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Almeida - 2006 - Dilemas Do Reconhecimento Apresentação Ao Artigo de Nancy Fraser
Almeida - 2006 - Dilemas Do Reconhecimento Apresentação Ao Artigo de Nancy Fraser
As analogias entre a teoria de gênero e aquelas Fraser propõe no artigo que o foco esteja nas
questões trazidas pelas diferenças raciais, étnicas duas dimensões. Por um lado na justiça eco-
e culturais se tornam evidentes. Movimentos nômica pela redistribuição, e por outro no re-
sociais recrudescem na defesa de determinadas conhecimento cultural e o devido respeito às
identidades, por um lado, ao passo que a teoria diferenças. Trata-se de uma distinção analítica
pós-estruturalista questiona a essencialização entre dois campos: um mais propriamente da
destas identidades promovidas pelo movimen- economia política e outro cultural, embora ela
to social e pelo senso comum, demonstrando considere as correlações entre eles. Fraser desta-
como são construtos sociais, políticos e histó- ca neste e noutros trabalhos que não é possível
ricos, e desnaturalizando alguns de seus aspec- excluir do debate a dimensão da desigualdade
tos. Na teoria de gênero anglo-saxã esta questão econômica e de classes no sentido estrito, e a�r-
torna-se evidente e ponto central de re�exão ma que esse tema estaria perdendo espaço na
de algumas autoras (como Judith Butler, com agenda política e teórica contemporânea com
quem Fraser mantém um longo debate). Mes- o �m do socialismo e a crescente ampliação do
mo quando tais teóricos estão comprometidos processo de globalização. Mais do que isso, a
com o movimento político, ou seja, defendem autora defende que o apagamento da questão
uma prática política feminista ou anti-racista, de classe estaria sendo impulsionado por uma
a teoria provoca dilemas e impasses para o mo- visão que tende a negar o problema da desi-
vimento, pois este se baseia em categorias uni- gualdade econômica e de classes como se ela
�cadas, como “mulher” ou “negro”. Ademais, pudesse ser superada no mundo do consumo
mesmo no âmbito dos movimentos sociais tais e das especi�cidades identitárias, e como se tal
categorias foram problematizadas pela percep- não �zesse mais sentido num mundo “pós-so-
ção de um mundo social marcado por múltiplas cialista”. Para Fraser é preciso ter um modelo
diferenças e desigualdades – de classe, “raça”, bidimensional em termos analíticos, mesmo
etnia ou cultura, gênero, sexualidade, entre ou- que na prática tal distinção seja difícil e ainda
tros. Esta percepção coloca novos dilemas para que seja evidente que em vários exemplos em-
os movimentos sociais, mas também para a teo- píricos a desvalorização cultural de um grupo
ria de gênero, para os estudos sobre raça e para esteja diretamente relacionada a seu acesso a re-
a teoria social. cursos e direitos, ao passo que seu menor acesso
O texto de Fraser que é traduzido a seguir2 a recursos promova uma construção simbólica
insere-se em um debate mais amplo da autora como um grupo que “vale menos”. A distin-
com Axel Honneth, que, ao lado de Charles ção é mais evidente nos exemplos opostos de
Taylor, reforça que a questão central do mundo movimentos sociais calcados na diferença de
contemporâneo é a luta por reconhecimento3. classe – com foco na questão da distribuição
de maneira mais evidente, embora contemple o
2. A primeira versão, mais longa do que esta tradução, componente cultural –, por oposição ao exem-
foi publicada em 1995, e uma versão ainda mais ex- plo dos movimentos calcados na sexualidade,
pandida está em seu livro Justice Interruptus: Critical
como o movimento homossexual – cujo foco
Re�ections on the “Postsocialist” Condition (1997).
3. O debate entre Honneth e Fraser é explicitado no seria o reconhecimento, embora sua desvalori-
livro de Nancy Fraser & Axel Honneth, Redistribu- zação cultural afete seu acesso a direitos, como
tion or Recognition? A Political-Philosophical Exchange direitos relativos ao casamento.
([1998] 2003). O trabalho de Honneth tem também Outro aspecto relevante deste artigo é a
uma tradução para o português, intitulado Luta por aproximação evidente entre gênero e “raça”,
Reconhecimento (Honneth 2003).
pois são ambos exemplos de coletividades biva- de cultura. “A cultura é um terreno legítimo
lentes que revelam tanto problemas de redistri- e mesmo necessário de disputas, um espaço de
buição como de reconhecimento. A distinção injustiça em si mesmo, e fortemente imbricado
lhe parece mais fundamental quando discute os com a desigualdade econômica” (: 109). Cultu-
remédios para compensar tais demandas e suas ra não é um todo fechado, nem uma unidade.
complexidades – o remédio para redistribuição É um lugar de disputas de sentido, associadas
reforçaria a igualdade, ao passo que o remédio a formas de desigualdade econômica e política.
para o reconhecimento marcaria a diferença e Há sentidos que podem desvalorizar e colocar
a especi�cidade do grupo. A aproximação en- alguns indivíduos em posições sociais desfa-
tre gênero e raça também é feita teoricamente voráveis. Em “Rethinking Recognition”, Fraser
pela desnaturalização e desconstrução das di- destaca que está usando o conceito de classe so-
ferenças, quer seja pela desconstrução do sexo cial no sentido de status de Weber. Relaciona a
operada pelo próprio conceito do gênero, ou questão do reconhecimento ao status individual
pela desconstrução da “raça” ou da identidade e ao acesso às formas de poder. “A dimensão do
étnica. Este texto revela como Fraser agrega a reconhecimento (...) refere-se à subordinação
uma mesma proposta teórica aspectos centrais de status, enraizada em padrões instituciona-
advindos da Teoria Crítica e a contribuição es- lizados de valor cultural” (: 117). O não-re-
pecí�ca do pós-estruturalismo. conhecimento (misrecognition) torna-se uma
Noutro artigo, “Rethinking Recognition” forma institucionalizada de subordinação.
(maio-junho 2000), Fraser re�ete como as Os sentidos dados ao feminino, à negritu-
demandas por reconhecimento podem variar de, à pobreza, à homossexualidade, podem as-
desde movimentos emancipatórios até a for- sim afetar as formas institucionais – como as
ma perversa como a noção de uma identidade leis propriamente, que podem invisibilizar tais
cultural rei�cada e essencializada é usada em grupos, gerando e promovendo desigualdade
campanhas de “limpeza étnica” e genocídio de acesso a direitos. A cultura construída na so-
(os exemplos são a guerra dos Bálcãs e Ruan- ciedade contemporânea é marcada por formas
da). Neste trabalho, ela pergunta por que os de desigualdades e de “naturalização” destas em
con�itos teriam tomado esta forma e por que categorias culturais, mesmo em instituições e
movimentos tão variados teriam baseado suas formatos como a própria ciência, que não pre-
demandas no idioma do reconhecimento e da tendem ser discriminatórios.
identidade apenas. Problematizam estas formas O texto aqui traduzido é uma boa introdu-
rei�cadas de identidade, construções que ser- ção a sua análise bidimensional: para usar ter-
vem a violentas ações de padronização de uma mos foucaultianos, a materialidade é também
comunidade que não aceita dissensos internos produzida pelo discurso (cultura). Mas para
e nega o respeito à diferença. O que me pa- Fraser materialidade e discurso nem sempre
rece mais interessante para a antropologia é estão coladas de modo evidente, necessitam de
que, ali, sua proposta descola o reconhecimen- um olhar analítico que os distingam, pelo me-
to da questão da identidade, e aproxima-se da nos em teoria, e que busque interpretar suas
problemática da cultura e de suas formas va- formas de interação. Esta distinção lhe parece
lorativas. Naquele texto, assim com no ensaio central para não se correr o risco de deslocar o
aqui traduzido por Júlio Simões, o problema problema da redistribuição, escondendo-o ou
do reconhecimento está atrelado a uma versão marginalizando-o sob a crescente valorização
não unitária, não unívoca e não consensual do reconhecimento.
Recebido em 22/12/2006
Aceito para publicação em 22/01/2007