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BOM SENSO
USE SEM MODERAÇÃO
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o Brasil do golpe a Bolsonaro
PROJETO GRÁFICO
Matheus Natan Martins Dutra e Henrque Euzébio
Alves
EDITORAÇÃO
Henrique Euzébio, Humberto Leite e Marina Rito
Luis Felipe Miguel é professor da
Universidade de Brasília, onde coordena
o Grupo de Pesquisa sobre Democracia
e Desigualdades (Demodê), e pesqui-
sador do CNPq. Autor, entre outros li-
vros, de Democracia e representação:
territórios em disputa (Editora Unesp,
2014), Consenso e conflito na democra-
cia contemporânea (Editora Unesp, 2017),
Dominação e resistência: desafios para
uma política emancipatória (Boitempo,
2018) e O colapso da democracia no
Brasil: da Constituição ao golpe de 2016
(Expressão Popular, 2019).
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 6
3. O COLAPSO DA DEMOCRACIA 12
4. A DITADURA EM CONSTRUÇÃO 16
6. A OFENSIVA DO CAPITAL 25
7. TRANSIÇÃO À DITADURA 28
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do conscientemente limitações muito se- ria compromissos sólidos por parte dos
veras às suas políticas. grupos dominantes, permitindo uma
mudança social que pagava o preço de
O impacto deste cenário foi dife- ser moderada e insuficiente para ganhar
rente nos diversos campos de ação go- a garantia de que seria inconteste e per-
vernamental. Algumas políticas priori- manente.
tárias, como o combate à miséria ou o
aumento do poder aquisitivo do salário Não é. A reação que vemos hoje,
mínimo, foram implementadas. Alguns com o sério risco de triunfar em breve,
limites nunca foram desafiados, como é contra muito mais do que Dilma. Não
o pagamento da dívida interna. Em al- é difícil perceber. Basta ouvir o discur-
gumas áreas, como os direitos repro- so do relator do impeachment, em que
dutivos, o combate à homofobia e a de- os supostos crimes de responsabilida-
mocratização da mídia, estabeleceu-se de da presidente são meros coadjuvan-
um padrão de iniciativa governamental, tes. Basta ouvir a advogada do pedido,
ameaças dos setores conservadores e enquadrando a situação como a luta do
recuo. E o pior registro dos governos bem contra as cobras aladas do mal.
petistas aparece naqueles setores em Basta ver as faixas nas manifestações –
que as preocupações mais progressistas contra os direitos das mulheres, contra
encontravam pouca ressonância no pró- as cotas, contra Paulo Freire e o pensa-
prio centro do Poder Executivo: a política mento crítico. Basta lembrar dos líderes
ambiental serve de exemplo. do MBL esquecendo do impeachment por
um momento para fazer lobby contra a
É possível dizer que os governos taxação das grandes fortunas. Basta ver
petistas ficaram muito aquém de uma o que quer o pato da Fiesp: menos direi-
plataforma de esquerda consequente. tos trabalhistas, carga tributária menos
Venderam a ilusão da superação do con- progressiva. Basta ver a plataforma elei-
flito, que sempre foi uma das marcas do toral de Temer ou, ainda, ler as entrevis-
discurso conservador. Aderiram à noção tas do ícone de toda a oposição, Armínio
de que era possível transformar o Brasil Fraga, que fala candidamente que é ne-
sem enfrentar as desigualdades estrutu- cessário comprimir salários, expandir o
rais. Julgaram que o único horizonte para desemprego, ampliar os benefícios do
a classe trabalhadora era o acesso a mais patronato e rifar todas as empresas pú-
consumo e que a inclusão necessária blicas. Há quem diga que é uma franque-
era a inclusão no mercado. Apostaram za suicida, mas não é. Fraga sabe a qual
na manutenção da institucionalidade vi- público está se dirigindo.
gente, limitando-se a adendos pontuais
e periféricos na forma de conselhos e Seja para os fundamentalistas bí-
conferências. E, enfim, avaliaram mal as blicos, seja para os fundamentalistas do
potencialidades desta estratégia, acre- mercado, o mal a ser debelado é todo
ditando que a via da conciliação gera- o avanço ou potencial de avanço que
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tivemos nos últimos anos. São as mu- consenso sobre as políticas de combate
danças materiais e culturais visíveis no à pobreza extrema, que seriam incon-
Brasil, apesar de todos os limites. São os tornáveis para qualquer partido que al-
direitos das empregadas domésticas, é mejasse o poder. Infelizmente, os fatos
a democratização do acesso ao ensino hoje o contradizem. A direita assume um
superior, é a expansão da universida- discurso radical e o que vemos é a ero-
de pública, são as políticas de melhoria são de outros consensos mínimos, antes
do atendimento universal de saúde, é a dados como garantidos: a ideia de que
ampliação da discussão sobre gênero e o poder deve ser conquistado pelo voto,
sobre racismo, são as mulheres, os ne- a ideia de que um país menos desigual
gros, as lésbicas, gays e travestis, os po- seria melhor. Estamos perdendo um ter-
vos indígenas, as populações da periferia reno duramente conquistado para o em-
erguendo a cabeça e recusando sua po- bate de projetos políticos. E mesmo que
sição subordinada de sempre. o golpe seja barrado, será uma batalha
árdua reconquistar o terreno perdido.
O governo Dilma não se encontra
ameaçado pelos erros e vacilos dela e de
Lula. O que mobiliza a direita são seus
acertos. Aqueles que tramam o golpe
desejam é o retrocesso a jato, é avan- 2. O GOLPE E A DIVISÃO
çar rapidamente na retirada de direitos DE PODERES
dos trabalhadores e na alienação do pa-
trimônio nacional, bloquear definitiva- Com a derrubada de Dilma já claramente
mente qualquer progresso possível para desenhada, ainda havia quem confias-
mulheres, para a comunidade LGBT, se nas “instituições”. Sim, as instituições
para os negros e os indígenas, remover funcionam – a questão é saber a favor de
o pouco de bagunça que foi introduzido quem.
nas nossas hierarquias sociais. Querem
fazer aqui o que Macri está fazendo na
26 de abril de 2016.
Argentina, mas como não tiveram e, tudo
indica, continuam não tendo competên-
Charles-Louis de Secondat, ba-
cia para chegar ao poder pelo voto, veem
rão de La Brède e de Montesquieu, fez
no golpe sua chance de ouro.
uma ponta na crise brasileira em abril do
O avanço da usurpação do poder, ano passado. Numa das manifestações
em curso, recoloca a disputa política em da direita, um integralista ensandecido
patamar inferior – não apenas àquele dos pregou contra a divisão de poderes (e
governos do PT, mas de toda a época da contra o sufrágio universal), bradando:
redemocratização. Na fase áurea do que “Montesquieu, vai tomar no cu!”
chamou de “lulismo”, André Singer julga-
O problema, imagino, é que a divi-
va que estávamos construindo um novo
são de poderes parecia a ele um antepa-
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Para nós, o risco é outro. A compe- depois, com a vitória de um projeto rea-
tição eleitoral, à qual se resume muitas cionário, não há mais quase nada da ca-
vezes o componente democrático das pacidade de resistência nas ruas que se
sociedades liberais, funciona como uma via antes. Ou o caso da Espanha, em que
espécie de buraco negro da disputa po- a opção por transformar um movimento
lítica, engolindo tudo o que existe à sua cidadão num partido eleitoral já mostra
volta. seus efeitos. A eleição promove a ilusão
de que o conflito político se resolve num
Nós sabemos que as condições da único dia e que, pelo mandato popular,
disputa eleitoral são adversas, dado o se alcança algo, o “poder”, que, uma vez
poder do dinheiro e da mídia e a inércia conquistado, permite que todos os pro-
das hierarquias sociais. Sabemos, des- blemas sejam solucionados.
de ao menos a obra de Pierre Bourdieu,
que o campo político filtra as formas de Nunca dá certo, mas continuamos
discurso e ação, privilegiando as que se tentando. Dessa vez deu ruim, mas quem
afastam daquelas próprias dos grupos sabe da próxima... De fato, no século
dominados. Sabemos também, a partir XVIII o velho Montesquieu já dizia que as
da obra de Nicos Poulantzas, que o apa- eleições devem ser frequentes, para que
relho de Estado é programado para re- o povo nunca perca a esperança de, um
sistir a mudanças, deslocando o poder de dia, escolher governantes que não sejam
veto de um de seus componentes para corruptos.
outro – por exemplo, do executivo para
O sufrágio universal deslegitima
o legislativo, de uma casa do Congresso
simbolicamente formas mais ofensivas e
para outra, depois para o judiciário, en-
eficazes de pressão das classes popula-
fim para as forças armadas – conforme
res, como já anotava Albert Hirschman. E
necessário. Ainda assim, a cada quatro
a democracia, ao se realizar em determi-
anos todas as energias e esperanças se
nadas instituições, cristaliza uma forma
concentram nas eleições.
de dominação. Com frequência, o pres-
A disputa eleitoral funciona, mui- suposto tácito da discussão é a ideia de
tas vezes, como solução para reconstruir que democracia e dominação são antípo-
a dominação ameaçada por práticas das. Onde há democracia não pode haver
contestatórias. A crise de legitimidade dominação; logo, se estamos discutindo
da Argentina em 2001, aquela do bordão no contexto de um ordenamento político
que se vayan todos, deságua nas eleições democrático, a categoria “dominação” se
de 2003. Muitos grupos envolvidos em torna inútil. Mas qualquer institucionali-
ações políticas populares inovadoras, dade institui seu próprio regime de do-
como asambleas barriales ou cortes de minação. Afinal, “relações democráticas
ruta, passam a privilegiar a disputa elei- ainda são relações de poder e como tal
toral. Elege-se um presidente reformis- são continuamente recriadas”, como dis-
ta, Néstor Kirchner; uma dúzia de anos se Barbara Cruikshank. Isto porque não
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Há muita polêmica sobre o con- Agora, Temer diz que vai editar
ceito de “democracia”, na teoria políti- uma medida provisória para revogar a
ca. Mas há dois elementos básicos para legislação sobre a EBC (além do manda-
que um regime político seja chamado to fixo, vai eliminar também o Conselho
de “democrático” – correntes mais exi- Curador, organismo que faz a emissora
gentes julgam que são insuficientes, ser controlada pela sociedade civil). Mais
mas não prescindem dela. O primeiro é uma vez, não se trata apenas de um pa-
a autorização popular dos governantes, radoxo evidente – se uma MP qualquer
que se dá caracteristicamente por meio pode abreviar o mandato previsto em lei,
do voto. Isso foi revogado no dia 12 de então o propósito da lei, gerar autonomia
maio, quando a presidente foi destituída dos dirigentes da emissora, nunca se re-
do cargo sem base legal para tanto. aliza. É o fato de que a demissão ocorreu
antes da tal MP, isto é, sem sequer uma
O outro elemento é a vigência da fachada de amparo legal. (Parece que o
lei, acima do arbítrio dos governantes. governo do usurpador não aguentaria
A evidência clara de que isso também
mais alguns dias de jornalismo indepen-
não existe mais foi a demissão do dire- dente.)
tor-presidente da Empresa Brasileira de
Comunicação, Ricardo Melo. Temos uma situação em que os
donos do poder não se sentem cons-
Não se tratou apenas da demis- trangidos pela existência da legislação,
são de um jornalista respeitado (mes- simplesmente decidindo se e quando
mo por quem discorda de suas opiniões vão respeitá-la.
progressistas) e da nomeação, em seu
lugar, de alguém envolvido em escânda- A percepção de que há uma dita-
los de corrupção, sem trajetória profis- dura sendo instalada é alimentada tam-
sional significativa e cujo principal item bém pelas notícias, cada vez mais preo-
do currículo é ser homem de confiança cupantes, sobre o aumento do arbítrio
do presidente afastado da Câmara dos do aparato repressivo do Estado, com
Deputados, Eduardo Cunha. Tampouco prisões ou a intimidação pela polícia, por
se tratou apenas de destruir a primeira motivos políticos. Desde que a maré do
tentativa séria de formar um sistema pú- golpe subiu, a violência policial com mo-
blico, não governamental, de comunica- tivação política aumentou, dirigida con-
ção no Brasil. O ponto é que, ao demitir tra estudantes, contra trabalhadoras e
Melo, Michel Temer simplesmente atro- trabalhadores, contra professoras e pro-
pelou uma lei em vigor no país – a lei nº fessores, contra militantes de movimen-
11.652, de 7 de abril de 2008, que criou tos sociais.
a EBC e estabeleceu mandatos fixos para
Aumentam também as notícias de
seus dirigentes, a fim exatamente de tor-
cerceamento da liberdade de expressão
ná-los independentes do governo.
e manifestação, seguindo decisões dis-
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pareciam pouco inclinadas a uma inter- ções. É uma narrativa que se estabelece
venção política mais ostensiva. Com os como dominante a partir da nossa “tran-
quartéis apaziguados, estava afastada a sitologia”, isto é, o corpo de estudos que
possibilidade de golpe, entendido classi- descreve e analisa o processo de transi-
camente como golpe militar, que seria a ção política da ditadura militar para a de-
principal ameaça à continuidade do pro- mocracia. Com as honrosas exceções de
cesso democrático. praxe, a transitologia é marcada por três
características:
Por isso, o triunfo do golpe de
novo tipo que levou Michel Temer à pre- (a) A narrativa sobre o fim da dita-
sidência surpreendeu os observadores dura privilegia as negociações e transfor-
da realidade política brasileira e, em par- mações dentro das instituições do pró-
ticular, aqueles da tribo à qual pertenço: prio regime militar, ao ponto de quase
os cientistas políticos. Na verdade, o sen- invisibilizar o que ocorria do lado de fora.
timento de surpresa, de incapacidade de
(b) O progresso da redemocratiza-
encaixar os eventos num enquadramen-
ção é medido exclusivamente pela cons-
to explicativo que faça sentido, vem de
trução da nova institucionalidade, que
antes. Começa em junho de 2013, quan-
adere ao figurino democrático-liberal vi-
do as ruas das cidades brasileiras foram
gente nos países avançados do Ocidente.
tomadas por manifestações que nin-
guém esperava, com uma adesão que (c) Um forte componente teleoló-
ninguém esperava, que se desdobraram gico: essa institucionalidade liberal-de-
de maneiras que ninguém esperava. mocrática é o ponto de chegada fixo e
Uma leitura dos estudos que têm sido definido desde sempre para a transição.
publicados sobre as “jornadas de junho”
mostra que um traço comum a muitos Nós chegamos, de fato, a uma
deles é o reconhecimento expresso de crença quase absoluta na capacidade
seu caráter tateante e de sua impotência autopoiética das instituições políticas, da
explanatória. qual, a meu ver, o exemplo mais perfeito
é o uso do conceito de “presidencialismo
Isso ocorre porque a ciência po- de coalizão”, que se tornou a chave ex-
lítica é vítima da crença em sua própria plicativa dominante para a compreensão
narrativa dominante. É uma narrativa do funcionamento de nosso sistema polí-
em que o conflito social é inteiramente tico. Não nego a utilidade do conceito – e
englobado pelas instituições. A parte do ele ganhou tal proeminência exatamen-
conflito que não se expressa por via insti- te por sua capacidade de iluminar aspec-
tucional é tratada como residual e como tos da realidade. Mas ele vai ser muitas
demonstração de um amadurecimento vezes mobilizado para transmitir a ideia
ainda insuficiente do nosso sistema po- de que o sistema político brasileiro pós-
lítico – com o ainda indicando o subtex- -redemocratização, a despeito de seus
to teleológico presente nessas formula- defeitos evidentes, é capaz de sempre
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ao longo dos anos de Lula e Dilma no po- um desgaste que depois se manifestasse
der. Mais uma vez, não se trata de mini- nas urnas.
mizar a importância destas experiências,
Assim, junho de 2013 aparece
que podem ser entendidas como uma
como um raio em céu azul. E isso tanto
forma de ampliar a institucionalidade
por quem leu o momento como um risco
política e abrir espaços de interlocução
à nossa consolidação democrática quan-
com organizações da sociedade civil que,
to por quem, à esquerda, viu ali o ponto
de outra maneira, dificilmente teriam
de partida para uma revolução popular
condições de se fazer ouvir. Mas estes
da qual já se desesperançava. Há muito
novos espaços continuam em posição
ainda que se estudar para entender es-
subalterna diante da política “de gente
sas manifestações, que acredito terem
grande”, que é a negociação entre o exe-
sido um ponto de viragem crucial na po-
cutivo e o legislativo (e, claro, as pressões
lítica brasileira recente. Desejo destacar
diretas do capital). Fazendo um símile
apenas alguns poucos aspectos:
talvez um pouco ousado, é como se fos-
se uma adaptação da estratégia leninis- (a) O foco inicial no transporte pú-
ta do duplo poder, com a peculiaridade blico, que depois se expandiu para ou-
de que, nessa adaptação, o novo poder tros serviços públicos, como educação e
abre mão de qualquer expectativa de de- saúde, demonstrou os limites das políti-
safiar o poder anterior. cas implementadas pelos governos pe-
tistas, cuja leitura da inclusão social pri-
Esse era o quadro: os governos
vilegiava o acesso ao consumo.
do PT promoviam a inclusão social que
podiam, sem afrontar os interesses do- (b) Os protestos tomaram uma
minantes, contando com angariar a sim- dimensão que superaram em muito a
patia (logo, o apoio eleitoral) dos bene-
capacidade de liderança de seus orga-
ficiados. Controlando o poder executivo nizadores, permitindo a diluição de sua
federal, usavam os instrumentos de que pauta, algo que é sempre lembrado. Mas
dispunham para garantir o apoio neces- chamo a atenção para o fato de que,
sário no legislativo. Precisavam lidar com com isso, foi aberta uma oportunidade
a má vontade de parte das elites tradi- para a expressão do ressentimento das
cionais, que se sentiam incomodadas classes médias com a ascensão dos mais
por ver os neófitos ocupando posições pobres, ressentimento que é recorren-
que julgavam suas por direito divino, e te na história política brasileira. Ele tem
em particular com a má vontade da mí- por base interesses tanto materiais, uma
dia. Mas nada que desestabilizasse o vez que essas classes médias se benefi-
jogo que estava sendo jogado. Mesmo o ciam com a oferta de uma mão de obra
cerco da mídia: seus limites foram testa- que trabalha a preço vil (nos empregos
dos na crise do mensalão, durante o pri- domésticos e serviços pessoais), quanto
meiro mandato de Lula, e ficou demons- simbólicos, de manutenção das hierar-
trado que a intenção principal era gerar
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quias sociais. E se expressa na narrativa tisfação com o governo petista, cuja ex-
de decadência moral, centrada na cor- pressão final deveria ocorrer nas urnas
rupção, voltada para medidas punitivas de 2014.
e hoje focada no PT – narrativa que sus-
À esquerda do governo, a perple-
tentaria em seguida o apoio destes mes-
xidade não era menor e, à parte algu-
mos setores ao golpe.
mas fórmulas retóricas de expressão de
(c) Foi reafirmado o poder dos entusiasmo pelo novo “protagonismo
meios de comunicação de massa, que das massas”, pouco foi elaborado, pelo
foram capazes de ressignificar os pro- menos pouco que pudesse servir para
testos, de separar o joio (da “violência orientar uma estratégia política. Creio
radical”) do trigo (da “cidadania ativa”), que, ao menos em parte, isso se deve à
de legitimar a repressão policial quando absoluta centralidade que o PT mantém
ela ocorreu e, enfim, de promover a ade- nesse campo (a esquerda), tão grande
são de muitos grupos alheios à sua de- que mesmo aqueles que se descolaram
flagração inicial. Embora as redes sociais de seu projeto político se mantêm como
tenham sido ferramentas importantes quem basicamente apresenta reações às
na construção das mobilizações, o peso posições do petismo.
predominante da mídia tradicional na
A despeito da eventual saudação
construção dos sentidos foi indiscutível.
pública às “ruas”, todos – inclusive os
Nada disso cabia nos modelos que cientistas políticos – se sentiram alivia-
interpretavam a realidade política brasi- dos ao pensar que aquilo passou. Com
leira. Nem mesmo naqueles que infor- as eleições de 2014, a política voltava ao
mavam os agentes políticos tradicionais. “normal”. Os protestos de junho do ano
Seja no governo, seja na oposição, eles anterior eram imagens a ser eventual-
reagiram aos protestos dentro da lógica mente utilizadas na propaganda da te-
da política convencional, numa demons- levisão ou a demonstração de um certo
tração patética de sua incapacidade de espírito reinante, vago o suficiente para
dialogar com aquilo que as ruas estavam ser evocado, com diferentes sentidos,
(de uma maneira caótica, contraditória, por diferentes candidatos.
desordenada, incerta) dizendo. Tratava-
Mas a política não voltou ao “nor-
se de minimizar danos, com promessas
mal”. A normalidade implicava o modelo
vagas e sempre de uma maneira que
de que era a eleição que definia quem
recolocava os cidadãos comuns numa
havia vencido a disputa política naque-
posição de passividade e reatividade,
le momento. Em seguida, o detentor do
no caso de Dilma e do PT. Ou de fatu-
Poder Executivo usava os recursos que
rar eleitoralmente, no caso da oposição
controlava para acomodar os interesses
à direita, expressão na qual incluo tanto
presentes no Poder Legislativo. O nú-
o PSDB quanto Marina Silva. Nesse caso,
cleo duro dos derrotados fazia a oposi-
o protesto seria o indício de uma insa-
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ça de trabalho deve ser vendida abaixo papel dos meios de comunicação este-
do valor da sua reposição. Não vou en- ve muito longe de ser negligenciável. E
trar nessa polêmica, mas é evidente que os modelos da ciência política também
é nessa direção que o governo Temer os negligenciam – em contraste com a
aponta: ampliação do desemprego e da preocupação obsessiva que os próprios
vulnerabilidade social, recuo no valor de agentes políticos têm com sua própria
compra dos salários, redução das garan- visibilidade pública.
tias legais ao trabalho, retração do gasto
Mesmo o subcampo dos estudos
social fazendo com que os trabalhado-
sobre mídia e política precisa se renovar
res devolvam crescente parte da rique-
para entender o momento atual. Quando
za ao capital na compra de serviços que
ele ganhou fôlego no Brasil, a partir das
antes o Estado financiava via tributação.
eleições presidenciais de 1989, os jornais
Se esse programa não vai ser aprovado
e sobretudo as emissoras de televisão
nas urnas, e parece que não vai mesmo,
eram vistas como imbatíveis fazedores
é preciso ter outros meios que contribu-
de reis. A vitória de Lula em 2002 ainda
am para implementá-lo.
podia ser acomodada nessa crença, uma
Em suma: se queremos entender vez que naquela eleição os grandes ve-
a política e o funcionamento das institui- ículos, capitaneados pela Rede Globo,
ções para além da marola do noticiário, fizeram seu experimento de “impar-
é preciso levar em conta, centralmente, a cialidade” ostensiva e extraíram do PT
relação do Estado com as classes domi- provas de que estava suficientemente
nantes. Os modelos de interpretação em domesticado para chegar ao poder. Em
vigor na ciência política aderem à ficção 2006, 2010 e 2014, porém, o grosso da
de uma institucionalidade jurídico-polí- mídia se colocou sem disfarces contra
tica liberada do conflito de classe, mas os candidatos petistas – e perdeu. Essas
crises como a que estamos vivendo reve- derrotas provaram os limites de sua in-
lam os limites dessa abordagem. fluência e foram, devo confessar, um bal-
de de água fria nas pesquisas da área.
(2) Em segundo lugar, e até como De repente, nosso objeto não dispunha
derivação do primeiro ponto, é impor- mais dos superpoderes que atribuíamos
tante levar em conta o controle da infor- a ele. Mas poder limitado não quer dizer
mação. inexistente. Em 2013 e em 2015-2016,
outras formas do impacto político da mí-
As narrativas da história política
dia ficaram patentes.
do Brasil tendem a ignorar a mídia ou,
no máximo, conceder a ela um papel A despeito da importância que as
absolutamente secundário. No entanto, novas tecnologias de informação e co-
da Revolução de 1930 ao golpe de 2016, municação têm, na formação de redes
passando (entre outros momentos) pela e na disseminação de enquadramen-
crise de 1954 e pelo golpe de 1964, o tos alternativos da realidade, seu papel
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pular do golpe, com um legado de atraso no que não tem autorização popular. Por
que, mesmo depois dos vinte anos mal- outro, em contraste com o império da lei,
ditos, o país demorará décadas para re- sinaliza um regime em que o poder não
cuperar. é limitado por direitos dos cidadãos e em
que a igualdade jurídica é abertamente
desrespeitada. O Brasil após o golpe de
2016 caminha nas duas direções.
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Essa ditadura não será o regime tação que alguns, dotados desse poder,
de um ditador pessoal, até porque ne- delas fazem.
nhum dos possíveis candidatos ao posto
Duas semanas depois, no dia 5 de
tem força suficiente para alcançá-lo. Não
outubro, o Supremo Tribunal Federal de-
será uma ditadura das forças armadas,
cidiu permitir o encarceramento de réus
ainda que sua participação na repressão
sem que os recursos tenham sido esgo-
tenda a crescer. Provavelmente, muitos
tados, anulando o princípio constitucio-
dos rituais do Estado de direito e da de-
nal da presunção de inocência. Vendida
mocracia eleitoral serão mantidos, mas
como medida para impedir a impunidade
cada vez mais esvaziados de sentido.
dos poderosos, amplia o poder discricio-
Ou seja: a transição que vivemos é nário de um Judiciário que é notoriamen-
de uma democracia insuficiente para uma te enviesado em suas decisões. Apenas
ditadura velada. As debilidades do arran- como ilustração, a Defensoria Pública do
jo democrático anterior, que era dema- Rio de Janeiro afirmou em nota que mais
siado vulnerável à influência despropor- de 40% de seus recursos ao STJ têm efei-
cional de grupos privilegiados, não se- to positivo. É, portanto, um contingente
rão desafiadas, muito pelo contrário. Ao muito expressivo de pessoas que come-
mesmo tempo, alguns procedimentos çariam a cumprir penas depois conside-
até agora vigentes estão sendo cortados, radas injustas.
seletivamente, de maneira que mesmo o
No mesmo dia, o STF ratificou e
arranjo formal da democracia liberal vai
normatizou decisão anterior, permitindo
sendo desfigurado.
que a polícia invada domicílios sem man-
A Constituição não foi revogada, dado judicial. Isso se vincula ao aumento
mas opera de maneira deturpada e ir- generalizado da truculência policial, con-
regular. O caso mais emblemático certa- tra manifestantes, contra estudantes,
mente é a decisão do Tribunal Regional contra trabalhadores. É algo que vem
Federal da 4ª Região, no dia 22 de se- desde o final do governo Dilma, estimu-
tembro, concedendo ao juiz Sérgio Moro lado pelo clima político de avanço da re-
poderes de exceção. O tribunal alegou ação – e também, é necessário ser dito,
que as características excepcionais das pela legislação que o próprio governo
questões nas quais está envolvido Moro Dilma aprovou.
tornam facultativo, para ele, o respei-
Cumpre assinalar também a volta
to às regras processuais vigentes. É a
da tortura a prisioneiros, com motiva-
própria definição de exceção. Na práti-
ção política. O encarceramento por tem-
ca, as garantias constitucionais ficaram
po indefinido, com o objetivo expresso
suspensas para qualquer um que seja
de “quebrar a resistência” de suspeitos
alvo do juiz curitibano. Em suma, lei e
(pois nem réus são) e levá-los à delação,
Constituição vigoram – ou não – depen-
tornou-se rotina no Brasil e é uma forma
dendo das circunstâncias e da interpre-
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tímidas, incapazes de desafiar a lógica pelo que fez, parte pelo que simboliza.
social dominante e todas as outras críti- São pessoas que preferem ver Belzebu
cas, muitas delas válidas, que a esquerda no Planalto a encarar Lula como presi-
lhes dirige. dente de novo. Mas, como diz um aforis-
mo de autoria incerta, que circula pelas
A vitória eleitoral de Lula em 2018 redes sociais, “a classe dominante não
é uma possibilidade palpável. Por isso, tem ódio. Tem astúcia. O ódio ela tercei-
a direita não abandona a alternativa de riza.”
torná-lo inelegível, talvez até de prendê-
-lo. Uma manobra que pode ter um cus- Desde o golpe, Lula e o campo ma-
to alto; afinal, a condução coercitiva de- joritário do PT têm emitido sinais ambí-
cretada pelo capataz Sérgio Moro, em 4 guos para a resistência popular. Se sua
de março de 2016, foi, de todas as ações candidatura representar um lulismo 2.0,
que antecederam ao golpe, a que gerou isto é, turbinado para se adaptar aos li-
maior reação popular. Mexer com Lula, mites ainda mais estreitos que as classes
ainda mais quando ele desponta como dominantes estão estabelecendo para a
forte candidato à presidência, pode ser expressão do conflito político, uma nova
o estopim para acordar a resistência que presidência de Lula significará a norma-
ainda permanece adormecida. Essa é lização da nova ordem, mais perfeita do
também uma das razões do manifesto. que seria possível sob qualquer político
Quanto mais a candidatura estiver pos- conservador. Um presidente “de esquer-
ta, maior o custo de impedi-la. da”, mas acomodado a um cenário em
que os direitos estão perdidos, a eco-
Mas essa aposta na vitória de Lula nomia está mais desnacionalizada e a
reedita a ideia, que o golpe de 2016 deve- Constituição de 1988 foi transformada
ria ter enterrado, de que a solução para a em escombros. E a luta popular nova-
crise política se dá por meio da recompo- mente canalizada para as eleições, ainda
sição de uma maioria eleitoral democrá- que se saiba que seus resultados podem
tica e progressista. Ora, a derrubada de ser revistos quando interesses podero-
Dilma mostrou exatamente a fragilidade sos se unem.
das “regras do jogo”. A maioria eleitoral
é impotente se não encontrar, na capa- Os coxinhas podem tremer de ira,
cidade de mobilização popular, os meios mas para o capital um resultado destes
para se impor. estaria longe de ser ruim. É por isso que
nunca é demais reiterar: não podemos
Sob certo ponto de vista, a vitória reduzir a luta política à sua dimensão
de Lula pode significar o desfecho perfei- eleitoral ou mesmo institucional. Não
to para o golpe de 2016. É verdade que o se trata de ignorar as eleições, mas sim
ex-metalúrgico é odiado, que muitos dos de não as ver como o objetivo principal.
que foram às ruas de camiseta do CBF A resistência que vier das ruas há de se
devotam a ele uma raiva insana, parte espelhar nas urnas – mas o polo dinâmi-
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co, que imprime a direção, precisa estar um ou outro lado. Mas torcida pelo juiz?
sempre nas ruas. Implausível.
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gais, tudo isso faz parte do arsenal com nutenção de uma fachada de democracia,
que o mal tenta escapar da punição; cada vez menos real.
logo, desprezá-los é obrigação dos bons.
E, tal como o fascismo, a Lava Jato é li- 5 de maio de 2017.
derada por um homem vestido de preto
que mostra mais senso de oportunidade O ano de 2016 marcou o fim do
do que princípios. experimento democrático iniciado no
Brasil com a Constituição de 1988. A or-
O caráter inquisitório da Lava
dem que ali fora instituída era ancorada
Jato faz com que pensemos no juiz
no desenho democrático liberal: o aces-
Sérgio Moro como um Torquemada das
so ao poder dependia do voto, todos os
Araucárias. Mas Torquemada, até onde
cidadãos eram dotados de um conjunto
se sabe, era um fanático. Moro não tem
de direitos, a lei valia igualmente para to-
essa desculpa. É um juiz de poucas luzes,
dos. Para muita gente à esquerda, esse
que, a despeito de sua incontrolável vai-
arranjo não era suficiente; na permanên-
dade, se dispõe a ser o joguete de inte-
cia de uma desigualdade social profunda,
resses muito mais poderosos do que ele.
a capacidade de fazer uso desse conjun-
Um símbolo, infelizmente, das elites do
to de prerrogativas e de garantias tam-
Brasil, em que sobra marketing e falta
bém seria muito desigual. Ainda assim,
estofo, em que sobra oportunismo e fal-
esse ordenamento jurídico apresentava
ta caráter, em que sobra empáfia e falta
uma base a partir da qual era possível
qualquer tipo de empatia pelo povo bra-
sonhar com e lutar por uma democracia
sileiro.
mais genuína.
Não tem meio termo, não tem
Ao mesmo tempo, a Constituição
concessão ao discurso dominante e aos
alimentava este sonho e esta luta, na
consensos fabricados pela mídia: o cami-
medida em que o discurso que a organi-
nho da reconstrução da democracia no
zava era o discurso dos direitos. Se, para
Brasil passa por derrotar a Lava Jato.
lembrar da expressão célebre de Hannah
Arendt, o ato fundacional da cidadania é
o estabelecimento do direito a ter direi-
tos, então a Carta de 1988 representou
10. O FUTURO DA este ato. Fruto de um processo longo e
DEMOCRACIA NO BRASIL tenso, marcado por múltiplas pressões e
barganhas, ela carrega ambiguidades e
não se apresentava como integralmente
O golpe apontava para dois caminhos: um
satisfatória para nenhum dos lados em
fechamento gradual do regime ou a ma-
disputa. Mas traz também os traços do
momento histórico em que foi escrita.
É um documento da superação da di-
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tadura, fruto de uma luta que foi tanto A essa altura do campeonato, as
pelo restabelecimento das liberdades ci- características do regime que emergiu do
vis e políticas quanto por justiça social. golpe já estão claras. Seu programa é o
Quando Ulysses Guimarães, no discurso retrocesso acelerado nos direitos e o refor-
que pronunciou ao promulgá-la, disse ço das hierarquias sociais. Trata-se de um
que a Constituição havia sido escrita com governo que não faz concessões à facha-
“ódio e nojo à ditadura”, não se referia da de imparcialidade que os Estados cos-
certamente à totalidade de seus reda- tumam perseguir e, pelo contrário, assu-
tores – muitos haviam compactuado me sem rodeios que se coloca ao lado do
alegremente com o arbítrio. Referia-se capital contra o trabalho. A destruição
ao momento de sua redação, em que o dos direitos trabalhistas e previdenciá-
Brasil desejava superar seu legado auto- rios, culminando na recente proposta de
ritário. Por isso, a Constituição fala a lin- realinhamento das relações de trabalho
guagem dos direitos. Em muitos casos, a no campo que praticamente reinstitui a
consignação do direito no texto constitu- escravidão, é a face principal desta ofen-
cional não garantiu sua efetiva conquista siva. O Estado também reduz suas polí-
na vida social. Mas estabelecia um terre- ticas redistributivas ou compensatórias,
no de lutas e legitimava as ações em seu como determinado pela emenda cons-
favor. titucional que congelou os gastos públi-
cos ou ainda pela medida provisória que
Esse quadro – limitado, mas for- alterou o ensino médio, substituindo o
malmente democrático, liberal e vazado princípio da educação universal pelo trei-
na linguagem dos direitos – foi perdido namento da força de trabalho para suas
em 2016, no golpe de maio e agosto, que posições predeterminadas. Indígenas e
destituiu uma presidente da República quilombolas estão sob ataque, seguindo
sem que houvesse amparo legal para
a lógica de que todas as riquezas do país
tanto, pelo simples desejo nos derrota- devem estar potencialmente disponíveis
dos nas urnas. A ordem de 1988 foi per- para a acumulação privada. Também
dida não apenas porque Dilma Rousseff são ameaçados os direitos das mulheres
foi removida do cargo, mas porque todo e da população LGBT, seja porque o re-
o arcabouço institucional projetado para gime julga que o conservadorismo mo-
protegê-la agiu no sentido de destruí-la. ral pode lhe fornecer base popular, seja
O Poder Judiciário, o Ministério Público, porque a retração das políticas sociais
a Polícia Federal e o Congresso Nacional, exige que a lacuna que ela gera seja su-
sem falar da pretensa imprensa livre: por prida por cuidados privatizados dentro
motivos às vezes coincidentes, às vezes da família tradicional.
diversos, todos se uniram para revogar
os procedimentos democráticos e ferir Ao lado da abolição de direitos
de morte a Constituição. vem – quase que naturalmente – a am-
pliação da repressão. Militantes políticos
têm sido perseguidos e presos. O caso
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mais chocante, o de Rafael Braga, mos- tos, com desprezo cada vez mais indis-
tra que ocorre uma exacerbação de ten- farçado pelo princípio da soberania po-
dências autoritárias que já afloravam no pular, até chegarmos para uma ditadura
ocaso dos governos petistas. Preso em aberta (ou algo próximo disso). Há discre-
2013, com base em acusações cuja fra- ta movimentação de setores das forças
gilidade é gritante, foi agora condenado armadas para apoiar esta solução, que
a 11 anos de prisão. É um prisioneiro po- sem dúvida nenhuma contaria com ex-
lítico, uma pessoa privada da liberdade pressivo suporte no judiciário e na mídia.
por sua participação em movimento co- As eleições de 2018 poderiam ser cance-
letivo. Braga ainda é um ponto fora da ladas, seja pela imposição de medidas
curva; parece ter sido escolhido como emergenciais por algum motivo conve-
exemplo, para o que certamente pesou niente, seja pela implantação de um par-
sua condição de jovem preto e periféri- lamentarismo de ocasião. Tal como em
co, sem conexões com a elite política ou 1964, esta solução provavelmente seria
econômica. Mas muitos outros manifes- apresentada como provisória – para du-
tantes têm sofrido detenções arbitrárias. rar apenas o tempo necessário ao esma-
A vigilância e a intimidação policial sobre gamento dos movimentos populares e
o movimento popular são crescentes, a das organizações de esquerda.
repressão nas ruas aumenta, organiza-
Há pesados ônus associados à
ções como sindicatos ou o MST são inva-
implantação da ditadura, tanto internos
didas. Ao mesmo tempo, cresce a perse-
quanto externos. Por isso, o caminho
guição no serviço público e a censura a
preferido dos controladores do poder
órgãos da imprensa alternativa.
parece ser outro: a “normalização” do
Por fim, o governo é marcado pelo golpe. As eleições de 2018 colocariam no
temor da competição política. Nascido poder novamente um presidente com
de um golpe, implantando políticas que respaldo do voto popular. No entanto,
jamais foram capazes de obter apoio todo o retrocesso produzido durante
majoritário no Brasil, patina em níveis o período Temer estaria incorporado à
de popularidade liliputianos. Apesar ordem institucional. Fosse quem fosse,
da enorme campanha publicitária e do o novo presidente governaria sob uma
apoio unânime da mídia empresarial, Constituição fraturada, com direitos per-
não há aprovação para a retirada de di- didos e políticas estatais engessadas. Em
reitos. Possíveis candidatos às eleições particular, governaria ciente de que as
presidenciais associados ao governo se instituições da democracia representati-
veem diante de derrota quase certa va vigoram de forma tutelada, podendo
ser suspensas quando seus resultados
Frente a isso, quais são alterna- contrariam determinados interesses.
tivas de futuro? Um cenário é continu-
armos deslizando para formas cada vez De certa maneira, esse é o fun-
mais autoritárias de resolução dos confli- cionamento normal das democracias
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que elas gritam a plenos pulmões que autonomia, estreitando seu horizonte de
não são confiáveis. possibilidades, expondo-as a mais vio-
lência. Depois, porque cada centímetro
O abismo diante de nós pode ser de terreno perdido exigirá muito esfor-
abordado de diferentes maneiras. A pri- ço, muita luta e muito tempo para ser re-
meira delas se vincula aos retrocessos. conquistado.
Enquanto esperamos por 2018, avan-
ça, de forma acelerada, o desmonte Outra maneira de encarar o abis-
das conquistas obtidas a partir da carta mo é vendo-o pelo ângulo do recuo nas
constitucional de 1988 ou mesmo antes. liberdades políticas e, portanto, nas con-
É o fim da CLT e o súbito mergulho na to- dições de luta. O golpe fez deteriorar
tal desproteção das classes trabalhado- os termos do debate público no Brasil,
ras, cuja culminação pretendida é o fim criminalizando as posições à esquerda,
ou a condenação à irrelevância da justiça vedando-lhes acesso à discussão, mes-
trabalhista e a extinção dos mecanismos clando o uso do aparelho de Estado (so-
de combate ao trabalho em condições bretudo o judiciário) e do mercado (pelo
degradantes. É a desnacionalização da monopólio privado da informação) para
economia. É a abolição dos mecanismos levar a censura a um novo patamar. A re-
de controle, desde sempre insuficientes, pressão policial aos movimentos popu-
dos monopólios da mídia. É a desconti- lares ampliou-se. A perseguição judicial
nuidade das políticas de promoção da com motivação política tornou-se corri-
igualdade de gênero, da igualdade racial queira. O Estado de direito foi fraturado
e do combate à homofobia. É o estran- e as liberdades liberais hoje vigoram de
gulamento do Estado, com particular im- uma maneira que podemos classificar
pacto em áreas como saúde, educação e como menos que formal: não foram revo-
ciência. Temos ainda, em pauta, a revo- gadas, mas os próprios agentes estatais
gação dos direitos previdenciários e uma assumem que elas têm vigência condi-
reforma política destinada a reduzir ain- cional, a depender das circunstâncias e
da mais a capacidade de influência dos dos envolvidos.
cidadãos comuns. A lista é grande, qua-
Uma terceira abordagem diz res-
se interminável, mas aponta sempre na
peito ao próprio horizonte de 2018.
mesma direção: a construção de um país
Mesmo a realização das eleições presi-
mais injusto e menos soberano.
denciais não pode ser considerada como
Isto está acontecendo agora e garantida. A transformação do golpe dis-
nossa reação não pode esperar por farçado de impeachment constitucional
2018, por dois motivos de fácil entendi- em golpe aberto é uma hipótese ainda
mento. Primeiro, porque os efeitos ne- remota, decerto, mas nem por isso ine-
fastos dos retrocessos já se fazem sentir, xistente. Para os grupos hoje no poder,
empurrando milhões de pessoas para trata-se apenas de um cálculo de cus-
maior privação material, reduzindo sua to-benefício entre os riscos de manter
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da de que os tribunais são capazes, em ato de São Bernardo do Campo, que con-
algum grau, de aplicar a lei tal como ela tinua em forma e sua importância políti-
está formulada fazem nascer uma sen- ca certamente resiste ao encarceramen-
sação de abandono, quando nos depara- to. O que não tem futuro é o projeto de
mos com uma situação de arbitrariedade acomodação de interesses que permitiu
judicial indisfarçada. A quem vamos re- que políticas de combate à miséria e de
correr, quando até a Justiça é injusta? É a abertura de possibilidades de mobilida-
realidade de um país que passou de uma de social aos mais pobres se combinas-
democracia formal, limitada, para uma sem com a manutenção quase intocada
democracia menos que formal, cujas ins- das vantagens dos grupos dominantes.
tituições não se preocupam mais em dis- Seu esgotamento foi demonstrado pelo
farçar sua tendenciosidade em favor dos golpe de 2016 e pela acelerada política
poderosos. de destruição de direitos implementada
pelo governo Temer. Ao longo de todo
Como instituição política que é, o o processo, Lula não se cansou de ace-
Poder Judiciário é sensível à correlação
nar com a possibilidade de uma recom-
de forças na sociedade. É a resistência posição do pacto, mas, como resposta,
contra os retrocessos, o aumento na mo- recebeu a continuidade da perseguição
bilização social, o protesto contra as ar- contra ele e, agora, a prisão. O recado
bitrariedades e a desobediência civil que é ainda mais claro quando se põem na
podem restaurar o funcionamento míni- conta todas as ilegalidades cometidas
mo de uma justiça burguesa que, ainda para chegar a esse resultado.
que sem perder o qualificativo “burgue-
sa”, possa aspirar ao nome de “justiça”. Parte da militância do PT julga que
a solidariedade ao ex-presidente, que
é de fato um preso político, veda qual-
quer debate sobre o futuro da esquerda.
Penso que, ao contrário, este debate se
15. POR UM LULISMO
torna cada vez mais urgente – sem que
VIRADO À ESQUERDA
a denúncia do arbítrio e a luta por sua
libertação fiquem em segundo plano.
O golpe de 2016 marcou a derrota do Trata-se de buscar os melhores cami-
projeto lulista. O que fazer com ele? Não nhos para enfrentar uma situação em
é possível pensar em restaurá-lo, mas é que andam juntos o retrocesso social, o
preciso preservar alguns de seus aspectos. cerceamento das liberdades e a crimina-
lização da própria esquerda.
14 de abril de 2018.
A discussão passa, necessaria-
mente, por um balanço da experiência
A prisão de Lula representou o epí-
petista no poder. É fácil descartá-la sob
logo do projeto lulista. Não pela destrui-
o rótulo da “conciliação”, como fazem
ção do ex-presidente – ele mostrou, no
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te política corrupta de sempre. Mas os dade deve logo se esvair. Podemos es-
novos quadros, a bancada de outsiders perar, então, um início de governo de-
eleita pelo PSL e por bolsonarianos sol- vastador, em que tentarão aproveitar o
tos em outros partidos, o que podemos empuxo dado pela vitória eleitoral para
esperar deles? Muitos analistas têm des- destruir o que ainda houver de demo-
tacado o fato de que é um grupo mais cracia e de direitos. Quem nos protegerá
ideológico, portanto menos maleável disso? As “instituições” que já se mostra-
que a direita brasileira tradicional. Pode ram coniventes com o golpe de 2016?
ser. Mas isso os torna menos predató- Um Supremo tão acovardado que seu
rios? Pessoas como Kim Kataguiri, Joice presidente já se alinha com a defesa (por
Hasselman, Alexandre Frota ou o princi- enquanto envergonhada) da ditadura de
pezinho “imperial”, que já demonstraram 1964?
tantas vezes uma completa ausência de
A eleição de Bolsonaro, não nos
sentido moral, certamente vão buscar
equivoquemos, é o prenúncio da ditadu-
todas as vantagens que puderem obter.
ra. Resistir a um novo golpe, agora de ca-
Como cada um deles se vê como um he-
ráter neofascista, tendo-o na presidência
rói da cruzada antipetista, julgam que o
será muito mais difícil. Iludem-se aqueles
Estado brasileiro é seu merecido butim.
que agem hoje pensando nas vantagens
Com a política econômica ultra- que poderão ter em 2022, simplesmente
liberal já apontada por Paulo Guedes, porque a própria continuidade do pro-
elemento central do apoio que o gran- cesso eleitoral está ameaçada.
de capital hoje dá à deriva neofascista,
Nossos problemas não serão re-
as condições de vida das maiorias cer-
solvidos em 28 de outubro. A besta fas-
tamente piorarão. Bolsonaro oferece a
cista foi posta nas ruas e não se reco-
seu público um conjunto de bodes ex-
lherá por causa de uma simples derrota
piatórios – feministas, LGBT, “petralhas”
eleitoral. Os efeitos do golpe de 2016 e
– e a possibilidade de livre exercício da
dos retrocessos de Temer estão aí. Mas
violência contra eles. As circunstâncias
as condições da resistência são muito
são muito diferentes, mas o paralelo que
sensíveis ao resultado das urnas. Para
vem à cabeça é a campanha de ódio que
todo o campo democrático, qualquer
levou ao genocídio em Ruanda, em 1994.
que seja o balanço que se faça do PT e de
Até quando essa violência compensató-
seus governos, eleger Fernando Haddad
ria anestesiará a base? Até quando será
é essencial para que possamos sonhar
ignorado o efeito da destruição dos ser-
em sair da defensiva e retomar a tarefa
viços públicos, da redução da renda, do
de reconstrução democrática do Brasil.
aumento do despotismo nos locais de
trabalho?
Os próprios estrategistas de
Bolsonaro admitem que sua populari-
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ou com o parlamento, adotando sempre nos da metade do que lhes havia sido
um tom de ameaça. prometido. Mais de 90% deles ganham
cerca de metade do salário mínimo. Os
Mais do que isso, Paulo Guedes é jornais noticiam uma onda de suicídios
o arauto de uma forma de fundamenta- de idosos, o que talvez seja mesmo a so-
lismo de mercado que bem pode ser des- lução ideal para Guedes.
crita como uma espécie de terraplanismo
econômico. Todas as evidências mostram A insensibilidade das nossas elites
que a brutal desregulamentação que ele para com a situação da classe trabalha-
advoga não leva ao crescimento, mas dora é notável e se manifesta com es-
somente à concentração da riqueza e à pecial virulência no debate sobre a pre-
pauperização da população. A privati- vidência. Guedes não tem o monopólio
zação ensandecida de Guedes e de seu dela. Rodrigo Maia, por exemplo, inter-
assessor Salim Mattar não equilibrará as veio para dizer que “todo mundo con-
contas públicas e privará o Estado bra- segue trabalhar até os 80 anos” (como
sileiro de receitas e de instrumentos de a expectativa de vida está em 75 anos,
ação. Sua fúria contra o funcionalismo percebe-se que muitos vão ter que pro-
público, que o leva a aventar o fecha- curar emprego na condição de almas
mento de instituições como o IBGE, só penadas). Mas essa cegueira de classe,
pode ser classificada de irracional: não é ainda que comum, é indesculpável na-
possível imaginar um Estado moderno, queles que deveriam governar a totali-
mesmo mínimo, que se prive dos instru- dade dos brasileiros. Para Maia, como
mentos básicos de aferição da situação para Guedes, aposentadoria é o que se
da sociedade que ele quer comandar. dá à mão de obra tornada inservível e o
aposentado não conta como um ser hu-
Guedes gosta de reciclar o velho mano que ainda tem uma vida a viver.
dito de que a esquerda tem coração e Para o trabalhador e a trabalhadora, ao
a direita tem cérebro, mas parece que contrário, a aposentadoria é a ansiada
a ele faltam ambos. Ele é imune ao ra- alforria. O momento em que eles podem
ciocínio lógico, ao aprendizado com a alcançar um pouco da liberdade exis-
experiência histórica e à realidade factu- tencial de que os burgueses desfrutam.
al. A reforma da Previdência, prioridade Para isso, é preciso que tenham duas
máxima dele e do capital hoje, serve de coisas: alguma tranquilidade material e
exemplo. O modelo pinochetista, que ele suficiente saúde.
deseja implantar no Brasil, é um perfeito
case de fracasso – exceto para os espe- Essa perspectiva é silenciada siste-
culadores que roubaram a poupança da maticamente no debate brasileiro sobre
classe trabalhadora. Mesmo com ajustes a reforma da Previdência. Um debate
que foram feitos para minorar a situação limitado, enviesado, com dogmas que,
(com intervenção, vejam só, do Estado!), justamente por serem tão frágeis, não
os aposentados recebem em média me- podem sofrer questionamentos. Esses
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reza que Moro e os procuradores cons- da lei para prejudicar seus adversários,
piraram – no sentido preciso da palavra ainda mais “heróis” eles são.
– para prender Lula e para influenciar
Quem fica em maus lençóis mes-
resultados eleitorais. Não tardará a fi-
mo é o amplo setor do lavajatismo que
car evidente a participação de outros
se quer “civilizado” – aqueles que não
agentes, como a mídia corporativa ou os
desejavam se confundir com Bolsonaro,
Estados Unidos.
que não queriam se comprometer com o
Para o campo democrático, as no- desmonte da democracia brasileira, mas
vas informações redimensionam a cam- ficavam satisfeitos com a criminalização
panha pela libertação de Lula. A rigor, do petismo e incorporaram a versão
todas as sentenças oriundas da Lava Jato do “combate sem tréguas à corrupção”
precisariam ser anuladas. A vinculação como justificativa. É um amplo grupo,
da corrupção do Judiciário com os de- que inclui parte da cúpula do Judiciário
mais retrocessos que ocorreram no país e parte da grande imprensa; políticos
tornou-se ainda mais gritante. E a ilegiti- conservadores que se projetam como
midade da eleição de 2018 também não respeitáveis, como Fernando Henrique
tem mais como ser escondida. Entendido Cardoso e Marina Silva, e também o
como bandeira que sintetiza a denúncia udenismo de ultraesquerda. Para estes,
do ataque às instituições democráticas, o chegou a hora da verdade. Ou mandam
“Lula livre” deve representar não só a de- publicamente os escrúpulos às favas ou
fesa da liberdade do ex-presidente e de terão que romper sua conivência com a
todos os outros presos políticos, como conspiração.
também a oposição ao golpe e às polí-
ticas que ele implementou – e mesmo,
na medida em que as condições permi-
tirem, a exigência de anulação do pleito
21. OS ISENTÕES TOMAM
do ano passado.
A FRENTE DO GOLPE
Para a extrema-direita, pouco
muda. O cinismo, que ela se habituou As revelações do Intercept levaram Moro
a praticar no debate público, já está a a desculpas risíveis – e muitos outros a
pleno vapor. Nas mídias sociais, robôs malabarismos para tentar manter as
e robotizados reagiram às reportagens consequências da Lava Jato (em especial, a
do The Intercept Brasil com frases como criminalização da esquerda) a despeito do
“Lula tá preso, babaca”. No contexto, a desvelamento de seu modus operandi.
frase é uma confissão de culpa e revela o
universo mental deste grupo: a política é
11 de junho de 2019.
um vale-tudo e, se Moro e Dallagnol des-
respeitaram as regras básicas da ética e
A divulgação das conversas da
força-tarefa da Lava Jato com o então
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juiz Sérgio Moro adquiriu tal magnitu- das”. Tenta o difícil caminho de colocar
de que se tornou impossível, para o os malfeitos da Lava Jato e o trabalho
establishment político e midiático, igno- jornalístico do Intercept Brasil no mesmo
rá-las. A direita extremada manda suas saco. A Folha escancara a crise: “Governo
hordas, nas redes virtuais, redobrar a vi- Bolsonaro se blinda e adota cautela com
rulência nos ataques ao “petismo” (cate- Moro”.
goria ampla que engloba todo o campo
Abre-se, então, a possibilidade de
democrático), lançar acusações contra
sacrificar Moro. Até agora, o ex-juiz não
Glenn Greenwald e preparar falsifica-
conseguiu inventar uma linha de defesa
ções para, a partir delas, tentar desmo-
razoável. Primeiro, lançou uma nota cujo
ralizar os diálogos autênticos. Ações de
efeito principal foi confirmar a autenti-
quem está na defensiva e não vê como
cidade dos diálogos. Agora, esconde-se
sair dessa posição.
atrás de um insustentável “não vi nada
No início relutantes, os meios de demais” – mas se alguém que era juiz
comunicação corporativos acabaram não via “nada demais” em orientar um
tendo que noticiar o vazamento, mesmo dos lados de um caso que ia julgar, das
que de forma tímida e enviesada. A ten- duas uma: ou é mentecapto ou é cínico.
tativa de minimizar o episódio, emble- Em Manaus, ontem, deu chilique e inter-
matizada pela reação inicial de Fernando rompeu entrevista em que foi indagado
Henrique Cardoso (“tempestade em sobre o assunto.
copo d’água”), logo mostrou fôlego cur-
O ex-justiceiro de Curitiba mostra,
to. A natureza dos crimes cometidos por
uma vez mais, despreparo. E a posição
Moro, Dallagnol e seus asseclas faz com
de bode expiatório casa como uma luva
que eles, mesmo que não pareçam tão
para ele, por dois motivos. Primeiro,
espetaculosos para os desavisados, se-
embora sempre tenha sido apenas um
jam imediatamente identificados como
peão, tornou-se símbolo da Lava Jato e
gravíssimos nos meios jurídicos. A cor-
“herói” nacional. Se cair, dará a impres-
regedoria do Ministério Público iniciou
são de que a justiça triunfa. Depois, por-
investigação sobre Dallagnol e mesmo
que todos já perceberam que é frouxo.
a OAB, cuja postura ao longo de todo o
Outro, em seu lugar, já teria batido a
processo do golpe sempre foi de cum-
mão na mesa e dito “se eu cair, eu explo-
plicidade ativa, pediu o afastamento dos
do essa zorra toda”. Moro não é desses.
implicados.
O primeiro e crucial dia da crise passou
Os jornalões, que ontem tentavam sem uma manifestação vibrante de soli-
esconder o episódio, hoje começaram a dariedade do governo no qual ele teria
se render. O Estadão ainda arranja uma entrado como “avalista”.
manchete fora do tema, mas O Globo
É aí que os “isentos” se apresen-
diz “Conversas de Moro com procura-
tam, para sugerir um caminho. Trata-se
dores e ação de hacker serão investiga-
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de afastar Moro, mas manter de pé suas processo judiciário. Falando para um pú-
decisões. Um folclórico colunista conser- blico diferente, ele admite que a prisão
vador da Folha de S. Paulo escreve hoje de Lula pode ser injusta, embora seja o
que, embora esteja demonstrado que “o preço a pagar pela punição dos outros,
ex-juiz e os procuradores estabeleceram mas na essência sua postura não difere
uma relação de proximidade absoluta- do amoralismo da extrema-direita puni-
mente inadequada, que dá substrato à tivista.
suspeita, desde sempre levantada pela
Os diálogos publicados até agora
defesa do ex-presidente, de que Moro
mostram com clareza uma conspiração
não atuava com imparcialidade”, os jul-
entre Judiciário e Ministério Público para
gamentos não devem ser anulados, já
condenar Lula. Caso mostrem trama
que “não há sugestão de que Moro e os
igual contra outras pessoas, as condena-
procuradores tenham interferido na rea-
ções precisam também ser revogadas –
lidade fática das provas”. Se o raciocínio
mesmo que se trate de Eduardo Cunha.
dele tivesse lógica, poderíamos abolir
Ao contrário do que Ciro insinua, a cam-
a magistratura: a “realidade fática das
panha “Lula livre” não se baseia numa
provas”, por si só, condenaria ou absol-
suposta imunidade do ex-presidente,
veria. Mas, na verdade, a “realidade fáti-
mas na defesa do direito de defesa e das
ca das provas” exige interpretação; por
regras do justo processo penal.
isso é que se cobra imparcialidade do
juiz. Quando esse juiz colabora com um Também a ex-senadora, ex-mi-
dos lados e mesmo, detalhe que Helio nistra e ex-líder política se manifestou.
Schwartsman convenientemente ignora, Uma longa nota, resumida, num tuíte,
reconhece privadamente que as provas à ideia de que “não se pode ter dois pe-
que vai usar para condenar são muito sos e duas medidas”. Enigmático, como
frágeis, não há como salvar o processo. de costume, mas a leitura da nota, com
ênfase em evitar que “possíveis erros
Do Twitter, vem a contribuição da-
sirvam de pretexto para desconstruir a
quele que é a encarnação brasileira da
luta anticorrupção”, mostra que a opção
personagem de Macedonio Fernández,
é também afastar ou até punir Moro e
“el hombre que será Presidente y no lo
Dallagnol, mas manter Lula preso. A “luta
fue”: “Antes que as paixões contra ou a
anticorrupção” é alçada à posição de va-
favor do ex-presidente Lula – o mais notá-
lor máximo; em nome dela, todos os di-
vel atingido pela Lava Jato – venham aqui
reitos podem ser atropelados.
defender cegamente seus interesses,
lembrem-se de Eduardo Cunha, Geddel Fernando Henrique Cardoso, por
Vieira Lima, Palocci… todos esses pode- sua vez, no final do dia de ontem aban-
rão se beneficiar com o que está aconte- donou o discurso da “tempestade em
cendo”. Portanto, para Ciro, a manuten- copo d’água” para, quem diria, aderir à
ção de “homens maus” presos compensa linha de Marina Silva. Em um tuíte que
a violação de todas as regras do correto
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aparentemente não diz nada, conclama lamentar”. Ele pode falar à vontade em
um “grande acordo nacional”: “É hora de “disputa de narrativas”, mas não muda
juízo: sem entendimento perderemos o o fato de que, sim, os diálogos provam
bonde da história”. O “entendimento”, tudo isso.
parece claro, é entre os artífices do gol-
O caminho sugerido agora pelos
pe, para evitar que a exposição da po-
pretensos isentões é esse: punir os pu-
dridão da Lava Jato prejudique os frutos
nitivistas para manter o punitivismo. Isso
alcançados até aqui.
não serve para o campo democrático. É
Quem desvela melhor a estraté- preciso restaurar a vigência dos direitos
gia é outro colunista da Folha, que ad- e das garantias. É preciso anular as con-
verte para o “falso dilema”. Diz ele: “No denações tendenciosas e injustas. E é
jogo amarrado da polarização, o público preciso desmitificar o discurso do “com-
é levado a escolher entre o atropelo do bate à corrupção”, que convenientemen-
devido processo legal e a impunidade te esquece o caráter estrutural da rela-
pura e simples”. Em vez disso, “é preciso ção entre capital e Estado e serve apenas
articular uma posição independente na para destruir a democracia.
qual se reconheça a gravidade do que
foi revelado pela Operação Lava Jato, a
atribuição da responsabilidade política
de quem governava durante o período e
22. PUNITIVISMO,
a necessidade de que a investigação e o
ANTIPOLÍTICA E AVANÇO
julgamento dos ilícitos aconteçam dentro
DA DIREITA
dos parâmetros da lei e da Constituição”.
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de “pressão” era o preço a pagar para vam com herdar o espólio – o nome de
romper o ciclo de impunidade. Mesmo Luciana Genro é apenas o primeiro da
à esquerda, colava a ideia de que a cor- lista. Mas mesmo petistas sentiam que o
rupção – sempre vista como um proble- custo de criticar os heróis do momento
ma do caráter de alguns indivíduos, não era alto demais e adotavam um discurso
um elemento sistêmico da relação entre público conciliador. Não foram poucas
capital e política – era o maior problema as declarações de Fernando Haddad, já
nacional. como candidato em 2018, garantindo
apoio à Lava Jato e mesmo elogiando
Poucos se preocupavam em ana- o juiz de primeira instância: “Em geral,
lisar as afinidades eletivas entre a Lava Sérgio Moro fez um bom trabalho”.
Jato e o discurso antipolítico, que torna-
ram a operação instrumental seja para Por convicção, por ingenuidade
o desmonte das empresas estatais, seja ou por oportunismo, muitos abriram as
para o avanço da extrema-direita. portas para o discurso punitivista e, as-
sim, para a derrocada do Estado de direi-
O apelo do discurso do “combate to e da democracia.
sem tréguas à corrupção” era tanto que
já em 2017, portanto depois do golpe de Depois das reportagens de The
Estado que derrubou a presidente Dilma Intercept Brasil, só os cínicos são capa-
Rousseff, o jornalista Glenn Greenwald zes de defender a Lava Jato. Hoje talvez
– um liberal e democrata, que agora o mais ativo porta-voz do autoritarismo
cumpre inestimável papel revelando o iliberal no STF, o ministro Luiz Roberto
conluio entre Sérgio Moro e o Ministério Barroso deu uma declaração pública de
Público – declarava que a Lava Jato era transparente clareza: “A corrupção exis-
“algo extraordinariamente corajoso, tiu e precisa continuar a ser enfrentada,
digno de ser homenageado”. Na mes- como vinha sendo. De modo que tenho
ma época, outra jornalista, reconhecida dificuldade em entender a euforia que
como defensora dos direitos humanos, tomou os corruptos e seus parceiros
Eliane Brum, temperava críticas pontu- [com as revelações do conluio entre juiz
ais à operação com a afirmação de que e procuradores]”.
ela “é importante e é imperativo que ela
O que Barroso está dizendo é que
continue”.
o respeito às regras do processo penal,
O custo de ser contra a Lava Jato ao direito de defesa e à imparcialidade
era alto: quase como ser a favor da cor- judiciária não é apenas uma bobagem,
rupção. Políticos à esquerda saudavam mas uma forma de leniência com a cor-
com entusiasmo a operação. Alguns de rupção. Trata-se de punir os “maus” e
fato podiam acreditar na retórica da “lim- pronto – e, na ausência do julgamento
peza geral” do sistema político. Outros correto, sabemos quem são os “maus”
antecipavam a derrocada do PT e sonha- graças à opinião publicada...
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Pouco separa Barroso dos bra- sonhar com uma “bala de prata” contra os
dos de “deporta Greenwald” que ecoam retrocessos.
nas redes sociais, vindos da extrema-
-direita em fúria. Que esta mentalida- 29 de junho de 2019.
de tenha um assento na máxima corte
brasileira, aquela que deveria proteger Moro soltou seu mau latim no
a Constituição, é um sintoma grave da Twitter para dizer que as revelações do
situação que atravessamos. Intercept Brasil eram a montanha parin-
do um rato. Sob qualquer parâmetro
A Lava Jato atuou contra a reelei-
do direito e da moral, as revelações não
ção de Dilma em 2014, pelo golpe e pela
podem ser consideradas “um rato”. Elas
prisão de Lula em seguida, para impe-
exibem um juiz traindo suas obrigações
dir a vitória do PT em 2018. Seu objetivo
profissionais mais elementares, come-
nunca foi combater a corrupção e isto
tendo crimes, participando de uma cons-
parece evidente hoje. Mesmo que tives-
piração contra o regime democrático.
se sido, não justificaria os meios adota-
dos. Para que sejam entendidas, basta
alcançar um princípio muito simples: a
A pusilanimidade do campo de-
imparcialidade do juiz. Em qualquer lu-
mocrático na defesa dos princípios que
gar do mundo, as conversas divulgadas
o caracterizam, sua capitulação diante
com o MP seriam mais do que suficien-
do discurso fácil e interessado da mídia
tes para a queda e prisão de Moro, de
e sua falta de disposição em fazer a dis-
Dallagnol e do resto da turma, a liberta-
puta das narrativas são corresponsáveis
ção dos réus que foram vítimas de suas
pelo peso que o punitivismo autoritário
maquinações e a anulação das eleições
ganhou no Brasil. Mas não há conciliação
fraudadas de 2018.
possível: é uma visão que aponta inequi-
vocamente para o fascismo. Mas não estamos em qualquer
lugar do mundo. Estamos no Brasil de
Bolsonaro. Depois de titubear um pouco,
Moro e seus “acepipes”, como diria o mi-
23. O QUE FAZER COM nistro da Educação, logo encontraram o
UMA NINHADA DE caminho para sua defesa: o cinismo puro
CAMUNDONGOS? e simples. Negam o óbvio, enquanto pis-
cam o olho para sua plateia.
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ção social que se avizinha. Até agora, as nas eleições de 2022. Uma aposta irres-
medidas emergenciais anunciadas con- ponsável, de quem não é capaz de aqui-
sistem quase inteiramente em antecipa- latar a dimensão da crise que nos atin-
ção de desembolsos do governo e pos- giu. Não dá para saber que Brasil restará
tergação de recolhimentos, sem efetiva em 2022 para ser gerido pelo vitorioso
injeção de dinheiro na economia (na con- nas eleições. Não dá para saber sequer
tramão do que vem sendo feito em todo se o pouco que sobra de nossa democra-
mundo), além de cortes nos salários. cia estará de pé até lá. É a aposta numa
incerta alternância de poder para herdar
A irracionalidade de Bolsonaro, uma terra arrasada.
porém, tem método. Ele mantém sua
base unida, alimentada por negação da Outra parte – ou a mesma, talvez
realidade, notícias falsas e teorias cons- – está mais preocupada com suas dispu-
piratórias. Para isso, pode ser bom ne- tas internas. A reação da direção nacio-
gócio colocar em risco a saúde e a vida nal do PSOL ao pedido de impeachment
de centenas de milhares, produzir uma de Bolsonaro, apresentado pela líder do
crise diplomática com um parceiro cru- partido na Câmara, é um bom exemplo
cial (a China), esticar sempre ao máximo disso. A prioridade foi condenar a inicia-
a tensão entre os poderes. Pesquisa di- tiva, criticar os parlamentares que se so-
vulgada hoje mostra que uma expressiva maram a ela e preservar um “centralismo
minoria – 35% dos consultados – aprova democrático” que, aliás, nunca vigorou
suas ações. Sondagens deste tipo sem- no partido. Em vez de lavar a roupa suja
pre devem ser lidas com precaução, mas em casa, para não enfraquecer um movi-
o dado mostra que Bolsonaro, que ainda mento de oposição ao governo, optou-se
conta com o apoio dos líderes inescrupu- por explorar ao máximo a situação para
losos de algumas das maiores seitas cris- estigmatizar o adversário interno.
tãs do país, sabe para que público está
A oposição à ideia de impeachment
falando.
se baseia no risco de conceder a presi-
Essa ressonância social torna dência ao general Mourão, num momen-
ainda mais urgente retirá-lo do cargo. to em que as circunstâncias podem jus-
Bolsonaro atrapalha o enfrentamento da tificar a adoção de medidas de exceção.
crise, seja pelo poder que controla, seja É verdade. No entanto, esse risco é um
pelo exemplo que oferece. Aqui, uma vez dado da realidade, que não é afastado
mais, a esquerda brasileira mostra difi- por um mero ato de vontade. É melhor
culdade de orientação. manter Bolsonaro no governo? Parece
claro que não. Então a questão é: há al-
Uma parte dela, ainda que não o guma outra alternativa viável?
diga em voz alta, pensa que é melhor
deixar Bolsonaro no cargo até o fim do Há quem fale que é preciso mudar
mandato, para derrotá-lo com facilidade a correlação de forças antes de falar em
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pela qual deveria zelar, por vezes cur- suas próprias bancadas no STF. Um epi-
vando-se a ameaças pouco disfarçadas sódio emblemático foi a queda de braço
de comandantes militares, equivalia ao envolvendo a liminar do ministro Marco
funcionamento das instituições. Ao que Aurélio Mello, em dezembro de 2016,
parece, era generalizada a compreensão destituindo Renan Calheiros da presi-
simplificadora e simplista, externada ain- dência do Senado. O Senado recusou a
da hoje por um colunista conservador: a cumprir a decisão e o Supremo recuou.
democracia equivale a aceitar que “a pa- Instituições funcionando, mesmo na
lavra final nas disputas é a do STF”. acepção minimalista e juridicista antes
apresentada?
No campo democrático, perguntá-
vamos: as instituições estão funcionan- Com a chegada de Jair Bolsonaro
do, mas para quem? Estava claro que, à presidência da República, era natural
desde o golpe de 2016, a estrutura jurí- que a situação se agravasse. Destinado
dica e política era subvertida para anular a ser uma figura secundária no retroces-
todos os componentes que sinalizavam so brasileiro, um mastim recolhido ao
concessões aos grupos dominados, des- canil quando se tornasse desnecessário,
nudando-se em seu caráter de classe. O atropelou seus aliados de ocasião e le-
Brasil parecia apresentar uma ilustração vou ao Planalto sua agenda extremista
particularmente dinâmica da percepção e desconexa, sua agressividade delibe-
de Poulantzas, de que o Estado é a con- rada e permanente, sua visão tacanha e
densação material de uma determinada sua inépcia administrativa. Bem tolera-
correlação de forças. Com a acelerada do enquanto entregava, graças a Paulo
mudança na correlação, em que os se- Guedes, aquilo que a classe dominante
tores populares perderam capacidade queria, tornou-se um estorvo desde que
de iniciativa e também de resistência, o a pandemia fez imperativo ter um gover-
Estado brasileiro passou rapidamente a no menos irresponsável e menos incom-
operar em outra chave, ainda que manti- petente. Mesmo Guedes, fundamentalis-
vesse a mesma Constituição. ta de mercado incapaz de virar o disco
quando as circunstâncias bradam por
É claro que não era tão simples. O essa mudança, está se tornando menos
golpe sinalizou que a força se sobrepu- atraente.
nha às regras vigentes. Como a coalizão
golpista estava longe de ser homogênea, Os descontentes, porém, ainda
já no governo Temer surgiram conflitos não são capazes de estabelecer um mo-
que seguiram a lógica do “quem tem o vimento forte pela retirada do ex-capitão
tacape maior”, em geral envolvendo a do cargo. Pesa a incerteza quando à po-
corrente messiânica do lavajatismo, de sição do vice, general Hamilton Mourão
um lado, e de outro as elites políticas tra- (caso o caminho seja o impedimento e
dicionais que chegaram ao centro do po- não a cassação da chapa, para a qual
der com o usurpador. Ambas, aliás, com também não escasseiam motivos). Pesa
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brevalorização da experiência crua dos Isso porque o lugar da fala não im-
agentes sociais, expressão do anti-inte- plica qualquer privilégio epistêmico (isto
lectualismo hoje dominante, e a conse- é, a ideia de que o dominado, só por ser
quente inibição de qualquer engajamen- dominado, já entende a dominação me-
to crítico com a autoexpressão dos pró- lhor do que qualquer outro). A expres-
prios agentes. são dos dominados é importante porque
traduz – em parte e com ruídos, como
A cada vez que ressurge, o deba- qualquer expressão – sua experiência,
te mostra permanecer exatamente no mas convém lembrar que essa experiên-
mesmo lugar em que estava antes. Essa cia também é conformada pela domina-
ausência de acúmulo na discussão, tão ção. A experiência bruta, assim, tem que
exasperante, é uma característica das ser ressignificada por meio de processos
mídias sociais, que recompensam pre- que, à falta de palavra melhor, podem
dominantemente a lacração que, para ser chamados de “conscientização”. Era
ser lacradora, tem que permanecer in- o papel dos grupos de mulheres do mo-
sensível às nuanças do real. É consequ-
vimento feminista dos anos 1960 e 1970,
ência também do anti-intelectualismo que foram cruciais para a difusão dessa
que rotula como “acadêmico”, portanto discussão – espaços que permitissem às
irrelevante, qualquer contribuição que mulheres construir uma compreensão
vá além da experiência imediata. E, por de suas próprias vidas a contrapelo das
fim, espelha o paradoxo de que quem representações patriarcais que as estru-
critica, relativiza ou complexifica a noção turam.
de lugar de fala não tem, por definição,
lugar de fala para tocar no assunto, logo Se tais espaços são necessários,
deve ser ignorado. eles não levam, de maneira nenhuma,
à imposição de vetos à participação no
É preciso, em primeiro lugar, enfa- debate público. Levam, isso sim, à exi-
tizar a importância que a noção de lugar gência por ampliação da pluralidade de
de fala e outras assemelhadas tiveram perspectivas que têm lugar neles.
e têm no combate a certo idealismo ra-
cionalista, que sonha com uma Razão Da mesma forma como o lugar de
descarnada que interpreta o mundo fala X não dá a quem o ocupa um pri-
permanecendo fora dela. Toda fala é so- vilégio epistêmico, ocupar o lugar não-
cialmente situada e isso é relevante para -X não torna a fala, só por causa disso,
a compreensão de seu sentido. O reco- irrelevante ou nociva. É um local exter-
nhecimento de que diferentes falantes no e continuará a sê-lo, não importa de
vão ver o mundo a partir de diferentes quanta empatia se revista – e ter consci-
posições sociais, porém, aponta para a ência dessa exterioridade importa para
necessidade de pluralização do debate, compreendê-lo. Mas pode contribuir.
não para alternância de silenciamentos Ou não. Só deixando que se manifeste
ou construção de guetos. no debate que isso pode ser aquilatado.
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ma. Hoje, a virada para uma política da mum de sociedade, até mesmo de alian-
diferença, em que ela é valorizada em si ças pontuais, e redireciona boa parte das
mesma, torna esta distinção ainda mais energias políticas para as batalhas fáceis
marcante. contra quem, errando ou não, deseja es-
tar a seu lado – aqueles que, como bem
Com isso, é perdido o acesso a lembrou Wilson Gomes, são os únicos
uma visão alternativa, que lê as identi- vulneráveis a essa estratégia.
dades também como prisões a serem
superadas, e à utopia de uma sociedade A discussão sobre o esclarecimen-
pós-identitária, em que características to dos apoiadores de Bolsonaro tomou
biológicas, como sexo ou cor da pele, feições diferentes, mas tinha em comum
serão plenamente irrelevantes para de- a ideia de que alguém que não participa
terminar comportamentos ou posições, de uma determinada realidade deve ser
e atributos sociais, como gênero ou raça, impedido de expressar qualquer apre-
deixarão até mesmo de existir, dissol- ciação sobre ela. Às vezes, ela deslizava
vendo-se na diversidade inclassificável para a exaltação romântica do “povo”
de uma humanidade livre. É possível dis- como depositário de todas as qualida-
cutir o quanto essa leitura é desejável ou des; com mais frequência, para a denún-
factível, mas é difícil negar que ela é, ao cia dos “acadêmicos” que, desconhece-
menos, digna de discussão. dores do mundo real e como sempre
arrogantes, exigiam uma clarividência
As duas diferenças indicam que a inalcançável para os mais pobres. Muitas
classe trabalhadora tem uma porta aber- vezes, era feita uma confusão entre a ne-
ta para a conexão com a universalidade cessidade de entender as escolhas feitas,
que falta a outros movimentos de cará- necessidade real e mesmo urgente, e a
ter emancipatório. Uma situação que obrigação de aceitá-las como esclareci-
se agrava com a reivindicação cada vez das ou razoáveis.
mais particularista, presente nas com-
preensões correntes, nas disputas polí- Entender a produção de leituras da
ticas, de “lugares de fala” privilegiados e realidade tão desinformadas e cognitiva-
mesmo monopolísticos. mente deficientes, que levam a escolhas
políticas objetivamente desastrosas, é
A discussão é complexa e tem importante exatamente porque elas não
múltiplas facetas, mas é difícil recusar são uma condição natural, nem sequer
pelo menos uma conclusão: a pluraliza- o fruto automático de determinada si-
ção das agendas emancipatórias da es- tuação. Vivemos um momento em que
querda é rica e necessária, mas a deriva o trabalho ideológico da direita assume
identitária, aliada à utilização lacradora características especiais, com um esfor-
de uma noção reducionista de lugar de ço concentrado de disseminação da ig-
fala, funciona como um cavalo de Troia. norância, de negação da possibilidade
Inibe a construção de um projeto co- de aprendizado e, também, de reforço
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tar. Ela é uma demonstração de que a o campo popular fosse aceito sequer
classe dominante brasileira julga que, como interlocutor no debate. O apoio a
neste momento, a democracia política Bolsonaro no segundo turno, recusando
não convém a seus interesses. qualquer possibilidade de diálogo com
a moderada candidatura de Fernando
O Brasil é um caso particularmen- Haddad, já indicou a radicalidade com
te extremo daquilo que há tempos vem que esse caminho era abraçado – e, mais
sendo chamado de desdemocratização. ainda, a prolongada leniência diante de
A palavra não indica apenas – como nas um governo tão insensato e destrutivo.
obras sobre a crise da democracia que
o mainstream da Ciência Política pro- Como revelaram nitidamente as
duz desde a vitória eleitoral de Donald fracassadas movimentações em favor de
Trump, em 2016 – o sucesso de líderes uma frente ampla contra Bolsonaro, em
autoritários que se esforçam por des- meados de 2020, o preço a pagar para
truir, a partir de dentro, o arcabouço uma “normalização” democrática seria
institucional próprio das democracias aceitar os retrocessos e, em especial, o
liberais. Ela indica que o espaço das de- veto a qualquer protagonismo de orga-
cisões a serem tomadas de forma de- nização e atores políticos vinculados aos
mocrática, exigindo respaldo popular, é interesses populares. Em suma: a nor-
cada vez mais limitado, isto é, que o po- malização democrática projetada pelas
der de veto das grandes corporações, do classes dominantes passa pelo impedi-
capital financeiro, dos credores das dívi- mento da retomada de qualquer dinâmi-
das públicas é cada vez maior. O avan- ca política que se aproxime da democra-
ço do chamado “populismo de direita”, cia.
que acionou o sinal de alarme em tantos
É que a direita tradicional se afir-
cientistas políticos, é antes um efeito dos
ma como oposição a Bolsonaro e de fato
sentimentos de alienação e de desilusão
se diferencia dele em muitos pontos, por
com os mecanismos de expressão polí-
convicção ou por oportunismo. Mas a
tica disponíveis nos regimes concorren-
desdemocratização é também seu pro-
ciais, que a desdemocratização agravou.
jeto. É o caminho para anular a possibi-
No caso do Brasil, o centro da nar- lidade de que os direitos políticos sejam
rativa é ocupado pela insatisfação cres- usados para reduzir as desigualdades e
cente da classe dominante e dos setores construir uma sociedade mais justa.
de classe média que ela atrai para sua
O que o processo global de des-
órbita com o (modesto) avanço civilizató-
democratização mostrou foi que a de-
rio obtido nos governos do PT. O golpe
mocracia, por mais que seja comumente
de 2016 e o governo Temer apontavam
apresentada como um terreno neutro
na direção de uma redução do espectro
de regras justas para resolver dispu-
do politicamente possível, com a imposi-
tas políticas, é de fato uma conquista
ção de retrocessos importantes sem que
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Sindicato Nacional dos Associação dos
Servidores do Ipea Funcionários do Ipea