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super.abril.com.br/ciencia/a-polemica-do-cancelamento-de-palavras-2
S_Chum/Getty Images
A intenção é ótima. Mas, infelizmente, acaba dando corda para uma informação falsa.
Porque não há racismo na expressão “criado-mudo”. Vamos aos fatos: o nome desse
objeto é uma adaptação do termo americano dumbwaiter, um pequeno elevador que
transporta comida entre os andares de um imóvel, inventado no século 19 (“dumb” é um
termo para “mudo”; “waiter”, “mordomo”).
Na Alemanha, que não usou mão de obra escravizada em seu território nos tempos
coloniais, também há a expressão “criado-mudo” (stummer diener) – é a palavra deles
para “cabide de piso”.
O termo pode até ser de mau gosto, pois equipara pessoas a objetos. Mas não tem a ver
com escravidão. A ideia de que se trata de um termo racista tem origem apócrifa e circula
há alguns anos nas redes sociais. De tanto ser repetida, começou a ganhar status de
verdade. Só que não é.
Outra desinformação na mesma linha, que chegou a ser publicada em uma cartilha da
Defensoria Pública da Bahia, se refere à expressão “nas coxas”. Ela remeteria a telhas
“feitas de argila, moldadas nas coxas de pessoas escravizadas”.
Não há registro de tal prática, nem no Brasil colonial, nem em lugar algum do planeta.
Tampouco ela faria sentido. “A tese é facilmente desmentível por uma fartura de
argumentos”, escreveu Sérgio Rodrigues, autor de Viva a Língua Brasileira, na Folha de
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S.Paulo.
“O anatômico (só gigantes teriam coxas do tamanho das telhas coloniais brasileiras), o
funcional (telhas moldadas assim teriam tamanhos e formas tão variados que
inviabilizariam um telhado decente) e o econômico (por que ter produtividade tão baixa
se era fácil providenciar moldes de madeira?).
“Não há uma etimologia precisa para a expressão “nas coxas” – talvez daí a livre
interpretação surrealista relacionando-a à escravidão. O mais provável, porém, é que seja
simplesmente uma expressão para “trabalho malfeito” advinda do fato de que um
trabalho bem-feito é realizado numa mesa, e não sobre as pernas.
A polêmica sobre o cancelamento de palavras voltou aos holofotes no final de 2021, mais
especificamente no Dia da Consciência Negra (20 de novembro). Foi quando a agência de
checagem de notícias Lupa publicou uma lista de expressões tidas como racistas. A
agência reproduziu diversos erros ali.
Ofensas gratuitas
Por mais que, nos últimos anos, o Brasil venha tendo retrocessos (como Bolsonaro ter
colocado um negacionista do racismo para presidir a Fundação Palmares), é inegável que
a luta de mulheres e homens pretos por uma cidadania plena tem rendido conquistas. É o
caso dos programas de trainee exclusivos para pessoas negras, que se disseminaram pelas
empresas, e funcionam como uma ferramenta de inclusão social extremamente eficaz (a
exemplo das cotas nas universidades públicas).
O debate para que expressões de origem racista sejam apagadas do cotidiano é mais uma
dessas vitórias. Porque, é claro: os equívocos linguísticos são só uma parte da questão.
Há, de fato, palavras que deveriam ser varridas para a sarjeta da história, pois ofendem
mesmo se ditas por pessoas cuja retidão quando se trata de preconceito está acima de
qualquer suspeita. Aconteceu com Caetano Veloso.
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No programa Roda Viva, na TV Cultura, exibido no dia 20 de dezembro do ano passado, o
cantor e compositor, de 79 anos, defendeu o uso do termo “mulato”, que os expoentes dos
movimentos negros têm criticado. “Não vejo qual o problema de ‘mulato’. Meu pai era
mulato, a pessoa que eu mais adorava e respeitava. Tem gente que diz que é tirado de
‘mula’. Qual o problema? Não tenho nada contra as mulas.”
“Ah, mas não pode mais falar nada, quanto mimimi…”. O fato é que não pode mesmo.
Ofender ou insultar alguém é crime. E aquilo que soa ofensivo varia conforme a língua e a
sociedade se transformam. Logo, é natural a necessidade de atualizar o vocabulário.
Não acha um bom termo novo para substituir um que se tornou anacrônico? Não se aflija.
Logo a própria cultura trará respostas. “O povo é o inventalínguas”, já cantou Caetano na
letra de sua canção “Circuladô de Fulô”.
Dentro de uma etimologia real, com evidência histórica, há, sim, todo um time de usos da
língua que deve ser aposentado. É ofensivo usar o verbo “judiar”, um sinônimo de
“maltratar” que não disfarça o preconceito contra judeus.
É absurdo gritar “bicha” para o goleiro que bate um tiro de meta, como se uma eventual
homossexualidade do atleta o diminuísse como esportista e ser humano. Também não é
aceitável dizer “denegrir” – está bem entendido hoje que palavras que colocam a cor preta
como sinônimo de algo ruim reforçam o racismo estrutural.
Porque não existe “fake news do bem” – todas causam problemas. Expressões ofensivas
não cabem numa sociedade civilizada. Mentiras também não.
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