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Autor de livros como Hello, Brasil! e Outros Ensaios e Cartas a um Jovem Terapeuta, o
psicanalista e escritor italiano radicado no Brasil , Calligaris se tornou um dos intelectuais
mais influentes em atividade no Brasil.
Na entrevista a seguir, ele explica o que considera a “onda de psicopatia” no país, que para
ele não começou agora. Também fala sobre sua visão a respeito dos jovens, o que
identifica de benéfico nos aplicativos de paquera e por que julga a psicanálise ainda
relevante. E, claro, explica o que entende por “uma vida interessante”.
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28/04/2019 "Vivemos uma onda de psicopatia no país", diz Contardo Calligaris
Um dos motes do Fronteiras do pensamento neste ano é uma frase que o senhor
costuma dizer: “Não quero ser feliz, quero ter uma vida interessante”. O que é
uma vida interessante? E seria possível ter as duas coisas?
Contardo Calligaris: É possível estar alegre e de bom humor tendo uma vida interessante?
Talvez não em todos os momentos, porque uma vida interessante é uma vida que se
permite viver intensamente até as coisas dolorosas e desagradáveis.
Ter a felicidade como propósito, do tipo “o que eu quero na vida é ser feliz”, é a garantia de
que você vai ter uma vida medíocre. Por uma razão simples. Dito com uma linguagem um
pouco elevada, uma vida interessante é uma vida na imanência, não na transcendência.
Ou seja, se o que você espera da sua vida é estar na transcendência, seja ela humana ou
divina, se você vive na esperança do amanhã, se vive na esperança de ganhar na loteria,
na esperança de ser recompensado depois da morte no além ou, ainda, na esperança de
que sua vida de adolescente finalmente começará quando passar no vestibular, bom, essa
vida não vai ser interessante.
A esperança de ser feliz também é uma forma de transcendência. A única vida interessante
é a vida que acontece aqui e agora. Não precisa ser épico, não precisa ser extraordinário,
não precisa nada. Precisa da presença efetiva de quem está vivendo.
O que faz a diferença é estar no momento. O momento pode ser o pãozinho com manteiga
e café na padaria da esquina, pode ser escutar um paciente, ler um livro ou ver um seriado
na TV. O importante é estar naquilo, e não na espera do que virá depois.
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Realmente, a nossa relação com a idealização é dessa ordem. Ela alimenta medos, como o
medo de viver alguma coisa que não dure. Não sei de onde veio essa ideia maluca de que a
duração seria a garantia de qualquer coisa. Há relações que duram dois dias e são mais
importantes e marcantes do que casamentos de 15 anos. É engraçado, porque não são
ideias antigas.
Quando os clássicos, os romanos e gregos, falam sobre o que nós traduzimos como
“felicidade”, aquilo tem um sentido muito diferente do nosso. Estão falando de uma certa
sabedoria no uso, na administração de prazeres, afetos, amizades e amores. Não estão
idealizando da mesma maneira que nós. Isso começou com a ideia do amor romântico, 200
anos atrás, e vai andando nessa direção.
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28/04/2019 "Vivemos uma onda de psicopatia no país", diz Contardo Calligaris
Veja a facilidade com a qual os nossos criminosos são capazes de botar fogo numa roda ao
redor da cabeça de um repórter da Globo que subiu o morro, a facilidade com a qual
alguém é ameaçado de morte, a facilidade com a qual alguém faz o elogio público do
grande chefe da tortura durante a ditadura, a facilidade com que alguém deseja a morte de
um oponente político por câncer, por exemplo. São sinais de psicopatia. Ela não está só nos
homens políticos mais em vista do país. Está nas redes sociais, no cotidiano, no crime
organizado, mas também no crime desorganizado.
Pense na facilidade com que eu te mato mesmo se você me entrega o celular que eu pedi –
e isso não vai me impedir de dormir. É uma onda de psicopatia realmente especial. Acho
que deveríamos levar isso em conta como uma especificidade brasileira. A única coisa,
aliás, que me faz ser a favor da reforma da lei do desarmamento é que, se realmente o
país for psicopata, e declaradamente as relações nesse país forem psicopatas, eu quero me
armar. Porque realmente não tem outra saída.
Contardo Calligaris: Não. Sou a favor de viver em um lugar onde não tenha arma
nenhuma e ninguém mate ninguém. Ou então em um lugar onde tenha uma enorme
quantidade de armas, como a Suíça, mas ninguém anda armado, e o número de
assassinatos é extremamente modesto. Sou a favor disso.
Quero dizer que, se eu vivo em um mundo habitado por psicopatas, que matam e podem
desejar a minha morte, e mesmo promovê-la impunemente sem ter nenhuma barreira
moral interna ao fazer isso, aí eu quero andar armado, porque senão vou ser morto no
primeiro dia.
Contardo Calligaris: A transcendência pode ser qualquer coisa – Deus, o além, a espera
do amanhã, o sol do futuro, a primavera do socialismo. Quando você coloca o foco de sua
vida na transcendência, torna-se perigoso para você mesmo e para todos os outros. Essa
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28/04/2019 "Vivemos uma onda de psicopatia no país", diz Contardo Calligaris
história que parece tão benigna de “eu só quero ser feliz” na verdade é uma careta
inquietante, porque é algo que promete qualquer coisa que farei para que isso se realize.
De que forma?
Não tem uma música fascista ou nazista que não faça alusão à morte como uma coisa boa
ou maravilhosa. E a erotização da morte atravessa todos os últimos 70, 80 ou cem anos, é
só fazer uma lista de todos os grupos que se tatuam com caveiras, por exemplo, como se
isso fosse a marca de uma especial autenticidade ou glória, como se a morte fosse uma
coisa que nos desse dignidade. Isso não passou.
É a marca do fascismo, porque o fascismo precisou tornar a morte erótica para poder
mandar milhões de pessoas para a morte voluntariamente, e conseguiu. Mas essa ideia é
tremendamente presente nos jovens.
É um plano homicida, mas também suicida. Do tipo: “Não vou conseguir ser nada do que
gostaria. Não vou ser um herói de um game de tiro; não vou me parecer com nenhuma das
personagens de novela ou seriado que vejo, mas vou encarnar a morte para os outros e eu
mesmo vou go down in flames (“arder em chamas”)”. Essa erótica da morte, que aparece
na caveira na cara de um dos atiradores (de Suzano, que postou uma foto com uma
máscara de caveira), deve ser considerada importante.
Contardo Calligaris: Não vou antecipar muito, mas vou usar essa fala para ter um
discurso polêmico para mostrar que não vale a pena a gente acusar a idealização da
propaganda, a idealização pela nossa ficção ou a idealização romântica do amor. Tudo isso
é verdade, mas a doença, essa doença cujos fenômenos nós vemos se multiplicando agora,
está na raiz da nossa cultura.
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28/04/2019 "Vivemos uma onda de psicopatia no país", diz Contardo Calligaris
Da cultura brasileira?
A polícia nos EUA não se confunde mais com o crime. Já aconteceu no passado, mas não se
confunde mais. Se você está no Rio de Janeiro, vai ver que se confunde. Está difícil
distinguir as duas coisas.
Dizem que a histeria foi a doença do século 19, e a depressão, a do século 20.
Caso o senhor concorde com essa premissa, qual é a doença do século 21?
Contardo Calligaris: Concordo em parte com a premissa. Não concordo muito com a ideia
de que a depressão foi a grande doença do século 20. Tornou-se a grande doença do século
20 porque, a partir do fim do século, em 1990, os antidepressivos fizeram uma grana
federal. Então, era necessário que houvesse muitos deprimidos para que aquilo tivesse
função. Os laboratórios ficaram muito felizes. Mas se eu tivesse que falar de doença do
século 21, estaria em algum lugar entre a perversão e a psicopatia.
Contardo Calligaris: A perversão, do meu ponto de vista, não tem nada a ver com o que
chamamos genérica e impropriamente de perversões sexuais. A perversão é uma doença
de grupo. Opera quando você desiste dos seus anseios, freios e limites individuais e passa
a fazer parte de um grupo para o qual você delega todas as suas preocupações morais.
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Há um velho chavão de que os jovens são o futuro do Brasil. Talvez tenha a ver
com aquela ideia de transcendência que o senhor criticou. qual é a probabilidade
de os jovens transformarem alguma coisa no futuro?
Contardo Calligaris: Faz 15 anos que atendo só no Brasil, então não teria sentido
comparar com os jovens americanos e ainda menos com os europeus. Mas continuo com a
mesma crítica. Vejo os jovens de hoje desejando pequeno. A mãe de um dos dois
atiradores de Suzano, que é uma mulher pobre e provavelmente se sacrificou para que o
filho tivesse o que queria, disse: “Não entendo. Ele tinha tudo que queria”. (A declaração
literal foi: “Ele tinha internet, TV a cabo, tinha tudo. E o bobão faz isso?”.)
Achei essa frase tão tocante porque poderia ser dita em condições análogas por muitas
mães. É como se a gente estivesse sempre no primeiro ano de vida: quando o bebê chora,
seja porque não está gostando do sol ou porque o barulho é muito alto, a única coisa que
lhe é dada em resposta é comida. Mas é engraçado como esse modelo de alguma forma
continua na relação entre pais e filhos. Como somos todos, e não só essa mulher,
relativamente surdos ao que as crianças pedem e sempre lhe devolvemos algo que no
fundo nunca é tudo o que eles queriam, e às vezes não tem nada a ver com o que queriam.
Respondendo à pergunta: não sou otimista sobre o futuro do Brasil, pelo menos não a
partir dos jovens que eu vejo em geral. Acho que eles são mal-educados, e não no sentido
de não saberem usar a faca na mão direita, isso seria o de menos, mas no sentido de que
não aprendem o suficiente na escola. Acho que têm pouco gosto pelo esforço de se formar,
crescer e trabalhar. Não sou otimista.
Seria porque os jovens, pelo menos os de classe média, têm uma situação muito
mais confortável do que tiveram seus pais? Os pais sabem como é difícil construir
uma vida e querem poupar os filhos disso tudo?
Contardo Calligaris: Sim. Grande parte das classes médias começou a querer facilitar a
vida dos filhos além da conta. Os pais da classe média paulistana, e suponho que não seja
diferente de Porto Alegre, ficam horrorizados se o professor supõe que os alunos estudem
em casa duas ou três horas por dia. São capazes de telefonar para a escola indignados
porque as crianças vão cansar. Não vão poder sair para a rua e se divertir? Eles têm uma
relação doentia quando o esforço aparece primeiro. Os pais não querem que os filhos se
esforcem. Agora, claro, há algumas exceções.
A falta de ambição dos jovens seria, nesse caso, reflexo da falta de ambição dos
pais?
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Contardo Calligaris: Sem dúvida tem isso, mas essa não é só uma questão brasileira. A
especificidade do Brasil é que se trata de um lugar onde não há crédito – há usura. É
diferente. Nossos amigos banqueiros vão tentar me convencer de todas as maneiras
possíveis do contrário, mas não existe um nível de inadimplência que justifique esse juro ao
consumo ou ao crédito pessoal no Brasil.
Faça uma experiência. Coloque, sei lá, R$ 50 mil de investimento em um fundo do seu
banco. Daí, pergunte ao banco se pode dar esse fundo na garantia de um empréstimo do
mesmo valor. Você não vai poder tocar nesse dinheiro, que é seu, mas fica nas mãos do
banco, até você ter pago o empréstimo. Essa operação, em qualquer lugar do mundo, tem
um juro ridículo, porque a garantia é absoluta. No Brasil, não. Tem um juro abusivo. Então,
o problema no Brasil é que as pessoas que consomem dessa maneira são vítimas de um
assalto.
Contardo Calligaris: Um pouco, mas menos do que eu imaginaria, e talvez menos do que
alguns anos atrás. Ouço muito menos os meus pacientes falarem do Facebook deles do que
alguns anos atrás. Claro que foi um tempo extraordinário que ainda pode ser analisado
como o momento em que todo mundo criou um ou vários avatares, e isso se tornou um
tremendo trabalho da imaginação de cada um. Digo avatar no sentido de ser aquela figura
que você quer mostrar aos outros. Aquilo teve um efeito tremendo sobre a vida de cada
um.
Ainda lembro de crianças nos anos 1980 ou 1990, no começo dos jogos de RPG. Quando o
avatar de um menino morria em um RPG, aquilo era considerado quase um risco de suicídio
do ponto de vista clínico. Era importante ficar de olho no menino, recomendação da própria
American Psychological Association. Mas acho que esse tempo passou.
Estou vendo um efeito, por outro lado, interessantíssimo, extremamente positivo das redes
sociais. Um número de pacientes, sobretudo mulheres, hoje acessam diariamente o Tinder
e têm encontros amorosos que podem se transformar em outra coisa, temporária ou não,
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28/04/2019 "Vivemos uma onda de psicopatia no país", diz Contardo Calligaris
graças aos aplicativos de paquera. Isso acho altamente positivo. Pense em uma mulher
separada há sete anos, sozinha, sem conhecer ninguém, à mercê das amigas que quem
sabe lhe apresentarão um amigo do marido, que geralmente é alguém que sobrou no
mundo. Ela pode entrar em um aplicativo, sair hoje à noite e transar. Não necessariamente
vai ser a transa do século, e às vezes até é. Isso eu acho que foi uma melhora significativa.
Fazendo uma provocação: a psicanálise ainda é relevante hoje porque é uma boa
visão de mundo ou porque é uma boa ciência?
Contardo Calligaris: (Risos.) Acho que é um bom dispositivo. Não é nem uma visão de
mundo, nem propriamente uma ciência. É um bom dispositivo, que tem mais ou menos 3
mil anos. Esse dispositivo da cultura ocidental, que provavelmente acontece também em
culturas orientais, é que precisamos de alguém que não seja nem um amigo, nem um
parente, para quem possamos falar de nós na esperança de que esse alguém nos diga algo
no que nós dissemos que nós mesmos não escutamos.
Esse dispositivo tem 3 mil anos. Passou por uma série de figuras que vão desde o confessor
até o conselheiro espiritual, até o “amigo” do bar – amigo entre aspas, porque justamente
é melhor que não seja um amigo. É possível que um dia a psicanálise mude de nome,
mude também alguns dos fortes teóricos nos quais se baseia. Agora, o dispositivo acho que
vai durar.
Contardo Calligaris: (Risos.) Adoraria se ele viesse me ver, talvez eu pudesse analisá-lo.
Nesse caso, infelizmente, não diria absolutamente nada para você… Não tenho elementos
para me aventurar a fazer isso. Ele realmente me desconcerta. A única coisa em que às
vezes eu penso é que sua vitória foi para ele mesmo inesperada. O que acho mais
surpreendente, mas também deve ser um campo de enorme dificuldade para ele, é a
relação com esses três filhos, que me assustam um pouco.
Me assustam sobretudo porque normalmente acho que a família não foi criada para ser um
lugar em que todos concordam com todos. Ao contrário, a família, como cada um sabe, foi
inventada para ser um lugar em que todo mundo discorda. Por isso, ela eventualmente é
interessante e educativa. Quando vejo essa família, não são todos, mas pelo menos os três
irmãos parecem uma espécie de coalizão partidária ao redor do pai. Isso me assusta. Mas
não vou me aventurar a analisá-lo.
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