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Porque Vale o que Está Escrito, ou as Letras e Seus

Estilos
Luiz Carlos Cagliari1

Um simples olhar ao mundo da palavra composta. Nos sistemas


escrita nos mostra tanta variação na fonográficos como o nosso, um
forma gráfica que, por um instante, caractere representa um segmento
surge a dúvida: como é possível que fonético do tipo consoante ou vogal.
se consiga ler em meio a esse caos? Nos sistemas fonográficos silábicos,
No entanto, não temos dificuldade em como o japonês, um caractere
identificar uma palavra escrita sob representa uma sílaba, ou seja, uma
diferentes formas gráficas: para quem unidade fonética formada da soma de
sabe ler, isso é tão fácil quanto consoante e vogal.
andar, apesar da complexidade dos
processos mecânicos e mentais Os caracteres compõem um
envolvidos nesta ação. inventário fechado de sinais gráficos,
junto com os acentos, pontuações e
Para compreender o processo da demais marcas dos sistema de
leitura, é preciso entender alguns escrita. Isto significa que não pode
aspectos básicos dos sistemas de inventar um novo caractere ou
escrita e, em particular, do sistema destruir um já existente. Para isso, é
alfabético que usamos. Todo sistema preciso que as convenções da escrita
de escrita tem um aspecto funcional sejam alteradas e aceitas por todos
e um aspecto gráfico. A união desses que a utilizam, e não por apenas
dois aspectos é semelhante à união alguns indivíduos. Mudar o aspecto
do significado e do significante no gráfico de um caractere pode ser
signo lingüístico, no qual o primeiro perigoso para o sistema a que ele
refere-se ao sentido das palavras e o pertence. Os usuários podem não
segundo aos sons. Na escrita, o lado reconhecer o seu valor e, portanto,
do significado está preso aos aspectos Ter dificuldades de leitura.
funcionais que ela oferece e o lado do
significante às suas características Como unidades básicas que são,
gráficas, cuja menor unidade é o os caracteres costumam ser escritos
caractere. de forma clara, isolada, de modo a
facilitar a leitura. Entretanto, com os
Letras são caracteres dos gregos e sobretudo com os romanos,
sistema alfabético de escrita. a escrita alfabética passou a usar
Caractere é a denominação da menor também ligaduras. Com elas, duas
unidade gráfica de qualquer sistema letras se fundem numa só,
de escrita, não apenas do alfabeto. produzindo a aparência de um novo
Nos sistemas ideográficos, como a caractere. Os romanos escreviam o
escrita chinesa, um caractere ditongo AE com ligadura: Æ, um
representa um idéia que pode ser outro modo de escrita consistia em
uma palavra inteira ou parte de uma inserir uma letra dentro da outra,
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como @, recurso muito usado na que vale não é apenas o desenho


escrita manual da Idade Média e hoje único e exclusivo, mas o que ele
restrito a monogramas. Com a permite que seja interpretado como
introdução da imprensa de tipos letra, ou seja, como uma unidade do
móveis na Europa, a parir do final do sistema de escrita.
século XV, os caracteres passaram a
ser impressos destacados uns dos Na história da escrita, essa
outros, como vemos até hoje nos qualidade abstrata dos caracteres foi
livros, jornais e revistas. ficando cada vez mais clara à medida
que a sociedade usava mais e mais a
Hoje, talvez se possa dizer que a escrita. O aspecto individual (a
escrita impressa está muito mais escrita de cada pessoa) devia conviver
presente do que a manuscrita. com as convenções sociais dos
Porém, ao longo de seus mais de sistemas de escrita. A ortografia
cinco mil anos de história, a escrita à conseguiu conciliar o individual e o
mão foi muito mais empregada no coletivo, criando o princípio de
registro diário da vida comum. Os categorização gráfica das letras.
diferentes modos de escrever
acabaram produzindo variações nos A ortografia criou também a
aspectos gráficos dos caracteres, em categorização funcional das letras, ou
todos os sistemas de escrita. seja, permitiu neutralização da
variação lingüística nas formas de
A correta interpretação dos escritas. Por exemplo: em uma
caracteres, a despeito de sua enorme mesma língua, encontramos muitas
variação gráfica, é garantida por uma pronúncias diferentes para as
unidade maior, a palavra, e esta, por palavras, decorrentes de dialetos ou
sua vez, subordina-se a ortografia de sotaques. Mas todos os usuários
(em grego, ortos = certo, reto). A escrevem essas palavras grafadas sob
ortografia, associada `a noção de uma única forma. Na leitura, porém,
palavra, permite que esta se torne as diferentes pronúncias poderão
uma referência interpretativa dos surgir de novo.
caracteres. Um exemplo: o que nos
permite ler textos manuscritos, Hoje, há uma diversidade muito
interpretando os garranchos de grande no desenho das letras, e a
alguém, é a nossa capacidade de ortografia mostra muito mais
associar os garranchos a seqüências claramente sua presença em todos os
de letras, formando palavras sistemas de escrita.
possíveis. Sem um conhecimento Durante muito tempo,
ortográfico, seria muitíssimo difícil ler entretanto, ela teve um papel
a escrita cursiva (manual ) da modesto. Os sistemas de escrita
maioria das pessoas. antigos procuravam variar o menos
Quando vemos uma palavra possível a forma gráfica das letras, ou
escrita sob diferentes formas, com permitam apenas algumas variantes.
letras grafadas, por exemplo, como A Os escribas tinham que aprender a
e a, B e b, compreendemos que A e a desenhar a letras sem usar, com a
pertencem à categoria da letra A, B e liberdade que temos hoje, sua
b à categoria da letra B, e assim por criatividade para enfeitar a escrita.
diante. As letras se tornam, deste Com o sistema alfabético
modo, unidades abstratas, aconteceu algo semelhante. As letras
representações das formas gráficas e semíticas transformaram-se em
não um simples desenho gráfico: o letras gregas, as quais, com o tempo,
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assumiram a forma de letras caracteres foi o material de escrita


etruscas e chegaram ao latim (ver “A utilizado e a forma de escrever. Na
origem do alfabeto”). Nessa história, Antigüidade, isso aconteceu com a
houve muitas mudanças. Elas foram escrita cuneiforme dos sumérios e
necessárias para a adaptação do também com a escrita egípcia.
sistema alfabético à escrita de
línguas diferentes. Como o princípio Os sumérios trocaram a forma
do alfabeto se manteve, passamos a de escrever ao substituir o risco na
nos referir a diferentes “alfabetos” o argila por um processo de pressão,
semítico, o grego, o latino, Mas esses por meio do qual se desenhavam as
alfabetos deveriam ser chamados de letras afundando marcas nos
“estilos”, porque neles o sistema de tabletes. Isso mudou o aspecto
escrita continua o mesmo: o que gráfico das letras. E a mudança foi
varia são os aspectos funcionais e tão radical que, com o passar do
gráficos. É somente por comodidade e tempo, a forma pictográfica da escrita
tradição que se costuma dizer que o deu lugar à escrita cuneiforme, cuja
alfabeto latino é diferente do grego e iconicidade era difícil de recuperar
do semítico e dos demais alfabetos, através de um simples olhar. Ou seja:
para os quais pode-se desenhar até os caracteres acabaram perdendo, no
uma árvore genealógica. desenho, a forma dos objetos que
representavam originariamente.
Os fatores culturais acabaram
sendo parâmetros importantes nesta Os egípcios, desde os tempos
visão da história do alfabeto. mais antigos, tinham duas formas
gráficas para os caracteres: a escrita
Aceita uma tipologia dos hieroglífica e a escrita hierática. A
alfabetos, seguindo a tradição, primeira era monumental e de maior
encontramos para cada um deles prestígio na sociedade. Podia ser
uma história própria, cada uma com esculpida ou pintada. Era escrita na
suas formas gráficas variantes. perda, ou em objetos e papiros ou em
madeira.
A estas chamamos, num sentido
mais tradicional, de estilos de letras. Curiosamente, muitas versões
Deste modo, a escrita árabe, por do livro dos Mortos, o livro sagrado
exemplo, apresenta inúmeros estilos da cultura egípcia, foram escritas
de letras, sendo a Kofik certamente a com hieróglifos, mas as obras mais
mais famosa, ao lado dos arabescos. técnicas, como as de medicina e
matemática, foram escritas com
Dentro de um estilo de letra, letras hieráticas. A escrita demótica
podemos encontrar variantes representa uma simplificação da
específicas. Assim, a escrita cirílica, escrita hierática. Apareceu quando a
usada na Rússia, é, na verdade, um civilização egípcia já se extinguira. As
estilo particular de escrita das letras três formas de escrita egípcia
do alfabeto grego. Isso não impede constituíram três estilos diferentes de
que a escrita cirílica tenha estilos grafar os caracteres, uma vez que a
particulares. Há também muitas função deles permanecia inalterada.
formas ou estilos particulares na
escrita gótica. Mas esta, por sua vez, Outro exemplo de técnica
nada mais é do que uma variação da determinando a criação de um novo
escrita latina. estilo é a escrita latina monumental,
em pedra, que exigia um tipo de letra
Um fator que muito influenciou fácil de ser entalhada. Séculos
a transformação gráfica dos depois, esse modo de escrever as
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letras separadamente passou a ser algumas letras que é peculiar -


conhecido como textura, nos livros resultado do ensinamento escolar -,
escritos à mão. A escrita gótica, por assim como os americanos e outros
sua vez, surgiu da facilidade de se povos. Uma pessoa pode facilmente
traçarem barras usando pernas de aprender a reconhecer essas
ganso. No início do século XIX, o uso peculiaridades culturais na escrita.
de estiletes e penas de aço facilitou Os grafólogos desenvolveram uma
uma escrita caligráfica arredondada e tipologia própria que, segundo eles,
de letras emendadas umas nas permite reconhecer traços cie caráter
outras, a “caligrafia de escriturário”. e personalidade através da maneira
pela qual as pessoas traçam as
Hoje em dia, as canetas letras. Ou seja: inventaram uma
esferográficas permitem um uso mais maneira taxonímica de tratar as
livre e mais solto da escrita, sendo variações e invariantes da escrita
excelentes para a escrita cursiva cursiva. O valor dessa interpretação é
individual. objeto de uma discussão, que não
A arte individual dos escribas mais se trava no âmbito dos sistemas
também contribuiu para o de escrita.
surgimento de modificações no O alfabeto romano tinha apenas
traçado das letras, gerando novos letras maiúsculas, chamadas
estilos. Os hieróglifos dos grandes capitais. Nos primeiros séculos da
monumentos apresentam diferenças Era Cristã, essas letras foram se
notáveis nos traços, em comparação arredondando e deram origem às
com os de alguns sarcófagos. Na letras unciais, que foram usadas do
Idade Média, os livros manuscritos século II ao século IX, permanecendo
eram feitos por calígrafos (em grego, por muito tempo como um estilo
kalos = belo) que criaram “escolas” associado à religião.
com estilos próprios, como a de
Tours, na França, e a de Canterbury, O nome uncial foi atribuído a
na Inglaterra. esse tipo de letra porque os
parágrafos dos manuscritos
Um fator importante e mais começavam sempre com uma letra
recente para o surgimento de grande, do tamanho de uma unha. O
diferentes estilos de letras é o uso da restante do parágrafo se apresentava
escrita na propaganda. A finalidade com uma forma diferente, que passou
de um cartaz é diferente da de um a ser chamada de Semi-Uncial. Esse
livro e requer recursos expressivos estilo de letra (do século VII ao XII)
próprios. Letreiros de lojas foram, teve dois ramos: um na Irlanda e
talvez, os cartazes mais antigos. Foi, Inglaterra, conhecido como estilo
porém, com os jornais e revistas que insular, outro usado em outros
a propaganda tomou um grande países da Europa, o estilo
impulso e surgiu uma enorme continental.
quantidade de novas formas para as
letras. Houve quatro variantes do estilo
continental que foram rotuladas de
Povos diferentes costumam estilos visigótico, merovíngio,
apresentar modismos próprios com lombardo e saxão, nos territórios que
relação ao traçado das letras. Os hoje pertencem respectivamente à
alemães preferiram a escrita Fraktur Espanha, à França, à Itália e à
(um tipo de escrita gótica preta) até a Alemanha. No sul da Itália, surgiu
Segunda Guerra Mundial. Os
franceses têm um modo de traçar
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uma quinta variante, chamada de se derivaram os estilos mais usados


estilo beneventano. ainda hoje na imprensa e nas
máquinas de escrever. As letras do
A influência cultural de Carlos tipo Baskerville, Times Roman,
Magno (742-814) e de Alcuíno (735- Courier e Sans-serif pertencem ao
804) atingiu também a produção de estilo romano.
livros manuscritos, em Tours, no
início do século IX. Alguns desses Com a impressão de livros por
livros traziam uma forma gráfica de meio de tipos móveis (tipografia),
letras que ficou conhecida como iniciada por Johannes Gensfleisch
estilo carolíngio. Esse estilo tornou-se zum Gutenberg (1397-14G8), em
um modelo universal, deixando para Mainz, acabou a era dos copistas,
trás os velhos estilos. Ele deu origem fazedores de livros. Mas não muito
ao que hoje chamamos de “letras de tempo depois, no século XVII, teve
forma minúsculas”. início uma demanda crescente pela
escrita da burocracia dos órgãos
Os livros com iluminuras foram governamentais e do comércio,
produzidos em larga escala do século exigindo calígrafos competentes. O
VII ao século XIII. Livros estilo cursivo praticado nessas
manuscritos, como obras de atividades ficou conhecido como
caligrafia, continuam existindo até "caligrafia de escriturário" ou de
hoje, mas como objetos raros. Alice "chancelaria". Enquanto isso, nas
no País das maravilhas, de Lewis escolas públicas, foi introduzida a
Carroll ( 1832-1893) é, sem dúvida, “caligrafia escolar”, da qual se
um dos mais famosos. originaram as formas manuscritas
As letras góticas, que não são usadas hoje, e que apresentam
uma exclusividade dos povos góticos, variações de cultura para cultura.
surgiram, no século XIII como um Basta comparar, por exemplo, a
estilo muito marcante. Naquela época escrita manual dos americanos, dos
houve um grande desenvolvimento franceses e dos brasileiros para
das letras cursivas, num estilo verificar as diferenças.
conhecido como cursivo humanístico. No século XIX, com o
Um exemplo é a caligrafia de incremento do comércio, houve
Petrarca, com que ele escrevia suas necessidade de se exibirem painéis de
famosas cartas e poemas. Sob a aviso, que passaram a usar velhos
influência da escrita carolíngia, estilos de letras, até mesmo da Idade
surgiu, no estilo insular, no século Média, revitalizando, aos olhos do
XV, uma forma de escrita homem moderno, aquele passado.
arredondada, chamada bastarda. Na Com a enorme difusão dos meios de
Itália, tipos semelhantes ficaram comunicação, em nosso século, uma
conhecidos como letras rotunda e infinidade de novos estilos e tipos de
antiqua. Uma forma inclinada dessa letras passou a ser adaptada ou
caligrafia ficou muito famosa: o criada por especialistas nesse tipo de
itálico, que apareceu pela primeira arte.
vez em livro em 1501.
Voltamos, assim, depois de uma
Do estilo gótico, surgiu a escrita rápida visita à estrutura dos sistemas
Schwabach, da qual se originou a de escrita e à história das letras, à
escrita Fraktur (1512), que seria questão inicial: como conseguimos ler
muito usada em livros em alemão. No - e com facilidade - letras escritas de
século XV surge outro estilo de letra maneiras gráficas tão diferentes, mas
muito importante, o romano, do dual
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que devem ser identificadas apenas regras muito claras e rigorosas e,


como variantes de um mesmo porque as aprendemos ao aprender a
caracter? ler, o aparente caos do mundo da
Vista apenas em seus aspectos escrita de hoje não nos assusta. Pelo
gráficos, a escrita se apresenta como contrário: essa imensa complexidade,
um caos; mas do ponto de vista que à primeira vista somos incapazes
funcional, o que era confuso torna-se de conhecer, comprova a nossa
bem organizado na mente dos imensa capacidade de interpretar o
usuários. caos como se fosse a coisa mais
simples da vida.
O caos, portanto, é apenas
aparente. No fundo, a escrita segue

1 Luiz Carlos Cagliari é Mestre em Lingüística pela Universidade Estadual de


Campinas- UNICAMP e doutor em Fonética pela Universidade de Edimburgo,
Escócia. Em 1982, obteve o título de Doutor Livre Docente em Fonética e
Fonologia e, em 1990, o de Professor Titular de Fonética e Fonologia, ambos
pela UNICAMP. Tendo desenvolvido pesquisas na School of Oriental and
African Studies, Universidade de Londres, e no Museu Britânico, atualmente
trabalha no Departamento de Lingüística da UNICAMP. Autor de vários artigos
sobre aspectos da fonética no português brasileiro, tem dois livros publicados
no Brasil sobre o tema da alfabetização.

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