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roseta.org.br/2021/02/22/a-estrutura-da-lingua-e-a-criacao-de-genero-neutro
Militantes da comunidade LGTBQI+ e feministas, entre outros, têm defendido que não
se usem mais formas do masculino, como todos, na referência a um conjunto de pessoas
de gêneros diferentes, mas tod@s ou todes, porque o emprego do masculino como
gênero gramatical neutro denota machismo, sexismo etc. Nessa linha, há propostas bem
radicais, como substituir ela e ele por ile, nessa e nesse por nisse, sua e seu por sue etc.,
de modo que, ao invés de dizer eles são amigos, deve-se dizer iles são amigues. Diante
disso, alguns linguistas e profissionais de Letras têm se colocado sobre a proposta,
recorrendo aos postulados estruturalistas, da década de 1960, de que não há correlação
entre o gênero gramatical e o chamado gênero “biopsicossocial” e de que o –o, em
palavras como menino, não é morfema de masculino, mas uma vogal temática, já que o
português só tem um morfema para marcar o feminino, o –a, que se manifesta tanto em
menina, para menino, quanto em mestra, para mestre e em doutora, para doutor
(CÂMARA JR.., 2002 [1970]). Portanto, o masculino já seria gramaticalmente neutro. E,
assumindo o argumento da autoridade, apresentam esses postulados como verdades
absolutas, que bastariam para encerrar a questão.
Além disso, o fato de uma teoria linguística classificar o –o de menino como vogal
temática não anula a percepção, geral no senso comum, de que esse –o expressa o gênero
“biopsicossocial” masculino, em oposição ao gênero “biopsicossocial” feminino expresso
por menina, muito menos as implicações ideológicas e simbólicas de adotar o gênero
masculino como gênero “universal”. Ou seja, taxar o –o de vogal temática é apenas uma
classificação gerada pela racionalidade da análise do linguista, não é uma característica
imanente, objetiva de uma língua reificada.
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A análise estruturalista, predominante na Linguística até a virada da década de 1960, se
baseava nessa concepção reificada da língua como uma entidade autônoma regida por sua
lógica interna e imune aos influxos da vida social (LUCCHESI, 2004).
A partir da década de 1960, boa parte da pesquisa linguística se voltou para a relação
entre a língua e a sociedade, com a emergência da Sociolinguística Variacionista
(LABOV, 2008[1972]). Um dos pontos cruciais da teoria sociolinguística foi o
questionamento do postulado saussuriano de que o falante aceitava a língua
passivamente. Para Labov, os falantes percebem e reagem diante das formas em variação
na língua (como, por exemplo, claro e craro), valorando-as, em função de sua classe
social, idade, gênero etc. E essa reação é um dos fatores determinantes para a
implementação ou não das mudanças na estrutura da língua. Ainda dentro desse
paradigma, Lesley e James Milroy (1992) identificaram o reflexo das contradições de
classe no comportamento linguístico dos grupos sociais. Em sua pesquisa
sociolinguística junto à classe trabalhadora de Belfast, na Irlanda, observaram que esse
grupo conservava o seu vernáculo, resistindo à imposição do inglês padrão, como uma
das formas de manter a coesão e a solidariedade de classe. Já neste século, Penelope
Eckert (2012) tem desenvolvido todo um modelo que analisa a práxis linguística
sobretudo como parte do processo de construção identitária de indivíduos e grupos
sociais. Outra frente importante da pesquisa linguística que focaliza a dimensão
ideológica da linguagem como prática social, na atualidade, é a Análise do Discurso
(MAINGUENEAU, 2014). As políticas linguísticas também estão em destaque na agenda
da ciência da linguagem (LAGARES, 2018), e a própria normatização da língua é posta
em causa (FARACO, 2008).
Essas pesquisas têm demonstrado que, muito mais do que um sistema de comunicação
neutro, a língua e os juízos de valor que a cercam constituem um dos principais terrenos da
disputa político-ideológica que se trava no seio da sociedade.
E todos esses avanços não podem ser ignorados no enfrentamento da questão da criação
de um gênero neutro em português, que se situa muito mais na dimensão ideológica da
interação linguística, do que na dimensão da estrutura interna do funcionamento da
língua, embora tal dimensão não seja irrelevante. Nesse sentido, deve-se salientar, por
exemplo, que, ao contrário do que acontece com as palavras referenciais (como os nomes
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e verbos, cujo significado remete ao mundo exterior), as mudanças nas palavras
gramaticais (como pronomes e artigos) são muito mais lentas e profundas, demandando
normalmente séculos para sua implementação. Isso coloca uma séria barreira à adoção
de formas como ile, todes e es menines, porque vão de encontro à programação
linguística já internalizada pelos atuais falantes do português.
Entre as ciências humanas, a Linguística ainda é aquela que menos dialoga, com a
sociedade. Isso se deve à hegemonia ideológica de uma concepção de língua imposta pela
tradição gramatical desde a antiguidade clássica, segundo a qual existiria uma forma
superior e perfeita de língua, aquela cunhada pelos clássicos da literatura, e as
variedades linguísticas usadas na atualidade, especialmente pelos jovens e pelos menos
escolarizados, não passariam de deteriorações dessa forma superior do idioma. Tal visão,
profundamente arraigada no senso comum, gera o preconceito linguístico (BAGNO,
2015), que constitui um dos grandes instrumentos ideológicos de dominação de classe e
de exclusão social. Isso explica a forte reação que se encontra na mídia, sobretudo em
seus veículos mais reacionários, à visão científica da língua, que reconhece sua
diversidade e pluralidade.
Portanto, um dos maiores desafios que se colocam hoje para todos os linguistas,
professores de português e intelectuais esclarecidos é alterar essa visão hegemônica de
língua, demonstrando que, como expressão maior da cultura, a língua é e precisa ser plural
e diversificada, estando em constante mutação.
E isso nada mais é do que o reflexo das mudanças nas relações sociais e nas formas de
comportamento que estão sempre ocorrendo na coletividade. É assim que se deve tentar
compreender e analisar a adoção do gênero neutro como parte da construção identitária
de um grupo social por meio de sua práxis linguística.
Referências
CHOMSKY, Noam. The minimalist program. Cambridge: The MIT Press, 1995.
ECKERT, P. Three waves of variation study: the emergence of meaning in the study of
sociolinguistic variation. Annual Review of Anthropology, 41, 2012, p. 87-100.
FARACO, Carlos Alberto. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo:
Parábola, 2008.
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LUCCHESI, Dante. Sistema, mudança e linguagem: um percurso na história da
linguística moderna. São Paulo: Parábola, 2004.
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