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O dedo /Resumo

Achei um dedo na praia. Eu ia andando em plena manhã de sol por uma praia meio selvagem
quando, de repente, entre as coisas que o mar atirou na areia – conchas, gravetos, carcaças de
peixes, pedras -, vislumbrei algo diferente. Não gosto nada de contar esse episódio assim com
essa frieza, como se ao invés de um dedo eu tivesse encontrado um dedal. É bem capaz de
exigir que eu morra como as santas.

Mas então eu ia dizendo que passeava por uma praia completamente solitária, nem biquínis,
crianças ou barracas. O sol batia em cheio na areia brilhante, viva, cheia de coisas do mar de
mistura com coisas coisa da terra longamente trabalhadas pelo mar. Guardei na sacola uma
pedra cinzenta, tão polida que parecia revestida de cetim. O dedo não guardei não.

Não senti nenhum medo ou asco quando descobri o dedo meio enterrado na areia, uns restos
de ligamentos e tecidos flutuando na espuma das pequeninas ondas. Lavado e enxague, o
dedo parecia ser da mesma matéria branca dos peixes, não fosse a mundana presença do anel,
toque sinistro numa praia onde a morte era natural. Inclinara-me para ver melhor o estranho
objeto quando notei o pequeno feixe de fibras de algodão emergindo na areia banhada pela
espuma. Agora que água se retraíra eu podia ver um aro de ouro brilhando em torno da
vértebra, cingindo-a fortemente, enfeixando as fibras que tentavam se libertar, dissolutas.

Com a ponta do cipó, revolvi a areia. Era um dedo, dedo anular, provavelmente, com um anel
de pedra verde preso ainda à raiz intumescida. Unha de mulher burguesa, bem cuidada, à
altura do anel de joalheiro de classe que se esmerou na cravação da esmeralda. Mas naquele
estado de despelamento, o fragmento do dedo trabalhado pela água acabara por adquirir a
feição de um simples fruto do mar.

Contudo, havia o anel. A dona do dedo. Mulher rica, um anel daqueles devia ser de mulher rica
e de meia idade, que as jovens não usam joias, só as outras. O biquíni verde combinando com
o anel.

A pedra verde no dedo. Ou a personagem real de um crime, crime passional, é evidente,


enfraquecida a hipótese de latrocínio pela presença do anel. O flagrante da traição, "Ai, como
dói!" A premeditação no escuro, tão profundo o silêncio no quarto que podia se ouvir o
murmurejar do pensamento, roque-roque. No banheiro cintilante a proximidade da água
facilita demais, os crimes deviam ser cometidos perto de cascatas.

E a praia deserta, o homem feliz não tinha camisa, só maiô. A pedra brilhava num tom mais
escuro do que a água. No quadro, o insólito era representado por uma gota de sangue
pingando nítida da ponta do dedo. E o anel.

A primeira pessoa que passar por aqui vai levar esse anel, pensei. Eu mesma – ou melhor, a
outra, a lúcida, com falsa inocência não chegou a insinuar que eu devia guardar o anel na
sacola? "Mais um objeto para sua coleção, não é uma linda pedra?" Expulsei-a, repugnada.
Cobri-o com o tacão do sapato e na areia tracei uma cruz, intuí se tratava de um dedo cristão.
Quando me voltei pela última vez, a água já tinha apagado tudo.

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