subsolo, sem sentir o calor do sol ou uma
brisa que fosse na pele pálida. Ela chegava a sorrir quando me ouvia chegar à noite, trazendo-
lhe comida, bebida e o jornal diário.

- Quem diria! Você tem mesmo uma máquina mágica que costura roupas aqui embaixo! -
Disse ela certa vez, numa de minhas visitas, apoiando a mão no Sarcófago e olhando para
dentro de seu visor de cristal. Eu sorri.

Nos dias em que eu ia treinar Fei Hok Phai com Sebá, voltando bem tarde, eu só aparecia
para ver como ela estava, e sentia Silmara cada vez mais deprimida. Não devia ser fácil perder
seu único lar e passar a viver feito um rato no subsolo da casa de uma família que ela nem
conhecia. Ela sentia falta dos livros que acumulava em sua casa invadida e mais do que tudo
da liberdade que tinha para ir e vir quando bem entendesse. Eu precisava dar alguma
motivação a ela e no final daquela semana a motivação surgiu.

No primeiro sábado após a desocupação violenta do conjunto habitacional abandonado onde


Silmara morava, eu chamei Ricardo e Antônio para jogar videogame em casa, mas tudo não
passava de um pretexto para assim que desse, eu os levasse para conhecer a mais nova
integrante de nossa equipe. A deixa surgiu quando minha mãe e minha cunhada Selena, que
fazia uma visita, passaram a falar sobre novela na sala, o que possibilitou que saíssemos de
fininho e chegássemos até a garagem. Difícil foi despistar meu sobrinho Michael, que queria
ir com a gente não importasse onde fossemos, e eu o deixei brincando com Suzy e uma
bolinha de borracha no quintal.

Quando entramos no salão, Sil estava estudando alguns artigos sobre código penal e
legislação na internet, ainda com a ideia fixa de ver o pai, o único familiar vivo, fora da
cadeia. Ela levantou-se da cadeira em frente ao CAD e eu a apresentei aos dois. Diferente de
como eu a havia encontrado naquele beco, há uma semana, ela agora estava bem apresentável,
com os cabelos curtos macios, a pele bem tratada e usando as roupas confortáveis que minha
irmã tinha lhe dado. O hematoma no rosto agora era somente uma sombra num tom de roxo
claro e os cortes nos braços já estavam cicatrizando.

- Então você é a famosa Silmara! - Falou Antônio, num tom amigável.

- Sempre ouvimos falar de você. A gente tinha curiosidade em te conhecer. Bem-vinda ao


clube! - Cumprimentou-a Ricardo.
24
Sil pareceu lisonjeada em ter sido citada anteriormente em nossas conversas, mas ativou seu
sistema de defesa mais eficaz assim que teve a oportunidade; seu sarcasmo.

- Clube? E qual é o nome dele? Clube dos Otários?

Ricardo pareceu desconcertado, mas Antônio foi rápido em responder:

- Esse nome já tem dono. Teríamos que pagar direitos autorais ao Stephen King!

Sil o olhou com certo desprezo, em seguida revirou os olhos, se recostando no console do
CAD. Ela tinha entendido a referência ao livro It – A Coisa, um de seus preferidos, mas
jamais admitiria. Aquele tinha sido um começo tenso entre os três, a menina parecia rejeitar a
presença de mais pessoas ali embaixo, mas as horas juntos começou a nos entrosar.

Os anos como aviãozinho do tráfico de drogas e as várias reuniões do submundo do crime de


São Francisco d'Oeste que participara acompanhando o pai, fizeram de Sil uma profunda
conhecedora do modus operandi da Corporação. Em pouco tempo de reunião, ela tinha nos
passado informações que os meses bisbilhotando os arquivos digitais de Edmundo Bispo nem
de perto havia nos proporcionado. Além da ligação criminosa, alguns membros da
organização tinham também ligações familiares e foi por meio de relatos da garota que
descobrimos que o delegado Romero Assis era cunhado do todo poderoso bancário Paulo
Menezes.

- Assis é casado com Arlete, que é irmã mais nova de Menezes. Além disso, Assis emprega o
próprio primo Vitor para ser seu principal agente nas missões das Milícias ligadas a Toni
Maranelli. - Enquanto Sil falava, eu ia alimentando o meu antigo organograma sobre a
Corporação e já começava a faltar espaço no papel. - Esse Vitor é mais conhecido como
"Quebrada" e é o cara mais barra-pesada da máfia em atividade.

Mais tarde eu viria a saber que o tal Quebrada era o mesmo sujeito de cabeça raspada com a
qual eu havia brigado em nossa primeira missão numa das refinarias de drogas, o que havia
me usado como sparring e que por pouco não tinha me fulminado com sua arma.

- Eu estava lendo um pouco sobre legislação antes de vocês chegarem, e pesquisei sobre a
vida pregressa do principal juiz do Fórum de Justiça de São Francisco. Eu sabia que já tinha
ouvido o nome Sérgio Alcântara em alguma das reuniões tediosas em que acompanhava meu
pai, mas nunca liguei o nome à pessoa. - Estávamos curiosos, e paramos os três atentos,
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sentados em volta da mesa - Nas reuniões, o Maranelli falava muito de um tal sogro, e sempre
que o papo enveredava para justiça, ele falava desse cara. Não era para menos! Maranelli é
casado com Lúcia, a filha única de Alcântara. Por isso que sempre que algum dos membros da
gangue era preso, Maranelli apelava para o sogro, que mexia seus pauzinhos no Fórum para
soltá-los.

- Você está querendo dizer que todos os caras que prendemos em nossos dois ataques às
refinarias poderão estar livres em breve? - Antônio falou sem pensar, e os olhos de Sil o
fulminaram um instante. Ele tinha esquecido que entre todos os prisioneiros que fizemos em
nossa última missão, estava o pai da garota. Gaguejante, ele tentou se desculpar, mas ela
apaziguou:

- Tudo bem. Eu não posso culpá-los por terem prendido meu pai. Ele mereceu por andar com
esse tipo de gente para levantar um trocado e sustentar seu vício em álcool. - Seu cenho
obscureceu por um tempo. - Mas a resposta para sua pergunta é sim, Junior. A qualquer
momento, Alcântara pode autorizar um habeas corpus mágico e soltar todo mundo de novo,
incluindo meu pai.

- Junior? Ninguém me chama de "Junior"! - Retrucou Antônio inutilmente, em voz baixa,


incomodado por Sil se referir a ele com seu último nome de batismo, motivo pelo qual até
cansamos de zoar nosso amigo pela semelhança que ele tinha com nosso adversário Carlos.
Os dois tinham o mesmo nome de seus pais e se chamavam Junior.

- Isso praticamente inutilizaria nosso ataque às refinarias. Voltaríamos à estaca-zero! - Eu


rabiscava o nome de Sérgio Alcântara, o principal magistrado de São Francisco e regiões
próximas, no organograma, quando me surgiu uma dúvida: - Tem mais alguém que devamos
conhecer nessa rede de conexões criminosas?

- Vocês nem imaginam! - Suspirou Sil, cabisbaixa.

Naquele momento, Antônio tomou o assento diante do CAD e habilmente começou a procurar
alguns diretórios que tinha organizado ali quando ainda estudávamos juntos e nos víamos com
mais frequência. Apesar de não termos mais a conexão direta com os servidores da Xeque-
Mate, ainda tínhamos bastante dados guardados sobre a Corporação, e Antônio começou a
abrir algumas fotos de Edmundo Bispo, tiradas em suas aparições públicas. Bispo era um
homem alto de postura bem ereta que possuía vastos cabelos grisalhos sempre muito bem
penteados para trás. Possuía olheiras evidentes e sua fisionomia mostrava o peso de seus 56
26
anos. As fotos mostradas por Antônio traziam sempre um espectador muito próximo de Bispo
nos eventos, um sujeito alto e forte de pele bem negra e um cavanhaque espesso no rosto
quadrado.

- Esse cara aparece ao fundo em praticamente todas as fotos tiradas de Bispo publicamente. –
Antônio apontou - Você o conhece, Silmara?

A menina inclinou-se para frente, encarando o monitor e olhando bem para o homem atrás de
Bispo:

- Nunca o vi na vida. Eu só vi Edmundo Bispo uma vez, de longe, mas esse cara não estava
por perto. Ele não tem pinta de segurança. - Observou ela – Pelas fotos, ele anda mais
afastado que todos os demais seguranças pessoais do homem e não usa terno e gravata como
os outros. Assim como Quebrada é o homem forte de Romero Assis e Falcão é o homem forte
de Maranelli, eu diria que esse esquisito é o cavalo do rei.

- "Cavalo do rei"? - Repetiu Ricardo, sem entender.

- Sim, cavalo. Vocês não jogam xadrez?

Aquelas nossas reuniões se tornaram mais frequentes e Sil trouxe a nós três um entendimento
maior do jogo. Nós achávamos até então que estávamos presos a uma enorme teia de fatos
interconectados, quando na verdade estávamos em cima de um tabuleiro de xadrez em que a
partida já tinha começado. Nós tínhamos perdido nossa grande vantagem sobre nosso inimigo
com a retirada de nosso dispositivo espião da rede de Bispo, e foi de Antônio a ideia de
infectar seus servidores com um vírus, em vez de só grampeá-los, recuperando assim nossos
privilégios.

- A única forma de fazermos o Bispo abrir as portas de sua torre é lhe enviar um presente de
grego irrecusável. Um cavalo de Tróia.

Nós tínhamos centenas de endereços de e-mails com as quais a Xeque-Mate se comunicava


comercialmente quase que diariamente, e para nosso gênio da informática não era difícil
forjar um e-mail empresarial e disfarçá-lo com um vírus anexado a ele, mandando-o para a
caixa de entrada de Bispo. Fosse a secretária dele ou algum estagiário que recebesse a
mensagem, bastava um clique no anexo para que o vírus invadisse a rede informatizada e
Antônio recuperasse o acesso aos dados da Corporação.
27
- Agora é torcer para que o firewall deles não seja tão poderoso a ponto de frear o vírus que eu
mesmo criei!

E ele não era.

Estávamos na metade do mês de maio quando o vírus de Antônio enfim foi inoculado na rede
da Xeque-Mate. Em pouco tempo, o cavalo de Tróia tinha aberto portas que facilitaram a
tomada de rédeas de meu amigo gênio dentro dos servidores, mantendo-as obscenamente
escancaradas.

- Nós a capturamos. A torre é nossa!

Sil estava cada vez mais integrada ao grupo, e com o tempo ela começou a desistir de sua
ideia fixa de se manter à margem do processo em que já estivera intimamente ligada no
passado por causa do pai. Ela se sentia culpada por ter feito parte indiretamente da
Corporação e de certo modo, contribuído para que a cidade continuasse corrompida pelos
poderosos que a dominavam. Nosso projeto de acabar com a organização a tinha cativado
agora mais do que há dois anos, quando eu a tinha convidado para me ajudar e ela tinha se
recusado, alegando que "não tinha o que era necessário". Sil se animou tanto, que logo
começou a querer um traje de combate para ela também, embora questionasse a nossa opção
em usar armas não-letais.

- Como vocês querem combater tiros de armas de fogo com faquinhas e disquinhos?

Cheia de sarcasmo, ela caçoou de nossa decisão em não se rebaixar ao mesmo nível dos
nossos inimigos e tirar vidas deliberadamente, mas acabou aceitando nossos métodos.
Enquanto eu e ela desenhávamos juntos algumas ideias que ela tinha em mente para sua
personalidade heroica, Antônio continuou acessando a rede de Bispo, até que ele descobriu
algo interessante:

- Nós passamos meses vasculhando cada byte de informação que esse pulha guarda em seus
servidores e não descobrimos quase nada concreto que pudesse ser levado à mídia para
incriminá-lo. Eu descobri o porquê! - Nós três paramos para observá-lo ali sentado diante da
tela de 72 polegadas, dando espaço para que enxergássemos o que ele queria mostrar. - Vocês
estão sentindo falta de algo nesse mapa de rede?

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Eu estava estudando na escola quase tudo sobre sistemas informatizados, mas admitia que
estava alguns - muitos - passos atrás de Antônio no quesito arquitetura de rede. Eu via na tela
um emaranhado de linhas interconectando o que parecia ser uma hierarquia informatizada
ligada a servidores, mas não decifrei o que ele queria que enxergássemos.

- Desisto, Antônio. Ao que está se referindo? - Falei, vencido, ao que Ricardo e Sil
assentiram.

- É simples. O que não conseguimos enxergar nessa rede de informação é um terminal mudo,
um local mantido dentro de uma rede, mas que não está conectada de nenhuma forma a ela. -
Ricardo coçou a cabeça, Sil mexeu o cabelo Chanel de lado e eu continuei tentando entender.
- Pensem num servidor que serve para armazenar um backup, mas que está alheio a ele, sem
amarras e que, portanto, não pode ser alcançado pelo meu cavalo de Tróia.

- Quer dizer que Bispo possui um terminal que não está ligado à rede principal dentro do seu
próprio prédio? - Indaguei.

- Exato. É como ser burro o bastante pra guardar uma cópia de segurança dentro do arquivo
original! – Zombou ele. - E eu tenho certeza que também é lá que ele guarda as informações
que vão fazer com que a gente derrube esse filho de uma mãe de uma vez por todas.

Era véspera da inauguração do Elevado Intermunicipal, no final do mês de maio, quando


colocamos em prática um de nossos planos mais ousados contra a Corporação. Não havia
outra forma de nos apossarmos das informações secretas de Edmundo Bispo se não
invadíssemos o prédio da Xeque-Mate pessoalmente, portanto, repassamos cautelosamente
cada etapa da invasão inúmeras vezes nas semanas anteriores, tomando as devidas precauções
para que nada saísse errado.

Através do CAD e do vírus que criara, Antônio tinha grampeado mais uma vez a rede
telefônica do edifício, e naquele início de noite, um telefone do décimo andar fez uma ligação
para a pizzaria do Magno no Bairro do Encanto, encomendando cinco pizzas de sabores
diversos. O próprio Magno atendeu naquele domingo movimentado no estabelecimento, e
seus olhos pequenos arregalaram-se ao saber a procedência do pedido. O descendente de
italianos moveu sua corpulência característica do balcão até a cozinha e gritou a plenos

29
pulmões para os três funcionários que metiam a mão na massa lá atrás, aprontando os
inúmeros pedidos que tinham para aquela noite:

- Pedido grande para o prédio da Xeque-Mate! Uma pepperoni com borda recheada, uma
portuguesa sem azeitonas, uma de frango com catupiri e duas de atum com muita cebola.
Caprichem neste pedido, são clientes importantes!

Eu estava num canto, do lado de fora do balcão, fingindo que estava de olho num jogo de
futebol que era transmitido na TV de tubo pequena posicionada na parede central da pizzaria,
quando ouvi meu patrão falar sobre o pedido. Assim como tinha sido definido no ano
passado, eu continuava fazendo somente as entregas mais próximas do bairro, de bicicleta,
mas naquele dia, tinha tomado uma providência da qual não me orgulhava para tirar de ação o
entregador oficial do local e tomar seu lugar. Ao longo de meu treinamento físico com Sebá
quatro vezes por semana, eu tirava várias dúvidas com ele sobre defesa pessoal e métodos de
combate corpo a corpo. Numa dessas vezes, perguntei sobre técnicas hábeis de tirar um
oponente de combate rapidamente, no qual ele me apresentou - na prática - um golpe no
pescoço, ensinado pelo Hapkidô, a arte marcial coreana para defesa pessoal. Eu tinha sentido
na própria pele que a técnica funcionava, e pouco antes do telefonema forjado por Antônio, eu
tratei de apagar Reginaldo, o entregador que tinha ficado em meu lugar pilotando a Honda
Biz. Ele estava distraído quando lhe apliquei um golpe preciso na base do pescoço, deixando-
o desacordado no banheiro do estabelecimento, sem nem saber o que tinha lhe acontecido.
Para que nosso plano de invasão desse certo, era preciso que eu estivesse pilotando a
motoneta da pizzaria no momento da entrega, e embora tivesse sido uma solução suja golpear
o rapaz, eu sabia que estava evitando que ele entrasse em encrencas.

Quando as cinco pizzas ficaram prontas na cozinha, enquanto a garçonete Luiza, que também
era a esposa de Magno, servia alguns clientes às mesas do restaurante, meu patrão corpulento
começou a chamar do balcão por Reginaldo, que não respondia.

- Onde está esse garoto? Preciso fazer essa entrega imediatamente! O cliente não pode ficar
esperando!

Dissimulado, comecei a fingir que o procurava para Magno, e passados cinco minutos, dei a
ideia:

- Ele pode ter passado mal e voltado para casa sem avisar. Não o achei em lugar nenhum. Se o
senhor quiser, eu posso fazer a entrega. Sei o caminho.
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O homem titubeou alguns instantes, provavelmente se lembrando da promessa que tinha feito
à minha mãe de nunca mais me deixar pilotar a motoneta, mas ao mesmo tempo ele tinha uma
encomenda esfriando no balcão e ela precisava ser entregue com urgência.

- Chispe daqui! E não conte sobre isso para sua mãe!

As coisas não podiam ter dado mais certo.

A Magno's Pizzaria ficava a meio caminho da minha casa e assim que dobrei a esquina da
Gomes Brossard com a Teixeira Barreto, encontrei Sil já pronta para pegar uma carona.
Passei-lhe a caixa térmica com as pizzas e assim que ela a colocou nas costas, subindo na
garupa e se segurando a mim pelo meu torso, eu arranquei com a motoneta, exigindo tudo que
a máquina de cem cilindradas tinha a oferecer em potência.

Aquela seria a segunda vez que eu ia a campo sem meu traje de Pássaro Noturno, mas era a
primeira em que eu teria que atuar de cara limpa, frente a frente com os homens que
prestavam serviço a Edmundo Bispo. Eu nunca na minha vida havia estado num prédio tão
luxuoso como aquele, o que causou um certo tremor em meus joelhos logo que firmei os pés
no último degrau do lance de escadas em frente à porta de entrada. Sil usava um boné que
encobria seu rosto e eu havia lhe providenciado um colete vermelho que se assemelhava
muito ao uniforme que nós entregadores de pizza usávamos em serviço. A primeira dupla de
seguranças fez sombra sobre nossas cabeças, enquanto outros dois nos espiavam de cima da
guarita, com os cães. Um deles espalmou uma das mãos enormes, proibindo a nossa
passagem.

- Entrega de pizza para o décimo andar, chefia. - Falei, procurando botar uma segurança que
não havia em minha voz normalmente.

- Ninguém nos avisou dessa entrega. - Falou o maior deles, sujeito de cabeça raspada e porte
físico de Shaquille O'Neal. O segundo deles meteu a mão por dentro do paletó e por um
momento eu quase me esquivei, achando que viria uma pistola dali. Quando ele sacou
um walkie-talkie, respirei aliviado e olhei para Sil, que sentiu minha tensão. Uma breve
comunicação via rádio com a portaria foi o suficiente para que fossemos liberados.

- Podem entrar. Mantenham-se à direita até o balcão. - Soou a voz do sósia do Shaquille, que
abriu espaço para que entrássemos.

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A porta automática deslizou para o lado e nós dois entramos, seguindo as instruções. Sil
retirou a caixa das costas e já foi colocando sobre o balcão, enquanto uma dupla de
recepcionistas se aproximava.

- Isso aqui está virando uma bagunça! Agora pedem pizza e nem avisam a portaria! - Falou o
loiro de cabelos bem cortados e olhos encovados, ajeitando seu colete preto antes de discar
um número. Certamente estava confirmando o pedido para o décimo andar.

Naquele momento Antônio estava tranquilo em nosso esconderijo, diante do CAD,


observando todas as câmeras do sistema de segurança do edifício. Ele havia direcionado todas
as ligações do ramal dentro da sala do décimo andar para o celular Nokia que havia ganhado
de presente de aniversário do pai, e foi ele quem atendeu, quando o sujeito loiro ligou. O
outro recepcionista, um baixote de olhar ferino e um vasto cabelo crespo castanho escuro, por
alguma razão ficou a nos encarar ali atrás do balcão. Sil mascava um chiclete nervosamente,
vestindo um blusão e uma calça bem solta por baixo do colete vermelho. Eu segurava o
capacete da moto em mãos, ansioso para que os recepcionistas nos liberassem logo.

- Ok. Um de vocês pode subir até o décimo andar para a entrega. O outro fica esperando. -
Disse o loiro, colocando o fone de volta no gancho. – Alguém lá em cima vai esperar pelas
pizzas assim que descer do elevador. Siga até o final do corredor. Elevador de serviço, por
favor.

O homem nos indicou a passagem à direita do corredor, dez passos depois do balcão da
recepção, passando pelas poltronas da sala de espera. Eu apanhei a mochila térmica e comecei
a me dirigir até o elevador. Encenei:

- Me espera aqui, Catarina. Dois palitos eu desço.

Sil – ou "Catarina" - acenou positivamente e deu para ouvir, já da entrada do elevador,


quando ela perguntou sobre o banheiro ao de cabelos crespos no balcão.

- Segunda porta à esquerda. Banheiro dos empregados. Seja rápida. Visitantes não podem
ficar zanzando pelo hall do prédio.

Estávamos todos distantes agora e a comunicação passou a ser feita pelo rádio auricular, que
acionamos em seguida. Meu elevador chegou, e assim que entrei, apertei o número dez sem
movimentos bruscos, certo que os recepcionistas estariam de olho em mim pelos monitores
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das câmeras da recepção. Sil tinha que pegar o corredor à esquerda e seguir até o final dele,
encontrando as escadas de emergência. Ali, Antônio tinha cuidado para que nenhuma câmera
estivesse ativa naquele momento.

- Suba até o primeiro andar, Sil. Você vai encontrar um corredor vazio. Tire suas roupas civis
e deixe num canto. É hora de testarmos seu traje camuflado. - A voz de Antônio ecoava nos
ouvidos de todos, já que precisávamos manter o canal aberto. Eu estava subindo até o décimo
andar com as pizzas e deu para ouvir a voz esbaforida de Sil dizer, após subir um lance grande
de escadas:

- Se você continuar sussurrando assim no meu ouvido vou me desconcentrar, Junior!

Criou-se um clima estranho depois que Sil disse aquilo, mas apesar do silêncio de rádio
constrangedor, ela seguiu o plano como era esperado, chegando até o corredor vazio e
passando a usar o traje especial que tínhamos confeccionado no Sarcófago. A roupa fazia
parte de centenas de projetos que o CAD mantinha prontos para serem criados, e através de
um sistema elétrico externo, ele era capaz de projetar uma camuflagem em sua superfície,
deixando quem o usasse praticamente invisível a olho nu, a câmeras e a sensores de calor por
alguns minutos. Nosso objetivo estava guardado dentro da sala de servidores do décimo
quarto andar e Sil precisava chegar lá antes que seu traje voltasse a ficar visível e ela
começasse a ser detectada pelas câmeras ou pelos seguranças que faziam a ronda.

- Sil, você vai encontrar um elevador social ao final do corredor do primeiro andar. Assim que
chegar nele, você precisa acionar a camuflagem do traje. Não se esqueça de vestir o capuz.
Sua máscara está equipada com uma lente de visão noturna. Eu vou interferir nas lâmpadas do
corredor através do sistema computadorizado de iluminação do lugar por alguns segundos,
para distrair os guardas, e você vai conseguir passar por eles.

- Eu já sei, Junior. Você já me falou isso umas nove vezes hoje. - Sussurrou ela, sarcástica.

- O que os recepcionistas estão fazendo, Espião Negro? - Indaguei, já observando o mostrador


luminoso chegar ao décimo andar. Antônio tinha acesso a quase todo o prédio com as
câmeras hackeadas, sentado diante do CAD a comer salgadinho:

- Estão conversando de costas para os monitores. Não estão de olho nas câmeras ainda. Sejam
rápidos.

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Sil chegou ao décimo quarto andar no momento em que fingi estar perdido e caminhei
lentamente até o final do corredor do décimo, que estava deserto naquele instante. Ali era uma
área de escritórios e não havia ninguém trabalhando àquela hora da noite de um domingo.
Como tinha prometido, do subsolo de minha casa, Antônio cortou a luz do corredor onde Sil
estava por alguns instantes, o que alarmou os três seguranças que se revezavam em fazer a
guarda da sala dos servidores. A porta do elevador tinha se aberto um segundo antes e
enquanto os homens de terno começavam a acionar suas lanternas de bolso na escuridão,
intrigados, mirando-as em direção ao final do corredor, Sil prendeu a respiração, acionou suas
lentes noturnas pressionando um circuito sensível em sua têmpora esquerda e começou a se
esgueirar pelas paredes, passando invisível pelos guardas.

- Alô, portaria. As luzes apagaram no quatorze. Pode ser problema na caixa de força. - O
canal de Sil estava aberto, e a voz do segurança falando por seu walkie-talkie soou nítida para
nós.

Aquele alerta chamou a atenção dos dois recepcionistas, que deram uma olhada no monitor de
câmeras e constataram que o corredor citado estava escuro. Um deles já ia apanhar o walkie-
talkie para responder e assim que Sil entrou na sala que precisava invadir, as luzes voltaram a
acender. Os seguranças informaram que o problema tinha sido resolvido e voltaram para sua
ronda.

- Sil, agora você pode desativar sua camuflagem. Não há câmeras no interior do servidor. O
terminal que procuramos deve ser o único que possui um monitor conectado a ele, todos os
outros só armazenam e processam dados. Você está numa seção de backup...

- Me poupe dos termos técnicos nerds, Junior. Eu já achei o terminal. - Disse ela com voz
sussurrante, após andar entre duas fileiras de mainframes que faziam sons mecânicos e
iluminavam o ambiente escuro com seus leds vermelhos e azuis. - A tela está pedindo uma
senha, o que faço agora?

- Na parte de trás do cinto de seu traje está guardada uma unidade de armazenamento de uns
dez centímetros de comprimento. Tem uma entrada USB nela, eu te mostrei como funciona.
Espete a entrada na base do console do servidor.

- Pronto. E agora?

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- A unidade está programada para rodar meu algoritmo de descriptografia. Deve demorar
alguns minutos até que ele identifique a senha. - Respondeu Antônio, deixando vazar o som
de sua mastigação num salgadinho.

- Já estou a postos. - A voz de Thunderwing soou. - Estou pegando o jeito desse negócio de
pilotar a ASA. Consegui pousar sem problemas no heliporto da Xeque-Mate. Aqui em cima
está tudo tranquilo. Nenhum sinal de guardas.

- Fique em posição. O telhado vai ser a rota de fuga da Sil. Assim que ela chegar aí, você deve
alçar voo imediatamente. - Falei em voz baixa, embora estivesse sozinho ali.

- Por que eu sou "Sil" e vocês ficam se chamando por seus codinomes idiotas?

- Esqueceu que você nem escolheu seu codinome ainda? Agradeça por não estarmos
chamando você de Catarina! - Respondeu Antônio irônico, ainda mastigando.

- Quem te chamou de Catarina foi o Henrique. Aliás, seria um ótimo codinome! - Observou
Ricardo, ao que foi interrompido por Silmara:

- Calem a boca, idiotas! O bagulho descobriu a senha. Eu estou dentro. E agora?

- Você vai abrir o painel do servidor com as ferramentas em seu cinto, como a instruí. Pegue o
disco rígido vazio que você está carregando e plugue ele com o cabo sata no computador.
Você memorizou a sequência de comandos para clonar o HD do servidor?

- Sim, Junior. Mas eu quero que você sussurre os comandos em meu ouvidinho assim mesmo,
para você não se sentir diminuído por eu ser tão inteligente!

Para sua primeira missão em campo, Silmara estava se saindo bem demais. Apesar do
sarcasmo com que tratava os meninos quase que o tempo todo, ela era astuta o bastante para
cumprir a difícil missão que havia aceitado executar com afinco. Sem grandes problemas, ela
começou a clonar os dados contidos naquela unidade fora da rede e cujos segredos não
podiam ser revelados pelo vírus que Espião Negro havia inoculado no sistema há algumas
semanas. Algo estava para mudar, no entanto:

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- Os recepcionistas estão um pouco impacientes lá embaixo. Eles estão de olho nas câmeras.
Devem estar vendo você andando de um lado para outro nesse corredor, Pássaro Noturno.
Acho melhor você largar as pizzas aí e descer.

Eu já ia responder Antônio, quando a voz dele soou novamente em nosso rádio:

- Essa não! Os seguranças do corredor estão indo em direção à sala do servidor! Eles podem
ter ouvido a voz da Sil ou algum barulho!

- Como? Eu estou sussurrando aqui e eu não acabei ainda. A clonagem ainda está em 75%! -
Disse Sil.

- Apague as luzes novamente, Espião. Faça agora!

Assim que dei a ordem, Antônio mais uma vez fez as luzes piscarem no corredor, o que não
afetava diretamente os servidores no interior da sala devido ao nobreak de emergência em que
estavam ligados. Pelo modo noturno das câmeras de segurança, nosso amigo no esconderijo
era o único que podia ver onde os seguranças estavam naquele momento e um novo silêncio
de rádio tornou aquela invasão ainda mais tensa. Meus joelhos tremiam pra valer enquanto eu
deixava as pizzas dentro de uma sala do décimo andar e começava a caminhar de volta ao
elevador. Meu coração disparava no peito, com a péssima sensação de que tudo tinha dado
errado. E se os seguranças invadiram a sala e capturaram a Sil? E se eles chamarem os
seguranças dos outros andares? E se chamarem a Polícia?

- Consegui. A clonagem do HD está completa e eu estou dando o fora dessa sala pelos fundos.
Vou subir a escadaria até o telhado. Liga logo o motor desse avião!

Todos nós voltamos a respirar naquele momento e tão logo Antônio acionou as luzes do
corredor do quatorze, para surpresa dos guardas, eu atingi o andar térreo do prédio, trazendo
nas costas a mochila térmica e me dirigindo aos caras no balcão:

- Aí, chefia! Não tinha ninguém lá em cima para receber as pizzas. Larguei numa sala
qualquer. Alguém precisa pagar o serviço. - E esfreguei os dedos polegar e médio da mão
direita em direção a eles.

- Como não tinha ninguém lá? Acabamos de confirmar o pedido das pizzas! - Disse o baixote.

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Dei de ombros.

- O corredor está deserto. Eu preciso receber. Estou atrasado para uma nova entrega. - E dei
dois tapinhas com o indicador sobre o mostrador de meu relógio de pulso.

Com olhar arrogante, o loiro pareceu abrir uma gaveta atrás do balcão e me deu duas notas de
cem Reais, indicando com uma das mãos que eu saísse de lá imediatamente. Eu já caminhava
até a porta automática, carregando a caixa nas costas e o capacete nas mãos, quando a voz do
baixote soou mais uma vez:

- Ei! Não está esquecendo de nada?

Eu me virei para ele e fiz uma expressão de dúvida.

- Sua amiga. Ela ainda não voltou do banheiro. Não vai esperar por ela?

- Quem? A Catarina? Ah, ela tem prisão de ventre. Vai demorar para sair do banheiro. Vou
esperar por ela na moto.

Em seguida eu saí do prédio e aproveitando que não estavam de olho em mim, caminhei até a
motoneta da pizzaria, acionei seu motor e rumei de volta para o Bairro do Encanto. O que será
que eles iam fazer quando descobrissem que a "Catarina" jamais tinha entrado no banheiro
dos empregados?

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CAPÍTULO 3 – CERQUEM O BISPO!

UM TELEFONE TOCOU na luxuosa sala de Edmundo Bispo naquela manhã de segunda-


feira e do alto da sua torre brilhante ele atendeu prontamente:

- Aconteceu de novo. Fomos atacados por aqueles moleques mais uma vez! – Seu tom era
áspero. – Eles tiveram a ousadia de invadir o meu prédio fingindo ser entregadores de pizza.

- O que foi destruído dessa vez, chefe? – A outra voz era grave e melodiosa. Não pertencia a
nenhum dos capangas tradicionais de Bispo.

- Os recepcionistas disseram que eram dois, um rapaz alto e uma garota de mais ou menos
1,73 de altura. Entraram, deixaram as pizzas e depois foram embora. Aparentemente nada foi
destruído ou roubado. Os seguranças do décimo quarto andar informaram que as luzes se
apagaram brevemente por duas vezes. Já pedi para a equipe de TI verificar se algo foi
apagado ou surrupiado dos servidores.

- Isso é muito sério. – Rosnou o de voz melódica. – Primeiro os três ataques aos galpões e os
milhões de Reais de prejuízo, agora um cyber-ataque. Precisamos descobrir logo quem são
eles e o que querem.

- O que querem, Hudson? – Enfim tínhamos um nome! – Eles querem me destruir! Acione os
demais membros imediatamente. Comece a caçar esses malditos! Eu quero cada um deles
mortos o mais rápido possível!

- Farei isso agora mesmo, chefe. Melhor desligar o telefone. Não temos certeza se a linha foi
grampeada de novo.

Depois daquela gravação da conversa entre um irritado Edmundo Bispo e o tal "Hudson", nós
perdemos nossa conexão com os servidores da Xeque-Mate mais uma vez, porém, já era tarde
para as medidas protetivas do facínora. Com a cópia de seu disco rígido secreto em mãos, nós
tínhamos Bispo exatamente onde queríamos e agora sabíamos cada um de seus segredos mais
imundos.

Eu cheguei mais cedo da escola naquela tarde e Ricardo me acompanhou até o endereço onde
uma festa estava montada desde a manhã para recepcionar o governador do estado Geraldo
Wasserman, organizada pela trupe abjeta do partido PSN de São Francisco d'Oeste. Próximo
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da chegada do governador à cidade, a praça Álvares Fonseca estava apinhada de gente e para
onde se olhava, via-se manifestantes a favor das ideias do PSN, usando camisetas amarelas,
faixas, bandanas e muitos balões coloridos. Mais além, um laço verde gigantesco bloqueava a
entrada do novíssimo Elevado Intermunicipal, que seria inaugurado em conjunto por
Wasserman e a prefeita Renata Leme, e o povo empolgado aguardava ansioso pelos sorteios
de prêmios que aconteceria em paralelo a inauguração da ponte.

- Como está a pataquada da inauguração do Elevado, pessoal? – Indagou-nos Antônio pelo


rádio auricular, no esconderijo em companhia de Sil, que comia um cachorro-quente a seu
lado.

- Já vi circos menos animados! – Desdenhou Ricardo, de olho no alto do palanque de estrutura


coberta de mais de dez metros a nossa frente.

Uma banda muito talentosa tocava um repertório variado que ia de jazz a MPB no palco,
enquanto a multidão aguardava a chegada dos representantes do governo. O barulho era tão
alto, que por pouco a voz de Antônio não foi abafada completamente:

- Encontrei boas referências sobre um jornalista chamado Alexsandro Batista na internet. O


sujeito não é de fazer grandes amizades no meio profissional, mas é muito competente e
imparcial. Trabalha para A Gazeta há 10 anos, desde que se mudou para São Francisco. É um
rival ferrenho da família Santinni, e eles já bateram de frente algumas vezes em convenções
de jornalismo. Ele pode ser o cara certo para vazarmos o material que conseguimos ontem na
Xeque-Mate.

- Numa cidade tão corrupta temos que tomar cuidado. Investigue mais sobre esse tal
Alexsandro. Se ele for o cara certo, vai nos ajudar a desmascarar essa farsa de bom
samaritano do Bispo.

Assim que eu disse aquilo em voz baixa, evitando ser ouvido para não ser linchado pela turba
de apoiadores do PSN e de Bispo a meu redor, a banda cessou os acordes no palco e a própria
Renata Leme surgiu de microfone em mãos para anunciar a presença do governador
Wasserman. Uma explosão de aplausos e gritos efusivos rompeu aquele instante e por algum
tempo nos vimos em meio a uma plateia apaixonada e emotiva que adorava seus governantes.
Eu e Ricardo fomos empurrados e acotovelados pela multidão adoradora, enquanto lá em
cima do palco o homem alto, de nariz tão fino quanto grande, cabelos ralos no alto da cabeça
e usando um par de óculos retangulares começou um discurso enfadonho, do tipo que faria
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um insone dormir. Foram dez minutos insuportáveis de demagogia rasa em forma de um
discurso pré-definido para agradar as massas, e depois da rasgação de seda entre Wasserman e
Leme no alto da estrutura metálica gigante montada apenas para aquele momento de
autopromoção, os dois enfim chamaram ao palco - segundo palavras deles - o grande
benfeitor da cidade, o homem que tinha tirado sozinho São Francisco d'Oeste da pré-história
tecnológica para a modernidade. O grande Edmundo Bispo.

- Não dá pra acreditar nessa palhaçada! – Resmungou Ricardo, ao que ele notou ao fundo do
palco, além da fileira de homens que faziam a segurança das figuras públicas lá em cima e dos
puxa-sacos de praxe, uma sombra que parecia se esgueirar para não ser vista. Ele o apontou
para mim discretamente e então acionei o rádio:

- Espião Negro, na escuta? Você ganha um doce se adivinhar quem também está no palco, se
esgueirando feito uma hiena atrás da presa.

- Quem? O cavalo do Rei? – Indagou ele.

- Estou te devendo um doce.

- Mais cedo pesquisei o nome "Hudson" no CAD e usei um algoritmo de cruzamento de


dados, relacionando-o aos nomes de Bispo, Maranelli e Belo Falcão. O computador me deu o
nome de Hudson Porto. Homem negro, 1,89 de altura, noventa quilos, vinte e cinco anos e
várias passagens na Polícia. Ficha extensa. Vai de tráfico de LSD até latrocínio.

- Parece que achamos nosso cavalo. – Comentou Ricardo, já ganhando espaço na multidão e
se aproximando mais do palco. Seguindo meu amigo, naquele momento meus pensamentos se
voltaram ao instante em que conectamos o disco rígido clonado ao CAD e começamos a
desvendar os planos diabólicos que o aclamado Edmundo Bispo tinha para a cidade de São
Francisco e seus habitantes.

DOMINGO – 23h34

Após a bem-sucedida missão no prédio da Xeque-Mate, nós quatro voltamos a nos reunir em
nosso esconderijo. Eu ainda tive que devolver a motoneta à pizzaria e cheguei a fazer três
entregas na vizinhança de bicicleta. Reginaldo estava bem, e como esperado, ele não se
lembrava o que tinha acontecido. Todos concordaram que ele tinha sofrido um mal súbito e
Magno lhe deu o resto da noite de folga, após encontrá-lo inconsciente no banheiro. Cheguei
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em casa por volta das 23h34 e trouxe uma pizza de escarola que foi muito bem-vinda pelos
meus amigos.

Antônio já carregava os dados do HD clonado na tela do CAD sem nenhuma criptografia e a


primeira pasta de arquivos que abrimos tinha o nome de "Projeto Túneis". Um mapa
detalhado desenhado num software de planta 3D mostrava uma extensa conexão de túneis que
interligava vários pontos da cidade à linha central por onde o novo metrô passaria. As
escavações para a construção da estação e da linha metropolitana que ia até o centro de São
Paulo já estavam em estágio avançado no subsolo de São Francisco e não era raro se ouvir
explosões e tremores nas vias principais ao longo do horário comercial, em decorrência das
obras. Máquinas de escavação e perfuração, caminhões basculantes, bem como homens
devidamente trajados de macacões, eram vistos o tempo todo adentrando os túneis
subterrâneos que começavam numa das travessas da Avenida Senador Barbosa Bulhões. Todo
mundo já estava até acostumado àquela movimentação desde que as primeiras obras tiveram
início no mês de setembro passado.

- Aqui diz que a infraestrutura técnica da obra está sendo coordenada pela Castle Industrial,
propriedade do papai de nosso querido amiguinho Carlos Eduardo Castellini Junior. –
Mencionou Antônio, ao ler um trecho demarcado no mapa 3D. Sil deu um risinho irônico ao
ouvir o nome "Junior", mas não caçoou Antônio novamente.

- Ao que parece, a construção da linha do metrô é só um pretexto para que a Corporação possa
transitar livremente por debaixo da cidade, sem a interrupção de nenhuma autoridade, longe
dos olhos do público. – Comentou Ricardo.

- Se essa teia de túneis começar a funcionar, o transporte de cargas ilegais vai ser muito mais
eficaz e vai ganhar mais velocidade e precisão do que transportar tudo por caminhões e trens
como acontece atualmente. – Comentei. – A rede de túneis liga o subsolo da torre da Xeque-
Mate à Castle Industrial na Avenida Padre Manoel Miranda, ao Complexo Sônia Ubiratan da
Rua Piranambá e a mais três endereços, um deles no subúrbio perto da Comunidade de Boa
Vista, outro perto do Cassino Santisteban na região norte e... do outro lado da Avenida
Princesa Isabel...

A Avenida Princesa Isabel cruzava a Senador Barbosa Bulhões, mas esse não foi o principal
motivo que alarmou Silmara naquele momento. O ponto específico onde ficaria uma das
saídas dos túneis subterrâneos era justamente sobre o conjunto habitacional onde ela morava,
e da qual tinha sido expulsa há algum tempo.
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- A construção do estacionamento grã-fino também é uma fachada. Eles vão construir uma
saída dos túneis em um local movimentado por veículos para facilitar a entrada e saída das
cargas de drogas, armas e dinheiro lavado. – Silmara entristeceu-se mais uma vez, lembrando
da forma como tinha sido escorraçada da única casa que conhecera desde a infância. Sua
adesão a nossa causa lhe fazia cada vez mais sentido agora.

SEGUNDA-FEIRA – 0h46

A pasta "Bloco Petrolífero" nos chocou ainda mais que a construção dos túneis secretos na
linha do metrô e os arquivos contidos ali dentro detalhavam planos para a devastação de uma
área protegida ecologicamente para a exploração de petróleo na região. O projeto tinha o aval
e assinatura de Vicenzo Mateo Santinni, o avô de Manoela e Nicola - os donos da imprensa
são-franciscana – e previa o início das obras já para o mês de junho.

- A área de preservação fica a alguns quilômetros do sítio de Sebá, na Alameda dos Cajarás.
Nós dois vimos uma equipe demarcando a floresta próximo do sítio no final de março. Ele me
pediu ajuda para descobrir o que aqueles caras queriam lá, e agora nós sabemos. Há petróleo
no subsolo de São Francisco d'Oeste, por isso os Santinni se aliaram a Bispo e a seus recursos
quase infinitos. Eles querem faturar alto com a exploração do óleo, nem que para isso tenham
que assolar toda uma área florestal protegida por lei. – Todos estavam horrorizados com a
simples menção àquele fato medonho, e foi de Ricardo a ideia:

- Precisamos atrasar os planos desses caras. Sebá pode nos ajudar a conscientizar o povo que
vive naquela região a reagir. Nós vamos dar cobertura.

SEGUNDA-FEIRA – 2h21

Uma pasta sem nome continha uma centena de fotos em alta resolução da construção do que
pareciam ser duas termelétricas em território são-franciscano. As fotos tinham sido tiradas
desde a fase de marcação dos terrenos onde as bases seriam construídas até seus estágios mais
recentes. Uma das usinas ficava localizada no Bairro dos Laranjais, próximo a uma das
comunidades mais carentes da cidade – a Boa Vista - e se ocultava em uma espécie de vale,
cujos arredores estavam sendo fortemente protegidos de olhares curiosos. A outra termelétrica
estava sendo construída, em estágio de finalização, no Bairro das Oliveiras, local onde ficava
o ferro-velho do seu Juca, que tínhamos visitado ano passado.

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- Caras... Isso é pior do que pensávamos! – Havia terror nos olhos de Antônio e quando ele
ampliou a próxima imagem na tela de cristal, todos nós ficamos boquiabertas com a
esquematização de um plano maligno para colapsar as principais redes hidrelétricas do Brasil
– incluindo Itaipu, São Luiz do Tapajós e Jirau, entre outras – e tornar metade do país
dependente da energia gerada por suas próprias termelétricas. – Além das duas usinas em São
Francisco, esse megalomaníaco está construindo outra no território de Tocantins. Tem
documentos aqui que firmam parceria entre Bispo e outros empresários para a aquisição de
mais três termelétricas desativadas no Brasil, num total de seis usinas. Tem arquivos com data
de cinco anos atrás, muito antes de nós sequer imaginarmos que a Corporação existia. Isso é
terrível!

- São Francisco d'Oeste não é nem de longe o foco desse louco. Ele quer o Brasil e o mundo!
– Abismou-se Silmara, passando as mãos nos cabelos castanhos e tirando-os do rosto
estarrecido.

- O plano dele é mergulhar o Brasil em um apagão de proporções gigantescas e em seguida


oferecer seus serviços ao Governo Federal, posando de herói. Até lá, com o aval de Renata
Leme e todos os corruptos que comandam a cidade, São Francisco d'Oeste já seria um modelo
de autossustentabilidade energética à base da queima de gás natural ou petróleo, e Bispo
conseguiria vender facilmente seu projeto para outros estados, usando nossa cidade
como case de sucesso. – Elucubrou Ricardo, mostrando tensão em seu semblante.

- Com uma negociação dessas ele e a Corporação faturariam milhões, talvez bilhões. Seria o
maior investimento da história! – Comentei, igualmente assustado com as proporções dos
planos de Bispo.

- À curto prazo não parece haver tantos danos ao meio ambiente o funcionamento dessas
termelétricas, mas à longo prazo os efeitos podem ser devastadores para a natureza. O despejo
dos dejetos superaquecidos nos rios que banham a cidade trariam risco aos peixes, a queima
do combustível e a liberação de gases tóxicos elevaria a temperatura da região, além de
prejudicar a atmosfera. Sem falar no aumento do custo da energia térmica para a população,
que costuma ser uma das mais caras do mundo. Não é possível que nenhum dos membros da
Corporação tenha se oposto a um plano devastador como esse! – Revoltou-se Antônio, ao que
respondi:

- O que importa a essa gente é o lucro, Antônio. Eles não se importam com as vidas inocentes
que vão desgraçar com suas maquinações. Nós quatro precisamos impedir o avanço dessa
43
organização maldita o quanto antes. Precisamos salvar nossa cidade e o país deles, antes que
nós mesmos sejamos liquidados.

De volta ao palco da inauguração do Elevado, Bispo tomou o microfone naquele momento, e


a voz grave e imponente que ouvimos na gravação em que ele manda seu capanga destruir a
mim e a meus amigos deu lugar a um tom suave, quase doce, de um homem contido e
ponderado.

- Em primeiro lugar quero agradecer o apoio da população dessa terra linda que é São
Francisco d'Oeste e pela qual eu acordo todas as manhãs para fazer o meu máximo, dar o
melhor de mim para melhorar sua condição de vida. Cada projeto que assino em minha
empresa, com o aval aqui de nosso excelentíssimo governador e de nossa digníssima prefeita
– E ele tocou o ombro de ambos com a mão livre – é para proporcionar um futuro melhor a
vocês, que representam aqui cada trabalhador guerreiro que levanta cedo todos os dias para
garantir seu sustento, com esforço, com custo. Eu não sou nada além de um cidadão são-
franciscano como todos vocês. Amo essa cidade como qualquer um aqui reunido e é com
muita honra que o grupo empresarial Xeque-Mate entrega hoje essa maravilha de construção
que é o Elevado Intermunicipal Alceu Franco a todos vocês.

Os aplausos e urros ensurdeceram a mim e a Ricardo. Nós dois estávamos bem lá na frente da
multidão naquele momento, a alguns metros do palco. Bispo sorria de forma cínica, abraçado
por Wasserman, Leme, Giácomo e Marco Mateo, ambos pai e irmão de Manoela Santinni
respectivamente, os dois deputados estaduais que tinham vindo a São Francisco para a
inauguração do Elevado. Lá de baixo, eu olhei bem nos olhos frios de Edmundo e por um
instante efêmero ele me notou a encará-lo. Fitando-o, eu fiz uma promessa a mim mesmo. Eu
vou derrubar você da sua torre, calhorda. Vou acabar com seus planos repugnantes custe o
que custar.

No final da primeira semana de junho, como de costume, Alex Batista chegou à sua sala da
redação de A Gazeta, no alto do oitavo andar do ordinário edifício Marina da Glória. Trazia
consigo um copo grande de café amargo na mão esquerda e a alça da sua bolsa transversal de
couro marrom fazia uma curva em sua barriga levemente avantajada. Os cabelos crespos
pareciam sempre desarrumados na cabeça, o que denotava uma falta de cuidado quase que
44
proposital com sua aparência. Quando fechou a porta atrás de si, notou a janela da sala
entreaberta, enquanto uma brisa forte fazia esvoaçar a cortina veneziana amarelada pelo
tempo. Chegou a tentar lembrar se a teria trancado no final do expediente anterior, mas parou
de pensar naquilo quando percebeu uma pasta preta de papelão sobre sua escrivaninha
bagunçada, com um bilhete manuscrito preso endereçado a ele. Leia os arquivos com atenção
e faça o que achar mais justo com o material. Um amigo. PN.

Vazar cópias de parte dos arquivos que tínhamos encontrado no disco rígido roubado da
Xeque-Mate à imprensa foi apenas o começo de uma operação que começamos naquele mês
contra a Corporação. Enquanto Alex Batista recebia páginas e mais páginas detalhando as
intenções criminosas do, até então, bom samaritano Edmundo Bispo, nós começamos a nos
concentrar no problema mais urgente que era a destruição da área florestal ao sul de São
Francisco para o início da exploração de petróleo.

Como estava previsto nos planos de Bispo, uma equipe de quase cinquenta homens ia
começar a devastar a região ecológica por dentro da mata, primeiro causando incêndios
criminosos e depois limpando tudo com tratores e caminhões. Em uma ligação anônima,
tentamos alertar a Polícia, mas fomos sumariamente ignorados. Em um período de cinco dias
de vigilância na mata, enquanto soldados milicianos e técnicos de exploração começavam a
armar seus equipamentos no terreno arborizado, nenhum policial sequer tinha dado as caras.

O próximo passo foi tentar entrar em contato via e-mail, depois por telefone com o Ministério
do Meio Ambiente, numa tentativa desesperada de frear as ações criminosas que poriam fim
não só a vegetação rara ali encontrada, como também exterminariam dezenas de espécies da
fauna local. Mais uma vez não fomos levados à sério por falta de provas, e a pessoa que nos
atendeu agendou a visita ao local de um agente federal para dali a uma semana. Uma semana
seria tarde demais para aquela área de proteção ambiental e então nós decidimos agir por
conta própria.

O fogo começou a alastrar a mata de maneira quase incontrolável e Sebá liderou um grupo de
aproximadamente vinte pessoas, todas moradoras locais, para protestar contra o
desmatamento criminoso. Ricardo o tinha alertado dias antes sobre as pretensões vilanescas
daquelas equipes que vinham demarcando e explorando a floresta há meses, e ele não titubeou
em tentar impedi-los. Era começo de noite quando as chamas começaram a se aproximar
perigosamente de Sebá e dos manifestantes, e a primeira tropa de Milícia não estava a fim de
deixar que ninguém impedisse os técnicos de trabalhar. Empunhando armas de grosso calibre,
um grupo de quase vinte soldados começou a disparar contra as pessoas, enquanto os motores
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dos tratores eram acionados e as máquinas gigantes começavam a fazer menção de que iriam
atropelar o que estivesse na frente. O estampido dos tiros ecoava na floresta. O fogo
começava a queimar árvores, plantas e mata seca, se espalhando rapidamente. Precisávamos
agir.

O condutor do trator que ia mais à frente ouviu de repente um solavanco no teto de sua
máquina pesada e antes que ele pudesse entender o que estava acontecendo, Thunderwing
invadiu sua cabine e o atirou para fora com um empurrão de ombro. O homem barbudo
estatelou-se no chão, e de repente, objetos metálicos começaram a atingir os soldados de
roupas camufladas do exército, chamando-lhes a atenção. No breu quase total, eles não
sabiam de onde vinha o ataque e alguns deles começaram a disparar para os lados
perigosamente, procurando atingir seus alvos invisíveis. Sebá e os moradores da região
corriam sérios riscos de morte ali e repentinamente uma voz feminina firme mandou que eles
todos se abaixassem e começassem a rastejar para longe dali.

- Saiam daqui. Rastejem até o rio, procurem uma área segura. Seu trabalho aqui acabou.

Sebá estava deitado no chão, protegendo a cabeça de um jovem morador que não devia ter
mais do que vinte anos de idade, quando ele viu um fantasma surgir em sua frente. A silhueta
feminina de uma menina de 1,73 de altura começou a se materializar em sua frente e em seu
rosto coberto brilhava um par de olhos brancos que ele encarou assustado.

- Q-Quem é você?

- Eu sou Ferina. Agora se manda daqui!

No comando daquelas pessoas que tentavam lutar para salvar o habitat onde moravam, Sebá
não perdeu mais tempo e começou a conduzir todos em direção ao rio, ainda ouvindo o zunir
das balas cortando o ar. Ferina voltou a desaparecer no ar e enquanto isso, rajadas cada vez
mais violentas eram ouvidas no coração da floresta.

- Acabem com eles! MATEM TODOS!

Os gritos soaram da garganta de um sujeito velho, bigode grisalho, que parecia comandar a
Milícia. Nosso ataque surpresa tinha derrubado nove de seus soldados e ele nem sequer tinha
nos avistado ainda, ali, sempre camuflados nas sombras da mata. Esperto, o velho mandou
que os holofotes dos tratores e dos caminhões fossem acionados imediatamente, o que
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dificultou um pouco mais nossa furtividade. Do alto de uma árvore, eu atirei duas boleadeiras
que enredaram o chefe do bando lá embaixo, derrubando-o feito um saco de batatas no chão.
Dois soldados viram de onde partiram as armadilhas e não hesitaram um só segundo em
mandar chumbo em minha direção.

- Tem um deles ali na árvore. FOGO!

Senti as balas que não esfacelaram o tronco da árvore ricochetearem em meu torso protegido e
o impacto me derrubou. Eu tive segundos para apanhar a pistola do arpéu no coldre em minha
perna esquerda e disparar o gancho. A corda enrolou-se no galho de uma sumaúma frondosa a
cinco metros, e o movimento de pêndulo enquanto eu caía, agarrado ao arpéu, permitiu que eu
nocauteasse com uma joelhada um dos soldados que tinha me acertado. Desequilibrado pela
força do impacto contra o rosto do homem, eu acabei soltando a corda e rolei no chão. Um
holofote estava mirado bem em meu rosto e aquela foi a primeira vez que eles conseguiram
enxergar um de nós.

- Mas que diabos é isso?

Havia um misto de medo e apreensão no rosto pintado com tinta verde escuro do soldado ao
me ver ali agachado, com a capa cobrindo meus ombros e as lentes brancas da máscara a
refletirem a luz do farol. Enquanto os parceiros dele se aproximavam da minha posição, já
engatilhando suas M-16 e seus 762, eu arremessei um de meus discos contra o homem,
aproveitando sua hesitação momentânea. Aquilo foi suficiente para arrancar o fuzil de suas
mãos. A munição das armas começou a rimbombar ao meu redor. Em busca de proteção, rolei
meu corpo para debaixo do trator cujo condutor Thunderwing tinha abatido. Bombas de
fumaça começaram a ser disparadas da mata adjacente, e em meio ao caos instaurado,
desesperados por perderem completamente a visibilidade que somente os holofotes estavam
lhe dando, os milicianos começaram a atirar a esmo.

- Espião Negro e Ferina! Agora!

Ao meu comando via rádio, os dois pularam para dentro da nuvem de fumaça que eles tinham
causado e deram início a um ataque arrasador contra os soldados. Enxergando tudo como se
fosse dia através das lentes infravermelhas de seus trajes, os dois ganharam larga vantagem
em combate. Espião girava seu cajado retrátil atingindo pontos sensíveis na musculatura de
seus alvos, usando as técnicas de Fei Hok Phai no uso de bastão que vinha aprendendo. As
armas cuspiam fogo para todos os lados, mas antes que pudessem atingi-lo, ele desviava sua
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mira com extrema agilidade, tirando de ação seus adversários com golpes precisos. Perto dali,
Ferina estava colocando à prova os dois socos ingleses de choque que ela tinha ganhado para
compor seu traje de super-heroína e não estava dando qualquer chance para que os soldados
contra-atacassem. Movida unicamente pela adrenalina do momento e pela fúria violenta que
ardia em seu peito, a menina aplicava socos violentos nos rivais, atingindo o que visse
primeiro. Ela não tinha sido treinada em nenhuma arte marcial, mas sabia se virar bem em
briga de rua, valendo-se de seu corpo esguio e da força extra que as manoplas entre seus
dedos lhe proporcionavam. Assim como seu traje camuflado, os socos ingleses faziam parte
de projetos bélicos do CAD e liberavam eletricidade quando atingiam alvos físicos. O campo
elétrico funcionava de várias maneiras ao entrar em contato com um ser humano, podendo
causar paralisia momentânea, queimaduras de primeiro grau ou só atordoamento. Dependia da
força com que Silmara iria bater.

As garras metálicas do bracelete de Thunderwing não pararam de trabalhar enquanto ele as


usava para atingir o para-brisa dos tratores e dos caminhões, obrigando seus manobristas a
tirá-los do curso. Assim que ele tirava o motorista de sua cabine, Thunder usava uma carga
controlada de explosivo para destruir o veículo, inutilizando-o. Ricardo foi o que encontrou
menos resistência em campo, e quando ele voltou-se para a direção onde estávamos, ainda a
abater os soldados, ele já tinha parado todas as máquinas que iriam ser usadas para varrer a
floresta.

Os tiros ainda eram ouvidos quando ele girou uma pulseira em seu bracelete direito e
posicionou o cano duplo dos disparadores de projétil que ele tinha adicionado recentemente a
seu arsenal. Thunder correu pelo chão irregular da mata, com a capa preta e vermelha a
esvoaçar nas costas, e assim que ele se aproximou o suficiente, ele atirou contra os holofotes
que miravam em nós, deixando a escuridão nos engolfar mais uma vez. A luz do fogo que
lambia a floresta a dez metros dali ainda clareava alguns pontos de nosso campo de ação, mas
não demorou até que nós tivéssemos nocauteado toda a equipe de exploração.

Quando a equipe do Corpo de Bombeiros chegou ao local, pelo menos um terço de extensão
da área preservada já tinha sido consumida pelo fogo, o que era uma perda lastimável, mas
não tão grande quanto seria se nós não tivéssemos feito nada. Muitos dos homens que faziam
parte da equipe de exploração tinham conseguido escapar pelo meio da mata à noite, porém, a
maioria tinha sido deixada amarrada de presente para a equipe da policial Regiane Loyola,
que mais uma vez foi chamada especialmente para prender os criminosos. Nós alçamos voo a
bordo da ASA meia hora antes de Regiane encontrar um bilhete manuscrito preso ao bolso da

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farda do chefe de bigode grisalho, que dizia: Você está cercada de corruptos, oficial Loyola,
mas nós acreditamos em seu senso de justiça. Não nos decepcione. PN.

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CAPÍTULO 4 – REI EM XEQUE

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A EDIÇÃO ESPECIAL de domingo do jornal A Gazeta daquele primeiro de julho foi
histórica e pela primeira vez em muitos anos o número de exemplares vendidos superou aos
dos concorrentes A Hora do Oeste e Correio d'Oeste. Com letras garrafais vermelhas e uma
foto do magnata Edmundo Bispo ao lado, a manchete de capa intitulada A QUEDA DE UM
MITO chamava a atenção de quem passava pelas bancas. A matéria assinada por Alex Batista
e autorizada por seu editor-chefe Afonso Pacheco, deixava pouco a se especular sobre a falta
de caráter do milionário empresário, detalhando em quase quatro páginas todos os pormenores
de seu plano megalomaníaco de atingir as fontes elétricas do país e de começar a exploração
de petróleo em São Francisco d'Oeste às custas de uma área de preservação ecológica. Com
imagens de cópias de documentos assinados por ele, o furo jornalístico ainda expunha o velho
Vicenzo Mateo, um dos patriarcas da principal família da cidade, como o grande cúmplice de
Bispo por trás das queimadas criminosas na floresta da Alameda dos Cajarás, ocorridas no
último mês. O velho Mateo era um notório Engenheiro de Petróleo, e tinha continuado o
trabalho de seu pai, um dos fundadores da cidade, à frente da exploração do óleo no país. A
matéria não deixava qualquer lacuna mal preenchida e entregava sem grandes firulas textuais
a culpa de Bispo e seus asseclas, embora aparentemente, aquilo não fosse suficiente.

- Mas que grande mentira desse jornaleco de quinta categoria! – Esbravejou Otoniel Vieira,
um cidadão pai de família, ao atirar o jornal no chão e cuspir sobre ele.

- A quem eles acham que estão enganando com esse monte de provas forjadas contra um
homem exemplar como Edmundo Bispo? – Disse Dolores Campos, uma senhora meio
gorducha que carregava uma sacola de supermercado da Imporius em mãos.

Grande parte dos cidadãos são-franciscanos duvidavam da veracidade da matéria muito bem
conduzida por Alex Batista, acusando o jornalista de ser aproveitador e conspiracionista. A
redação de A Gazeta sofreu represálias na madrugada de domingo para segunda-feira e um
coquetel Molotov foi atirado contra uma das vidraças do primeiro andar do prédio meio
decadente. Batista, Pacheco e até mesmo a fotógrafa do jornal Renata Costa, autora das
imagens de toda a matéria, precisaram de escolta policial nas primeiras semanas após o
lançamento da matéria e num repente, a cidade tornou-se um caldeirão pronto a explodir. Ao
vazar aquele material para Batista, ao menos nós tínhamos despertado aquela pulguinha
adormecida atrás da orelha dos adoradores míopes de Bispo e toda a corja política do PSN. Já
era um começo.

Enquanto o Tribunal de Contas, o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério de Minas e


Energia do país começavam a se sentir incomodados com aquele escândalo, mandando seus
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agentes para São Francisco para no mínimo investigar as denúncias reveladas pela Gazeta, o
grupo midiático controlado pelos Santinni continuava fazendo silêncio absoluto sobre o
esqueleto que começava a surgir em seu armário, publicando apenas matérias sobre
floriculturas e jardinagem para desviar o assunto.

Evitando contatos muito notórios com a população, Edmundo Bispo enclausurou-se no alto de
sua torre de vidro, enquanto sua equipe de relações públicas emitia notas rasas e pouco
convincentes de que seus advogados já estavam tomando as medidas cabíveis contra A
Gazeta. Naquele mês, as investigações às atividades comerciais do grupo empresarial Xeque-
Mate começaram a se aprofundar pela Polícia Federal, e Bispo foi obrigado a contratar um
grande escritório de advocacia para tentar abafar o escarcéu em que estava metido. Um
verdadeiro batalhão de engravatados da CASAVETTE & MONTANARO desembarcou em
São Francisco no começo de agosto, e os advogados começaram a apagar os focos de
incêndio na reputação do, até então, ilibado e proeminente cidadão Edmundo Bispo.

Com um empurrãozinho do magistrado Sérgio Alcântara, o homem da lei que abocanhava


uma fatia considerável do dinheiro levantado pelo crime organizado, um festival de habeas
corpus passou a ser emitido pelo Fórum de Justiça, livrando a cara da maioria dos bandidos
que tínhamos prendido em nossa batida às refinarias de drogas no mês de abril daquele ano –
apesar do flagrante – e dos milicianos encontrados amarrados na Alameda dos Cajarás, perto
do incêndio que queimava a floresta.

- As ações desse juiz estão favorecendo escancaradamente os criminosos dessa cidade e


ninguém está fazendo nada quanto a isso! – Enervou-se Silmara, num surto que também nos
indignou quando lemos aquela notícia.

Para não levantar mais suspeitas sobre Bispo, Paulo Menezes, o homem do dinheiro da
Corporação, passou a assinar os cheques da Casavette & Montanaro, cujo principal advogado
Benjamin Fujiwara, um dos mais experientes do escritório de Direito, passou a assumir a
maioria dos casos. Sentimos um gosto amargo de derrota descer-nos goela abaixo, e em
poucos dias Demétrio Santoro, o pai de Silmara, estava solto, assim como os demais capangas
que o seguiam no caso das refinarias - exceto nosso colega Cláudio Fontes, que foi usado
como bode expiatório - e os milicianos que haviam botado fogo na área de preservação
ecológica.

Diferente do que eu imaginava, Silmara não se comoveu com a saída do pai da prisão e nem o
procurou depois. Focada em nosso plano de derrubar pouco a pouco a Corporação, ela chegou
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a participar de nossa missão para explodir as duas últimas refinarias de drogas de Toni
Maranelli, fato que ocasionou uma cisão profunda entre os membros da organização. Com o
tráfico da cidade paralisado momentaneamente pela falta de bases para operar, Maranelli
arrastou seu corpo rotundo pessoalmente até o prédio da Xeque-Mate para cobrar
providências de Edmundo Bispo, o que causou um mal-estar generalizado entre as grandes
cabeças do grupo. Através de uma escuta que havíamos plantado do lado de fora da janela de
Bispo numa noite chuvosa no alto de sua torre, acompanhamos ao vivo a discussão entre os
dois e "os moleques fantasiados" eram o grande foco da briga.

- Você precisa tomar uma atitude imediatamente quanto a esses delinquentes juvenis. Nossa
organização está sendo esfacelada por um bando de cuccioli dall'inferno. Não vamos mais
admitir questo oltraggio!

Depois daquele dia, as coisas não voltaram a ser as mesmas entre Maranelli, seus homens e
Bispo. Algo como uma fissura ocorreu na confiança de ambos, o que fez com que as
operações da Corporação começassem a não seguir mais qualquer padrão.

Naquela noite de inverno, Ricardo e Antônio ficaram no esconderijo com os ouvidos ligados
na escuta do lado de fora do prédio da Xeque-Mate, enquanto eu decidi seguir uma pista que
Silmara dizia ter sobre o novo esconderijo de Belo Falcão na cidade. Desde que a disputa
entre Maranelli e Bispo tinha começado, nada se sabia sobre o paradeiro do influente mafioso
e braço direito do chefão. Misteriosa como nunca a tinha visto antes, Sil alegava que estava
verificando um antigo endereço em que o pai chegou a trabalhar para Falcão certa vez, e onde
tinha certeza que encontraria o criminoso.

Estávamos no telhado de um antigo teatro abandonado, próximo da estrada que dava para a
Boca do Crime, o principal reduto dos marginais de São Francisco. Um vento forte nos
atingia ali em cima, fazendo a capa esvoaçar às minhas costas. O traje de Sil não era tão
isolado quanto o meu, embora fosse dotado de uma fina película de material à prova de balas
no torso também. Eu a vi tremer de frio algumas vezes, ali agachada a meu lado, olhando
fixamente para o outro lado da rua, para a porta de um decadente depósito de bebidas. Com o
canal aberto em nosso rádio auricular, ouvíamos as piadinhas de Ricardo e Antônio do Bairro
do Encanto, sob a garagem da minha casa, mas ela parecia particularmente de mau humor
aquela noite.

- Como foi que Maranelli nos chamou mesmo aquela vez? – Indagou Ricardo a Antônio.

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- Espera! Eu anotei aqui para não esquecer. – E ele levou alguns segundos para achar a
anotação. - Cuccioli dall'inferno. Somos os cuccioli dall'inferno! Os filhotes de uma cadela do
inferno! – E os dois gargalharam, abafando o áudio do rádio. – A gente devia começar a
chamar nosso grupo assim!

Começamos a ver movimentação diante do depósito, enquanto as risadas da dupla de


engraçadinhos ecoavam em nosso ouvido. Até então, o local parecia abandonado, assim como
toda aquela antiga rua onde em tempos boêmios funcionavam alguns prostíbulos. Dois
homens surgiram de uma esquina escura e pararam em frente ao local, acendendo cada um
seu cigarro. Subitamente vi Silmara abrir o zíper de seu capuz por trás, retirá-lo
completamente e remover seu rádio auricular, guardando-o num dos bolsos do cinto.

- O que está fazendo, Ferina?

Os cabelos curtos e finos dela esvoaçaram no rosto ante o vento que soprava contra nós e sem
dizer nada, apenas com gestos, ela pediu que eu desligasse meu rádio também. Aquela não era
uma medida inteligente, uma vez que estávamos à espreita de bandidos e podíamos precisar
do reforço dos meninos. Desliguei o rádio mesmo assim.

- Vou te contar algo que ainda não estou pronta para falar para mais ninguém. – Sil estava
com uma fisionomia extremamente preocupada no rosto. Os olhos grandes pareciam ainda
maiores em suas órbitas e ela tirou os cabelos do rosto por um segundo. - Não estamos aqui
por causa do Belo Falcão. Eu menti.

Houve um instante de silêncio, quebrado apenas pelo uivo do vento.

- É por causa de seu pai? Você me trouxe aqui por causa do seu pai? – Elucubrei.

- Não totalmente. – Ela parecia desconcertada. – Eu estou aqui principalmente por causa de
um homem chamado Hernandes. Algumas pessoas o chamam de "Jack", outras apenas "JJ",
ninguém sabe exatamente como se chama. Aconteceram coisas comigo em minha pré-
adolescência relacionadas a esse cara, coisas que meu pai podia ter evitado, mas que não fez
nada para impedir.

Os dois homens baforavam fumaça para o alto e daquela distância era quase impossível
reconhecê-los. Um deles era meio corpulento e usava um gorro andino na cabeça, típico do
povo boliviano. O outro era do tipo esguio, alto e usava um chapéu Panamá enfiado na
54
cabeça. Nós dois estávamos protegidos à sombra no telhado, mas deu para ver os olhos de Sil
marejarem enquanto ela falava.

- Quando eu era criança, eu passava fácil por um menino. Meu pai sempre cortou meus
cabelos bem curtos e eu sempre usei roupas folgadas, em geral trapos que pertenciam a outras
pessoas do conjunto habitacional onde a gente vivia desde os meus quatro anos. Tudo mudou
quando comecei a crescer e me tornar adolescente. Meu corpo começou a ganhar sinuosidades
indesejáveis e isso não passou despercebido a esse tal de Hernandes. Ele começou a me olhar
cada vez mais estranho quando meu pai me carregava a essas reuniões da organização, até que
um dia eu fui deixada sozinha no Bairro Burlesco da Boca do Crime. – Os lábios dela se
contraíram, depois começaram a tremelicar. Por um breve momento eu comecei a torcer para
que ela não dissesse o que eu achava que ela estava prestes a me contar – Meu pai podia ter
evitado. Ele sabia que eu estava ali sozinha, assustada. Esse Hernandes me levou para o
interior de um sobrado desse bairro, uma casa horrível que tinha uma fachada cafona, cheia de
letreiros em neon em frente. Eu não sabia que ali funcionava um prostíbulo e quando dei por
mim, estava sendo jogada dentro de um quarto, sendo entregue a um homem que eu nunca
tinha visto na vida e que me cobiçava. Eu olhei para aquele homem gordo de sorriso amarelo,
aquela cara larga, o nariz enorme e os cabelos ensebados... Tive vontade de fugir, mas eu não
tinha forças. Gerônimo Falcão era a criatura mais abjeta que eu já tinha encarado e eu não
pude fazer nada para me defender.

- E-Eu sinto muito, Sil. – Eu nem sabia o que dizer para consolá-la. Aquele era um relato
terrível demais. Um ódio crescente passou a me queimar por dentro e lá embaixo, as duas
silhuetas abriram a porta e desapareceram no interior do depósito mal iluminado.

- Naquela noite ele consumou o ato. Aí vieram outras noites e mais outras. Eu comecei a ser
"agenciada" por J.J. Hernandes e novos clientes dele começaram a me querer. Meu pai devia
uma grana alta para Falcão devido dívidas de jogo e bebedeira na época e ele não moveu um
dedo para salvar sua única filha daquele martírio. Eu passei quase dois anos nas mãos de
Hernandes, até que outras meninas acabaram me substituindo quando me tornei "velha"
demais para a função. – Sil abaixou a cabeça como que envergonhada, enxugando as lágrimas
que banhavam seu rosto com as costas das mãos enluvadas. – Esse Jack é o chefão do Bairro
Burlesco dentro da Boca do Crime e ele possui vários prostíbulos pela cidade. Ele comanda
uma máfia de tráfico internacional de adolescentes para outros países da América Latina e
Europa e faz o "agenciamento" de meninas para clientes interessados, assim como fez
comigo. Nas noites em que você subia para sua casa para dormir, eu passava horas
vasculhando a Deep Web através do seu CAD. Descobri vários fóruns secretos em que
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Hernandes leiloa garotas, vendendo-as pelo maior lance, como gado. – Sil de repente virou-se
em direção à rua. Assim que vestiu seu capuz novamente, com as lágrimas agora cobertas, ela
continuou, com a voz abafada. - Aquele antigo depósito de bebidas – e ela apontou - é na
verdade um cativeiro, onde Hernandes e seus homens ocultam várias meninas que ele vende
por aí. A gente precisa salvar essas coitadas e impedir que aconteça a elas o que aconteceu
comigo e com centenas de outras infelizes.

Sil não podia ver através de meu capuz preto e cinza, mas meu semblante estava endurecido.
Eu não tinha começado aquela cruzada contra a Corporação em busca de vingança pessoal ou
para ferir pessoas gratuitamente, mas pela primeira vez em três anos, eu estava com gana de
bater forte em alguém, de um jeito que eu só pararia quando minha fúria estivesse
satisfeita. Que Sebá me perdoe, mas hoje vou deixar os ensinamentos do Fei Hok Phai de
lado!

A rua estava deserta quando forçamos a maçaneta da porta de madeira e entramos. O depósito
era escuro e mofado. Vasilhames, engradados e caixas se espalhavam pelo chão empoeirado,
onde marcas de pegada denunciavam que o lugar era bastante frequentado. Uma luz meio
bruxuleante indicava uma escadaria ao fundo do salão e nós dois ouvimos vozes vindas lá de
baixo, de um porão. A porta rangeu enquanto abríamos espaço por ela para começar a descer
os degraus. Uma lâmpada incandescente piscava sobre nossas cabeças, oscilando a energia
proveniente de algum "gato" elétrico. Dava para ouvir o som de um bolero brega e a voz de
alguém cantarolando a letra da música, enquanto uma agulha de toca-discos raspava um LP.
Da entrada, vimos Hernandes atrás de uma escrivaninha já sem seu chapéu Panamá na cabeça.
Ele tinha um bigode fino no rosto magro, usava uma camisa vermelha florida e uma calça
branca. O cafetão mal conseguiu aspirar a carreira branca separada meticulosamente sobre um
espelho de borda laranja na mesa. O chute de Ferina encaixou-se em seu maxilar antes que ele
pudesse gritar. O impacto do golpe fez Hernandes cair da cadeira e chocar sua cabeça
violentamente contra o chão. O sujeito gordo de touca andina surgiu de uma sala adjacente e
ele alertou outras pessoas que ainda estavam lá dentro:

- Temos companhia! TEMOS COMPANHIA!

Antes que ele pudesse pensar em sacar o revólver 38 que tinha na cintura, abaixo da camada
adiposa de sua barriga, eu o atingi com meu joelho em seu peito, tirando-lhe o fôlego. O
corpo do homem bateu com tudo na parede atrás dele e o estrondo na superfície oca atraiu
novos personagens para a briga.

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- O que é isso? O circo chegou na cidade? – Disse um sujeito pardo de longas tranças rastafári
na cabeça, apontando um punhal em minha direção.

- Devem ser os moleques fantasiados de quem o Falcão nos alertou. Acaba com esses dois! –
O segundo homem tinha traços venezuelanos no rosto e possuía um sotaque castelhano.
Assim como o comparsa, ele se precipitou sobre mim com uma arma de perfuração, no que eu
consegui me livrar usando a própria força de seu ataque. Com uma pressão forte em seu pulso
direito e um solavanco na junção de seu cotovelo, eu fraturei seu braço, deixando-o em agonia
no chão.

- Martinez! – Gritou o rastafári para o outro a segurar o braço quebrado, olhando agora
assustado para as lentes brancas de meu traje escuro. Embora temeroso, ele segurou a faca
com a ponta para o chão e tentou me apunhalar de cima para baixo. O cara era
consideravelmente mais alto do que eu e antes que ele completasse o movimento com a arma,
eu já tinha atingido seu nariz. Enquanto ele golpeava sua frente à esmo, com os olhos
começando a se encher de lágrimas como efeito da pancada na região nasal, eu acertei-lhe um
direto no queixo, como no boxe, levando-o a nocaute.

- Não me mata, cara! Não me mata! – Gemeu o de sotaque castelhano no chão, a segurar o
braço quebrado. Minha adrenalina estava à mil. Minha respiração estava descompassada pelo
ódio ardente e enquanto eu me certificava que nenhum dos três representava mais perigo, eu
vi Ferina levantar Hernandes do chão e começar a bater sua cabeça contra a mesa de forma
violenta, repetidas vezes.

- Onde estão as meninas que você sequestrou? Me diga!

O vidro do espelho onde o cafetão tinha espalhado sua cocaína rachou-se ante o impacto de
sua cabeça projetada sobre ele e seu supercílio estourou. O sangue espalhava-se em seu rosto,
mas Sil estava transtornada, segurando-o pela gola da camisa ordinária e batendo seu rosto na
superfície da mesa.

Tudo aconteceu muito rápido e de certa forma a culpa foi minha. Eu achava que o de gorro
andino, o rastafári e o venezuelano eram os únicos capangas acompanhando Hernandes
naquele porão que cheirava a colônia vagabunda, mas de esguelha eu vi mais uma sombra
surgir da outra sala. Antes que eu pudesse reagir, um estampido de tiro ecoou ali embaixo, nos
ensurdecendo por alguns instantes. A bala explodiu em meu ombro esquerdo, quase à queima-
roupa e o impacto me deslocou para a frente. Por puro reflexo, eu projetei meu corpo contra o
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homem forte que adentrava o recinto e enquanto ele largava a pistola, nós dois caímos sobre a
vitrola antiga, destruindo-a no processo. O som do vinil riscado foi cortado subitamente pelo
som do soco que explodiu em meu rosto na sequência. Ágil, o grandalhão se recuperou rápido
do empurrão e já avançou sobre mim com uma eficiente movimentação de boxeador. O que
era uma terrível ironia! Meu ouvido ainda estalava pelo estampido do tiro em espaço fechado
e meu ombro queimava, apesar da proteção antibalística da roupa. Eu estava desorientado
enquanto tentava usar meus conhecimentos de defesa pessoal para desviar as porradas.
Procurava usar a força de meu oponente contra ele sem sucesso, mas quando ele me acertou
mais uma vez, sua guarda abriu e eu apliquei um chute que o jogou de volta contra a parede.

- CHEGA!

O berro de Silmara era um misto de angústia com raiva e quando olhei para ela, a garota
estava sem seu capuz, mostrando o rosto ensopado de lágrimas.

- Ferina, o que está fazendo?

O grandalhão que levantava os antebraços em guarda contra a parede, de repente olhou para a
garota e começou a ceder. Os ombros largos e duros murcharam e ele parecia não acreditar no
que estava vendo.

- Silmara? O que você está fazendo vestida assim? O que está fazendo aqui?

A voz do homem de barba cerrada era grave e só então eu o reconheci:

- Eu estou aqui por causa dele. – E Sil apontou para a cabeça de Hernandes que se movia
atordoado, com a cara sobre a mesa e os braços estirados. – Mas de alguma forma eu sabia
que também ia encontrar o senhor aqui com essa corja de traficantes de humanos, pai.

Demétrio Santoro pareceu acabrunhado a olhar para a filha atrás da escrivaninha velha. O som
abafado de um instrumento metálico retinindo contra grades e vozes femininas começou a
ficar mais evidente lá de dentro, agora que a luta tinha acabado. Demétrio olhou para o
interior da sala de onde viera sorrateiramente e em seguida me encarou ali parado no meio do
porão. Lentamente ele pareceu abrir caminho da porta onde seu corpanzil bloqueava a
passagem e eu entendi que aquela era uma trégua. Passei por ele e caminhei para o fundo da
sala, onde um sofá de couro rasgado, uma escrivaninha puída com um computador e uma
mesa de centro sobreposta por cartas de baralho espalhadas e garrafas de cerveja eram a única
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mobília a ocupá-la. A porta fechada não ofereceu resistência quando entrei e lá de dentro veio
um cheiro muito forte de água sanitária. O cativeiro era um quarto escuro sem janelas. Havia
nele uma haste metálica chumbada do chão ao teto no centro e correntes estavam presas com
cadeados a ela. Quatro garotas muito sujas e maltratadas estavam com os tornozelos
amarrados àquelas correntes sentadas no chão e elas se assustaram com a minha presença,
começando a rastejar para trás. Elas falavam castelhano entre si e quando viram que eu estava
ali para ajudar, pareceram agradecidas. Voltei a ouvir o som de grades sendo retinidas, agora
de forma mais nítida e quando olhei para o canto do quarto escuro, vi mais duas meninas
dentro de uma espécie de jaula para animais, cada uma delas segurando uma colher.

- Tira a gente daqui, por favor!

- Solta a gente!

Elas eram brasileiras, aparentavam ter entre doze e quatorze anos de idade e tão maltratadas
quanto as demais, tinham sido separadas delas porque seriam vendidas primeiro.

Eu e Silmara tínhamos libertado aquelas meninas e dava para ver a gratidão nos olhos de cada
uma delas. Não era possível mensurar todo o mal que J.J. "Jack" Hernandes e seu bando
haviam causado àquelas adolescentes e tudo que ele ainda podia fazer com suas vidas. Deixá-
lo ali amarrado dentro de seu próprio cativeiro com seus capangas, enquanto as sirenes da
Polícia já tocavam lá longe, não era nem de longe o destino que o canalha realmente merecia,
mas era o que podíamos fazer por ora.

Para a família Santoro não havia mais o que ser dito entre pai e filha e num último ato de
misericórdia, Silmara resolveu deixar o pai sair ileso daquela vez.

- Você vai deixar esse cara escapar, depois de tudo que ele fez a você e essas pobres coitadas?
– As meninas estavam no salão do depósito juntas, encolhidas num canto, tremendo de frio.
Sil estava de pé cabisbaixa, observando Demétrio caminhar lentamente até a porta de saída.

- Ver sua filha lutando contra tudo que ele representa essa noite já foi o bastante para a
consciência dele. Um dia alguém vai lhe dar o que realmente merece, mas esse alguém não
serei eu.

Aquelas palavras duras vindas da própria filha que ele ofereceu ainda na infância para saldar
dívidas bateram forte em Demétrio, que saiu em seguida pela porta, em silêncio. Muitas
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testemunhas já a tinham visto sem a máscara de Ferina àquela noite, mas Sil a vestiu em
seguida e correu comigo para fora do depósito, enquanto as sirenes tornavam-se ainda mais
altas. Do alto do telhado do teatro, nós dois ficamos a acompanhar o desfecho da história e
três carros de Polícia estacionaram diante do prédio do outro lado da rua, um deles trazendo a
policial Regiane Loyola a bordo. O computador com os fóruns de leilão na Dark
Web carregados na tela, a quantidade considerável de drogas armazenada, as correntes e a
jaula eram o suficiente para que Hernandes e seus homens fossem incriminados por tráfico
humano, cárcere privado, prostituição infantil e mais uma traulitada de outros crimes que eles
praticavam. Embora aquela fosse mais uma vitória conquistada, nenhum dos dois estava se
sentindo muito vitorioso ou com vontade de comemorar. As sirenes continuavam soando altas
lá embaixo quando reativei meu rádio auricular. Quase no mesmo instante, a voz de Ricardo
surgiu esbaforida no comunicador.

- Henrique, está na escuta? – Respondi que sim. - Onde vocês dois estão, cara? Eu e o
Antônio estamos tentando contatar você e a Sil há horas. Aconteceu uma tragédia!

Meus joelhos deram uma amolecida ali em cima daquele telhado. O vento agora era mais
ameno, mas a temperatura continuava baixa para aquela madrugada de inverno.

- Fala logo. O que aconteceu?

- É a pizzaria do Magno, cara. Ela foi incendiada. Estão todos mortos!

60
CAPÍTULO 5 - XEQUE

O INCÊNDIO CRIMINOSO na Magno's Pizzaria tinha sido uma retaliação a nossas ações
contínuas para enfraquecer a Corporação nos últimos meses e aquilo me atingiu de uma forma
devastadora. Segundo relatos da vizinhança, um grupo de cinco homens encapuzados tinha
chegado de supetão próximo do horário em que Magno costumava fechar as portas do
estabelecimento e rendeu a todos. Armados com fuzis e pistolas, os bandidos usaram de
violência para reunir meu patrão, sua esposa e seus funcionários na cozinha da pizzaria,
mandando que eles revelassem a identidade do entregador de pizzas que tinha ido até o prédio
da Xeque-Mate na noite do dia dezenove de maio – véspera da inauguração do Elevado. Seja
pela confusão momentânea causada pelo trauma em estarem na mira de armas ou para me
proteger, nenhum deles disse uma só palavra sobre mim, o que ocasionou sua execução.

Os vizinhos relataram que sentiram um cheiro muito forte de gás saindo da pizzaria um pouco
antes de ouvirem muitos tiros. Algum tempo depois, uma explosão destruiu o local que
sempre fora um dos pontos mais visitados do Bairro do Encanto, acabando com a vida do
cidadão mais divertido da vizinhança. Magno, sua esposa, o entregador Reginaldo e os três
pizzaiolos da cozinha não tiveram qualquer chance de escapar. Quando nós chegamos, o fogo
já tinha consumido boa parte da pizzaria e também da casa onde Magno morava com a esposa
e os dois filhos Ronaldo e Betânia, no andar de cima do comércio. Os irmãos gêmeos se
salvaram por muito pouco, mas quando o Corpo de Bombeiros chegou, nada mais podia ser
feito por seus pais.

Nunca antes um sentimento de culpa tão avassalador tinha me tomado na vida. Depois do
crime, eu passei semanas inteiras arrasado em meu esconderijo, com a morte daquelas pessoas
tão adoráveis e totalmente inocentes corroendo minha consciência. Eu tinha sido idiota o
suficiente em acreditar que nossa invasão ao prédio da Xeque-Mate naquela noite não nos
traria consequências graves, já que éramos completos estranhos para os funcionários do lugar
e uma vez que, de acordo com o que pensávamos, não tínhamos deixado pistas sobre nossas
identidades. Bispo devia ter vasculhado as câmeras de segurança de seu edifício, visto o
colete que eu usava ou simplesmente ter olhado o logotipo da Magno's Pizzaria estampado
nas caixas das pizzas que larguei naquela sala vazia. Não era difícil associar as nossas figuras
ao estabelecimento, numa situação bem remota em que não tivéssemos roubado a moto e nos
apossado das pizzas das mãos do verdadeiro entregador. Para o azar de Magno e sua família,
eu realmente era um de seus funcionários, e ao usar a pizzaria como um meio de invadir a
Xeque-Mate, eu tinha pintado um alvo gigante nas costas daquelas pobres pessoas. Eu não
conseguia me perdoar.
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Depois que os avós maternos de Ronaldo e Betânia levaram as crianças de nove anos para sua
casa em Limeira, mantendo-as seguras de outra possível represália, eu, Ricardo e Antônio
também começamos a precaver nossas famílias de um possível ato de vingança, temerosos
que a Corporação tivesse descoberto mais sobre nossas identidades secretas e decidisse atingir
nossos entes queridos para nos ferir. Além de controlar cada passo que eles davam fora de
casa, em conjunto, nós três começamos a desenvolver um abrigo que serviria para ocultar toda
a nossa família num caso de emergência como aquele. Um galpão abandonado nos arredores
do Bairro do Encanto parecia servir como esconderijo e uma vez a cada duas semanas nós
preparávamos o lugar para que um dia ele se tornasse uma espécie de bunker de
sobrevivência. Logo chegamos à conclusão, no entanto, que não tínhamos os recursos
necessários para equipar o lugar com o que era necessário, e que jamais completaríamos
aquele projeto a tempo. Em vez de nos proteger, começamos a armar um plano para contra-
atacar, antes que fosse tarde demais.

Já estávamos no começo de outubro, próximo ao Dia das Crianças, quando Antônio


conseguiu os arquivos de uma câmera de segurança de uma das casas vizinhas à Magno's
Pizzaria. O aparelho não tinha uma resolução de imagem muito boa, mas os vídeos gravados
por ela na noite do incêndio fizeram com que nós descobríssemos quem tinha sido o principal
executor do crime. Após trabalhar por duas noites sem dormir vasculhando vários possíveis
esconderijos usados por ele, finalmente descobrimos um endereço na zona norte da cidade
onde Vitor Quebrada, o primo do delegado Romero Assis, tinha sido visto por uns viciados na
rua. Eu, Ricardo e Sil saímos a campo no encalço do líder de Milícia, enquanto Antônio nos
dava suporte do esconderijo. Uma rajada seca de fuzil ecoou na noite, num beco escuro
próximo a um sobrado vagabundo onde Quebrada tinha sido visto, e por um breve momento,
chegamos tarde demais. Por meio de sua escada retrátil, descemos da ASA a tempo apenas de
ver um Ford preto sair cantando pneu da travessa, ganhando a avenida à frente. Havia um
homem grande caído no chão, com o tronco recostado na parede de um dos dois prédios
adjacentes. Mesmo no escuro, dava para ver poças de sangue próximo dele e o som de sua
respiração estava cada vez mais fraco.

- Espião Negro! Controle a ASA remotamente e siga o Ford preto que acabou de arrancar
desse endereço. Quebrada e seus capangas devem estar nele! – Meu comando pelo ponto
eletrônico em meu ouvido foi seguido à risca, e as turbinas da ASA foram acionadas
imediatamente sobre nossas cabeças. Enquanto Antônio comandava da caverna o avião de
quinze metros como se ele fosse um brinquedo, de repente, ouviu-se um grunhido que evoluiu
para um grito de angústia perto de nós.

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- Não... Não pode ser! NÃO!

Eu e Thunderwing vimos Ferina cair de joelhos sobre o homem ali desfalecido no canto e seu
lamento ecoou na noite.

- Aguenta firme, paizinho! Aguenta firme!

A garota choramingava abraçando o homem. Thunder acionou uma lanterna imediatamente e


nós dois vimos Demétrio Santoro ali caído, com várias perfurações de bala no peito, a esvair-
se em sangue. Desde que Ferina o havia deixado escapar, após executarmos a prisão de Jack
Hernandes e seu bando de traficantes de adolescentes, Santoro havia saído de cena, mantendo-
se escondido dos homens de Maranelli e Falcão. A notícia de que sua filha Silmara estava
agindo ao lado dos tais "moleques fantasiados" que vinham desmantelando as organizações
criminosas da cidade não tinha caído bem no submundo do crime, o que logo colocou a
cabeça do ex-pugilista a prêmio. Graças ao próprio Hernandes da prisão, cada traficante e
bandido da cidade sabia que a filha de Demétrio estava agindo no intuito de acabar com a
Corporação e era só uma questão de tempo até que alguém conseguisse silenciar o cara.

- Chame uma ambulância para o endereço onde estamos, Espião. Quebrada e seus comparsas
atiraram em Demétrio Santoro. – Minha voz soou um tanto quanto sombria.

- Mas o que ele estava fazendo nesse lugar? – Indagou Antônio.

- Provavelmente ele estava escondido no sobrado e por isso Quebrada vinha rondando o lugar.
Desde que Ferina revelou sua identidade secreta, o cara estava com a corda no pescoço. Não
ia demorar para pegarem ele. – Respondeu Ricardo.

- Conseguiu rastrear o Ford preto, Espião? – Perguntei, enquanto ouvia os lamentos de


Silmara, ajoelhada e abraçada ao pai.

- Sim. Estou mantendo a ASA sobrevoando o endereço agora. O carro estacionou em frente a
um antigo armazém da Rua Garcia Lopes. Saíram quatro ocupantes dele. Estão no interior do
sobrado agora.

Quando abaixei perto dela e toquei seu ombro, Sil estava sem sua máscara. Seus olhos
vertiam lágrimas e ela balançava o corpo do pai nos braços, apertando-o forte. Seu traje estava
empapado do sangue dele.
63
- Eu sinto muito, Sil. O Espião chamou uma ambulância, mas não sei se...

- Sai logo daqui! – Ela me interrompeu. - Vai pegar aquele desgraçado! Acaba com ele! – Sua
voz estava embargada de ódio e pesar, e ela continuou ali ajoelhada como que ninando o
corpo cada vez mais inerte de Demétrio. A sirene de uma ambulância ecoou ao longe e eu e
Thunderwing começamos a correr em direção ao prédio ao lado, disparando nossos arpéus
simultaneamente. Os dois ganchos se prenderam no beiral do telhado enquanto carretilhas
poderosas nos alçavam para o alto, nos puxando com força. Já mais experientes em pular de
prédio em prédio, após os meses de exercícios práticos, continuamos fazendo uso de nossas
cordas para chegar mais rápido à Rua Garcia Lopes, o que conseguimos fazer em dez
minutos. O esforço tinha feito minha pulsação acelerar mais do que o normal, e parei ofegante
perto de Thunder, acocorado no telhado ao lado do armazém.

- Consegue acionar o infravermelho das câmeras externas da ASA, Espião? – Minha voz
ainda era arfante.

- Sim. Acabei de acionar. – Disse ele pelo rádio.

- Quantos caras tem lá dentro do prédio?

- O sensor infravermelho mostra seis sinais de calor. Eles estão armados.

Eu podia ter esperado ao menos minha pulsação desacelerar, podia ter recuperado o fôlego,
mas antes que a frase de Antônio terminasse, o gancho do meu arpéu estava cortando o ar
mais uma vez e eu estava me precipitando ao armazém. Thunder ainda tentou falar algo, mas
eu não estava ouvindo mais. Quebrada tinha assassinado a família de Magno a sangue frio
sem dar-lhes qualquer chance. Tinha atirado em Demétrio num beco e o largado para morrer
sozinho num canto qualquer, desarmado. Naquele momento de emoção, eu esqueci toda
minha perícia, ignorei todo o treinamento de controle da raiva que vinha trabalhando com
Sebá e me atirei contra aquele prédio. Eu só fervilhava em ódio.

A explosão na parede lateral causada pelo explosivo esférico que arremessei enquanto caía,
estremeceu o prédio malconservado. Aquela construção estava em pé muito antes de eu
nascer e com certeza já tinha visto dias melhores. Blocos de concreto voaram sobre os seis
ocupantes do armazém e eu surgi em meio à poeira que ainda se espalhava para o interior do
local. Os seis capangas demoraram alguns segundos para se recuperar do estrondo, mas
quando o fizeram, se muniram de suas armas e começaram a atirar em mim. Sem dormir há
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dois dias e deixando minhas emoções sobressaírem à razão, eu não estava em minha melhor
forma, o que me permitiu alcançar apenas um dos bandidos. Dando um soco forte em seu
queixo, eu o atirei sobre uma mesa, onde espalhava-se saquinhos de drogas e pentes de armas
de fogo.

- Acabem com esse filho da...

Eu fui arremessado para trás por uma rajada de 762 disparada por um sujeito magro e alto que
usava um gorro verde na cabeça. Apesar do traje reforçado, deu para sentir a pólvora
queimando meu peito, enquanto minha cabeça batia contra a parede por onde eu tinha
entrado. Com visão dupla, eu tentei arremessar um disco metálico contra um deles, mas errei
por muitos metros meu alvo. Senti uma explosão em meu flanco esquerdo, e quando reparei,
estava sendo atingido por tiros de uma espingarda calibre doze.

- Segura essa, seu otário!

Senti como se minhas costelas estivessem sendo espancadas por uma marreta de construção, e
puxei a capa para cima, procurando me defender. Mais tiros de uma pistola 765 acertaram
minha cabeça perigosamente, e eu caí no chão aturdido. Achei que ia morrer ali, fuzilado
impiedosamente, mas ouvi o som metálico da armadura de Thunderwing adentrar o local e
nocautear três de meus agressores com o disparador de projéteis de seu bracelete. Nós
tínhamos passado horas pincelando os dardos que aquela arma disparava com uma toxina que
havíamos sintetizado com base em dados do CAD, e uma vez atingidos pelos dardos, os alvos
caíam imediatamente, paralisados. A toxina era uma variação do gás dos nervos que já
tínhamos usado para aprisionar os ocupantes de uma das refinarias da Corporação, desativada
no começo do ano.

- Consegue se levantar, Pássaro Noturno?

A voz de Thunder soou longínqua a meus ouvidos e uma nova rajada de 762, de repente, me
trouxe a si. O próprio Vitor Quebrada agora estava atirando contra Thunder, fazendo-o recuar.
Do chão, sem conseguir raciocinar muito, eu apanhei a pistola de meu arpéu no coldre e
fechando um dos olhos, eu mirei o gancho no sujeito de cabeça raspada, apertando seu gatilho
em seguida. A ponta em forma de lança varou o ombro esquerdo de Quebrada antes que ele
pudesse recarregar o pente que havia esvaziado contra a placa peitoral de Thunderwing, e seu
grito de dor soou animalesco. Enquanto eu me levantava e Thunder tratava de nocautear o

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último capanga que restava acordado, comecei a recolher o gancho do arpéu, puxando
Quebrada junto.

- M-Meu ombro... Você estourou meu ombro!

Assim que o gancho o trouxe próximo o suficiente de mim, eu o arranquei com tudo do
rombo em seu ombro, o que fez um jorro de sangue esguichar. Antes que Quebrada pudesse
gritar de dor, eu segurei em sua nuca e bati sua cara com força na mesa de madeira, fazendo
voar os sacos de drogas.

- Eu vou perguntar apenas uma vez. Quem ordenou o incêndio naquela pizzaria há um mês? –
Eu continuei pressionando sua nuca, segurando seu braço direito para trás em forma de "L".

- Q-Que pizzaria...? Do que você...

Sua cabeça subiu e desceu com ainda mais força sobre a mesa. Deu para ouvir o nariz
quebrar.

- S-Seu filho da... Meu nariz!

- A próxima pancada vai matar você, Vitor. – Blefei, em tom ameaçador - Quem autorizou o
incêndio na pizzaria Magno's? – Seu braço estava torcido para trás. Bastava um movimento
rápido para quebrá-lo, assim como seu nariz. O ombro esvaía-se em sangue sobre a mesa
laminada.

- Eu só recebo ordens... Eu...

O som do osso se partindo ecoou. Vitor gritou sentindo o braço se quebrar.

- Eu falo! Eu falo! Eu recebo ordens de Romero Assis. – Ele gemeu - Foi o delegado Romero
Assis quem encomendou o incêndio a mando do Maranelli. Não me mata!

Eu larguei o braço esmigalhado de Quebrada no mesmo instante, e ergui meu tronco, me


comunicando com Antônio no esconderijo.

- Você conseguiu gravar a confissão, Espião Negro?

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- S-Sim. Está gravado. – Havia temor na voz de meu amigo. Ele parecia assustado com tudo
que tinha ouvido de longe. Próximo de seu rádio auricular, em seguida, ele reproduziu a
gravação e foi possível ouvi-la dali. – "Eu falo! Eu falo! Eu recebo ordens de Romero Assis.
Ahhh! Foi o delegado Romero Assis quem encomendou o incêndio a mando do Maranelli.
Não me mata!".

Thunderwing estava em pé próximo da mesa, assombrado com minha atitude bastante


violenta. Seus olhos estavam arregalados por trás de sua máscara metálica e ele não ousou
dizer nada quando me aproximei mais uma vez de Quebrada, ali ajoelhado no chão,
segurando o braço quebrado e pisei em sua mão.

- Mais uma coisa, seu monte de lixo. Qual dessas armas você usou para matar o Demétrio
Santoro?

Ele se contorcia de dor, com a sola de minha bota esmagando seus dedos. Após um gemido
ele apontou com o queixo:

- Foi aquela. Aquela!

Era um fuzil 762.

A confissão de Vitor Quebrada sobre a autoria do incêndio criminoso da Magno's Pizzaria,


seguido de sua prisão, foi o início da derrocada final dos membros da Corporação. Até o final
do mês de outubro, nós tínhamos reunido várias provas que colocavam o delegado de Polícia
Romero Assis como o principal chefe das Milícias da cidade, além de denunciá-lo como o
mandante das mortes de Magno, da esposa, de seus funcionários e do assassinato de Demétrio
Santoro. Na semana seguinte da morte de Demétrio e da prisão de Quebrada, uma escuta
telefônica na linha do Fórum de Justiça interceptou uma ligação entre Sérgio Alcântara e Toni
Maranelli, agendando um pagamento polpudo ao magistrado pela liberação de J.J. "Jack"
Hernandes da cadeia já para o próximo final de semana. Um habeas corpus daria liberdade
provisória ao cafetão para que ele aguardasse seu julgamento em liberdade, mas aquilo era
algo que não podíamos permitir. Naquele mesmo dia, fitas cassete com gravações das
conversas entre Alcântara e Maranelli, bem como a confissão de Quebrada sobre o incêndio
da pizzaria, apareceram misteriosamente na caixa de correios da policial Regiane Loyola
antes de seu expediente na delegacia, e ela acionou a Corregedoria em posse das provas.
Embora aqueles arquivos tivessem sido obtidos de maneira pouco ortodoxa, eles serviram

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para derrubar o juiz e o delegado corruptos, ambos sendo exonerados de seus cargos algum
tempo depois.

Enquanto a investigação da Polícia Federal sobre as atividades de Edmundo Bispo continuava


caminhando incrivelmente lenta, o magnata pouco podia fazer para ajudar os colegas
criminosos sem dar muita bandeira, o que gerou a cisão definitiva entre ele e Toni Maranelli.
O velho mafioso agora era alvo de uma perseguição implacável dirigida pelo delegado
interino da cidade, que tinha sido empossado para acabar de vez com o crime organizado em
São Francisco d'Oeste. Diferente de seu antecessor, o inspetor Rui Guimarães tinha caráter
ilibado e não era suscetível a chantagens ou a subornos. Trazendo policiais civis de sua total
confiança para a cidade, logo ele montou uma força-tarefa para capturar Maranelli, o que
obrigou o chefão a fugir da cidade.

Sem sua principal liderança, os marginais de São Francisco começaram a agir por conta
própria, o que aumentou os percentuais da taxa de criminalidade. Assaltos, sequestros e
assassinatos passaram a assolar mais ainda a cidade, numa onda quase incontrolável de
violência urbana. Sem os principais pontos de fabricação e distribuição de drogas – destruídas
por nós – os traficantes pés-de-chinelo passaram a vender o que conseguiam por conta,
aumentando o número de bocas de fumo não só nos bairros periféricos, como também nos
polos mais abastados. Atraídos pela promessa de conseguir dinheiro fácil, muitos
adolescentes da periferia passaram a integrar as quadrilhas das bocas de fumo, e todo tipo de
droga passou a ser vendido na porta de escolas, casas noturnas, prostíbulos e até hospitais.
Parecia um pesadelo. Era como se nossas ações ao prender os grandes cabeças da Corporação
tivessem piorado as coisas em vez de melhorar.

Quem aproveitou para se fortalecer em meio ao caos criado pela ausência de Toni Maranelli
na cidade foi Belo Falcão, que começou a assumir não só alguns dos antigos estabelecimentos
do ex-chefe, como também a recrutar quem já tinha trabalhado com ele, formando assim a sua
própria organização criminosa. Em pouco tempo, Falcão não era mais somente um subalterno
do velho mafioso, e despontava agora como um dos principais chefões do tráfico de drogas da
cidade. Talvez ainda mais perigoso que Maranelli. Embora soubéssemos que ele estava
envolvido até o último fio de cabelo nos esquemas ilegais da Corporação, nós não tínhamos
provas concretas contra ele, o que nos obrigou a deixar o crápula em segundo plano.

Estávamos em período de provas na escola, mas foi difícil focar nos estudos em meio aos
momentos decisivos de nossa árdua batalha contra as serpentes que vinham destruindo nossa
cidade internamente. Eu estava exausto, mas destruir a Corporação havia se tornado uma
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obsessão tão grande para mim após as mortes de Magno e seus funcionários, que eu resolvi ir
até as últimas consequências, exigindo mais do que meus amigos eram capazes de suportar.
Em mais uma noite em claro, Antônio e Sil interceptaram uma ligação entre Edmundo Bispo
e seu fiel escudeiro Hudson Porto, através da escuta plantada do lado de fora de sua janela, e
eu sabia que aquele ia ser nosso ajuste de contas final.

- Bispo entrou em contato com o tal Hudson por telefone. Ele informou que irá supervisionar
pessoalmente os últimos ajustes para a inauguração de uma das suas usinas termelétricas. –
Falou um Antônio cansado, com olheiras profundas nos olhos.

- Ele não pode enganar os agentes federais do Ministério de Minas e Energia e do Ministério
do Meio Ambiente por mais tempo. Ele conseguiu manter os olhos do mundo longe das obras
de suas duas usinas até agora, mas pelo visto chegou sua hora de mostrar o que é capaz de
fazer, ativando suas termelétricas. – A voz de Sil soou lúgubre, ainda de luto pela morte de
seu único ente querido. – Ele irá testar a potência da energia gerada pela primeira usina no
Bairro dos Laranjais amanhã. É o momento exato pra gente provar que estivemos certos todo
esse tempo sobre ele querer colapsar as fontes energéticas do país e mostrar ao mundo quem é
o verdadeiro Edmundo Bispo.

Na manhã seguinte um e-mail chegou à caixa de entrada de Alex Batista na redação de A


Gazeta, e o jornalista tinha finalmente em mãos tudo que precisava para acabar de vez com a
reputação de Edmundo Bispo. Num arquivo anexo compactado, nós tínhamos enviado a ele
tudo que coletamos nos últimos meses sobre suas ligações com o crime organizado, além dos
detalhes obscuros da rede de túneis subterrâneos – e seu real objetivo de existir - e as imagens
da construção das duas usinas termelétricas que ele alegava não existir desde que começara a
ser investigado. Uma edição especial do jornal foi lançada um pouco antes do almoço, e
embora o número de exemplares vendidos não tenha batido nenhum recorde, muita gente
passou a acreditar que, afinal, a reportagem de Batista era coerente e fazia todo o sentido.

A visita de Bispo a sua usina termelétrica secreta estava marcada para as 14h00 daquela sexta-
feira e o Pássaro Noturno foi obrigado a modificar seu modus operandi, trabalhando em plena
luz do dia. De olho nos arredores do campão que ocultava o hangar onde a ASA ficava
guardada, eu, Ricardo e Antônio tivemos que vestir nossos trajes de batalha às pressas, a fim
de evitar que olhares curiosos acabassem nos flagrando ali no meio do nada. Jogamos nossas
roupas civis em mochilas e as largamos ali mesmo dentro do hangar, enquanto a ASA
decolava verticalmente, jogando poeira para todo lado com suas turbinas poderosas e
barulhentas. O sistema externo de camuflagem do aeroplano funcionava tão bem à luz do sol
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quanto à noite, e não demorou até que desaparecêssemos no céu, rumando para o Bairro dos
Laranjais.

Enquanto nós três encararíamos Edmundo Bispo frente a frente pela primeira vez, Sil tinha
sido incumbida de solicitar a ajuda da policial Regiane Loyola, além de mostrar a ela os
segredos por trás da Corporação. Em meses de investigação, nós tínhamos descoberto que a
base principal da organização se ocultava no subsolo do CSU, o complexo esportivo da
cidade, e que os cabeças do grupo se reuniam para confabular lá embaixo uma vez a cada três
semanas, pontualmente. Por meio de fotos, gravações pelas câmeras da ASA e até mesmo
análises térmicas, nós tínhamos provas que existia um segundo complexo embaixo das
quadras, pistas de atletismo e piscinas do CSU, e que aquilo seria uma verdadeira
Disneylândia do crime pela qual a Polícia certamente gostaria de passear.

Regiane morava num bairro suburbano da zona leste e aquele dia ela saía pelo portão de casa
calmamente para o trabalho, à paisana, vestindo uma calça jeans, camiseta branca e uma
camisa xadrez por cima, quando foi surpreendida com a aparição repentina de um fantasma à
sua frente.

- UOOOUU! Quietinha aí!

Sil certamente jamais tinha visto alguém sacar um revólver do coldre tão rápido, e enquanto a
camuflagem desativada de seu traje desvendava sua forma esguia completamente, fazendo o
campo elétrico chiar, ela ergueu as mãos lentamente, segurando uma pasta de papelão
recheada de arquivos impressos.

- Fica fria, policial. Abaixa essa arma antes que alguém se machuque.

- Q-Quem diabos é você? – Indagou Regiane nervosamente, olhando ao redor para se


certificar que não haveria mais surpresas se materializando do nada. – D-De onde você saiu?
O que quer?

Sil observou a moça de cabelos presos num rabo de cavalo e de pele parda. As mãos estavam
firmes empunhando a Glock denotando destreza, mas seus olhos estavam arregalados de
pavor.

- Você pode atirar se quiser. Minha roupa é à prova de balas. Eu aguento dois ou três tiros
antes de eu pular em cima de você e te encher de porrada, mas eu não quero apelar para isso.
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– Regiane engatilhou a arma, agora encarando-a desafiadora. – Eu estou aqui para colaborar
com a Polícia. Eu tenho alguns arquivos nesta pasta que quero que você olhe antes de
qualquer coisa. Depois temos um lugar para visitar. – Sil jogou a pasta aos pés de Regiane,
que acompanhou com os olhos sem parar de mirar a arma na cabeça da menina. – Eu não
tenho o dia todo. Melhor ver logo o que tem aí.

Assumindo que a policial estaria mais à vontade na presença de alguém mais humano, Sil
removeu lentamente sua máscara, e só quando encarou os olhos grandes e castanhos da
menina à sua frente é que Regiane relaxou um pouco, abaixando para apanhar a pasta sem
guardar a arma de volta no coldre. Olhando rapidamente o conteúdo dentro da pasta, ela
identificou plantas baixas do Complexo Sônia Ubiratan, além de fotos térmicas que
mostravam a existência de uma base subterrânea embaixo do centro esportivo.

- O que isso tudo tem a ver com a Polícia? – Indagou ela.

- A menos que você seja estúpida o bastante, o que acredito que não seja, a policial já deve ter
percebido que tem recebido ajuda para aprisionar uma pá de bandidos nos últimos meses. O
que todos esses caras que você tem prendido recentemente – e que o juiz Sérgio Alcântara
tem soltado – têm em comum, é que eles fazem parte de uma organização criminosa chamada
A Corporação. Em escala menor ou maior de importância dentro da hierarquia do grupo,
todos eles contribuem para corromper São Francisco d'Oeste de dentro para fora e eu estou te
oferecendo a oportunidade de dar um golpe fatal nesses cretinos.

- O que vamos encontrar no subsolo do complexo esportivo? – Indagou Regiane, menos


arisca e enfim guardando o revólver na cintura.

- Respostas. Os graúdos da organização têm se reunido lá embaixo há meses. Acreditamos


que eles guardam nesse lugar provas importantes da existência da Corporação e que lá a
Polícia possa achar indícios suficientes de suas atividades criminosas para botar todo mundo
em cana.

- Eu conheço você. – Disse Regiane encarando Sil. – Você é filha de Demétrio Santoro, o cara
que foi morto na esquina da Rua Sant'Anna mês passado. – A menina sentiu um torpor dentro
do peito. Não queria lembrar do pai naquele momento. – Quem são seus colegas que têm me
deixado bilhetes escritos a cada "presente" que me entregam nas cenas dos crimes a que sou
chamada pessoalmente?

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- São amigos. Amigos que estão correndo perigo enquanto ficamos as duas aqui de conversa
fiada em frente à sua casa. – Naquele instante uma vizinha curiosa esticou o pescoço pelo
muro que dividia a casa de Regiane com a adjacente e a moça tomou uma decisão.

- Ok, garota. Estou convencida. Nós vamos até o batalhão para buscar uma viatura e iremos as
duas até o CSU. Não tenho grandes motivos para desconfiar da sua palavra depois das coisas
estranhas que tenho presenciado ultimamente nessa cidade.

À Sil soaria estranho andar com seu traje de batalha em meio as pessoas comuns que
frequentavam o Complexo Sônia Ubiratan naquela tarde ensolarada de primavera, por isso ela
optou por usar sua camuflagem para se tornar invisível enquanto caminhava ao lado da
policial Loyola. As duas desceram da viatura e caminharam até a recepção do lugar, onde a
moça usou seu distintivo para abrir as portas que estariam fechadas para todo o restante.

- E-Em que posso ajudá-la, oficial? – Indagou o recepcionista por trás do balcão, vendo sua
barba ruiva ser refletida no aviador que Regiane usava no rosto.

- Eu quero acesso ao subterrâneo do complexo e nem perca seu tempo me enrolando porque
eu sei que existe um porão secreto embaixo de nós. – Sil estava logo ao lado dela, invisível, e
quase deixou escapar um risinho debochado.

- Não sei ao certo...

- Vai mesmo querer que eu volte aqui com um mandado e quarenta viaturas fazendo
escândalo, moço?

O tom firme na voz de Regiane fez os joelhos do ruivo esmorecerem, e então ele levantou
uma placa de madeira que bloqueava a passagem para o interior do balcão, pedindo
cordialmente:

- P-Por favor, me acompanhe.

Sem saber que havia alguém com a policial, o recepcionista levou Regiane até os fundos do
que parecia ser um almoxarifado e então abriu uma porta secreta, digitando um código num

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teclado fixado na parede. Uma escadaria mostrou-se por trás da porta e ele pediu, parecendo
assustado:

- N-Não diga a ninguém que fui eu quem permitiu a sua entrada, oficial.

- Fique tranquilo. Dependendo do que vai acontecer aqui, provavelmente nunca mais ninguém
vai ter acesso a esse porão.

Somente quando Regiane tocou o subsolo e que luzes de emergência azuladas se acenderam
sobre suas cabeças é que Ferina voltou a se materializar. Ela não poderia voltar a se camuflar
pelos próximos sessenta minutos, até que as células de energia se carregassem totalmente,
mas ela omitiu esse fato de sua parceira.

- Melhor você ter certeza do que está falando, mocinha. Nada disso está me cheirando muito
bem. – O tom da oficial era sério, e enquanto ela começava a caminhar pelo corredor
iluminado que acabava em uma curva, ela desembainhou sua 9 mm.

A primeira sala do subterrâneo possuía uma mesa para dez lugares toda trabalhada em vidro.
As poltronas ao redor do retângulo de oito metros eram desenhadas em madeira fina com o
encosto e o assento forrados por um estofado vermelho fosco. Havia um telão de quatro
metros de largura atrás da cadeira da cabeceira e um projetor branco pairava sobre o centro da
mesa, preso a uma estrutura de alumínio. Uma porta ao fundo dava para uma segunda sala,
onde duas bancadas de computadores de última geração pareciam conectados a várias
câmeras de vigilância espalhadas pela cidade. Dali dava para ver as principais sedes de poder
de São Francisco em tempo real e cada minuto de filmagem parecia ser armazenado em
um mainframe ao fundo do recinto. Uma terceira porta dava para outra sala de reuniões, logo
depois do mainframe, e ali Ferina se viu espantada. Havia projetos impressos em tamanho de
pôster publicitário espalhados sobre a mesa e ela começou a apontá-los para a policial.

- Ainda acha que não tenho certeza do que estou falando?

Regiane guardou a pistola e apanhou um dos projetos, olhando com seus próprios olhos a
prova de que havia mesmo um grupo conspiracionista em São Francisco. A
planta 3D desenhada no papel mostrava uma rede de túneis interligada à futura estação de
metrô e ao final de dois dos terminais havia termelétricas gigantes em construção. Num outro
projeto, uma das termelétricas estava sendo exibida em detalhes, bem como um modelo
gráfico de algo denominado como motor de combustão interna.
73
- Então a reportagem da Gazeta estava certa. Esse tal Edmundo Bispo está mesmo planejando
colapsar as redes de energia do país para oferecer a sua energia térmica como solução! Não
era uma mentira inventada por um conspirador maluco!

- Não, policial. Não era. Eu e meus amigos já sabemos disso há bastante tempo, mas ninguém
estava muito a fim de acreditar na gente, apesar de esfregarmos as provas na cara de todo
mundo. – Sil pegou em mãos a planta baixa do tal motor e por trás da máscara sua expressão
enrijeceu-se. – Esse tal motor de combustão, no entanto, é novidade. Nunca tinha ouvido falar
disso. Se esse negócio for mesmo ativado, vai ser como ligar uma bomba atômica dentro de
uma fornalha. O Bairro dos Laranjais pode ir para os ares de uma só vez, matando centenas de
pessoas que vivem lá.

- Precisamos de reforços. – Regiane apanhou o rádio em sua cintura, apenas para constatar
que só havia estática ali embaixo. – Estamos sem comunicação. Precisamos voltar lá para
cima para acionar o batalhão. Temos que ir até o Bairro dos Laranjais agora.

Sil não estava ouvindo a policial, e de repente, a curiosidade a levou para próximo da parede
lateral daquela sala larga, onde ela sentia uma espécie de brisa escapar por uma fenda.

- Está sentindo um ventinho vindo dessa parede?

Sil mal mencionou aquilo, quando subitamente, um toque de suas mãos pareceu ter acionado
um painel oculto na parede, abrindo uma passagem secreta. Toda a parede pareceu deslizar
para trás, e alarmadas, as duas moças se afastaram. Regiane tomou a frente mirando
sua Glock e quando um novo cômodo se abriu a sua frente, ela foi entrando, pé ante pé,
cuidadosamente.

- Cacete!

Um verdadeiro arsenal surgiu diante dos olhos das duas, e Sil estava vendo dúzias de
armaduras de batalha cor-de-fogo completas, montadas dentro de armários vítreos, prontas
para serem usadas a qualquer momento. O conjunto possuía um exoesqueleto dorsal, proteção
para membros inferiores e superiores, luvas, botas metálicas e um capacete fechado, com
filtros de ar instalados. Centenas de armas de fogo mantinham-se penduradas em estruturas
enfileiradas de aço, além de um número quase infinito de munição de todos os calibres
possíveis e imagináveis, coletes à prova de bala e uma quantidade grande de dinheiro em
notas de cem, embaladas em saco plástico.
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- Pra que tipo de guerra esses caras estão se preparando? – Perguntou-se a policial.

- Eles não estão se preparando. Eles já estão prontos para guerrear contra a gente. Meus
amigos estão voando direto para uma cilada!

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CAPÍTULO 6 - MATE

MESMO QUE QUISESSE nos avisar sobre o que tinha encontrado nas instalações
subterrâneas da Corporação, Ferina estava impossibilitada pela enorme distância que nos
separava naquele momento. A comunicação via rádio auricular era limitada a um raio de ação
restrito, o que impediu que fossemos alertados sobre a armadilha para a qual estávamos
voando.

Segurando firme no manche da ASA, embora eu não soubesse que havia algo de errado, eu
estava sentindo uma sensação agoniante na base de minha nuca. Aquela pressão próxima do
osso occipital costumava funcionar como um tipo de alerta de que algo muito ruim podia me
acontecer e já estávamos perto de nosso destino quando pedi que Thunderwing e Espião
Negro se preparassem. Ignorando aquele pressentimento, eu acionei o modo automático de
voo do aeroplano e apanhei em meu cinturão o novo dispositivo que havia incorporado a meu
arsenal. Diante do para-brisa da ASA, era possível ver o vale onde uma das termelétricas de
Edmundo Bispo estava escondida e naquele momento eu apresentei o Imã a meus amigos:

- Eu criei o Imã com base em um dos projetos do CAD e eu tive a ideia de fabricá-lo depois
que passei a usar comandos magnéticos nos braceletes para atrair meus discos de arremesso
de volta para minha mão. O Imã tem uma autonomia de três disparos por recarga e me
permite emitir um campo eletromagnético que pode empurrar um alvo metálico de oitenta
quilos por até mesmo dez metros, com a potência de 7840 Joules. Se eu inverter a polarização
do campo magnético, eu posso atrair objetos que contém ferro em sua composição para
próximo de mim.

- Droga! Por que nunca pensei num equipamento como esse antes? - Chateou-se Antônio no
momento exato em que um comboio apareceu em nosso campo visual.

- Vejam. Parece que o homem finalmente chegou. Ele nem faz ideia que estamos aqui para
prendê-lo de uma vez por todas.

Ricardo ainda estava sem sua máscara de Thunderwing quando apontou em direção aos seis
caminhões que acompanhavam uma van, seguindo em direção oeste rumo a termelétrica lá
embaixo. A construção era uma das maiores que eu já tinha visto pessoalmente e emergia
imponente em meio ao terreno baldio onde ela tinha sido construída. À nossa esquerda, a
alguns quilômetros, estava o Bairro dos Laranjais e atrás dele, o morro da Boa Vista, onde a
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maior favela de São Francisco se estendia por quilômetros e mais quilômetros dali. Nosso
plano era confrontar Bispo e obrigá-lo a se entregar à justiça pacificamente, confessando seu
plano maquiavélico de colapsar as fontes energéticas do país para faturar alto, oferecendo os
serviços de suas termelétricas. Caso ele resistisse, nós estaríamos filmando a ativação da usina
pelas câmeras externas da ASA e vazaríamos o vídeo para a imprensa. Àquela hora, Alex
Batista já devia ter publicado o material que tínhamos disponibilizado a ele via e-mail, e de
uma forma ou outra Bispo estava exposto. Ele não tinha mais como vencer aquela batalha.

Logo que o comboio desapareceu no interior da usina, eu comecei a tomar as medidas


necessárias para pousar a ASA a uma distância segura e desativei a camuflagem da nave. Nós
três desembarcamos e começamos a correr em direção aos fundos da termelétrica, sem sermos
notados. Dava para ouvir um ruído muito alto vindo de dentro da estrutura de concreto. Era
algo semelhante ao trabalho de pás gigantes dentro de um condensador, ao mesmo tempo em
que um rugido anunciava a geração de energia elétrica. Cabos de tensão cobriam uma
extensão grande de terra saindo da usina e indo até o Bairro dos Laranjais. Estava mais do que
claro que a termelétrica já estava em funcionamento há algum tempo.

Nós corríamos uma distância de oitenta metros da ASA até a usina, quando o som de hélices
se sobressaiu aos ruídos da base de energia, nos pegando desprevenidos. Dois helicópteros
Apache, costumeiramente usados pela Força Aérea Americana, surgiram repentinamente no
céu, com um estrondo ensurdecedor. Sem qualquer hesitação, duas poderosíssimas
metralhadoras automáticas de uma das máquinas aéreas começaram a disparar contra nós
projéteis altamente destrutivos, enquanto o outro Apache atingia a ASA estacionada com um
míssil Stinger.

- É uma armadilha!

O grito de Thunderwing ecoou em nossos ouvidos pelo rádio auricular e de repente, me vi


sendo arremessado contra o muro de granito que sustentava o morro adjacente a usina. O
impacto das rajadas disparadas contra nós começou a esburacar o chão de terra onde
pisávamos e cada um de nós foi alvejado pelo menos uma vez pelos tiros, que destruíram a
camada antibalística de nossos trajes como se fosse feita de papel.

- Saiam do campo de visão dos helicópteros!

Meu grito antecipou uma nova sequência de disparos que nos forçou a correr desesperados
para o interior da usina. Minha capa tinha sido rasgada com muita facilidade e buracos tinham
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sido abertos na camada protetiva das minhas costas. Eu sentia como se bolas flamejantes
tivessem sido atiradas contra mim e já estava difícil respirar. Thunderwing tinha menos
mobilidade em seu traje robusto e ele tinha sido o mais atingido. Coxeando de uma perna, ele
precisou de ajuda para chegar até a parede de pedra da usina, onde sob a sombra da estrutura
gigantesca, nós nos escondemos momentaneamente. O rugido do motor dos Apaches ainda
podia ser ouvido daquela distância e eles pareciam sobrevoar a área à nossa espreita,
impedindo que voltássemos para a ASA. Espião que estava com o capacete rachado e o visor
estilhaçado, começou a avaliar os danos:

- E-Eles sabiam que a gente estava vindo. Era uma armadilha o tempo todo e a gente caiu! -
Sua voz estava trêmula. - Nós fomos fuzilados por helicópteros de guerra. C-Como o Bispo
tem esse poder bélico?

Eu recuperava o fôlego olhando o fogo consumir a fuselagem da ASA ao longe. Eu não


acredito que eles destruíram a minha nave com um míssil!

- Antes de se aliar a Maranelli, Menezes e Falcão, Bispo já devia ter contatos criminosos. Não
deve ter sido difícil para ele conseguir esse poder bélico todo.

- Mas são máquinas de guerra de dezoito metros! Helicópteros do exército dos Estados
Unidos. Como ele conseguiu dois desses?

Não era hora para conjecturas e Espião sabia tanto quanto eu. Dava para ver o medo através
dos olhos de Thunderwing a nosso lado, e segurando a perna ferida ele gemeu:

- A gente precisa sair daqui. Cancelar a missão. Não temos chance!

Estávamos realmente encurralados naquele canto, sendo caçados por duas máquinas voadoras
assassinas, mas eu sabia que não teríamos outra chance de pegar Bispo. Ele havia armado uma
cilada para nós três com a mensagem falsa via telefone e sabia que não teria testemunhas de
nosso assassinato ali naquele lugar quase deserto.

- Não dá mais para recuar. Eles dispararam um míssil na ASA. Não sabemos a gravidade dos
estragos. Nem dá pra saber se ela ainda vai conseguir levantar voo. A gente precisa ir até o
fim agora.

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Era difícil pedir algo daquela magnitude para meus amigos, mas mesmo cientes que aquela
podia ser nossa última missão juntos, os dois concordavam que não teríamos outra
oportunidade de derrotar Bispo. Embora estivéssemos feridos, nós decidimos invadir a
instalação, mesmo desconhecendo completamente o que encontraríamos lá dentro.

Nós três entramos furtivamente na usina e logo nos espalhamos. Após ser puxado para cima
por meu arpéu a uma altura de dez metros, eu alcancei uma plataforma, de onde eu conseguia
enxergar uma sala ampla de máquinas. Dava para ver a turbina que acionava o gerador
elétrico, o transformador que conduzia a carga energética gerada e o condensador, cujo som já
tínhamos ouvido lá de fora. A temperatura ambiente aumentava consideravelmente a medida
que eu avançava sobre a caldeira e mesmo com meu traje avariado, eu consegui acionar o
sistema de refrigeração interno, diminuindo o calor. Não havia sinal de nenhuma das pessoas
que tínhamos visto entrar no lugar com os caminhões e a van. O rádio chiou pela primeira vez
depois que nos separamos:

- Na escuta? Eu estou na parte inferior da usina. Consigo ver daqui o Bispo reunido com uns
dez capangas. Pelos risinhos, eles devem achar que acabaram com a gente lá fora. - Era o
Espião, dando seu informe. - A van que trouxe o cara está aqui com as portas traseiras abertas,
mas não há nenhum sinal dos caminhões que entraram na usina.

- Eu estou vendo os caminhões daqui. - Era Thunderwing, em outra posição. - Eles estão
estacionados um ao lado do outro na parte leste da termelétrica. Ainda não dá pra ver o que
tem dentro do baú deles, mas tem uma galera reunida perto dos veículos. Parecem os
milicianos que enfrentamos na Alameda dos Cajarás. Estão fortemente armados.

Nós tínhamos sido enganados quanto ao motivo da presença de Bispo na termelétrica e


estávamos andando no escuro em terreno hostil. Ao que constava, a usina já estava em
funcionamento há algum tempo e não parecia haver uma equipe técnica ali dentro para manter
a geringonça funcionando, o que podia significar que o magnata não queria colocar suas vidas
em risco caso acontecesse o conflito que nós tínhamos atraído para lá. Ele próprio parecia
exposto em campo aberto, rindo com seus colegas, o que também parecia significar uma isca
para atrair sua presa; no caso, nós três.

- Mantenham posição. Ele está querendo nos atrair se oferecendo como isca. Nós vamos cair
em sua armadilha e ver no que vai dar.

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- Ficou maluco, Pássaro? - Era a voz de Thunderwing. - Ainda nem sabemos quantas pessoas
tem aqui dentro. Não sabemos o que veio dentro dos caminhões. Aparecer na frente dele
agora é suicídio.

- Só há um jeito da gente descobrir. Me deem cobertura.

Eu sabia que podia me arrepender daquela decisão, mas tínhamos avançado muito no
tabuleiro para recuar agora. O rei estava a nosso alcance e aquela era nossa única chance de
fazer o xeque-mate.

Dois discos de arremesso surgiram girando sem o menor aviso de trás de um condensador e
atingiram em cheio dois dos capangas que cercavam Edmundo Bispo. Estávamos em um pátio
aberto com máquinas funcionais ao redor. Um teto alto fazia sombra sobre nossas cabeças e o
lugar estava repleto de vapor d'água. A caldeira emitia um ruído muito alto, como o de um
trem a vapor à toda velocidade. Eu emergi da névoa que tomava aquele espaço e os oito
comparsas do magnata tomaram sua frente, engatilhando suas armas automáticas. Antes que
eles pudessem me fulminar, eu acionei o gatilho do Imã, e uma força negativa descomunal
arrancou os fuzis metálicos das mãos dos homens, atraindo-os para onde eu estava. Perplexos
por terem sido desarmados por uma força invisível, eles me viram pisar sobre suas armas no
chão, apontando na direção deles o aparato atado a minha mão direita espalmada. Eu ainda
tinha dois disparos.

- Não sei se já leu os jornais, Edmundo Bispo, mas eu acho que seus dias de maquinações
contra essa cidade se encerram hoje. - Eu tive que elevar a voz. O som da caldeira estava
ensurdecedor ali dentro. Eu sabia que os homens ao redor de Bispo ainda podiam sacar as
pistolas em seus coldres, mas eles não tinham recebido a ordem.

- Então você é o menino levado que tem me causado tanta dor de cabeça nos últimos meses?
Confesso que esperava mais. - Seus homens riram. Bispo tinha um ar confiante no rosto. Não
transparecia nervosismo ou insegurança olhando para mim. Estava calmo. Até demais. - Eu já
tive muitos adversários em minha vida como empresário, mas é a primeira vez que um
pirralho se coloca entre mim e meus objetivos. O que você quer, filho? Fama? Você quer ver
essa máscara ridícula estampada na capa do jornal? Quer ser chamado de herói, aclamado
pelo povo? É isso? - Os capangas começaram a abrir espaço para o patrão e então Bispo deu
dois passos à frente. - Não sei se você sabe como funciona a vida real, mas heróis de verdade
não existem. É tudo ficção, coisa de cinema. Que tal agora você abaixar esse aparelho aí, seja
lá o que ele for, pegar seus amigos que devem estar aqui dentro em algum lugar e sair da
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minha usina? Prometo que eu mando os helicópteros se afastarem. Eles têm ordens apenas
para assustar. Eu deixo vocês saírem, sem ressentimentos.

- Eu cometi alguns erros ao longo dessa jornada até aqui, Bispo, mas eu finalmente entendi
como se joga o seu jogo. - Ele estava com as mãos levantadas e continuou ali me encarando. -
Eu subestimei a sua capacidade de manipular pessoas algumas vezes, mas agora eu finalmente
achei um meio de acabar com seu plano sujo de conseguir mais poder. Você chegou ao fim da
linha. Nós revelamos seu plano de colapsar as fontes energéticas do país para todo mundo.
Cada cidadão de São Francisco agora sabe exatamente quem é de verdade o cidadão exemplar
que vem investindo no avanço tecnológico da cidade há anos. Agora cada pessoa que você e a
família Santinni manipulou todo esse tempo sabe exatamente que seu objetivo final com toda
essa sua benevolência de empresário bonzinho era usar São Francisco como um modelo
autossustentável de energia térmica. Ninguém mais vai ser enganado. Acabou. Nós viemos
aqui para aceitar sua rendição pacífica.

A expressão de Bispo ficou mais dura e então ele começou a bater palmas firmemente.
Alguns de seus capangas já tinham apanhado suas pistolas e os dois primeiros que eu tinha
nocauteado na testa com meus discos já começavam a se levantar.

- Estou vendo que o garotinho metido a herói fez mesmo a lição de casa. - Ele parou de
aplaudir ironicamente. - Admito agora que quem subestimou você e sua turminha fui eu. No
começo, eu achei suas ações contra as refinarias, e depois detendo a exploração daquela área
florestal, apenas irritantes, mas agora vejo que esse foi meu erro. Eu não achei que você iria
tão longe. - Ele estacou a cinco metros de mim. Parecia desarmado. Confiante demais em seus
guardas. - Você veio aqui me acusar de manipulação, mas não parou para pensar em nenhum
momento tudo que fiz de bom a essa cidade. - Bispo estava quase sorrindo. - Enquanto você e
seus amiguinhos mimados saltavam por aí estragando meus planos, nenhum de vocês sequer
percebeu o quanto a cidade deve ser grata a meus esforços em torná-la um modelo de sucesso.
Eu investi milhões para dar conforto e segurança aos cidadãos. Fiz cada obra sair do papel
pensando no futuro das pessoas e eu as deixei felizes com isso. Ninguém pode reclamar do
que fiz. Até mesmo controlando o submundo do crime eu fiz um bem a São Francisco. O que
acha que vai acontecer se eu sair de cena? Acha que a paz e segurança conseguem se manter
ilesas por quanto tempo? - Ele falava com uma eloquência hipnotizante - Confesso que eu
deixei a sua brincadeira de mocinho e bandido ir longe demais. Eu já devia ter investido um
pouco mais para descobrir quem se esconde atrás desse capuz e acabado com a sua família,
exterminado todos eles, assim como aconteceu com os funcionários daquela pizzaria. Com
verme não se brinca. Verme a gente elimina!
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Aquela foi a gota d'água e por um impulso primal eu me vi acionando o gatilho do Imã, antes
mesmo que eu tivesse planejado minha próxima ação. O campo magnético arremessou Bispo
e os outros dez homens para trás, levantando-os do chão pela força do empurrão nos
equipamentos metálicos que usavam. Era esperado que eles estivessem vestidos com coletes à
prova de balas por baixo da roupa e aquele palpite tinha feito toda a diferença.

- Você está acabado, Bispo. Se renda!

Eu caminhava até onde ele e seus capangas estavam caídos após a onda de choque que os
tinha atingido, e acreditando que eu realmente o tinha vencido, de repente, fui surpreendido
por rajadas de metralhadoras que me acertaram pelas costas.

- Ataque pela retaguarda! - O grito de Thunderwing veio tarde demais de sua posição no alto,
e quando olhei, eu estava cercado por um grupo de vinte soldados que usavam armaduras
tecnológicas cobrindo todo seu corpo, cópias exatas das que Ferina havia encontrado no
subsolo do CSU. Eu estava sem espaço para tentar usar a última carga do Imã e minha
primeira reação foi me atirar para trás do condensador de oito metros, enquanto as balas me
atingiam ininterruptamente por todos os lados. Espião Negro que estivera ali embaixo fazendo
a minha cobertura, também tinha sido pego de surpresa com a velocidade do ataque, mas tão
logo me viu rolar para trás do condensador, ele arremessou duas kunais explosivas contra os
soldados, apanhando alguns deles com a explosão. Lá de cima da plataforma, Thunderwing
começou a disparar seus projéteis embebidos em toxina dos nervos contra o destacamento
vermelho, mas logo percebeu que eles eram inúteis naquela situação.

- A armadura deles é resistente demais. Meus projéteis não passam.

Enquanto aquela tropa de choque avançava, Bispo desapareceu dali com os capangas, saindo
com a van à toda velocidade e indo para espaço aberto. Ele parecia confiar que seus soldados
metálicos iam terminar o serviço que os helicópteros tinham começado do lado de fora, e pelo
modo como tínhamos sido atingidos tão rapidamente, até mesmo eu estava acreditando
naquilo.

- De onde saíram essas armaduras? Não temos chances contra esses homens de ferro!

A voz de Espião foi abafada por uma saraivada de balas que explodiu a parede do
condensador que nos dava cobertura, e naquele momento, tivemos que bater em retirada.
Thunderwing arremessou explosivos de cima da plataforma e um estrondo sacudiu a estrutura
82
da usina atrás de nós. Sua ação tinha criado uma barricada entre os soldados e a gente, mas
ainda não era o suficiente para encerrar o tiroteio. Sentindo os efeitos do primeiro ataque com
os Apaches, nós nos deslocamos pela termelétrica até atingir o pátio central da caldeira. O
calor era ainda mais elevado ali dentro e ficamos encurralados quando um novo esquadrão
ainda mais bem armado que o primeiro surgiu em nossa frente.

- Brigada de Elite em posição. Vamos executar os alvos.

A voz eletrônica de comando por trás do elmo metálico soava como a de Espião Negro em
seu capacete, e foi uma questão de segundos até que estivéssemos sendo alvejados
violentamente diante da caldeira que fervilhava. Nossos trajes estavam avariados demais para
que conseguíssemos sobreviver àquele fuzilamento e eu fui obrigado a usar a última carga do
Imã, o que golpeou todos os soldados da Brigada de Elite simultaneamente. A pólvora no ar
dos tiros que já tinham sido disparados, mais o calor da queima do combustível na caldeira
criou uma reação em cadeia que nos arremessou para trás. O choque da explosão pegou os
soldados desprevenidos, porém, protegidos dentro de suas armaduras, eles estavam em
vantagem. Eu sentia como se cada osso de meu corpo tivesse sido atingido pelo impacto, e
segurando Espião, nós saímos nos arrastando dali, antes que os homens de ferro se
recuperassem. Um alarme de emergência começou a soar em toda a termelétrica no instante
seguinte e enquanto corríamos para salvar nossas vidas, ouvimos o rádio auricular chiar:

- Vocês estão bem? - Era a voz de Ricardo.

- Escapamos por pouco da última explosão, mas parece que ela atingiu alguma coisa
importante dentro da usina. Consegue ver algo daí de cima? - Indaguei.

- Não sei ao certo, mas parece que tem um tipo de gerador gigante em chamas. - A voz de
Thunderwing soava baixa mesmo no ponto eletrônico. Além da sirene do alarme, a caldeira
apitava agora sem parar, expelindo jatos cada vez mais fortes de vapor e de combustível,
avariada. A temperatura estava aumentando a níveis insuportáveis.

- Como é esse gerador, Thunder? - Indagou-lhe Espião, aos gritos.

- Não sei. Ele é grande e parece que cria algum tipo de combustão interna.

- Isso não é um gerador. - Deduziu ele. - É um motor de combustão interna. Ele usa a fissão
de urânio enriquecido como combustível. - A voz de Antônio soou esganiçada.
83
- Espera! Você disse urânio? Isso não é radioativo? - Indaguei.

- É sim! Se esse motor explodir, ele vai varrer tudo ao redor num raio de uns trinta
quilômetros. Vai ser o fim desse bairro, do morro da Boa Vista... Vai ser o nosso fim!

De onde estávamos, era possível ver as labaredas começarem a dançar sobre nossas cabeças e
o ar estava se tornando cada vez menos denso. Fuligem e brasa esvoaçavam para todos os
lados com a queima do material volátil, e a sombra dos homens da Brigada de Elite surgiu em
meio aos vapores expelidos. Tiros voltaram a retinir no material metálico dos condensadores e
naquele momento tomei uma decisão:

- Rápido! Você precisa tentar impedir o colapso do motor. Eu vou atrair os tiros da Brigada
para mim. Você vai dar a volta e tentar alcançar o motor.

Antônio sabia que não tínhamos muitas opções e quando tentou balbuciar algo para tentar me
dissuadir daquela que parecia ser uma manobra suicida, novos tiros ricochetearam perto
demais de nossas cabeças, nos fazendo correr em direções opostas.

Havia cinco soldados da Brigada correndo atrás de mim e era uma questão de tempo até que
eles se juntassem aos outros vinte que Thunderwing havia detido lá atrás. A maior arma de
meu arsenal estava descarregada e eu tinha no máximo meia dúzia de explosivos nos bolsos
do cinturão, além de um par de discos de arremesso. A frase de Sil ecoava em minha mente,
mas era tarde demais para lamentar a falta de artifícios. "Como vocês querem combater tiros
de armas de fogo com faquinhas e disquinhos? ". Em meio à nuvem criado pela caldeira, eu
consegui ganhar certa vantagem em relação aos soldados, o que decidi aproveitar. Mais ágil
que eles, carregando menos peso, apesar de estar menos protegido e ferido, eu os conduzi para
uma passagem entre dois geradores de potência de uns nove metros de altura cada. O vão
entre os dois módulos era estreito o suficiente para que eles e suas volumosas armaduras só
pudessem passar por ali um de cada vez. O teto entre os dois módulos naquele corredor de
oito metros de comprimento era tão baixo que esticando os braços para cima, eu podia sentir
nele uma espécie de vibração através de meus dedos. Parecia haver uma tubulação acima de
minha cabeça, por onde um líquido muito quente corria. Na certa, eram os resíduos
descartáveis das turbinas passando por ali e eu tive uma ideia.

- Acha mesmo que pode enfrentar todos nós juntos, garoto? Mais cedo ou mais tarde nós
vamos acabar com você!

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Bradou o primeiro homem blindado, atravessando o corredor com certa dificuldade e me
encontrando do outro lado a esperá-los. Enquanto ele se aproximava de mim, já engatilhando
uma AR-15, seus companheiros se espremiam entre as paredes dos dois módulos, sem notar
as esferas explosivas grudadas no teto sobre eles. Antes que o primeiro me alcançasse, eu
detonei as bombas remotamente com um controle em minha fivela e o teto baixo desabou
sobre eles, deixando entrar um líquido escaldante que inundou o corredor. Embora eu
soubesse que o único homem que restara em seu traje metálico não era burro o suficiente para
atirar em espaço tão fechado, a fim de evitar outra reação em cadeia, eu coloquei toda a força
que tinha em um chute contra o cano da arma, desarmando-o. Hermeticamente protegido
dentro de sua roupa, ele estava distraído o suficiente com a explosão a suas costas para me
notar, e enquanto a água de resíduos alcançava nossos pés, eu apliquei-lhe um soco na viseira
do elmo, seguido de um chute no centro da caixa torácica. Seus colegas estavam naquele
momento imobilizados embaixo dos escombros e agora era dele toda a responsabilidade em
me matar. Meus golpes mal tinham desequilibrado o cara e decidido a poupar meu fôlego,
uma vez que o oxigênio puro começava a faltar dentro daquele inferno escaldante, eu me
calei, procurando achar uma maneira rápida de me livrar dele.

- Eu vou acabar com você, magricelo!

O reservatório de ar em meu traje estava bem escasso e eu percebi no mesmo instante que
tinha pouco tempo para me livrar daquele sujeito. Sua armadura protegia todos os pontos de
pressão do corpo humano que eu havia aprendido a atingir com o Fei Hok Phai, e saber Kung
Fu não estava me adiantando nada naquele momento. Muito mais lento que eu, o sujeito
começou a me atacar com socos fortes, me obrigando a esquivar. Embora não conseguisse
atingi-lo de maneira efetiva, ainda tentei precipitar chutes rápidos na lateral de seus joelhos e
aquilo passou a desequilibrá-lo. A água suja e fervente escorria de dentro da tubulação furiosa
e já dava para senti-la em meus tornozelos. Eu sofria com dores quase lancinantes nas costas,
provocadas pelos tiros do helicóptero. Sabia que quanto mais prolongasse aquele embate
corpo a corpo, mais eu aumentava as chances de meu adversário me superar, o que me fez
tomar uma medida extrema. Ao olhar para cima, eu enxergava uma viga horizontal de
concreto a uns oito metros, na parte onde o teto voltava a ser alto. Sem hesitar, eu apanhei
minha pistola e disparei o arpéu. O gancho se enrolou com a corda na viga, e enquanto a
carretilha me alçava, eu joguei uma esfera explosiva no chão, perto do soldado, detonando-a
em seguida. Eu tinha certeza que a armadura o protegeria do impacto assim como tinha feito
com seus colegas no corredor, e após o estrondo, eu o vi afundar no chão rústico, caindo para
o nível de baixo da termelétrica, junto com quilos de granito e litros de água com resíduos.
Não dava para ser sutil numa situação como a que eu estava.
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Ali perto, Espião Negro estava lutando para evitar a degradação total do motor de combustão
interna que serviria para gerar energia térmica para São Francisco junto da termelétrica, mas
era uma questão de tempo até que os demais membros da Brigada de Elite o alcançassem.

- Eu tentei tudo que podia e não vou conseguir deter a destruição do motor. - Dava para ouvir
o som de tiros pelo rádio. - Eu usei todas as kunais explosivas que eu tinha na cartucheira para
formar uma cerca ao redor desse trambolho. Há um nível subterrâneo abaixo de nós. Eu vou
me afastar o suficiente daqui para escapar da Brigada de Elite e vou acionar
as kunais explosivas cravadas no chão remotamente. Já que não posso deter a explosão, vou
tentar soterrar o motor o mais fundo que conseguir para causar o mínimo de estrago possível
na vizinhança.

O plano era ousado, mas não tínhamos muitas alternativas. Soterrado, o motor tinha menos
chances de devastar todo o entorno, mas certamente iria destruir o lugar onde estávamos, nos
levando junto no processo. Eu estava sobre uma plataforma metálica e dali dava para ver
quase todo o interior da termelétrica. O fogo causado pelo vazamento do combustível da
caldeira começava a atingir boa parte dos equipamentos e lá na frente, a uns quinze metros, eu
localizei Thunderwing, cujo rádio estava mudo. Ele enfrentava no braço dois soldados da
Brigada que o tinham alcançado ali em cima e estava em clara desvantagem, fazendo um
esforço sobre-humano para se esquivar dos golpes, coxeando de uma das pernas. Havia uma
fenda de uns quatro metros a minha frente me impedindo de correr até meu amigo e ajudá-lo,
e eu já me preparava para saltar quando uma estática no rádio me paralisou:

- Alguém na escuta?

A voz de Ferina soou em meu ouvido e eu senti um misto de euforia e angústia.

- Pássaro Noturno na escuta. É bom ouvir sua voz mais uma vez, Ferina, mas não é um bom
momento para se aproximar da termelétrica. Ela está prestes a ir para os ares!

Ela deu um risinho meio sarcástico e em seguida respondeu:

- Para de choramingar, magrelo. Eu trouxe reforços. Não está ouvindo as sirenes?

Sem que a gente soubesse, um verdadeiro batalhão de viaturas da Polícia estava se


aproximando da termelétrica naquele momento. Comandados pelo inspetor e delegado
interino Rui Guimarães, os policiais de São Francisco, Marechal LaRocca, Calheiras e regiões
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próximas vinham a toda velocidade, com o objetivo claro de prender Edmundo Bispo e todos
seus asseclas. Sil estava no interior de uma das viaturas, ao lado da policial Regiane Loyola.

- Peça para que a Polícia forme um perímetro ao redor da área, Ferina. Está tudo pegando
fogo aqui dentro. Bispo e seus capangas vão tentar fugir. Ele tem dois helicópteros de guerra.

Um som muito agudo de uma rajada de tiros ecoou pelo rádio auricular e naquele momento eu
tive a certeza que os Apaches tinham voltado à cena, tentando deter o avanço da Polícia. O
calor dentro da termelétrica estava alto demais e eu já começava a sentir sintomas de fadiga.
Calculei mal o salto pela fenda, e por pouco não despenquei sobre uma turbina que girava a
todo vapor lá embaixo. Sil não estava mais respondendo pelo rádio, e eu alcancei a plataforma
onde Thunder lutava com os dois homens blindados a tempo de vê-lo se livrar de um deles
com um empurrão. O grito descendente do soldado ecoou por um breve instante, mas não foi
possível ver onde ele caiu. Thunder ejetou as lâminas em seu pulso um segundo tarde demais
para evitar que um soco violento o atingisse na cara, deslocando sua máscara. A temperatura
elevada daquele lugar devia estar cozinhando seu rosto contra aquele material metálico e
aproveitando-se de sua distração, enquanto ele procurava arrumar a máscara, seu oponente
deu-lhe uma nova pancada com o cabo do fuzil, desnorteando-o. Thunder estava
impossibilitado de se esquivar com sua perna machucada, e um terceiro golpe o atingiu de
cima para baixo, deixando-o inconsciente sobre a plataforma. Eu vi a máscara de meu amigo
voar de seu rosto e se precipitar para uma verdadeira fornalha abaixo dos dois, e foi então que
entrei em ação, já próximo o suficiente para chamar a atenção de seu adversário:

- EI, IMBECIL!

Sobressaltado por meu grito, o homem blindado agarrou o braço de Thunder no mesmo
instante e encostou o cano de sua arma na cabeça dele, olhando em minha direção.

- Não se aproxima ou seu amigo aqui já era. - Dava para ver as chamas refletindo na viseira
espelhada do soldado. Minha pulsação estava acelerada. - É melhor você se render, se não
quiser que eu exploda a cabeça dele!

A passarela metálica tremeu logo que o núcleo do motor de combustão interna atingiu sua
temperatura de fusão. A caldeira expelia verdadeiros gêiseres de um vapor escaldante dentro
da termelétrica, aumentando sua temperatura a níveis insuportáveis. O sistema de refrigeração
de meu traje estava em nível máximo e não estava dando conta daquele calor infernal.

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Quando o núcleo rompesse, a explosão do motor ia varrer aquele bairro. O tempo agora era
curto.

- Já disse! Se renda ou eu acabo com o seu amigo!

A voz eletrônica por dentro do capacete do soldado soou nervosa do outro lado da ponte, o
suficiente para que eu interrompesse meu avanço na passarela e começasse a erguer meus
braços lentamente. Mesmo com os filtros de ar internos em meu capuz, era difícil respirar. O
ar quente estalava ao nosso redor, brasas esvoaçavam por todos os lados e o ruído do
rompimento gradativo da caldeira nos obrigava a berrar para nos comunicar.

- Tudo bem. Eu não vou tentar nada. Apenas aponte a arma para mim e deixe meu amigo aí
no chão.

Thunderwing estava desmaiado sem sua máscara protetora, sendo soerguido do chão por seu
braço. O cano da AK-47 estava encostado em sua têmpora. O dedo do soldado não saía do
gatilho um só segundo. Qualquer coisa que eu tentasse jamais seria rápido o bastante para
evitar a execução à queima-roupa de Ricardo. Cada minuto que passava, aumentavam as
chances de a termelétrica ir para os ares, acabando com todos nós no processo. Espião Negro
e Ferina não tinham como ajudar, estavam ocupados demais. As paredes do local agora
tremiam ante a força do motor prestes a colapsar. Estávamos a uns dez metros do inferno e ele
estava nos alcançando ali em cima.

- Você venceu. Está no comando. Apenas aponte a arma para mim. Eu quero me render. - Eu
precisava continuar chamando sua atenção para que ele parasse de apontar a arma para
Ricardo. O fogo ardia cada vez mais intenso abaixo de nós. Eu só tinha uma chance. - Eu não
tenho para onde fugir mais. Está tudo pegando fogo.

- Cala essa boca! Ande devagar até aqui com os braços para cima.

A ordem do soldado foi interrompida quando um tremor incrivelmente forte sacudiu a


plataforma onde estávamos, fazendo-o perder o equilíbrio.

- Eu detonei as kunais. O motor afundou no nível inferior, mas o motor explodiu. Ele
explodiu!

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O berro de Antônio no rádio auricular me estremeceu e logo em seguida senti toda a estrutura
da termelétrica ruir. Rachaduras surgiram instantaneamente nas paredes ao nosso redor e no
teto, um jato incandescente de um líquido alaranjado partiu lá de baixo, encharcando meu
traje e foi naquela fração de segundos que eu agi. O disco partiu de minha mão o mais rápido
que consegui e mesmo girando numa velocidade incrível, o dedo do soldado apertou o
gatilho. Ele estava desequilibrado sobre a ponte, mas o cano do fuzil ainda estava na têmpora
de meu amigo desacordado. Um golpe de sorte absurdo salvou a vida de Ricardo quando a
arma engasgou no primeiro disparo e meu disco atingiu o meio do capacete do homem,
fazendo-o perder o apoio. Um par de lâminas, de repente, atravessou o antebraço do soldado,
obrigando-o a largar a AK. Enquanto ele urrava de dor, vendo seu sangue esguichar pela
abertura feita na armadura quase indestrutível, mesmo grogue, Thunder retraiu as garras de
seu pulso e viu seu adversário rolar por cima do corrimão da passarela e despencar para a
morte escaldante. Toda instalação da termelétrica começou a desmoronar, e enquanto blocos
gigantes de concreto despencavam do alto, eu e Thunder lançamos nossos arpéus e voamos
daquela ponte. Meu coração ainda parecia saltar pela boca depois de toda aquela tensão e
havia gratidão nos olhos de Ricardo a meu lado. Tinha sido por pouco.

Encontramos Espião Negro perto da saída da usina e firmamos os pés no chão segundos antes
de todo o teto do lugar começar a soterrar sua própria estrutura. Uma avalanche de fuligem e
poeira nos engolfou antes que conseguíssemos ver a luz do sol lá fora, e abraçados, dando
força um ao outro, não paramos de correr um só instante. Em meio a falta total de visibilidade
a nossa frente, acabamos perdendo o equilíbrio, tropeçando em escombros, e só voltamos a
abrir os olhos muito tempo depois. Meu ouvido zunia e meus músculos doíam quando percebi
um batalhão de policiais a mirarem suas armas para a gente a alguns metros de onde antes era
a usina. Eles gritavam alguma coisa em nossa direção que meus tímpanos não eram capazes
de distinguir, e do chão eu vi o momento em que uma silhueta esguia num traje brilhante
colocou-se entre eles e nós três, pedindo que não atirassem. Estava tudo acabado.

Ferina ajudava com os ferimentos de Thunderwing com ele apoiado sobre o capô de umas das
muitas viaturas estacionadas diante do que restara da usina termelétrica. A fim de manter sua
identidade ainda secreta, ele tinha enrolado uma camiseta velha em volta do rosto, enquanto
dezenas de policiais efetuavam as últimas prisões dos sobreviventes do bando de Edmundo
Bispo. Eu e Espião Negro analisávamos os danos na ASA a alguns metros de toda aquela
movimentação, e era incrível como a nave quase nada tinha sofrido após ser atingida por um
míssil com a potência de destruir uma rua inteira.
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- Mesmo com seu motor desligado, a ASA parece possuir algum tipo de sistema de defesa que
impede ataques aéreos. - Elucubrava Espião no interior da cabine - Algum radar interno da
nave deve ter rastreado o míssil segundos antes dele atingir sua fuselagem e ativou um campo
de força que absorveu a maior parte do impacto.

O terreno ao redor do avião estava totalmente destruído. Ainda havia focos de incêndio
causados pela explosão do míssil em volta, mas a ASA só tinha sofrido arranhões leves na
pintura.

- Seja lá quem tenha desenvolvido esse jato, parece que o cara era um gênio!

Eu estava na lateral da nave, ainda tentando encontrar alguma avaria, quando percebi uma
movimentação perto de nós dois. A policial Regiane Loyola vinha caminhando ao lado de um
outro oficial fardado em nossa direção e mais atrás Ferina apoiava o braço de Thunderwing
em seu ombro, ajudando-o a andar lentamente.

- Vocês fizeram um estrago bem grande lá atrás. - E a moça de pele parda apontou com o
polegar, em direção a usina arrasada.

- Vocês sabem que a gente devia prender os quatro por essa confusão toda, não sabem? -
Perguntou o homem negro de nariz comprido e cabelos crespos ao lado de Regiane. Eu hesitei
em responder.

- O oficial Pablo aqui tem razão. - E ela apontou para o colega. - Num dia comum, eu estaria
carregando todos vocês para o xilindró junto dos caras que vocês nos ajudaram a prender na
termelétrica, mas hoje não é um dia comum.

- Vai nos deixar ir embora, policial Loyola? - Indagou-lhe Espião Negro.

- Para todos os efeitos, nós recebemos uma ligação anônima que nos mandou vasculhar o
subterrâneo do CSU e descobrir os planos da Corporação. Quando chegamos ao local, a usina
já tinha sido destruída acidentalmente, por uma falha no sistema elétrico. Eu não vi ninguém
fantasiado com roupa de pássaro andando por aqui. Você viu, Pablo? - Indagou a moça ao
homem a seu lado.

- Não vi nadinha. - Respondeu ele, em tom irônico.

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Eu estava muito grato por Regiane querer ajudar a acobertar nossa participação no caso que
derrubou a Corporação, mas eu ainda precisava saber:

- Vocês conseguiram prender Edmundo Bispo?

Os dois policiais se entreolharam e a resposta veio imediata da boca dela:

- Ele conseguiu fugir. - Senti como se uma mão congelada tivesse atingido meu estômago
naquele momento. - Mas ele não foi muito longe não.

- Como assim? Onde ele está? - Questionou Antônio.

- Morto. - Respondeu Pablo. - Enquanto cercávamos a área em frente a usina, prendendo


todos os capangas que ele tinha trazido para cá para matar vocês, o filho da mãe deu um jeito
de escapar por uma passagem subterrânea, dentro de uma van.

- Ele ia usar a rede de túneis que a Corporação tinha criado embaixo da cidade para escapar,
mas uma das saídas acabou desmoronando sobre o veículo quando o motor de combustão
explodiu dentro do buraco que o do capacete aí fez. - E Regiane apontou para Espião Negro. -
A reação em cadeia da explosão acabou causando um tremor gigantesco no entorno da região
e o abalo acabou soterrando Bispo e dois de seus capangas. Nossos homens encontraram
a van destruída a alguns quilômetros daqui.

Tinha mesmo acabado. Thunderwing e Ferina estavam próximos o suficiente agora para ouvir
o restante.

- Vocês conseguiram desbaratar uma das organizações secretas mais perversas da qual ouvi
falar e a Polícia nem tem como agradecer de forma decente. - O tom de Regiane agora era
ameno. - Eu e Pablo estávamos praticamente imobilizados dentro da delegacia de São
Francisco d'Oeste sob o comando de Romero Assis. A gente não conseguia fazer nada com
aquele cretino sentado na cadeira de delegado e se não fossem vocês deixando aqueles
presentinhos embalados nas cenas dos crimes com os bilhetes endereçados a mim, nós jamais
imaginaríamos que algo tão grandioso estava acontecendo.

- Nós sabíamos que a cidade estava mergulhada fundo na criminalidade e que algo estranho
acontecia por essas bandas, só não imaginávamos que era tão estranho assim. Nós

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pensávamos que os grandes inimigos da cidade eram Antônio Maranelli e Gerônimo Falcão.
Nunca tínhamos desconfiado de Edmundo Bispo. - Confessou o policial Pablo.

Silmara se aproximou de Regiane e estendeu-lhe uma das mãos:

- Obrigada por acreditar na gente, oficial. Que bom que não precisei bater em você! -
Debochou ela.

- Você é mesmo atrevida, magricela! - Rosnou Regiane, pouco antes de apertar a mão
estendida da garota. - Mas agradeço por vocês terem confiado em mim também. No meio de
tanta gente corrupta, não deve ter sido fácil saber quem era de confiança naquela delegacia.

Nós começamos a nos preparar para voar de volta para casa e com um pouco de esforço,
Thunder conseguiu entrar na cabine da ASA. Os três se espremeram no banco traseiro do
aeroplano e eu já ia fechar o cockpit quando a voz de Regiane soou lá de baixo:

- Saiam um pouco de cena, meninos. Vocês agora serão perseguidos pela mídia e acredito que
a publicidade não vai fazer nada bem para o trabalho que vocês executam. - Ela piscou um
dos olhos e em seguida colocou um par de óculos sobre o nariz redondo. - Ah... E obrigada
mais uma vez.

Eu acionei as turbinas da ASA e ouvir o ronco daquele motor poderoso mais uma vez
revigorou minhas energias. O cockpit selou-se sobre nossas cabeças e com um aceno, eu me
despedi dos dois policiais. Eu não sabia o que o futuro reservava para o Pássaro Noturno, mas
eu tinha certeza que se ele continuasse na ativa, Regiane e Pablo seriam ótimos parceiros na
luta contra o crime. O trem de pouso já tinha se recolhido e a nave planava a onze metros do
chão acidentado enquanto eu manobrava. Um aglomerado de curiosos tinha se juntado nas
ruas do Bairro dos Laranjais lá embaixo e pescoços se esticavam para fora das janelas das
casas da Comunidade da Boa Vista, olhando assustados para a ASA levantando voo. No
banco de trás, sentada entre os dois, já sem sua máscara, Silmara envolveu seus ombros com
seus braços e os apertou, parecendo contente:

- Toca pra casa, piloto. Nós temos que comemorar essa vitória!

Os dois reclamaram de dor com o abraço envolvente e caloroso, mas era óbvio que eles
também estavam contentes e aliviados que tudo tinha acabado bem. Sil tinha razão. Aquilo
valia uma comemoração.
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CAPÍTULO 7 – FIM DO JOGO

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COMEÇAVA SEMPRE comigo sem meu traje de Pássaro Noturno entrando numa casa
sombria, com paredes que começavam a se comprimir sem o menor aviso. Depois, uma
centelha fazia os móveis velhos se incendiarem repentinamente, até que tudo estava em
chamas. Magno e Luiza estavam dentro do quarto ao lado. O fogo se espalhava rapidamente
pelo chão e o casal clamava por minha ajuda. Eu tentava alcançá-los, mas uma corrente de
elos grossos me prendia à parede. Havia um anel de fogo a meu redor, ardendo alto, e
enquanto Magno e Luiza gritavam de dor, uma risada ecoava na casa toda, me obrigando a
virar para saber quem estava ali, me impedindo de me mexer.

- Agora eu sei quem se esconde atrás desse capuz. Vou acabar com a sua família, exterminar
todos eles, assim como aconteceu com os funcionários daquela pizzaria. Com verme não se
brinca. Verme a gente elimina!

Edmundo Bispo estava ali com um olhar diabólico no rosto e a seus pés estava Ricardo, com
o traje do Thunderwing, sem sua máscara, desmaiado. Bispo o tinha na mira e quando ele
acionava o gatilho, com o cano da arma na testa de meu amigo, eu sempre acordava.

O pesadelo se repetiu por muitas semanas e o resultado era sempre o mesmo; um mal-estar o
restante do dia inteiro, como se o perigo continuasse rondando. Foram dias difíceis.

A real era que o perigo tinha passado por ora. Todo nosso empenho, toda nossa dedicação e
teimosia havia dado resultado. Eu e meus amigos tínhamos esfacelado a Corporação em
tantos pedaços que dificilmente eles voltariam a se juntar, em especial agora que o grande
articulador da organização havia perecido em meio a sua própria ganância. A morte de
Edmundo Bispo tinha virado manchete nos jornais de todo o Brasil no dia seguinte e a notícia
sobre seus planos de dominar a geração de energia térmica no país se espalhou por todo o
território nacional. As ações do grupo empresarial Xeque-Mate caíram de maneira quase
irreversível no mundo dos negócios e seus sócios tiveram que encerrar as atividades da filial
de São Francisco d'Oeste, tornando a imensa torre de vidro no centro da cidade um prédio
fantasma. As obras que levavam o nome de Bispo pela cidade tiveram que ser rebatizadas e já
não se tinha mais orgulho em dizer que o magnata morto era um "cidadão exemplar e
ilibado". Não havia mais razão em celebrar o nome de um homem cujos planos secretos
pretendiam elevar sua riqueza acima de tudo, deixando em segundo plano toda a benevolência
que antes parecia ser sua marca registrada. As pessoas agora sabiam que tinham sido
manipuladas por um lobo em pele de cordeiro e embora decepcionadas, estavam aliviadas que
seus planos maquiavélicos ao menos não tinham se concluído.

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Ainda que nós soubéssemos do envolvimento de todos eles com as atividades criminosas de
Bispo, não houve meios legais – ou mesmo ilegais – de provar sua participação dentro da
Corporação, e assim, a prefeita Renata Leme, a jornalista e empresária Manoela Santinni, o
chefe do tráfico Gerônimo Falcão e o bancário Paulo Menezes acabaram saindo ilesos de
todas as acusações e denúncias que explodiram nos meios midiáticos nas semanas seguintes.
Mais inteligentes que seus colegas, eles conseguiram ocultar bem seus rastros, impedindo que
nós chegássemos até eles por meio de grampos, interceptação de e-mails ou localização de
contas em paraísos fiscais.

No final do primeiro ano de seu segundo mandato como prefeita, Renata Leme já começava a
preparar seu vice Josleno Cavalcante para continuar o legado do PSN no comando da cidade,
e embora pouco da sujeira da Corporação tivesse respingado em sua imagem de política séria
e compenetrada, parte da imprensa continuava à sua espreita, esperando um pequeno deslize
para embocá-la. O partido rival do PSN na cidade também já se preparava para fazer uma
campanha política agressiva como nunca tinha se visto, e não ia perder a chance de usar a, até
então, suposta relação de Leme e o PSN com Edmundo Bispo para confrontá-la diretamente.
Aquela seria uma disputa interessante de se acompanhar nos próximos anos.

Manoela Santinni procurava manter a tradição da família em manter seu sobrenome


desconectado ao de Vicenzo Mateo, porém, ela não podia ignorar o processo que seu avô teria
que responder por sua ligação com o caso do bloco de exploração petrolífera na região
protegida ecologicamente da Alameda dos Cajarás. Vicenzo tinha autorizado o desmatamento
do local em associação com Edmundo Bispo e sua assinatura constava em diversos
documentos que agora estavam nas mãos da justiça. Secretamente, Santinni tinha contratado o
experiente advogado Benjamin Fujiwara do escritório Casavette & Montanaro para defender o
avô daquelas acusações, mas a jornalista vivia andando em uma corda bamba para não
relacionar o próprio nome ao do avô, já que ele fazia parte de um partido político e ela
representava a liberdade de imprensa – embora isso fosse um conflito ético. O projeto de
exploração de petróleo na floresta de São Francisco foi terminantemente proibido pelo
Ministério do Meio Ambiente e enquanto guardas florestais eram designados para fazer a
proteção da região, o velho Vicenzo lutava para provar sua inocência numa queda de braço
quase impossível de ser vencida.

Com a ausência do velho Toni Maranelli, que havia fugido da cidade por sua conexão com
Edmundo Bispo, Gerônimo "Belo" Falcão se tornou o novo rei do crime do pedaço e não
demorou até que o todo poderoso banqueiro Paulo Menezes se aliasse a ele, ajudando-o com o
serviço de lavagem de dinheiro e financiamento de armamentos. Com os dois à frente da
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principal facção criminosa de São Francisco, logo aconteceram dissidências em meio a
bandidagem, por desacordos com os métodos um tanto quanto violentos de Falcão. Enquanto
Maranelli procurava sempre pregar um entendimento financeiro comum a todos, Belo visava
apenas e tão somente o seu lucro pessoal, o que causou divergências de opinião. Não demorou
para que novas lideranças se formassem pela cidade e em muito pouco tempo verdadeiras
guerras de gangues começaram a esquentar as periferias, colocando em risco a segurança da
população mais carente. O próprio morro da Boa Vista virou alvo da disputa dos bandidos, e
enquanto as velhas milícias procuravam manter sua soberania sobre o lugar, Falcão e seus
inimigos tentavam abocanhar uma fatia da favela para si, criando uma animosidade ferrenha
pelo poder. O fim da Corporação não significava necessariamente que um reinado de paz
tinha começado em São Francisco, aliás, muito pelo contrário.

Se por um lado as novas lideranças dos delinquentes da cidade buscavam um meio de se


matar, as antigas começavam a experimentar as consequências negativas de seus atos
passados, começando por Carlos Eduardo Castellini, que após uma investigação minuciosa
comandada pelo delegado interino Rui Guimarães, acabou sendo desmascarado como um dos
principais fornecedores da tecnologia usadas por Edmundo Bispo para controlar a cidade. O
envolvimento de Castellini e sua empresa Castle Industrial com o fornecimento das armaduras
de combate da Brigada de Elite ficou escancarado quando documentos de concessão da
licença de uso do equipamento vazaram na mídia, iniciando uma investigação que levou a
Polícia a descobrir que o empresário tinha ligações antigas com Bispo e a máfia da cidade,
faturando inclusive uma boa porcentagem do que o tráfico de drogas arrecadava
semanalmente pela rota férrea de Toni Maranelli na Boca do Crime. O acordo entre ele e
Bispo gerava uma receita absurda tanto à Castle Industrial quanto para o grupo Xeque-Mate e
era bem claro que a nenhum deles era interessante que o tal acordo fosse divulgado
publicamente. Quando o conluio foi comprovado, Castellini acabou sendo condenado a uma
pena de três anos em regime fechado por associação criminosa, obrigando seu filho Carlos
Junior a assumir o conglomerado de engenharia mecânica e avanços tecnológicos mais cedo.
Castellini tinha designado um tutor para auxiliar o herdeiro na condução dos negócios da
família, além do que sua mãe Zulmira – a socialite conhecida como Zuzu Castellini – ajudaria
o filho a comandar as empresas na ausência do pai. Aquilo parecia uma piada de mal gosto,
mas o fato é que meu principal desafeto dos tempos de Ensino Fundamental agora era o dono
de uma empresa multimilionária, o que era bem certo que muito em breve ele também viria a
ser um dos inimigos de Pássaro Noturno caso viesse a seguir os passos de seu pai. A vida
tinha um jeito engraçado de me sacanear às vezes.

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A maioria dos capangas da Corporação que eu ajudei a prender foram enviados para a
Penitenciária Municipal de Marechal LaRocca e lá a maioria deles pegou penas pesadas de
quase vinte anos por crimes como tráfico de drogas, porte ilegal de armas e claro, assassinato.
Vitor Quebrada agora era colega de cela do cafetão J.J. "Jack" Hernandes e os dois se
encontravam muito com Hudson Porto nos banhos de sol que os detentos tomavam uma vez
por dia. O ex-braço direito de Edmundo Bispo era o piloto de um dos helicópteros Apache
que tinha tentado nos trucidar na armadilha criada por seu chefe na tarde em que o
confrontamos, e o cara acabou sendo preso dias depois do ocorrido, delatado por colegas que
tinham sido pegos pela Polícia ainda na termelétrica. Porto estava escalado para resgatar o
chefe em seu helicóptero assim que a Brigada de Elite entrasse em ação, mas quando o
delegado Rui Guimarães e os policiais Regiane e Pablo chegaram com força total ao local,
trazendo mais da metade das viaturas das cidades vizinhas, o plano foi por água à baixo. Porto
ainda tentou combater a Polícia a bordo de sua máquina de destruição alada, mas acabou
sendo obrigado a fugir. Seu chefe teve que escapar pelos túneis subterrâneos e acabou
morrendo em seguida. Na Penitenciária, Porto ainda se uniu a vários outros capangas de
Maranelli, Falcão - incluindo, claro o Cláudio Fontes - e Castellini e não era difícil imaginar
o tamanho do ódio que todos esses caras juntos passaram a nutrir por mim e meus amigos.

O "misterioso" Pássaro Noturno e sua equipe de super-heróis juvenis virou manchete por mais
de uma vez nos jornais da cidade – exceto no Correio d'Oeste, que preferiu falar sobre
jardinagem – e como a policial Regiane tinha nos alertado, nós começamos a ser perseguidos
pela mídia. Sem nenhuma foto nítida o suficiente que pudesse nos identificar, os folhetins
locais e os canais de TV começaram a especular nossas identidades secretas, além de
questionar se o que vínhamos fazendo pela cidade era certo ou não. Algumas matérias
sensacionalistas chegaram a apontar nosso trabalho como um "desserviço à justiça", além de
nos acusar de "vigilantismo inconsequente" e de promover "justiça com as próprias mãos",
mas era bem claro que ninguém - além da policial Regiane e seus colegas – sabia exatamente
qual tinha sido nossa participação na derrocada da Corporação. Aquilo não me incomodava
em nada. Eu não tinha começado aquela luta para conseguir publicidade ou ganhar holofotes.
Eu queria usar os equipamentos encontrados embaixo de minha garagem para diminuir as
injustiças sociais, bem como fazer com que alguns canalhas pagassem por seus crimes. Nesse
quesito eu tinha ganhado alguns pontos e tinha orgulho disso.

Estávamos às vésperas do Natal quando eu fiz a última visita do ano ao sítio de Sebá. Como
era de praxe, nós treinamos vários katis de Fei Hok Phai e começamos a aperfeiçoar alguns
movimentos de Hung Kuen, outro sistema chinês do século XVII que ele achou que seria
interessante que eu aprendesse para implementar minha fluência em artes marciais. Depois do
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treinamento incessante do Boxe do Tigre e da Garça, Sebá me instruiu a meditar no alto do
morro onde normalmente sentávamos para trocar algumas ideias após os treinos na academia
em seu quintal. Cerca de uma hora e meia depois, o grandalhão me encontrou lá, sentando-se
de frente para mim.

- Você tem evoluído incrivelmente rápido nas práticas de Kung Fu, Henrique, estou
impressionado. – Agradeci timidamente acenando com a cabeça. – Nesse ritmo, creio que
muito em breve eu não terei mais nada a lhe ensinar aqui no sítio. Você terá que procurar
outros mestres.

Fazia um calor desproporcional mesmo para aquela época do ano e uma lufada de vento foi
bem-vinda.

- Eu não quero procurar outros mestres, Sebá. Tenho tudo que preciso aqui nesse lugar
tranquilo e arejado. Eu gosto de estar aqui em especial pelo contraste com a vida que eu levo
lá na cidade, cheia de tecnologia, poluição... – Ele me fitava com ar sereno. – Acha mesmo
que estou evoluindo tão rápido assim? Pareço tão cru ainda!

- Você está evoluindo sim. Em comparação a meu sobrinho e seu amigo tagarela, você é meu
aluno mais dedicado e também o mais obstinado. – Havia uma ruga em sua testa e eu percebi
no mesmo instante que ele estava querendo dizer mais alguma coisa com aquela conversa.

- Tem alguma coisa errada?

- Eu sei que você é o Pássaro Noturno, Henrique. – A revelação foi abrupta e acabou me
pegando no contrapé, como quase sempre acontecia quando eu lutava contra ele no tatame. –
Não foi difícil juntar as peças do quebra-cabeça quando você surgiu aqui com o Ricardo e
aquela história de querer aprender a se defender para não serem mais vítimas dos colegas
grandalhões da escola. No fundo eu sempre soube que havia mais coisa por trás disso e a
resposta veio quando vi o Pássaro Noturno em ação naquele dia do incêndio na floresta.

- Você viu? Mas a Ferina mandou que você e os manifestantes saíssem de lá por causa dos
tiros!

- E eu saí. Assim que deixei os meus vizinhos de bairro seguros perto do rio, eu voltei para
espionar na mata e vi vocês lutando com aqueles soldados de igual para igual. Eu tinha

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ensinado a maioria daqueles golpes, não tinha como me enganar que não eram vocês ali
naqueles trajes de batalha.

Realmente não tinha como negar mais nada a ele.

- É por isso que quer me mandar para outros mestres? Eu desonrei o aprendizado do Fei Hok
Phai?

- Não, Henrique. Você não desonrou as técnicas que lhe ensinei. No começo eu achei que
tinha tomado a decisão errada em treinar você e seus amigos, mas quando os vi ali na mata tão
determinados a salvar a floresta e as pessoas que vivem aqui na Alameda dos Cajarás, eu
finalmente entendi que tinha feito a coisa certa. O que você tem feito é um trabalho muito
perigoso. As pessoas que você enfrenta não estão a fim de brincadeira. Elas são violentas, elas
são inescrupulosas. Eu jamais poderia bater em seu ombro e dizer um "é isso aí, garoto,
continue assim" porque seria irresponsável da minha parte. – Aquilo já estava parecendo uma
bronca. – Mas por outro lado, eu também não tenho o direito de dissuadi-lo da missão que
tomou para si de defender os menos favorecidos dessa cidade gigantesca. Se você acha que é
o melhor a ser feito, se acha que sua missão lhe trará a paz de espírito e o equilíbrio entre sua
razão e sua emoção que tanto busca, é isso que deve ser feito. – Sebá sorriu, como poucas
vezes ousava fazer. – Quanto aos outros mestres... Bem... Eu realmente acho que você vai
evoluir ainda mais aprendendo outras técnicas, outras formas de combate. Seu jogo de pernas
ainda é horrível!

Nós dois caímos na gargalhada em seguida, e passamos um bom tempo a conversar, vendo as
estrelas ganharem cada vez mais espaço no manto negro do céu. Não existia lugar no mundo
que me trouxesse tanto equilíbrio quanto aquele sítio no meio do nada.

Eu e meus amigos tínhamos conseguido interromper as atividades de uma das maiores


organizações criminosas do país, com potencial para se tornar a maior do continente sul-
americano e o preço daquela vitória tinha sido alto. Pela primeira vez nossos trajes especiais
tinham sido colocados à prova pra valer, e mesmo fabricados em sua qualidade quase
máxima, eles não tinham nos protegido totalmente dos danos físicos. Ricardo tinha sido o
mais afetado e as balas do helicóptero – que segundo Edmundo Bispo eram só para nos
assustar – causaram uma luxação séria em sua perna esquerda e escoriações severas nas
costas. Mesmo que sua armadura fosse bastante reforçada, a proteção dorsal não era páreo
para o calibre dos projéteis usados para destruir tanques de guerra, o que parando para

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analisar posteriormente, ele tinha tido muita sorte de não ter morrido do trajeto entre a ASA e
a termelétrica.

- Aqui é cabra macho! – Caçoou ele no dia seguinte, pouco antes de ser submetido a um raio x
e descobrir que teria que usar gesso e fazer fisioterapia depois disso.

Para Antônio, as consequências do tiroteio tinham sido graves também, mas não a ponto de
limitar sua mobilidade. O saldo para ele eram duas costelas trincadas e um tendão da mão
direita lesionado, algo que o tiraria da frente de seu PC 386 por algumas semanas.

- Vou usar esse tempo livre para ver se consigo montar um novo computador com peças do
ferro-velho do seu Juca. Aproveito para conferir se a termelétrica que estavam montando pelo
Bairro das Oliveiras foi mesmo desativada, como prometeram.

Os tiros que tinha levado de raspão nas costas tinham me causado escoriações bem feias nas
costas, além de queimaduras de primeiro grau. Meu quarto uniforme de Pássaro Noturno tinha
ficado bastante avariado, mas confesso que ele tinha resistido bem mais do que eu imaginava,
fato que com certeza salvou minha vida. Eu não conhecia muitas pessoas que tinham
sobrevivido a tiros de 30 mm disparados por um AH-64 Apache de 8000 quilos, por isso, eu
seria eternamente grato ao sistema antibalístico do uniforme que aguentou até mais do que
devia.

- Vou ter dores nas costas para o resto da vida por causa desses tiros, mas não posso reclamar,
já que tinha tudo para ter sido muito pior! – Falei em nossa primeira reunião no esconderijo,
em comemoração ao sucesso da missão.

As dores físicas realmente podiam ser compensadas por nossa vitória, mas nenhum de nós
tinha saído ileso psicologicamente daquele confronto. Em um primeiro momento ninguém
quis falar muito sobre o assunto, mas nosso próprio comportamento posterior revelou certo
abalo quanto a continuar a sermos super-heróis. Estar cara a cara com a morte mais de uma
vez não fazia de ninguém mais forte e aquela era uma experiência que alguns de nós não
estávamos prontos para repetir por vontade própria talvez nunca mais.

O ano em que derrotamos a Corporação estava terminando e foi ideia da minha mãe chamar
Ricardo e Antônio para um almoço especial de Natal em casa. Assim como acontecia quase
sempre em datas comemorativas, a casa estaria cheia de pessoas especiais para celebrar

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aquele momento de harmonia e paz, foi então que eu fiz o convite para Sil, que ainda estava
vivendo no subsolo da garagem.

- Está doido? Eu vivi todo esse tempo embaixo da casa da sua mãe sem que ela desconfiasse
de nada, usando a água dela, tomando banho no chuveiro dela... Agora você quer que eu
apareça num almoço de Natal do nada? Sem ela nem me conhecer?

- Vai ser só mais uma mentirinha, qual o problema? Eu digo que você é uma amiga da escola
nova. Ela nem vai desconfiar!

A garota resistiu à ideia bravamente por uns dois dias, mas no fim acabou topando. Eu jamais
me perdoaria de deixá-la jogada sozinha lá embaixo enquanto toda a família comemorava o
Natal na casa. Com a morte do pai e a dispersão das pessoas com a qual ela vivia no conjunto
habitacional abandonado, Silmara não tinha mais ninguém no mundo, além de mim e dos
meninos.

Como era de se esperar, na hora do almoço a casa estava repleta de pessoas queridas. Meu
irmão Lucas tinha trazido a esposa Selena e o filho Michael. Minha irmã Carina estava de
namorico com um rapazote que morava na rua de baixo, um tal de Isaac, que também
apareceu, além de mim, de Antônio, Ricardo e Sil. À mesa, minha mãe puxou uma oração e
agradeceu por todos nós estarmos bem e com saúde. Logo depois ela sugeriu um brinde com
champanhe barata, pouco depois resolveu cortar o chester e servir a todos. Ricardo que tinha
decidido virar vegetariano pouco depois do início do treinamento com Sebá, ficou só na
salada, mas todos os demais saborearam a carne com muito gosto. Aquele clima de
consonância era tudo que eu estava precisando depois de meses tão duros, e dava para ver que
meus amigos estavam sentindo a mesma coisa.

Na hora da sobremesa, minha mãe bombardeou os convidados com um delicioso manjar de


coco e Sil estava entretida conversando com Ricardo e Antônio quando Carina me puxou de
canto:

- O que você pretende fazer com a Sil? – Sussurrou – Ela já está morando na garagem tem
quase um ano. Tem sido cada vez mais difícil arranjar desculpas para segurar a mãe aqui em
cima e não deixar ela descer. Uma hora vai dar errado e ela vai acabar flagrando sua
amiguinha escondida.

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Eu não tinha pensado em nenhum argumento suficientemente bom para responder a Carina,
mas era necessário conversar com Sil o quanto antes. Precisávamos tomar uma providência.

Alguns dias tinham se passado desde as comemorações natalinas e naquela manhã eu acordei
bem cedo para falar com Sil. Minha mãe e minha irmã dormiam na casa ainda e eu desci sem
fazer barulho pelo alçapão na garagem. Eu estava descalço, evitando ser ouvido e não
demorei a alcançar a porta principal do esconderijo. Era muito comum sentir dali o cheiro do
condicionador e do creme de pentear que Sil costumava usava, mas naquele dia não havia
cheiro nenhum. Uma olhada rápida me fez chegar à conclusão que a menina não tinha
passado a noite ali, já que o colchão, os lençóis e o travesseiro estavam arrumados no chão.
Nenhuma das coisas de Sil estava no interior da caverna também, o que deixava bem claro
que ela tinha ido embora na calada da noite sem nem se despedir. Um misto de decepção e
tristeza me invadiu por um instante e eu me sentei diante do console do CAD, me afundando
na poltrona em frente a ele. Por mais que aquela situação fosse estranha, que as mentiras que
eu tinha que inventar para minha mãe para pegar sempre comida a mais na casa ou para que
as roupas de cama estivessem sumindo do nada fossem cada vez mais vergonhosas, eu já
estava acostumado a ter a presença de Sil ali embaixo comigo, me fazendo companhia. Eu
devia saber que para ela não era nada fácil ser, de repente, privada de toda a liberdade que ela
estava acostumada e passar a viver como uma prisioneira, mas ainda assim não justificava
aquela fuga no meio da noite sem nem dizer um tchau.

- É como se nossa amizade não tivesse significado nada para ela todo esse tempo.

Eu passei quase duas horas ali embaixo conjecturando as razões que Sil tinha para
desaparecer, foi quando eu notei algo diferente preso sob a capa de couro do segundo traje de
Pássaro Noturno, aquele que eu guardava como lembrança dentro de um mostruário de vidro.
Tinha um papel dobrado ali e quando apanhei, descobri que era uma carta de Sil. Uma carta
de despedida.

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Eu terminei a carta de Sil em lágrimas e um sentimento muito parecido com o dia em que meu
pai foi embora de casa me acometeu. Por mais que eu entendesse suas razões, algo dentro de
mim se recusava a aceitar que ela tinha preferido ir embora do que ter ficado e construído uma
vida nova ali mesmo, perto de mim, perto dos meninos. Quando o ano novo chegou e os fogos
começaram a explodir coloridos no céu eu fiz um voto de renovação comigo mesmo e passei
a entender um pouco mais a decisão da garota. Eu tinha aprendido que mais cedo ou mais
tarde, um dia as pessoas vão embora de nossas vidas e aquilo não era necessariamente um
motivo de tristeza. Sil era safa demais para que cometesse algum erro gigantesco que a
comprometesse longe de São Francisco d'Oeste, e no fundo eu sabia que as coisas dariam
certo para ela. Aquela era a minha vez de evoluir e eu estava disposto a aproveitar a chance,
dando um passo de cada vez.

FIM

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