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PÍLULAS DE

BOM SENSO
USE SEM MODERAÇÃO

Por Luis Felipe Miguel

Rumo ao Abismo - e Depois:

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o Brasil do golpe a Bolsonaro

Sindicato Nacional dos Associação dos


Servidores do Ipea Funcionários do Ipea
RUMO AO ABISMO - E DEPOIS:
O BRASIL DO GOLPE A
BOLSONARO
DADOS CATALOGRÁFICOS

RUMO AO ABISMO - E DEPOIS: O BRASIL


DO GOLPE A BOLSONARO
Luis Felipe Miguel

PROJETO GRÁFICO
Matheus Natan Martins Dutra e Henrque Euzébio
Alves

EDITORAÇÃO
Henrique Euzébio, Humberto Leite e Marina Rito
Luis Felipe Miguel é professor da
Universidade de Brasília, onde coordena
o Grupo de Pesquisa sobre Democracia
e Desigualdades (Demodê), e pesqui-
sador do CNPq. Autor, entre outros li-
vros, de Democracia e representação:
territórios em disputa (Editora Unesp,
2014), Consenso e conflito na democra-
cia contemporânea (Editora Unesp, 2017),
Dominação e resistência: desafios para
uma política emancipatória (Boitempo,
2018) e O colapso da democracia no
Brasil: da Constituição ao golpe de 2016
(Expressão Popular, 2019).
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 6

1. O QUE ESTAMOS PERDENDO 7

2. O GOLPE E A DIVISÃO DE PODERES 10

3. O COLAPSO DA DEMOCRACIA 12

4. A DITADURA EM CONSTRUÇÃO 16

5. PARA ENTENDER O GOLPE 18

6. A OFENSIVA DO CAPITAL 25

7. TRANSIÇÃO À DITADURA 28

8. LULA NÃO PODE SER A NORMALIZAÇÃO 33

9. UM ESTADO POLICIAL NASCE EM CURITIBA 35

10. O FUTURO DA DEMOCRACIA NO BRASIL 37

11. POSSIBILISMO NÃO É REALISMO 41

12. DEPOIS DO ABISMO 44

13. PENSAR TAMBÉM TEM LADO 47

14. A PONTA DE LANÇA DA LUTA DE CLASSES 49

15. POR UM LULISMO VIRADO À ESQUERDA 54

16. ENTRE O FASCISMO E NÓS, SÓ HÁ NÓS 57

17. A EMERGÊNCIA DO AUTORITARISMO PLURALISTA 59

18. OS TRENS NÃO VÃO SAIR NO HORÁRIO 61

19. O OLAVO DO MERCADO 63

20. CONSPIRAÇÃO LAVA JATO 65

21. OS ISENTÕES TOMAM A FRENTE DO GOLPE 66

22. PUNITIVISMO, ANTIPOLÍTICA E AVANÇO DA DIREITA 69


23. O QUE FAZER COM UMA NINHADA DE CAMUNDONGOS? 71

24. AINDA 2013 73

25. A ESQUERDA EM CRISE DIANTE DA CRISE 74

26. A ANOMIA RELATIVA DO ESTADO 77

27. A ESQUERDA QUE ABRIU MÃO DA CRÍTICA 79

28. UM DEFUNTO SEM VELA 84

29. DAS ELEIÇÕES DE 2020 ÀS DE 2022 87

30. ROTA BLOQUEADA 89


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INTRODUÇÃO essa arbitrariedade, para a qual não fal-


tou sequer a pressão explícita da cúpula
militar, o pleito foi também marcado por
Numa tirinha da Mafalda, Felipe lê
uma agressiva campanha de desinfor-
a inscrição no pedestal de uma estátua,
mação. As redes de difusão de fake news,
que descreve o homenageado como “lu-
alimentadas por financiamento irregular
tador incansável” – e desdenha, afinal di-
de campanha, faziam dobradinha com
fícil mesmo é “estar cansado e continuar
a mídia corporativa, cujo viés estava
lutando”. Essa é a sensação do momen-
exacerbado, e também com agentes do
to, a de uma fadiga enorme e de uma
próprio Estado – um exemplo cristalino
força de vontade que precisa ser ainda
foi a decisão do juiz Sérgio Moro de di-
maior para não abandonar uma batalha
vulgar a delação premiada do ex-minis-
em que a única vitória que se almeja é
tro Antônio Palocci, logo desmascarada
não recuar mais.
como falsa, poucos dias antes da vota-
Os escritos aqui reunidos são rea- ção.
ções à rápida deterioração da democra-
Quando os candidatos preferidos
cia e do Estado social no Brasil dos últi-
pelos líderes do golpe, como Geraldo
mos anos. Quando a direita decidiu que
Alckmin. fracassaram, não houve hesi-
não aceitaria a derrota nas eleições pre-
tação – abraçaram a candidatura de um
sidenciais de 2014, rompeu-se o frágil
saudoso da ditadura militar, a quem no-
consenso sobre as “regras do jogo” que
toriamente faltavam qualificações políti-
sustentava o experimento de vida cons-
cas, morais e intelectuais para ocupar a
titucional inaugurado em 1988. Ao golpe
presidência. Estava claro que o objetivo
desferido contra Dilma Rousseff, segui-
central, vetar a presença do campo popu-
ram-se o rápido desmonte dos direitos
lar como interlocutor do debate público,
e garantias liberais, com a escalada da
tinha que ser alcançado a qualquer pre-
repressão e interdição ao debate pú-
ço. Os crimes de responsabilidade se su-
blico, e a adoção de políticas voltadas à
cedem a cada dia e o boicote às medidas
concentração da renda, vulnerabilização
de contenção da pandemia está levando
das populações mais pobres, desprote-
a milhares de mortes, mas a burguesia e
ção ao trabalho e entrega do patrimônio
a elite política tradicional preferem conti-
nacional a grupos privados, em grande
nuar convivendo com Bolsonaro.
parte estrangeiros – tudo isso já no go-
verno Temer. Como disse a escritora espanhola
Belén Gopegui, em seu belo romance El
A criminalização da esquerda cul-
comité de la noche, “estão nos roubando
minou na prisão arbitrária do ex-pre-
os dias, um a um”. O romance fala de
sidente Lula, com o intuito evidente de
pessoas que, na Europa, tentam impe-
impedi-lo não apenas de se candidatar,
dir a legalização do comércio de plasma
mas de participar da campanha eleitoral
sanguíneo – uma Europa em que, a leste
de 2018. Tingido de ilegitimidade já por

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ou oeste, a decadência dos serviços pú- organização e a mobilização dos domi-


blicos e a ampliação do império do mer- nados.
cado fragilizam a vida das pessoas. A luta
Brasília, fevereiro de 2021.
das personagens do livro é para garantir
limites ao desmonte do Estado de bem-
-estar, assim como aqui, no momento,
parece que não aspiramos a mais do que
reduzir os danos de tantos retrocessos. 1. O QUE ESTAMOS
“No capitalismo” (e aqui cito outra frase PERDENDO
do livro de Gopegui), “o dinheiro não é
um meio de troca, é violência”. É essa
Conforme o segundo mandato de Dilma
violência que coloniza cada vez mais os
avançava, ficava mais difícil ter ânimo
diferentes espaços da vida social e é con-
para defendê-lo. Mas o golpe não era
tra ela que, mesmo cansados, é preciso
contra um governo que se rendera ao pro-
continuar lutando.
grama de seus adversários – era contra a
Os textos foram publicados em democracia e o progresso social.
páginas da internet como Jornal GGN,
Justificando, A Terra É Redonda, O Blog 12 de abril de 2016.
do Demodê, Blog da Boitempo; um deles
saiu no jornal Le Monde Diplomatique. O No debate político atual, as posi-
primeiro é de 2016; o último, de 2021. ções se dividem (no campo da esquerda,
Aparecem aqui praticamente sem alte- mas, sinceramente, a direita tem contri-
rações – apenas corte de uma ou outra buído com muito pouco que mereça ser
repetição, uma breve contextualização ouvido) entre aqueles que, mesmo re-
quando necessário. Agradeço a Regina conhecendo os limites, louvam o que os
Dalcastagnè, que me ajudou a escolher e governos do PT fizeram e aqueles que,
revisar os artigos. ainda que admitindo os avanços, focam
sobretudo naquilo a que os governos
Não costumo ser considerado oti-
petistas se acomodaram ou deixaram de
mista, mas revisitá-los me fez ver que,
enfrentar. Eu mesmo sempre me inclinei
quase sempre, o desenrolar da histó-
mais para esta segunda posição.
ria foi pior do que as piores previsões...
Sinal de que será preciso muita luta e A opção preferencial do PT pelo
muita inteligência política para rever- pragmatismo fez com que ele abando-
ter o cenário em que nos encontramos. nasse o compromisso original com uma
Com uma certeza nos guiando: a demo- nova forma de fazer política e aderisse
cracia não é um projeto que agrade as às regras do jogo tal como sempre foi jo-
nossas classes dominantes. Para que gado. Algo que é visível já na participação
a reencontremos, é preciso garantir a nas eleições, com a desidratação do dis-
curso e a rendição ao marketing político

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mais rasteiro. Se o PT dos anos 1980 e, O problema não é a repulsa mo-


em menor medida, dos anos 1990 apos- ral pelos novos parceiros, uma preocu-
tava na campanha eleitoral como um pação que está aquém da política – ativi-
momento de educação política, contra- dade pouco apropriada para santos, até
pondo-se às visões hegemônicas e bus- porque em geral eles terminam se mos-
cando explicitar os reais interesses em trando de pau oco. O problema é que fi-
conflito, depois disso ele se limitou aos nanciadores de campanha, partidos alia-
mesmos truques publicitários de seus dos e apoios comprados no Congresso
adversários e à construção da imagem cobram a fatura, seja diretamente, em
de seus candidatos. moeda sonante (o que levou o partido a
compactuar com a corrupção que sem-
Isso foi parte do processo de pre reinou no Estado brasileiro), seja em
transformação do PT num partido eleito- termos das políticas que podem ser ado-
ral, que passava a apostar todas as suas tadas.
fichas na vitória das urnas, longe do pro-
jeto inicial de ser a voz dos movimentos A fim de convencer esse conjunto
populares e de construir a transforma- de interesses de que estava mesmo dis-
ção social partindo de fora da política posto a cumprir sua parte nos acordos
institucional. Como consequência quase firmados, o PT trabalhou, a partir do pri-
inevitável deste passo, o partido reduziu meiro governo Lula, no sentido de retirar
sua democracia interna e encaminhou capacidade de pressão dos movimentos
suas lideranças para projetos cada vez sociais que o apoiavam. Com isso, acal-
mais personalistas. mava o capital e as elites tradicionais,
neutralizando em grande medida os se-
Para jogar o mesmo jogo das eli- tores que poderiam exigir mudanças.
tes políticas tradicionais, era necessário As consequências desta opção parecem
dispor dos mesmos recursos que elas bem claras no momento atual.
– e o PT entrou nos esquemas do finan-
ciamento privado de campanha, com os Tudo isso fez com que os gover-
desdobramentos que agora vemos. E en- nos petistas fossem bem diferentes da-
trou também na lógica das alianças elei- quilo que se poderia imaginar que seria
torais movidas exclusivamente pelo ho- um governo Lula, caso tivesse vencido a
rizonte da divisão dos cargos de gover- eleição em 1989. O partido era diferen-
no, sem nenhuma convergência progra- te: muitas lideranças, embora nem to-
mática, algo que os partidos brasileiros das, mudaram de horizontes no curso
sempre fizeram sem grande escândalo da virada pragmática e, ao mesmo tem-
(já que havia pouca solidez programática po, agregou-se uma boa quantidade de
para ser convergida), mas que no caso oportunistas e pilantras, da qual o se-
do PT implicou um sério rebaixamento nador Delcídio do Amaral foi apenas o
de seu projeto. maior exemplo. E, sobretudo, o partido
atuava num contexto diferente, aceitan-

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do conscientemente limitações muito se- ria compromissos sólidos por parte dos
veras às suas políticas. grupos dominantes, permitindo uma
mudança social que pagava o preço de
O impacto deste cenário foi dife- ser moderada e insuficiente para ganhar
rente nos diversos campos de ação go- a garantia de que seria inconteste e per-
vernamental. Algumas políticas priori- manente.
tárias, como o combate à miséria ou o
aumento do poder aquisitivo do salário Não é. A reação que vemos hoje,
mínimo, foram implementadas. Alguns com o sério risco de triunfar em breve,
limites nunca foram desafiados, como é contra muito mais do que Dilma. Não
o pagamento da dívida interna. Em al- é difícil perceber. Basta ouvir o discur-
gumas áreas, como os direitos repro- so do relator do impeachment, em que
dutivos, o combate à homofobia e a de- os supostos crimes de responsabilida-
mocratização da mídia, estabeleceu-se de da presidente são meros coadjuvan-
um padrão de iniciativa governamental, tes. Basta ouvir a advogada do pedido,
ameaças dos setores conservadores e enquadrando a situação como a luta do
recuo. E o pior registro dos governos bem contra as cobras aladas do mal.
petistas aparece naqueles setores em Basta ver as faixas nas manifestações –
que as preocupações mais progressistas contra os direitos das mulheres, contra
encontravam pouca ressonância no pró- as cotas, contra Paulo Freire e o pensa-
prio centro do Poder Executivo: a política mento crítico. Basta lembrar dos líderes
ambiental serve de exemplo. do MBL esquecendo do impeachment por
um momento para fazer lobby contra a
É possível dizer que os governos taxação das grandes fortunas. Basta ver
petistas ficaram muito aquém de uma o que quer o pato da Fiesp: menos direi-
plataforma de esquerda consequente. tos trabalhistas, carga tributária menos
Venderam a ilusão da superação do con- progressiva. Basta ver a plataforma elei-
flito, que sempre foi uma das marcas do toral de Temer ou, ainda, ler as entrevis-
discurso conservador. Aderiram à noção tas do ícone de toda a oposição, Armínio
de que era possível transformar o Brasil Fraga, que fala candidamente que é ne-
sem enfrentar as desigualdades estrutu- cessário comprimir salários, expandir o
rais. Julgaram que o único horizonte para desemprego, ampliar os benefícios do
a classe trabalhadora era o acesso a mais patronato e rifar todas as empresas pú-
consumo e que a inclusão necessária blicas. Há quem diga que é uma franque-
era a inclusão no mercado. Apostaram za suicida, mas não é. Fraga sabe a qual
na manutenção da institucionalidade vi- público está se dirigindo.
gente, limitando-se a adendos pontuais
e periféricos na forma de conselhos e Seja para os fundamentalistas bí-
conferências. E, enfim, avaliaram mal as blicos, seja para os fundamentalistas do
potencialidades desta estratégia, acre- mercado, o mal a ser debelado é todo
ditando que a via da conciliação gera- o avanço ou potencial de avanço que

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tivemos nos últimos anos. São as mu- consenso sobre as políticas de combate
danças materiais e culturais visíveis no à pobreza extrema, que seriam incon-
Brasil, apesar de todos os limites. São os tornáveis para qualquer partido que al-
direitos das empregadas domésticas, é mejasse o poder. Infelizmente, os fatos
a democratização do acesso ao ensino hoje o contradizem. A direita assume um
superior, é a expansão da universida- discurso radical e o que vemos é a ero-
de pública, são as políticas de melhoria são de outros consensos mínimos, antes
do atendimento universal de saúde, é a dados como garantidos: a ideia de que
ampliação da discussão sobre gênero e o poder deve ser conquistado pelo voto,
sobre racismo, são as mulheres, os ne- a ideia de que um país menos desigual
gros, as lésbicas, gays e travestis, os po- seria melhor. Estamos perdendo um ter-
vos indígenas, as populações da periferia reno duramente conquistado para o em-
erguendo a cabeça e recusando sua po- bate de projetos políticos. E mesmo que
sição subordinada de sempre. o golpe seja barrado, será uma batalha
árdua reconquistar o terreno perdido.
O governo Dilma não se encontra
ameaçado pelos erros e vacilos dela e de
Lula. O que mobiliza a direita são seus
acertos. Aqueles que tramam o golpe
desejam é o retrocesso a jato, é avan- 2. O GOLPE E A DIVISÃO
çar rapidamente na retirada de direitos DE PODERES
dos trabalhadores e na alienação do pa-
trimônio nacional, bloquear definitiva- Com a derrubada de Dilma já claramente
mente qualquer progresso possível para desenhada, ainda havia quem confias-
mulheres, para a comunidade LGBT, se nas “instituições”. Sim, as instituições
para os negros e os indígenas, remover funcionam – a questão é saber a favor de
o pouco de bagunça que foi introduzido quem.
nas nossas hierarquias sociais. Querem
fazer aqui o que Macri está fazendo na
26 de abril de 2016.
Argentina, mas como não tiveram e, tudo
indica, continuam não tendo competên-
Charles-Louis de Secondat, ba-
cia para chegar ao poder pelo voto, veem
rão de La Brède e de Montesquieu, fez
no golpe sua chance de ouro.
uma ponta na crise brasileira em abril do
O avanço da usurpação do poder, ano passado. Numa das manifestações
em curso, recoloca a disputa política em da direita, um integralista ensandecido
patamar inferior – não apenas àquele dos pregou contra a divisão de poderes (e
governos do PT, mas de toda a época da contra o sufrágio universal), bradando:
redemocratização. Na fase áurea do que “Montesquieu, vai tomar no cu!”
chamou de “lulismo”, André Singer julga-
O problema, imagino, é que a divi-
va que estávamos construindo um novo
são de poderes parecia a ele um antepa-

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ro de proteção da legalidade. Mas hoje, presidencialismo e nosso federalismo.


com o legislativo a serviço dos golpistas e A principal fundamentação doutrinária
o judiciário inerte, quando não cúmplice, da Constituição foi feita a posteriori, nos
cabe perguntar o que deu errado. Vale a escritos federalistas, produzidos para
pena revisitar, agora de forma mais res- defendê-la nos plebiscitos que a ratifica-
peitosa, o sábio francês. ram. O objetivo da separação de pode-
res é criar um sistema de freios e con-
Montesquieu é visto como o pai trapesos, baseado na máxima humeana
da separação de poderes, mas, de fato, de que “só o poder controla o poder”. O
sua visão é bem mais complexa. Para executivo, o judiciário e as duas casas
ele, o impedimento da tirania repousava do legislativo, cada qual com seu funda-
antes na sobreposição de instituições que mento próprio de legitimidade, deteriam
exerciam o poder legislativo, que ele jul- recursos de poder suficientes para im-
gava, acompanhando o pensamento de pedir a tirania de um deles. O motor é o
sua época, que era a sede da soberania. interesse individual de cada um dos inte-
O parlamento bicameral e o poder de
grantes dos poderes; trata-se, como dis-
veto real garantiam que cada uma das se James Madison no Federalista nº 51, de
três potências (puissances) da sociedade “fazer com que a ambição se contrapo-
– povo, nobreza e rei – tivesse capacida- nha à ambição”.
de de impedir a adoção de políticas que
contrariassem seus interesses. Qualquer A engenharia institucional da
lei, para ser adotada, precisaria da anu- Constituição dos Estados Unidos é
ência de todas as três potências. muito mais sofisticada do que a de
Montesquieu. Mas sua sociologia é mui-
É evidente o caráter conserva- to mais primária. Enquanto para o pen-
dor do arranjo: na ausência do consen- sador francês nós temos forças sociais
so entre rei, nobreza e povo, permane- em conflito, os constituintes estaduni-
ce o status quo. Como observou Louis denses pensavam sobretudo em termos
Althusser, no belo livro que dedicou ao de ambições individuais.
tema (Montesquieu, la politique et l'histoi-
re), aqui, uma vez mais, o autor d’O espíri- Por isso, mais ainda do que em
to das leis revela sua posição favorável à Montesquieu, a doutrina federalista
aristocracia, concedendo esse poder de toma como pressuposto a neutralidade
veto a uma classe decadente, que assim do Estado. Mas, quando se leva em con-
garantiria seus privilégios tanto contra o ta seu caráter de classe, a separação de
rei quanto contra o povo. poderes ganha outro entendimento. Ela
opera, sim, cotidianamente como forma
De fato, nossa divisão de pode- de evitar abusos e prevenir a tentação de
res descende, muito mais do que de um despotismo pessoal. Nos momentos
Montesquieu, da Constituição estadu- de crise, porém, funciona como meca-
nidense, que inspirou também nosso nismo de impedimento da mudança.

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Ocorre o deslocamento do centro do po- certificados de probidade que a Lava Jato


der – por exemplo, do executivo para o vem emitindo para Lula e Dilma. Possui
legislativo, deste para o judiciário e daí, uma base eleitoral sólida, formada em
por vezes, para as forças armadas. Como grande medida por beneficiários das po-
já observava Nicos Poulantzas, em L'État, líticas compensatórias, que se exprime
le pouvoir, le socialisme: na presença de um forte contingente de
opositores ao impeachment (apesar do
“A unidade centralizada do Estado massacre midiático que já dura anos),
não reside numa pirâmide, na qual bas- do rechaço generalizado às políticas de
taria ocupar o topo a fim de assegurar ajuste e à liderança de Lula nas pesqui-
seu controle. Há mais: a organização ins- sas de intenção de voto.
titucional do Estado permite que a bur-
guesia transfira o papel dominante de Em larga medida, no entanto, essa
um aparelho a outro, no caso de que a base só sabe se expressar eleitoralmen-
esquerda, ocupando o governo, consiga te. Os movimentos organizados foram,
controlar o aparelho que até então de- em grande parte, desmobilizados pelo
sempenhava o papel dominante. Dito próprio PT no governo, em seu afã de
de outra maneira, esta organização do se revelar como o garantidor da “paz so-
Estado burguês permite que ele funcio- cial”. É por isso que, hoje, a reação popu-
ne por meio de transferências e deslo- lar ao golpe ainda mostra capacidade de
camentos sucessivos, permitindo a mu- pressão muito inferior ao que seria ne-
dança do poder da burguesia de um apa- cessário para começar a barrá-lo.
relho a outro: o Estado não é um bloco
monolítico, mas um campo estratégico”.

O que chama a atenção, no caso


brasileiro, é a estreitíssima margem de 3. O COLAPSO DA
tolerância com que nossa classe domi- DEMOCRACIA
nante trabalha. Uma década de refor-
mismo tímido já foi demais. Em sessão vergonhosa, a Câmara dos
Deputados aprovou a abertura do proces-
A esperança numa intervenção
so de impeachment contra Dilma – que no
salvadora do Supremo Tribunal Federal
mês seguinte seria afastada do cargo pelo
é, assim, uma esperança desesperança-
Senado. Um golpe contra a presidente,
da. O PT apostou todas as suas fichas na
mas, sobretudo, contra a democracia.
moderação de suas políticas redistribu-
tivas, na conciliação com os adversários
e na permanência das regras do jogo. 6 de maio de 2016.
Tomou até o cuidado de garantir que
seus líderes maiores ficassem intocados A derrota de 17 de abril, na Câmara
pela corrupção, como demonstram os dos Deputados, foi mais do que a sen-
tença de morte para o governo Dilma

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Rousseff, o triunfo do banditismo políti- ciedade. E em outras ainda, como a de


co ou a desmoralização final da elite par- Joseph Schumpeter, tudo não passa de
lamentar brasileira. Representou o tér- um ritual desprovido de outro significa-
mino da ilusão de que o sistema político do além da obtenção do consentimento
em vigor no país pode receber o título de dos governados e, portanto, da redução
“democracia”. dos custos da dominação.

“Democracia” é um conceito em Mesmo nessa visão minimalista, a


disputa. À esquerda, costumamos exigir democracia exige isso: o consentimen-
um regime que conceda maior autorida- to dos governados por meio do voto.
de efetiva às pessoas comuns, que rea- Podemos partir disso e querer mais ou
lize de maneira mais plena o ideal nor- julgar que esse procedimento esgota
mativo da igualdade política. Também a possibilidade da própria democracia,
entendemos que há um vínculo forte mas ele está sempre presente. É isso que
entre as condições materiais de vida e está sendo abandonado no Brasil. O im-
a possibilidade de ação política efetiva. pedimento da presidente da República,
E questionamos o insulamento das prá- sem crime de responsabilidade clara-
ticas democráticas a um espaço social mente identificado, em afronta aberta
restrito, observando como não há demo- às regras estabelecidas, marca a ruptura
cracia efetiva se não são desafiadas as do entendimento de que o voto é o úni-
hierarquias presentes nos locais de tra- co meio legítimo de alcançar o poder. Foi
balho ou na esfera doméstica. Em suma, violado um dos requisitos básicos que
tendemos a colocar aspas ou adjetivos um autor liberal, Robert Dahl, apresen-
na democracia (limitada, restrita, formal) tou para a democracia eleitoral, o princí-
que vigora na maior parte do mundo oci- pio da intercambialidade, que, na prática,
dental. significa que nenhum grupo ou indivíduo
tem poder de veto sobre a maioria gera-
Para o pensamento mais conser- da nas urnas.
vador, tais limites são inevitáveis ou mes-
mo necessários. A democracia é sobre- Em suma: sob a presidência de
tudo um procedimento de legitimação Michel Temer, o regime político brasi-
da autoridade política, por meio do voto leiro perde o direito de ser chamado de
popular. Em algumas narrativas, como a “democrático”, mesmo na compreensão
de Anthony Downs, a necessidade de ob- menos exigente da palavra.
tenção da maioria eleitoral garante auto-
O que a conjuntura brasileira ilu-
maticamente que os mandatários serão
mina é o fato de que, mesmo limitada e
fiéis cumpridores da vontade popular.
indigna de seus ideais normativos mais
Em outras, como a de Giovanni Sartori, o
elevados, a democracia incomoda às
modelo permite que a elite política con-
classes dominantes. Afinal, se o consen-
trole o governo com competência sem
timento da maioria se torna condição
se independentizar do restante da so-

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para o exercício do poder, pode ser que desprovido de materialidade. Os anos


o interesse dessa maioria se faça ouvir petistas foram acompanhados por uma
também. sensação de que hierarquias seculares
estavam sob ameaça. As mulheres, os
Os governos do PT foram muito gays, lésbicas e travestis, os negros, os in-
ciosos dos limites que esse arranjo ins- dígenas, as periferias: grupos em posição
titucional impunha. Entenderam que subalterna passaram a reivindicar cada
era necessário muito cuidado ao mexer vez mais o direito de falar com sua pró-
com os privilégios dos grupos mais po- pria voz, a questionar sua exclusão de
derosos; na verdade, eles deveriam ser determinados espaços, a reagir à vio-
acomodados, não afrontados. Ainda as- lência estrutural que os atinge. Políticas
sim, algum limite foi ultrapassado, talvez de governo apoiaram tais movimentos,
porque o que o PT buscou promover foi desde as cotas nas universidades até o
uma acomodação, isto é, suas lideranças financiamento para a produção audio-
e suas bases precisariam ser incorpora- visual dos subalternos. Os privilegiados
das, de alguma forma. Mas a tolerância
perderam a sensação de que sua supe-
das classes dominantes brasileiras em rioridade social era natural, logo incon-
relação à democracia formal parece ir teste; e perderam também a exclusivida-
muito pouco além da concessão do su- de na ocupação de posições de prestígio.
frágio universal. O povo até pode votar,
vá lá, mas que os tomadores de decisão Para eles, o risco da democracia
levem em conta minimamente os inte- é esse: ela abre uma brecha para que
resses das classes populares já é moti- se ouçam vozes silenciadas, para que o
vo para escândalo. É possível identificar, jogo das elites seja bagunçado. E, como
então, um componente material e outro o direito de voto e a norma formal da
“simbólico” para a inconformidade com igualdade política obtêm grande força
os governos petistas. A redução da misé- normativa, reverter a democracia é tare-
ria afeta uma vulnerabilidade social que fa custosa. O golpe político, no Brasil, foi
é funcional para largos setores do capi- desferido a jato. Mas sua preparação le-
tal. O quanto a pujança do “agronegó- vou anos, com o trabalho de deslegitima-
cio”, por exemplo, não depende da oferta ção dos governos eleitos, levado a cabo
de mão de obra pauperizada no campo pela mídia, pelos institutos privados
brasileiro? Uma redução continuada da destinados à disputa ideológica e pelos
miséria colocaria em risco tal situação. E movimentos espontâneos fakes (como
já atingia as classes médias – que se tor- MBL ou Revoltados On Line) que foram
naram a massa de manobra da direita –, financiados e treinados por fundações
privadas do trabalho doméstico a preço estadunidenses. Ainda assim, o desgaste
vil de que sempre desfrutaram no país. é grande e são necessárias concessões,
como mostra a recente imolação do de-
O outro componente, que cha- putado Eduardo Cunha diante da opi-
mei de “simbólico”, não é, na verdade, nião pública.

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Para nós, o risco é outro. A compe- depois, com a vitória de um projeto rea-
tição eleitoral, à qual se resume muitas cionário, não há mais quase nada da ca-
vezes o componente democrático das pacidade de resistência nas ruas que se
sociedades liberais, funciona como uma via antes. Ou o caso da Espanha, em que
espécie de buraco negro da disputa po- a opção por transformar um movimento
lítica, engolindo tudo o que existe à sua cidadão num partido eleitoral já mostra
volta. seus efeitos. A eleição promove a ilusão
de que o conflito político se resolve num
Nós sabemos que as condições da único dia e que, pelo mandato popular,
disputa eleitoral são adversas, dado o se alcança algo, o “poder”, que, uma vez
poder do dinheiro e da mídia e a inércia conquistado, permite que todos os pro-
das hierarquias sociais. Sabemos, des- blemas sejam solucionados.
de ao menos a obra de Pierre Bourdieu,
que o campo político filtra as formas de Nunca dá certo, mas continuamos
discurso e ação, privilegiando as que se tentando. Dessa vez deu ruim, mas quem
afastam daquelas próprias dos grupos sabe da próxima... De fato, no século
dominados. Sabemos também, a partir XVIII o velho Montesquieu já dizia que as
da obra de Nicos Poulantzas, que o apa- eleições devem ser frequentes, para que
relho de Estado é programado para re- o povo nunca perca a esperança de, um
sistir a mudanças, deslocando o poder de dia, escolher governantes que não sejam
veto de um de seus componentes para corruptos.
outro – por exemplo, do executivo para
O sufrágio universal deslegitima
o legislativo, de uma casa do Congresso
simbolicamente formas mais ofensivas e
para outra, depois para o judiciário, en-
eficazes de pressão das classes popula-
fim para as forças armadas – conforme
res, como já anotava Albert Hirschman. E
necessário. Ainda assim, a cada quatro
a democracia, ao se realizar em determi-
anos todas as energias e esperanças se
nadas instituições, cristaliza uma forma
concentram nas eleições.
de dominação. Com frequência, o pres-
A disputa eleitoral funciona, mui- suposto tácito da discussão é a ideia de
tas vezes, como solução para reconstruir que democracia e dominação são antípo-
a dominação ameaçada por práticas das. Onde há democracia não pode haver
contestatórias. A crise de legitimidade dominação; logo, se estamos discutindo
da Argentina em 2001, aquela do bordão no contexto de um ordenamento político
que se vayan todos, deságua nas eleições democrático, a categoria “dominação” se
de 2003. Muitos grupos envolvidos em torna inútil. Mas qualquer institucionali-
ações políticas populares inovadoras, dade institui seu próprio regime de do-
como asambleas barriales ou cortes de minação. Afinal, “relações democráticas
ruta, passam a privilegiar a disputa elei- ainda são relações de poder e como tal
toral. Elege-se um presidente reformis- são continuamente recriadas”, como dis-
ta, Néstor Kirchner; uma dúzia de anos se Barbara Cruikshank. Isto porque não

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

falamos de uma democracia em abstra- mais à esquerda, dada a incompetência


to, mas de regimes concretos, que orga- crônica da direita brasileira para produ-
nizam formas de distribuição de poder, zir uma opção viável. Parecerá que a de-
de atribuição de direitos e de regulação mocracia está restaurada. Mas o retro-
da intervenção política. São “tecnologias cesso desses anos não será apagado. E
da cidadania”, que constituem e regulam a tutela dos poderosos sobre a vontade
comportamentos e que indicam que, expressa nas urnas terá sido reafirmada
como qualquer outra forma de gover- com enorme clareza.
no, “a democracia tanto permite quan-
Essa é a armadilha da democracia
to constrange as possibilidades da ação
limitada que temos. Parece que a luta
política” – para ficar novamente com
política deve ser sempre canalizada para
Cruikshank.
as eleições. Mas se há algo que os últi-
Esta institucionalidade concreta se mos acontecimentos deixam claro é que
manifesta numa sociedade também con- não há transformação possível sem in-
creta, com suas assimetrias no controle vestimento na luta extra-institucional. O
de recursos. A ordem democrática não Estado capitalista não é neutro, nem sua
anula a efetividade da dominação que lei, nem seus aparelhos. A pressão pela
se estabelece em espaços considerados mudança pode até ingressar nele, intro-
pré-políticos, como o mundo do trabalho duzindo contradições, mas só tem con-
e a esfera doméstica; pelo contrário, há dições de triunfar se estiver fortemente
uma forte tendência a que essas formas ancorada do lado de fora.
de dominação estejam espelhadas no
âmbito da política. E se espelham tam-
bém nos pressupostos que constroem a
institucionalidade vigente.
4. A DITADURA EM
Temer, na presidência, empossa- CONSTRUÇÃO
do definitivamente e com o beneplácito
do Supremo Tribunal Federal, avançará Ainda como interino, Michel Temer pu-
o mais rápido que puder na agenda de nha em marcha o projeto da coalizão de
retrocesso que se deseja impor ao país forças que deflagrou o golpe: arrocho nos
– entrega das estatais, avanço do funda- trabalhadores e nos pobres. E destruição
mentalismo, retirada de direitos traba- das regras democráticas.
lhistas, criminalização do pensamento
crítico, recuo da legislação ambiental,
2 de maio de 2016.
arbitrariedade escancarada da força po-
licial, cortes nas políticas sociais, tribu-
O que estamos presenciando, no
tação regressiva. Quando chegar 2018,
Brasil, é o início de uma ditadura.
provavelmente teremos eleições, como
previsto. Talvez até ganhe um candidato

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Há muita polêmica sobre o con- Agora, Temer diz que vai editar
ceito de “democracia”, na teoria políti- uma medida provisória para revogar a
ca. Mas há dois elementos básicos para legislação sobre a EBC (além do manda-
que um regime político seja chamado to fixo, vai eliminar também o Conselho
de “democrático” – correntes mais exi- Curador, organismo que faz a emissora
gentes julgam que são insuficientes, ser controlada pela sociedade civil). Mais
mas não prescindem dela. O primeiro é uma vez, não se trata apenas de um pa-
a autorização popular dos governantes, radoxo evidente – se uma MP qualquer
que se dá caracteristicamente por meio pode abreviar o mandato previsto em lei,
do voto. Isso foi revogado no dia 12 de então o propósito da lei, gerar autonomia
maio, quando a presidente foi destituída dos dirigentes da emissora, nunca se re-
do cargo sem base legal para tanto. aliza. É o fato de que a demissão ocorreu
antes da tal MP, isto é, sem sequer uma
O outro elemento é a vigência da fachada de amparo legal. (Parece que o
lei, acima do arbítrio dos governantes. governo do usurpador não aguentaria
A evidência clara de que isso também
mais alguns dias de jornalismo indepen-
não existe mais foi a demissão do dire- dente.)
tor-presidente da Empresa Brasileira de
Comunicação, Ricardo Melo. Temos uma situação em que os
donos do poder não se sentem cons-
Não se tratou apenas da demis- trangidos pela existência da legislação,
são de um jornalista respeitado (mes- simplesmente decidindo se e quando
mo por quem discorda de suas opiniões vão respeitá-la.
progressistas) e da nomeação, em seu
lugar, de alguém envolvido em escânda- A percepção de que há uma dita-
los de corrupção, sem trajetória profis- dura sendo instalada é alimentada tam-
sional significativa e cujo principal item bém pelas notícias, cada vez mais preo-
do currículo é ser homem de confiança cupantes, sobre o aumento do arbítrio
do presidente afastado da Câmara dos do aparato repressivo do Estado, com
Deputados, Eduardo Cunha. Tampouco prisões ou a intimidação pela polícia, por
se tratou apenas de destruir a primeira motivos políticos. Desde que a maré do
tentativa séria de formar um sistema pú- golpe subiu, a violência policial com mo-
blico, não governamental, de comunica- tivação política aumentou, dirigida con-
ção no Brasil. O ponto é que, ao demitir tra estudantes, contra trabalhadoras e
Melo, Michel Temer simplesmente atro- trabalhadores, contra professoras e pro-
pelou uma lei em vigor no país – a lei nº fessores, contra militantes de movimen-
11.652, de 7 de abril de 2008, que criou tos sociais.
a EBC e estabeleceu mandatos fixos para
Aumentam também as notícias de
seus dirigentes, a fim exatamente de tor-
cerceamento da liberdade de expressão
ná-los independentes do governo.
e manifestação, seguindo decisões dis-

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cricionárias de juízes ou promotores. A movimentos sociais e da esquerda pode


proibição da discussão política em uni- virar política de Estado.
versidades e escolas e a mordaça que se
A resistência nas ruas é, mais do
quer impor a estrangeiros com residên-
que nunca, necessária. Quanto mais pas-
cia permanente – em desacordo evidente
sos forem dados na direção da ditadura,
com o artigo 5º da Constituição Federal,
mais difícil será revertê-la.
que garante aos estrangeiros residentes
no País o usufruto das mesmas liberda-
des dos nacionais – são claros indícios de
um regime ditatorial. E isso se liga à pas-
sividade com que agentes do Estado têm 5. PARA ENTENDER O
contemplado agressões promovidas por GOLPE
grupos organizados contra os dissiden-
tes, das quais as ações das milícias do
A Ciência Política brasileira via uma “de-
MBL no Amazonas são apenas o exem-
mocracia em consolidação”. O golpe de
plo mais chocante.
2016 mostrou que seus modelos de análi-
Unidos pela vontade comum de se eram restritos e equivocados.
promover o retrocesso, os três poderes
da República abrem mão do papel cons- 1º de setembro de 2016.
titucional de supervisão mútua – com o
beneplácito da mídia, o “quarto poder”, Não é exagero dizer que o golpe
que comunga do mesmo propósito. de 2016, que encerrou a experiência de-
mocrática iniciada no Brasil a partir de
A ditadura em instalação convive
1985, pegou todo mundo de surpresa.
com o Congresso aberto, mas com esfor-
Muitos podiam reclamar dos limites da
ço notável para, dentro dele, silenciar as
democracia brasileira, ainda insuficien-
vozes dissidentes. Eleições permanecem
temente inclusiva, com um eleitorado
e provavelmente permanecerão, mas
imaturo, atravessada por práticas patri-
com os partidos à esquerda sob cerco e
monialistas, sujeita a formas de mani-
condições de disputa cada vez mais de-
pulação da vontade coletiva – as críticas
siguais. As liberdades democráticas não
eram variadas, dependendo de onde
serão revogadas formalmente, mas te-
partiam. Mas era consensual a ideia de
rão cada vez mais dificuldade para se im-
que suas regras básicas tinham chegado
por. Com a lei “antiterrorismo” já em vi-
para ficar, em particular o fato de que o
gor – lembrete perene dos graves limites
poder político deveria ser conquistado
da experiência do governo petista – e as
pelo voto. Pesava também a constatação
novas regras repressoras em gestação
de que as forças armadas, ainda que não
(proibição da crítica na internet, mor-
exatamente convertidas ao credo demo-
daça nas escolas), a criminalização dos
crático (como demonstra sua incapaci-
dade de fazer a autocrítica da ditadura),

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pareciam pouco inclinadas a uma inter- ções. É uma narrativa que se estabelece
venção política mais ostensiva. Com os como dominante a partir da nossa “tran-
quartéis apaziguados, estava afastada a sitologia”, isto é, o corpo de estudos que
possibilidade de golpe, entendido classi- descreve e analisa o processo de transi-
camente como golpe militar, que seria a ção política da ditadura militar para a de-
principal ameaça à continuidade do pro- mocracia. Com as honrosas exceções de
cesso democrático. praxe, a transitologia é marcada por três
características:
Por isso, o triunfo do golpe de
novo tipo que levou Michel Temer à pre- (a) A narrativa sobre o fim da dita-
sidência surpreendeu os observadores dura privilegia as negociações e transfor-
da realidade política brasileira e, em par- mações dentro das instituições do pró-
ticular, aqueles da tribo à qual pertenço: prio regime militar, ao ponto de quase
os cientistas políticos. Na verdade, o sen- invisibilizar o que ocorria do lado de fora.
timento de surpresa, de incapacidade de
(b) O progresso da redemocratiza-
encaixar os eventos num enquadramen-
ção é medido exclusivamente pela cons-
to explicativo que faça sentido, vem de
trução da nova institucionalidade, que
antes. Começa em junho de 2013, quan-
adere ao figurino democrático-liberal vi-
do as ruas das cidades brasileiras foram
gente nos países avançados do Ocidente.
tomadas por manifestações que nin-
guém esperava, com uma adesão que (c) Um forte componente teleoló-
ninguém esperava, que se desdobraram gico: essa institucionalidade liberal-de-
de maneiras que ninguém esperava. mocrática é o ponto de chegada fixo e
Uma leitura dos estudos que têm sido definido desde sempre para a transição.
publicados sobre as “jornadas de junho”
mostra que um traço comum a muitos Nós chegamos, de fato, a uma
deles é o reconhecimento expresso de crença quase absoluta na capacidade
seu caráter tateante e de sua impotência autopoiética das instituições políticas, da
explanatória. qual, a meu ver, o exemplo mais perfeito
é o uso do conceito de “presidencialismo
Isso ocorre porque a ciência po- de coalizão”, que se tornou a chave ex-
lítica é vítima da crença em sua própria plicativa dominante para a compreensão
narrativa dominante. É uma narrativa do funcionamento de nosso sistema polí-
em que o conflito social é inteiramente tico. Não nego a utilidade do conceito – e
englobado pelas instituições. A parte do ele ganhou tal proeminência exatamen-
conflito que não se expressa por via insti- te por sua capacidade de iluminar aspec-
tucional é tratada como residual e como tos da realidade. Mas ele vai ser muitas
demonstração de um amadurecimento vezes mobilizado para transmitir a ideia
ainda insuficiente do nosso sistema po- de que o sistema político brasileiro pós-
lítico – com o ainda indicando o subtex- -redemocratização, a despeito de seus
to teleológico presente nessas formula- defeitos evidentes, é capaz de sempre

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alcançar um equilíbrio. E esse equilíbrio to e separação de poderes; a economia


é explicado exclusivamente por acertos capitalista; as políticas de inclusão social
entre partidos, legislativo e executivo. e o combate à pobreza extrema. Nestas
águas nos moveríamos, até onde a vista
Esse mesmo entendimento é acio- era capaz de alcançar, numa espécie de
nado para avaliar a trajetória do Partido pacto social-democrata adaptado para
dos Trabalhadores, que, aos poucos, se uma sociedade com expectativas iguali-
tornou um partido exclusivamente elei- tárias sumamente baixas.
toral e se distanciou dos movimentos
populares que lhe deram origem – ou, Chegando ao poder em 2003, Lula
melhor, deixou de se ver como porta-voz inicia sua “mágica” de conciliação de in-
desses movimentos e instrumentalizou- teresses. Não vou discutir aqui o lulismo.
-os a partir da lógica eleitoral que passou Só quero destacar que o lulismo pro-
a ser dominante. Em vez de um tipo de moveu uma inclusão social acelerada e
empobrecimento do projeto original do real, ainda que tímida. Não existe ma-
partido, essa démarche é lida como um ximalismo que autorize negar o impac-
processo natural de “amadurecimento”. to da ampliação da oferta de emprego,
do aumento real do salário mínimo e de
Aplaude-se, enfim, o fato de que projetos como Bolsa Família, Minha Casa
as opções colocadas à disposição dos Minha Vida e Luz para Todos. Mas isso
eleitores se tornam menos extremas, foi feito sem mexer minimamente com
mais parecidas entre si. O centrismo o funcionamento do sistema político en-
crescente da disputa política, que segue quanto tal. Uma leitura corrente é que
a lógica da competição eleitoral, não é seu impacto “político” principal estaria
avaliado como uma redução do cardá- no realinhamento das bases eleitorais
pio de alternativas colocado à disposição do PT (logo, por consequência, também
dos eleitores, mas como um passo na de seus adversários) – e essas novas ba-
direção da desdramatização da política. ses permaneceriam na postura de pas-
Caminharíamos, enfim, para a democra- sividade, expressando-se apenas pelo
cia morna idealizada por tantos, em que voto, que é a parte que lhes cabe nesse
a vitória de uns ou de outros deixa de ser latifúndio.
uma questão de “vida ou morte” e pas-
sa a ser um aspecto menor do funciona- Alguém pode dizer que a descri-
mento permanente de instituições está- ção que estou fazendo da atuação dos
veis. De maneira um pouco mais profun- governos petistas é limitada ou mesmo
da, firma-se a ideia de que estaríamos injusta. De fato, às margens do sistema
produzindo um consenso no Brasil, ca- político cujo funcionamento permane-
paz de abarcar todas as forças políticas ceu intocado, aí sim, eles incrementaram
relevantes. Este consenso incluiria a de- mecanismos de participação social, com
mocracia eleitoral, com o figurino com- a miríade de conferências, de conselhos
pleto de direitos liberais, Estado de direi- etc., que brotaram dos braços do Estado

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ao longo dos anos de Lula e Dilma no po- um desgaste que depois se manifestasse
der. Mais uma vez, não se trata de mini- nas urnas.
mizar a importância destas experiências,
Assim, junho de 2013 aparece
que podem ser entendidas como uma
como um raio em céu azul. E isso tanto
forma de ampliar a institucionalidade
por quem leu o momento como um risco
política e abrir espaços de interlocução
à nossa consolidação democrática quan-
com organizações da sociedade civil que,
to por quem, à esquerda, viu ali o ponto
de outra maneira, dificilmente teriam
de partida para uma revolução popular
condições de se fazer ouvir. Mas estes
da qual já se desesperançava. Há muito
novos espaços continuam em posição
ainda que se estudar para entender es-
subalterna diante da política “de gente
sas manifestações, que acredito terem
grande”, que é a negociação entre o exe-
sido um ponto de viragem crucial na po-
cutivo e o legislativo (e, claro, as pressões
lítica brasileira recente. Desejo destacar
diretas do capital). Fazendo um símile
apenas alguns poucos aspectos:
talvez um pouco ousado, é como se fos-
se uma adaptação da estratégia leninis- (a) O foco inicial no transporte pú-
ta do duplo poder, com a peculiaridade blico, que depois se expandiu para ou-
de que, nessa adaptação, o novo poder tros serviços públicos, como educação e
abre mão de qualquer expectativa de de- saúde, demonstrou os limites das políti-
safiar o poder anterior. cas implementadas pelos governos pe-
tistas, cuja leitura da inclusão social pri-
Esse era o quadro: os governos
vilegiava o acesso ao consumo.
do PT promoviam a inclusão social que
podiam, sem afrontar os interesses do- (b) Os protestos tomaram uma
minantes, contando com angariar a sim- dimensão que superaram em muito a
patia (logo, o apoio eleitoral) dos bene-
capacidade de liderança de seus orga-
ficiados. Controlando o poder executivo nizadores, permitindo a diluição de sua
federal, usavam os instrumentos de que pauta, algo que é sempre lembrado. Mas
dispunham para garantir o apoio neces- chamo a atenção para o fato de que,
sário no legislativo. Precisavam lidar com com isso, foi aberta uma oportunidade
a má vontade de parte das elites tradi- para a expressão do ressentimento das
cionais, que se sentiam incomodadas classes médias com a ascensão dos mais
por ver os neófitos ocupando posições pobres, ressentimento que é recorren-
que julgavam suas por direito divino, e te na história política brasileira. Ele tem
em particular com a má vontade da mí- por base interesses tanto materiais, uma
dia. Mas nada que desestabilizasse o vez que essas classes médias se benefi-
jogo que estava sendo jogado. Mesmo o ciam com a oferta de uma mão de obra
cerco da mídia: seus limites foram testa- que trabalha a preço vil (nos empregos
dos na crise do mensalão, durante o pri- domésticos e serviços pessoais), quanto
meiro mandato de Lula, e ficou demons- simbólicos, de manutenção das hierar-
trado que a intenção principal era gerar

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quias sociais. E se expressa na narrativa tisfação com o governo petista, cuja ex-
de decadência moral, centrada na cor- pressão final deveria ocorrer nas urnas
rupção, voltada para medidas punitivas de 2014.
e hoje focada no PT – narrativa que sus-
À esquerda do governo, a perple-
tentaria em seguida o apoio destes mes-
xidade não era menor e, à parte algu-
mos setores ao golpe.
mas fórmulas retóricas de expressão de
(c) Foi reafirmado o poder dos entusiasmo pelo novo “protagonismo
meios de comunicação de massa, que das massas”, pouco foi elaborado, pelo
foram capazes de ressignificar os pro- menos pouco que pudesse servir para
testos, de separar o joio (da “violência orientar uma estratégia política. Creio
radical”) do trigo (da “cidadania ativa”), que, ao menos em parte, isso se deve à
de legitimar a repressão policial quando absoluta centralidade que o PT mantém
ela ocorreu e, enfim, de promover a ade- nesse campo (a esquerda), tão grande
são de muitos grupos alheios à sua de- que mesmo aqueles que se descolaram
flagração inicial. Embora as redes sociais de seu projeto político se mantêm como
tenham sido ferramentas importantes quem basicamente apresenta reações às
na construção das mobilizações, o peso posições do petismo.
predominante da mídia tradicional na
A despeito da eventual saudação
construção dos sentidos foi indiscutível.
pública às “ruas”, todos – inclusive os
Nada disso cabia nos modelos que cientistas políticos – se sentiram alivia-
interpretavam a realidade política brasi- dos ao pensar que aquilo passou. Com
leira. Nem mesmo naqueles que infor- as eleições de 2014, a política voltava ao
mavam os agentes políticos tradicionais. “normal”. Os protestos de junho do ano
Seja no governo, seja na oposição, eles anterior eram imagens a ser eventual-
reagiram aos protestos dentro da lógica mente utilizadas na propaganda da te-
da política convencional, numa demons- levisão ou a demonstração de um certo
tração patética de sua incapacidade de espírito reinante, vago o suficiente para
dialogar com aquilo que as ruas estavam ser evocado, com diferentes sentidos,
(de uma maneira caótica, contraditória, por diferentes candidatos.
desordenada, incerta) dizendo. Tratava-
Mas a política não voltou ao “nor-
se de minimizar danos, com promessas
mal”. A normalidade implicava o modelo
vagas e sempre de uma maneira que
de que era a eleição que definia quem
recolocava os cidadãos comuns numa
havia vencido a disputa política naque-
posição de passividade e reatividade,
le momento. Em seguida, o detentor do
no caso de Dilma e do PT. Ou de fatu-
Poder Executivo usava os recursos que
rar eleitoralmente, no caso da oposição
controlava para acomodar os interesses
à direita, expressão na qual incluo tanto
presentes no Poder Legislativo. O nú-
o PSDB quanto Marina Silva. Nesse caso,
cleo duro dos derrotados fazia a oposi-
o protesto seria o indício de uma insa-

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ção mais estridente possível, tentando Não é possível ignorar o peso da


desgastar o governo para ampliar suas frustração de amplos setores populares,
chances na eleição seguinte. Era assim para os quais o modelo lulista se mos-
que devia ser. trava insuficiente, o que foi expresso em
junho de 2013. E temos aí, também, a
Só que, desta vez, não deu certo. presença de novos movimentos de mu-
lheres, de periferias, da população ne-
Por quê? Talvez o PSDB e os inte-
gra, da comunidade LGBT, cuja interface
resses que o circundam tenham ficado
com a política institucional é muitíssimo
alvoroçados com a quarta derrota con-
débil. São movimentos que utilizam as
secutiva, desencantados com o modelo
novas tecnologias da informação, mas
de alternância no poder pela via do voto
que estão longe de ser meramente “vir-
– e aí não resistiram à tentação gerada
tuais”, que contam com uma espécie de
pela confluência de forças anti-Dilma nas
“capilaridade desorganizada”, para não
ruas, no aparelho repressivo de Estado
dizer caótica, e uma energia que, pelo
e na mídia. Podemos acrescentar aí pita-
menos do ponto de vista da avaliação
das da política anedótica, como a vingan-
política mais tradicional, gera muita ação
ça de Eduardo Cunha ou a mosca azul pi-
e pouco resultado. Entender o que são
cando Michel Temer.
esses movimentos, entender como eles
Mas mesmo que fiquemos nisso, podem se articular numa ação transfor-
já está claro que a disputa política não madora, é a meu ver um desafio central
se limita à sua expressão dentro das ins- para a esquerda brasileira.
tituições. Estamos percebendo, em pri-
Do outro lado está, em primeiro
meiro lugar, que a democracia eleitoral
lugar, o capital. Sua relação com o poder
não é “the only game in town”, a única
político nunca é contida inteiramente pe-
opção de ação política, como quer nosso
las regras da institucionalidade vigente.
receituário.
Não custa lembrar que a corrupção não
Isso nos leva a três constatações, é um mero “desvio”: é um dos meios, en-
que apresento aqui como conclusões: tre muitos outros (lobby, financiamento
de campanha, desinvestimento real ou
(1) Para entender a dinâmica do ameaça de desinvestimento etc.), pelos
conflito político é necessário levar em quais o capital faz valer seus interesses.
conta as forças sociais e os interesses O agravamento das tensões políticas re-
que não se expressam nos canais insti- velou que, para nossas classes dominan-
tucionalizados. Alguns não têm força su- tes, os pequenos avanços dos governos
ficiente para serem ouvidos por meio de- do PT já pareceram excessivos. Talvez
les. Outros têm força demais para acei- devamos voltar à teoria da dependên-
tar serem contidos por eles. cia, na versão de Ruy Mauro Marini: no
capitalismo periférico, é imposto um pa-
drão de superexploração, em que a for-

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ça de trabalho deve ser vendida abaixo papel dos meios de comunicação este-
do valor da sua reposição. Não vou en- ve muito longe de ser negligenciável. E
trar nessa polêmica, mas é evidente que os modelos da ciência política também
é nessa direção que o governo Temer os negligenciam – em contraste com a
aponta: ampliação do desemprego e da preocupação obsessiva que os próprios
vulnerabilidade social, recuo no valor de agentes políticos têm com sua própria
compra dos salários, redução das garan- visibilidade pública.
tias legais ao trabalho, retração do gasto
Mesmo o subcampo dos estudos
social fazendo com que os trabalhado-
sobre mídia e política precisa se renovar
res devolvam crescente parte da rique-
para entender o momento atual. Quando
za ao capital na compra de serviços que
ele ganhou fôlego no Brasil, a partir das
antes o Estado financiava via tributação.
eleições presidenciais de 1989, os jornais
Se esse programa não vai ser aprovado
e sobretudo as emissoras de televisão
nas urnas, e parece que não vai mesmo,
eram vistas como imbatíveis fazedores
é preciso ter outros meios que contribu-
de reis. A vitória de Lula em 2002 ainda
am para implementá-lo.
podia ser acomodada nessa crença, uma
Em suma: se queremos entender vez que naquela eleição os grandes ve-
a política e o funcionamento das institui- ículos, capitaneados pela Rede Globo,
ções para além da marola do noticiário, fizeram seu experimento de “impar-
é preciso levar em conta, centralmente, a cialidade” ostensiva e extraíram do PT
relação do Estado com as classes domi- provas de que estava suficientemente
nantes. Os modelos de interpretação em domesticado para chegar ao poder. Em
vigor na ciência política aderem à ficção 2006, 2010 e 2014, porém, o grosso da
de uma institucionalidade jurídico-polí- mídia se colocou sem disfarces contra
tica liberada do conflito de classe, mas os candidatos petistas – e perdeu. Essas
crises como a que estamos vivendo reve- derrotas provaram os limites de sua in-
lam os limites dessa abordagem. fluência e foram, devo confessar, um bal-
de de água fria nas pesquisas da área.
(2) Em segundo lugar, e até como De repente, nosso objeto não dispunha
derivação do primeiro ponto, é impor- mais dos superpoderes que atribuíamos
tante levar em conta o controle da infor- a ele. Mas poder limitado não quer dizer
mação. inexistente. Em 2013 e em 2015-2016,
outras formas do impacto político da mí-
As narrativas da história política
dia ficaram patentes.
do Brasil tendem a ignorar a mídia ou,
no máximo, conceder a ela um papel A despeito da importância que as
absolutamente secundário. No entanto, novas tecnologias de informação e co-
da Revolução de 1930 ao golpe de 2016, municação têm, na formação de redes
passando (entre outros momentos) pela e na disseminação de enquadramen-
crise de 1954 e pelo golpe de 1964, o tos alternativos da realidade, seu papel

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ainda é, em grande medida, de reação à ca capaz de abranger o conflito social de


agenda e à leitura do mundo social que maneira mais ampla, para além de sua
a mídia tradicional põe em marcha. Isso expressão nas instituições vigentes.
tem implicações tanto do ponto de vista
da análise quanto da ação política: o con-
trole da informação por um punhado de
grupos privados permanece sendo um
6. A OFENSIVA DO
dos principais gargalos para a democra-
CAPITAL
cia no Brasil. Se conseguirmos restaurar
os procedimentos democráticos míni-
mos e quisermos avançar um pouco a A emenda constitucional que congelou os
partir deles, essa é uma questão que não gastos públicos escancarou que a con-
pode ser ignorada. traface do discurso da “responsabilidade
fiscal” é o desinteresse absoluto pelas
(3) A terceira conclusão, por fim, políticas sociais.
é algo que tenho dito muitas vezes nes-
ses últimos tempos: as instituições são
14 de outubro de 2016.
simultaneamente resultados da dispu-
ta política, arenas da disputa política e
Uma crítica comum aos governos
partícipes da luta política. Não podemos
do Partido dos Trabalhadores, feita por
ver o mundo da política como se elas fos-
setores à esquerda, é que eles teriam
sem as balizas fixas da disputa de proje-
apostado na conciliação de classes. Os
tos e interesses, alheias a essa disputa.
trabalhadores e os mais pobres teriam
Nosso sistema de freios e controles não
vantagens, mas sem que fosse coloca-
preveniu o golpe; pelo contrário, foi acio-
da em risco a remuneração do capital
nado de maneira a alavancá-lo. E mos-
e a reprodução do sistema. Combate à
trou a que interesses é capaz de servir,
miséria extrema, um tanto de seguran-
uma vez que é acionado. De fato, temos
ça social, um tiquinho de redistribuição,
uma institucionalidade que é desigual-
ampliação do padrão de consumo – es-
mente porosa, isto é, sensível a alguns
ses eram os ganhos. Em troca, os lucros
interesses, quase impermeável a outros.
dos bancos e das grandes empresas per-
Não levar isso em conta é abolir do nos-
maneciam intocados e o PT, na posição
so horizonte algo absolutamente central
de organização líder da esquerda brasi-
para entender a política como disputa de
leira, abandonava qualquer projeto de
interesses, vinculada aos grupos sociais
enfrentamento mais radical da ordem
que buscam reforçar ou contestar os
capitalista.
mecanismos de dominação que atraves-
sam a sociedade. O golpe de maio/agosto de 2016
mostrou que esse projeto de concilia-
A reflexão sobre o golpe de 2016
ção foi rompido unilateralmente pela
impõe a adoção de uma moldura teóri-
burguesia. Entre as muitas medidas que

25
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

revelam o programa que o governo ile- lho”. A PEC é expressamente apresenta-


gítimo de Michel Temer deseja implan- da como uma arma contra o comunismo
tar, a PEC 241 é a mais cristalina. A PEC em textos inacreditáveis divulgados por
é a tentativa de engessar as políticas do movimentos de extrema-direita, como o
Estado brasileiro por vinte anos, isto é, MBL.
por cinco mandatos presidenciais – feita
Para os setores um pouco mais
por um presidente que não conquistou
informados, a estratégia é outra e se
nenhum mandato.
desdobra em duas faces. Por um lado, a
Há muito o que discutir na PEC, PEC é apresentada como um imperativo
mas o principal talvez seja a falta de dis- técnico para “equilibrar” as contas públi-
cussão. É uma proposta com enorme im- cas. É o argumento preferido da impren-
pacto na vida do país, mas foi simples- sa. Por outro, há um esforço significativo
mente tirada de uma gaveta: não houve para escamotear os efeitos da PEC no fi-
debate com a sociedade e não há debate nanciamento de serviços públicos como
no Congresso, em que a os parlamenta- educação e saúde. O discurso oficial é
res da situação, instruídos pelo governo que não haverá perda, apenas “racionali-
Temer, estão apenas cumprindo o ritual, zação”. Com a truculência que se tornou
da maneira mais acelerada possível. marca do novo governo, funcionários pú-
blicos que ousam mostrar dados diver-
O que existe, isso sim, é uma enor- sos são afastados. No entanto, todos os
me campanha de desinformação, com economistas sérios, independentemente
o objetivo exatamente de impedir a re- de posição política, têm apontado que a
flexão sobre a emenda constitucional. PEC gerará uma imensa crise no finan-
Participam da campanha o governo, os ciamento da saúde e da educação, além
diversos grupos à direita que o apoiam do achatamento do poder de compra do
e, com destaque, os meios de comunica- salário mínimo.
ção empresarial, por meio de editoriais,
da maior parte das colunas de opinião Há um projeto por trás disso, que,
e, em especial, da cobertura jornalística no entanto, não é trazido para o deba-
seletiva. te. Quando, num vídeo que ficou famo-
so nos últimos dias, o deputado Nelson
Para as franjas mais destituídas de Marquezelli se exaltou e soltou a frase
instrumental crítico, difundem-se – por “quem não tem dinheiro não faz univer-
meios informais – noções fantasiosas, sidade”, ele indicou a visão de que não
como a de que o objetivo da PEC é impe- cabe ao Estado fornecer nenhum tipo de
dir que os políticos aumentem seus pró- serviço, de que cada um deve comprá-los
prios salários. Sempre é possível também no mercado de acordo com os recursos
usar a carta do anticomunismo, o que o de que dispõe. É o “Estado mínimo”, que
governo faz com sua ambígua campanha grupos da direita tanto exaltam.
publicitária sobre “tirar o país do verme-

26
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Trata-se do programa do liberalis- política tributária que leva à concentra-


mo extremado, assumido pelos grupos ção da renda e da riqueza.
mais intelectualizados da direita, aque-
A resistência à PEC depende de di-
les que carregam cartazes pedindo “mais
fundir informação e de politizar a discus-
Mises”, filiam-se ao novo partido do Itaú
são. Há um enorme atraso no debate,
ou frequentam os cursinhos patrocina-
que precisa ser vencido. Isto é, é neces-
dos pela Atlas Foundation. Esse seria o
sário desconstruir uma quantidade de
momento para eles travarem o deba-
percepções que vêm sendo marteladas
te em favor de sua visão de mundo. No
há décadas e que impedem uma abor-
entanto, preferem se esconder por trás
dagem adequada das questões tocadas
do muro de desinformação. Eles sabem
pela PEC 241.
que – em qualquer lugar, mas sobretu-
do num país como o Brasil – a tese do É necessário desvelar e denunciar
Estado mínimo chega a ser obscena. a lógica do financiamento do Estado bra-
sileiro, uma das mais atrasadas do mun-
A contraface desse programa é o
do. É necessário deixar claro que esta-
familismo, não por acaso também um
mos longe de uma questão técnica, mas
dos pilares do governo golpista. Quanto
sim diante da decisão sobre a quem o
mais o Estado deixa de oferecer suporte,
Estado irá servir. É necessário desmontar
mais é responsabilidade das famílias ga-
a ideia de que se paga imposto demais
rantir proteção, segurança e condições
no Brasil. É necessário indicar a cumplici-
de desenvolvimento para seus integran-
dade histórica do Estado brasileiro com a
tes. Daí para a denúncia da dissolução
sonegação. É necessário mostrar que há
da família tradicional como culpada pela
uma disputa e que, de acordo com a PEC,
crise social, como no discurso da direita
os pobres e os trabalhadores perdem
estadunidense, é um passo.
para que os ricos ganhem. É necessário
Além do Estado mínimo, que se esclarecer o que é o orçamento da União
retira do fornecimento de serviços pú- e onde o dinheiro é gasto, revelando a
blicos, a PEC aponta para um regime parte que cabe à remuneração da dívida
tributário cada vez mais regressivo. Já pública, isto é, à renda dos especulado-
temos, no Brasil, um sistema de taxação res. É necessário desfazer o símile fácil
que penaliza o trabalho e o consumo e e enganoso que iguala orçamento públi-
beneficia os ganhos de capital. Ao conge- co e orçamento doméstico, para criticar
lar o investimento social, mas reafirmar os “gastões”. É necessário desconstruir
o caráter sacrossanto da dívida pública, o discurso que exalta a responsabilida-
a PEC projeta um país em que todos pa- de fiscal às custas da irresponsabilidade
gam impostos, com pouquíssimo retor- social.
no em serviços públicos, para que alguns
A vitória da PEC representará o
poucos ganhem com o rentismo. É uma
triunfo do programa regressivo e antipo-

27
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

pular do golpe, com um legado de atraso no que não tem autorização popular. Por
que, mesmo depois dos vinte anos mal- outro, em contraste com o império da lei,
ditos, o país demorará décadas para re- sinaliza um regime em que o poder não
cuperar. é limitado por direitos dos cidadãos e em
que a igualdade jurídica é abertamente
desrespeitada. O Brasil após o golpe de
2016 caminha nas duas direções.

7. TRANSIÇÃO À A destituição da presidente Dilma


DITADURA Rousseff, sem respaldo na Constituição,
representou um golpe de novo tipo, des-
A Ciência Política estudou muito a “tran- ferido no parlamento, com apoio funda-
sição democrática”. No Brasil, é hora de mental do aparato repressivo do Estado,
analisar a “transição à ditadura” que se da mídia empresarial e do grande capi-
desenrola diante de nossos olhos. tal em geral. Foi um golpe sem tanques,
sem tropas nas ruas, sem líderes farda-
dos. Mas foi um golpe, ainda assim, uma
28 de outubro de 2016.
vez que representou o processo pelo
qual setores do aparelho de Estado tro-
Entrei na universidade no mesmo
caram os governantes por decisão unila-
mês em que um civil voltou à presidência
teral, modificando as regras do jogo em
da República no Brasil. Depois de mais
benefício próprio.
de vinte anos de regime autoritário, es-
távamos frente à possibilidade de re- Assim como sofremos um golpe
construir um governo baseado na sobe- de novo tipo, estamos vivendo o início de
rania popular. Esta conjuntura impactou uma ditadura de novo tipo. Alguns talvez
o ambiente em que eu estava entrando; prefiram o termo “semidemocracia”, mas
em toda a minha formação acadêmica, eu não acredito nesse eufemismo. O regi-
da graduação ao doutorado, um tema me eleitoral já é uma “semidemocracia”,
central de debate, se não o tema central uma vez que a soberania popular é mui-
do debate, foi a transição à democracia. to tênue, muito limitada. Estaríamos en-
Pois na quadra atual da vida brasileira, trando, então, numa “semi-democracia”.
uma nova agenda de pesquisa se abre: a “Ditadura” é mais direto, corresponde
transição à ditadura. ao núcleo essencial do sentido da pala-
vra e tem a grande vantagem de sinali-
A palavra “ditadura” pode pare-
zar claramente a direção que tomamos:
cer excessiva, mas é exatamente disto
concentração do poder, diminuição
que se trata. Sem discutir extensamente
da sensibilidade às demandas popula-
o conceito, é possível afirmar que “dita-
res, retração de direitos e ampliação
dura” remete a dois sentidos principais,
da coerção estatal.
aliás interligados. Por um lado, como
oposto de democracia, indica um gover-

28
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Essa ditadura não será o regime tação que alguns, dotados desse poder,
de um ditador pessoal, até porque ne- delas fazem.
nhum dos possíveis candidatos ao posto
Duas semanas depois, no dia 5 de
tem força suficiente para alcançá-lo. Não
outubro, o Supremo Tribunal Federal de-
será uma ditadura das forças armadas,
cidiu permitir o encarceramento de réus
ainda que sua participação na repressão
sem que os recursos tenham sido esgo-
tenda a crescer. Provavelmente, muitos
tados, anulando o princípio constitucio-
dos rituais do Estado de direito e da de-
nal da presunção de inocência. Vendida
mocracia eleitoral serão mantidos, mas
como medida para impedir a impunidade
cada vez mais esvaziados de sentido.
dos poderosos, amplia o poder discricio-
Ou seja: a transição que vivemos é nário de um Judiciário que é notoriamen-
de uma democracia insuficiente para uma te enviesado em suas decisões. Apenas
ditadura velada. As debilidades do arran- como ilustração, a Defensoria Pública do
jo democrático anterior, que era dema- Rio de Janeiro afirmou em nota que mais
siado vulnerável à influência despropor- de 40% de seus recursos ao STJ têm efei-
cional de grupos privilegiados, não se- to positivo. É, portanto, um contingente
rão desafiadas, muito pelo contrário. Ao muito expressivo de pessoas que come-
mesmo tempo, alguns procedimentos çariam a cumprir penas depois conside-
até agora vigentes estão sendo cortados, radas injustas.
seletivamente, de maneira que mesmo o
No mesmo dia, o STF ratificou e
arranjo formal da democracia liberal vai
normatizou decisão anterior, permitindo
sendo desfigurado.
que a polícia invada domicílios sem man-
A Constituição não foi revogada, dado judicial. Isso se vincula ao aumento
mas opera de maneira deturpada e ir- generalizado da truculência policial, con-
regular. O caso mais emblemático certa- tra manifestantes, contra estudantes,
mente é a decisão do Tribunal Regional contra trabalhadores. É algo que vem
Federal da 4ª Região, no dia 22 de se- desde o final do governo Dilma, estimu-
tembro, concedendo ao juiz Sérgio Moro lado pelo clima político de avanço da re-
poderes de exceção. O tribunal alegou ação – e também, é necessário ser dito,
que as características excepcionais das pela legislação que o próprio governo
questões nas quais está envolvido Moro Dilma aprovou.
tornam facultativo, para ele, o respei-
Cumpre assinalar também a volta
to às regras processuais vigentes. É a
da tortura a prisioneiros, com motiva-
própria definição de exceção. Na práti-
ção política. O encarceramento por tem-
ca, as garantias constitucionais ficaram
po indefinido, com o objetivo expresso
suspensas para qualquer um que seja
de “quebrar a resistência” de suspeitos
alvo do juiz curitibano. Em suma, lei e
(pois nem réus são) e levá-los à delação,
Constituição vigoram – ou não – depen-
tornou-se rotina no Brasil e é uma forma
dendo das circunstâncias e da interpre-

29
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

de abuso de poder, de constrangimen- ritualística, com cerceamento das op-


to ilegal e, enfim, de tortura. (E antes de ções colocadas à disposição do eleitora-
que alguém lembre que a tortura a pre- do e tutela dos eleitos.
sos comuns nunca se extinguiu no Brasil,
Essa criminalização do PT e da
cabe ponderar que a extensão da prática
esquerda em geral é alimentada pelos
em nada melhora a situação dos presos
meios de comunicação empresariais e
comuns; ao contrário, pode piorá-la.)
pelos poderes de Estado, com desta-
Fica claro que o poder judiciário que agora para a campanha do governo
não está cumprindo o papel de garanti- Temer sobre “tirar o país do vermelho”.
dor das regras, o que já fora demonstra- A agressividade crescente dos militan-
do durante o processo de impeachment tes da direita, produzida de forma deli-
ilegal. Como sabemos, parte do judiciá- berada, tenta emparedar as posições à
rio foi partícipe ativa do golpe, parte foi esquerda, progressistas e democráticas,
cúmplice silenciosa, mas não se encon- ao mesmo tempo em que a cassação de
tra ninguém, nas cortes superiores, que registros partidários se torna uma possi-
tenha se levantado em defesa da demo- bilidade mais palpável.
cracia brasileira.
O cerco ao ex-presidente Lula, em
Continuamos a ter eleições. No que uma parte importante do aparelho
entanto, as condições da disputa, que repressivo do Estado vem sendo mobili-
sempre foram desiguais, dado o contro- zada com o intuito de conseguir provas
le dos recursos materiais e dos meios de uma culpa determinada de antemão,
de comunicação de massa, estão ainda é outro sintoma claro de que deslizamos
mais assimétricas, com a campanha in- para um estado de exceção. Quando vi-
cessante de criminalização do Partido gora o império da lei, a investigação su-
dos Trabalhadores e de todo o lado es- cede à descoberta de evidências que sus-
querdo do espectro político. Para as tentem suspeitas. Se, ao contrário, deci-
eleições presidenciais de 2018, a grande de-se promover uma devassa na vida de
questão que se coloca à esquerda é se alguém na esperança de encontrar algo
o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva incriminatório, estando depois os juízes
terá condições legais de concorrer. Em “condenados a condenar”, como disse o
relação a seus potenciais concorrentes à próprio Lula, não temos mais a igualda-
direita, todos atingidos por denúncias de de legal. O sistema judiciário funciona na
corrupção mais graves e com evidências sua aparência, mas perdemos a possibili-
mais sólidas do que aquelas apontadas dade de evocar os valores que deveriam
contra Lula, tal preocupação não existe. presidi-lo a fim de garantir a vigência das
E a delegação de poder por via eleitoral liberdades.
foi desmoralizada com a destituição da
Em suma, a ditadura se expressa
presidente legítima. Caminhamos para
no alinhamento dos três poderes em
uma situação de disputa eleitoral quase

30
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

torno de um projeto claro de retração neração oferecida aos grupos da mídia


de direitos individuais e sociais, a ser empresarial.
implantado sem que se busque sequer
Enquanto isso, medidas que im-
a anuência formal da maioria da popula-
pactam seriamente a vida nacional, mu-
ção, por meio das eleições.
dando a lei e a Constituição, são levadas
O sintoma mais claro da ditadura adiante sem qualquer tipo de debate
que se implanta é a paulatina redução – seja com a sociedade, seja dentro do
da possibilidade do dissenso. Ela vem próprio Congresso Nacional. É um gover-
aos poucos, mas continuamente. Dentro no que impõe sua vontade, escorado na
do Estado, do Itamaraty ao IPEA, não há cumplicidade dos meios de comunica-
praticamente espaço em que a caça às ção e no apoio fisiológico da maior par-
bruxas não seja pelo menos insinuada. te dos parlamentares. Com isso, não há
Vista como foco potencial de divergên- sequer uma pantomima para fingir que
cias, a pesquisa universitária está sendo ocorre discussão no Congresso; os pro-
estrangulada. Decisões judiciais coibindo jetos tramitam com velocidade recorde,
críticas – em primeiro lugar ao próprio atropelando todos os prazos. Por vezes,
Judiciário e seus agentes, mas não só praticamente só a oposição discursa – os
– tornaram-se cada vez mais costumei- governistas querem simplesmente cum-
ras. Juízes e procuradores, embalados prir o ritual, o mais rápido que possam.
pela onda da campanha mistificadora do Não há espaço para negociação, nem
Escola Sem Partido, intimidam professo- necessidade de justificação pública apro-
res e estudantes que queiram debater fundada.
em escolas e universidades. O MEC se
São muitos os exemplos, mas cito
junta à campanha, exigindo, como fez na
apenas três. A reforma do ensino médio,
semana passada, que estudantes mobi-
apresentada sem discussão com peda-
lizados sejam denunciados pelas admi-
gogos, professores ou estudantes, por
nistrações universitárias. É todo um pro-
meio de medida provisória. Sem discutir
cesso de normalização do silenciamento
os méritos da reforma ou mesmo o fato
da divergência que está em curso.
de que ela foi justificada com a apresen-
O avanço da censura está ligado tação de dados falsificados do ENEM, tra-
à imposição da narrativa única pelos oli- ta-se de uma medida com profundas e
gopólios da comunicação, parceiros de complexas implicações, que não poderia
primeira hora da ditadura em implanta- prescindir de amplo debate.
ção. Isso se dá em várias frentes. Há o
O segundo exemplo é a entrega do
estrangulamento econômico dos meios
pré-sal a empresas estrangeiras, rompen-
de comunicação independentes, uma
do o consenso sobre a exploração do pe-
política buscada deliberadamente pelo
tróleo brasileiro, construído ao longo de
governo Temer – que, ao mesmo tempo,
décadas. Por fim, a proposta de emenda
ampliou de forma significativa a remu-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

constitucional nº 241, que congela o inves- balhadoras e outros grupos subalternos


timento social por vinte anos. Num caso tenham obtido.
como no outro, são decisões de enorme
Um elemento importante é o cará-
gravidade, na contramão da vontade
ter misógino do retrocesso. O golpe reti-
popular sistematicamente expressa nas
rou da presidência uma mulher, e o fato
eleições – jamais, na história brasileira,
de que era uma mulher não foi irrele-
o entreguismo ou a ideia de redução do
vante. Nós vimos as faixas ofensivas à
investimento social foram capazes de ga-
presidente Dilma Rousseff nas manifes-
nhar eleições competitivas. Quando che-
tações pelo impeachment. Nós vimos os
garam ao governo, foi em períodos de
adesivos pornográficos nos automóveis.
exceção ou por meio de manipulação e
Nós vimos as reportagens na imprensa
ocultamento na campanha eleitoral.
que serviu ao golpe, requentando este-
Seja no caso da entrega do pré-sal, reótipos sexistas contra a presidente da
seja no caso da PEC de estrangulamen- República. Nós testemunhamos os inte-
to do investimento público, o debate grantes da elite política com suas falas
foi próximo do zero. Com os diferentes desdenhosas, em que o preconceito de
grupos da sociedade civil, não se travou gênero ocupava um lugar que não era
nenhum tipo de discussão. Com a opi- desprezível.
nião pública, o debate foi trocado por
Não se trata apenas do processo
uma ofensiva de desinformação, que
de construção da derrubada da presi-
culminou na equívoca campanha publi-
dente eleita. O governo atual está com-
citária governamental já citada, a do “ti-
prometido com o retrocesso na condição
rar o país do vermelho”. No Congresso, a
feminina, com o reforço de sua posição
base governista sequer tentou fingir que
subordinada e do fechamento da esfe-
não estava apenas cumprindo o ritual
ra pública a elas. Não se trata apenas
da aprovação parlamentar. Não houve
do retrocesso simbolizado no ministério
qualquer engajamento em discussões
formado exclusivamente por homens
com a oposição.
brancos, embora ele seja significativo.
O fim do monopólio sobre a ex- Como também é significativo o retorno
ploração do pré-sal e a PEC 241 indicam, do chamado “primeiro-damismo”, em que
não por acaso, o programa da ditadura o papel concedido à mulher na política
em implantação. A conciliação de clas- é o da bem-comportada auxiliar de seu
ses que os governos do PT tentavam im- marido, sorrindo nos jantares e patro-
plementar foi rompida unilateralmente cinando programas assistenciais. Além
pela burguesia. Afinal, são necessários disso, há o recrudescimento do discurso
dois para conciliar – adaptando o dito familista, que é aquele de exaltação da
popular, quando um não quer, dois não família tradicional, marcada exatamente
conciliam. Trata-se, então, de reverter pela submissão da mulher. Esse discurso
quaisquer vantagens que as classes tra- não ressurge por acaso ou apenas por

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

algum tipo de reacionarismo atávico dos 8. LULA NÃO PODE SER


novos donos do poder, mas vinculado à A NORMALIZAÇÃO
política de retração do investimento so-
cial e de destruição do nosso incipiente
Ainda de posse de seus direitos políticos,
sistema de bem-estar social. Com isso,
Lula se movimentava para ser candidato a
a responsabilidade pelo cuidado com os
presidente e ambicionava recompor o pac-
mais vulneráveis recai integralmente so-
to político que fizera em 2002 – ainda que
bre as famílias, isto é, sobre as mulheres,
em condições muito mais desfavoráveis.
como o celebrado discurso de estreia
de Marcela Temer indicou com clareza
exemplar. 7 de março de 2017.

A implantação desse programa Intelectuais e artistas lançaram


exige o silenciamento das vozes con- manifesto pedindo que Lula assuma,
trárias a ele. Trata-se de um projeto ex- desde já, sua candidatura à presidência
traordinariamente lesivo para a grande da República. No tom laudatório e hiper-
maioria do povo brasileiro. Graças à bai- bólico próprio destes documentos, o tex-
xíssima educação política da maior parte to afirma que o retorno de Lula é a úni-
da população e à campanha incessante ca maneira do povo brasileiro recuperar
da mídia, para muita gente a ficha não sua dignidade depois do golpe e de todo
caiu. Mas os efeitos da redução dos sa- o retrocesso que o governo Temer pro-
lários, do aumento do desemprego, do moveu e está promovendo.
subfinanciamento do Estado e do des-
monte dos serviços públicos logo se fa- Não há como negar que a perfor-
rão sentir de forma plena. Para conter a mance do ex-presidente nas pesquisas
inevitável reação popular, será necessá- pré-eleitorais é impressionante. Lula é
ria uma escalada repressiva e restrições vítima de um massacre midiático, que
cada vez maiores aos direitos. vem de muitos anos e se intensificou
nos últimos tempos. Sofre uma perse-
Essa é a agenda de pesquisa que guição por parte do aparelho repressivo
se abre no momento. Uma dimensão é a de Estado que é a ilustração perfeita do
retração dos direitos e o desfiguramen- lawfare. Não há boato que seja absurdo
to das instituições democrática. Outra é demais que não possa ser lançado contra
resistência popular que certamente se ele e, na ausência de provas, sempre há
construirá. Torço para que esta segun- uma grande convicção para condená-lo
da dimensão nos dê muito material para a qualquer coisa. Ainda assim, é o favori-
pesquisar, o mais rapidamente possível. to para 2018. Uma demonstração de que
as políticas iniciadas em seu governo de
fato beneficiaram significativamente os
mais pobres – por mais que tenham sido
apenas compensatórias, acomodatícias,

33
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

tímidas, incapazes de desafiar a lógica pelo que fez, parte pelo que simboliza.
social dominante e todas as outras críti- São pessoas que preferem ver Belzebu
cas, muitas delas válidas, que a esquerda no Planalto a encarar Lula como presi-
lhes dirige. dente de novo. Mas, como diz um aforis-
mo de autoria incerta, que circula pelas
A vitória eleitoral de Lula em 2018 redes sociais, “a classe dominante não
é uma possibilidade palpável. Por isso, tem ódio. Tem astúcia. O ódio ela tercei-
a direita não abandona a alternativa de riza.”
torná-lo inelegível, talvez até de prendê-
-lo. Uma manobra que pode ter um cus- Desde o golpe, Lula e o campo ma-
to alto; afinal, a condução coercitiva de- joritário do PT têm emitido sinais ambí-
cretada pelo capataz Sérgio Moro, em 4 guos para a resistência popular. Se sua
de março de 2016, foi, de todas as ações candidatura representar um lulismo 2.0,
que antecederam ao golpe, a que gerou isto é, turbinado para se adaptar aos li-
maior reação popular. Mexer com Lula, mites ainda mais estreitos que as classes
ainda mais quando ele desponta como dominantes estão estabelecendo para a
forte candidato à presidência, pode ser expressão do conflito político, uma nova
o estopim para acordar a resistência que presidência de Lula significará a norma-
ainda permanece adormecida. Essa é lização da nova ordem, mais perfeita do
também uma das razões do manifesto. que seria possível sob qualquer político
Quanto mais a candidatura estiver pos- conservador. Um presidente “de esquer-
ta, maior o custo de impedi-la. da”, mas acomodado a um cenário em
que os direitos estão perdidos, a eco-
Mas essa aposta na vitória de Lula nomia está mais desnacionalizada e a
reedita a ideia, que o golpe de 2016 deve- Constituição de 1988 foi transformada
ria ter enterrado, de que a solução para a em escombros. E a luta popular nova-
crise política se dá por meio da recompo- mente canalizada para as eleições, ainda
sição de uma maioria eleitoral democrá- que se saiba que seus resultados podem
tica e progressista. Ora, a derrubada de ser revistos quando interesses podero-
Dilma mostrou exatamente a fragilidade sos se unem.
das “regras do jogo”. A maioria eleitoral
é impotente se não encontrar, na capa- Os coxinhas podem tremer de ira,
cidade de mobilização popular, os meios mas para o capital um resultado destes
para se impor. estaria longe de ser ruim. É por isso que
nunca é demais reiterar: não podemos
Sob certo ponto de vista, a vitória reduzir a luta política à sua dimensão
de Lula pode significar o desfecho perfei- eleitoral ou mesmo institucional. Não
to para o golpe de 2016. É verdade que o se trata de ignorar as eleições, mas sim
ex-metalúrgico é odiado, que muitos dos de não as ver como o objetivo principal.
que foram às ruas de camiseta do CBF A resistência que vier das ruas há de se
devotam a ele uma raiva insana, parte espelhar nas urnas – mas o polo dinâmi-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

co, que imprime a direção, precisa estar um ou outro lado. Mas torcida pelo juiz?
sempre nas ruas. Implausível.

Qualquer candidatura, para se Até em ditaduras, quando elas de-


credenciar a representante do campo sejam manter um mínimo de fachada de
popular, precisa incorporar esta percep- respeito por procedimentos legais, é as-
ção. O objetivo não pode ser conquistar sim. Os processos de Moscou, aos quais
um cargo, por mais poderoso que ele os críticos da Operação Lava Jato por ve-
possa parecer, e se adaptar a seu exer- zes a comparam, foram uma farsa. Mas
cício nas condições hoje estabelecidas, suas estrelas não foram os juízes. A es-
mesmo que com a intenção de minorar trela foi Vichinsky, o promotor. Era ele,
as agruras das classes populares. O ob- em consonância com a formalidade do
jetivo é o desfazimento do golpe, o que processo, que apresentava a acusação
requer o enfrentamento às claras com e empunhava a espada da vingança. Os
os interesses que o produziram. Se isso juízes, obedientemente, limitavam-se a
não estiver bem nítido, esta candidatura condenar.
será nossa adversária. Mesmo se for a
O que espanta na Lava Jato é isto:
de Lula.
o absoluto desprezo pelas aparências.
Embalada pelo apoio acrítico da mídia
corporativa, a operação atropela regras
e direitos, comandada por um juiz que
9. UM ESTADO POLICIAL veste sem pudor a fantasia de justiceiro.
NASCE EM CURITIBA Será lembrada como um dos episódios
mais sórdidos da história do Brasil. Mas,
Comportando-se como perseguidor, não infelizmente, ainda há quem, à esquerda,
como juiz, sob o beneplácito das cortes su- julgue que precisa defendê-la, seja por
periores, Sérgio Moro encarnava o fracas- oportunismo (é preciso nadar a favor da
so do Estado de Direito no Brasil. correnteza), seja por uma ingenuidade
quase inacreditável (os capitalistas esta-
riam sendo pegos). O oportunismo signi-
9 de maio de 2017.
fica capitular diante do enquadramento
da realidade que a direita promove, que
Há algo de estranho quando um
coloca um desvio – a corrupção – como
processo toma as feições de um embate
o centro dos problemas nacionais, abdi-
entre o juiz e o réu. O juiz, imagina-se,
cando do enfrentamento com as fontes
está acima das partes. São elas – acusa-
da desigualdade e da opressão. A inge-
ção e defesa – que se confrontam. Por
nuidade ignora que a Lava Jato não mexe
isso, imagina-se, juízes não têm torcida.
nas razões estruturais da corrupção, que
Torce-se para um ou outro lado e, por-
se ligam à combinação entre capitalismo
tanto, para que o juiz decida a favor de
predatório e democracia limitada (cada

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

vez mais limitada), e protege objetiva- Trata-se de uma operação de ca-


mente tal estrutura, debitando todos os ráter político, que foi pensada e execu-
males na conta das “maçãs podres” que tada com o objetivo de alcançar deter-
devem ser retiradas do cesto. Ser de es- minados objetivos: a não-reeleição e,
querda e apoiar a Lava Jato é uma con- depois, derrubada da presidente Dilma
tradição em termos. Rousseff; a aniquilação do PT e da es-
querda; o linchamento moral do ex-pre-
Na verdade, nem é preciso ser pro- sidente Lula. No processo, fazem-se víti-
priamente de esquerda. Qualquer liberal mas colaterais: um ou outro capitalista,
autêntico decerto execra a Lava Jato. Ela políticos de direita alvejados pelas dis-
se constitui num verdadeiro mostruário putas internas da coalizão regressista ou
de violações aos direitos individuais, ao imolados à opinião pública. Isso leva aos
império da lei e à neutralidade do apa- curiosos desdobramentos recentes, em
rato repressivo do Estado. Melhor ainda: que surgem algumas vozes no Supremo
nem precisa ser liberal, basta um pouco e na mídia a protestar seletivamente
de bom senso.
contra “abusos” da Lava Jato. Mas o obje-
tivo central continua o mesmo.
É razoável que os papéis de perse-
guidor e juiz sejam exercidos pela mes- A perseguição contra o ex-presi-
ma pessoa? É razoável que réus de pro- dente Lula é o elemento mais grotesco
cessos similares recebam tratamentos – e reconhecer este fato não exige qual-
tão díspares? É razoável que confissões quer simpatia por sua pessoa ou por suas
sejam arrancadas à base de intimidação políticas. Contrariamente ao preceito de
(propiciada pelas intermináveis prisões que a investigação nasce de suspeitas,
“provisórias”)? É razoável que as penali- mobilizou-se polícia, judiciário e minis-
dades aplicadas àqueles considerados tério público para vasculhar sua vida em
culpados sejam modificadas conforme busca de algo que o comprometesse. É
seus depoimentos implicam fulano ou uma condenação em busca de um crime.
beltrano? É razoável que um tribunal
superior afirme expressamente que um O horizonte da Lava Jato é um
juiz não precisa cumprir a lei? É razoá- Estado policial, com características que
vel que esse juiz cometa ilegalidades de apontam para o fascismo. Seu discurso
forma deliberada, com o objetivo de pre- tem um componente messiânico, que
judicar aqueles que persegue? É razoá- se torna gritante nas falas de um pro-
vel que ele confraternize com alguns de curador menos avisado como Deltan
seus réus, ao mesmo tempo em que se Dallagnol. A operação traça uma linha
engalfinha publicamente com outros? É precisa entre o bem e o mal e justifica
razoável que oitivas e julgamentos sejam qualquer violência que tenha como fim
verdadeiras produções conjuntas entre destruir o mal. Afinal, se trata disso: aba-
Poder Judiciário e mídia empresarial? ter a jararaca, limpar o país. Direitos,
garantias individuais, procedimentos le-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

gais, tudo isso faz parte do arsenal com nutenção de uma fachada de democracia,
que o mal tenta escapar da punição; cada vez menos real.
logo, desprezá-los é obrigação dos bons.
E, tal como o fascismo, a Lava Jato é li- 5 de maio de 2017.
derada por um homem vestido de preto
que mostra mais senso de oportunidade O ano de 2016 marcou o fim do
do que princípios. experimento democrático iniciado no
Brasil com a Constituição de 1988. A or-
O caráter inquisitório da Lava
dem que ali fora instituída era ancorada
Jato faz com que pensemos no juiz
no desenho democrático liberal: o aces-
Sérgio Moro como um Torquemada das
so ao poder dependia do voto, todos os
Araucárias. Mas Torquemada, até onde
cidadãos eram dotados de um conjunto
se sabe, era um fanático. Moro não tem
de direitos, a lei valia igualmente para to-
essa desculpa. É um juiz de poucas luzes,
dos. Para muita gente à esquerda, esse
que, a despeito de sua incontrolável vai-
arranjo não era suficiente; na permanên-
dade, se dispõe a ser o joguete de inte-
cia de uma desigualdade social profunda,
resses muito mais poderosos do que ele.
a capacidade de fazer uso desse conjun-
Um símbolo, infelizmente, das elites do
to de prerrogativas e de garantias tam-
Brasil, em que sobra marketing e falta
bém seria muito desigual. Ainda assim,
estofo, em que sobra oportunismo e fal-
esse ordenamento jurídico apresentava
ta caráter, em que sobra empáfia e falta
uma base a partir da qual era possível
qualquer tipo de empatia pelo povo bra-
sonhar com e lutar por uma democracia
sileiro.
mais genuína.
Não tem meio termo, não tem
Ao mesmo tempo, a Constituição
concessão ao discurso dominante e aos
alimentava este sonho e esta luta, na
consensos fabricados pela mídia: o cami-
medida em que o discurso que a organi-
nho da reconstrução da democracia no
zava era o discurso dos direitos. Se, para
Brasil passa por derrotar a Lava Jato.
lembrar da expressão célebre de Hannah
Arendt, o ato fundacional da cidadania é
o estabelecimento do direito a ter direi-
tos, então a Carta de 1988 representou
10. O FUTURO DA este ato. Fruto de um processo longo e
DEMOCRACIA NO BRASIL tenso, marcado por múltiplas pressões e
barganhas, ela carrega ambiguidades e
não se apresentava como integralmente
O golpe apontava para dois caminhos: um
satisfatória para nenhum dos lados em
fechamento gradual do regime ou a ma-
disputa. Mas traz também os traços do
momento histórico em que foi escrita.
É um documento da superação da di-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

tadura, fruto de uma luta que foi tanto A essa altura do campeonato, as
pelo restabelecimento das liberdades ci- características do regime que emergiu do
vis e políticas quanto por justiça social. golpe já estão claras. Seu programa é o
Quando Ulysses Guimarães, no discurso retrocesso acelerado nos direitos e o refor-
que pronunciou ao promulgá-la, disse ço das hierarquias sociais. Trata-se de um
que a Constituição havia sido escrita com governo que não faz concessões à facha-
“ódio e nojo à ditadura”, não se referia da de imparcialidade que os Estados cos-
certamente à totalidade de seus reda- tumam perseguir e, pelo contrário, assu-
tores – muitos haviam compactuado me sem rodeios que se coloca ao lado do
alegremente com o arbítrio. Referia-se capital contra o trabalho. A destruição
ao momento de sua redação, em que o dos direitos trabalhistas e previdenciá-
Brasil desejava superar seu legado auto- rios, culminando na recente proposta de
ritário. Por isso, a Constituição fala a lin- realinhamento das relações de trabalho
guagem dos direitos. Em muitos casos, a no campo que praticamente reinstitui a
consignação do direito no texto constitu- escravidão, é a face principal desta ofen-
cional não garantiu sua efetiva conquista siva. O Estado também reduz suas polí-
na vida social. Mas estabelecia um terre- ticas redistributivas ou compensatórias,
no de lutas e legitimava as ações em seu como determinado pela emenda cons-
favor. titucional que congelou os gastos públi-
cos ou ainda pela medida provisória que
Esse quadro – limitado, mas for- alterou o ensino médio, substituindo o
malmente democrático, liberal e vazado princípio da educação universal pelo trei-
na linguagem dos direitos – foi perdido namento da força de trabalho para suas
em 2016, no golpe de maio e agosto, que posições predeterminadas. Indígenas e
destituiu uma presidente da República quilombolas estão sob ataque, seguindo
sem que houvesse amparo legal para
a lógica de que todas as riquezas do país
tanto, pelo simples desejo nos derrota- devem estar potencialmente disponíveis
dos nas urnas. A ordem de 1988 foi per- para a acumulação privada. Também
dida não apenas porque Dilma Rousseff são ameaçados os direitos das mulheres
foi removida do cargo, mas porque todo e da população LGBT, seja porque o re-
o arcabouço institucional projetado para gime julga que o conservadorismo mo-
protegê-la agiu no sentido de destruí-la. ral pode lhe fornecer base popular, seja
O Poder Judiciário, o Ministério Público, porque a retração das políticas sociais
a Polícia Federal e o Congresso Nacional, exige que a lacuna que ela gera seja su-
sem falar da pretensa imprensa livre: por prida por cuidados privatizados dentro
motivos às vezes coincidentes, às vezes da família tradicional.
diversos, todos se uniram para revogar
os procedimentos democráticos e ferir Ao lado da abolição de direitos
de morte a Constituição. vem – quase que naturalmente – a am-
pliação da repressão. Militantes políticos
têm sido perseguidos e presos. O caso

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

mais chocante, o de Rafael Braga, mos- tos, com desprezo cada vez mais indis-
tra que ocorre uma exacerbação de ten- farçado pelo princípio da soberania po-
dências autoritárias que já afloravam no pular, até chegarmos para uma ditadura
ocaso dos governos petistas. Preso em aberta (ou algo próximo disso). Há discre-
2013, com base em acusações cuja fra- ta movimentação de setores das forças
gilidade é gritante, foi agora condenado armadas para apoiar esta solução, que
a 11 anos de prisão. É um prisioneiro po- sem dúvida nenhuma contaria com ex-
lítico, uma pessoa privada da liberdade pressivo suporte no judiciário e na mídia.
por sua participação em movimento co- As eleições de 2018 poderiam ser cance-
letivo. Braga ainda é um ponto fora da ladas, seja pela imposição de medidas
curva; parece ter sido escolhido como emergenciais por algum motivo conve-
exemplo, para o que certamente pesou niente, seja pela implantação de um par-
sua condição de jovem preto e periféri- lamentarismo de ocasião. Tal como em
co, sem conexões com a elite política ou 1964, esta solução provavelmente seria
econômica. Mas muitos outros manifes- apresentada como provisória – para du-
tantes têm sofrido detenções arbitrárias. rar apenas o tempo necessário ao esma-
A vigilância e a intimidação policial sobre gamento dos movimentos populares e
o movimento popular são crescentes, a das organizações de esquerda.
repressão nas ruas aumenta, organiza-
Há pesados ônus associados à
ções como sindicatos ou o MST são inva-
implantação da ditadura, tanto internos
didas. Ao mesmo tempo, cresce a perse-
quanto externos. Por isso, o caminho
guição no serviço público e a censura a
preferido dos controladores do poder
órgãos da imprensa alternativa.
parece ser outro: a “normalização” do
Por fim, o governo é marcado pelo golpe. As eleições de 2018 colocariam no
temor da competição política. Nascido poder novamente um presidente com
de um golpe, implantando políticas que respaldo do voto popular. No entanto,
jamais foram capazes de obter apoio todo o retrocesso produzido durante
majoritário no Brasil, patina em níveis o período Temer estaria incorporado à
de popularidade liliputianos. Apesar ordem institucional. Fosse quem fosse,
da enorme campanha publicitária e do o novo presidente governaria sob uma
apoio unânime da mídia empresarial, Constituição fraturada, com direitos per-
não há aprovação para a retirada de di- didos e políticas estatais engessadas. Em
reitos. Possíveis candidatos às eleições particular, governaria ciente de que as
presidenciais associados ao governo se instituições da democracia representati-
veem diante de derrota quase certa va vigoram de forma tutelada, podendo
ser suspensas quando seus resultados
Frente a isso, quais são alterna- contrariam determinados interesses.
tivas de futuro? Um cenário é continu-
armos deslizando para formas cada vez De certa maneira, esse é o fun-
mais autoritárias de resolução dos confli- cionamento normal das democracias

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

capitalistas. Os governos petistas foram e tentar um programa ainda mais míni-


muito ciosos deste fato, optando por mo, adaptável a ela, de enfrentamento
uma linha de enfrentamento mínimo e das consequências mais dramáticas do
evitando projetar qualquer ameaça aos retrocesso. Não há dúvida de que parte
dominantes. Foi uma opção que pareceu da elite política tradicional aposta nesta
exitosa, mas que a derrubada de Dilma saída, seguramente por compreender
mostrou que atingira seu extremo. Para que uma eleição presidencial esvaziada
nossas elites, até um pouquinho de igual- de seu candidato mais forte (caso Lula
dade já é demais. seja proibido de competir) não é capaz
de produzir a relegitimação necessária.
O que o golpe mostrou foi isso: Em algumas de suas declarações públi-
que quem quer permanecer no jogo cas recentes, Lula tem adotado um dis-
deve aceitar limites ainda mais estreitos curso mais duro e sinalizando que não
do que antes se imaginava. A elite políti- está disposto a tal arranjo. Seja como
ca brasileira parece particularmente dis- for, ainda é um horizonte em aberto.
ponível para esse tipo de acomodação.
Cabe lembrar que a ditadura de 1964 Nem o fechamento autoritário,
manteve um simulacro de instituições nem a normalização do retrocesso inte-
representativas, com partidos, eleições e ressam ao campo popular. O único cami-
parlamento. Os militares decidiam quem nho para ele não é fácil, mas não permite
podia e quem não podia concorrer, as re- atalhos: é uma reconstrução democrática
gras mudavam de acordo com suas con- em novas bases. Uma democracia que,
veniências, mandatos eram cassados, o para ser sustentável, tem que ser susten-
poder do Congresso era muito limitado tada na mobilização social. Da mesma
e, quando necessário, ele podia ser fe- maneira que a resistência ao golpe e à
chado. Mas, ainda assim, o longo perío- perda de direitos depende do enfrenta-
do autoritário permitiu o surgimento de mento cotidiano, para além das institui-
uma nova elite política civil. Uma elite ções políticas, por meio das greves, ocu-
formada sob o entendimento de que é pações, manifestações, “perturbações
normal que a competição política seja da ordem pública” e outros atos de deso-
tutelada pelos donos do poder – uma bediência civil, a produção de um regime
característica que talvez ajude a explicar democrático mais substantivo depende
a rápida adaptação ao cenário posterior da existência permanente desse mesmo
ao golpe de 2016, mesmo por muitos de arsenal de formas de ação. Sem eles, a
seus opositores. pressão dos poderosos sempre curvará
a “democracia” em seu favor. Sem eles,
De acordo com algumas especula- permaneceremos prisioneiros do dilema
ções, essa normalização seria comanda- que sempre assombrou a política brasi-
da pelo próprio Lula. O pragmatismo a leira: o regime democrático só sobrevive
toda prova do líder do PT poderia julgar quando abre mão do enfrentamento das
que valia a pena aceitar a nova realidade desigualdades.

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

11. POSSIBILISMO NÃO É resta é o pouquíssimo, como alternativa


REALISMO ao menos que nada.

Nessa linha de pensamento, a cor-


A redução da agenda do campo popular relação de forças é percebida sobretudo
ao mínimo, dado o ciclo de derrotas em como aquela presente nas instituições
curso, também leva a armadilhas. políticas formais. O argumento é: se Lula
for eleito, vai ter que negociar com um
5 de junho de 2017. Congresso muito conservador; logo, a
margem para adotar políticas redistribu-
Em um dos trechos mais eloquen- tivas e democratizantes será muito pe-
tes dos Cadernos do cárcere, Gramsci quena. Corolário: é melhor esperar por
exalta o caráter criador do “político em muito pouco, porque mais do que isso
ação”, que “é um criador, um suscitador; não será possível alcançar.
mas não cria do nada, nem se move no
Não estou entre os que negam li-
vazio túrbido dos seus desejos e sonhos.
minarmente validade a um cálculo des-
Baseia-se na realidade fatual”. De manei-
se tipo. Na verdade, a diferença entre o
ra sintética, o revolucionário sardo está
muito pouco e o nada pode ser despre-
apontando a necessidade de ultrapassar
zada pelos privilegiados, mas muitas ve-
tanto o possibilismo estreito, que vê os
zes é questão de vida e morte para os
limites postos à ação política como imu-
mais pobres. O problema é que essa lei-
táveis, quanto o voluntarismo, que julga
tura deixa de lado dois elementos.
que eles podem ser desprezados por
mera decisão subjetiva. Ele adota um re- O primeiro é o próprio golpe. A
alismo dinâmico, que é herdeiro do rea- derrubada da presidente Dilma Rousseff
lismo de Maquiavel e de Marx, incluindo mostrou que as classes dominantes não
em seu relato tanto as energias transfor- se sentem dispostas a honrar o acordo
madoras latentes no mundo social quan- pelo qual a melhoria das condições de
to a vontade atuante de mobilizá-las. vida dos mais pobres seria tolerada em
troca da garantia de paz social. Como
Vejo que parte da esquerda brasi-
parte da barganha envolvia a desmobili-
leira permanece presa a este possibilis-
zação popular, para que as elites se sen-
mo, que leva a uma redução brutal do
tissem seguras, ficamos em condição di-
horizonte de expectativas, a partir do
fícil para resistir ao retrocesso. Renovar
entendimento que há uma “correlação
esse acerto significa aceitar limites ainda
de forças” favorável aos grupos conser-
mais rígidos à transformação social, em
vadores e, portanto, nossa opção é entre
nome de vantagens ainda menos ex-
o pouco e o nada. Ou melhor, essa foi a
pressivas para a população pobre. E com
opção do lulismo; com o golpe, a direi-
o risco de que, mais adiante, um novo re-
ta endureceu suas posições e o que nos
trocesso seja imposto, com condições de

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

resistência ainda mais frágeis. É uma ar- as impressionantes mobilizações da ju-


madilha. Qualquer governo progressista ventude. São as greves “selvagens”, que
que volte ao poder no Brasil tem que in- passam ao largo das burocracias sindi-
verter a opção do lulismo e apostar em cais e pipocam por todo o país. Mesmo a
ampliar a mobilização popular. adesão regressista ao fundamentalismo
religioso é indício de uma inadequação
Porque este é o segundo limite ao mundo tal como ele é, que permite
desta leitura: uma redução do jogo políti- disputa. Muito da esquerda partidária,
co aos espaços institucionais. Há a presi- preocupada somente com suas posições
dência, há o Congresso conservador, há no Estado, voltou as costas para todos
o Judiciário inconfiável. Se não é possível esses grupos.
mudar a maioria do Congresso, o único
caminho é, de novo, tentar comprá-lo, As jornadas de junho de 2013 são
uma vez que ele é ainda mais fisiológico um símbolo dessa energia. Não se trata
do que conservador. de “exaltar” as manifestações de rua en-
tão ocorridas, mas de entendê-las como
Com incrível frequência, a discus- um fenômeno complexo, cujo primei-
são se limita a isto. Mesmo quem quer ro resultado foi revelar que os modelos
superar os limites do arranjo lulista ini- com os quais os analistas políticos em
cial muitas vezes se perde em fantasias geral trabalham, restritos às instituições,
sobre a eleição de uma grande bancada são insuficientes para apreender a dinâ-
de esquerda. Mas isto é muito imprová- mica do conflito social. Permito-me uma
vel. De Lênin a Claus Offe ou a um liberal digressão sobre aquele momento.
esclarecido como Albert Hirschman, há
uma vasta literatura que aponta como As manifestações contra o aumen-
o mecanismo eleitoral traduz mal as de- to nas passagens do transporte coletivo
mandas dos dominados. Não se trata de ganharam dimensão maior do que a
ignorar as eleições, mas de ter clareza de esperada, num processo que é possível
que qualquer mudança passa pela pres- dividir em três etapas (ainda que a cro-
são sobre os eleitos. nologia não seja rígida). Primeiro, a ade-
são superou, e muito, a capacidade de
A questão não é ter ou não ter fé organização do Movimento Passe Livre
nas ruas. Há um rio de inconformidade (MPL). Depois, a pauta foi ampliada, de-
a ser revelado por quem deseja a mu- monstrando a insatisfação não só com o
dança do Brasil. E há um conjunto signi- transporte, mas com os serviços públi-
ficativo de manifestações desse desejo, cos em geral. Por fim, os protestos foram
que ainda estão desarticuladas, talvez parcialmente colonizados por uma pau-
caóticas, mas que cabe fomentar, em ta antipolítica e de combate à corrupção,
vez de abafar. São milhares de coletivos própria do registro discursivo mais con-
de mulheres, da população negra, das pe- servador, com a adesão de setores da
riferias, de lésbicas, gays e travestis. São classe média.

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Do primeiro para o segundo mo- soras de televisão (prática que se repetiu


mentos, ocorre a indicação de que a durante o processo do impeachment de
base social dos governos petistas queria Dilma), que por vezes os transmitiam ao
mais do que estava sendo oferecido a vivo e davam destaque desproporcio-
elas. Embora haja um toque de exagero nal mesmo a pequenas passeatas com
na imagem apresentada por Ruy Braga, poucas dezenas de pessoas. Embora as
de trabalhadores em condições cada vez redes sociais tenham sido ferramentas
mais precárias sendo tantalizados pela importantes na construção das mobili-
perspectiva de fazer um curso superior zações, o peso predominante da mídia
privado noturno com financiamento tradicional na construção dos sentidos
pelo FIES, o fato é que o arranjo lulista foi indiscutível.
tanto privilegiou a oferta de empregos
Foi aberta uma disputa pelo senti-
de baixa qualificação e baixo salário
do das manifestações, em que os organi-
quanto tinha dificuldade de prover me-
zadores iniciais, MPL à frente, tentavam
lhorias expressivas nos serviços sociali-
reafirmar seu caráter progressista, ao
zados. A opção pela inclusão pelo acesso
passo que a mídia as enquadrava como
ao mercado satisfazia o compromisso de
uma demonstração de descrédito na po-
não interromper a privatização do fundo
lítica, com foco na corrupção dos funcio-
público, parte do acerto com as classes
nários do Estado. Elas teriam como pau-
dominantes. Mas o morador da periferia
ta a derrubada da Proposta de Emenda
que comprou uma geladeira nova com
Constitucional nº 37, que restringia o po-
subsídio governamental continuava pre-
der do Ministério Público na condução
cisando de educação, saúde e transpor-
de investigações criminais – o que impe-
te.
diria abusos, na visão de seus defenso-
Do segundo para o terceiro mo- res, e protegeria os malfeitores, segundo
mentos, o que intervém é a compreen- seus adversários. O foco na PEC 37, algo
são, por parte da oposição de direita, bizarro, uma vez que era um assunto de
que há uma fissura a ser explorada. A interesse corporativo e localizado, serviu
mudança na cobertura jornalística é re- de teste para o discurso do “combate à
veladora. O registro da “baderna” foi impunidade”, que desqualifica elemen-
substituído pelo da “mobilização cívica”. tos do Estado de direito, como a presun-
Houve um grande esforço para separar ção de inocência, o direito de defesa, o
a “minoria” de manifestantes violentos, direito à privacidade e as regras para
que precisavam ser reprimidos, da maio- produção legal de provas, como sendo
ria pacífica e respeitosa – desde então, artifícios que servem apenas para impe-
a estigmatização dos adeptos das táticas dir ou protelar a devida condenação dos
de autodefesa black bloc serve para legi- corruptos.
timar a repressão policial aos movimen-
Os grupos mais à esquerda viram
tos de rua. Os atos passaram a ser prati-
nas jornadas de junho a possibilidade de
camente convocados por jornais e emis-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

construção de uma mobilização de mas- tado. No mesmo movimento, mostrou


sa com pauta radical, que desafiasse a que existe inconformidade no mundo
moderação petista. A direita animou-se social, que pode ser canalizada para
com o que indicava o declínio da “mági- estratégias transformadoras. Cabe às
ca” do lulismo. No meio do tiroteio, o PT organizações da esquerda, entre elas o
ficou paralisado. Os movimentos popu- PT, estreitar o diálogo com essas vozes,
lares sob influência petista se viram na aceitar sua diversidade, romper com
obrigação de blindar o governo e, com suas percepções hegemonistas e tentar
isso, perderam a oportunidade de dia- voltar ao governo não para domá-las ou
logar com os manifestantes. Ganhou para tentar vender às classes dominan-
corpo a tese de que eram mera massa tes sua pacificação, mas para dar a elas
de manobra da direita, deixando paten- melhores condições de expressão e de
te que, para muitos dos intelectuais do pressão. Esse é o único projeto realista
petismo, o caminho era não atrapalhar o no momento.
trabalho do governo com reivindicações
intempestivas. Junho de 2013 marca o
aprofundamento da cesura entre o PT e
os movimentos populares aos quais ele
12. DEPOIS DO ABISMO
se propunha a dar voz quando nasceu.

De maneira similar, o governo A política da esquerda, sobretudo em


Dilma Rousseff foi incapaz de encontrar momento de resistência, não pode ficar à
sua posição nesse novo cenário. Sua res- mercê do calendário eleitoral.
posta às manifestações foi sempre zigue-
zagueante; quando a presidente se ma-
24 de agosto de 2017.
nifestou em rede nacional de televisão,
em 17 de junho de 2013, propôs “cinco
A frase que resume com mais pre-
pactos”, uma mixórdia que incluía uma
cisão o atual momento político e os dile-
reforma política potencialmente demo-
mas da esquerda brasileira foi dita por
cratizante, mas também aderia ao recei-
Juarez Guimarães: “Entre nós e 2018 há o
tuário conservador da “responsabilidade
abismo”. Intelectual com uma longa tra-
fiscal”. Fora isso, promessas genéricas
jetória no PT, Guimarães está alertando
em favor da educação, saúde e mobilida-
aqueles (incluindo importantes setores
de urbana. A preocupação da presidente
de seu próprio partido) que apostam
e de seu círculo era reduzir os danos até
que as eleições presidenciais levarão, de
as eleições presidenciais do ano seguin-
maneira quase milagrosa, a uma solução
te – quando, se esperava, tudo voltaria à
para o cenário aberto com o golpe do
“normalidade”.
ano passado. Apenas uma ingenuidade
2013 marcou, portanto, o esgota- comovente permite manter tamanha fé
mento da política do possibilismo estrei- nas instituições, no exato momento em

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

que elas gritam a plenos pulmões que autonomia, estreitando seu horizonte de
não são confiáveis. possibilidades, expondo-as a mais vio-
lência. Depois, porque cada centímetro
O abismo diante de nós pode ser de terreno perdido exigirá muito esfor-
abordado de diferentes maneiras. A pri- ço, muita luta e muito tempo para ser re-
meira delas se vincula aos retrocessos. conquistado.
Enquanto esperamos por 2018, avan-
ça, de forma acelerada, o desmonte Outra maneira de encarar o abis-
das conquistas obtidas a partir da carta mo é vendo-o pelo ângulo do recuo nas
constitucional de 1988 ou mesmo antes. liberdades políticas e, portanto, nas con-
É o fim da CLT e o súbito mergulho na to- dições de luta. O golpe fez deteriorar
tal desproteção das classes trabalhado- os termos do debate público no Brasil,
ras, cuja culminação pretendida é o fim criminalizando as posições à esquerda,
ou a condenação à irrelevância da justiça vedando-lhes acesso à discussão, mes-
trabalhista e a extinção dos mecanismos clando o uso do aparelho de Estado (so-
de combate ao trabalho em condições bretudo o judiciário) e do mercado (pelo
degradantes. É a desnacionalização da monopólio privado da informação) para
economia. É a abolição dos mecanismos levar a censura a um novo patamar. A re-
de controle, desde sempre insuficientes, pressão policial aos movimentos popu-
dos monopólios da mídia. É a desconti- lares ampliou-se. A perseguição judicial
nuidade das políticas de promoção da com motivação política tornou-se corri-
igualdade de gênero, da igualdade racial queira. O Estado de direito foi fraturado
e do combate à homofobia. É o estran- e as liberdades liberais hoje vigoram de
gulamento do Estado, com particular im- uma maneira que podemos classificar
pacto em áreas como saúde, educação e como menos que formal: não foram revo-
ciência. Temos ainda, em pauta, a revo- gadas, mas os próprios agentes estatais
gação dos direitos previdenciários e uma assumem que elas têm vigência condi-
reforma política destinada a reduzir ain- cional, a depender das circunstâncias e
da mais a capacidade de influência dos dos envolvidos.
cidadãos comuns. A lista é grande, qua-
Uma terceira abordagem diz res-
se interminável, mas aponta sempre na
peito ao próprio horizonte de 2018.
mesma direção: a construção de um país
Mesmo a realização das eleições presi-
mais injusto e menos soberano.
denciais não pode ser considerada como
Isto está acontecendo agora e garantida. A transformação do golpe dis-
nossa reação não pode esperar por farçado de impeachment constitucional
2018, por dois motivos de fácil entendi- em golpe aberto é uma hipótese ainda
mento. Primeiro, porque os efeitos ne- remota, decerto, mas nem por isso ine-
fastos dos retrocessos já se fazem sentir, xistente. Para os grupos hoje no poder,
empurrando milhões de pessoas para trata-se apenas de um cálculo de cus-
maior privação material, reduzindo sua to-benefício entre os riscos de manter

45
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

a competição eleitoral e o desgaste de era possível alimentar a resistência, essa


descartá-la – ilude-se quem pensa que ilusão já se dissipou.
eles têm alguma posição de princípio em
A ausência de resistência, cujas
favor das regras democráticas. Balões de
raízes se encontram na política delibera-
ensaio são lançados; o da vez é a mudan-
da de desmobilização popular que fazia
ça do sistema de governo. Estaríamos
parte da estratégia do PT no poder, leva
revivendo 1964 às avessas: agora, o par-
a uma espiral viciosa, fomentando a apa-
lamentarismo seria não o prelúdio, mas
tia futura. Somos cada vez mais levados
a coroação do golpe. Mesmo que as elei-
a crer que nossa derrota é inevitável. E
ções ocorram, há o risco de que sua legi-
somos, no mesmo movimento, empur-
timidade seja suprimida, com a exclusão
rados para a crença de que o jogo polí-
arbitrária do candidato favorito. Mais
tico se resolve nas “instituições”, aque-
uma vez, aqui, o que pesa para os donos
las mesmas que nos momentos cruciais
do poder é o cálculo de custo-benefício.
mostraram de que lado estão. É preciso
Por fim, introduzo uma quarta romper a espiral. Ampliar a mobilização
abordagem, talvez a mais dramática de agora é urgente, até mesmo para au-
todas: nossa incapacidade de resistir. mentar a possibilidade que a mobiliza-
ção popular gere frutos no futuro.
O que falta? Temos políticas go-
vernamentais que são rechaçadas pela Se o enfrentamento não for feito
ampla maioria da população, que com- a partir de agora, o que nos espera após
preende como elas são lesivas ao povo o abismo é uma situação ainda pior. Não
e à nação. Temos um presidente ilegíti- desejo fazer nenhum exercício de futuro-
mo, impopular e reconhecidamente cor- logia depressiva, mas vamos supor que
rupto, cercado de uma quadrilha sobre as eleições de 2018 ocorram “normal-
a qual é revelada um novo escândalo a mente” e que um candidato com com-
cada dia. Temos um Congresso que, à luz promisso popular – Lula? – seja o vence-
do dia, vira as costas a seus constituin- dor, tome posse e comece a governar. O
tes e negocia vantagens imorais para si que aconteceria?
mesmo. Temos um Judiciário cuja figura
Lula governaria sob condições
dominante é Gilmar Mendes (mais nada
muito piores do que antes. A capacida-
precisa ser dito). Ou seja: parece não fal-
de de minimizar os efeitos da crise glo-
tar nenhum ingrediente para a eclosão
bal é muito menor, seja porque a aposta
de uma mobilização massiva, em defesa
nos BRICS tem sido desmanchada pelo
dos direitos, da democracia e mesmo da
governo golpista, seja porque a própria
moralidade pública. Ainda assim, a res-
economia chinesa tem perdido dinamis-
posta predominante aos retrocessos é a
mo. Com isso, a possibilidade de aco-
passividade, a resignação. Se a greve ge-
modar o conflito distributivo interno fica
ral de 28 de abril nos deu a ilusão de que
prejudicada. Ao mesmo tempo, a ideolo-

46
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

gização radical do discurso conservador, 13. PENSAR TAMBÉM TEM


que agora assumiu sem rodeios a defe- LADO
sa das desigualdades, torna mais custo-
sos os acenos aos setores médios, para
O discurso da “polarização”, que respon-
apaziguá-los. A politização agressiva e à
sabiliza igualmente esquerda e direita pela
direita do aparelho repressivo do Estado
crise brasileira, estava em alta durante o
gera dificuldades para que um governo
governo Temer.
com base popular retome a prática da
cooptação da maioria parlamentar pela
distribuição de vantagens, como era fei- 23 de novembro de 2017.
to. Mais importante: o capital endure-
ceu suas posições e a “conciliação” que “A polarização não está nos dei-
lhe serviu um dia agora não serve mais. xando pensar”, escreveu o colunista da
Nessas circunstâncias, um novo governo Folha, Pablo Ortellado, alguns dias atrás.
Lula significaria uma versão muito avilta- “Antipetistas” e “esquerda”, os dois po-
da do anterior, trabalhando em limites los que ele identifica no debate político
muito mais estreitos, com um horizonte brasileiro, se definiriam pela oposição
de justiça social ainda mais rebaixado. àquilo que imputam ao outro. Se o an-
Em vez de reverter o golpe, seu projeto tipetismo vê a esquerda como corrupta,
não poderia ir além de amenizar seus ele é a anticorrupção. Se a esquerda vê o
efeitos. antipetismo como insensível à injustiça,
ela é a justiça social.
É por isso que o investimento na
resistência popular é fundamental, mes- A polarização que impede de pen-
mo que se imagine que o caminho de sar levaria à adoção de posições com o
uma saída passe por eleições. A passivi- único propósito de ficar na contramão
dade dos setores populares e a aceitação do adversário. O antipetismo condena-
de que o jogo se limita às instituições po- ria o Bolsa Família só porque a esquer-
líticas (aceitação enviesada, uma vez que da o exalta. E a esquerda teria decidido
as pressões diretas da burguesia são apoiar a liberdade de expressão artística
entendidas desde sempre como parte apenas quando o antipetismo se mani-
normal do processo) anula a capacidade festou contra “a arte elitista irresponsá-
de contrapressão em favor dos direitos e vel que expunha crianças à obscenidade
das políticas sociais. Mesmo que venha e à perversão”.
a surgir um governo mais sensível às de-
Esse alinhamento automático fa-
mandas populares, nenhuma política de
ria com que os dois grupos, antipetismo
combate aos retrocessos – e, quem sabe,
e esquerda, se tornassem alvos fáceis da
de promoção de novos avanços – pode
manipulação por “grupos de poder para
ser implementada sem o apoio ativo das
promover projetos que nem sempre são
ruas.
éticos e nem sempre são socialmente

47
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

justos”. O subtexto – mas talvez eu o es- à manutenção das hierarquias sociais,


teja vendo por saber que é a posição do anti-igualitárias, autoritárias – permite
autor, expressa em colunas anteriores alimentar a fantasia de que é preciso
– é que com tudo isso o povo brasilei- transcender o conflito presente. Ao mes-
ro perde a oportunidade de se unir em mo tempo, promove uma identificação
torno da agenda que é comum a todos, subliminar entre esquerda e petismo,
como... o combate à corrupção. negando que o campo da esquerda não
se define pela adesão a um determinado
Longe de mim julgar que o debate projeto de poder, mas a valores políticos
público no Brasil está em nível elevado. que o ultrapassam.
Mas nunca esteve, dado a força do dis-
curso manipulatório da mídia oligopoli- O esforço de equivalência dos
zada. O que caracteriza o momento atual contrários move Ortellado à reprodução
não é tanto a “polarização”, decorrência do discurso conservador contra a arte
quase natural de uma conjuntura em “degenerada”, travestido de antielitis-
que a reação endureceu suas posições, mo, num registro que poderia ser o de
mas a emergência de um discurso forte Donald Trump ou Magno Malta. É aqui
de negação dos direitos. É necessário, que a estratégia do colunista revela sua
sim, marcar distância desse discurso e debilidade. Como a polarização não é só
disputar com ele milímetro a milímetro. a marola que ele descreve, mas remete
a visões diversas da sociedade, manter
Neste sentido, Ortellado está er- a postura de isento e não-contaminado
rado ao dar ao tema da corrupção a implica fazer concessões a enquadra-
mesma centralidade que lhe concede o mentos antidemocráticos e mesmo anti-
senso comum midiaticamente induzido. liberais.
A corrupção é, sim, um problema sério,
efeito estrutural do casamento entre de- À sua maneira, o colunista da Folha
mocracia política e capitalismo, que, em se alinha à capa da Veja em que Lula e
países com as características do Brasil, Bolsonaro aparecem como “extremistas”
tende a assumir proporções endêmicas. equivalentes ou ao editorial do Estadão
Mas não se compara à destruição dos pedindo envergonhadamente que não
consensos que se buscava formar em ocorram eleições. Mas o apelo à mode-
torno de valores básicos de igualdade e ração é, na verdade, um pedido para que
cidadania. nós nos adaptemos a um ambiente so-
cial cada vez mais refratário aos direitos
Não é por acaso, assim, que o co- individuais e coletivos e mais descom-
lunista adota definição tão bizarra da po- promissado com a igualdade.
larização corrente no Brasil. Na oposição
à “esquerda”, não está à direita, mas o A discussão superficial, restrita a
“antipetismo”. A recusa à caracterização slogans, que se vê nas velhas e novas mí-
clara das posições da direita – favoráveis dias, realmente não estimula a reflexão.

48
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Fora destes espaços – em movimentos popular. O impeachment ilegal da presi-


sociais, em núcleos universitários, em dente Dilma Rousseff e o acelerado re-
coletivos diversos – há um debate bem trocesso em direitos e liberdades que se
mais denso e produtivo, que seria im- segue a ele mostram que as instituições
portante reforçar, mas que o discurso da não só não cumpriram seu papel de pro-
superação da divergência simplesmente teger a ordem constitucional e a demo-
apaga. É um debate que não se faz de cracia como participaram ativamente de
uma perspectiva olímpica, de quem está sua subversão.
acima dos conflitos. Ao contrário, está
O que a onda global de desdemo-
posicionado. Porque não é apenas a po-
cratização e os golpes brandos ocorridos
larização cega que não nos deixa pensar.
principalmente na América Latina vêm
A pretensão de neutralidade tem o mes-
revelando é que o ordenamento políti-
mo efeito, apagando os conflitos, descui-
co da democracia liberal pode ser usado
dando dos interesses em jogo, desinflan-
para impedir o progresso social, bloque-
do as tensões que nascem da dinâmica
ar as demandas por igualdade e, embora
social. Pensar também tem lado.
mantendo uma aparência de normalida-
de, despir os mecanismos democráticos
de qualquer efetividade a que pudes-
sem aspirar. No Brasil, chama a atenção
14. A PONTA DE LANÇA o protagonismo assumido pelo Poder
DA LUTA DE CLASSES Judiciário.

O papel do Judiciário na deflagra-


Longe de ser o guardião da Constituição e
ção e convalidação do golpe político é
da democracia, o Judiciário foi protagonis-
perceptível para qualquer observador.
ta de sua destruição.
Mas a ação cotidiana de juízes de todas
as instâncias também corrobora o viés
2 de março de 2018. favorável aos grupos dominantes, como
mostram as sentenças diferenciadas de
O golpe de 2016 representou um acordo com a posição social dos acusa-
duríssimo revés na percepção até então dos – por exemplo, a posse de uma pe-
dominante de que a democracia brasilei- quena quantidade de droga ilegal pode
ra, mesmo com todos os seus problemas levar a desenlaces completamente dife-
e aos trancos e barrancos, caminhava rentes de acordo com a cor da pele e a
para a “consolidação”. Não foi apenas classe social do portador. No seu conjun-
que as classes dominantes abandona- to, o Poder Judiciário atua como avalista
ram o respeito às regras do jogo e deci- da desigualdade e das relações vigentes
diram virar a mesa quando perceberam de dominação – o que corresponde, ali-
que, novamente, eram incapazes de im- ás, à posição do direito como “código da
por seus preferidos por meio da eleição

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

violência pública organizada”, como es- rentes mais progressistas. A defesa de


creveu Poulantzas. interesses coletivos e difusos, atribuída
ao MP, prometia uma ampliação – ne-
O que chama a atenção do Brasil é cessária e urgente – da proteção a gru-
que o Judiciário ocupa a posição de ponta pos oprimidos ou ao meio-ambiente. As
de lança da luta de classes, cumprindo pa- decisões tomadas no âmbito das cortes
pel crucial na produção, na implementa- superiores podiam representar, por ve-
ção e, em particular, na legitimação das zes, uma usurpação do poder de legislar,
medidas que implicam retrocessos para mas se mostravam mais avançadas do
a classe trabalhadora e outros grupos que aquelas advindas de um parlamento
em posição subalterna. O que permitiu notoriamente corrompido e no qual era
isso foram mudanças ocorridas nas últi- crescente a capacidade de chantagem
mas décadas e saudadas em geral como de grupos fundamentalistas.
“avanços”.
O Tribunal Superior Eleitoral intro-
Desde a promulgação da duziu regulações na disputa partidária (a
Constituição de 1988, observadores da chamada “verticalização” das coligações,
política brasileira têm falado do crescen- depois revogada, em 2002), no exercício
te protagonismo do Poder Judiciário. A parlamentar (a perda de mandato par-
carta constitucional garantiu prerroga- lamentar por desfiliação, em 2007) e no
tivas estendidas e propiciou mudanças funcionamento das cotas eleitorais para
de comportamento dos agentes, levan- mulheres (com o entendimento de que
do aos fenômenos paralelos da “judi- o descumprimento da regra levaria à im-
cialização da política”, que faz com que pugnação da lista partidária, em 2010)
as disputas passem a ser resolvidas nos que se alinhavam ao ideal normativo da
tribunais, e do “ativismo judiciário”, pelo competição democrática compartilhado
qual o poder relativiza sua caracteriza- por liberais esclarecidos e por grande
ção tradicional como “inerte”, avoca a si parte da esquerda brasileira. O Supremo
a iniciativa da ação e toma decisões que Tribunal Federal estabeleceu direitos de
seriam do Legislativo ou do Executivo. minorias sexuais (reconhecimento da
Outra inovação da Constituição foi a união civil homoafetiva, em 2011) e am-
enorme ampliação do âmbito de atua- pliou direitos reprodutivos (extensão do
ção do Ministério Público, órgão vincula- direito de aborto no caso de anencefalia
do ao Poder Executivo, mas que cumpre fetal, em 2012), em sintonia com bandei-
funções judiciárias. ras progressistas. Sem discutir o mérito
das decisões, elas com certeza extrapo-
No período de ascensão demo-
lam o que era a intenção original do le-
crática que se seguiu à promulgação da
gislador. Nenhuma delas teria passado
nova Constituição, este alargamento dos
no Poder Legislativo.
poderes de juízes e procuradores foi, em
geral, visto de forma positiva pelas cor-

50
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

O desenvolvimento talvez mais Dilma Rousseff nada tivesse a ver com a


surpreendente foi a aprovação em 2010, operação, apoiando-se em operações de
pelo próprio Congresso, de legislação crédito junto a bancos estatais (as cha-
que confere ao Judiciário um poder de madas “pedaladas fiscais”), ela foi ins-
veto na seleção de candidatos às elei- trumental para criar o clima de opinião
ções. A chamada “Lei da Ficha Limpa”, que sustentou a derrubada do governo.
apresentada como iniciativa popular, Declaradamente inspirado na operação
apoiada pela quase unanimidade dos italiana Mãos Limpas, Moro julga que é
parlamentares e sancionada entusiasti- importante dar grande visibilidade midi-
camente pela Presidência da República, ática e obter o “apoio da opinião pública”
em meio a um verdadeiro clamor midi- ao combate à corrupção.
ático, determinou a tutela do Judiciário
A Lava Jato revelou parte da cor-
sobre a soberania popular. Ainda assim,
rupção sistêmica da política brasileira,
poucas vozes se ergueram contra ela.
por meio de operações espetaculares
Diante das dificuldades para que, no entanto, atingiram de forma
elevar a educação política média dos muito desproporcional o PT e seus alia-
brasileiros, a Ficha Limpa parecia um dos. Seu modus operandi privilegiado, a
atalho seguro para a “moralização” do “delação premiada”, dá grande margem
Estado. Trata-se de um elemento cons- a que o agente da lei oriente o curso da
tante: o elogio da ação política do Poder investigação. Muitas vezes, seus resulta-
Judiciário, no momento em que ela ala- dos dependem da desobediência ao de-
vancava causas progressistas, é tingin- vido processo legal e a formas de intimi-
do por uma percepção elitista (juristas dação contra testemunhas e suspeitos.
capacitados podem decidir com mais
Não custa lembra que Moro é o
competência) e pelo desânimo quanto
tradutor do artigo de um juiz estaduni-
à possibilidade de produzir uma opinião
dense que ensina como coagir acusados
popular mais engajada e esclarecida.
para que denunciem seus cúmplices (ver
Outra característica do Brasil é “O uso de um criminoso como testemu-
que o ativismo judiciário não é privilégio nha”, de Stephen S. Trott, na Revista CEJ,
das cortes superiores. Até mesmo juízes nº 37, de 2007). Em vários momentos, sua
de primeira instância podem tomar de- atuação se mostrou claramente casada
cisões de enorme repercussão coletiva com o cronograma da derrubada da pre-
– os casos de bloqueios de aplicativos sidente Dilma Rousseff, culminando na
de smartphones com milhões de usuá- divulgação do áudio de uma escuta te-
rios servem de exemplo. Na crise polí- lefônica ilegal, com uma conversa entre
tica brasileira, o juiz paranaense Sérgio Dilma e Lula. Embora o juiz tenha sido
Moro ocupou posição central, ao liderar obrigado a um envergonhado pedido de
a Operação Lava Jato. Embora a justifica- desculpas e ao reconhecimento de que
tiva para o impeachment da presidente a divulgação da conversa fora “equivo-

51
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

cada”, continuou chefiando a operação. explicação deve levar em conta que o


Atualmente, como se sabe, Moro e o tri- STF não ficou imune ao clima de opinião
bunal de recursos ao qual sua vara está formado a partir da Lava Jato – e a vul-
vinculada, o TRF-4, são instrumentais no nerabilidade aumentada à pressão da
impedimento à candidatura presiden- “opinião pública” e da mídia é uma das
cial do ex-presidente Lula, que é outro características do Judiciário ativista. E
importante passo no esvaziamento do também que os governos petistas não
que restava de esperança de respeito ao foram capazes de apresentar indicações
princípio básico da democracia liberal – a para o Supremo que estivessem à mar-
consulta ao povo para a escolha dos go- gem do establishment jurídico e político.
vernantes. Pelo contrário, optaram, quase sempre,
por demonstrar moderação, preferindo
Como um juiz de primeira instância juristas conservadores e com trânsito
foi capaz de acumular tamanho poder? A nos partidos de direita. Também aqui a
resposta se vincula tanto às peculiarida- política de conciliação cobrou seu preço.
des da organização do Poder Judiciário
no Brasil a partir da Constituição de 1988 É preciso ponderar, porém, que se
quando à bem-sucedida ofensiva do juiz trata de uma situação difícil, não algo que
Sérgio Moro junto à opinião pública, se pudesse resolver por um mero ato de
orquestrada com os meios de comuni- vontade do ocupante da Presidência da
cação hegemônicos. Moro se tornou o República. Por um lado, a indicação de
emblema vivo do combate à corrupção juristas abertamente comprometidos
e, portanto, intocável. As muitas arbi- com as causas populares seria encara-
trariedades que cometeu ao longo do da como rompimento do pacto que per-
processo foram quase sempre abafadas mitia a permanência do PT no poder e
após exposição mínima e denúncias de a implantação de políticas tímidas (mas
graves irregularidades que o chamusca- mesmo assim importantes) de resgate
vam, como aquelas que transparecem da dívida social. A atuação do Supremo
do depoimento do advogado Rodrigo como avalista dos retrocessos é um in-
Tacla Duran, foram simplesmente deixa- dício, entre muitos outros, que as condi-
das de lado. ções de manutenção deste pacto foram
erodidas. Essa é a ficha que falta cair
A pergunta mais importante, po- para parcela da esquerda brasileira.
rém, é outra: por que as instâncias su-
periores do Judiciário não intervieram, Por outro lado, o campo jurídico
diante de abusos tão patentes nas inves- possui seus próprios filtros e mecanis-
tigações? Questão intrigante, sobretudo mos internos para forçar a adaptação às
quando se lembra que, dos 11 ministros posições mais conformistas, mormente
do Supremo Tribunal Federal no período quando se alcançam funções de mais
da derrubada de Dilma, oito tinham sido prestígio, poder e visibilidade. Como
nomeados por ela ou por Lula. Qualquer em outros campos (o jornalismo serve

52
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

de exemplo), o conservadorismo tran- cumprem muito mais um papel de de-


sita como “imparcialidade”, mas visões núncia, já que a corte demonstrou mais
críticas e comprometidas com a justiça de uma vez seu desprezo pela legalidade
social aparecem como sectárias, portan- fraturada.
to dificultando a ascensão na carreira.
É uma situação dramática por-
Certamente há juízes progressistas, mas
que, se a lei é um código da violência do
estão em situação parecida à de oficiais
Estado, como diz a citação de Poulantzas
militares progressistas nos anos 1960.
referida antes, ela também organiza, ini-
As iniciativas do Conselho Nacional de
be e torna predizível esta violência. Sua
Justiça com vistas à perseguição de dis-
imparcialidade ostensiva, os valores civi-
sidentes ainda têm encontrado resis-
lizatórios que ela tem que aparentar en-
tência, mas mostram que, na conjuntu-
carnar, são concessões arrancadas pela
ra aberta com o golpe, é possível que o
luta dos grupos dominados. Também
Poder Judiciário se torne ainda menos
podem ser usados contra os dominantes
arejado.
e constrangem o exercício arbitrário do
Nas últimas semanas, dois even- poder. O império da lei não é a garantia
tos dissimilares apontaram para mudan- de uma sociedade justa, já que a lei re-
ças no cenário. Um deles foi a exposição, flete a correlação de forças dentro desta
pela mídia hegemônica, de vantagens sociedade. Mas a ruptura do sistema le-
imorais auferidas por grande parte dos gal, que permite à dominação social se
juízes, incluído aí o próprio Sérgio Moro, exibir em toda a sua nudez, retira dos
em particular um “auxílio moradia” dado mais frágeis as garantias que eles foram
a quem evidentemente não precisa dele. capazes de obter.
Ao que parece, setores da coalizão gol-
Quando a discricionariedade ex-
pista decidiram indicar ao Judiciário que
tralegal do sistema judicial, que nunca
ele não é intocável. O outro foi o anún-
deixou de operar em prejuízo das popu-
cio, pelo ocupante da presidência, da in-
lações mais pobres e periféricas, atinge
tervenção federal no Rio de Janeiro, que
o coração do sistema político, a demo-
concede peso e visibilidade a um ator
cracia liberal entra em colapso. Significa
que, até agora, era mantido à sombra: as
que a ordem instituída não permite mais
Forças Armadas.
sequer que suas próprias promessas se-
Quaisquer que sejam as mudan- jam mobilizadas para conter sua violên-
ças a que levem as disputas internas cia. Significa que a pressão dos domina-
entre os grupos que deram o golpe em dos, que era aceita, desde que controla-
2016, é ilusório pensar que o Judiciário da, como parte do jogo, agora deve ser
pode ser um agente do retorno à demo- extirpada.
cracia. Recursos ao STF, como ocorreram
O papel do Judiciário na canaliza-
quando da deposição de Dilma e ocor-
ção das disputas e a crença dissemina-
rem agora com a condenação de Lula,

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

da de que os tribunais são capazes, em ato de São Bernardo do Campo, que con-
algum grau, de aplicar a lei tal como ela tinua em forma e sua importância políti-
está formulada fazem nascer uma sen- ca certamente resiste ao encarceramen-
sação de abandono, quando nos depara- to. O que não tem futuro é o projeto de
mos com uma situação de arbitrariedade acomodação de interesses que permitiu
judicial indisfarçada. A quem vamos re- que políticas de combate à miséria e de
correr, quando até a Justiça é injusta? É a abertura de possibilidades de mobilida-
realidade de um país que passou de uma de social aos mais pobres se combinas-
democracia formal, limitada, para uma sem com a manutenção quase intocada
democracia menos que formal, cujas ins- das vantagens dos grupos dominantes.
tituições não se preocupam mais em dis- Seu esgotamento foi demonstrado pelo
farçar sua tendenciosidade em favor dos golpe de 2016 e pela acelerada política
poderosos. de destruição de direitos implementada
pelo governo Temer. Ao longo de todo
Como instituição política que é, o o processo, Lula não se cansou de ace-
Poder Judiciário é sensível à correlação
nar com a possibilidade de uma recom-
de forças na sociedade. É a resistência posição do pacto, mas, como resposta,
contra os retrocessos, o aumento na mo- recebeu a continuidade da perseguição
bilização social, o protesto contra as ar- contra ele e, agora, a prisão. O recado
bitrariedades e a desobediência civil que é ainda mais claro quando se põem na
podem restaurar o funcionamento míni- conta todas as ilegalidades cometidas
mo de uma justiça burguesa que, ainda para chegar a esse resultado.
que sem perder o qualificativo “burgue-
sa”, possa aspirar ao nome de “justiça”. Parte da militância do PT julga que
a solidariedade ao ex-presidente, que
é de fato um preso político, veda qual-
quer debate sobre o futuro da esquerda.
Penso que, ao contrário, este debate se
15. POR UM LULISMO
torna cada vez mais urgente – sem que
VIRADO À ESQUERDA
a denúncia do arbítrio e a luta por sua
libertação fiquem em segundo plano.
O golpe de 2016 marcou a derrota do Trata-se de buscar os melhores cami-
projeto lulista. O que fazer com ele? Não nhos para enfrentar uma situação em
é possível pensar em restaurá-lo, mas é que andam juntos o retrocesso social, o
preciso preservar alguns de seus aspectos. cerceamento das liberdades e a crimina-
lização da própria esquerda.
14 de abril de 2018.
A discussão passa, necessaria-
mente, por um balanço da experiência
A prisão de Lula representou o epí-
petista no poder. É fácil descartá-la sob
logo do projeto lulista. Não pela destrui-
o rótulo da “conciliação”, como fazem
ção do ex-presidente – ele mostrou, no

54
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

muitos, do PSTU a Eliane Brum. Em seu de desenvolvimento predatório, despre-


livro A verdade vencerá, Lula responde ocupado com o impacto ambiental, não
aos críticos: “Muitas vezes, companhei- foi questionado. A inclusão social foi fei-
ros do próprio PT, companheiros ideo- ta prioritariamente por meio do acesso
logicamente mais refinados, achavam ao consumo, o que tanto garantia a re-
que [meu governo] era um governo de apropriação privada do fundo público
conciliação. Eu sempre entendi que um quanto dificultava a luta pela construção
governo de conciliação é quando você de uma lógica social diferente. O medo
pode fazer mais e não quer fazer. Agora, dos grupos fundamentalistas inibiu mui-
quando você pode fazer menos e acaba tas iniciativas de proteção dos direitos
fazendo mais, é quase que o começo de das mulheres e da comunidade LGBT. A
uma revolução – e foi o que fizemos nes- aposta exclusiva na política institucional
te país”. produziu desmobilização e, quando tudo
desandou, dificuldade para organizar a
É uma defesa retórica, com exage- resistência.
ro, mas que toca em um ponto nevrál-
gico. A crítica feita aos governos do PT Por outro lado, também não dá
deixa subentendido que a alternativa à para recusar os avanços do ciclo petis-
conciliação seria uma estratégia vito- ta. É impossível não se comover com os
riosa de enfrentamento. No entanto, o depoimentos das pessoas que ganha-
mais provável é que levasse à derrota. ram um futuro com as políticas de trans-
O projeto de Lula no poder, que André ferência de renda. Com aqueles que só
Singer descreveu como um “reformismo agora tiveram acesso a algumas das co-
fraco”, nasceu de uma percepção muito modidades da vida moderna, com o Luz
desencantada da correlação de forças para Todos. Com os estudantes que che-
no Brasil, do entendimento de que o ca- garam à universidade, por vezes pros-
minho para a implantação um programa seguindo em mestrados e doutorados,
menos diluído, que atacasse com maior vindos de famílias pobres, de pais anal-
firmeza nossos problemas estruturais, fabetos, graças às politicas de expansão
estava de antemão fechado. da oferta e democratização do ingresso.
Com a efervescência cultural das perife-
Os limites do pacto lulista são cla- rias, que não brota dos governos de Lula
ros. Muitos dos principais gargalos para a e Dilma, mas ganha maior alcance e visi-
construção de uma sociedade mais justa bilidade com os projetos de apoio à des-
e mais democrática foram deixados qua- centralização da produção.
se intocados – o rentismo, a monopólio
da informação, o latifúndio. A proposta Mas isso é passado. As condições
petista original de uma política mais ho- de reprodução do pacto lulista não exis-
rizontalizada e participativa foi muito en- tem mais: pode-se dizer que, quando um
colhida, para não prejudicar os acertos não quer, dois não conciliam. A esquerda
com a elite política tradicional. O modelo brasileira, com Lula incluído nela, precisa

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

encontrar um caminho pós-lulista. O que sos sonhos. Reconecta a esquerda com


implica não em descartar, mas em fazer o melhor entendimento da política como
a crítica e superar o lulismo que tivemos, prática baseada na verdade efetiva das
o que necessariamente implica em mais coisas e instrumento para transforma-
enfrentamento político e uma aposta ção do mundo. E permite a obtenção de
maior na mobilização popular. uma base social alargada.

Neste processo, há dois elemen- Há, no entanto, armadilhas no in-


tos principais do lulismo que a esquer- terior destas virtudes – e ler o lulismo “à
da brasileira precisa reter – e reler em esquerda” é exatamente tentar escapar
uma chave mais à esquerda. O primei- das armadilhas. A busca por uma comu-
ro é a capacidade de comunicação com nicação ampliada imediata pode levar a
as massas populares. Lula tem, é claro, evitar enfrentamentos com o senso co-
uma trajetória invulgar, mesmo para li- mum e com a ideologia dominante – e
deranças da esquerda, que favorece a assim dificultar avanços além de certo
comunicação com o povo. Tem também limite. Julgo que, nos melhores momen-
uma extraordinária competência orató- tos de sua carreira política, Lula soube
ria, uma sensibilidade inata para com- evitar esse erro. Sem cair nos chavões
preender as audiências e um grande da esquerda, conseguiu fazer do diálogo
talento para gerar empatia, qualidades com a massa um momento de educa-
não estão dando sopa por aí. Mas sua ção política real. Mas não quando, já no
capacidade de comunicação nasce tam- processo de construção da saída lulista,
bém de uma recusa consciente a fazer reduziu seu programa ao ideal liberal da
política para seitas. Lula se comunica “igualdade de oportunidades” e passou
com a massa porque quer fazer política a minimizar o conflito social adotando a
com a massa, quer ampliar o alcance do persona “paz e amor”.
discurso, quer romper o círculo da pró-
Já o realismo ou pragmatismo que
pria esquerda. Sem essa virtude, ele se-
resulta da consciência da urgência das
ria talvez um nome com importância na
necessidades dos mais pobres corre o
história do sindicalismo brasileiro, mas
risco de resvalar no possibilismo – isto
não o fenômeno político que é. A esquer-
é, no esquecimento de que a vontade
da brasileira precisa aprender essa lição
de mudar o mundo também é parte da
e parar de se preocupar apenas em falar
realidade do mundo, na aceitação dos li-
para si mesma.
mites à transformação do mundo como
O outro elemento valioso do lulis- inamovíveis, na secundarização da parte
mo é o sentido de urgência no enfren- da luta política que consiste em alterar
tamento das necessidades dos mais po- as condições da própria luta. Com isso,
bres. Ele também nasce da vinculação o enfrentamento das necessidades mais
direta com as classes populares, cujas urgentes acaba por se tornar o horizonte
carências não permitem esperar os nos-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

final do projeto político e a transforma- 16. ENTRE O FASCISMO E


ção social radical é deixada de lado. NÓS, SÓ HÁ NÓS
Penso, ao contrário, que é neces-
sário manter sempre em mente uma li- Conforme o projeto do golpe se desnu-
ção de Gramsci – estou me referindo ao dava, ficava mais evidente que só a luta
trecho dos Cadernos do cárcere, em que popular seria capaz de interromper os
ele assinala o caráter criador do “político retrocessos.
em ação”, que “é um criador, um suscita-
dor; mas não cria do nada, nem se move 20 de abril de 2018.
no vazio túrbido dos seus desejos e so-
nhos. Baseia-se na realidade fatual”. De Com o golpe de 2016, as condições
maneira sintética, Gramsci está indican- da disputa política no Brasil entraram em
do a necessidade de ultrapassar tanto o processo de rápida deterioração. A insti-
possibilismo, que vê os limites postos à tucionalidade fundada na Constituição
ação política como imutáveis, quanto o dita “cidadã” opera de maneira cada vez
voluntarismo, que julga que eles podem mais precária; suas garantias são cada
ser desprezados por mera decisão sub- vez mais incertas. A prisão do ex-presi-
jetiva. O realismo de Gramsci, herdeiro dente Lula, após julgamento de exceção,
de Maquiavel e de Marx, inclui em seu ao arrepio do texto expresso da própria
relato tanto as energias transformado- Carta de 1988 e com inequívoca intenção
ras latentes no mundo social quanto a de influenciar no processo eleitoral, sim-
vontade atuante de mobilizá-las. Um boliza com precisão a situação em que
“lulismo à esquerda” deve conjugar essa nos encontramos.
compreensão com o entendimento de
que é preciso provocar mudanças aqui e Ao mesmo tempo, a violência polí-
agora. tica aberta se alastra, seja por meio dos
agentes do Estado (como mostra a re-
Preservar as virtudes do lulismo pressão cada vez mais truculenta às ma-
escapando de suas armadilhas não é um nifestações populares e a perseguição
projeto fácil, mas é necessário para pro- aos movimentos sociais), seja contando
duzir uma prática política que seja radi- com sua complacência. Das tentativas de
cal sem ser onírica e que incida na reali- intimidação à expressão de posições à
dade sem deixar de recusá-la. esquerda em espaços públicos ao brutal
assassinato da vereadora Marielle Franco
(e seu motorista Anderson Gomes), pas-
sando pelos atentados às caravanas de
Lula, são muitos os episódios que reve-
lam esta escalada. Há rincões em que
o assassinato político nunca deixou de
existir – somos um país em que o lati-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

fúndio nunca parou de matar lideranças sobre “gênero”, voltar a estabelecer o


camponesas, por exemplo. Neles, o gol- valor da igualdade, traçar novamente o
pe agravou o quadro, dada a sensação sentido dos direitos.
de “porteiras abertas” que o retrocesso
Na sua versão mais extremada, as
no Brasil gera para os mandantes dos
forças que se encontram na ofensiva na
crimes. E, nos lugares em que o confli-
disputa política, no Brasil de hoje, namo-
to político apresentava um verniz mais
ram com o fascismo. O dissenso é trai-
civilizado, regredimos para patamar in-
ção; o adversário precisa ser eliminado.
ferior.
As hierarquias sociais não podem ser de-
Dissemina-se, no Brasil, uma for- safiadas. Qualquer oposição aos meca-
ma de macartismo. Não há interdição nismos de dominação vigentes, qualquer
legal ao pensamento de esquerda, mas insinuação de ameaça à sua reprodução
fomenta-se um ambiente social em que inalterada, é marcada como “desordem”
ele não pode ser manifestado. As insti- a ser esmagada. A desordem na família,
tuições que deveriam garantir a liberda- a desordem no trabalho, a desordem na
de de expressão são omissas, quando escola, a desordem na cidade – contra
não coniventes com os abusos. A respos- elas, a solução é a imposição da força.
ta padrão à exposição de valores demo-
Quem nos protegerá do avanço
cráticos e progressistas, em muitos am-
do fascismo? Certamente não a lei, que
bientes reais e virtuais, é uma saraivada
vigora de forma tão insuficiente e que se
de impropérios e ameaças. Acusada de
encontra nas mãos de pessoas dispostas
“desviante”, a produção artística enfren-
a compactuar com este avanço na me-
ta a ojeriza de setores organizados e com
dida em que colabore para a promoção
influência sobre o público. Procuradores
de seus próprios interesses. Pensemos
e juízes põem em xeque a liberdade
nos chefes dos poderes da República:
acadêmica, às vezes sob o comando do
Michel Temer, Cármen Lúcia, Rodrigo
Ministério da Educação, em dobradinha
Maia. Será possível dizer que algum de-
com um pretenso “movimento” voltado
les possui valores ético-políticos de base,
a impedir o pensamento crítico nas es-
que limitem a amplitude de seu oportu-
colas pela mobilização dos preconceitos
nismo? Há em qualquer um deles algum
dos pais. Espaços da mídia alternativa
apreço pela liberdade, pela justiça, um
são estrangulados economicamente e
sentimento estendido de solidariedade,
sofrem tentativas de censura judicial.
que os coloque decididamente no lado
Na mídia corporativa, as vozes dissonan-
do antifascismo? Os fatos sugerem uma
tes são silenciadas e ridicularizadas. O
resposta negativa.
espaço do debate público é estreitado
quase até desaparecer. O vocabulário O que nos impede de mergulhar
se entorta na direção do conservadoris- no fascismo é que ainda há, na socieda-
mo: temos que enfrentar o fantasma da de, uma oposição que faz com que esse
“doutrinação”, burlar o veto à discussão

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

mergulho seja custoso. É só a nossa re- universidade. A revolta se agravou con-


sistência, a nossa recusa cotidiana a ce- forme mais detalhes sobre a operação
der sem luta qualquer palmo das nossas vinham à tona, culminando na divulga-
liberdades, que poderá nos defender do ção do relatório do inquérito, incapaz
fascismo. de apontar uma única evidência sólida
do pretenso esquema de desvio de ver-
bas no ensino à distância, muito menos
do envolvimento de Cau. À parte moti-
vações circunstanciais, vinculadas à fi-
17. A EMERGÊNCIA
gura mais que duvidosa do corregedor
DO AUTORITARISMO
Rodolfo Hickel do Prado, a operação na
PLURALISTA
UFSC se explica apenas pela intenção de
desmoralizar a universidade pública. O
Na ausência de um ordenamento jurídico jornal paranaense Gazeta do Povo, que
legítimo, os aparelhos da repressão estatal tem se destacado nesta campanha, nem
inauguravam uma escalada de arbitrarie- esperou: no dia mesmo da prisão de Cau
dades. lançou reportagem dizendo que estava
provado que o pretenso “alto custo” da
15 de agosto de 2018. educação superior pública no Brasil era
causado pela corrupção.
Em meio a tantas violências e re-
A comoção causada pelo suicí-
trocessos, uma chama a atenção: a ofen-
dio do reitor não sensibilizou a Polícia
siva da Polícia Federal para silenciar, na
Federal. Mesmo com a gritante ausência
Universidade Federal de Santa Catarina,
de provas, o relatório do inquérito man-
qualquer crítica à operação que levou ao
tém as acusações iniciais. Não houve
suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier,
nenhuma investigação sobre os exces-
em outubro do ano passado. Cancellier,
sos na operação. Pelo contrário, em de-
conhecido na UFSC como Cau, foi preso e
zembro a delegada Erika Marenna, res-
humilhado pela PF. Libertado, permane-
ponsável por ela, foi promovida, sendo
ceu proibido de entrar no campus. Dias
nomeada superintendente do órgão em
depois, cometeu suicídio, num gesto de-
Sergipe. Poucos dias após a premiação
sesperado para denunciar a violência
da delegada, a PF fez na Universidade
que estava sofrendo. Quem o conhecia
Federal de Minas Gerais operação simi-
sabia que não era um radical. Pelo con-
lar à que tinha realizado na UFSC, com o
trário. Historicamente ligado a um par-
mesmo caráter espetacular, levando em
tido apoiador do golpe, o PPS, sempre
condução coercitiva, sob alegações risí-
foi um moderado, um negociador e um
veis, o reitor e a vice-reitora (também rei-
conciliador.
tora eleita), entre outros funcionários e
A trágica morte do reitor, como professores. A criminalização da gestão
era de se esperar, causou revolta na universitária é uma das frentes da luta

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

pela destruição da universidade pública, Em suma, agora a Polícia Federal


junto com o subfinanciamento e a cen- se julga no direito de definir que tipo de
sura. manifestação pública é permitida ou não.
Se o protesto não for contra ninguém e
O que salta aos olhos, no caso da não indicar nenhum motivo, Galloro libe-
UFSC ou da UFMG, é o abuso da autori- ra.
dade policial, que impõe constrangimen-
tos desnecessários às pessoas investiga- Creio que o comportamento da
das – aliás, investigadas com base em in- PF em Santa Catarina é o indício de uma
dícios frágeis ou inexistentes. Cancellier, característica do Brasil do golpe. A car-
não custa lembrar, foi preso antes de ta de 1988 deixou de vigorar em sua
ser sequer chamado para prestar es- plenitude, como mostram, entre muitos
clarecimentos. O mesmo ocorreu na outros episódios, a derrubada ilegal de
UFMG com o reitor Jaime Arturo Ramirez uma presidente no exercício do manda-
e a vice-reitora Sandra Regina Goulart to e as manobras para garantir a prisão
Almeida. Pois o passo seguinte da PF não de Lula em oposição direta ao artigo 5 da
é apurar o que aconteceu, mas impedir Constituição. Mas não há um centro de
que o abuso seja denunciado. O profes- autoridade unívoco ou um novo conjun-
sor Áureo Moraes foi intimado, acusado to de regras que discipline o exercício,
de calúnia e difamação, obrigado a infor- mesmo que despótico, do poder. A cada
mar a autoridade policial sobre eventual momento, ganha quem mais pode. Se o
mudança de domicílio, por ter gravado Supremo decide demitir o presidente do
entrevista em evento em solidariedade a Senado, por exemplo, como ocorreu em
Cau. Outro professor da UFSC, Mario de dezembro de 2016, mas o presidente do
Souza Almeida, foi também intimado a Senado tem força, é o Supremo quem se
“prestar esclarecimentos” pelo discurso curva e revoga a decisão.
que fez numa formatura.
Vivemos um momento, para dizer
Criminalizar o protesto de cida- de forma provocativa, de autoritarismo
dãos contra ações de autoridades é um pluralista. Diversos braços do Judiciário
passo seguro para a instauração de um e do Executivo, as casas do Legislativo, o
Estado policial. Em entrevista à impren- Ministério Público, as polícias: cada gru-
sa, o diretor da PF, delegado Rogério po que se julga provido de certo poder se
Galloro, defendeu a intimidação contra esforça por exercê-lo de forma incontro-
os professores, desenvolvendo o racio- lada. Não há, como nos estados autoritá-
cínio bizarro de que “não é uma investi- rios típicos, um poder inconteste que se
gação contra a universidade. É de crime sobrepõe aos outros e regula o exercício
contra a honra”. Para se defender da do arbítrio. Raul Jungmann, que atende
acusação de autoritarismo, explicou que como ministro da Segurança Pública do
“tem outros meios de protestar que não governo Michel Temer e é o superior for-
acusar uma autoridade de abuso”. mal da PF, pediu “esclarecimentos” sobre

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

a perseguição a Áureo Moraes, mas foi za que, metendo-se no comboio, chega a


um gesto protocolar. A corporação con- tempo para o enterro”.
fia no próprio taco e se sente imune à
Há algo dessa mentalidade no
autoridade do ministro, conforme reve-
apoio a Bolsonaro. O Brasil, dizem, está
la a entrevista de Galloro defendendo as
uma bagunça e é preciso pôr ordem na
ações de intimidação, que é posterior ao
casa. “Bagunça” é uma categoria elástica.
tal pedido de esclarecimentos.
Inclui corrupção, criminalidade desenfre-
É um hobbesianismo singular: são ada, desrespeito aos professores, servi-
as instituições políticas que se encon- ços públicos insuficientes, casais de gays
tram em estado de natureza. E, talvez ou lésbicas andando de mãos dadas nas
por estarmos numa etapa ainda inicial ruas, nudez em público, mulheres man-
do jogo, em que cada uma delas vislum- dando em homens, bandeiras vermelhas
bra a possibilidade de afirmar mais e em manifestações, polícia que mata de
mais seu próprio arbítrio, nenhuma pa- menos. Fatos e fantasias se misturam no
rece interessada na restauração do esta- mundo dos memes bolsonarianos, mas
do de direito. a resposta a todos os desafios é, sempre,
mais autoridade.

Mas será possível esperar de um


governo Bolsonaro algo próximo da “or-
18. OS TRENS NÃO VÃO dem” que ele promete?
SAIR NO HORÁRIO
É difícil. Apesar de todo o discurso
de disciplina, a campanha de Bolsonaro
Com Bolsonaro, favorito, no segundo tur-
não possui comando, sendo antes um es-
no, era bom lembrar: autoritarismo não
paço de permanente disputa entre perso-
significa ordem.
nalidades e grupos que querem se impor
uns sobre os outros – general Mourão,
17 de outubro de 2018. Paulo Guedes, Gustavo Bebbiano etc. O
líder não é capaz de pacificá-los. Sendo
O símbolo do governo de alguém tão limitado, desprovido de co-
Mussolini, na Itália, era a pontualidade nhecimento sobre a realidade e com evi-
da rede ferroviária. Recado claro: com dente déficit intelectual, Bolsonaro está
mais autoridade, com mais disciplina, condenado a ser um joguete nas mãos
com a mão forte do poder, tudo passava daqueles que lutam por influência den-
a funcionar melhor. O custo era perder tro de seu entourage.
algumas liberdades, mas, imaginava-se,
valia a pena. Afinal, quem não quer os Na relação com o Congresso, cer-
trens saindo no horário? Como escreveu tamente imperará o velho toma-lá-dá-cá.
Fernando Pessoa, sarcástico: “Os fascis- O homem da articulação política é Onyx
tas matam seu pai mas você tem a certe- Lorenzoni, legítimo representante da eli-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

te política corrupta de sempre. Mas os dade deve logo se esvair. Podemos es-
novos quadros, a bancada de outsiders perar, então, um início de governo de-
eleita pelo PSL e por bolsonarianos sol- vastador, em que tentarão aproveitar o
tos em outros partidos, o que podemos empuxo dado pela vitória eleitoral para
esperar deles? Muitos analistas têm des- destruir o que ainda houver de demo-
tacado o fato de que é um grupo mais cracia e de direitos. Quem nos protegerá
ideológico, portanto menos maleável disso? As “instituições” que já se mostra-
que a direita brasileira tradicional. Pode ram coniventes com o golpe de 2016?
ser. Mas isso os torna menos predató- Um Supremo tão acovardado que seu
rios? Pessoas como Kim Kataguiri, Joice presidente já se alinha com a defesa (por
Hasselman, Alexandre Frota ou o princi- enquanto envergonhada) da ditadura de
pezinho “imperial”, que já demonstraram 1964?
tantas vezes uma completa ausência de
A eleição de Bolsonaro, não nos
sentido moral, certamente vão buscar
equivoquemos, é o prenúncio da ditadu-
todas as vantagens que puderem obter.
ra. Resistir a um novo golpe, agora de ca-
Como cada um deles se vê como um he-
ráter neofascista, tendo-o na presidência
rói da cruzada antipetista, julgam que o
será muito mais difícil. Iludem-se aqueles
Estado brasileiro é seu merecido butim.
que agem hoje pensando nas vantagens
Com a política econômica ultra- que poderão ter em 2022, simplesmente
liberal já apontada por Paulo Guedes, porque a própria continuidade do pro-
elemento central do apoio que o gran- cesso eleitoral está ameaçada.
de capital hoje dá à deriva neofascista,
Nossos problemas não serão re-
as condições de vida das maiorias cer-
solvidos em 28 de outubro. A besta fas-
tamente piorarão. Bolsonaro oferece a
cista foi posta nas ruas e não se reco-
seu público um conjunto de bodes ex-
lherá por causa de uma simples derrota
piatórios – feministas, LGBT, “petralhas”
eleitoral. Os efeitos do golpe de 2016 e
– e a possibilidade de livre exercício da
dos retrocessos de Temer estão aí. Mas
violência contra eles. As circunstâncias
as condições da resistência são muito
são muito diferentes, mas o paralelo que
sensíveis ao resultado das urnas. Para
vem à cabeça é a campanha de ódio que
todo o campo democrático, qualquer
levou ao genocídio em Ruanda, em 1994.
que seja o balanço que se faça do PT e de
Até quando essa violência compensató-
seus governos, eleger Fernando Haddad
ria anestesiará a base? Até quando será
é essencial para que possamos sonhar
ignorado o efeito da destruição dos ser-
em sair da defensiva e retomar a tarefa
viços públicos, da redução da renda, do
de reconstrução democrática do Brasil.
aumento do despotismo nos locais de
trabalho?

Os próprios estrategistas de
Bolsonaro admitem que sua populari-

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19. O OLAVO DO MERCADO por Queiroz e pelos laranjais, são muitos


os motivos para evitar associação com o
novo governo, que agora apanha até em
No início do governo Bolsonaro, a mídia se
editoriais do Estadão. Mesmo o ex-juiz
esforçou para separar uma ala “ideológi-
Sérgio Moro, o herói da cruzada para sal-
ca”, composta por seguidores do charlatão
var o Brasil do petismo, desmoralizou-se
Olavo de Carvalho e fanáticos religiosos,
rapidamente. Sobra apenas um pilar do
de outra, “técnica”, representada pela área
bolsonarismo no poder, o czar da econo-
econômica. Mas nunca foi bem assim.
mia, Paulo Guedes, avalista do apoio do
capital ao ex-capitão, até então visto com
22 de março de 2019. desconfiança, como um estatista autori-
tário – o problema, claro, residia no “es-
Nas eleições do ano passado, tatista”, não no “autoritário”.
diante da inviabilidade eleitoral de seus
candidatos, os grupos dominantes do A cobertura da imprensa é signi-
Brasil se viram frente a uma encruzilha- ficativa. Guedes é tratado como alguém
da. Podiam reabrir um caminho de ne- que sabe o que faz e um dos problemas
gociações com o PT, que lançara um can- centrais de Bolsonaro seria não priorizar,
didato presidencial mais do que palatá- na presidência, a defesa das “reformas”
vel, Fernando Haddad, e assinalava com prometidas por seu ministro. Mas a com-
clareza sua disposição para pactuar um petência e a sensatez de Paulo Guedes
lulismo 2.0, adequado às condições ad- podem entrar na conta das fake news.
versas do pós-golpe de 2016. Este cami-
Não se trata só da ignorância ab-
nho implicava restabelecer algum grau
soluta sobre a gestão do ministério, ilus-
de vigência da Carta de 1988 e alguma
trada pelo episódio da célebre conver-
moderação no frenesi pela destrutiva de
sa com o então presidente do Senado,
direitos e de políticas de proteção social.
Eunício Oliveira, em que Guedes des-
A outra opção era apoiar um candidato
denhou a aprovação do orçamento da
destemperado e despreparado, nota-
União dizendo “o orçamento eu faço
bilizado por seu discurso histriônico de
depois”, ou pela exoneração sumária de
apologia à violência e com notórias liga-
todos os funcionários com cargo de con-
ções suspeitas com grupos criminosos. A
fiança que haviam trabalhado nos gover-
burguesia, as elites políticas tradicionais,
nos petistas, paralisando as atividades
a imprensa e as classes médias não titu-
por longo período – não era possível no-
bearam e escolheram a segunda opção.
mear outros para seus lugares, porque
Com Bolsonaro na presidência ba- até os funcionários que sabiam como
tendo o recorde mundial de vexames por fazer as nomeações tinham sido afasta-
minuto, muitos destes setores estão pre- dos... Nem é apenas a incapacidade de
ferindo guardar distância de seu eleito. discutir e negociar, com grupos sociais
Da goiabeira ao golden shower, passando

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

ou com o parlamento, adotando sempre nos da metade do que lhes havia sido
um tom de ameaça. prometido. Mais de 90% deles ganham
cerca de metade do salário mínimo. Os
Mais do que isso, Paulo Guedes é jornais noticiam uma onda de suicídios
o arauto de uma forma de fundamenta- de idosos, o que talvez seja mesmo a so-
lismo de mercado que bem pode ser des- lução ideal para Guedes.
crita como uma espécie de terraplanismo
econômico. Todas as evidências mostram A insensibilidade das nossas elites
que a brutal desregulamentação que ele para com a situação da classe trabalha-
advoga não leva ao crescimento, mas dora é notável e se manifesta com es-
somente à concentração da riqueza e à pecial virulência no debate sobre a pre-
pauperização da população. A privati- vidência. Guedes não tem o monopólio
zação ensandecida de Guedes e de seu dela. Rodrigo Maia, por exemplo, inter-
assessor Salim Mattar não equilibrará as veio para dizer que “todo mundo con-
contas públicas e privará o Estado bra- segue trabalhar até os 80 anos” (como
sileiro de receitas e de instrumentos de a expectativa de vida está em 75 anos,
ação. Sua fúria contra o funcionalismo percebe-se que muitos vão ter que pro-
público, que o leva a aventar o fecha- curar emprego na condição de almas
mento de instituições como o IBGE, só penadas). Mas essa cegueira de classe,
pode ser classificada de irracional: não é ainda que comum, é indesculpável na-
possível imaginar um Estado moderno, queles que deveriam governar a totali-
mesmo mínimo, que se prive dos instru- dade dos brasileiros. Para Maia, como
mentos básicos de aferição da situação para Guedes, aposentadoria é o que se
da sociedade que ele quer comandar. dá à mão de obra tornada inservível e o
aposentado não conta como um ser hu-
Guedes gosta de reciclar o velho mano que ainda tem uma vida a viver.
dito de que a esquerda tem coração e Para o trabalhador e a trabalhadora, ao
a direita tem cérebro, mas parece que contrário, a aposentadoria é a ansiada
a ele faltam ambos. Ele é imune ao ra- alforria. O momento em que eles podem
ciocínio lógico, ao aprendizado com a alcançar um pouco da liberdade exis-
experiência histórica e à realidade factu- tencial de que os burgueses desfrutam.
al. A reforma da Previdência, prioridade Para isso, é preciso que tenham duas
máxima dele e do capital hoje, serve de coisas: alguma tranquilidade material e
exemplo. O modelo pinochetista, que ele suficiente saúde.
deseja implantar no Brasil, é um perfeito
case de fracasso – exceto para os espe- Essa perspectiva é silenciada siste-
culadores que roubaram a poupança da maticamente no debate brasileiro sobre
classe trabalhadora. Mesmo com ajustes a reforma da Previdência. Um debate
que foram feitos para minorar a situação limitado, enviesado, com dogmas que,
(com intervenção, vejam só, do Estado!), justamente por serem tão frágeis, não
os aposentados recebem em média me- podem sofrer questionamentos. Esses

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

dogmas incluem o enquadramento da sileira dos últimos anos, os documentos


questão exclusivamente sob o ângulo divulgados ontem por The Intercept Brasil
contábil e a “bomba relógio” do “indiscu- têm mais sabor de confirmação do que
tível” desequilíbrio estrutural. Outro dog- de revelação. Restavam poucas dúvidas
ma é a ideia de que trabalhador existe sobre a motivação política da Lava Jato
para trabalhar, isto é, para gerar mais- ou sobre o comportamento anti-ético do
-valor, enquanto tiver um sopro de ener- juiz Sérgio Moro. Vendida pela mídia e
gia no corpo. pela direita em geral como a maior ope-
ração de combate à corrupção da his-
Guedes é, hoje, o repetidor-mor tória, a Lava Jato é, ela própria, profun-
desse discurso dogmático. Seu papel damente corrupta. Seu objetivo nunca
é enunciar certezas e impedir o deba- foi combater desvios, mas sim retirar o
te sobre elas. A mídia gosta de diferen- Partido dos Trabalhadores do poder, pe-
ciar os olavetes e fanáticos religiosos, los meios que fossem necessários, inter-
que formariam a “ala psiquiátrica” do rompendo suas tímidas políticas sociais
governo, de seu homem no Ministério
compensatórias. Agora, essa conclusão
da Economia. Mas Paulo Guedes não é não é mais uma mera especulação, ain-
tão diferente do guru de Richmond, em da que sustentada em evidências. Está
seu apego a teorias sem fundamento e comprovada.
em sua arrogância e truculência na dis-
cussão pública. Faltam o charuto, o licor A Lava Jato não foi capaz de ga-
de laranja e o tapete com a pele do po- rantir a eleição de Aécio Neves em 2014,
bre urso bebê, mas, a seu modo, ele é o mas permitiu a deflagração do golpe de
Olavo do mercado. 2016, abriu as portas para a criminaliza-
ção do PT e da esquerda, colocou Lula
na prisão e fez do miliciano ou amigo
de milicianos Jair Bolsonaro o novo pre-
sidente da República. Seu saldo líquido
20. CONSPIRAÇÃO LAVA
é o recuo das instituições democráticas
JATO
e do império da lei, a obsolescência da
Constituição de 1988, a degradação dos
As mensagens privadas da força tarefa três poderes, a maior vulnerabilidade da
do Ministério Público, obtidas pelo The república a grupos criminosos, a retirada
Intercept Brasil, comprovaram o caráter de direitos, a perda da soberania nacio-
da Operação Lava Jato: uma conspiração nal e o aumento da vulnerabilidade so-
contra a democracia. cial.

O nome com que a operação pas-


10 de junho de 2019.
sará à história, não resta mais dúvida, é
“Conspiração Lava Jato”. Os documentos
Para quem tem acompanhado
publicados até agora indicam com cla-
com um pouco de atenção a política bra-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

reza que Moro e os procuradores cons- da lei para prejudicar seus adversários,
piraram – no sentido preciso da palavra ainda mais “heróis” eles são.
– para prender Lula e para influenciar
Quem fica em maus lençóis mes-
resultados eleitorais. Não tardará a fi-
mo é o amplo setor do lavajatismo que
car evidente a participação de outros
se quer “civilizado” – aqueles que não
agentes, como a mídia corporativa ou os
desejavam se confundir com Bolsonaro,
Estados Unidos.
que não queriam se comprometer com o
Para o campo democrático, as no- desmonte da democracia brasileira, mas
vas informações redimensionam a cam- ficavam satisfeitos com a criminalização
panha pela libertação de Lula. A rigor, do petismo e incorporaram a versão
todas as sentenças oriundas da Lava Jato do “combate sem tréguas à corrupção”
precisariam ser anuladas. A vinculação como justificativa. É um amplo grupo,
da corrupção do Judiciário com os de- que inclui parte da cúpula do Judiciário
mais retrocessos que ocorreram no país e parte da grande imprensa; políticos
tornou-se ainda mais gritante. E a ilegiti- conservadores que se projetam como
midade da eleição de 2018 também não respeitáveis, como Fernando Henrique
tem mais como ser escondida. Entendido Cardoso e Marina Silva, e também o
como bandeira que sintetiza a denúncia udenismo de ultraesquerda. Para estes,
do ataque às instituições democráticas, o chegou a hora da verdade. Ou mandam
“Lula livre” deve representar não só a de- publicamente os escrúpulos às favas ou
fesa da liberdade do ex-presidente e de terão que romper sua conivência com a
todos os outros presos políticos, como conspiração.
também a oposição ao golpe e às polí-
ticas que ele implementou – e mesmo,
na medida em que as condições permi-
tirem, a exigência de anulação do pleito
21. OS ISENTÕES TOMAM
do ano passado.
A FRENTE DO GOLPE
Para a extrema-direita, pouco
muda. O cinismo, que ela se habituou As revelações do Intercept levaram Moro
a praticar no debate público, já está a a desculpas risíveis – e muitos outros a
pleno vapor. Nas mídias sociais, robôs malabarismos para tentar manter as
e robotizados reagiram às reportagens consequências da Lava Jato (em especial, a
do The Intercept Brasil com frases como criminalização da esquerda) a despeito do
“Lula tá preso, babaca”. No contexto, a desvelamento de seu modus operandi.
frase é uma confissão de culpa e revela o
universo mental deste grupo: a política é
11 de junho de 2019.
um vale-tudo e, se Moro e Dallagnol des-
respeitaram as regras básicas da ética e
A divulgação das conversas da
força-tarefa da Lava Jato com o então

66
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

juiz Sérgio Moro adquiriu tal magnitu- das”. Tenta o difícil caminho de colocar
de que se tornou impossível, para o os malfeitos da Lava Jato e o trabalho
establishment político e midiático, igno- jornalístico do Intercept Brasil no mesmo
rá-las. A direita extremada manda suas saco. A Folha escancara a crise: “Governo
hordas, nas redes virtuais, redobrar a vi- Bolsonaro se blinda e adota cautela com
rulência nos ataques ao “petismo” (cate- Moro”.
goria ampla que engloba todo o campo
Abre-se, então, a possibilidade de
democrático), lançar acusações contra
sacrificar Moro. Até agora, o ex-juiz não
Glenn Greenwald e preparar falsifica-
conseguiu inventar uma linha de defesa
ções para, a partir delas, tentar desmo-
razoável. Primeiro, lançou uma nota cujo
ralizar os diálogos autênticos. Ações de
efeito principal foi confirmar a autenti-
quem está na defensiva e não vê como
cidade dos diálogos. Agora, esconde-se
sair dessa posição.
atrás de um insustentável “não vi nada
No início relutantes, os meios de demais” – mas se alguém que era juiz
comunicação corporativos acabaram não via “nada demais” em orientar um
tendo que noticiar o vazamento, mesmo dos lados de um caso que ia julgar, das
que de forma tímida e enviesada. A ten- duas uma: ou é mentecapto ou é cínico.
tativa de minimizar o episódio, emble- Em Manaus, ontem, deu chilique e inter-
matizada pela reação inicial de Fernando rompeu entrevista em que foi indagado
Henrique Cardoso (“tempestade em sobre o assunto.
copo d’água”), logo mostrou fôlego cur-
O ex-justiceiro de Curitiba mostra,
to. A natureza dos crimes cometidos por
uma vez mais, despreparo. E a posição
Moro, Dallagnol e seus asseclas faz com
de bode expiatório casa como uma luva
que eles, mesmo que não pareçam tão
para ele, por dois motivos. Primeiro,
espetaculosos para os desavisados, se-
embora sempre tenha sido apenas um
jam imediatamente identificados como
peão, tornou-se símbolo da Lava Jato e
gravíssimos nos meios jurídicos. A cor-
“herói” nacional. Se cair, dará a impres-
regedoria do Ministério Público iniciou
são de que a justiça triunfa. Depois, por-
investigação sobre Dallagnol e mesmo
que todos já perceberam que é frouxo.
a OAB, cuja postura ao longo de todo o
Outro, em seu lugar, já teria batido a
processo do golpe sempre foi de cum-
mão na mesa e dito “se eu cair, eu explo-
plicidade ativa, pediu o afastamento dos
do essa zorra toda”. Moro não é desses.
implicados.
O primeiro e crucial dia da crise passou
Os jornalões, que ontem tentavam sem uma manifestação vibrante de soli-
esconder o episódio, hoje começaram a dariedade do governo no qual ele teria
se render. O Estadão ainda arranja uma entrado como “avalista”.
manchete fora do tema, mas O Globo
É aí que os “isentos” se apresen-
diz “Conversas de Moro com procura-
tam, para sugerir um caminho. Trata-se
dores e ação de hacker serão investiga-

67
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

de afastar Moro, mas manter de pé suas processo judiciário. Falando para um pú-
decisões. Um folclórico colunista conser- blico diferente, ele admite que a prisão
vador da Folha de S. Paulo escreve hoje de Lula pode ser injusta, embora seja o
que, embora esteja demonstrado que “o preço a pagar pela punição dos outros,
ex-juiz e os procuradores estabeleceram mas na essência sua postura não difere
uma relação de proximidade absoluta- do amoralismo da extrema-direita puni-
mente inadequada, que dá substrato à tivista.
suspeita, desde sempre levantada pela
Os diálogos publicados até agora
defesa do ex-presidente, de que Moro
mostram com clareza uma conspiração
não atuava com imparcialidade”, os jul-
entre Judiciário e Ministério Público para
gamentos não devem ser anulados, já
condenar Lula. Caso mostrem trama
que “não há sugestão de que Moro e os
igual contra outras pessoas, as condena-
procuradores tenham interferido na rea-
ções precisam também ser revogadas –
lidade fática das provas”. Se o raciocínio
mesmo que se trate de Eduardo Cunha.
dele tivesse lógica, poderíamos abolir
Ao contrário do que Ciro insinua, a cam-
a magistratura: a “realidade fática das
panha “Lula livre” não se baseia numa
provas”, por si só, condenaria ou absol-
suposta imunidade do ex-presidente,
veria. Mas, na verdade, a “realidade fáti-
mas na defesa do direito de defesa e das
ca das provas” exige interpretação; por
regras do justo processo penal.
isso é que se cobra imparcialidade do
juiz. Quando esse juiz colabora com um Também a ex-senadora, ex-mi-
dos lados e mesmo, detalhe que Helio nistra e ex-líder política se manifestou.
Schwartsman convenientemente ignora, Uma longa nota, resumida, num tuíte,
reconhece privadamente que as provas à ideia de que “não se pode ter dois pe-
que vai usar para condenar são muito sos e duas medidas”. Enigmático, como
frágeis, não há como salvar o processo. de costume, mas a leitura da nota, com
ênfase em evitar que “possíveis erros
Do Twitter, vem a contribuição da-
sirvam de pretexto para desconstruir a
quele que é a encarnação brasileira da
luta anticorrupção”, mostra que a opção
personagem de Macedonio Fernández,
é também afastar ou até punir Moro e
“el hombre que será Presidente y no lo
Dallagnol, mas manter Lula preso. A “luta
fue”: “Antes que as paixões contra ou a
anticorrupção” é alçada à posição de va-
favor do ex-presidente Lula – o mais notá-
lor máximo; em nome dela, todos os di-
vel atingido pela Lava Jato – venham aqui
reitos podem ser atropelados.
defender cegamente seus interesses,
lembrem-se de Eduardo Cunha, Geddel Fernando Henrique Cardoso, por
Vieira Lima, Palocci… todos esses pode- sua vez, no final do dia de ontem aban-
rão se beneficiar com o que está aconte- donou o discurso da “tempestade em
cendo”. Portanto, para Ciro, a manuten- copo d’água” para, quem diria, aderir à
ção de “homens maus” presos compensa linha de Marina Silva. Em um tuíte que
a violação de todas as regras do correto

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aparentemente não diz nada, conclama lamentar”. Ele pode falar à vontade em
um “grande acordo nacional”: “É hora de “disputa de narrativas”, mas não muda
juízo: sem entendimento perderemos o o fato de que, sim, os diálogos provam
bonde da história”. O “entendimento”, tudo isso.
parece claro, é entre os artífices do gol-
O caminho sugerido agora pelos
pe, para evitar que a exposição da po-
pretensos isentões é esse: punir os pu-
dridão da Lava Jato prejudique os frutos
nitivistas para manter o punitivismo. Isso
alcançados até aqui.
não serve para o campo democrático. É
Quem desvela melhor a estraté- preciso restaurar a vigência dos direitos
gia é outro colunista da Folha, que ad- e das garantias. É preciso anular as con-
verte para o “falso dilema”. Diz ele: “No denações tendenciosas e injustas. E é
jogo amarrado da polarização, o público preciso desmitificar o discurso do “com-
é levado a escolher entre o atropelo do bate à corrupção”, que convenientemen-
devido processo legal e a impunidade te esquece o caráter estrutural da rela-
pura e simples”. Em vez disso, “é preciso ção entre capital e Estado e serve apenas
articular uma posição independente na para destruir a democracia.
qual se reconheça a gravidade do que
foi revelado pela Operação Lava Jato, a
atribuição da responsabilidade política
de quem governava durante o período e
22. PUNITIVISMO,
a necessidade de que a investigação e o
ANTIPOLÍTICA E AVANÇO
julgamento dos ilícitos aconteçam dentro
DA DIREITA
dos parâmetros da lei e da Constituição”.

São palavras bonitas, mas caren- O viés antipolítica da mentalidade puniti-


tes de sentido. O que foi revelado pela vista, da qual a Lava Jato era exemplo ex-
conspiração Lava Jato é indissociável de tremo, é incompatível com a democracia.
seus métodos. Se o julgamento estava
enviesado, se havia predisposição para
12 de junho de 2019.
condenar mesmo com evidências frágeis
e impermeabilidade aos argumentos da
Quando a Lava Jato eclodiu, mui-
defesa, não há caminho possível exceto
ta gente a apoiou de boa-fé. Os vieses
a anulação do processo. Pablo Ortellado
da operação eram evidentes a qualquer
ridiculariza o fato de que a esquerda
olhar um pouco atento, mas era possível
apresenta os diálogos publicados no
admitir o discurso de que, cedo ou tarde,
Intercept Brasil como provas cabais “da
a “limpeza” iria alcançar todos.
parcialidade da Lava Jato, do caráter po-
lítico do julgamento do ex-presidente Desde o começo, os métodos
Lula e de que o impeachment de Dilma eram, digamos, heterodoxos, mas tam-
Rousseff foi efetivamente um golpe par- bém era fácil aceitar que um tanto a mais

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

de “pressão” era o preço a pagar para vam com herdar o espólio – o nome de
romper o ciclo de impunidade. Mesmo Luciana Genro é apenas o primeiro da
à esquerda, colava a ideia de que a cor- lista. Mas mesmo petistas sentiam que o
rupção – sempre vista como um proble- custo de criticar os heróis do momento
ma do caráter de alguns indivíduos, não era alto demais e adotavam um discurso
um elemento sistêmico da relação entre público conciliador. Não foram poucas
capital e política – era o maior problema as declarações de Fernando Haddad, já
nacional. como candidato em 2018, garantindo
apoio à Lava Jato e mesmo elogiando
Poucos se preocupavam em ana- o juiz de primeira instância: “Em geral,
lisar as afinidades eletivas entre a Lava Sérgio Moro fez um bom trabalho”.
Jato e o discurso antipolítico, que torna-
ram a operação instrumental seja para Por convicção, por ingenuidade
o desmonte das empresas estatais, seja ou por oportunismo, muitos abriram as
para o avanço da extrema-direita. portas para o discurso punitivista e, as-
sim, para a derrocada do Estado de direi-
O apelo do discurso do “combate to e da democracia.
sem tréguas à corrupção” era tanto que
já em 2017, portanto depois do golpe de Depois das reportagens de The
Estado que derrubou a presidente Dilma Intercept Brasil, só os cínicos são capa-
Rousseff, o jornalista Glenn Greenwald zes de defender a Lava Jato. Hoje talvez
– um liberal e democrata, que agora o mais ativo porta-voz do autoritarismo
cumpre inestimável papel revelando o iliberal no STF, o ministro Luiz Roberto
conluio entre Sérgio Moro e o Ministério Barroso deu uma declaração pública de
Público – declarava que a Lava Jato era transparente clareza: “A corrupção exis-
“algo extraordinariamente corajoso, tiu e precisa continuar a ser enfrentada,
digno de ser homenageado”. Na mes- como vinha sendo. De modo que tenho
ma época, outra jornalista, reconhecida dificuldade em entender a euforia que
como defensora dos direitos humanos, tomou os corruptos e seus parceiros
Eliane Brum, temperava críticas pontu- [com as revelações do conluio entre juiz
ais à operação com a afirmação de que e procuradores]”.
ela “é importante e é imperativo que ela
O que Barroso está dizendo é que
continue”.
o respeito às regras do processo penal,
O custo de ser contra a Lava Jato ao direito de defesa e à imparcialidade
era alto: quase como ser a favor da cor- judiciária não é apenas uma bobagem,
rupção. Políticos à esquerda saudavam mas uma forma de leniência com a cor-
com entusiasmo a operação. Alguns de rupção. Trata-se de punir os “maus” e
fato podiam acreditar na retórica da “lim- pronto – e, na ausência do julgamento
peza geral” do sistema político. Outros correto, sabemos quem são os “maus”
antecipavam a derrocada do PT e sonha- graças à opinião publicada...

70
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Pouco separa Barroso dos bra- sonhar com uma “bala de prata” contra os
dos de “deporta Greenwald” que ecoam retrocessos.
nas redes sociais, vindos da extrema-
-direita em fúria. Que esta mentalida- 29 de junho de 2019.
de tenha um assento na máxima corte
brasileira, aquela que deveria proteger Moro soltou seu mau latim no
a Constituição, é um sintoma grave da Twitter para dizer que as revelações do
situação que atravessamos. Intercept Brasil eram a montanha parin-
do um rato. Sob qualquer parâmetro
A Lava Jato atuou contra a reelei-
do direito e da moral, as revelações não
ção de Dilma em 2014, pelo golpe e pela
podem ser consideradas “um rato”. Elas
prisão de Lula em seguida, para impe-
exibem um juiz traindo suas obrigações
dir a vitória do PT em 2018. Seu objetivo
profissionais mais elementares, come-
nunca foi combater a corrupção e isto
tendo crimes, participando de uma cons-
parece evidente hoje. Mesmo que tives-
piração contra o regime democrático.
se sido, não justificaria os meios adota-
dos. Para que sejam entendidas, basta
alcançar um princípio muito simples: a
A pusilanimidade do campo de-
imparcialidade do juiz. Em qualquer lu-
mocrático na defesa dos princípios que
gar do mundo, as conversas divulgadas
o caracterizam, sua capitulação diante
com o MP seriam mais do que suficien-
do discurso fácil e interessado da mídia
tes para a queda e prisão de Moro, de
e sua falta de disposição em fazer a dis-
Dallagnol e do resto da turma, a liberta-
puta das narrativas são corresponsáveis
ção dos réus que foram vítimas de suas
pelo peso que o punitivismo autoritário
maquinações e a anulação das eleições
ganhou no Brasil. Mas não há conciliação
fraudadas de 2018.
possível: é uma visão que aponta inequi-
vocamente para o fascismo. Mas não estamos em qualquer
lugar do mundo. Estamos no Brasil de
Bolsonaro. Depois de titubear um pouco,
Moro e seus “acepipes”, como diria o mi-
23. O QUE FAZER COM nistro da Educação, logo encontraram o
UMA NINHADA DE caminho para sua defesa: o cinismo puro
CAMUNDONGOS? e simples. Negam o óbvio, enquanto pis-
cam o olho para sua plateia.

O sistema político logo absorveu e norma- Temos a corregedoria do MPF se


lizou o escândalo gerado pelas revelações apressando em arquivar qualquer inves-
da Vaza Jato – sinal de que não adianta tigação. Temos manifesto de centenas
de juízes afirmando que se mancomunar
com uma das partes é prática corrente e

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

aceitável. Temos a Rede Globo. Temos o pendentes do cronograma do Intercept


Supremo, um poder minúsculo, que não Brasil e de seus parceiros
está só acovardado, como certa vez disse
A blindagem que o cinismo produz
Lula, mas é cúmplice ativo da destruição
tem potencial para transformar qual-
do Brasil.
quer revelação, por mais importante que
A multidão de mínions, que teme seja, no tal rato parido pela montanha.
usar o próprio cérebro mais que o diabo Se Sérgio Moro tivesse um pingo de de-
teme a cruz, produz sua própria mistura cência, já teria renunciado e se escondi-
de cinismo e ignorância. No fim, reduz do em qualquer buraco, depois de ex-
a situação àquela frase lacradora, onde posto do jeito que foi. Mas se ele tivesse
mínions e Gomes se encontram: “Lula tá um pingo de decência não seria Sérgio
preso, babaca”. Moro.

Moro perde popularidade, perde a Em vez de esperar pela imprová-


luz própria que sempre mais simulou do vel revelação final, que destruirá Moro,
que de fato teve, e se torna de vez um Bolsonaro e o golpe pela simples força
boneco na mão de Bolsonaro. Se depen- de seu enunciado, devíamos trabalhar
desse de suas próprias forças, estaria fri- a sério com a ninhada de camundongos
to. Mas está protegido pelo arco amplo que temos. Falar com quem tem alguma
da direita – bolsonarismo, MBL, Globo, disposição para ouvir e pensar, mostran-
FHC – que entendeu que o caminho do do como a Lava Jato foi um instrumento
cinismo é o único seguro para garantir a para impedir que a vontade popular se
continuidade do golpe de 2016. manifestasse, discutindo como o discur-
so do combate desenfreado à corrupção
O campo democrático, por sua vez, leva à aceitação da destruição da demo-
parece paralisado, esperando a anuncia- cracia e, sobretudo, vinculando a perse-
da, mas sempre postergada, bala de pra- guição contra Lula, a criminalização da
ta do Intercept. Não sei se ela virá. Não esquerda e o golpe com a perda de direi-
sei qual é a agenda de Glenn Greenwald, tos (congelamento dos gastos, reforma
nem acho que ele tenha a responsabili- trabalhista, reforma previdenciária).
dade de dar rumo à oposição no Brasil.
Não, o Intercept Brasil não vai tra-
Não acho boa a maneira pela qual zer uma solução miraculosa e nos liberar
ele se tornou personagem da crise, pole- da cansativa tarefa de fazer o trabalho
mizando com a direita e a cada dia pro- político.
metendo novas bombas. Seria melhor
um perfil mais baixo, para agudizar a
contradição “jornalista imparcial vs. juiz
parcial”. Mas o principal é isso: ele não
é, nem pode ser, o formulador da estra-
tégia da esquerda. Não podemos ficar

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

24. AINDA 2013 cional e, assim, transformaram aquele


momento na onda que se tornou.)

O discurso de que as manifestações de Não há, no entanto, nenhum in-


2013 eram as culpadas pelos retrocessos dício de que as manifestações de 2013
ganhou o apoio do ex-presidente Lula. tenham começado como parte do golpe,
Mas o que dizer de uma esquerda que tem como disse o ex-presidente Lula em en-
medo de povo na rua? trevista à Telesur. Não há nenhum indí-
cio de que os movimentos de transporte
12 de janeiro de 2020. público estivessem a serviço de grupos
de direita ou do imperialismo estaduni-
Quando eclodiram as manifesta- dense, ou infiltrados, ou manipulados.
ções em 2013, eu me coloquei do lado Absolutamente nada sustenta tal tese.
dos “céticos”, por assim dizer. Enquanto Nem provas, nem mesmo convicções.
alguns amigos saudavam a eclosão da Há uma enorme diferença entre uma
revolução popular, eu julgava que um mobilização ser capturada pela direita e
movimento tão carente de organização ser pensada, deflagrada ou patrocinada
e de liderança dificilmente teria força pela direita. As declarações de Lula, por-
para ser mais do que a expressão pon- tanto, foram enormemente irresponsá-
tual de uma insatisfação latente. Sou old veis (para usar uma palavra amena).
fashioned demais para pensar diferente.
E o uso de uma velha entrevista
Não fui capaz de prever a captura de Elisa Quadros por uma parte de sua
de 2013 pela direita, mas, quando ocor- tropa de choque, uma entrevista defen-
reu, ela pareceu bastante óbvia. O MPL dendo en passant a libertação de alguém
não tinha força para comandar protes- que muitos anos depois revelou ser um
tos tão gigantescos. Aos partidos à es- terrorista de extrema-direita, só pode
querda do PT também faltava base social ser denominada como calhorda. Elisa
para tanto. Quadros pode ter sido ingênua, preci-
pitada, desavisada, radicaloide, assim
E o próprio PT estava em situação como a liderança do MPL pode ser cri-
complicada. Era um alvo da insatisfação, ticada de diversas maneiras. É um bom
já que controlava o governo federal. E tema para debate. Mas não dá para
a reação inicial de Fernando Haddad, chamá-los de quinta coluna, traidores,
então prefeito de São Paulo, às reivin- agentes ianques, nada disso. É bem mais
dicações também não contribuiu para honesto reconhecer que, muito antes de
legitimar o partido como interlocutor, serem tomadas por coxinhas mobiliza-
muito pelo contrário. (Lembrando que dos pela Rede Globo, as manifestações
2013 não começou nem terminou em de 2013 levaram às ruas uma massa de
São Paulo, mas foram as manifestações insatisfeitos com os limites do arranjo lu-
paulistanas que ganharam a atenção na- lista.

73
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Oferta de empregos, sim, mas a resistência necessária aos retrocessos


de baixa qualificação e baixo salário. em curso.
Inclusão social, mas mais pelo consumo
Esse é o drama da esquerda brasi-
do que pela oferta de serviços socializa-
leira. Por um lado, apesar de declarações
dos. Combate à miséria, mas convivência
soltas que permitem vislumbrar algo di-
com a desigualdade profunda. E o espa-
ferente, mas que logo se dissipam, Lula
ço da cidade, fulcro da pauta do MPL, é
mantém os dois pés fincados na estra-
aquele em que as diversas assimetrias –
tégia de acomodações sucessivas – cujo
de classe, de gênero, de raça – e as vio-
esgotamento, no entanto, vem sendo
lências associadas a elas se manifestam
provado cabalmente desde o golpe de
com clareza.
2016. Por outro lado, Lula permanece
O governo Dilma Rousseff e o PT, sendo o maior depositário de duas vir-
infelizmente, preferiram conter o movi- tudes das quais a esquerda brasileira
mento e focar na minimização de danos precisa desesperadamente: a capacida-
para as eleições do ano seguinte, em vez de de comunicação com as massas mais
de buscar um diálogo real com as ruas, amplas e o sentido de urgência, de busca
que permitisse uma mudança no arran- de respostas imediatas para problemas
jo vigente, em condições mais favoráveis prementes, em vez de desenhar cená-
ao campo popular. Talvez uma disposi- rios grandiosos para um futuro indeter-
ção diferente, por parte do governo e de minado.
seu partido, tivesse dificultado a captura
do protesto pela direita. Mas é mais fácil
culpar os manifestantes.

A demonização de 2013 por Lula 25. A ESQUERDA EM CRISE


segue essa lógica. O povo na rua atra- DIANTE DA CRISE
palhou o governo, colocou em risco a
reeleição, logo estava a serviço dos ad- A pandemia revelou a face mais insana e
versários. É melancólico ver o maior lí- criminosa do governo Bolsonaro. A fra-
der popular da nossa história, forjado queza da oposição de esquerda e a falta
nas jornadas memoráveis de 1978, con- de clareza quanto a seus objetivos táticos
denando liminarmente manifestações e estratégicos dificultou a ação política
populares, como se fossem “estorvos” contra ele.
para a ação política. É a demonstração
máxima da conversão total e absoluta
23 de março de 2020.
do lulismo à política institucional, aque-
la que começa e termina nas urnas, nos
A crise provocada pela pandemia
parlamentos e nos tribunais. O que, ali-
mundial do novo coronavírus pegou a
ás, leva a um péssimo prognóstico para
esquerda brasileira em seu pior momen-

74
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

to – e expõe, com clareza devastadora, mo de coronavírus”. Uma bandeira como


sua debilidade. a adoção de uma renda básica universal
e incondicional, por exemplo, para pro-
Os protagonistas da crise es- teger os milhões de desempregados,
tão todos à direita no espectro político: subempregados e precarizados, ganhou
Bolsonaro, Maia, os governadores de São uma viabilidade com que até um mês
Paulo e do Rio de Janeiro, o ministro da atrás nem se sonhava.
Saúde. Minoritários no parlamento, au-
sentes dos maiores centros do poder e Além dela, é necessário apresentar
com a capacidade de mobilização social, propostas concretas e viáveis de finan-
que já se mostrava insuficiente, ainda ciamento emergencial da saúde pública,
mais reduzida pelas medidas sanitárias para aquisição de testes, respiradores e
de isolamento, o que os partidos e movi- outros equipamentos e para contratação
mentos do campo popular podem fazer? de pessoal; de proteção ao emprego e ao
salário; de apoio ao enorme contingente
É fácil pontuar que a crise revela de micro, pequenas e médias empresas
a importância do SUS e do serviço públi- que se virão diante da falência. O desa-
co em geral, destrói as falácias do Estado fio, portanto, é duplo: estabelecer uma
mínimo, dramatiza a desumanidade de interlocução com os tomadores de de-
nossa desigualdade social extrema, va- cisão que permita a adoção de medidas
loriza o conhecimento científico – todos que protejam as maiorias mais vulnerá-
discursos próprios da esquerda. É fácil, veis e mobilizar em favor delas o máxi-
mas não basta. mo de pressão possível.

É preciso definir um conjunto de Surge aí um complicador: a pre-


propostas específicas para o enfrenta- sidência de Jair Bolsonaro. Seu compor-
mento da crise e uma estratégia para tamento diante da crise é marcado por
pressionar em favor delas. Não se trata uma irracionalidade ostensiva. Ele não
(e essa ficha parece que ainda não caiu apenas nega a gravidade da pandemia
para algumas lideranças) de marcar po- como pressiona (com algum sucesso) o
sição para ganhar pontos politicamente Ministério da Saúde a retardar medidas
no futuro, mas de apresentar propostas de enfrentamento. Ele próprio se apre-
que sejam viáveis, mesmo com a atual senta, pessoalmente, como provável ve-
correlação de forças, e possam minorar tor de contaminação. Produz informa-
o custo humano da pandemia. ções falsas, como o vídeo em que anun-
ciou a “cura” para o coronavírus, cujo
Estamos numa situação em que
efeito é criar mais tumulto no sistema
uma parte importante da liderança po-
de saúde. E mantém firme a política de
lítica conservadora se vê motivada a
Paulo Guedes, um fundamentalista mais
abandonar convicções prévias e a abra-
preocupado em preservar seus dogmas
çar ideias mais “progressistas” – o que
do que em poupar o Brasil da devasta-
alguns estão chamando de “keynesianis-

75
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

ção social que se avizinha. Até agora, as nas eleições de 2022. Uma aposta irres-
medidas emergenciais anunciadas con- ponsável, de quem não é capaz de aqui-
sistem quase inteiramente em antecipa- latar a dimensão da crise que nos atin-
ção de desembolsos do governo e pos- giu. Não dá para saber que Brasil restará
tergação de recolhimentos, sem efetiva em 2022 para ser gerido pelo vitorioso
injeção de dinheiro na economia (na con- nas eleições. Não dá para saber sequer
tramão do que vem sendo feito em todo se o pouco que sobra de nossa democra-
mundo), além de cortes nos salários. cia estará de pé até lá. É a aposta numa
incerta alternância de poder para herdar
A irracionalidade de Bolsonaro, uma terra arrasada.
porém, tem método. Ele mantém sua
base unida, alimentada por negação da Outra parte – ou a mesma, talvez
realidade, notícias falsas e teorias cons- – está mais preocupada com suas dispu-
piratórias. Para isso, pode ser bom ne- tas internas. A reação da direção nacio-
gócio colocar em risco a saúde e a vida nal do PSOL ao pedido de impeachment
de centenas de milhares, produzir uma de Bolsonaro, apresentado pela líder do
crise diplomática com um parceiro cru- partido na Câmara, é um bom exemplo
cial (a China), esticar sempre ao máximo disso. A prioridade foi condenar a inicia-
a tensão entre os poderes. Pesquisa di- tiva, criticar os parlamentares que se so-
vulgada hoje mostra que uma expressiva maram a ela e preservar um “centralismo
minoria – 35% dos consultados – aprova democrático” que, aliás, nunca vigorou
suas ações. Sondagens deste tipo sem- no partido. Em vez de lavar a roupa suja
pre devem ser lidas com precaução, mas em casa, para não enfraquecer um movi-
o dado mostra que Bolsonaro, que ainda mento de oposição ao governo, optou-se
conta com o apoio dos líderes inescrupu- por explorar ao máximo a situação para
losos de algumas das maiores seitas cris- estigmatizar o adversário interno.
tãs do país, sabe para que público está
A oposição à ideia de impeachment
falando.
se baseia no risco de conceder a presi-
Essa ressonância social torna dência ao general Mourão, num momen-
ainda mais urgente retirá-lo do cargo. to em que as circunstâncias podem jus-
Bolsonaro atrapalha o enfrentamento da tificar a adoção de medidas de exceção.
crise, seja pelo poder que controla, seja É verdade. No entanto, esse risco é um
pelo exemplo que oferece. Aqui, uma vez dado da realidade, que não é afastado
mais, a esquerda brasileira mostra difi- por um mero ato de vontade. É melhor
culdade de orientação. manter Bolsonaro no governo? Parece
claro que não. Então a questão é: há al-
Uma parte dela, ainda que não o guma outra alternativa viável?
diga em voz alta, pensa que é melhor
deixar Bolsonaro no cargo até o fim do Há quem fale que é preciso mudar
mandato, para derrotá-lo com facilidade a correlação de forças antes de falar em

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

impeachment. Só falta dizer como. O pri- 26. A ANOMIA RELATIVA


meiro efeito do isolamento social impos- DO ESTADO
to pela crise sanitária é o congelamento
da luta política. A mudança na correla-
Desmonte das políticas sociais e “vale
ção de forças, que não estávamos conse-
tudo” na disputa das elites pelo poder.
guindo produzir nem quando tínhamos a
Essa era a imagem do Brasil devastado
possibilidade de mobilização, certamen-
pelo coronavírus.
te não virá em prazo condizente com a
urgência de afastar Bolsonaro do cargo.
31 de maio de 2020.
E caso o caos social se apresente,
com massas desorganizadas de pessoas “As instituições estão funcionan-
em desespero saqueando mercados nas do”. Desde que o golpe de 2016 começou
periferias das cidades brasileiras, o que a ser deflagrado, esse foi o mantra dos
é uma possibilidade real, ele não gerará, setores conservadores. Uma presidente
como sonham alguns, uma “situação re- eleita pelo voto popular foi derrubada,
volucionária” – não com uma esquerda o pacto consignado na Constituição de
que já se provou tão incapaz de lideran- 1988 foi desmontado por decisão unila-
ça. É bem mais provável que nos condu- teral, conjuntos de direitos muitas vezes
za a um governo de “lei e ordem”, aber- anteriores à própria carta constitucional
tamente autoritário. foram varridos, mas as instituições esta-
vam funcionando. Setores do Judiciário e
O impeachment de Bolsonaro sig-
do Ministério Público conspiraram para
nifica tirar do cenário um fator de agra-
criminalizar um lado do espectro polí-
vamento da crise. Com ele na presidên-
tico, chegando a retirar ilegalmente da
cia, a linha divisória inicial é entre sanida-
disputa o favorito para as eleições de
de e insanidade – e, nesse caso, estamos
2018, conspurcando assim a legitimida-
muitas vezes constrangidos a permane-
de do pleito, mas as instituições estavam
cer no mesmo campo de Maia, Dória e
funcionando. Generais definindo a inter-
Witzel. Sem ele, ficam vencidos os temas
pretação da Constituição, perseguições
óbvios (a seriedade da pandemia, a ne-
macarthistas no serviço público e nas
cessidade da ação do Estado) e podemos
escolas e universidades, aumento da vio-
concentrar o debate nas questões mais
lência policial, seletividade escancarada
importantes: como enfrentar a crise,
do aparelho repressivo de Estado: insti-
quem deve ser socorrido prioritariamen-
tuições funcionando.
te, como dividir a conta. Nesse debate,
com propostas claras e realistas em de- O beneplácito do Supremo, ain-
fesa dos mais vulneráveis, a esquerda da que um Supremo “acovardado”,
pode obter vitórias importantes. como certa vez disse Lula, quando não
abertamente envolvido na destruição
da ordem constitucional e democrática

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

pela qual deveria zelar, por vezes cur- suas próprias bancadas no STF. Um epi-
vando-se a ameaças pouco disfarçadas sódio emblemático foi a queda de braço
de comandantes militares, equivalia ao envolvendo a liminar do ministro Marco
funcionamento das instituições. Ao que Aurélio Mello, em dezembro de 2016,
parece, era generalizada a compreensão destituindo Renan Calheiros da presi-
simplificadora e simplista, externada ain- dência do Senado. O Senado recusou a
da hoje por um colunista conservador: a cumprir a decisão e o Supremo recuou.
democracia equivale a aceitar que “a pa- Instituições funcionando, mesmo na
lavra final nas disputas é a do STF”. acepção minimalista e juridicista antes
apresentada?
No campo democrático, perguntá-
vamos: as instituições estão funcionan- Com a chegada de Jair Bolsonaro
do, mas para quem? Estava claro que, à presidência da República, era natural
desde o golpe de 2016, a estrutura jurí- que a situação se agravasse. Destinado
dica e política era subvertida para anular a ser uma figura secundária no retroces-
todos os componentes que sinalizavam so brasileiro, um mastim recolhido ao
concessões aos grupos dominados, des- canil quando se tornasse desnecessário,
nudando-se em seu caráter de classe. O atropelou seus aliados de ocasião e le-
Brasil parecia apresentar uma ilustração vou ao Planalto sua agenda extremista
particularmente dinâmica da percepção e desconexa, sua agressividade delibe-
de Poulantzas, de que o Estado é a con- rada e permanente, sua visão tacanha e
densação material de uma determinada sua inépcia administrativa. Bem tolera-
correlação de forças. Com a acelerada do enquanto entregava, graças a Paulo
mudança na correlação, em que os se- Guedes, aquilo que a classe dominante
tores populares perderam capacidade queria, tornou-se um estorvo desde que
de iniciativa e também de resistência, o a pandemia fez imperativo ter um gover-
Estado brasileiro passou rapidamente a no menos irresponsável e menos incom-
operar em outra chave, ainda que manti- petente. Mesmo Guedes, fundamentalis-
vesse a mesma Constituição. ta de mercado incapaz de virar o disco
quando as circunstâncias bradam por
É claro que não era tão simples. O essa mudança, está se tornando menos
golpe sinalizou que a força se sobrepu- atraente.
nha às regras vigentes. Como a coalizão
golpista estava longe de ser homogênea, Os descontentes, porém, ainda
já no governo Temer surgiram conflitos não são capazes de estabelecer um mo-
que seguiram a lógica do “quem tem o vimento forte pela retirada do ex-capitão
tacape maior”, em geral envolvendo a do cargo. Pesa a incerteza quando à po-
corrente messiânica do lavajatismo, de sição do vice, general Hamilton Mourão
um lado, e de outro as elites políticas tra- (caso o caminho seja o impedimento e
dicionais que chegaram ao centro do po- não a cassação da chapa, para a qual
der com o usurpador. Ambas, aliás, com também não escasseiam motivos). Pesa

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

também a incerteza quanto à posição da niriam a obtenção e o exercício do poder


cúpula do Exército, cada vez mais cha- na sociedade. Vigora um vale tudo que
mada a arbitrar disputas políticas, o que, resvala, perigosamente, para o uso da
aliás, é outro indício poderoso da deca- violência, a razão última do poder. Para
dência das instituições. E pesa, sobretu- escaparmos do pior, é necessário que a
do, o medo de perder aquilo que con- sombra cada vez mais palpável do fascis-
quistaram com o golpe: a condenação mo e as dezenas de milhares de cadáve-
do campo popular à irrelevância política. res acumulados pela gestão criminosa
da crise sanitária ensinem urgentemen-
Agrava-se, então, uma situação te, à nossa elite política, as lições que ela
marcada por repetidas escaramuças, tem se esforçado por desaprender nos
nas fronteiras da legalidade ou já fora últimos anos.
dela, entre os grupos que controlam
diferentes setores do Estado e que me-
dem forças. Isto se tornou particular-
mente visível no momento, com a ins-
trumentalização da Polícia Federal, seja 27. A ESQUERDA QUE
por Bolsonaro, seja pelo STF, ou com o ABRIU MÃO DA CRÍTICA
uso desabusado de chantagens do pre-
sidente da República sobre seu próprio Mesmo com a gestão criminosa da crise
procurador-geral, com o objetivo de blin- sanitária, Bolsonaro mantinha elevada
dar a si mesmo e aos filhos de acusações aprovação popular. Ao mesmo tempo, as
criminais. O vácuo de legalidade permi- querelas identitárias consumiam boa par-
te que o bolsonarismo caminhe para se te da energia de movimentos sociais.
tornar uma milícia armada, ao mesmo
tempo em que se tornam ostensivos os
24 de agosto de 2020.
acenos por uma interrupção violenta do
que resta da ordem instituída em 1988.
Este texto nasce em reação a duas
A institucionalidade que foi rompi- polêmicas que surgiram nas esquerdas
da para retirar do jogo o campo popu- nas últimas semanas – ou, antes, que res-
lar hoje se mostra incapaz de regular os surgiram, pois são cíclicas. Uma é sobre o
conflitos entre os grupos dominantes. Ao chamado “lugar de fala”. A outra, sobre
se colocar integral e indisfarçadamen- como caracterizar o comportamento de
te a serviço da dominação de classe, o pessoas que apoiam ativamente líderes
Estado brasileiro perdeu sua autonomia e políticas que, na prática, as condenam
relativa. Mas, no mesmo processo, a so- à morte; em particular, ao veto ao subs-
ciedade brasileira mergulhou numa es- tantivo “burrice”, tão chocante. Embora
pécie de anomia relativa. Uma parte das tenham sido debates separados, eu os
regras que deveriam organizar a vida so- aproximo aqui porque julgo que reme-
cial não impera mais: as regras que defi- tem a um denominador comum: a so-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

brevalorização da experiência crua dos Isso porque o lugar da fala não im-
agentes sociais, expressão do anti-inte- plica qualquer privilégio epistêmico (isto
lectualismo hoje dominante, e a conse- é, a ideia de que o dominado, só por ser
quente inibição de qualquer engajamen- dominado, já entende a dominação me-
to crítico com a autoexpressão dos pró- lhor do que qualquer outro). A expres-
prios agentes. são dos dominados é importante porque
traduz – em parte e com ruídos, como
A cada vez que ressurge, o deba- qualquer expressão – sua experiência,
te mostra permanecer exatamente no mas convém lembrar que essa experiên-
mesmo lugar em que estava antes. Essa cia também é conformada pela domina-
ausência de acúmulo na discussão, tão ção. A experiência bruta, assim, tem que
exasperante, é uma característica das ser ressignificada por meio de processos
mídias sociais, que recompensam pre- que, à falta de palavra melhor, podem
dominantemente a lacração que, para ser chamados de “conscientização”. Era
ser lacradora, tem que permanecer in- o papel dos grupos de mulheres do mo-
sensível às nuanças do real. É consequ-
vimento feminista dos anos 1960 e 1970,
ência também do anti-intelectualismo que foram cruciais para a difusão dessa
que rotula como “acadêmico”, portanto discussão – espaços que permitissem às
irrelevante, qualquer contribuição que mulheres construir uma compreensão
vá além da experiência imediata. E, por de suas próprias vidas a contrapelo das
fim, espelha o paradoxo de que quem representações patriarcais que as estru-
critica, relativiza ou complexifica a noção turam.
de lugar de fala não tem, por definição,
lugar de fala para tocar no assunto, logo Se tais espaços são necessários,
deve ser ignorado. eles não levam, de maneira nenhuma,
à imposição de vetos à participação no
É preciso, em primeiro lugar, enfa- debate público. Levam, isso sim, à exi-
tizar a importância que a noção de lugar gência por ampliação da pluralidade de
de fala e outras assemelhadas tiveram perspectivas que têm lugar neles.
e têm no combate a certo idealismo ra-
cionalista, que sonha com uma Razão Da mesma forma como o lugar de
descarnada que interpreta o mundo fala X não dá a quem o ocupa um pri-
permanecendo fora dela. Toda fala é so- vilégio epistêmico, ocupar o lugar não-
cialmente situada e isso é relevante para -X não torna a fala, só por causa disso,
a compreensão de seu sentido. O reco- irrelevante ou nociva. É um local exter-
nhecimento de que diferentes falantes no e continuará a sê-lo, não importa de
vão ver o mundo a partir de diferentes quanta empatia se revista – e ter consci-
posições sociais, porém, aponta para a ência dessa exterioridade importa para
necessidade de pluralização do debate, compreendê-lo. Mas pode contribuir.
não para alternância de silenciamentos Ou não. Só deixando que se manifeste
ou construção de guetos. no debate que isso pode ser aquilatado.

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Lembrando, também, que o não-com- da filosofia e em outros escritos, mas o


partilhamento de características pesso- fato é que a constituição da classe ope-
ais, de experiências de vida, até mesmo rária como sujeito político depende da
de crenças e de valores, em suma, tudo construção de uma identidade política
o que indica a exterioridade em relação comum. Se esse passo é indispensável
a uma determinada posição social, não para a ação política de qualquer grupo, é
implica necessariamente preconceito. A mais ainda para os dominados, cujas vi-
equivalência automática entre exterio- vências são desvalorizadas e que encon-
ridade e preconceito, que está implícita tram objetivamente, na estrutura social,
em algumas manifestações (e até explí- estímulos para uma identificação com os
cita em outras), é uma simplificação abu- dominadores.
siva que serve apenas ao propósito de
Mas há ao menos duas diferenças,
silenciar o debate.
ambas com enormes consequências, en-
Falei acima em perspectivas. Na tre a identidade da classe trabalhadora e
verdade, em vez de “lugar de fala”, prefi- a de outros grupos dominados. Em pri-
ro operar com a categoria “perspectivas meiro lugar, a classe trabalhadora se de-
sociais”. Ela tem a vantagem de marcar fine por um atributo comum da humani-
desde o início o caráter social das posi- dade, o trabalho, isto é, a capacidade de
ções de elocução e, portanto, o caráter transformação do mundo material. Os
socialmente produzido das diversas expe- outros grupos dominados apresentam a
riências, sem o apelo a noções essencia- exigência de serem incluídos em pé de
lizantes ou místicas, como “ancestralida- igualdade na humanidade comum, mas
de”, que se tornaram tão correntes em não têm como atributo peculiar aquilo
alguns discursos. que, como atributo geral, define a huma-
nidade enquanto tal.
O uso limitante do “lugar de fala”
está vinculado à degradação das reivin- Em segundo lugar, a classe tra-
dicações emancipatórias de grupos su- balhadora tem por projeto, ao menos
balternos (voltadas contra padrões so- na visão de Marx, a extinção de sua
ciais de dominação e de violência) em própria peculiaridade, com a emergên-
reclamos identitários. A identidade deixa cia de uma sociedade sem classes. Isso
de ser um instrumento para a constru- também não está ao alcance dos outros
ção de um sujeito político coletivo para grupos subalternos. Havia uma ambição
aparecer como um fim em si mesma. de apagamento da relevância social da
identidade, no feminismo que anteci-
De fato, não há luta política que pava uma sociedade gender-free ou no
não seja, em alguma medida, identitá- antirracismo voltado a uma sociedade
ria. Não desejo retomar a distinção algo de color blindness. Mas era, sempre, a
mecânica entre classe em si e classe para superação da valoração hierárquica da
si, que o próprio Marx faz em A miséria diferença, não da diferença em si mes-

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

ma. Hoje, a virada para uma política da mum de sociedade, até mesmo de alian-
diferença, em que ela é valorizada em si ças pontuais, e redireciona boa parte das
mesma, torna esta distinção ainda mais energias políticas para as batalhas fáceis
marcante. contra quem, errando ou não, deseja es-
tar a seu lado – aqueles que, como bem
Com isso, é perdido o acesso a lembrou Wilson Gomes, são os únicos
uma visão alternativa, que lê as identi- vulneráveis a essa estratégia.
dades também como prisões a serem
superadas, e à utopia de uma sociedade A discussão sobre o esclarecimen-
pós-identitária, em que características to dos apoiadores de Bolsonaro tomou
biológicas, como sexo ou cor da pele, feições diferentes, mas tinha em comum
serão plenamente irrelevantes para de- a ideia de que alguém que não participa
terminar comportamentos ou posições, de uma determinada realidade deve ser
e atributos sociais, como gênero ou raça, impedido de expressar qualquer apre-
deixarão até mesmo de existir, dissol- ciação sobre ela. Às vezes, ela deslizava
vendo-se na diversidade inclassificável para a exaltação romântica do “povo”
de uma humanidade livre. É possível dis- como depositário de todas as qualida-
cutir o quanto essa leitura é desejável ou des; com mais frequência, para a denún-
factível, mas é difícil negar que ela é, ao cia dos “acadêmicos” que, desconhece-
menos, digna de discussão. dores do mundo real e como sempre
arrogantes, exigiam uma clarividência
As duas diferenças indicam que a inalcançável para os mais pobres. Muitas
classe trabalhadora tem uma porta aber- vezes, era feita uma confusão entre a ne-
ta para a conexão com a universalidade cessidade de entender as escolhas feitas,
que falta a outros movimentos de cará- necessidade real e mesmo urgente, e a
ter emancipatório. Uma situação que obrigação de aceitá-las como esclareci-
se agrava com a reivindicação cada vez das ou razoáveis.
mais particularista, presente nas com-
preensões correntes, nas disputas polí- Entender a produção de leituras da
ticas, de “lugares de fala” privilegiados e realidade tão desinformadas e cognitiva-
mesmo monopolísticos. mente deficientes, que levam a escolhas
políticas objetivamente desastrosas, é
A discussão é complexa e tem importante exatamente porque elas não
múltiplas facetas, mas é difícil recusar são uma condição natural, nem sequer
pelo menos uma conclusão: a pluraliza- o fruto automático de determinada si-
ção das agendas emancipatórias da es- tuação. Vivemos um momento em que
querda é rica e necessária, mas a deriva o trabalho ideológico da direita assume
identitária, aliada à utilização lacradora características especiais, com um esfor-
de uma noção reducionista de lugar de ço concentrado de disseminação da ig-
fala, funciona como um cavalo de Troia. norância, de negação da possibilidade
Inibe a construção de um projeto co- de aprendizado e, também, de reforço

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

dos valores mais egoístas e mesquinhos. da formação social das preferências e


É preconceituoso, porém, julgar que pes- anula a existência de todos os mecanis-
soas em situação de privação são maté- mos ideológicos. A esquerda se aproxi-
ria passiva a ser moldada por essa ofen- mou dessa posição a partir da crítica –
siva – até mesmo porque muitas delas necessária – ao subtexto autoritário mui-
mostram capacidade de resistência. A tas vezes presente no uso da noção de
questão que se impõe é saber por que “falsa consciência”, que introduz a ideia
tantos à esquerda se mostraram tão des- de que haveria uma consciência “verda-
leixados, durante tanto tempo, na tarefa deira”, acessível ao intelectual ou ao líder
imprescindível de promover a educação partidário, donos de instrumentos para
política – que, convém lembrar, não é avaliar o grau de correção da consciência
“doutrinação”. É desfazer o trabalho da das “massas” e despreza a compreensão
ideologia e contribuir para que os des- que elas mesmas produzem a partir de
possuídos se construam como pessoas suas experiências.
capazes de pensamento autônomo.
Mas, se não é possível afirmar que
Em seu livro de memórias, falando há uma consciência verdadeira prede-
de seus vizinhos no Bronx, no entreguer- terminada, que os “reais interesses” dos
ras, Vivian Gornick escreve: “As pessoas indivíduos e dos grupos estão definidos
que trabalhavam como bombeiros, pa- de antemão, sem passar pelos agentes,
deiros ou operadores de máquinas de tampouco é possível apenas aceitar a
costura haviam se percebido como pen- consciência que emerge da vivência no
sadores, poetas e eruditos pelo fato de mundo social. Isso significa abandonar
serem membros do Partido Comunista”. o entendimento que as ideias das clas-
Acho melhor pensar que essa é uma ses dominantes têm maior capacidade
possibilidade a ser construída do que de serem universalizadas e a crítica aos
permanecer no refúgio fácil da condes- padrões de manipulação aos quais es-
cendência, que julga que “não tem como” tamos submetidos. Nossa tarefa – espi-
ser diferente e, por isso, absolve a priori nhosa, admito – é, como escreveu Žižek,
a tudo e todos. permanecer numa “posição impossível”,
que reconhece que não há “nenhuma
Se for para entender como se linha demarcatória clara que separe a
constrói essa recusa, que nega a debili- ideologia e a realidade”, mas que, ainda
dade cognitiva de compreensões da rea- assim, sustenta a tensão entre ideológi-
lidade tão objetivamente insatisfatórias, co e real “que mantém viva a crítica da
é possível vê-la partindo de duas visões ideologia”.
alternativas. Uma é a adesão ao credo
liberal-utilitarista de que “cada um é o A outra alternativa é uma condes-
melhor juiz de seus próprios interesses”. cendência arrogante, travestida de bom-
Ele interdita qualquer escrutínio dos dis- -mocismo, que julga que, prisioneiras de
cursos alheios, nega validade à questão suas próprias condições, aquelas pesso-

83
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

as estão condenadas a abraçar determi- comuns e de responsabilidade. A ideia


nados comportamentos. É uma empatia de uma frente ampla nasceu, então, do
superficial, brumosa, tingida de precon- reconhecimento por parte de políticos,
ceito. O caminho que aponta é a filantro- empresários e jornalistas conservadores,
pia ou o paternalismo. Para quem julga no contexto da crise sanitária, de que os
que “a emancipação da classe trabalha- serviços que Bolsonaro podia prestar a
dora deve ser obra dos próprios traba- seus interesses não compensavam a in-
lhadores”, não é uma posição aceitável. sanidade que era mantê-lo à frente do
A empatia revolucionária com os desva- país. E do apoio a ela por muitos, nos
lidos não romantiza suas consciências, movimentos sociais e na esquerda, con-
não abre mão da crítica e, muito menos, victos de que nossa sina seria repetir o
abdica do trabalho de fornecer ferra- caminho que levou ao fim da ditadura
mentas para que superem seus limites. militar.

Um primeiro sinal veio na co-


memoração unificada – e virtual – do
Primeiro de Maio pelas centrais sin-
28. UM DEFUNTO SEM dicais. Em nome do combate comum
VELA pela democracia, notórios inimigos da
classe trabalhadora foram convidados
Ensaiado por parte da direita tradicional, a falar, de Fernando Henrique Cardoso
no momento em que parecia urgente se e Dias Toffoli a Rodrigo Maia, João Dória
afastar de Bolsonaro, o projeto de uma e Wilson Witzel. A maioria deles acabou
“frente ampla” mostrou fôlego curto. não gravando suas mensagens, devido à
repercussão negativa, mas o episódio já
sinalizava que, para as lideranças sindi-
2 de outubro de 2020.
cais, era hora, uma vez mais, de trocar
as reivindicações classistas pela defesa
Entre os muitos mortos do Brasil
das “liberdades democráticas”, aceitan-
nos últimos meses, há um pelo qual
do abraçar aqueles que haviam dado o
não vale derramar uma única lágrima: a
golpe de 2016 e destruído os direitos tra-
“frente ampla” pela democracia.
balhistas.
Quando a condução perversa do
No final do mesmo mês de maio,
combate à pandemia escancarou a na-
os jornais estamparam o manifesto do
tureza do atual governo, escandalizan-
“Juntos”, com uma ampla lista de signa-
do mesmo muitos de seus parceiros de
tários que incluía desde pessoas com os
ocasião na direita “civilizada”, parecia
pés solidamente plantados na centro-
que era inevitável retirar Bolsonaro do
-esquerda ou mesmo na esquerda até
cargo. Motivos não faltariam, já que sua
Fernando Henrique Cardoso, Cristovam
gestão se constitui, desde os primeiros
Buarque, Roberto Freire, Armínio Fraga,
dias, como um mostruário de crimes –

84
Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

Luciano Huck, Lobão e Tábata Amaral. alargar e democratizar a disputa política,


O texto não falava em impeachment e não a esconder em nome de um elusivo
não citava Bolsonaro. Ostensivamente, “projeto comum de país”. Já o Juntos alar-
era um chamamento à união nacional. deava “princípios éticos e democráticos”
“Clamamos que lideranças partidárias, abstratos e vagos, mas era incapaz de
prefeitos, governadores, vereadores, enunciar o que de fato propunha. Julgar
deputados, senadores, procuradores e que era o afastamento de Bolsonaro do
juízes assumam a responsabilidade de cargo ficava a critério de cada freguês. A
unir a pátria e resgatar nossa identidade roupagem de defensores da democracia
como nação”. “Invocamos que partidos, caia mal em tantos que recém haviam se
seus líderes e candidatos agora deixem unido para golpeá-la com o afastamento
de lado projetos individuais de poder em ilegal de uma presidente e a perseguição
favor de um projeto comum de país”. “É judicial e midiática a toda a esquerda.
hora de deixar de lado velhas disputas
Como de costume nesse tipo de
em busca do bem comum”. “Esquerda,
manifesto, o preço que se esperava que
centro e direita unidos para defender a
a esquerda pagasse, para a direita “ci-
lei, a ordem, a política, a ética, as famí-
vilizada” fazer frente comum contra o
lias, o voto, a ciência, a verdade, o res-
fascismo, era abrir mão de seu próprio
peito e a valorização da diversidade, a
discurso. O desespero com a situação
liberdade de imprensa, a importância da
levou muitos para esse caminho, mas a
arte, a preservação do meio ambiente e
experiência mostra que ele se revela um
a responsabilidade na economia”.
péssimo negócio. Ao fazer com que lide-
O tom conservador era denuncia- ranças da esquerda abram mão do pro-
do aqui e ali. A própria ideia de união jeto que as define, ele reforça a posição
nacional é, classicamente, um chama- da ideologia dominante como chão co-
mento ao abandono das reivindicações mum e fronteira final da disputa política.
da classe trabalhadora. Além disso, ha- Reduz os horizontes da disputa política
via as referências à defesa da “ordem”, e enfraquece a exigência de uma trans-
à “responsabilidade na economia” etc. formação social profunda. A democracia
Muitos quiseram, no entanto, ver ali o que se propõe a defender é, de partida,
pontapé inicial de um movimento amplo severamente limitada.
para derrubar Bolsonaro e restaurar a
A “amplitude” da frente exigia
democracia e o Estado de direito. Uma
apagar a linha de continuidade que une
referência do manifesto ao movimento
Bolsonaro ao golpe de 2016. Por con-
das Diretas Já reforçava essa leitura: to-
sequência, não se podia tocar nas arbi-
dos pela democracia. O paralelo históri-
trariedades cometidas, no desmonte da
co, porém, era equivocado. As Diretas Já
Constituição de 1988, no lawfare contra
foram um movimento amplo em busca
Lula e o PT. O processo de criminaliza-
de um objetivo pontual, a volta das elei-
ção da esquerda seria revertido, talvez,
ções diretas para presidente, que visava

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

na medida em que a esquerda deixasse te murchou. Houve a oposição vigorosa


de sê-lo. A macarthização do debate pú- de setores da esquerda, incluindo, com
blico, com o veto à expressão de tantas destaque, os ex-presidentes Lula e Dilma
posições, se abrandaria conforme as vo- Rousseff. Mas, sobretudo, ela deixou de
zes dissidentes optassem pela autocen- ser útil para a parte da direita que a ani-
sura. Em suma: teríamos a democracia mara – por ter cumprido uma boa parte
de novo, desde que com o compromisso daquilo a que se destinava.
de não a usar para enfrentar os padrões
A queda de Bolsonaro nunca foi
de dominação vigentes na sociedade.
o único resultado esperado dessa movi-
O grande problema do golpe sem- mentação. A outra opção era domesticar
pre foi como encontrar o caminho para o ex-capitão. Menos de duas semanas
sua normalização. Isto é, como deixaria após a divulgação do manifesto, o pre-
de ser o ato de força que foi e teria seu sidente nacional do PSDB já descartava
legado (em retrocesso de direitos, redu- a possibilidade de impeachment – logo
ção do Estado e rompimento de políticas ele, que fora resgatado do baixo clero
igualitárias, desnacionalização da econo- parlamentar pelo acaso de ter dado o
mia) incorporado de vez à vida nacional. voto decisivo no impeachment fraudulen-
No sonho dos golpistas, a normalização to que destituiu Dilma Rousseff. Mais do
se daria com a eleição de Alckmin em que esse canto de sereia, o que moveu
2018: um conservador que encarnava o Bolsonaro na direção desejada foi a pri-
programa dos retrocessos, mas que re- são de Fabrício Queiroz, que o fragilizou
ceberia o aval das urnas. O eleitorado, e fez com que baixasse o tom em suas
porém, não se dispôs a cumprir seu pa- disputas com o Legislativo e o Judiciário.
pel nesse script. Em setembro, às vésperas de encerrar
seu constrangedor mandato como presi-
A “frente ampla” aparecia, então, dente do STF, Dias Toffoli sacramentou
como nova oportunidade de normaliza- o grande acordo nacional, declarando:
ção do golpe. Ao fazer com que a esquer- “Nunca vi atitude de Bolsonaro contra
da brasileira aceitasse ficar a reboque da democracia”.
direita “civilizada”, abrindo mão de toda
a sua agenda em nome nem sequer da O presidente fala um pouco me-
democracia representativa, mas sim- nos. Os cargos para o Centrão são libe-
plesmente de um regime menos iliberal, rados. Em especial, ele parece estar en-
Bolsonaro cumpriria seu último serviço tendendo que o mandato não é só dele,
aos golpistas de 2016: ser o bode na sala. mas do conjunto de forças que permitiu
que ele chegasse lá.
Depois de algum tempo, incluin-
do uma fracassada manifestação virtual Mas nada nas políticas concretas
pela “democracia” que programara in- do governo mudou. A pandemia prosse-
tervenção até de Michel Temer, a fren- gue, descontrolada, e enquanto a pro-

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metida vacina – russa, chinesa ou ingle- 29. DAS ELEIÇÕES DE 2020


sa – não vier, a única coisa que a freia ÀS DE 2022
é a diminuição do estoque de potenciais
infectados. A devastação ambiental está
A lição das eleições municipais de 2020:
no auge. Os indícios das práticas corrup-
o único jeito de impedir a reeleição de
tas de Bolsonaro e de sua família não pa-
Bolsonaro é intensificar o trabalho político
ram de crescer. O boicote à educação e à
cotidiano.
ciência é permanente. Agressões grotes-
cas aos direitos das mulheres, dos povos
indígenas, da população negra, da co- 7 de dezembro de 2020.
munidade LGBT, ocorrem todos os dias.
Mas parece que chegamos a uma nova Passadas as eleições municipais,
“normalidade”. Mesmo os órgãos de im- as atenções se voltam para 2022. É essa
prensa hostilizados por Bolsonaro, um a armadilha da política eleitoral, que ca-
presidente que tem (como é evidente naliza nossas energias e nossas esperan-
sobretudo no caso do Grupo Globo) tra- ças para uma disputa estruturalmente
balhado para miná-los financeiramente, enviesada a favor de quem controla o
cuidam em primeiro lugar de não pre- dinheiro e a informação.
judicar a “agenda positiva” do governo:
É fácil prever que Bolsonaro es-
privatizações, destruição do Estado por
tará no segundo turno, partindo de cer-
meio da reforma administrativa, precari-
ca de um terço dos votos. Ele hoje não
zação generalizada nas relações de tra-
tem partido, mas tem a força que lhe
balho.
dão o balcão de negócios presidenciais
A resistência ao governo e a atração exercida pelos favoritos.
Bolsonaro será protagonizada pela clas- Além dos pequenos partidos aliados a
se trabalhadora e demais grupos domi- ele, como PRTB e Patriota, conta já com
nados. Setores insatisfeitos das classes o Republicanos e provavelmente com
dominantes podem dar apoio pontual Progressistas e PTB. Em suma, é um pre-
aqui e ali – o apoio é tão pontual quanto sidente no cargo, disputando a reeleição,
são pontuais suas insatisfações. Atrelar com uma base partidária forte. Dá para
a nossa estratégia à deles, subordinar a esperar que faça algo entre 35 e 40% dos
nossa agenda à deles, é o caminho certo votos no primeiro turno.
para a derrota. A morte, desde o princí-
A parte do PSL que se desgarrou
pio anunciada, da “frente ampla” serve
de Bolsonaro ficará entre se recom-
de lição.
por com ele ou seguir o caminho de
Alexandre Frota e aderir a Doria. Ainda
na extrema-direita, o Novo, com cresci-
mento de sua ala bolsonarista, chegará à
eleição sob enorme tensão. A política se

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revelou mais complicada do que os en- Fernando Haddad. O estoque de votos


gomadinhos do Itaú imaginavam. que o lulismo é capaz de mobilizar fica
na faixa dos 25%. O que é mais prová-
A redução do tamanho do PSDB vel, portanto, é um novo segundo turno
nas eleições municipais frustrou a pre- entre Bolsonaro e um candidato apoiado
tensão de Dória de se firmar como nome por Lula.
incontestável da direita que agora quer
parecer democrática. É difícil que os tu- Nele, a crer em todos os indícios,
canos consigam contentar todos os alia- a direita que se quer democrática joga-
dos de que precisam para impulsionar rá novamente todos os escrúpulos às
a candidatura do governador paulista favas e apoiará o ex-capitão, uns mais
(MDB, PSD e DEM). alegremente, outros de forma mais en-
vergonhada. Com a mídia a seu favor,
É provável que alguns desses par- os empresários, os pastores, a máqui-
tidos busquem uma alternativa própria na pública, as fábricas de fake news – eis
à direita (Luciano Huck, o cada vez mais que Bolsonaro ganha um novo manda-
improvável Sérgio Moro ou outro) e/ou to. Agora, quem sabe, com Damares de
embarquem na canoa de Ciro Gomes, vice: representatividade é tudo, não é
que pretende se firmar como nome de mesmo?
“centro” – por isso se distancia delibera-
damente do PT. Como impedimos isso?

Dificilmente uma manobra como Não é mexendo as peças no xa-


a de Lula em 2018, que suprimiu o apoio drez eleitoral. Nele, imperam as vaidades
do PSB a Ciro, vingará outra vez. Mas Ciro e os interesses de curto prazo, que as in-
terá que ser capaz também de costurar certezas vigentes só agudizam. Mesmo a
múltiplos apoios, projetando a imagem submissão da esquerda ao novo centro
de que é capaz de superar seu teto (em personificado em Ciro, que vejo muitos
torno de 12% dos votos). O fraco desem- defendendo por desespero e que possui
penho do PDT nas eleições passadas não efeitos danosos suficientemente fortes
ajuda. para que seja desaconselhada, não leva
a nenhuma garantia de êxito.
É de se esperar, portanto, três ou
quatro candidaturas em princípio com- Também não é esperando uma
petitivas tentando ocupar o mítico espa- bala de prata. Já surgiram muitas: vaza
ço do “centro”, o que leva a prognósticos jato, ameaças ao Supremo, Queiroz, co-
não muito bons para todas elas. ronavírus. Nenhuma funcionou. Quem
botou Bolsonaro no poder – e não estou
À esquerda, há espaço apenas falando de seus eleitores – sabe muito
para uma candidatura competitiva, que bem o que quer e por isso prefere man-
concentrará os votos. Será a candidatura tê-lo.
que Lula apoiar – hoje, tudo indica, a de

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O único jeito de impedir a reelei- no Brasil depende da organização da clas-


ção de Bolsonaro é intensificar o trabalho se trabalhadora e de seus aliados.
político cotidiano, organizando os vastos
setores que são vítimas do atual gover- 26 de janeiro de 2021.
no para resistir e lutar contra os flagelos
gêmeos do autoritarismo e do neolibe- Os dois primeiros anos de gover-
ralismo. Esse é o trabalho a ser feito. O no Bolsonaro, é preciso reconhecer, não
resultado eleitoral pode ser consequên- decepcionaram. O presidente mostrou
cia dele, mas não é seu único horizonte. ser, no cargo, exatamente o que revela-
Política se faz muito além das urnas. ra ao longo da campanha eleitoral e de
toda sua vida pública pregressa.
Se conseguirmos derrotar
Bolsonaro, precisaremos de mobilização Se houve alguma surpresa, foi que
para garantir que um governo democra- Bolsonaro, a despeito de toda sua incapa-
ta seja realmente capaz de governar. Se cidade administrativa e aparente dificul-
ele for substituído por uma direita me- dade cognitiva, soube navegar em meio
nos caricata ou um “centro” qualquer, a ao arco de apoios que viabilizou sua elei-
mobilização será necessária para impe- ção e chegou ao meio do mandato mais
dir que tenhamos simplesmente uma forte do que começara. Desvencilhou-se
política neoliberal com um sorriso no de um de seus “superministros”, Sérgio
rosto. Moro, com desgaste político mínimo.
Quanto ao outro, Paulo Guedes, fez com
E se infelizmente ele ganhar mais
que engolisse a empáfia e se submetes-
uma vez, embalado pelo aval das urnas
se docilmente às ordens do chefe.
para um segundo mandato ainda mais
destrutivo, aí mesmo é que nossa resis- Bolsonaro ampliou o comprome-
tência será mais necessária do que nun- timento das Forças Armadas com seu
ca. governo, sem aceitar a tutela que os ge-
nerais queriam impor a ele. Enquadrou
os olavistas e transformou o “guru”
de candidato a eminência parda a um
30. ROTA BLOQUEADA apoiador como qualquer outro. Acertou
o passo nas negociações com o Centrão
e passou a dispor de uma base alargada
“Democracia” não é um terreno neutro de no Congresso, ainda que instável, como
resolução dos conflitos. É a expressão da toda base parlamentar venal. Ampliou
força dos grupos dominados para resistir sua influência sobre as polícias, avançan-
à dominação. A retomada da democracia do na direção de uma meta estratégica,
que é garantir a lealdade pessoal de cor-
pos armados.

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Colocou em cargos sensíveis do do terá havido um governo tão eviden-


Ministério Público gente disposta a prote- temente lesivo ao interesse nacional, de
gê-lo. Entre concessões e ameaças, che- qualquer forma que ele seja entendido.
gou a um modus vivendi com o Supremo.
Mesmo diante de um governo as-
Com isso, alcançou um de seus objetivos
sim, as famosas instituições não são ca-
centrais: os vários esqueletos que o as-
pazes de atingir um consenso em favor
sombravam (das rachadinhas ao assassi-
de retirá-lo do cargo. Bolsonaro sabota
nato de Marielle) estão há muito já fora
as medidas de saúde pública, mal escon-
dos armários, mas perderam a capacida-
de suas ligações com o crime organiza-
de de atingi-lo.
do, aparelha o Estado para proteger a si
A pandemia do novo coronaví- mesmo e seus familiares, difunde men-
rus levou, de forma talvez inesperada, a tiras com o objetivo de tumultuar o jogo
uma aceleração do distanciamento entre político, namora à luz do dia com a ideia
Bolsonaro e seus aliados de ocasião na de um novo golpe, transformou o país
direita mais tradicional, como João Doria num pária da comunidade internacio-
e Rodrigo Maia. Em aposta que parecia nal, fez do servilismo diante dos Estados
arriscada, ele jogou tudo no negacionis- Unidos o norte da política externa, pro-
mo e na irracionalidade, sacrificando as move a ampliação do desemprego, da
políticas de saúde em favor do fortaleci- miséria e da fome. Mas o que se vê são
mento de sua persona política. Mostrou as lideranças do PSDB e do DEM preocu-
que entende seu país: um país que des- padas em evitar a “instabilidade” que um
preza a vida, seja por interesse ou por processo de impeachment ocasionaria e
desespero, e que cada vez mais se espe- ministros do STF indo periodicamente
lha na violência. Graças a isso e ao auxílio a público afiançar que o presidente da
emergencial aprovado contra sua vonta- República não constitui nenhuma ame-
de, mas que ele soube capitalizar a seu aça à democracia brasileira, muito pelo
favor, foi capaz de manter altos índices contrário.
de aprovação popular mesmo em meio
Uma democracia, diga-se de pas-
ao colapso do atendimento hospitalar e
sagem, que mal merece o nome. A presi-
de mortes contadas diariamente na casa
dência de Bolsonaro, mais do que causa,
das centenas ou do milhar.
é sintoma de sua decadência. É uma pre-
É impossível calcular com exatidão sidência viabilizada pelo golpe de 2016,
quantas vidas o boicote de Bolsonaro às que fraturou a ordem determinada pela
medidas de combate à pandemia já cus- Constituição de 1988; pela Operação
tou e ainda vai custar – da campanha Lava Jato, que instrumentalizou o Poder
contra o isolamento social e da promo- Judiciário para a perseguição de grupos
ção da cloroquina até a sabotagem da políticos; e pela prisão arbitrária do ex-
vacinação. Certamente são muitos mi- -presidente Lula, para a qual não falta-
lhares. Raras vezes na história do mun- ram pressões explicitas da cúpula mili-

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tar. Ela é uma demonstração de que a o campo popular fosse aceito sequer
classe dominante brasileira julga que, como interlocutor no debate. O apoio a
neste momento, a democracia política Bolsonaro no segundo turno, recusando
não convém a seus interesses. qualquer possibilidade de diálogo com
a moderada candidatura de Fernando
O Brasil é um caso particularmen- Haddad, já indicou a radicalidade com
te extremo daquilo que há tempos vem que esse caminho era abraçado – e, mais
sendo chamado de desdemocratização. ainda, a prolongada leniência diante de
A palavra não indica apenas – como nas um governo tão insensato e destrutivo.
obras sobre a crise da democracia que
o mainstream da Ciência Política pro- Como revelaram nitidamente as
duz desde a vitória eleitoral de Donald fracassadas movimentações em favor de
Trump, em 2016 – o sucesso de líderes uma frente ampla contra Bolsonaro, em
autoritários que se esforçam por des- meados de 2020, o preço a pagar para
truir, a partir de dentro, o arcabouço uma “normalização” democrática seria
institucional próprio das democracias aceitar os retrocessos e, em especial, o
liberais. Ela indica que o espaço das de- veto a qualquer protagonismo de orga-
cisões a serem tomadas de forma de- nização e atores políticos vinculados aos
mocrática, exigindo respaldo popular, é interesses populares. Em suma: a nor-
cada vez mais limitado, isto é, que o po- malização democrática projetada pelas
der de veto das grandes corporações, do classes dominantes passa pelo impedi-
capital financeiro, dos credores das dívi- mento da retomada de qualquer dinâmi-
das públicas é cada vez maior. O avan- ca política que se aproxime da democra-
ço do chamado “populismo de direita”, cia.
que acionou o sinal de alarme em tantos
É que a direita tradicional se afir-
cientistas políticos, é antes um efeito dos
ma como oposição a Bolsonaro e de fato
sentimentos de alienação e de desilusão
se diferencia dele em muitos pontos, por
com os mecanismos de expressão polí-
convicção ou por oportunismo. Mas a
tica disponíveis nos regimes concorren-
desdemocratização é também seu pro-
ciais, que a desdemocratização agravou.
jeto. É o caminho para anular a possibi-
No caso do Brasil, o centro da nar- lidade de que os direitos políticos sejam
rativa é ocupado pela insatisfação cres- usados para reduzir as desigualdades e
cente da classe dominante e dos setores construir uma sociedade mais justa.
de classe média que ela atrai para sua
O que o processo global de des-
órbita com o (modesto) avanço civilizató-
democratização mostrou foi que a de-
rio obtido nos governos do PT. O golpe
mocracia, por mais que seja comumente
de 2016 e o governo Temer apontavam
apresentada como um terreno neutro
na direção de uma redução do espectro
de regras justas para resolver dispu-
do politicamente possível, com a imposi-
tas políticas, é de fato uma conquista
ção de retrocessos importantes sem que

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Pílulas de Bom Senso – use sem moderação!

dos dominados e só é capaz de se sus- sanitário. Mas a ideia da bala de prata


tentar na medida em que eles tenham revela a permanência da ilusão da nor-
força para tanto. Ele revelou a fraqueza malidade institucional: alguns fatos são
do consenso liberal sobre a democracia tão graves que obrigariam a uma reação
procedimental, louvada em prosa e ver- das instituições políticas em defesa da
so ao final da Guerra Fria, e a futilidade ordem que elas encarnam. Não é assim.
das teorias idealistas da democracia que Enquanto Dilma foi derrubada à base de
prosperaram mesmo nos meios críticos pretextos de ocasião, Bolsonaro continu-
(como a “democracia deliberativa”) – que ará cometendo crimes de responsabili-
formam o equivalente secular das dispu- dade dia sim, dia também, sem ser toca-
tas escolásticas sobre o sexo dos anjos. do, enquanto se considerar que retirá-lo
do cargo põe em risco o projeto de retro-
No caso do Brasil, a situação é ain- cesso social e de desdemocratização.
da mais dramática porque nossas clas-
ses dominantes têm baixíssima tolerân- Pode ser que Bolsonaro conclua
cia à igualdade social. Mesmo em doses seu mandato e até conquiste outro.
homeopáticas, ela causa reações extre- Pode ser que seja interrompido no meio
mas. Por isso, apesar de todas as críticas do caminho. Mas convém não esquecer
que lhe fazem, Bolsonaro é tolerável. a complacência das instituições, a tole-
rância da elite política conservadora, a
O governo Bolsonaro expõe a im- cumplicidade da burguesia diante de um
possibilidade de construção democrá- governo criminoso, antinacional e liber-
tica no Brasil sem o enfrentamento do ticida. O risco é aceitar que a normali-
imperialismo e do capitalismo. Qualquer zação pós-Bolsonaro entronize a ordem
avanço será tíbio e instável se não hou- que emerge da desdemocratização.
ver uma correlação de forças que o ga-
ranta, isto é, se não houver capacidade
de pressão da classe trabalhadora e dos
outros grupos dominados.

Ainda atordoada pelas sucessivas


e graves derrotas que sofreu nos últimos
anos (“esse inimigo não tem cessado de
vencer”, como diria Walter Benjamin), a
esquerda mostra dificuldade para en-
contrar o caminho da mobilização e da
organização popular. Muitas vezes, pare-
ce esperar pela mítica bala de prata que
derrotará o bolsonarismo com um úni-
co disparo – as revelações da Vaza Jato,
a prisão de Queiroz ou mesmo o caos

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Sindicato Nacional dos Associação dos
Servidores do Ipea Funcionários do Ipea

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