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Mito da Lenda da Caldeira de Santo Cristo

Igor Manuel Botelho Teixeira


2º Ano
Nº229387
Docente: Prof Doutora Marina Mendes de Almeida Cunha Pignatelli

Trabalho elaborado no âmbito da Unidade Curricular de Antropologia da Religião da


Licenciatura em Antropologia

Lisboa
2021
Introdução

Desde a sua colonização, a sua fixação que sempre foi complicada e o próprio terreno é difícil de
se habitar. As fajãs1 são zonas férteis, planas junto à costa, que facilitava a sua fixação. No entanto
devido ao isolamento, mau temporal e o risco de catástrofe ser grande, os habitantes nativos
agarram-se a algo que os faça ter motivos para viverem nas condições em que vivem. No caso
abordarei a Lenda da Caldeira de Santo Cristo que acabou por dar nome à própria fajã que se situa
no lado norte da ilha.
A Lenda da Caldeira de Santo Cristo é uma lenda que se transmite oralmente existindo
várias interpretações, que no sentido fenomenológico, percebemos que a estrutura do mito se
repete apesar de haver algumas nuances. Afinal “'Quem conta um conto acrescenta um ponto” o
que acaba por transparecer no discurso de duas entrevistas a dois locais.
Sendo assim o paper é feito em primeira instância por uma introdução do espaço-tempo
da Caldeira de Santo Cristo, bem como o meu próprio testemunho. Em seguida será apresentado
a lenda na integra no qual irá por via de outra alocar discursos alusivos à lenda que complementam
o entendimento da história. Por fim com base na opinião dos entrevistados sobre o mito e com
base de pensadores como Lévi-Strauss, Hoskins, Boskovic.

Corpo de texto:

A Lenda da Caldeira Santo Cristo surge em finais do Século XIX, num contexto em que os
habitantes viviam em isolamento geográfico. (Santos, 2021) Havia cerca de 111 habitantes em
1891, as quais viviam em certa precariedade, numa cultura de subsistência onde se plantava o que
se consumia, havendo naquela zona muitos perigos, tais como sismos que abalaram a ilha durante
os séculos XIX e XX, no qual se destruíam e contruíam as infraestruturas existentes, sendo assim
muitas das famílias que viveram na fajã passaram a viver em zonas mais altas da ilha, que eram
mais conectadas com outros pontos da ilha o que contribuía no modo de vida destas pessoas e que
quando passava a altura das colheitas passavam o verão na fajã. (Cunha M. A., 1981) Por aqueles
que viviam e por aqueles que passam no local, dizem que sentem a espiritualidade e misticismo
por detrás de uma pequena planície com uma lagoa. (Cunha C. F., 2014) Quando ainda residia
permanentemente em São Jorge, sempre senti o mistério por detrás da sua lenda, perguntava-me
muitas vezes a razão pela qual se falava da lenda e da importância que a caldeira de Santo Cristo
tem na minha ilha. A minha última visita ao local foi em meados de 2020, no qual percorri o
caminho que muitos lavradores da zona leste da ilha percorriam antigamente. É um caminho
estreito e ingreme, no qual encontra-se pequenos enclaves de pastos de lavradores que ousam
ainda nos dias de hoje alocar o seu gado nessas pequenas pastagens, demorou cerca de 3 horas
para se chegar à fajã, no qual passei a sentir um sentimento de alívio tanto pela imagem que a
própria fajã, um universo muito próprio com uma aura simplista e de completo misticismo por
detrás das suas habitações e da sua lagoa. Um sítio desconexo da realidade, o estado cru da vida,
sem rede sem água canalizada sem quaisquer vícios da modernidade. A Lenda surge em 2
episódios, divididos entre: A estatueta da imagem de Santo Cristo e o momento em que o pároco
tenta levar a própria imagem para fora da fajã.
Em primeira instância irei citar a lenda no estado cru que me foi contada de uma das duas
entrevistas sobre a história da imagem de Santo Cristo:

1
“Artigo 2º - Para os fins do presente diploma, entende-se por fajã toda a área de terreno relativamente
plana, suscetível de albergar construções ou culturas, anichada na falésia costeira entre a linha da preia-
mar e a cota dos 250 m de altitude”. (Decreto Legislativo Regional n.º 32/2000/A, 2000)
“Um certo dia, um homem de cima2 veio cá abaixo à Caldeira. Andou muito
tempo por um atalho custoso e apertado e, quando chegou junto à lagoa,
sentou-se para descansar um pouco antes de ir pescar. As pernas até lhe
tremiam do esforço da descida, mas, com a vista que dali se desfrutava,
depressa se sentiu descansado.
Quando vagueava com o olhar pela lagoa, deparou-se com um objeto
que lhe parecia ser uma imagem do Senhor Santo Cristo. Levantou-se logo e
pegou na imagem que, apesar de estar metida na água, não estava nada
apodrecida. Ficou todo contente com aquele achado. E não era para menos
porque, naqueles tempos, achar uma garrafa na costa ou um pranchão3 era
já uma sorte, quanto mais um santinho tão bonito.
Quando voltou para casa ia tão satisfeito que a difícil subida nem lhe
custou nada. Puseram o Santo Cristo no melhor quarto da casa.
Mas no outro dia pela manhã, para desgosto e espanto de toda a
família, o santo já tinha desaparecido. Procuraram-no e vieram encontrá-lo
no areal, nas margens da Caldeira. E o episódio repetiu-se por várias vezes.
Por fim alguém disse:
Santo Cristo quer estar lá em baixo à beira da Caldeira.
O povo juntou-se e decidiu fazer uma Igreja. Pensaram levantá-la na
outra banda da lagoa, mas, quando tentaram levar para lá a pedra, não
conseguiram. O lugar era ali, perto de onde Santo Cristo tinha aparecido.
Depois de muito sacrifício e trabalho, a Igreja ficou concluída e lá puseram
a imagem.
Assim, aquela linda fajã passou a chamar-se Caldeira do Santo
Cristo.”
(Ferreira, 2021)

Existe várias incongruências no conto desta lenda uma vez que já existe relatos de uma ermida
feita no Século XVII, o que de facto faz o seu sentido uma vez que os colonos vindos das demais
regiões se fixam em zonas onde existe uma ermida, uma igreja, uma capela para poderem pregar
o seu culto a cristo. (Santos, 2021).

Reforço do pensamento que a derivação desta lenda, tanto quanto em muitas outras se
rege por uma esperança, por uma força maior que lhes traga boa fartura, boa paz e boa sorte em
momentos em que a própria sobrevivência destas populações é posta em causa, muitas vezes o
próprio conceito de mito diz muito sobre a organização social, do parentesco, da cultura.
(Boskovic, 2000) Enfim isto pode ser exemplo de consequência de vários sismos que ocorreram
ao longo dos séculos desde a sua povoação no século XVII. Especial destaque ao vivido nos anos
80 onde por palavras durante uma das entrevistas:

2
Refere-se à altitude onde o individuo reside permanentemente, devido às características geográficas da
ilha, existe uma diferenciação entre pessoas que vivem junto à costa, normalmente designados “gente lá de
baixo” e de pessoas que vivem nos planaltos da ilha chamados “gente lá de cima”.
3
Tabua de madeira.
“Pelos abalos de 1 de janeiro de 1980 foi retirada toda a gente deste
lugar, tendo sido a maior parte das pessoas evacuadas por um helicóptero da
Força Aérea Portuguesa, uma vez que os acessos ficaram interditos. Ficaram
ainda sem ligações telefónicas, quando nesta altura já contavam com seis
assinantes. Foram-se fixando em vários lugares da ilha, alguns emigraram.
Foi no entretanto construído o “bairro de Santo Cristo” no caminho de
Baixo4, da Ribeira Seca para acomodar parte dessas famílias que tiveram
alguma dificuldade de adaptação, dado à falta dos seus haveres e costumes.”

(Santos, 2021)

A própria culturalidade da fajã da Caldeira de Santo Cristo era muito especifica, muito talvez pela
espiritualidade que a lenda teve na sua população, particularmente na imagem de Santo Cristo.
(Santos, 2021).

Por fim o 2º ato desta história, centra-se na decisão de um pároco que habitava a parte
alta da ilha. Pretendia ele fazer a procissão com a imagem de Santo Cristo para perto da sua
habitação com a finalidade de começar a realizar as procissões em honra de Santo Cristo na parte
alta da ilha. Passo a citar Clímaco Ferreira da Cunha:

“A certa altura o senhor padre, por qualquer razão, não queria o Santo Cristo
na Igreja e decidiu levá-lo para casa. Pegou na imagem, mas não se
conseguiu mexer, os pés ficavam aferrados ao chão. Disse então ao
sacristão:
Ajuda-me aqui que eu não posso andar.
O sacristão bem tentou, mas por fim confessou:
Ó senhor padre, eu também não consigo dar passada!
Então deixa-se o santinho aqui, disse o padre!
E assim foi. Logo os pés e as pernas ficaram ágeis e o padre e todas as
pessoas se convenceram que era ali que o Santo Cristo tinha de ficar.”
(Cunha C. F., 2014)

Faz querer este 2º ato existe uma Fraternização da imagem que dá nome à fajã traz àqueles que
conhecem esta fabula, a crença de uma união por aqueles que vivem na fajã aquando se juntam
nas festividades da 1º semana de setembro. Por exemplo, numa das conversas que tive com o
pároco atual do santuário da Caldeira de Santo Cristo, Padre Manuel António Santo, revelou-me
uma coincidência bastante interessante. Durante o culto da imagem de Santo Cristo, é feita uma
procissão de velas e até hoje as velas nunca apagaram mesmo com mau temporal, então é dito
entre os populares que atribuem o facto de as velas não apagarem a mesmo fenologia que a lenda
nos conta aquando da imagem de Santo Cristo querer permanecer na Caldeira, no qual por suas
palavras “O que é certo que, de facto a Caldeira de Santo Cristo tem uma espiritualidade diferente,
as pessoas chegam lá, pelo silencia, pela vegetação, pelo ambiente, toca de maneira diferente as
pessoas”. Segundo Lévi-Strauss “abordagem estruturalista é a busca de invariantes ou de
elementos invariantes entre diferenças superficiais.”

4
O “Caminho de baixo” é uma localidade da freguesia da Ribeira Seca do concelho da Calheta.
Aquando das entrevistas, foi perguntado se de facto acreditava nessa opinião, segundo
palavras do entrevistado, Ferreira diz que não acreditava na lenda, que existem muitas falhas na
maneira que a história é dita, apesar de ser um crente, vê essa lenda como uma justificação apenas
de justificar o nome da fajã e haver um santo que fosse o padroeiro daquele local. O entrevistado
Santos, não se prenunciou aquando feita essa questão limitando-se afirmar que os povos das fajãs
das ilhas se agregavam em polos religiosos, uma capela, uma ermida, uma igreja a necessidade
de haver um meio de desagregação do seu estilo de vida complexo e difícil.

Segundo Lévi-Strauss quando confronto no seu livro Mito e Significado sobre como a
ciência trata dos mitos, no caso em específico de ser-se reduzista enquanto na sua abordagem:

“Quando somos confrontados com fenómenos demasiado complexos para serem reduzidos a
fenómenos de ordem inferior, só os podemos abordar estudando as suas relações internas, isto
é, tentando compreender que tipo de sistema original formam no seu conjunto. Isto é
precisamente o que tentámos fazer na Linguística, na Antropologia e em muitos outros campos.”

(Lévi-Strauss, 1978)

Janet Hoskins no seu trabalho Symbolism in Anthropology, reflete muito sobre a linha de
pensamento de Geertz e de Turner, quando colocado o tópico dos Símbolos Religiosos e sistemas
religiosos, faz uma citação muito interessante de Geertz sobre como a religião emprega formula
um estilo de vida particular para um estilo de vida específico isto quando explicito na metafísica
ao um símbolo alocado à autoridade de uma instituição a um grupo.

Conclusão
Os debates sobre a sua veracidade são constantes ao tempo, enquanto se discute a veracidade de
muitos mitos, que apesar de não serem levados como uma verdade, trazem muitas vezes um
sentimento de territorialidade, de pertença, de unidade para com aquele local. Os Jorgenses são
muito orgulhosos nas suas raízes, sabem explorar uma lenda em benefício de uma comunidade,
apesar de ter sofrido com abales sísmicos durante os séculos, mas recentemente no sismo de 80,
sempre houve a permanência de transmitir esta lenda oralmente pelas gerações vindouras,
servindo de exemplo que Cristo não se esqueceu deles, que por mais dificuldades que passem o
Santo Cristo estará lá presente. Foi o que me apercebi ao longo deste paper que quando revelei
um certo alívio ao ter chegado à Caldeira, não era de todo o cansaço, fome ou sede que sentia.
Era a presença de um local que transmite uma espiritualidade, uma presença única que faz todos
os anos pessoas de toda a ilha migrar durante as festividades para sentir um pouco da paz, que
tanto nas suas vidas desta modernidade são obstáculos para a criança que somos no interior, que
precisa sentir aconchegados a uma realidade que nem sempre pode ser correspondida.
Bibliografia

Boskovic, A. (2000). Anthropological approaches to the study of myth. Em Anthropological


Perspectives on Myth (pp. 122-130). University of the Witwatersrand, South Africa.

Cunha, C. F. (2014). Fajã da Caldeira de Santo Cristo. Em C. F. Cunha, São Jorge e as suas
Fajãs (pp. 1-14). São Jorge, Açores.

Cunha, M. A. (1981). Ermida do Senhor Santo Cristo da Caldeira. Em M. A. Cunha, Notas


Históricas Estudos sobre o concelho da Calheta (Vol. I, pp. 275-278). São Jorge,
Açores: Universidade dos Açores.

Decreto Legislativo Regional n.º 32/2000/A. (24 de Outubro de 2000). Diario da Républica, I
Série A(126), 5984 - 5987. Obtido de
https://data.dre.pt/eli/declegreg/32/2000/10/24/a/dre/pt/html

Ferreira. (13 de Março de 2021). 2º Reunião Santo Cristo. (I. Teixeira, Entrevistador)

Hoskins, J. (2015). Symbolismo in Anthropology. Em J. Wright, International Encyclopedia of


the Social & Behavioral Sciences (pp. 860-865). Elsevier.

Lévi-Strauss, C. (1978). O Encontro da Mito e da Ciência. Em Mito e Significado (A. M. Bessa,


Trad., pp. 13-15). Lisboa: Edições 70.

Santos. (11 de Março de 2021). 1º Reunião Santo Cristo. (I. Teixeira, Entrevistador)

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