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Leonardo Dallacqua de Carvalho

Letícia Fernanda da Silva Oliveira

Nos eufemismos do racismo: Novo século, antigos


preconceitos.

2018
Resumo

"Não sou racista, mas..." Quantas expressões como essa permanecem no senso comum
da sociedade brasileira? Ritmada nos eufemismos de cada dia, criados para justificar a
negação do outro por meio da cor da pele, somos bombardeados por novas ondas
conservadoras discordantes do equilíbrio das oportunidades sociais e ações afirmativas.
De matriz histórica, o racismo no país está enraizado tanto no espaço privado como no
público. Os que acreditavam que o advento do século XXI remeteria a uma maior
conscientização da questão racial, após os traumas do século anterior, foram
surpreendidos com o aparecimento da internet e a conexão de centenas de milhares de
usuários emitindo suas opiniões sob os mais variados assuntos. A conclusão? O racismo
sobrevive e se transforma.
Sumário

Prefácio

Introdução ................................................................................................................................... 4

Capítulo 1 - O Brasil é um país racista? ................................................................................... 4

Capítulo 2- O humor pode ser preconceituoso? ....................................................................... 4

Capítulo 3- A História, os contextos, e os esforços em deslegitimar a igualdade racial ........ 4

Capítulo 4- Teorias raciais: o que foram e como podem sobreviver ..................................... 4

Capítulo 5- Religião de branco.................................................................................................. 4

Capítulo 6 - Questões sobre o racismo moderno ...................................................................... 4

Considerações finais .................................................................................................................... 4

Referências Bibliográficas ......................................................................................................... 4

Notas ........................................................................................................................................... 4
PREFÁCIO

Não sei se seria o caso de empregarmos o termo "eufemismo" quando o assunto


é preconceito de cor no Brasil, país em que as manifestações racistas são cada vez mais
frequentes. Tais manifestações, sobretudo as postadas constantemente nas redes sociais,
são o atestado de uma secular inquietação de um povo que vem tentando, a todo custo,
empurrar o passado para baixo do tapete.
Sustentar posturas racistas significa continuar reproduzindo o discurso
colonialista dos primeiros europeus a desembarcarem no Novo Mundo. Quando
negamos a porção negra da nossa constituição étnica, negamos consequentemente a
mancha da escravidão que marcou nossa história e até compactuamos para legitima-la.
Damos continuidade ao discurso que procurava demonizar e consequentemente
condenar negros e mestiços no Brasil oitocentista em virtude de suas crenças.
Corroboramos as teorias racistas que ajudaram a desqualificar o negro recém liberto em
detrimento da legitimação da entrada do branco europeu considerado civilizado e
tecnicamente preparado para o trabalho e para a promoção do progresso do país.
Essas falas que reverberam nos memes, nos comentários do YouTube, no
facebook e em tantos outros canais não são novas; são as mesmas maledicências
proferidas à mesa dos quatrocentos e da burguesia endinheirada, enriquecida à custa do
trabalho subalterno e escravo. Apenas na atualidade, tais maledicências ganham um
rosto, vêm a público, podem ser lidas e ouvidas sem parcimônia. Tais discriminações
postadas a torto e a direito nas redes sociais, atestam, infelizmente, aquela imaturidade
que caracterizava o povo brasileiro e que não passou despercebida aos olhos do escritor
modernista António de Alcântara Machado, como ele bem salientou em uma crônica de
1929, intitulada "Relações Exteriores ":

O brasileiro tem a suscetibilidade aguda de uma menina de quinze


anos. Qualquer coisinha o fere. Por qualquer motivo fica de burro e
fecha-se no quarto batendo a porta engolindo soluços. Suscetibilidade
de povo adolescente. Falta de traquejo internacional. Caipirismo. Em
tudo enxerga uma afronta. Vive desconfiado. De ouvidos bem atentos
que é para saber se estão falando mal dele. Depois vaidoso como ele
só. Mendiga o elogio estrangeiro (como se dele precisasse para viver).
Dá um passo e olha logo para ver se a Europa aplaude. Que nem
artista de café-concerto. (Cavaquinho & Saxofone, 1940, p. 68)
"Povo adolescente". É o termo mais adequado, em pleno século XXI, para
continuar qualificando uma sociedade que, ao invés de procurar superar o passado de
povo colonizado, perde seu precioso tempo teclando impropérios contra narizes largos,
cabelos pixains, encaracolados, tingidos ou esticados; contra a cor da pele que ajudou a
compor a nossa história, o nosso caráter e a nossa identidade.
Tais indivíduos que blasfemam contra a cor e a condição social de negros e
mestiços são os mesmos que, consciente ou inconscientemente, se deixam arrastar pelos
trios elétricos de Salvador e desejam ardentemente ocupar o lugar de um passista negro
nas alas das escolas de samba do Rio ou de São Paulo. Tais indivíduos, ao proferirem
impropérios contra afro descendentes nas redes sociais, estão expressando, na verdade,
seus próprios recalques, sobretudo por saber que, apesar de serem, muitas vezes,
descendentes de europeus que aqui desembarcaram há décadas ou séculos, carregam
inevitavelmente o gene da mãe África aqui instalado com força e afinco.
O livro de Leonardo Dallacqua de Carvalho e Letícia Fernanda da Silva Oliveira
trata exatamente dessas questões por meio de estatísticas, gráficos, gravuras e
comentários que, se analisados atentamente, dão o diagnóstico da nossa imaturidade de
povo colonizado que ainda não conseguiu sequer galgar o primeiro degrau da tão
sonhada liberdade.

Fortaleza, 10 de Janeiro de 2018.


Francisco Cláudio Alves Marques
INTRODUÇÃO

Eufemismo talvez seja uma das melhores expressões que encontramos para
sintetizar o assunto desta obra. À mão de qualquer dicionário da língua portuguesa, o
leitor poderá traduzir esta figura de linguagem como sendo uma ferramenta de
"suavização" de termos. Seu uso faz com que um termo forte, rude ou inapropriado,
ganhe feições mais amenizadas ao ser substituído por outra palavra. Entretanto, o
significado permanece o mesmo. É assim que o racismo é praticado em grande medida
no Brasil, incrustado a uma aparente suavidade e polimorfismos.
Chegamos ao século XXI com muitos problemas dos séculos anteriores, em
particular, problemas de aceitação enquanto nação. A permanência dos preconceitos
raciais emanados em novas formas de comunicação revela sintomas de uma sociedade
que ainda vive sob o véu das diferenças. Sem muito esforço, por meio de aparelhos
celulares, tablets ou computadores conectados à internet, qualquer indivíduo pode se
deparar com o volume de discursos de ódio que poluem as redes sociais ou fóruns dos
mais diversos segmentos. Uma variedade de argumentos é reproduzida, muitas vezes
sem nenhum conhecimento científico ou histórico, para justificar, por exemplo, a
negação de cotas, a generalização da cor negra como predisposta à criminalidade ou as
centenas de preconceitos maquiados em forma de humor que legitimam a desigualdade
social por meio do riso.
Queremos, com a presente proposta, efetuar um convite a essas e outras
reflexões. Em síntese, pensar alguns dos argumentos utilizados por uma parcela da
sociedade e identificar em sua essência as contradições e suas intencionalidades, é tentar
desnudar o porquê da reprodução de um senso comum conservador, o qual elege a cor
da pele como um dos seus principais aditivos. Os capítulos aqui reunidos compõem
alguns dos temas mais debatidos na internet em vista de notícias que tratam de
preconceitos, questões raciais ou equidade de cor e raça. Este convite à reflexão vai
muito além de elaborar um guia ou um manual de respostas prontas, haja vista que
pretende contribuir para uma atualidade em que a demanda dos argumentos e diálogos
virtuais constroem opiniões e posições sociais.
Quando falamos de internet, ciberespaços e redes sociais, não estamos propondo
unicamente um trabalho que seguirá as pegadas de publicações ou postagens aleatórias
para tentar examinar quem ou quais grupos são identificados como racistas. O motivo
de eleger o espaço virtual como argumento deve-se ao fato de este local ter se tornado
um dos principais ambientes de articulação e troca de ideias no novo século. No décimo
sétimo ano do século XXI, ao menos no Ocidente e, sobretudo, no Brasil, não
conseguimos mais separar nossas vidas dos computadores, da tecnologia e da internet.
Cada vez mais substituímos o "manual" pelo "maquinário".
Apesar de o livro estar pautado e amparado por referenciais acadêmicos e
rubricado por diversos historiadores e sociólogos, sua intenção é transpor os muros da
universidade e dialogar com os mais diversos grupos de leitores preocupados com o
tema em pauta. É, também, um pequeno esforço, no sentido de devolver para a
sociedade alguns dos temas discutidos nos meios universitários, com outra linguagem,
que pretende ser clara à medida que o público receptor também busca desvendar as
nuances do problema da manutenção dos discursos racistas no país.
Em um novo mundo a cada vez mais conectado, as pessoas de todo o planeta são
convidadas à interagir e a expor suas visões e opiniões. Esta ação maximiza o quadro de
conceitos e posições sobre os mais diversos temas abordados na internet. Se antes a
opinião se restringia aos grandes meios de comunicação que transmitiam a notícia
diretamente para a residência dos telespectadores, hoje o consumo da informação
assume outras possibilidades de interação. O público pode ler ou assistir uma notícia na
internet e ao mesmo tempo expor naqueles espaços as suas impressões e opiniões sobre
os mais variados assuntos.
Falecido em fevereiro de 2016, o famoso escritor italiano Umberto Eco ganharia
as páginas da internet no ano anterior ao afirmar que as redes sociais dariam direito à
palavra a uma "legião de imbecis". Elas teriam amplificado a noção da individualidade
dos comentários que antes permaneciam apenas em âmbito privado, ou restritos a
ambientes menores, como um bar ou uma padaria, por exemplo. Os espaços a que
Umberto Eco se refere evidenciam tanto opiniões tacanhas, como a força do racismo
presente na sociedade e seus eufemismos.
Assim, o espaço virtual tornou-se um meio de constatação das mais variadas
formas de preconceitos raciais. Basta que uma notícia envolvendo um negro ou uma
questão relativa à raça seja colocada ao público, surge um emaranhando de opiniões
destilando preconceitos relativamente à cor da pele. Longe de ser uma exceção, quando
o tema racial é posto em evidência, a frequência de comentários que elegem a cor como
principal estratégia de ofensas ou discriminação torna-se assustadora. Para diversos
indivíduos que naturalizaram e legitimaram o racismo como prática cotidiana, os
problemas de ordem socioeconômica não teriam relações com contextos históricos que
fomentaram desigualdades e hierarquias sociais pautada na divisão racial.
No lado oposto, o ponto alto da massificação virtual é a possibilidade em dar voz
ao oprimido. Muitos grupos sociais minoritários ou que nunca tiveram acessibilidade
aos grandes meios de comunicação podem expressar suas angústias, vontades e exigir
reformas por seus direitos negados ou negligenciados. De certa forma, pode-se dizer que
o acesso à internet democratizou os debates sobre convivências e preconceitos sociais.
Ao mesmo tempo, também se observa que a mesma internet multiplicou as
possibilidades de percepção dos discursos preconceituosos difundidos diariamente em
seus espaços.
As redes sociais são, talvez, um dos maiores exemplos de "pesquisa de campo"
da manutenção do discurso racista. Espaços virtuais como o Twitter, Facebook e
Youtube, são referenciais para situar os principais chavões que tentam deslegitimar o
lugar do negro na sociedade. Não pretendemos fazer uma análise da internet em si, mas
entender como atualmente ela é um dos principais canais que evidenciam tais práticas.
Não raro, celebridades, políticos, esportistas têm os holofotes em suas direções ao
sofrerem ataques por questões raciais. Da mesma forma, outros dessas categorias
ganham o noticiário quando emitem suas posições racistas, sendo amplificadas por suas
exposições na mídia. Em 2014, nos Estados Unidos, Donald Sterling, dono do time de
basquete Los Angeles Clippers, circulou nos noticiários ao ser banido da National
Basketball Association (NBA) por posições e afirmações racistas. No basquete, um
esporte cuja grande maioria é composta por indivíduos de cor negra, o episódio ocorreu
como um exemplo para pensarmos no fato de que nenhum local está seguro do discurso
de ódio racial.
Se em sua história, os Estados Unidos são um país banhado de sangue pela
perseguição racial e com suas cicatrizes abertas quanto à questão da igualdade, o Brasil
apresenta marcas feitas à sua maneira. Mesmo não existindo explicitamente uma guerra
civil declarada entre brancos e negros, o preconceito encontrou formas de circular entre
a sociedade e, na maioria das vezes, se apropriar de camuflagens e eufemismos. Criou-
se, por exemplo, um "direito de ser preconceituoso", e contra qualquer oposição a este
"direito" pesa a acusação de censura da liberdade de expressão, como se o efeito da
"liberdade de expressão" se alargasse no direito de desumanizar o outro em prol de
opiniões ou ofensas. Nosso país vive uma crise conceitual da concepção de direitos e de
deveres e para quem eles devem ser expandidos.
Diante do cenário apresentado, o leitor pode estar se perguntando qual seria o
motivo que levaria uma legião de pessoas ou grupos a continuarem flertando com
posições racistas. Mais ainda, fundamentando seus argumentos com distorções
históricas como justificativas. A princípio, um dos elementos mais significativos do uso
da História como arma para a manutenção de discursos segregacionistas é a própria
incompreensão da sua utilização e de seus fundamentos. Fruto de uma má orientação
escolar ou de manipulação dos eventos históricos sem nenhum rigor e entendimento,
muitas vezes a distorção se dá de forma intencional. A incompreensão das ferramentas
da ciência dos homens no tempo1 sugere a História como "amorfa", em que cada um
poderia esculpi-la à sua maneira, criando assim, uma narrativa agradável. Esta seria uma
disciplina sem regras, métricas, métodos ou fontes.
Não foi alternativa aleatória que entre as opções de escrita, pensamos em
estruturar um livro recheado de outros estudos dedicados à questão de cor e raça no
Brasil, composto por pesquisas recentes e que oferecem uma percepção do quadro
histórico do país. A rigor, significa dizer que há uma "história do racismo no Brasil" e
os debates gerados na sociedade no presente, seus argumentos históricos, sociológicos e
antropológicos não são invenções de grupos ou ideias românticas de ativistas pró
igualdade racial. A negação dos estudos que envolvem o mapeamento da questão racial,
muito trabalhada no Brasil, é uma amostragem da manutenção das estruturas da
chamada "democracia racial", conceito impregnado na estrutura imaginária da
coletividade nacional. Portanto, este livro convida outros estudos a comporem suas
páginas, a fim de aproximar e afinar o leitor acerca dos escritos sobre o tema.
Acreditamos ser importante essa aproximação, deixando de lado o peso dos jargões e o
jogo conceitual acadêmico que frequentemente dificultam o manejo de obras para o
grande público. À luz da nossa sociedade, marcada por um crescente conservadorismo e
uma variedade de preconceitos de todas as ordens, é preciso expandir o entendimento de
quem somos/fomos enquanto sociedade.
O objetivo deste livro está longe de oferecer um ponto final nas discussões dos
capítulos, mas uma ampliação e projeção dos debates em voga no espaço virtual/social.
Em tempo, esta leitura pode ser proveitosa para os interessados pelos debates de
racismo no Brasil ou aqueles que pretendam repensar seus argumentos em vista das
discussões propostas. Este último, aliás, é um público almejado. Os capítulos foram
confeccionados e inspirados nos "núcleos" de debates em torno do racismo. Abordar a
temática do "vitimismo negro" ou do "orgulho branco", no último capítulo, tem a
intenção de reproduzir a força de expressões empregadas enquanto munição de um
discurso opressor. Há uma proposta de dialogar sobre o racismo e suas principais
pautas, que se esforçam cotidianamente para manter uma estrutura segregacionista nos
termos de cor e raça.
Procuraremos apresentar algumas ponderações, principalmente àqueles que
buscam por respostas para situações aparentemente incompreensíveis. Um curto
trabalho na tentativa de desmontar frágeis argumentos incrustados em espíritos
conservadores que se avolumam nas redes sociais. Fruto de uma sociedade provedora
em suas características da espoliação da terra e do homem; grupos selecionados por
razões raciais como negros e indígenas por vezes tornaram-se subprodutos e objetos
sujeitos à exploração. Por este raciocínio, é como se suas almas fossem ignoradas e seus
corpos tivessem como único objetivo produzir remessas de lucro para povos
"superiores", negando-os os direitos de pertencerem igualmente à mesma sociedade.
Mais que isso, tais grupos não passariam de propriedade privada de outros indivíduos.
Alguns poderão indagar o porquê de termos optado pelo uso do termo "negro"
ao invés de afro-brasileiro. Os motivos são diversos. De início, por se tratar de um livro
que leva como título "eufemismos", procuramos desarmar qualquer armadilha,
induzindo a escolha do termo como "sutileza" para dissertar sobre os conflitos raciais
envolvendo "negros” e "brancos". Felicitamos e concordamos com o uso do termo afro-
brasileiro, mas estaríamos fugindo da intencionalidade do livro se usássemos o termo
enquanto substitutivo, principalmente porque o problema dos racistas é com o "negro" e
todos os valores implícitos que as letras carregam em seu retrato histórico-social. Outro
motivo concerne aos dados que utilizo do IBGE e do Mapa da Violência, em que
comparecem as nomenclaturas "negros", "pardos" e "brancos". Poderíamos ter optado
também pelo termo "preto", pois esta é outra utilização cotidiana do racismo em suas
classificações de deslegitimação, mas por opção que converge com a bibliografia, o
"negro" é mais usual na distinção dos grupos.
Outra questão de suma importância diz respeito ao lugar de fala. Este livro
pretende contribuir com o debate sobre racismo no Brasil e apresenta um recorte, logo,
ele é incapaz de traduzir a dor do racismo e todo sentimento daqueles que vivenciaram
ou vivenciam a opressão. Estamos preocupados em oferecer uma perspectiva de estudo
sobre o tema e um despertar ainda maior para o problema.
Em suma, os capítulos foram pensados na possibilidade de refletir pontos
centrais utilizados na negação dos direitos raciais ou explicações contextuais para
demonstrar como o problema das relações raciais e sociais não é apenas fruto da
"imaginação de grupos minoritários". Usualmente, esta discussão nasce dos comentários
dos próprios usuários da internet, ao visualizarem uma notícia sobre a temática racial e
projetarem seus preconceitos a fim de deslegitimar o tema ou o noticiado. Sobretudo
quando o assunto propagado diz respeito à equiparação ou equilíbrio entre direitos
sociais, econômicos ou políticos balizados por reformas políticas e sociais em questões
de raça e cor.
Um adendo importante à leitura do livro é que apesar do seu recorte, visando a
temática das relações raciais, não desconsideramos ou generalizamos em hipótese
alguma as relações classistas, engrenagem partícipe das divisões desiguais.
Reconhecemos a interferência dos problemas de classe na conjuntura da sociedade
brasileira, na qual há brancos pobres e carentes de reformas socioeconômicas assim
como é com a população negra. O processo de reformas políticas de cunho social
abrange uma enorme gama de agentes sociais, entre eles, a condição socioeconômica e
histórica da comunidade dividida entre cor e raça.
Sendo assim, o capítulo inicial questionará um ponto seminal de qualquer livro
que se interesse pela pluralidade das relações entre Brasil e a compreensão de um povo
miscigenado e plural por excelência: O Brasil é um país racista? A interrogativa
mobilizou centenas de intelectuais no século passado, tanto no meio acadêmico, com
produções de livros, teses e dissertações, como de escritores, jornalistas, juristas,
médicos e a sociedade em geral. Projetos foram pensados e colocados em prática para
estudar o Brasil, contextos e signos de uma nacionalidade racial foram abordados. Não
temos a presunção de esgotar um tópico tão vasto, mas este é o primeiro labor
necessário para se pensar o país.
O segundo capítulo, intitulado O humor pode ser preconceituoso?, aborda a
confusa relação que estabelecemos com o riso. O humor tornou-se um instrumento de
opressão, com significados de brincadeira e de inocência. Mantido por grupos de
humoristas que povoam a mídia e as redes sociais, estes sustentam nas piadas
preconceituosas um trampolim de audiência para um público que gosta de rir da cor do
outro sem nenhuma reflexão ou culpa.
O capítulo seguinte situa o papel da história e seus contextos. Algumas
abordagens são chamadas à baila para explicar como os pesquisadores pensam os
contextos da história. Em suma, trata-se de reduzir simplismos, erros interpretativos,
anacronismos e muitas das ferramentas usadas por historiadores na análise dos seus
documentos, que por vezes são desconhecidos do grande público. É, por exemplo,
explicar porque em um determinado período um fato é compreendido de tal maneira, e
no outro ele assume interpretação diferenciada. Este mote objetiva o que se observa
constantemente em erros de avaliação para os propagadores do racismo. Inclusive,
ponderar acerca de livros autointitulados "guias" que prometem contar verdades
obscuras sobre a História do Brasil, mas seus autores, na verdade, oferecem uma vasta
incompreensão histórica. Resta saber se o fazem consciente ou inconscientemente, mas
de qualquer forma o diagnóstico é preocupante.
Abordaremos ainda o papel das cotas no Brasil e suas negações. Sendo assim,
uma parcela da sociedade tem dificuldade em compreender qual a necessidade de cotas
raciais. Atribuem tais propostas a uma espécie de "favorecimento do negro", enquanto
seu intuito é totalmente oposto. Pautados no discurso da chamada "meritocracia",
imaginam a sociedade ofertando as mesmas chances de igualdade para toda a
população, e desta forma, acreditam que dependeria exclusivamente dos esforços
individuais para todos os cidadãos atingirem seus os méritos e conquistas.
Teorias raciais e ciências são os temas centrais do quarto capítulo. Essas teorias
que consideravam os negros como inferiores aos brancos ou com menores capacidades
cognitivas mostram-se relevantes, pois foram aceitas por parte da sociedade no século
XIX e XX, e serviram de argumentos para conquistas imperialistas e opressões. Nesse
sentido, devemos discutir como ocorreu parte desse contexto, entender o motivo dessas
indagações, e qual o papel das ciências nesse espaço de circulação de saberes. Ademais,
quais as consequências interpretativas na atualidade.
O quinto capítulo delimita o lugar das religiões de matriz africana no Brasil.
Historicamente professada por uma maioria negra, oriunda da escravidão e erguida por
resistências constantes de sua população, assim como no passado, seus adeptos sofrem
ainda na atualidade constantes perseguições e preconceitos. As religiões cristãs
dominantes insistem em constituir uma sociedade baseada em seus dogmas, ignorando
completamente a existência e convivência com religiões minoritárias. Analisaremos
uma série de notícias recentes que mostram como a intolerância religiosa está longe de
desaparecer.
O sexto e último capítulo, intitulado de Questões sobre o racismo moderno, tem
como objetivo pinçar aleatoriamente alguns comentários na internet e em redes sociais e
trazê-los para o livro no esforço de respondê-los. Mais que isso, é um exercício para
mostrar ao leitor a variedade de eufemismos projetados no espaço virtual, de maneira
consciente ou não, revelando assim, a presença do discurso da desigualdade nas relações
raciais. Os comentários evidenciam o motivo pelo qual a "democracia racial brasileira"
é uma falácia.
As considerações finais compõem uma espécie de clichê para induzir a
continuidade da discussão do livro. Um adicional na constituição de mais um elo na
corrente antirracista, sobretudo, na observação do aumento do racismo no espaço
virtual. Não entendemos essa discussão como um fim, mas sim um balanço geral dos
argumentos propostos ao longo da leitura, para pensarmos sobre a condução dos debates
entre cor e raça projetados no Brasil nos espaços públicos e virtuais.
O livro, em suma, propõe um debate recorrente da História do Brasil, mas ao
mesmo tempo oferece uma perspectiva argumentativa para uma série de novas
indagações surgidas diariamente, na tentativa de reproduzir ou justificar práticas
racistas. À moda brasileira, o racismo cheio de eufemismos, sutilezas e quase
transparente, constitui-se como uma das formas de opressão de mais efetividade, uma
vez que as marcas não são somente físicas, mas também morais e sociais.
Mesmo na ausência de uma luta física velada, nas praças ou nas ruas, a
conjuntura social do racismo à brasileira permanece diariamente na retórica. Se nos for
permitido uma analogia, o racismo é como a águia, eleita por Zeus, na mitologia grega,
a todos os dias comer o fígado do Titã Prometeu. Este último, imortal, regeneraria
diariamente o órgão e repetindo seu flagelo e dor pela eternidade. Comparativamente, o
fígado é o direito, a moral e a dignidade daquele Prometeu representado pelo cidadão
vitimado pelo racismo e que se regenera diariamente na esperança de não ver mais a
águia no horizonte planando para mais um dia de tortura.
Capítulo 1
O Brasil é um país racista?

Sim, o Brasil é um país racista. Mas por que? Para responder a questão dois
elementos merecem tratamento reflexivo. O primeiro é compreender o significado do
termo "raça". O segundo consiste em desvendar o que consideramos um "país racista".
Raça e racismo geram múltiplas interpretações, dependendo da carga de compreensão
de quem reproduz os conceitos, permitindo uma certa flexibilidade na qual será ajustado
a partir de uma leitura de mundo. Isso ocorre também porque a pluralidade do termo
raça ganhou significados distintos na história do país.
Para muitos intelectuais, a raça poderia representar as características que
diferenciariam um ser humano de outro, não só pela cor da pele como também pelos
locais de nascimento. Por este motivo, nem sempre uma interpretação uníssona sobre o
conceito de raça se fez no Brasil. No início do século passado diversos intelectuais
divergiam no que consideravam "diferenças raciais". Muitas vezes, negavam as
diferenças de cor e em outros momentos ressaltavam a diferença, como prova da divisão
racial. Em vista dessa pluralidade interpretativa, existe a necessidade em pinçar grupos
ou indivíduos para analisar à parte as suas ideias em um tempo e espaço, especialmente
sua compreensão de raça.
Na esteira do cientificismo do XIX deu-se o nome de poligenismo para a
concepção do surgimento dos seres humanos em locais distintos. Diferentemente da sua
oposição, o monogenismo - tese explicativa da qual a humanidade era oriunda do
mesmo local e somente depois teria sido distribuída pelo mundo -, o poligenismo
ressaltava que diversos grupos humanos nasceram em regiões diferentes, dando origem
a dessemelhantes raças humanas. Isso explicaria o porquê em determinadas regiões
encontramos um padrão de "tipo humano" e em outras visualizamos outro "padrão".
Pensando tais diferenças, o Brasil seria privilegiado pela sua miscigenação, da
qual caracterizaria sua identidade enquanto nação. Com os grupos nativos filhos desta
terra, a vinda dos brancos europeus e, posteriormente, a mão de obra africana
escravizada no país, possibilitou o entrelaçamento de variedades hereditárias em que o
resultado foi o brasileiro. Além disso, a imigração europeia que viria na segunda metade
do século XIX transformaria a mescla em algo ainda maior. Trocando por miúdos,
temos uma composição tão vasta de "tipos humanos" que seria impossível nos
adequarmos a uma suposta "raça pura", por exemplo. O que nos torna brasileiros é a
antítese da dita pureza racial.
Muitos intelectuais defendiam que a característica da pluralidade racial
constituía nossa representação no mundo. Assim, o brasileiro seria, por excelência,
caracterizado pela miscigenação que o gerara. Qualquer discurso que flertasse com
alguma raça pura no Brasil estaria cometendo um deslize interpretativo na compreensão
da própria formação do povo brasileiro. Desde holandeses, alemães até aos japoneses,
da mistura com populações indígenas e africanas das mais variadas, a representação do
brasileiro organizou-se em volta de um laboratório racial.
Entretanto, muitos acreditavam em uma mudança na condução hereditária, e,
dessa forma, o país caminharia rumo a um ideal de raça pura e branca. O professor
Oliveira Vianna, imortalizado na Academia Brasileira de Letras, diria nas décadas
iniciais do século XX que a partir de um plano condicionado de casamentos assistidos, o
Brasil poderia embranquecer gradativamente os seus habitantes. Ao contrário de
Vianna, o jurista e político Alberto Torres não concordava com a tese da substituição da
nossa nacionalidade por "tipos racialmente idealizados", como o branco europeu. Para
Torres, seria uma fantasia nutrir essas crenças. O médico e eugenista Renato Kehl, por
sua vez, acreditava na eficácia da proibição ou controle do casamento entre brancos e
negros para o controle racial. Sendo assim, em um espaço de tempo, o branco
prevaleceria e o negro seria extinto. De toda forma, estes são exemplos das diferentes
perspectivas que dialogavam no pensamento social brasileiro do país.
Em vista de tais concepções, particularmente a de Vianna e Kehl, estavam
assentadas na idealização da cor branca como superior a qualquer outra, principalmente
por tomar o europeu como referência de civilização adiantada em comparação aos
demais povos. Era comum observar a Europa como centro da evolução material e
intelectual, produzindo revoluções, pensamentos, maquinários e avanços considerados
superiores àqueles realizados em qualquer outro território do planeta. Por esta lógica,
bastava os europeus povoarem outras regiões para que elas, naturalmente, se
desenvolvessem de maneira semelhante.
Embora a miscigenação estivesse na base da nação brasileira, muitos defendiam
a ideia de que a mistura racial era imprópria para o desenvolvimento do país, uma vez
que afastava o ideal de "tipos humanos" homogêneos. Em síntese, a mistura não
representaria nem uma coisa, nem outra, mas significaria uma anulação da
potencialidade humana.
O termo raça compreenderia as características físicas e intelectuais que
distinguiam os indivíduos, tais peculiaridades representariam o grau de moralidade de
cada grupo. Não foi à toa que muitos adeptos das diferenças raciais atribuíam condutas
morais aos traços físicos. Um exemplo esteve na relação entre o negro e o intelecto. Na
concepção de alguns teóricos raciais, a inteligência do negro estaria degraus abaixo
quando comparada à capacidade intelectual do branco.
Este argumento tornou-se presente ao longo da história do Brasil para questionar
a ausência de negros ocupando posições intelectuais de prestígio. A carência de
intelectuais negros era, para muitos racialistas, resultado da sua própria incapacidade
intelectual. Entretanto, a formação intelectual brasileira advém, em sua maioria, de
condições econômicas e sociais, especialmente representada por indivíduos pertencentes
a famílias privilegiadas - e consequentemente brancas. Isto porque o negro ficou à
margem da hierarquia social, subjulgado desde o processo de escravização, como
ferramenta de trabalho do homem branco. Por este contexto, parece impensável um
cenário em que um escravo negro ou liberto assumisse a condição e aceitação na
intelectualidade da época. Embora existissem as exceções, havia uma diferença latente
entre os filhos de brancos formados em Coimbra ou escolas europeias, e os escravizados
e libertados tomados como força de trabalho. À época, a conclusão parecia óbvia na
leitura das capacidades raciais, cristalizando-se o pensamento de que "o negro era
intelectualmente inferior ao branco". Futuramente abordaremos a questão com mais
propriedade.
Em meio a um cenário em que qualquer cidadão poderia observar a disparidade
de características físicas por meio da observação racial, ocorre o enraizamento das
diferenças de raça, especialmente justificadas por uma carga histórica de hierarquização
de grupos. Nessa compreensão que entendemos o sentido de raça, como se diferenciam
as características físicas e mentais dos seres humanos. Esta questão pode ser percebida
em termos de "unidade nacional", à medida que diferentes grupos disputam o mesmo
espaço nacional.
Ao colocarmos à mesa a questão da nacionalidade, compete agora expor as
concepções que levam à leitura da imagem de um "país racista". Embora o assunto já
tenha se desenhado nas linhas anteriores, é preciso diferenciar os aspectos individuais
que nos caracterizam, o nosso "estilo racista" em comparação com outros. Este é um
exercício importante para diferenciarmos o modus operandi do racismo à brasileira.
Pode-se tomar o próprio continente americano como modelo para notar
semelhanças e diferenças nas relações raciais. Os Estados Unidos são um país que
possui a marca da divisão racial e tem em sua contemporaneidade a permanência de
tensões sociais envolvendo grupos brancos e negros. Em comparação ao Brasil, os
estadunidenses viveram em sua história a experiência do uso exploratório da mão de
obra negra como escravizada e contribuíram para o sentido hierarquizante das
diferenças raciais. Nesse mesmo país também foram gestadas e importadas uma gama
de explicações teóricas das diferenças raciais entre brancos e negros. Em um sentido
prático, perseguições tornaram-se rotineiras a grupos negros. Exclusões e separatismos
fomentaram um quadro de insustentável convivência, motivado por diferenças raciais.
Nos Estados Unidos, o conflito tornou-se público e gerou embate de direitos e, não
raramente, conflitos violentos à luz da sociedade.
A história do racismo em um país como os Estados Unidos não findou com o
término da escravidão, e pelo contrário, percorre todo o século XX e toma novos
contornos no XXI. Vale lembrar que aquele país foi um dos maiores propagandistas e
adeptos de resoluções práticas eugênicas, da qual a comunidade negra tornou-se um
alvo corrente. Além deste, outros grupos passaram a ser vistos como "indesejáveis",
sendo abarcados nas políticas eugênicas, por exemplo os mendigos, deficientes físicos e
mentais e indígenas. Pregava-se a segregação e esterilização para evitar a reprodução
destes indivíduos.
Os debates em torno dos direitos da população negra permaneceram durante
todo o século XX, culminando, então, em movimentos organizados nos anos seguintes à
Segunda Guerra Mundial. Entre as décadas de 1950 e 1960, lideranças do movimento
negro exigiam equidade nos direitos em vista da transformação social. Era preciso lutar
contra o preconceito racial, para que houvessem competições igualitárias no âmbito
social por empregos, escolas e moradias.
O pesquisador estadunidense George Andrews tem dedicado parte da sua vida
nos estudos sobre a questão racial no Brasil e nos Estados Unidos. Para ele, mesmo com
os avanços do movimento negro posteriores à morte do icônico símbolo de luta, o pastor
protestante Martin Luther King, as décadas seguintes representaram um processo de
estagnação de direitos, sobretudo pelo fato de o racismo haver se tornado de mais difícil
detecção. O trecho a seguir ilustra a situação:
Os anos 70 também testemunharam uma retomada crescente do
ressentimento e do ódio dos brancos contra os programas
governamentais que presumivelmente favoreciam os negros. Esse
movimento encontrou sua expressão política a nível nacional na
eleição de Ronald Reagan em 1968, que chegou à presidência
prometendo eliminar os programas de igualdade de oportunidade e
reduzir a ajuda governamental aos pobres, que, em grande número,
são negros.2

Este excerto demonstra como a luta por direitos tem uma demanda de conflitos
visíveis entre grupos raciais. A tensão social ainda é latente nos Estados Unidos nos dias
atuais. Em 2014, a cidade de Ferguson, localizada no estado de Missouri, foi manchete
no noticiário global por conta do assassinato cometido pelas forças policias, cuja vítima
foi um jovem negro, tendo este sido dado por motivos confusos e indecifráveis. O
episódio acarretou em uma série de convulsões civis, desencadeando um conflito direto
com a política, e a reflexão da atuação da instituição policial, na maneira como se
portavam com a comunidade negra. No caso em pauta, podemos traçar paralelos com a
realidade brasileira à medida que "grupos perigosos" - um eufemismo para negros e
pobres - são alvos frequentes da polícia e do Estado. Há, e com recorrência alarmante,
um número exponencial de execuções de negros sob as armas da polícia, sem qualquer
justificativa plausível.
Tomando o contexto brasileiro, vale lembrar o estudo da antropóloga Lilia
Schwarcz ao mencionar sobre a ação da cultura policial em conflitos raciais. Para a
pesquisadora, é comum eleger culpados sob a suspeita da cor da pele. O desfecho do
caso de uma chacina no Bar Bodega sugere como a noção da "cultura policial" possui
sua forma operante por critérios raciais:

A referência é uma chacina ocorrida em 10 de agosto de 1996, num


dos muitos "botecos" de classe média da cidade de São Paulo. Os
culpados foram encontrados – em mais um ato de “extrema
competência da polícia brasileira” - e (por acaso) eram todos pretos.
Mais estranheza do que o fato em si causaram seus desenlaces. Cerca
de dez dias depois a polícia libertou os (agora) ex-suspeitos e
apresentou os novos: todos brancos. No entanto, se o evento chocou
pouco dentro do cotidiano violento do país, mais impressionante foi a
pouca repercussão: a imprensa a princípio mal comentou o caso e
raros órgãos reclamaram. Afinal é esse tipo de postura que explica os
dados de criminalidade que apontam que, sujeitos às mesmas
penalidades, os negros têm 80% de chance a mais do que os brancos
de serem incriminados. É com se persistisse um certo pacto histórico:
não se nomeiam publicamente as diferenças, e assim os
constrangimentos são sempre privados.3

Após acionarmos o contexto da questão racial nos Estados Unidos, uma última
consideração deve ser feita antes de voltarmos ao cenário brasileiro: a forma como as
tensões raciais foram tratadas pelos estadunidenses. A indicação de Andrews nos mostra
a dificuldade após os anos de 1970 na identificação de práticas racistas. Elas são
polimorfas. Essas práticas coexistentes no Brasil têm uma prevalência ainda maior,
como mostramos no fragmento da antropóloga brasileira.
O racismo no Brasil tem entre suas características a ênfase na sutileza e nos
eufemismos, esta perspectiva contribui para que o tema racial brasileiro seja tratado
com descaso e falta de seriedade por parte da população. Forjou-se a ideia do racismo
como algo mitológico no país, uma espécie de invenção de grupos sociais para alcançar
privilégios. No entanto, este diagnóstico não é novidade, ele tem um histórico na
organização social brasileira.
No século passado, houve uma diversidade de pesquisas, estas realizadas para
demonstrar as permanências e as características do racismo à brasileira. Ele não seria
uma miragem, mas parte das relações de poder pertencentes ao jogo social. A ideia do
racismo como construção imaginativa na coletividade ocorreu tanto no Brasil, como em
outros países. Um dos pilares dessa crença encontra-se nos acontecimentos do final da
Segunda Guerra Mundial. Naquele momento, o mundo vivenciava uma série de
incertezas, uma vez que foi flagelado pela guerra e experimentou grandes traumas,
como a bomba atômica ou o holocausto de Adolf Hitler e da Alemanha Nazista. Era
preciso repensar novas estratégias para negar o argumento das "raças perfeitas", para
que um novo holocausto não batesse às portas no futuro.
Um dos esforços do pós-guerra foi materializado na criação da United Nations
Educational, Scientific and Cultural Organization, popularmente conhecida como
UNESCO. Nos objetivos da organização constaria o esforço em fomentar produções
intelectuais e eventos acerca da igualdade racial. No turbilhão dos acontecimentos, o
Brasil foi um dos países eleitos para os trabalhos da UNESCO, especialmente porque
acreditava-se que o país era exemplar na condução da igualdade racial e poderia ser um
modelo para o mundo. Nessa perspectiva percebe-se uma leitura de Brasil como uma
região harmoniosa em suas relações raciais4.
Tal "harmonia racial" recebeu um nome de "democracia racial". Intelectuais
como Florestan Fernandes, professor da Universidade de São Paulo, no período após a
segunda grande guerra e fomentado pela UNESCO, produziram estudos que
demonstravam a falseabilidade da dita "democracia racial". Fernandes acreditava que
este era um argumento histórico e oriundo do período colonial, refletindo na ideia
equivocada de que no Brasil não havia racismo. O conceito virou um mito justamente
por estudos como o de Florestan Fernandes sustentarem os desníveis da sociedade
brasileira, tanto nas relações socioeconômicas, como nas dificuldades estruturais da
sociedade dos negros se ascenderem ao chamado "mundo dos brancos".
Uma constelação de estudos surgiu na tentativa de subsidiar o jogo social das
cores e em quais camadas sociais os preconceitos eram edificados. A cada novo estudo
o Brasil se despia da roupagem de um país harmonioso, sem conflitos raciais e sociais, e
mostrava ao mundo a sua forma peculiar de hierarquização social.
Entre os pesquisadores que procuraram este retrato de Brasil racial está Luiz de
Aguiar Costa Pinto, sociólogo brasileiro, que desenvolveu um estudo sobre o negro no
Rio de Janeiro. Costa Pinto notou os desníveis na sociedade brasileira sob os critérios de
cor e raça. De outro modo, ele percebeu que posições específicas no mundo do trabalho
ou na vida social eram regidas pela questão racial. Podemos ilustrar melhor a questão
com alguns de seus quadros quantitativos da década de 1940. Neles é possível entender
como o argumento do Brasil racista se sustenta e como a trajetória do negro foi
construída na relativização da sua cor e raça.
5

Além das informações do quadro, é preciso notar que se trata de uma pesquisa
com quase oitenta anos, uma evidência da longa duração da manutenção das estruturas
de diferenciação racial. É como ouvir parte do grande público dizer que o único período
de desigualdade racial aconteceu na época da escravidão. Por esta lógica, acreditam que
os escravizados libertos a partir de 1888 conseguiram uma igualdade em todas as
esferas sociais e passaram a competir igualmente com branco e a massa imigratória.
Apesar de a abolição formal ter ocorrido, a memória social não apagou as relações
raciais advindas da escravidão e permaneceu com a imagem de inferioridade do negro e
na condição de subproduto humano. Embora livre, o negro continuaria dependente das
condições socioeconômicas impostas pela massa branca. A consequência da
manutenção dessa prática, como expressa no quadro de Costa Pinto, é que mesmo
depois de cinquenta anos do fim da escravidão o desnivelamento racial foi uma
constante.
Os dados sobre Proporção da população alfabetizada de 10 anos e mais,
segundo a cor. Distrito Federal - 1940, são sintomáticos para a percepção dos debates
em torno do sistema educacional brasileiro e quais as possibilidades de ascensão social
pela escolaridade de populações pobres, brancas e negras. A rigor, a questão era tratada
há algum tempo, e sociólogos e historiadores demonstravam assaz preocupação. As
referências de Costa Pinto sugerem quais cores dominavam a balança da escolarização e
quem eram seus beneficiados.
Em meio à pesquisa, Costa Pinto constatou o desnivelamento da alfabetização
quando relacionada às cores da população e sua quantidade de alfabetizados. Somando
os números absolutos, nota-se que em um universo de mais de um milhão de brancos do
Rio de Janeiro naquela década, uma porcentagem de mais de 87%, era alfabetizada. Ao
destacar a população negra, apenas pouco mais da metade era alfabetizada.
Para enfatizar a dinâmica das relações de cor, o sociólogo observou as chamadas
"favelas", onde verificou que 71% da sua composição era de negros e a quota dos
alfabetizados era baixíssima. Ele relata que de cada cem "favelados", 61,91% eram
analfabetos.6
Mas afinal, qual a importância do estudo da década 1940 para o debate da
discussão racial atual se estamos a quase oitenta anos daquele período? Seria um
exagero buscar um trabalho referente à alfabetização da primeira metade do século XX
para justificar a desigualdade e carência de escolarização entre brancos e negros
atualmente? Evidentemente que a sociedade atual apresenta uma nova configuração
quando comparada àquela década. No entanto, ao utilizarmos os estudos de Costa Pinto,
podemos verificar a presença de uma história da desigualdade social por meio da cor. O
quadro nos faz pensar acerca da continuidade de um processo de desigualdade que se
manteve décadas após a escravidão. Se pensarmos na contemporaneidade, a presença de
tais estudos oferece amostras de manutenção da desigualdade racial até os dias atuais,
uma vez que há um elemento de sobrevivência do racismo. Isto está inserido nas
constantes práticas de negação a existência do racismo e das alternativas de reequilibrar
a balança.
Trazendo a questão ao presente, podemos pensar os efeitos das condições de
equidade em nosso sistema educacional, seja no ensino de base ou no ensino superior.
Podemos questionar, por exemplo, qual seria a proporção de negros em comparação aos
brancos nas principais escolas privadas do país? Como são distribuídas na mesma
proporção a divisão de vagas nos cursos de medicina e direito nas universidades
públicas do Brasil? Apesar dos avanços nas últimas décadas no que diz respeito ao
acesso à universidade pública, sobretudo com a inclusão de políticas públicas, a abertura
de novos cursos e universidades e o empenho do governo em promover ações
inclusivas, ainda é possível constatar sociologicamente as "cores" dos cursos. Vale
ressaltar que desde o ano de 2005 o governo brasileiro triplicou os gastou com educação
e democratizou o acesso tanto em universidades particulares - a partir da isenção fiscal -
como na criação de novas universidades públicas7.
Os estudos de Costa Pinto e Florestan Fernandes não foram exceções no mundo
acadêmico. As pesquisas visando o estudo das relações raciais no Brasil encontraram
lugar privilegiado para acadêmicos brasileiros e brasilianistas. Atualmente pode ser
encontrada no mercado editorial, nas bibliotecas universitárias e nas lojas virtuais uma
ampla bibliografia centrada na tentativa de compreender as tensões das relações raciais
à brasileira. Há também uma variedade em espaço tempo, na qual o leitor pode apreciar
estudos desde a Diáspora Africana até estudos mais recentes de racismo no século XIX,
permitindo observar rupturas e continuidades. Carl Degler, Donald Pierson, Roger
Bastide, Octávio Ianni, Oracy Nogueira, Clóvis Moura, Kabenguele Munanga, Thomas
Skidmore, George Andrews, Carlos Hasenbalg, Lilia Moritz Schwarcz, Marcos Chor
Maio e Ricardo Ventura Santos são alguns dos incontáveis pesquisadores que
contribuíram na interpretação das relações raciais no Brasil.
Um olhar cuidadoso para a história da historiografia das relações raciais no
Brasil permite ao leitor identificar os esforços que nos levam a discordar da
"democracia racial" e colocá-la na estante das mitologias fabricadas. Entretanto, a
"democracia racial" é um mito duradouro e persistente, pois mesmo sob efeito do rolo
compressor de estudos justificando a sua condição de mito, ainda se idealiza o formato
de um país igualitário, no qual todos possuem as mesmas chances e condições. A
meritocracia urge como apêndice de sobrevivência desse mito.
O mito costuma ser alimentando, em grande medida, por parte da sociedade que
não percebe ou intencionalmente ignora as práticas de desigualdade social existentes no
Brasil. Talvez, um elemento que explique esse comportamento seja a ausência de
conflitos latentes - como guerras civis - por meio da questão racial. O Brasil vive uma
realidade diferente nesse sentido, se comparado aos Estados Unidos. Como não ocorreu
uma espécie de Apartheid "institucionalizado", ignora-se o fato das outras estruturas
conjecturais forneceram de diferentes maneiras, modelos parecidos de segregação. O
suposto pacifismo brasileiro proporcionou argumentos para o senso comum negar as
tensões sociais e raciais, tratando apenas a escravidão como momento histórico das
diferenças. Passada a escravidão, parte da sociedade entende que todas as formas de
opressão racial foram abolidas. Este é um antigo dilema para a manutenção do mito da
democracia racial, no qual é necessário um conflito bem definido - como a estrutura da
escravidão - para transparecer graus de espoliação.
Entretanto, o cenário atual brasileiro tem mostrado a força da sobrevivência do
mito da democracia racial. Um dos principais órgãos de verificação do Brasil, o
Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE), tem sido uma bússola ignorada
pelos defensores da democracia racial na aceitação da desigualdade pela cor:

O gráfico 5.88 faz uma avaliação entre 2004-2014 e corresponde à distribuição


racial com 10 anos ou mais de idade, entre os 10% com menores rendimentos e o 1%
com maiores rendimentos. Ao delimitarmos os últimos dez anos percebemos um
pequeno avanço em termos de rendimentos para a população declarada negra ou parda.
Mas, em comparação com a população declarada branca, visualiza-se a manutenção de
uma enorme diferença de rendimentos. Em 2014, apenas 17,4% dos declarados negros
ou pardos estão na casa do 1% de maior rendimento. Por sua vez, os declarados brancos
assumem 79,6%.
O diagnóstico do gráfico corrobora com o tom de desigualdade quando
analisamos os indivíduos pertencentes aos 10% dos menores rendimentos. Brancos, em
2014, representaram 22,8%, enquanto a esmagadora maioria negra ou parda constituiu
76%. Além do gráfico econômico, há um outro interessante para nos debruçarmos:

O gráfico 3.79 refere-se à proporção dos estudantes entre 18 a 24 anos de idade


que cursaram o ensino superior, divididos por sexo e cor ou raça. Assim como no
quadro anterior, é admissível fazer um estudo comparativo no intervalo de 10 anos entre
2004 a 2014. O enfoque permanece na relação racial, especialmente no último ano de
apresentação dos dados.
Em paralelo com o primeiro gráfico, nota-se a evolução dos dados entre 2004 e
2014 e a diferença salta aos olhos. Em 2004, apenas 16,7% de pretos ou pardos
frequentavam o ensino superior. Em 2014, o número aumentou para expressivos 45,5%,
ou seja, ultrapassou o dobro em dez anos. Mas esta não é uma exclusividade de negros e
pardos, uma vez que a proporção de estudantes que cursavam o ensino superior cresceu
em sua totalidade de 47,5% para 71,4%. A primeira conclusão possível é que o negro e
o pardo atualmente possuem menos espaços no ensino superior do que o branco possuía
há 10 anos.
Este aumento está alinhado a diversos fatores, como a criação de novas
universidades e centro técnicos, bem como a ampliação de cursos por todo o país.
Embora exista uma progressão, ainda há a ausência de oportunidades igualitárias entre
jovens de 18 a 24 anos no ingresso do ensino superior. Brancos ocupam 71,4%,
enquanto negros e pardos apenas 45,5%. Os últimos representam menos da metade.
Os dados expostos pelo IBGE ratificam a dificuldade em equilibrar a cor da
população brasileira em termos de igualdade de direito e oportunidades. Se
anteriormente a justificativa pesava no contexto da escravidão, novos dados revelam
que mesmo após 120 anos torna-se frágil manter qualquer sustentação da "democracia
racial". Em síntese, o século XX conservou a estrutura de poder das relações raciais e o
seu sucessor, mantém algumas de suas cicatrizes.
Com razão, os mais otimistas destacarão o fator positivo das mudanças nos
últimos anos, pois, mesmo em pequena escala, negros e pardos começaram a desfrutar
de uma condição que era quase exclusiva da população branca. Com efeito, esta é uma
assertiva correta. Contudo, o alerta deve permanecer ligado, à medida que grupos
conservadores reagem às tentativas públicas, buscando coibir a expansão das políticas
públicas e direitos adquiridos. Isso ocorre não exclusivamente através de ações práticas,
mas por meio do discurso de ódio.
À luz da contemporaneidade, é possível identificar dois estilos de grupos que
tentam minimizar o problema do racismo na sociedade atual. Os grupos são compostos
por pais e mães de família, adolescentes, professores, policiais, políticos, padeiros,
advogados, enfim, pessoas comuns da sociedade contaminadas com esse racismo à
brasileira. De forma geral, elas compõem o grosso da sociedade, muitas vezes
seguidoras de dogmas religiosos, adeptas à caridade e normatizadas na estrutura social.
No entanto, no modelo racista brasileiro, essas pessoas são peças participantes da
manutenção da questão racial como divisor social, seja diretamente ou indiretamente.
O primeiro grupo é composto por aqueles, que como já mencionamos, negam a
existência do racismo no Brasil. Ainda justificam a ideia de racismo como uma pauta de
grupos políticos, como da esquerda, na tentativa de promoção ou criar um clima de
separação social.
O segundo grupo é composto pelos autênticos racistas, por assim dizer. São
indivíduos orgulhosos dos laços com a Casa Grande e preservam as interpretações da
comunidade negra como um povo desprovido de alma ou subproduto humano. Não
vêem problemas no humor racista, acham um exagero o "politicamente correto" e
pensam que qualquer ação afirmativa - e aqui podem ser incluídas as mulheres e os
homossexuais - é um esforço para privilegiar esses grupos.
É possível um mesmo cidadão pertencer aos dois grupos. Isto é, cidadão que
defende o argumento da democracia racial e utiliza ferramentas de opressão para
deslegitimar qualquer movimento contra-hegemônico ou pautas de igualdade racial. O
maior problema está na possibilidade de identificar esses grupos pela estrutura montada
do racismo à brasileira. Seu habitat é seguro, sutil e reservado, conservando as
estratégias dos eufemismos raciais. Mesmo com o aparelhamento legislativo contra o
racismo, ocasionando reclusões e multas, as estratégias dos grupos são reinventadas,
dificultando sua presença. Casos surgem com mais evidências quando apropriados pela
imprensa ou flagrados pela internet.
A massificação da internet no novo século trouxe novas formas de interação
entre parte da população brasileira. Embora existentes desde o século XX,
computadores e acesso à internet ganharam mais força durante o século XXI. Com a
internet vieram as redes sociais, como o extinto Orkut e atualmente redes como o
Facebook, Twitter e Youtube, ferramentas de interação em grande escala tanto nas
formas escritas como no audiovisual. Em minutos é possível fazer um vídeo sobre
qualquer assunto e ser visualizado por dezenas de milhares de pessoas em pouco tempo.
Com a integração das redes sociais tornaram-se públicas as opiniões de seus
usuários. O mundo se deparou com a força de um agitador das massas. Em um curto
espaço de tempo é possível arrecadar fundos para a caridade, organizar passeatas ou
protestos sobre assuntos diversos ou mesmo organizar manifestações gigantescas para
uma revolução ou a defesa de uma ideologia. Nesse conjunto impensável de
possibilidades de uso da internet, a sua eficácia também revelou o racismo presente na
mentalidade dos seus participantes.
Fora da incubadora social e, em uma terra ainda sem regulamentações e leis
efetivas, somam-se os comentários e afirmações racistas na internet. Nesses espaços,
alguns indivíduos se sentem seguros para destilar seus sentimentos racistas sem
nenhuma culpa. Travestidos do falso entendimento de "liberdade de expressão",
rapidamente montam-se bandos cada vez maiores para concordar com uma afirmação
preconceituosa e legitimá-la nas redes sociais. Em pouco tempo, a internet representará
um excelente conjunto de fontes para diagnosticar os racismos à brasileira. De toda
forma, a manutenção do "mito da democracia racial brasileira" envenena as
possibilidades de igualdade socioeconômica, notadamente pela crença de que "tudo está
bem" e "nada precisa ser feito”. Entre o "mito" e a "crença" na democracia racial, o que
prevalece é a compreensão da manutenção de um país racista. Para finalizar esse
capítulo a reflexão do intérprete brasileiro Darcy Ribeiro é um convite à reflexão:

O aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que ele dá de si


uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro
para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições
de terrível violência a que é submetido. É de assinalar, porém, que a
ideologia assimilacionista da chamada democracia racial afeta
principalmente os intelectuais negros. Conduzindo‐os a campanhas de
conscientização do negro para a conciliação social e para o combate
ao ódio e ao ressentimento do negro. Seu objetivo ilusório é criar
condições de convivência em que o negro possa aproveitar as linhas
de capilaridade social para ascender, através da adoção explícita das
formas de conduta e de etiqueta dos brancos bem‐sucedidos.10
Capítulo 2
O humor pode ser preconceituoso?

Iniciamos o presente capítulo com um trecho do poema Acredite apenas, do


dramaturgo alemão Bertolt Brecht. O excerto nos conecta com o capítulo anterior e abre
espaço para uma nova discussão a respeito da crença nos discursos que povoam a
sociedade brasileira:

Acredite apenas no que seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem!


Também não acredite no que seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem!
Saibam também que não crer algo significa algo crer!11

O uso do humor está envolvido na crença de sua suavidade. Muitos acreditam


que o humor é livre de qualquer juízo de valor, e que por este motivo recebe uma
autorização moral para qualquer assunto, seja para o bem ou para o mal. Pela alegria do
riso, o humor assumiria uma suposta inocência inviolável, cuja sua única razão seria a
diversão do seu interlocutor. Pensar a razão do humor por este aspecto unilateral ajuda a
esconder suas múltiplas formas de construção, principalmente as subjetivas. Este ponto
vai ao encontro do humor voltado ao riso etnorracial, sustentado na revelação das
diferenças entre nacionalidade e cor, sempre acionando sentidos sociais positivos ou
negativos.
Uma referência para o debate está na leitura de Você conhece aquela?, obra do
professor Dagoberto José Fonseca, que tem como essência a mesma discussão proposta
nesse capítulo, ao elencar as formas como o humor pode ser opressivo e direcionado à
submissão de indivíduos por conta da cor ou nação.
A naturalização do racismo no Brasil fez com que as piadas preconceituosas
fossem vistas não como um problema, mas como uma constituição interna do humor.
Esta perspectiva do humor está atrelada aos argumentos do capítulo anterior, pois se
partirmos de uma "democracia racial", é coerente imaginar que o alvo das piadas não se
ofenderia. A suposta harmonia das raças permitiria sua convivência pacífica mesmo
com o humor repressivo. Dessa forma, o humor é uma estratégia bem-sucedida para a
manutenção da crença da naturalização do racismo.
Embora o humor racista tenha sido identificado na sociedade brasileira, ele
exerceu contrarreações para sua sobrevivência. Uma delas está na negação do chamado
"politicamente correto". Em síntese, o "politicamente correto" é um dispositivo para o
renascimento da sociedade para o modo de agir com ela mesma. Uma autocrítica sobre
a defesa da manutenção das diferenças escondida em determinadas ações. Mesmo com
discordâncias sobre o seu significado, alguns autores entendem que o "politicamente
correto" representaria um conjunto de ações políticas e reformas na linguagem, em vista
da opressão incessante a grupos minoritários. Em partes, nasce dos movimentos dos
direitos civis - como dos Estados Unidos em 1960 - e da expansão do multiculturalismo
em 1980.12
Em linhas gerais, pensamos o "politicamente correto" como uma profilaxia para
uma doença sem controle, talvez o último suspiro para a sociedade reavaliar suas
concepções morais. Assim, o uso do dispositivo pode ser traduzido no despertar de uma
sociedade que não visualiza outras possibilidades de resolver o problema com o tempo,
por meio de uma suposta conscientização coletiva. Todavia, quando chamado à
discussão, o "politicamente correto" causa em uma sociedade preconceituosa repulsa e
objeções.
Um dos argumentos sustentados para sua negação sugere que o uso desse
dispositivo tornaria a sociedade sem graça e mal-humorada, constituindo uma saída
eficaz para que o humor racista continue em vigência por meio de uma roupagem
agradável e justificável. Com a massificação da internet e a amplificação da visibilidade
dos preconceitos raciais, o humor racista ficou exposto e expôs seus reprodutores. A
desconstrução do negro como muleta para o riso passa a sofrer resistência para o
cidadão racista.
Mesmo que argumentem a respeito dos exageros no uso do "politicamente
correto", o conceito não pode ser invalidado. O termo rearranja as formas de pensar o
humor e desmistifica o humor racista como algo positivo. Ao perceber a contrarreação
do público destinado a agir energicamente contra o politicamente correto, o psicólogo
Mateus Gruda salienta que "[...] as críticas mais ferrenhas e caricaturais provêm de um
discurso conservador e hegemônico, o qual tem por fundamento, sobretudo, a
manutenção de uma ordem notoriamente desigual"13.
Este parece ser um local comum em um país como o Brasil, em que parte da sua
população insiste na manutenção do desequilíbrio da igualdade racial. Quando
colocadas no epicentro do riso, as minorias podem ser facilmente deslegitimadas na sua
missão de busca por reparos e direitos sociais. O efeito desse humor racista está em
ressaltar as diferenças dos grupos sociais minoritários, dando ênfase aos padrões e
estereótipos culturais. Este ponto é inteligível no entendimento da sociedade brasileira.
Em outras palavras, são signos de uma sociedade que procura conectar determinados
indivíduos ou grupos a práticas determinadas, muitas vezes atrelando às suas raízes
históricas. Na construção da imagem humorística e social do negro, seus símbolos
apresentariam características atreladas à ociosidade, inclinação ao alcoolismo, à
vadiagem, à promiscuidade, à criminalidade, à selvageria, à negação da intelectualidade,
entre outros atributos negativos.
Mas como podemos identificar essas representações no riso público? É preciso
ilustrar os instrumentos que conviveram com a população brasileira, quase de maneira
imperceptíveis, que possibilitaram rir da cor e perceber sua suposta inferioridade.
Muitos programas televisivos compraram o humor racista sob o argumento de que
quando existe o riso, não há problemas. Tomo como base a televisão, por ser um
aparelho que teve grande alcance nos lares, mas sem desconsiderar a prevalência de
outros, como o rádio. Na televisão, um dos programas humorísticos que ajudou a
cristalizar a imagem do negro de forma negativa foi Os Trapalhões, por 25 anos o
humorístico sobreviveu nos lares e usava o humor discriminatório em seus roteiros. A
longa duração do programa permitiu que várias gerações crescessem sorrindo para as
analogias do negro viciado na bebida, analfabeto e muleta do riso para os outros
membros da trupe. Antônio Carlos Bernardes Gomes vivia o negro Mussum, carregando
toda a carga dos estereótipos culturais da cor.
Uma questão a ser colocada, especialmente sob o signo do "politicamente
correto" e dos movimentos em prol das minorias, está em indagar como Os Trapalhões
sobreviveram por tanto tempo com aquele formato. Não parece ao acaso sobreviver por
décadas sem repensar os vocabulários, subjetividades e apelação nos estereótipos
culturais. Encontraremos a resposta para o questionamento na construção da própria
sociedade brasileira.
Embora com menos popularidade que Os Trapalhões, gerações de brasileiros de
classe média e alta, puderam desfrutar da TV a cabo (ou paga), outros programas que
reproduziam o humor preconceituoso. Um desses programas foi a série South Park, um
desenho animado de quatro amigos vivendo histórias e situações variadas. Trouxemos
esse exemplo devido ao excesso de conteúdo racista e opressivo contra as mais diversas
minorias. Caracterizado pelo excesso de palavrões e vocabulário ofensivo, gerações de
brasileiros que se encontram na fase adulta puderam naturalizar essa forma de humor
racista. Apesar de existir uma diversidade de outros desenhos que apelam para o humor
racial, South Park faz questão de levantar essa bandeira como parte de sua identidade.
Portanto, a ligação entre o riso e o racismo é objetiva e intencional.
Outro elemento a ser destacado e mais contemporâneo no Brasil diz respeito à
comédia stand-up. Em poucas palavras, o stand-up consiste no uso de comediantes de
"cara limpa", isto é, sem maquiagens, cenários ou objetos auxiliares, para provocar o
riso em uma plateia apenas com um roteiro pré-escrito e sua habilidade de atuação.
Embora esta prática humorística exista historicamente há décadas no Brasil e no mundo,
ela se popularizou no habitat nacional apenas no século XXI, especialmente pela
popularização de vídeos na internet. Posteriormente, a televisão incorporou em sua
grade o formato. Por constituir um humor preferencialmente ao vivo, em locais públicos
e sem o recurso editorial da televisão - como cortes ou risadas programadas -, a
novidade está na habilidade do público rir com as piadas do humorista. Assim, o
sucesso do humorista consiste em manter seu público rindo o tempo todo. Mas afinal,
qual o problema?
A dificuldade encontra-se na própria habilidade do humorista com o stand-up,
uma vez que procuram no conforto do tradicionalismo dos estereótipos culturais a sua
sobrevivência. A composição do roteiro do humorista, não raramente, aciona humor
racista, machista e homofóbico na composição do roteiro. Uma estratégia conveniente
para atrair, sem dificuldades, risos de uma população conservadora e marcada em seu
histórico pelo apreço ao humor dos estereótipos culturais. O efeito está em rir do
"outro", notadamente pelo que considera diferente. Como propõe o teórico do riso
Vladímir Propp, o humor “[...] pode residir em condições de ordem histórica, social,
nacional e pessoal. Cada época e cada povo possui seu próprio e específico sentido de
humor e de cômico, que às vezes é incompreensível e inacessível em outras épocas”14.
Assim, na configuração brasileira, os alvos são bem definidos em seus estereótipos
culturais. Uma prática corrente em escala global, mudando apenas mediante ao contexto
de cada nação.
Para somar a esta discussão recomenda-se o documentário O Riso dos Outros, de
Pedro Arantes, lançado em 2012, no qual é mostrada a tensão entre o humor racista e o
"politicamente incorreto". O documentário conta com a participação de personagens do
stand-up nacional e intelectuais que refletem sobre o perigo do humor utilizado. É
possível perceber a visão distorcida e confusa de muitos comediantes no exercício ético
de suas profissões. Aliás, estas confusões e distorções não podem ser levadas como
mera ingenuidade humorística, uma vez que seu uso é intencional e serve como recurso
para obter holofotes e manter seu público cativo.
O riso dos Outros ajuda a perceber as mentes por trás do humor brasileiro,
inclusive aqueles que se escondem na máxima do "humor pelo humor", no qual não há
limites para a naturalização das piadas preconceituosas. Revelam, entre outras coisas, a
falta de empatia com os outros e a incapacidade de compreender os efeitos do humor
depreciativo. Quando imaginam o riso como único objetivo, o humor racista legitima o
pensamento de parte da sociedade que flerta com o racismo, pois o riso irresponsável
ignora qualquer reflexão no campo moral ou ético. A legitimação, portanto, ocorre
porque o riso confirma supostas regras e convenções em que todos aceitam os
pressupostos como uma realidade e não como uma simples abstração.
O ponto alto do documentário está em problematizar por meio humoristas o
discurso do humor preconceituoso. Sendo assim, há um embate entre grupos favoráveis
ao humor "sem limites" e outro que demonstra os problemas nesse tipo de humor. O
primeiro grupo, que justifica o humor por meio do preconceito revela o apreço em
dialogar com o preconceito. Algumas frases são reveladoras:

Comentário 1: "Preta Gil é gorda e a Hebe é velha, todo mundo vai rir
sempre".
Comentário 2: "Estamos colocando de volta o pensamento que já
existe".
Comentário 3: "O único critério da escolha da piada é ser engraçada".
Comentário 4: "Não tem que ter responsabilidade, tem que divertir".
Comentário 5: "Minha pretensão com a comédia é só destruir mesmo".

O Comentário 1 conclui explicitamente a força das piadas motivadas nos


estereótipos culturais, pois se o indivíduo retratado for "gordo" ou "velho", de alguma
forma todos vão rir. O gordo e o velho são ampliações de características, consistem em
maximizar um traço e entrelaçá-lo a uma situação em destaque, ou como diria Henri
Bergson, tornar visível a todos os olhos15. A naturalização do humor preconceituoso
tem como pretensão ligar determinados sujeitos aos estereótipos culturais para alcançar
o riso. Sendo assim, quando a plateia ri da piada, ela entende suas convenções e percebe
seu objetivo. É uma espécie de sistema dedutivo no qual embasa uma premissa
generalizante e direcionada para uma conclusão particular. Segue um exemplo:

Todo preso é um perigoso em potencial. (premissa maior).


Ora, a maioria de indivíduos presos no Brasil são negros. (premissa
menor).
Logo, a maioria dos negros são perigosos. (conclusão).

O excerto acima indica a interpretação de que a maioria dos negros seria


constituída de pessoas perigosas, uma vez os negros comporiam em maior escala o
sistema prisional brasileiro. Ou seja, constrói-se a premissa do negro atrelado à
criminalidade. A insistência nesse estereótipo cria uma imagem de um grupo ligado a
uma determinada ação e ao longo do tempo a naturalização desse cenário torna-se uma
concordância coletiva. Observando essa relação, o humorista absorve as premissas e
transforma o preconceito em piada, que quando oferecida ao seu público, o processo de
inteligibilidade faz o resto do serviço, causando o humor pelos vícios de uma sociedade
preconceituosa.
Tal ponto nos leva ao segundo comentário selecionado do documentário:
"Estamos colocando de volta o pensamento que já existe". De certa maneira, a frase é
verdadeira e expressa uma faceta da realidade. O pensamento do filósofo Alain Deligne,
da Universidade de Müenster, ajuda-nos a refletir sobre essa questão, à medida que o
humor "[...] depende igualmente de um público que saiba apreciar as agressões
maldosas e perceber as alusões”16. Em outras palavras, o riso tem validade por estar no
interior da própria sociedade. Ele apenas é pinçado do imaginário popular, recebe uma
nova roupagem cômica e é devolvido para o mesmo local.
Os comentários 3, 4 e 5 resumem a compreensão dos comediantes na prática do
humor, ou seja, o riso pelo riso, sem reflexão. Para eles, o único objetivo é receber os
aplausos, mesmo que o preço seja destruir o alvo da piada. O conceito de "politicamente
correto" aparece como alternativa para quebrar a concepção do humor como prática de
opressão, sem critérios, irresponsável e destrutivo. Isso ocorre, especialmente, pelo alvo
da piada poder se rebelar contra seu opressor, uma prática pouco frequente em décadas
passadas. Sendo assim, o conceito rompe com o comodismo e o conformismo das
piadas do "negro ladrão", da "loira burra", da "mulher no fogão" e do "homossexual
pederasta". Ao tomar as palavras de Julius Evola, guia do movimento neofascista
italiano, Zygmunt Bauman complementa: "Os racistas reconhecem a diferença e querem
a diferença"17. Por mais que os humoristas, que fazem uso do preconceito racial como
ferramenta de trabalho, neguem qualquer vinculação idológica ao racismo, a construção
do humor sob essa ordenação representa os efeitos da hierarquização racial na
sociedade.
Talvez pela incapacidade de sentir a dor alheia, alguns humoristas trabalham
com o racismo sem compreender seus efeitos no imaginário social, mais ainda aqueles
que atuam nos meios de comunicação como formadores de opinião. A leitura de
sociedade desse grupo compreende violência apenas pelo contato físico, sem reavaliar a
piada racista no conjunto do preconceito. Esta se encaixa perfeitamente na lógica da
"democracia racial", uma vez que uma sociedade apaziguada em suas estruturas raciais
ignora as reações para com o oprimido. A nocividade do humor está em atrair os
eufemismos para a condução de práticas discriminatórias.
É possível ilustrar como o racismo funciona no humor. Imaginemos uma
situação corriqueira na qual afirmássemos explicitamente que um rapaz negro é ladrão
por ser preto. Com testemunhas ou comprovação, estaríamos sujeitos à aplicação da lei,
incitando a discriminação e passível de uma condenação penal ou multa. Então a
afirmação pública de que "todo preto é ladrão" causa penalizações no contrato social.
Há uma barreira legal criada na tentativa de imputar uma correção para uma sociedade
aparentemente indomável na proliferação do racismo, no entanto, existe uma forma de
burlar a lei e fazer a mesma afirmação sem consequências imediatas. Os eufemismos
por meio do humor contribuem para estratificar essa imagem e propagá-la em uma
sociedade receptiva a essa imagem. O humor racista é uma das alternativas de
manutenção das diferenças raciais de forma "suave".
A piada racista se esconderá no discurso do humor, de modo a sobreviver sem
punições. Por esta perspectiva é um lugar comum o discurso de "humor pelo humor",
uma maneira de se dizer qualquer coisa inibindo reações negativas. Caso o leitor ainda
não veja problemas na apropriação do humor como discurso racista, ilustraremos com
algumas das piadas preconceituosas que circulam na sociedade brasileira e sintetizam o
discurso de ódio.
O livro de Dagoberto Fonseca é uma referência para notarmos alguns exemplos
de piadas que circulam nos espaços públicos e virtuais, sobretudo para demonstrar como
o uso dos estereótipos culturais pode estar a serviço da desumanização do indivíduo por
meio da cor da pele. Os exemplos a seguir estão potencializados naquilo que
consideramos o mais desumano possível. Não estamos afirmando que existem piadas
"leves" ou "aceitáveis" quando se trata de opressão, mas servem como modelo de onde
o preconceito pode chegar:

Por que barata não sobe em preto?


Porque tem nojo.

Por que o leão lambe o ânus depois de comer um preto?


Para tirar o gosto ruim da boca.

Por que caixão de preto é cheio de furinhos?


Para os vermes poderem vomitar.

Há um enorme desconforto em citar este tipo de humor preconceituoso, mas a


omissão contribui para a propagação do ódio. Uma rápida pesquisa na internet é o
suficiente para o leitor se deparar com essas piadas, bem como notar os aplausos que
seus reprodutores recebem de outros usuários. A naturalização das "piadas de negros" é
tão comuns que é possível encontrar em sites de internet um lugar reservado
especialmente a elas. Os três exemplos mencionados expressam o puro ódio contra
indivíduos por conta da cor da pele. No contexto do preconceito, o negro é colocado na
posição mais humilhante imaginável, rebaixando sua condição existencial a uma barata,
um verme ou o ânus.
Tais piadas racistas ajudam a desmontar a imagem de que piadas raciais não
possuem conotação ofensiva ou são estritamente ingênuas. Mesmo que tomássemos
essas justificativas, todas elas apresentam um caráter de manutenção da desigualdade
racial em relação ao branco. Acreditar que piadas de cunho racistas possam ser
classificadas como "suaves" ou "radicais" ajuda a sobrevivência do discurso opressor.
Aliás, ao nomearmos esse falso humor como "piadas racistas" já estamos classificando
seu sentido.
Embora nosso diagnóstico tenha se concentrado na atualidade, o retrato do
humor racista tem sua história. Autores como Florestan Fernandes indagavam a
formação do preconceito aliado à representações de comunidades negras. Desse modo, a
idealização do estereótipo cultural do negro presente no humor racista é uma evidência
do histórica das relações raciais no país. Assim, o humor racista sobrevive pela própria
leitura social, que o absorve e ri com ele. A avaliação de Florestan Fernandes é oportuna
no debate:
Enquanto e na medida em que se viam excluídos de tais formas de
"ganhar a vida", o negro e o mulato não tinham como participar
econômica, social e culturalmente daquela civilização. Ficavam
condenados a um isolamento disfarçado, ajudando-se deficientemente
ao mundo urbano, através da herança sociocultural transplantada do
antigo passado rústico do "escravo" e do "liberto".18

A construção histórica sintetiza como o humor pode ser formulado a partir de


uma condição histórico-social. Na exclusão do negro como material humano
preferencial para o trabalho, relegando-o a determinadas condições ou especificidades
de ofícios, cria-se dentro da estrutura social um desnivelamento. É possível perceber
essa relação nos estudos de outros pesquisadores que se debruçaram a compreender os
estereótipos culturais. Entre eles, há o livro organizado pela historiadora Isabel Lustosa,
chamado Imprensa Humor e caricatura: A questão dos estereótipos culturais, publicado
em 2011. A pesquisa é uma ótima opção de leitura para entender sob diferentes ângulos
os usos do humor ao longo de contextos históricos no Brasil e no mundo. Embora os
textos estejam mais voltados para as pesquisas acadêmicas, qualquer leitor pode
perceber a presença da teorização do humor. A reunião de pesquisadores possibilitou
pensar o humor em escala macro, trazendo exemplos de fora do Brasil como sistema
comparativo. Em um dos capítulos, a historiadora da arte Marcela Gené demonstra
como o judeu foi visto na imprensa de Buenos Aires entre os anos de 1930-1940,
especialmente pela elevação do sentimento antissemita que pairava em parte do
imaginário argentino. Na tentativa de demonizar os judeus, foi produzida uma série de
propagandas de negação, comparando-os a demônios, monstros ou associando-os a
incestos repulsivos.
Em vista da presente discussão, o professor de Literatura Portuguesa, Rui Zink,
em capítulo dedicado ao entendimento dos estereótipos culturais, resume um pouco do
debate feito até agora:

O estereótipo é generalista e errado - individualmente errado, mas,


também, estatisticamente errado. Pode, no entanto, ser também
individualmente certo. O interessante é ver quando um acontecimento
nega ou confirma o que "já sabíamos" ou suspeitávamos. Somos
médicos lendo sintomas: traçamos desenhos que, como os esquemas
de Rorschach, só fazem sentido para nós mesmos. Um acontecimento
será, então, sempre a confirmação "típica" ou do que é "proverbial"
etc.19
A caminho do "já sabíamos" ou do "suspeitávamos" nos estereótipos culturais,
os humoristas podem optar por outra leitura do cômico, buscando outras opções. É
possível fazer humor voltado à desconstrução do racismo ou mesmo como forma de
denúncia das práticas racistas. Embora exija uma habilidade maior, o desafio do humor
atual está em rir do opressor e não do oprimido. Muitos chargistas têm se aventurado
com sucesso na condução de denunciar o racismo.
As charges do chargista Junião têm como característica o uso do humor
reflexivo, como forma de denúncia ao racismo. Nas duas imagens, é possível visualizar
a questão racial na sociedade brasileira e sua forma de ação no dia a dia. A abordagem
policial a um homem negro na primeira caricatura revela o estereótipo cultural do negro
criminoso, suspeito em potencial quando apropriado do "lugar do branco". Na dinâmica
racista, um negro em um carro pode ser interpretado como um suposto ladrão de
veículos. Não à toa, a ação policial contra a população negra é responsável por
genocídios ano após ano. O gráfico a seguir representa a taxa de homicídio entre jovens
brancos e negros em diversas regiões do país.20
Os dados ilustram a percepção do negro como um "perigo social", pronto para
ser combatido pelo aparato do Estado. O diferente tratamento por parte do Estado com
jovens negros e brancos ressalta a força das relações raciais. O branco raramente sofre
os mesmos constrangimentos da população negra, inferiorizada quando toma para si
aquilo que simbolicamente não lhe pertence.
A outra charge, por sua vez, faz o paralelo do racista brasileiro com a Ku Klux
Klan, movimento que alardeava a supremacia branca e a opressão explícita e violenta
contra negros. Na mesma ótica, o racista não vê problemas em propagar o preconceito
racial, naturalizando-o em seu cotidiano como prática frequente. Pelo contrário, acusa o
seu denunciante de restrição da liberdade de expressão e mal humor. Como se o racismo
fosse assegurado na Constituição.
De maneira geral, as charges selecionadas buscam perceber os preconceitos
raciais, mas ao invés de utilizarem a questão racial na forma de humor opressivo, tratam
como denúncias. Assim, além do riso, as charges convidam o seu receptor à reflexão.
Nessa configuração o riso se alinha à própria arte, dimensionando a possibilidade de
atuação do humor. As charges que buscam quebrar os estereótipos culturais constituem
esforços de mudança social e tentativa de reequilíbrio das desigualdades.
Por fim, podemos fazer alguns questionamentos do capítulo. Qual o tipo de
humor que mais lhe agrada? Você acha saudável o humor racista? Quantas pessoas você
conhece que se adorariam rir com o humor preconceituoso? Depois dessas respostas,
uma última pergunta se faz necessária: Você crê que exista uma "democracia racial" no
Brasil?

Capítulo 3
A História, os contextos, e os esforços em
deslegitimar a igualdade racial.

Sem muito esforço, é comum ao acessar a internet ou redes sociais encontrar


uma gama de "historiadores por geração espontânea". Grosso modo, a geração
espontânea, ou abiogênese, era o nome atribuído à doutrina do surgimento da vida a
partir da matéria bruta/inanimada. Assim, crocodilos poderiam surgir da lama ou ratos
nasceriam com a combinação de um pano sujo no canto de uma cozinha. Embora este
pensamento não faça mais parte do estado da arte da ciência contemporânea, ele faz
parte de uma história das ciências e é produto de manuais para conhecermos o passado
do pensamento científico, especialmente quando tratamos sobre as controvérsias da
origem da vida. É com base nos preceitos da abiogênese que propomos de forma bem-
humorada a relação com os "historiadores por geração espontânea".
"Historiadores por geração espontânea" são pessoas comuns, na maioria das
vezes sem formação na área, despreocupado com métodos, teorias ou o rigor científico,
mas que repentinamente se posicionam como desmistificadores de todo o conhecimento
histórico presente. Operam na busca de textos e interpretações independentes sobre
questões do seu interesse, sobretudo, na vontade de desmontar ideias que consideram
equivocadas ou discordantes de suas crenças particulares. Antes de prosseguirmos,
devemos alertar sobre os usos e abusos da História.
Inicialmente, devemos sublinhar que a História não pertence a um grupo ou
pessoas eleitas. Assim como qualquer outra ciência, ela pode ser contestada e ter seus
paradigmas colocados à analise dos pares. Na verdade, quanto mais pessoas se
aproximam da História, melhor é para o conhecimento de quem somos e o que
queremos enquanto indivíduos ou nação. O problema que queremos colocar está no uso
da História com o objetivo de transfigurá-la na tentativa de defender pressupostos
ideológicos. Nesse momento nascem os "historiadores por abiogênese", sem
responsabilidades e intencionados a modelar a História segundo interesses obscuros.
Vale a pena separar um rápido exemplo.
Atualmente vivemos uma polarização política de choques ideológicos, mais
especificamente entre ideologia de esquerda versus ideologia de direita. Há uma
constante troca de acusações baseada em elementos da história na tentativa de
deslegitimar o discurso alheio, seja de direita ou de esquerda. Nesse sentido, por
exemplo, é comum verificar no espaço virtual certos grupos replicarem o argumento
que Adolf Hitler, o Führer da Alemanha Nazista, era socialista ou comunista. Mas por
que isso acontece? Em primeiro lugar a figura de Hitler atrelada à Segunda Guerra
Mundial e ao Holocausto virou sinônimo de repulsa, ou seja, qualquer questão ligada à
sua imagem tem por consequência imediata a abominação. Não à toa, o historiador
inglês Eric Hobsbawm definiu o século XX como a Era dos Extremos. Por muitas vezes
chegamos bem perto da autodestruição. Nesse contexto, Hitler foi um personagem que
causou repulsa e contribuiu para essa avaliação draconiana. Parece claro que nenhuma
grande marca comercial ou pensamento ideológico gostaria de ter seu nome vinculado
ao líder nazista.
Hitler pertenceu ao nacional-socialismo, na condução de um partido de extrema-
direita. Embora a questão seja um consenso na historiografia, aparecem diversas vozes
reivindicando uma suposta ideologia de esquerda em Hitler e no Nazismo. Os
argumentos utilizados são rasos. Para defender essa ideia, alguns afirmam que o nome
do partido de Hitler, a saber, Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães,
era uma evidência de traços socialistas em sua doutrina. O pensamento precipitado
procura ligar o termo Partido dos Trabalhadores Alemães às experiências de partidos
atuais que defendem realmente a causa do trabalhador. Esta manipulação da história
atua para demonizar qualquer partido de esquerda atualmente.
Outro ponto está na palavra "socialista", presente no nome do partido. Para os
"historiadores por abiogênese" esta é a prova definitiva da associação de Hitler a
doutrinas marxistas. Pela ausência de compreensão de conceitos, como o anacronismo
ou análises contextuais, a conclusão remete a interpretações equivocadas. Uma pitada
de ingenuidade também pode ser oferecida para explicar a aproximação, visto que na
época de Hitler o trabalhador já constituía o centro de movimentos políticos, sendo uma
peça chave de apoio para qualquer governo, principalmente após a Revolução Russa de
1917, em que a massa trabalhadora era motivo de preocupação do jogo político. Como
exemplo, basta perceber a força do operariado brasileiro da década de 1930, momento
em que Hitler e Getúlio Vargas assumiam a gerência dos seus países.
Para qualquer historiador iniciante em contato com a historiografia da Alemanha
Nazista ou de Hitler, é perceptível sua rigidez no trato com a ideologia nazista. São
diversos os trabalhos que mostram seus discursos de ódio racial e antissemita, a
influência de teóricos raciais na sua formação ou mesmo suas concepções que o levaram
para os rumos da extrema-direita. Sem a intenção de esgotar o tema, o contexto de
Hitler serve como exemplo para demonstrar a manipulação da História a fim de
satisfazer ideologias particulares. Tentar isolar parte dos discursos do Führer nazista, na
tentativa de demonstrar um suposto apoio ao "socialismo" ou usar o nome do partido
como ferramenta explicativa para colocá-lo em uma linha política de esquerda, são
algumas das formas de incompreensão da História e suas instrumentalizações. Em
síntese, nem sempre o nome do partido representa a sua verdadeira ideologia política.
Um partido apresentado como "democrático" pode não flertar com a democracia.
Por outro lado, o uso anárquico da História serve para agendas de governos.
Como mencionou Christian Laville, há em torno da História uma "guerra das
narrativas". Governos e ideologias utilizam a disciplina para modelar a memória
coletiva em prol de projetos de Estado. O autor traz um exemplo esclarecedor:

No Japão, por exemplo, há várias décadas historiadores e professores,


apoiados por diversos grupos, entre os quais uma associação para a
verdade na história composta de milhares de membros, combatem a
censura que o Ministério da Educação exerce sobre o conteúdo dos
manuais. É uma censura muito rigorosa. Tudo o que, aos olhos do
ministério, poderia diminuir a imagem positiva do Japão na história é
proibido. Para contar os fatos, é preciso utilizar um vocabulário
padronizado. Assim, para falar da invasão da China pelo Japão na
década de 1930, deve-se falar de "progressão militar"; para falar da
pilhagem de Nankin em 1937, quando 150.000 civis foram
massacrados, conta-se que "o exército japonês ocupou a cidade num
ambiente de agitação excessiva e de cólera"; é preciso escrever
"incidente" ao invés de "revolta", "suicídio coletivo de civis" ao invés
de "massacre", "mulheres de conforto" ao invés de "prostitutas" De
manifestação em manifestação, de processo em processo - alguns dos
quais chegaram até à corte suprema-, bem como sob as pressões
estrangeiras, a situação parece estar se amenizando um pouco. De
fato, não é mais necessário falar da anexação da Coréia em 1910 como
sendo uma "fusão pacífica", e o Primeiro Ministro aceitou reconhecer,
há algum tempo, a questão das "esposas de consolação". Nesse ensino
da história, porém, são sempre e unicamente os termos da narrativa
que estão em causa.21

A função social da História tem um apelo diferente quando se trata de outras


disciplinas. Por exemplo, parece impensável ver cidadãos leigos discutindo sobre a
melhor maneira de executar um transplante de rim, ou, então, sujeitos desprovidos do
menor entendimento de engenharia aeroespacial discutindo profundamente a teoria
cinética dos gases. Todavia, a História tem outro destino, seus assuntos são moedas de
troca em qualquer discussão que envolva a sociedade. A raiz do problema está no
ajuizamento das posições dentro do discurso. É fundamental que a História frequente o
debate social, mas seu uso muitas vezes está a serviço da "guerra das narrativas", na
qual a sua manipulação sem orientações leva à desconexões ou deformações históricas.
Do mesmo modo, é equivocado afirmar que somente historiadores são
autorizados a falar da História, assim como médicos da Medicina. Esta é uma questão já
superada e há no campo da História uma infinidade de títulos escritos por autores com
outras formações, como exemplos podemos citar os livros Corações sujos, de Fernando
Morais, ou a biografia em três volumes sobre o presidente Getúlio Vargas, de Lira Neto,
ambos jornalistas, são exemplos de autores que trafegaram com legitimidade no campo
da História e frequentam as estantes dos ditos historiadores profissionais. O problema
não se apresenta na formação de quem escreve, mas como e por quais motivos escreve.
Um dos perigos aparece quando a opinião do senso comum se transforma em
suposto discurso científico, ignorando os conhecimentos teóricos, metodológicos e o
rigor do estado da arte de uma disciplina. A opinião casual do indivíduo, baseada na sua
experiência e cultura é natural na formação da sociedade. Assim, qualquer cidadão pode
emitir sua opinião sobre temas como aborto, religião, política, economia, esporte, entre
outros. A dificuldade ocorre quando o indivíduo leigo procura, por meio das suas
próprias convicções, ignorar o estado da arte de uma determinada disciplina e impor
uma nova relação. Grosso modo, é como alguém sugerir que é mais prático o corte em
uma cesariana seja realizado por uma serra elétrica do que por um bisturi. Este
exagerado exemplo ilustra como uma opinião pode ter maior crença na sociedade do
que o próprio conhecimento de uma disciplina.
A culpa da popularização do discurso leigo irresponsável no conhecimento
específico pode ser compartilhada com os próprios historiadores e acadêmicos em geral.
No conforto dos muros das universidades, poucos enfrentam o debate público e
procuram contribuir com suas especificidades na compreensão dos temas. Ultimamente
este quadro vem sofrendo alterações, pois acadêmicos como Leandro Karnal e Mario
Sergio Cortella surgem para o debate público não especializado e midiático.
No entanto, o conforto ou a impaciência no diálogo público faz com que figuras
obscuras apareçam para reivindicar a autoridade das disciplinas, tornando-se "manuais
históricos". Como demonstramos com a "guerra das narrativas", há uma disputa política
no bojo da sociedade que contribui para a emergência de indivíduos interessados em
manipular a História. Há a necessidade, como argumentam Harry Collins e Trevor
Pinch em "Mudar a compreensão pública do papel político da ciência e da tecnologia"22.
Esta mudança pode ser feita tanto por pessoas especializadas, quanto por indivíduos
com interesses dos mais variados. Partindo da lógica de que não existe neutralidade nas
posições, resta identificar os objetivos de apropriação da História.
Na prática, a consequência aparece em panfletários ou "guias" amadores que
prometem um revisionismo histórico revelando segredos conspiratórios. É impossível
para o cidadão não especializado acompanhar o ritmo da produção acadêmica,
especialmente sobre assuntos variados e distantes na História. Sabendo disso,
oportunistas criam "guias politicamente incorretos", que pretendem dar conta de todo o
conhecimento histórico e revelar, por meio de uma interpretação duvidosa e particular,
que a História que você conhece é uma farsa. A intenção é colocar todo o conhecimento
histórico sob suspeita, na tentativa de deslegitimar discursos. O objetivo está em
convencer que o cidadão leigo foi enganado por professores e acadêmicos durante toda
a sua vida, prometendo revelar determinadas "verdades históricas". Mas qual a intenção
por trás dessa iniciativa? O que querem transformar no pensamento social?

O uso de Zumbi contra a luta da igualdade racial.

No início do capítulo fizemos referência à importância do contexto histórico.


Analisar as particularidades de um evento, seus signos e transformações é fundamental
para não cairmos em anacronismos. Os chamados "historiadores por geração
espontânea" ignoram a seriedade do trabalho histórico por meio dos contextos. Sabemos
que tempo e espaço são fundamentais para uma análise sóbria da História, evitando
incorrer em avaliações apressadas ou desconectadas. Desse modo, o objetivo desse
capítulo consiste em pensar os usos e abusos da História quando usada de maneira
irresponsável e com intenções exclusivamente políticas. Um exemplo nas afirmações de
que a produção histórica é exclusivamente objeto de uma esquerda política e, portanto,
há a necessidade de "desmistificá-los".
O clima de polarização da política atual contribui para o nascimento dos "guias
desmistificadores". O contexto político apareceu como um quadro promissor para o
lucro de mercados editoriais, especialmente com ascensão do discurso conversador.
Assim, qualquer produto voltado para combater políticas de ideologia de esquerda
ganhaum mercado volumoso. O mercado editorial tem boa recepção e geralmente os
títulos conseguem uma grande quantidade de leitores. Assim, os "guias politicamente
incorretos" buscam abordar o processo histórico de forma maniqueísta. Prometem
revelar informações supostamente escondidas pelos historiadores sobre personagens ou
momentos históricos de grande apelo. Tal abordagem busca iludir o público não
especializado sobre informações históricas desconhecidas. Esta estratégia tem dois
objetivos visíveis: o primeiro, apelar para o sensacionalismo na esperança de vendagem
e sucesso no mercado editorial; o segundo, igualmente importante, está na demonização
dos historiadores e pesquisadores, na tentativa de tarjá-los como indivíduos
exclusivamente políticos.
Se tomarmos a História como modelo, não resta dúvida que existe um campo de
disputa. Existem correntes historiográficas das mais variadas disputando espaços na
interpretação de contextos e conceitos. No entanto, essa disputa é diferente do que
propõem os "guias", pois estes panfletários ignoram o processo do conhecimento
histórico e afirmam apenas um caráter político, à esquerda. Quando abordam um tema,
seguem o caminho do simplismo e das generalizações, revelando a falta de intimidade
com a metodologia e a ciência histórica. Às vezes, em duas ou três páginas, procuram
oferecer uma versão final para acontecimentos em plena discussão nas pesquisas
acadêmicas. Como levar a sério três páginas sobre a Alemanha Nazista, uma vez que a
produção científica sobre o tema e suas problematizações é composta de milhares de
artigos ou livros? Como tentar mudar todo o estado da arte em poucas palavras? A
resposta é simples: o alvo que buscam não está na academia, mas na sociedade, que
procura ferramentas para combater ideologias rivais.
Mas afinal, como este tema interfere nas questões do racismo ou práticas de
deslegitimação da igualdade racial? Acontece quando os "guias" procuram intervir na
naturalização do racismo, demonstrando que práticas opressivas eram "normais" ou
"aconteciam em todos os lugares". Por meio de uma falsa narrativa histórica, sutilmente,
transmitem a mensagem de que as cotas, a luta pela igualdade racial e as políticas
afirmativas são exageros ou desnecessárias. O caso de Zumbi ou o processo de
escravidão entre negros na África é um exemplo a ser notado.
Vamos tentar ilustrar o modus operandi. Existem documentos históricos
demonstrando que um negro ou um grupo de negros possuíam escravizados. Os "guias"
se apropriam desse argumento para tentar diminuir a força da escravidão branca até o
século XIX e destruir o argumento da hierarquização racial, com base no processo
escravista. Mesmo sem a menor lógica, tentam anular os efeitos da escravidão brasileira
usando como base o argumento de que "negros tinham escravizados". A intenção é
induzir que a escravidão não ocorreu pela questão racial e que, portanto, não há a
necessidade de reflexão ou reparos históricos com a população negra. Se a cor não era
levada em consideração, o argumento do branco como opressor do negro cairia em
descrédito.
Não se trata em questionar se Zumbi era ou não um herói, tendo em vista que
esta não é a função do historiador, pois tratar a história como uma disputa de juízo de
valor impede a compreensão da construção das personagens em seu tempo e espaço.
Zumbi é fruto de teses e dissertações e tem seu lugar de discussão na historiografia afro-
brasileira. Assim sendo, é muita pretensão reduzir seu significado histórico a duas ou
três páginas, estas sem o menor critério que pede a disciplina. Por esta perspectiva, a
imagem de Zumbi é utilizada como intenção de desconstruir políticas afirmativas atuais.
A personagem torna-se uma ferramenta histórica de deslegitimar qualquer proposta de
luta pela igualdade. Conflitando a imagem de Zumbi e atribuindo-lhe uma roupagem
opressora, forja-se um novo instrumento de barrar o avanço simbólico da população
negra.
Sem as normatizações acadêmicas tradicionais, os "guias" não procuram
apresentar evidências, mas convencer um setor social de que são a verdade. Por isso é
importante perceber em quais contextos, ideias, fontes disponíveis, entre outras, levaram
um autor a produzir um determinado material histórico. Uma das primeiras lições de
qualquer jovem historiador é discernir quem escreve e o espaço e tempo em que ele se
encontra. Diferentemente do que muitos podem imaginar, a figura de Zumbi não é
intocável. Vários estudos têm como proposta perceber as rupturas e continuidades da
construção de sua imagem tanto no imaginário social, quanto no seu tempo histórico.
Nos ditames das pesquisas acadêmicas uma referência é o livro de Jean Marcel de
Carvalho França e Ricardo Alexandre Ferreira23, historiadores profissionais que
pensaram o discurso da construção de imagem de Zumbi por diferentes perspectivas.
É preciso entender que a imagem de um sujeito histórico tem distintas
apropriações por seus contemporâneos e para as gerações posteriores. Podemos
exemplificar esta relação com outros personagens históricos. Por exemplo, como se deu
a construção da figura do cientista brasileiro Carlos Chagas (1879-1934) em revistas
ilustradas? Chagas foi um dos mais célebres cientistas nacionais, conhecido por
descobrir a doença que leva o seu nome. Premiado internacionalmente, foi visto por
muitos como o sucessor de outro grande cientista brasileiro: Oswaldo Cruz (1872-
1917). Em revistas ilustradas do começo do século XX, notamos o esforço dos
periódicos em legitimar a imagem de Chagas como um dos maiores cientistas do Brasil.
Em contraposição, quando Chagas investe na vida política, especialmente no
Departamento de Saúde Pública, o personagem passa a sofrer algumas contestações. Ou
seja, as impressões sobre Chagas são relativizadas mediante as suas ações na sociedade.
Portanto, a construção da imagem de atores históricos em um determinado
contexto demanda do seu diálogo com seus contemporâneos e as negociações feitas com
os valores de uma sociedade. Tal interpretação não permite ao historiador afirmar que
Chagas era um homem odiado e sua ciência era uma farsa, mas visualizar as formas
como sua imagem foi sendo apropriada em diferentes lugares. É preciso, por exemplo,
notar qual a repercussão dos embates da época no âmbito da ciência; como rivalizou
com outros médicos sobre a doença de Chagas, como ocorreu com Afrânio Peixoto;
quais as posições da Academia Nacional de Medicina; qual o contexto da sua ação
política junto às governanças. Em suma, o trabalho do historiador é mais árduo ao
verificar as fontes e construir uma narrativa que procure explicar todo o contexto.
Carlos Chagas e Zumbi são personagens que podem ser observados por vários ângulos,
mas com maior cuidado na compreensão de suas trajetórias.
Zumbi como símbolo de resistência à escravidão é um poderoso combustível
para a luta por igualdade racial. Reduzi-lo a um mero senhor de escravos é uma
estratégia para confundir parte da sociedade e retirar sua importância para o movimento
negro. Estes "guias" não pretendem mostrar um "novo lado", como sugerem. Não há
embasamento, análise de fontes ou crítica historiográfica para tal efeito. A tentativa é
desconstruir uma imagem de luta em vista de um discurso político.
Nessa análise, qual a mensagem para o leitor? Em primeiro lugar estaria em
desacreditar no que a História diz, como se ela fosse um simples panfletário. Depois, em
fazê-lo desacreditar nas formas de resistência dos oprimidos, desgastando seus
principais símbolos. Tentam oferecer argumentos para seus leitores combaterem as
tentativas de igualdade racial e social, especialmente fomentando um falso discurso
contra a opressão racial da escravidão. Para eles, se o negro escravizava, logo, ele não
teria o direito de contestar a escravidão. Um argumento frágil, criado sem a análise
histórica e a observação dos contextos. Por sua vez, ignoram todo o processo da
Diáspora Africana e as centenas de milhares de homens, mulheres e crianças que
morreram nos navios negreiros antes mesmo de chegarem à América. Esquecem do
cotidiano das gerações de escravizados no Brasil, a separação de famílias, os castigos, a
fome, o banzo e a dor. Tudo passa a ser minimizado pelo reducionismo dos "escravos de
Zumbi".
Se não fosse obstante, ainda procuram em outros sistemas de escravidão formas
de desconsiderar a questão racial no processo brasileiro. Buscam "escravizados de olhos
claros" em outros períodos da História como muleta argumentativa. Essa tentativa de
justificar a escravidão como algo plural vai ao encontro da naturalização da escravidão
brasileira como algo sem importância. Por meio do anacronismo, tentam comparar
modelos de escravidão ao longo da História, para no final induzir que a escravidão no
Brasil foi um processo construído apenas por questões econômicas ou políticas. No
entanto, a mão de obra escravizada empregada no Brasil era constituída de nativos e
negros. Há um alvo racialmente explícito na constituição da demanda. A direção que a
sociedade brasileira seguiu após a abolição formal da escravidão seguiu no sentido de
hierarquização racial. A interpretação era que a raça influenciava tanto no físico, como
na moral dos indivíduos. Não à toa, o branco foi simbolizado como elemento de
progresso civilizatório, e o negro como avesso ao progresso ou mesmo desprovido de
humanidade. Portanto, para perceber a escravidão a brasileira, o aspecto racial assume
lugar fundamental no diagnóstico.
Na falsificação da análise historiográfica, vários "guias" trazem em sua
bibliografia uma série de autores renomados. No entanto, a informação utilizada nessas
obras é seletiva, correspondendo a frases soltas, desconexas, utilizando uma pirotecnia
narrativa para confirmar suas supostas "verdades". A forma infantil como se relacionam
com a História e sua metodologia faz com quem em poucas páginas o leitor crie a ilusão
de ter desconstruído décadas de trabalho historiográfico. Esse é o momento em que o
autor atinge seu objetivo ideológico.
O "historiador por geração espontânea" tem dificuldades para entender o
processo da escrita historiográfica. Em muitos casos, os produtores dos "guias"
procuram essencialmente o mercado editorial e ferramentas ideológicas de dominação.
O ofício do historiador é ignorado, sem importância alguma na confecção do texto, uma
vez que ele não projeta sua circulação no espaço acadêmico. Ele procura o sujeito
desorientado, na tentativa de tentar convencê-lo sobre uma verdade que somente ele
possui.
A "guerra das narrativas" ainda é atual. Diversos grupos procuram estratégias
para afirmar as suas verdades por meio da narrativa histórica. Em especial, com o efeito
político de mudar as relações sociais, propondo a regressão de políticas públicas ou
afirmativas. Quando o negro ocupa o "lugar" do branco, há uma reação imediata da
classe dominante. O fortalecimento de movimentos raciais, gêneros e classe são nocivos
para um sistema que tem na sua força a conservação de estereótipos respondendo a
hierarquias raciais e sociais. Devemos nos manter alertas em quem se apropria da
narrativa histórica e quais suas intenções. Devemos questionar todos aqueles que trazem
uma "história definitiva", sem reflexão, por meio de reducionismos e simplismos. O
conhecimento histórico não permite generalizações e anacronismos, ele tem seus
métodos, regras e uma discussão consolidada na comunidade científica.
Capítulo 4
Teorias raciais: o que foram e como podem
sobreviver
As teorias raciais são partes constitutivas da discussão sobre a questão racial no
Brasil. Embora exista uma literatura farta sobre a discussão, muitas vezes a questão é
mal compreendida por envolver aspectos relacionados às ciências. Geralmente, as
ciências assumem na imaginação popular um instrumento neutro, voltado ao progresso
da humanidade, sem preferências ideológicas ou intencionalidades. Há defensores ainda
hoje da neutralidade científica, principalmente por aqueles que tomam as ciências como
processo linear e benevolente. Assim como outras esferas da sociedade, as ciências não
atuam exclusivamente para o bem ou possuem distanciamento de questões políticas,
econômicas ou raciais. Ela, antes de tudo, é filha do seu tempo.
A neutralidade científica deve permanecer na ficção. Basta qualquer cientista
entrar em seu laboratório para perceber as múltiplas atividades de um pesquisador. Para
colher os louros é preciso administrar as relações humanas, o capital de crédito, as
disputas científicas, as controvérsias, a busca eterna por fomento para as pesquisas, as
publicações, contestações, frustrações, o acumulo de desafetos na comunidade científica
- ou mesmo em seu próprio laboratório, enfim, o cientista é um ser social. Uma
referência para compreender o tema é o livro de Bruno Latour e Steve Woolgar, A vida
de laboratório, pois a obra expõe as facetas do labor científico e desamarra algumas
ilusões sobre uma atividade messiânica.
As ciências respondem a determinados fins dependendo de quem as procuram.
Depois de tratar o tema do contexto histórico no capítulo anterior, podemos agora
elaborar de melhor forma a força desses contextos no pensamento das ciências e como
ela está atrelada às questões raciais. Vale lembrar que boa parte dos estereótipos raciais
que tratamos anteriormente, foram elaborados à luz de um discurso científico.
O termo "teorias raciais" significa aquilo que parece. Foram concepções que
circularam no meio intelectual/científico/social e que classificavam as raças por
diferentes aspectos, físicos e morais. Por exemplo, em muitas interpretações, o negro era
considerado inferior intelectualmente e colocado em categorias abaixo se comparado
aos brancos. Embora desacreditadas na atualidade pelas ciências, elas fizeram parte do
jogo retórico de uma época. Por muito tempo foram levadas com seriedade e
legitimidade para uma parcela da comunidade científica.
Uma vez que o historiador se debruça no passado, a questão é relevante, mais
ainda por encontrar permanências dos discursos na sociedade brasileira. Portanto,
classificar as teorias raciais como "pseudociências" torna-se anacrônico, especialmente
porque a discussão foi inteligível para uma parte de cientistas em um dado momento.
Contudo, isso não diminui suas consequências sociais, uma vez que parte da população
ainda sustenta antigas ideias de inferioridade racial e negociam seus termos com a
sociedade.
A atualidade das teorias raciais encontra maior conforto no discurso dos racistas.
Ainda usam argumentos superados na tentativa de comprovar a inferioridade do negro,
com base científica. É bem verdade que muitos utilizam desses argumentos como
reprodutores do senso comum, sem nem saber ao certo a origem dos termos. Entretanto,
a ideia de uma ciência que comprova a inferioridade racial ainda é muito presente.
Podemos exemplificar seu uso tomando o próprio congresso brasileiro. Em
2015, o deputado Laerte Bessa afirmou na Comissão Especial sobre a redução da
maioridade penal, que um dia a ciência resolveria o problema da criminalidade, pois
identificaria ainda, no útero, potenciais criminosos.
Embora o deputado aparentemente desconheça parte da História global e do seu
próprio país, a prática de identificar criminosos sob aspectos físicos ou mesmo para
impedir seu nascimento fez parte do debate científico no último século. A população
negra foi uma das que sofreu com tais interpretações. Por muito tempo foram acusados
de "criminosos natos", ou seja, eram hereditariamente propensos à criminalidade.
Mesmo tomando como absurda a posição do deputado, ela não é estranha em nossa
sociedade.
Além de alimentar o estereótipo do negro criminoso, o discurso do negro
intelectualmente inferior aparece em meio do aparato científico. A inferioridade
intelectual surge no momento das discussões sobre cotas nas universidades. São dois
contra-argumentos daqueles que negam as cotas:

1- Se o negro não é inferior, qual a necessidade das cotas?


2- Quem defende as costas são os verdadeiros racistas, pois admitem que o
negro não tem capacidade pelos próprios méritos.

Os dois argumentos constituem uma falsa defesa à população negra. É uma


tentativa de inverter o lado do racismo e afirmar que há preconceito com quem defende
políticas afirmativas. A estratégia é defender para reduzir a igualdade por meio das
ações de políticas públicas. O objetivo da defesa das cotas raciais não está em indagar
qual raça é mais inteligente, mas notar, no contexto da sociedade, desníveis de
oportunidade perante a questão da cor. Como notamos no capítulo um, por uma relação
histórica socioeconômica, o branco tem mais chances de atingir níveis superiores e
melhor formação que o negro. Ser contra as cotas, por motivos diversos, faz parte do
diálogo social, no entanto, os eufemismos aparecem quando os contrários às cotas usam
o argumento da intelectualidade e como moeda de troca para sua negação.
A oposição às cotas está relacionada ao ingresso do negro na universidade. Aos
poucos o negro foi ocupando o seu espaço na universidade pública por meio de políticas
públicas. A esmagadora maioria ainda é branca, mas nas últimas décadas o acesso da
população negra vem aumentando. Assim, o argumento da inteligência atua como
dispositivo para que o negro se negue a usar as cotas. Embora as cotas não resolvam
todos os problemas da educação nacional, sua ação é paliativa e procura equacionar o
desequilíbrio racial e socioeconômico no ingresso à universidade.
A questão do acesso à universidade passa pela escolarização de base. Há no
Brasil uma elitização do ensino, na qual um público com melhores condições
financeiras desfruta de melhor qualidade de ensino, por meio das escolas privadas. Por
outro lado, as escolas públicas, muitas vezes sem a devida assistência do governo, têm
dificuldade para oferecer à sua demanda a mesma qualidade. Em síntese, o público da
escola privada obtém melhor preparo para o vestibular. Por sua vez, o vestibular não
leva em conta os aspectos socioeconômicos e as diferentes hierarquizações do ensino.
Em síntese, é como se todos os estudantes tivessem as mesmas condições de acesso à
universidade.
Para pensarmos a relação das costas, o intelectual Kabenguele Munanga destaca:

O fundamental é aumentar o contingente negro no ensino superior de


boa qualidade, descobrindo os caminhos para que isso aconteça.
Para mim, as cotas são uma medida transitória, para acelerar o
processo. No entanto, julgo que não somente os negros, mas também
os brancos pobres têm direito as cotas. Se as cotas forem adotadas,
devem ser cruzados critérios econômicos com critério étnicos.24

A posição de Kabenguele Munanga vai ao encontro da equidade das relações


raciais e econômicas. Sendo assim, o déficit da população negra na universidade está
relacionado à sua condição histórica socioeconômica. Portanto, a reforma social por
meio das políticas públicas e afirmativas são necessárias para tentar reequilibrar este
jogo de força social. A reação contra essas políticas vem por meio do discurso de
mérito, do qual o negro deveria recursar qualquer assistência por ser capaz de alcançar o
topo através dos seus próprios esforços.
Ademais, o discurso do negro como predisposto a criminalidade ou com
capacidade intelectual inferior ao branco permanece enraizada na sociedade brasileira.
A consequência social da manutenção dessas interpreções reflete na vigilância extrema
aos negros no convívio em sociedade e negação às cotas como medida de equiparação
socioeconômica.

O momento da ascensão das teorias raciais

Com grande repercussão no século XIX e XX, as teorias raciais podem ser
datadas desde pelo menos o século XVIII. Embora exista controvérsia sobre a
apropriação do termo raça na história da humanidade, a antropóloga Lilia Schwarcz
sublinha que no início do Oitocentos o termo "raça" ganhou significado com "[...] a
ideia da existência de heranças físicas permanentes entre os vários grupos humanos"25.
A discussão do primeiro capítulo sobre o poligenismo faz parte do entendimento das
diferenciações raciais. Enquanto o seu rival, o monogenismo, afirmava que a
humanidade partiria de um tipo primitivo único, o poligenismo acreditava no
surgimento da humanidade envolveria múltiplos processos, partindo de diferentes
lugares.
Compreender o significado de raça envolve situar a importância dos contextos.
Não é possível tratar o termo de forma única, uma vez que respondeu a diferentes
interpretações ao longo dos séculos. Dessa forma, nosso objetivo é tratar algumas
peculiaridades do termo raça e sua negociação com as teorias raciais debatidas no
Brasil. O esforço consiste em perceber como o termo raça ganha força como elemento
de diferenciação humana.
Partindo do campo intelectual, a célebre obra A origem das espécies, do
naturalista britânico Charles Darwin, teve grande impacto no mundo cientificista ao
demonstrar as diferenças por meio da seleção natural entre as espécies. A leitura
proporcionou diversas interpretações sobre a constituição e modificação das espécies ao
longo do tempo, inclusive nas diferenças raciais humanas. A discussão sobre espécies
mais capazes versus as menos capazes foi sugerida para explicar as relações sociais
humanas, especialmente no que envolve a raça. Muitos movimentos imperialistas foram
explicados sobre essa perspectiva, uma vez que se tratava da conquista do mais apto sob
o menos apto. Uma sociobiologia se tornaria chave explicativa para a identificação dos
chamados "tipos humanos".
É possível tratar com mais prioridade a relação política e de expansionismo
econômico do século XIX com as propostas de diferenciação humana. A prosperidade
econômica e política que viviam países europeus, especialmente entre 1848 a 1875, foi
lembrada por Hobsbawm ao grifar que "[...] nunca brancos de origem européia
dominaram com menos oposição, pois o mundo da economia e do poder capitalista
incluía pelo menos um Estado não europeu, ou melhor, uma federação, os Estados
Unidos da América"26. Em tal contexto, diversos países acreditavam terem o legítimo
direito em conquistar outros povos. Além da latente necessidade econômica do período,
havia a interpretação científica de que as conquistas eram compreensíveis à medida que
determinados povos eram materialmente e intelectualmente superiores a outros.
Parte da intelectualidade europeia acreditava que negros, nativos e amarelos
estariam em um degrau a menos na escala evolutiva quando comparado aos brancos.
Sendo assim, projetavam civilizações com conquistas materiais diferentes como
inferiores. Isto porque tomavam a sua cultura como parâmetro civilizatório. Em outras
palavras, partindo da sociedade inglesa, consideravam sua ciência, artes,
industrialização, maquinários e intelectualidade como topo civilizatório. Este aspecto
era mais visível quando entravam em contato com outras culturas. Por exemplo, em
contato com um grupo nativo ou autóctone, a forma de viver, conquistar alimentos,
religião, compreensão de mundo era adversa aos valores europeus. Do ponto de vista
imperialista, acreditavam que essas populações eram incapazes de atingir materialmente
e intelectualmente o mesmo nível de suas civilizações. A visão de "superiores" e
"inferiores" ajudava a forjar a forma como observavam outros povos.
Entre os intelectuais que contribuíram para este pensamento está o viajante
francês Arthur Gobineau - também conhecido como conde de Gobineau -, um dos mais
importantes adeptos e entusiastas das diferenças humanas do século XIX. Em sua
perspectiva, um dos grandes problemas do atraso intelectual e material estaria na
miscigenação das raças, pois a mistura entre o "diferente" acarretaria na diluição da
pureza e caminharia para a degeneração humana. Este autor considerava, por exemplo,
que a cultura material dos arianos era superior à dos nativos da América. Nos estudos
do antropólogo da Universidade Estadual Paulista, Andreas Hofbauer, Gobineau
visualizava o negro como de "caráter animal" e tinha o instinto de matar pelo prazer de
matar27.
Ainda na França, o médico Paul Broca, um dos pioneiros da antropologia física,
ficou conhecido por estudos relacionados a examinar e medir crânios e traçando padrões
morais e físicos. Por meio das suas pesquisas, ele chegou a conclusão da inferioridade
de negros e mulheres:

O rosto prognático [projetado para a frente], a cor de pele mais ou


menos negra, o cabelo crespo e a inferioridade intelectual e social
estão frequentemente associadas, enquanto a pele mais ou menos
branca, o cabelo liso e o rosto ortognático [reto] constituem os
atributos normais dos grupos mais elevados da escala humana (1866,
p. 280)... Um grupo de pele negra, cabelo crespo e rosto prognático
jamais foi capaz de ascender à civilização (pp. 295-296).28

Na Itália ocorreu algo semelhante. Um grupo representado pelo antropólogo


criminalista Cesare Lombroso realizou diversos estudos antropométrico nos quais as
medições físicas eram o ponto alto da pesquisa. A mediação ajudava a embasar as
alegações de diferenças morais - como a criminalidade - e retratos psicológicos. Assim
como Gobineau, Lombroso era um crítico do processo de miscigenação. Entre suas
conclusões, Lombroso definiria: “De acordo com Maury, o negro nos Estados Unidos, e
no sul da Itália, os albaneses, gregos, e às vezes até a população nativa, mostram a
mesma tendência ao crime associado”29
Na Inglaterra também surgiram teorias explicativas. A partir de estudos
hereditários, ela seria exportada para diferentes países e modificaria as relações raciais
no século XX. Criada por Francis Galton, primo de Charles Darwin, a teoria receberia o
nome de eugenia. Galton sustentava a prevalência de caracteres hereditários qualitativos
nos indivíduos. Também conhecida como "talento hereditário" ou a teoria dos "bem-
nascidos", a eugenia proporia um controle das relações hereditárias na esperança de
selecionar os melhores caracteres humanos. Para amparar suas teses, Galton estudou
diversas personalidades históricas como Alexandre, O Grande, Beethoven e Mozart para
provar que os talentos eram providos de seleção hereditária. Ao estudar a árvore
genealógica e as famílias desses indivíduos acreditou achar elementos que
comprovavam sua tese.
As teses da eugenia ganharam diferentes formas de interpretação ao longo do
tempo. Foram pensadas desde um caráter de reprodução assistida, conscientizando para
a seleção dos melhores caracteres e de uma forma "negativa", com intervenções de
órgãos e do Estado para que a seleção humana fosse aplicada independente da
concordância da população atingida. Para ilustrar de maneira objetiva, o desfecho mais
popular das aplicações draconianas da eugenia acorreu na Alemanha Nazista de Adolf
Hitler. No entanto a repercussão da eugenia atravessou diversas fronteiras. Países como
Estados Unidos, México, Argentina, Brasil, Dinamarca, entre outros, adequaram a tese
eugênica aos seus contextos. Em tempo, vale ressaltar que os Estados Unidos tiveram
grande destaque na aplicação da eugenia em seu território, chegando a esterilizar
milhares de pessoas considerada "indesejáveis" ou "não aptas".
Embora atrelada às questões raciais, a eugenia tinha outras frentes
interpretativas. O sentido racial da eugenia era mais presente em países onde a temática
racial estivesse no jogo das relações políticas e sociais. Em países como Brasil e
Estados Unidos, em que a divisão racial fazia parte da identidade da população,
indivíduos negros e miscigenados eram alvos certos para as políticas eugênicas. A
aplicação de medidas poderia corresponder tanto às restrições imigratórias e controles
matrimoniais, ou, até mesmo, como ocorreu nos Estados Unidos, a esterilização
involuntária para evitar a reprodução.
O Brasil tem um histórico concreto de relações com a eugenia e outras teorias
raciais. Tais temas foram amplamente discutidos na intelectualidade e na política
nacional. Discutiu-se no país as ideias de Gobineau, Paul Broca, Cesare Lombroso e
Francis Galton.
Entre as interpretações das teorias raciais à brasileira, destaca-se a do médico
maranhense Raimundo Nina Rodrigues. Entre suas convicções, acreditava na eficiência
das medidas antropométricas e nas considerações acerca da inferioridade e incivilidade
do negro em relação ao branco. Para o pesquisador Ricardo Ventura Santos:

[...] no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX


provê abundantes exemplos de como eram difundidas as explicações
que alimentavam convicções acerca da desigualdade entre as raças, a
da dominância do biológico sobre o cultural, o intelectual e o moral, e
das consequências negativas dos cruzamentos inter-raciais.30

No clima das interpretações raciais brasileiras, não é surpresa a quantidade de


simpatizantes que consideravam promissoras as ideias de inferioridade entre as raças. A
presença das teorias acentuava a imagem do negro como inferior, sem preparo para
exercer os mesmos direitos dos brancos. Era uma população avessa ao progresso,
sentimento que ritmava a sociedade brasileira no início do século XX.
As teorias raciais estimulavam as posições hierárquicas no Brasil. Afinal, se o
negro possuía o status de "inferior", ele deveria ocupar posições relativas à sua
inferioridade. Por outro lado, o branco, detentor dos melhores caracteres e "superior"
ocuparia por mérito as melhores posições na organização social e econômica. Alguns
adeptos de teorias raciais acreditavam que o negro e o mestiço eram "problemas
passageiros", isto é, a força da hereditariedade iria prevalecer acarretando no
embranquecimento da população. Para essa vertente, o futuro racial era promissor e o
mundo seria povoado apenas por brancos.
A divisão racial brasileira fez florescer o argumento de uma sociedade branca.
Alguns intelectuais projetaram essa realidade em suas obras e discursos, sobretudo na
crença que o passar do tempo teríamos resolvido a questão racial. Um dos personagens
seduzidos por este discurso foi o escritor Monteiro Lobato31, um grande entusiasta da
eugenia, chegando a dedicar seu único romance à temática.
O nome escolhido para o romance foi O presidente negro ou o Choque das
raças. A obra conta a história de Ayrton, um rapaz que ao sofrer um acidente de carro
recupera sua consciência na casa do professor Benson, um cientista que havia
inventando uma engenhoca capaz de observar os acontecimentos do futuro. Benson
morava com sua filha Jane, que faria par romântico ao longo da trama com Ayrton.
Utilizando a máquina do tempo, observaram Ayrton e Jane focaram o ano de 2.228,
momento em que acontecia as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Na narrativa
acontecia uma acirrada disputa entre um candidato à presidência branco e outro negro.
O resultado seria a vitória do presidente negro. Incapaz de reconhecer a derrota, o
presidente branco procurou a ajuda de um cientista para elaborar um produto que teria
duplo efeito em sua fórmula e seria direcionado à comunidade negra dos Estados
Unidos. Em essência, o produto oferecia a promessa de alisar o cabelo de todos os
negros. No entanto, sem que o consumidor soubesse, ele também causava esterilização.
No romance, a maioria dos negros adquireo produto, passando a mensagem que havia a
idealização da comunidade negra em possuir características da população branca.
Inclusive, o próprio presidente negro passa a utilizar o produto. Ao final são reveladas
as propriedades do produto e com a esterilização da maior parte da população negra,
finalmente, os brancos venceriam os negros.
A leitura integral do romance é fundamental para compreender o pensamento
eugênico de Lobato por meio da literatura. O escritor brasileiro tentou publicar seu livro
nos Estados Unidos, mas não obteve o sucesso editorial que esperava. Além disso, era
próximo de Renato Kehl, um dos principais eugenistas brasileiro, do qual correspondia
frequentemente e compartilhava pressupostos eugênicos. De modo geral, usamos
Lobato para demonstrar que o pensamento racial não se restringia apenas aos
médicos/cientistas, mas a todos os intelectuais e políticos que participavam do debate
público.
A recepção da eugenia evidencia a recepção do tema como saída para a questão
racial. A pesquisadora da Universidade de Colúmbia, Nancy Lays Stepan, sublinha o
papel da eugenia como uma possível teoria científica como salvação para a
hereditariedade nacional. Para a autora, "[...] a emergência da eugenia na América
Latina era condicionada pelas ideologias raciais da região. Os brasileiros, por exemplo,
viam-se como um povo racialmente miscigenado e de pele escura, produto de gerações
de cruzamentos entre índios, africanos e europeus"32.
No contexto da desigualdade racial, as teorias raciais compactuam para ampliar
a segregação, salientando as diferenças. No caso específico da eugenia à brasileira,
médicos como Renato Kehl sublinhavam a latente diferença entre brancos e negros e os
perigos da miscigenação racial. Em diversos momentos, hasteou a bandeira contra o
casamento inter-racial considerando uma verdadeira aberração. Em um dos seus livros
mais famosos, Lições de Eugenia, publicado em 1929, concluía:

Dentre os elementos em desassimilação, como dissemos, contam-se os


da raça negra e silvícola. Há uma verdadeira depuração desses
sangues. Ninguém poderá negar, que no correr dos anos,
desaparecerão os negros e os índios das nossas plagas e do mesmo
modo os produtos provenientes desta mestiçagem. A nacionalidade
embranquecerá à custa de muito sabão de coco Ariano!33

Quando Renato Kehl afirma que "A nacionalidade embranquecerá à custa de


muito sabão de coco Ariano", ele estava se referindo à urgência em selecionar
caracteres europeus para a população brasileira. Na sua concepção, dada a inferioridade
do negro em comparação ao branco, com um controle hereditário e respeitando os
preceitos da eugenia, em poucas gerações o Brasil conseguiria aumentar o seu
percentual de população branca.
A crença nas teorias hereditárias contribuiu para o florescimento de medidas
draconianas em várias partes do mundo. Pessoas foram impedidas de imigrar, sofreram
intervenções médicas de esterilização, foram mortas em defesa de melhoramentos
hereditários e raciais. Para ilustrar em números aproximados, entre os anos de 1930 a
1949 mais de 8.500 dinamarqueses teriam sido esterilizados; Na Suécia por volta de 15
mil; Nos Estados Unidos até o final da Segunda Guerra Mundial, 70 mil; no período da
Alemanha nazista 1% da população teria sofrido esterilização involuntária.34
Embora sem registros de esterilização, o Brasil aplicou restrições imigratórias e
compactuou para o pensamento das diferenças raciais. Uma parte da elite brasileira
acreditava que a única solução para o país adentrar na civilização era embranquecendo a
sua população. O aspecto da comprovação científica da inferioridade física e moral do
negro povoou o imaginário da população, sobrevivendo até os dias atuais. Não
raramente, o argumento vem à tona para justificar a incapacidade de ascensão da
população negra.

A sobrevivência das teorias

Pensar as teorias raciais coloca em discussão a história do racismo na sociedade


brasileira. A história do racismo tem longa duração e não é invenção de militantes ou
grupos procurando benefícios pessoais. De modo geral, há uma continuidade do
racismo, na qual ele se transforma e se adapta ao longo do tempo. Quando presenciamos
no século XXI a insistência em associar o negro à criminalidade, percebemos como os
séculos anteriores exercem influência nas discussões atuais.
Não à toa, a comparação intelectual entre brancos e negros segue a mesma
lógica de opressão social. O estereótipo cultural do negro ladrão e intelectualmente
inferior cria mecanismos para reter sua ascensão. A negação das cotas atua como um
eufemismo de negar a existência do racismo, dando uma falsa sensação de igualdade
por mérito. Aqueles compreendem o desnivelamento socioeconômico por meio da cor e
se beneficiam deles, têm consciência da importância em manter as estruturas do racismo
intactas. O argumento do mérito permite visualizar uma miragem de que todos são
iguais. Ao contrário do que se argumenta, a aplicação das cotas não comprova a
inferioridade do negro, mas baliza uma sociedade movida pelasdesigualdades sociais e
raciais. Nesse sentido, a Universidade Federal de Minas Gerais, pautada no Laboratório
de Políticas Públicas/UFRJ, oferece em seu site35 dados que desmistificam parte do
preconceito sobre cotas, especialmente sobre a questão intelectual:
Argumentações deste tipo não são frequentes entre a população negra
e, menos ainda, entre os alunos e alunas cotistas. As cotas são
consideradas por eles, como uma vitória democrática, não como uma
derrota na sua autoestima, ser cotista é hoje um orgulho para estes
alunos e alunas. Porque, nessa condição, há um passado de lutas, de
sofrimento, de derrotas e, também, de conquistas. Há um
compromisso assumido. Há um direito realizado. Hoje, como no
passado, os grupos excluídos e discriminados se sentem mais e não
menos reconhecidos socialmente quando seus direitos são afirmados,
quando a lei cria condições efetivas para lutar contra as diversas
formas de segregação. A multiplicação, nas nossas universidades, de
alunos e alunas pobres, de jovens negros e negras, de filhos e filhas
das mais diversas comunidades indígenas é um orgulho para todos
eles.

Embora pareça exagerado, o argumento de que as cotas raciais são um atestado


da inferioridade do negro é bastante usual. Segundo seus defensores, um negro aceito
por cotas está despreparado para frequentar o curso, em comparação aos seus
concorrentes que entraram pelo modelo tradicional. Ou seja, não conseguiriam
acompanhar o andamento do curso. A única razão desse argumento é depreciar o direito
à igualdade racial e fortalecer a inviabilidade das cotas. Como no fragmento acima, não
existe uma única evidência da queda da qualidade dos alunos cotistas em comparação
aos não cotistas.
Se não há diferença no rendimento do aluno, qual a necessidade das cotas? O
problema não se encontra na fase do curso, mas do acesso à universidade. A relação
socioeconômica influencia na disputa de vagas do vestibular. Quem teve melhor
educação e mais tempo disponível para se dedicar aos estudos, mais chance possui de
ingresso. No Brasil, anualmente, milhares de alunos competem por vagas na
universidade por meio do vestibular. Alunos que obtiveram maior assistência durante o
seu período escolar possuem mais chances comparado àqueles que não desfrutaram de
condições privilegiadas.
Imaginemos duas situações de alunos: Y e Z. O aluno Y cresceu em uma família
estabilizada economicamente, frequentou ótimos colégios privados, nunca passou
necessidade, tem seus horários de lazer e estudos definidos. O aluno Y conta ainda com
um curso à parte de língua estrangeira nas horas vagas. Por sua vez, o aluno Z vem de
escola pública efora do horário escolar trabalha em um supermercado para completar a
renda familiar. Nem sempre o aluno Z tem o jantar garantido e diante o cansaço diário,
não sobra tempo para rever a matéria do dia. Nesse cenário, quais as chances de
ingresso de ambos os alunos no vestibular? Enquanto o aluno que desfruta o ensino
privado tem sua vida preparada para o vestibular, o aluno da escola pública é preparado
para se transformar em mão de obra barata.
Nessa perspectiva, poderíamos colocar que o problema não é racial, mas
econômico. Embora as cotas sociais também façam parte da realidade, ainda é preciso
pensar nas cotas raciais. Na história do racismo, a população negra foi relegada, em sua
maioria, à condição de baixa renda. Sendo assim, a questão racial merece cuidado
especial para se atingir o ajustamento social. Além disso, as cotas raciais são um
expoente de luta contra o racismo, é a afirmação que existe um problema e ele precisa
ser resolvido. É necessário desconstruir os estereótipos culturais que marginalizam a
posição do negro na sociedade. Em uma sociedade desnivelada, é preciso negar a força
da meritocracia como argumento para o mito da democracia racial.
O acesso às redes sociais permite observar algumas estratégias de negação ao
racismo a partir da concepção da meritocracia. Na confecção do argumento, costumam
selecionar personalidades negras para justificar que não há racismo. O caso mais notório
é do ex ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, sempre
chamado à discussão para comprovar que basta ter méritos para atingir a ascensão social
e econômica. Por outro lado, escorregam para explicar o porquê da maioria do STF ser
branca ou qual o motivo das universidades públicas terem em seu maior número pessoas
brancas. A universidade pública, talvez, seja um dos principais instrumentos para
averiguar a desigualdade de ascensão racial no país.
Jornais da grande imprensa contribuem para a manutenção da perspectiva da
meritocracia. Em épocas de divulgação de resultado de vestibulares, procuram enfocar
jovens negros e pobres que conseguiram entrar na universidade mesmo boa assistência
financeira ou educacional. O leitor de tais reportagens passa a confirmar a ideia de
mérito e desacreditar que a sociedade é desigual.
No universo da meritocracia, as exceções funcionam como ferramenta para
negar a problemática relação racial, classe e gênero no país. Ao mesmo tempo, as
generalizações negativas sobrevivem, os estereótipos culturais de opressão do negro
criminoso e inferior permanecem na retórica do racismo.
Para encerrar, a frase do romancista irlandês George Bernard Shaw é excelente
para dimensionar a força das teorias raciais: "Faz-se o negro passar a vida a engraxar
sapatos e depois prova-se a inferioridade moral e biológica do negro pelo fato dele ser
engraxate"36. Fica a reflexão.
Capítulo 5
Religião de branco
A Constituição Federal Brasileira37 tem em seu preâmbulo as garantias da
igualdade, justiça, liberdade, segurança e vários outros direitos sociais. O texto inicial
que acompanha a Constituição é promulgado "sob a proteção de Deus". Ignorando o
discurso laico, a qual Deus que a Constituição se refere? O questionamento aparece
nesse capítulo, à medida que a sociedade brasileira tem tratamento desigual com suas
religiões. Católicos e evangélicos correspondem às religiões dominantes no país. Outras
religiões minoritárias, especialmente de matriz afro-brasileira, dividem o espaço comum
no mosaico religioso brasileiro. No entanto, o clima de convivência entre religiões nem
sempre é harmonioso. Na Constituição, o artigo 5º, que trata da igualdade, refere-se às
garantias da religião:

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo


assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na
forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa
ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-
se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei;

O texto constitucional ampara o direito a todas as religiões, principalmente na


sua forma de respeito, suporte, igualdade e proteção. Parece correto afirmar que, nesses
termos, as religiões existentes no Brasil devem ser respeitadas no exercício de sua
liturgia, cultura e locais de culto. No entanto, na prática, para algumas religiões, o texto
é meramente ficcional. Religiões que possuem sua histórica vinculada à cultura africana
e afro-brasileira carecem de proteção da sua cultura e práticas de cultos.
Para avaliar o impacto das religiões afro-brasileiras é preciso pensar o contexto
histórico e a forma como coexistiram com suas concorrentes no Brasil. Juntamente com
a Diáspora Africana, a população negra trouxe toda sua cultura. Dividida entre nações, a
disposição geográfica da população negra não respeitou vínculos familiares, afetivos ou
territoriais. Ou seja, nações ou grupos que rivalizavam na África, acabavam por dividir
o mesmo teto na escravidão brasileira. Uma vez que vários povos, representantes de
diversos lugares da África estavam reunidos sob um mesmo teto, houve a mistura de
culturas e símbolos. Para suportas as mazelas do sistema de escravidão, a fé foi um dos
alicerces de sobrevivência. Com o passar do tempo, os grupos escravizados foram
misturando os aspectos de sua cultura e a religião foi componente das formas de
interação social.
O pesquisador Vagner Gonçalves, ao estudar os efeitos entre as religiões de
matriz afro-brasileira e o sistema de escravidão da época, menciona as estratégias de
convívio naquele universo. Para alguns senhores de escravizados, era importante manter
viva as práticas religiosas, pois além de consideraram folclore, era um dispositivo de
controle dos escravizados:

Julgavam que sua prática fosse uma forma de os negros manterem


vivas suas tradições africanas e as rivalidades entre os grupos de
escravos provenientes de nações inimigas na África. Assim, a
organização de rebeliões ficaria mais difícil se não se criassem entre
as etnias africanas laços de solidariedade que as aproximassem do
inimigo comum, os escravizadores. Contudo, se as danças e músicas
foram toleradas, o aspecto mágico da religiosidade africana foi
duramente combativo.38

Foram pensadas estratégias de manutenção da ordem para que as rebeliões ou


brigas entre nações rivais não acontecessem. Todavia, a tarefa de silenciar religiões
africanas e afro-brasileiras se mostrou uma tarefa difícil, sobretudo pelo seu poder de
reinvenção e transformação. Não foram raras as tentativas de conversão do negro para a
religião branca dominante, mas a resistência se mostrou eficaz na manutenção das
tradições. Pelo ponto de vista do multiculturalismo percebemos que embora houvesse
resistência, a simbiose entre religiões afros e a religião dominante não deixou de
acontecer, sendo presentes aspectos da religião católica no universo afro-brasileiro.
A formação do candomblé, livro de Nicolau Parés, ajuda a compreender tais
transformações, especialmente o desenvolvimento do antigo Calundu e o surgimento no
Brasil dos chamados "candombléis". À mão de uma documentação a respeito do
surgimento dos candomblés, Parés mostra que em 1807, um escravizado de nome
Antônio estava à frente de um "terreiro de candombléis". A datação do início do século
XIX demonstra a longevidade da formação de religiões como o candomblé no Brasil.39

No corrente século XIX, a expansão das cidades gerou novas formas de


convivências. Negros libertos, escravizados ou mesmo após a abolição formal,
conviviam com a massa branca e imigratória que se avolumavam nas cidades. Com eles,
vieram suas práticas culturais e religiosas, nem sempre aceitas no "espaço do branco". A
religião e aspectos culturais, como a capoeira, foram combatidas por autoridades e
membros das religiões dominantes. O historiador Nicolau Sevcenko ilustra este aspecto:
"As autoridades zelam na perseguição aos candomblés, enquanto João Luso, nas
Crônicas dominicais do Jornal do Comércio, manifesta o seu desassossego com a
popularização crescente desse culto, inclusive dentre as camadas urbanizadas"40.
Assim como no período da escravidão, censuras e perseguições marcariam as
novas etapas de relação entre negros e brancos na História do Brasil. No que diz
respeito às religiões afro-brasileiras, uma maneira encontrada por seus adeptos para
burlar a repressão era migrar para áreas isoladas da cidade. Assim, optavam por lugares
afastados, longe dos olhos de curiosos e do controle político-social.
A reinvenção das estratégias de sobrevivência foi fundamental para a
manutenção dos cultos até a contemporaneidade. Não raramente, o chamado
"sincretismo religioso" foi usado intencionalmente para confundir seus perseguidores. A
mudança de nomes de deuses afros para santos católicos consolidou-se como uma
estratégia eficaz para enganar os censores. Embora fosse uma estratégia de defesa, aos
poucos a simbiose entre religiões afro-brasileira e catolicismo foi acontecendo. O
viajante francês Pierre Verger, um dos mais importantes estudiosos do tema, ilustra a
prática:

Quando o senhor passava ao lado de um grupo no qual eram cantados


a força e o poder vingador de Xangô, o trovão, ou de Oya, divindade
das tempestades e do rio Níger, ou de Obatalá, divindade da criação e
quando ele perguntava o significado daquelas cantigas, respondiam-
lhe sem falta: Yoyo, adoramos à nossa maneira e em nossa língua São
Jerônimo, Santa Bárbara ou o Senhor do Bonfim.41

No entanto, é preciso salientar que crer em uma religião fora das "permitidas"
trazia como consequência a intolerância. Se as estratégias de sobrevivência se
reinventaram ao longo do tempo, as formas de perseguição também se rearranjaram.
Mesmo quando foram consideradas oficialmente livres, as religiões sofriam
perseguições às escuras. O histórico da religião é marcado por repressão dos senhores,
policiais e, mais atualmente, de fanáticos de outras religiões que atuam como agentes
repressivos.
Entre os signos das repressões na atualidade, uma das alternativas de coibir o
avanço dos direitos das religiões afro-brasileiras está na constante prática de
demonização. Isto é, mostrar a religião de matriz africana como opositora da religião
dominante. Apoiados no maniqueísmo, alguns líderes procuram tratar essas religiões
como "culto ao Diabo", a antítese do bem e do Deus cristão. Essa constante luta entre o
Bem versus o Mal faz com que se acumule o ódio às religiões afro-brasileiras,
entendidas como a personificação do mal. A incapacidade de compreender a liturgia e
os processos de culto das religiões de matriz africana foi um dos aspectos facilitadores
para a sua recusa. Ao projetarem nessas religiões o medo, conseguem angariar mais
fiéis e se afastarem de qualquer aproximação ecumênica.
Não à toa, religiões como o candomblé e umbanda, fazem parte do imaginário
coletivo de religiosos católicos e evangélicos como sinônimo de negatividade ou
práticas diabólicas. Dessa forma, o som dos atabaques, uma mãe de santo em suas
vestimentas ou a indicação de um terreiro, soa como aspectos negativos e repudiados. A
figura do "negro macumbeiro" passa a coexistir no jogo social dos estereótipos
culturais, representando o adorador do "demônio cristão".
A intolerância religiosa constitui outro exemplo do racismo à brasileira, uma vez
que a religião de matriz africana se torna alvo de perseguição e ataques físicos e morais.
Por meio da sua autoridade religiosa, líderes de religiões dominantes convulsionam as
massas, para reprimirem e negarem qualquer símbolo ou manifestação afro-brasileira.
No tópico seguinte, ilustraremos alguns casos que diagnosticam o problema da
intolerância religiosa no Brasil, especialmente em vista da negação do discurso afro-
brasileiro.

Quando agentes da lei impõe a religião dominante

Um dos aspectos mais significativos do fanatismo e dominação religiosa


encontra-se no espaço político nacional. A cada ano, grupos de pastores evangélicos
assumem cargos com o intuito de legislar sob a partir da sua moral religiosa e visão de
mundo. O termo "Bancada da Bíblia" tem sido atribuído a esse grupo que usa a religião
como forma de poder político. Devemos ressaltar que qualquer cidadão, independente
de religião tem o direito de ocupar cargos políticos. No entanto, há um sistema
organizado de grupos religiosos com a finalidade de retrocesso social. Esses grupos
utilizam a Constituição Federal como ferramenta para impor suas convicções religiosas
aos demais cidadãos. São formadas para legislar em causa própria, sobretudo em
aspectos da moralidade pública, ditando regras e coibindo ascensão daquilo que
consideram nocivo para uma "sociedade cristã".
Em especial, a atuação vai ao encontro da normatização da sociedade brasileira,
restringindo direitos e aumentando os privilégios da própria religião, como a isenção de
pagamento de tributos. No que diz respeito à normatização, o caso mais repercutido
recentemente aconteceu em 2013, quando foi proposto um projeto de lei para
regularizar o psicólogo a tratar a homossexualidade como doença. Nomeada
popularmente de "cura gay", era assim era definida a proposta:

De autoria do deputado João Campos (PSDB-GO), a proposta pede a


extinção de dois artigos de uma resolução de 1999 do conselho. Um
deles impede a atuação dos profissionais da psicologia para tratar
homossexuais. O outro proíbe qualquer ação coercitiva em favor de
orientações não solicitadas pelo paciente e determina que psicólogos
não se pronunciem publicamente de modo a reforçar preconceitos em
relação a homossexuais.42

A intenção do deputado evangélico e sua bancada era combater de forma direta a


homossexualidade. Alguns líderes religiosos consideram a homossexualidade como
uma prática de abominação e procuram restringir todos os direitos possíveis na tentativa
de repelir da sociedade. Apesar de malsucedida, a proposta demonstra a força do
extremismo religioso quando alinhada à política. Outras propostas circulam com o
mesmo intuito, especialmente no espaço escolar, procurando cercear professores de
discutir sobre questões de sexualidade e gênero em sala de aula.
Outro tema que repercutiu socialmente pela imposição do viés religioso foi a
chamada "Lei do Pai Nosso"43. Seu autor, um vereador evangélico, propôs por meio da
lei de número 3.589/2011, no município de Ilhéus-BA, a institucionalização das orações
do Pai Nosso nas escolas. Na simbologia religiosa, a oração é uma das principais
representações de diálogo com o sobrenatural, no entanto, quando postada como prática
política, visa impor qual a religião a ser ensinada. A lei não propõe a interação com o
ecumenismo, mas com o ritual de um grupo particular. Aliás, vale ressaltar essa
proposta de lei sendo proposta na Bahia, um espaço de maior representatividade das
religiões afro-brasileiras. Essa estratégia em sala de aula tem como pressuposto negar
qualquer outra religião.
Outro episódio que demonstra a perigosa mistura entre extremistas religiosos e
política ocorreu em 2015. Em plena Câmara dos Deputados, parlamentares evangélicos
fizeram uma manifestação contra a realização da parada gay, um evento que acontece
anualmente no país. Em meio à manifestação, os deputados gritavam "Viva Jesus
Cristo". No final, iniciaram uma oração coletiva do Pai Nosso, achincalhando
publicamente a Constituição Federal.
Os fatos expostos são representações de força de grupos religiosos dominantes
ditando regras na sociedade. Um dos principais objetivos está em frear avanços de
comportamentos, orientações ou religiões que consideram inapropriadas. No caso das
religiões afro-brasileiras, além de marginalizadas, é vetada a estas quaisquer propostas
de igualdade ou equiparação com as religiões dominantes.

O ensino religioso na escola

Além do espaço político, a escola tem servido como território de preconceito e


proselitismo religioso. Alguns professores se apropriam de temas de diversidade
religiosa para dogmatizar alunos, impondo o seu sistema de crença como universal e
pertencente à verdade absoluta. Embora seja assaz importante, a disciplina Ensino
Religioso é um exemplo de doutrinação religiosa no espaço escolar. Em sua concepção,
a disciplina deveria contribuir para expandir a visão de mundo dos alunos, mostrando as
diversas religiões existentes e como conviver harmoniosamente com todas elas. Com
um viés voltado à cidadania, o aluno receberia subsídios para respeitar as diferentes
liturgias e aprender que todas têm o direto constitucional de dividir o mesmo espaço.
Contudo, a má formação dos professores para atuarem na área ou a
intencionalidade em utilizar da disciplina como forma de doutrinação religiosa,
impedem que o objetivo da pluralidade seja respeitado. A situação se torna ainda mais
cômoda quando a maioria dos estudantes e seus familiares compartilham religiões
dominantes. Dessa forma, é mais fácil ignorar aquelas religiões marginalizadas e
naturalmente demonizadas no seio social e familiar.
O ponto mais grave está na repressão dos alunos que cultuam religiões
minoritárias. O discurso das religiões dominante impede que as crianças manifestem
outras formas de pensamento. Sentindo-se acuadas, partem para a negação ou omissão
das suas tradições. Crianças adeptas do candomblé, umbanda, umbandomblé,
espiritismo, judaísmo, islamismo, entre outras, são ignoradas e oprimidas por
compartilharem crenças diferentes das dominantes. No caso de religiões de matriz
africana, o preconceito ainda é maior, uma vez que no estereótipo cultural são
comparadas ao diabo ou a ritos perversos.
Dessa forma, a disciplina Ensino Religioso seria uma excelente oportunidade
para encetar o diálogo nos seios daquelas religiões oprimidas pela ascensão do
fanatismo. A maior parte do temor vem do desconhecimento das religiões, fruto de
pastores e padres intolerantes que tentam a todo custo negar suas formas de
convivência.
A falta de diálogos com outras religiões aparece na imposição dos próprios pais
de alunos. Geralmente alinhados com as religiões dominantes e a lavagem cerebral da
intolerância dos pastores, nega que seus filhos entrem em contato com qualquer
informação plural de outras religiões. A censura às religiões minoritárias afeta todas as
disciplinas do espaço escolar, pois tratar sobre a cultura africana ou afro-brasileira vira
um desafio para o professor.
A intervenção do fanatismo religioso vem ocupando o conhecimento e
aprendizado de outras disciplinas. Em 2012, circulou nos noticiários nacionais que
alunos evangélicos de uma escola estadual do Amazonas se negavam a realizar projetos
que envolvessem temáticas da cultura afro. A alienação incluía a exclusão de leituras
como Ubirajara, Iracema, O mulato, Tenda dos Milagres, O Guarany, Macunaíma,
clássicos da literatura brasileira, apenas pelo fato de conterem abordagem sobre
religiões africanas e homossexualidade. Na opinião de um dos alunos:

A Bíblia Sagrada nos ensina que não devemos adorar outros deuses e
quando realizamos um trabalho desses estamos compactuando com a
idéia de que outros deuses existem e isso fere as nossas crenças no
Deus único.44

Por este depoimento podemos perceber que a escola se tornou um espaço de


disputa religiosa, sobretudo para as religiões dominantes. Além do cabresto no ensino,
os que cultuam outras religiões sofrem uma constante perseguição, impedindo de
desfrutarem a liberdade de crença referida no texto constitucional. Mais recentemente,
um aluno de uma escola municipal no Rio de Janeiro foi impedido de frequentar as
aulas usando seus Guias/Colar de Santo45. Não é preciso muito esforço imaginativo para
saber que alunos católicos não são impedidos de dividir o mesmo espaço usando
escapulários ou crucifixos. No entanto, são simbologias "autorizadas" na normatização
das religiões dominantes. Os símbolos afro-brasileiros no espaço público são vistos
como algo errado ou "fora do lugar" e, portanto, devem ser banidos.
Contraditoriamente, a escola atua como um dos principais espaços de exclusão
quando se trata da cultura e religião afro-brasileira. A engenharia criada por extremistas
religiosos tornou o assunto como um tabu ou tema a ser ignorado e censurado. Por meio
da manutenção do desconhecimento e do medo, compactuam para que a cultura negra
seja repelida da sociedade, em seus mais diversos espaços. Permanece a constatação da
democracia racial como mito no Brasil.

Agressão e destruição de espaços religiosos

Além da exclusão política e educacional, os praticantes de religiões afro-


brasileiras sofrem com o excesso de agressões físicas e destruição dos seus locais de
culto. Mesmo com a Constituição garantindo seus ritos e locais de culto, pouco é feito
para coibir a intolerância.
Um caso de grande apelo nacional ocorreu no Rio de Janeiro, em 2015, quando
uma criança de 11 anos foi apedrejada na cabeça por fanáticos religiosos ao sair de um
candomblé. A jovem chegou a desmaiar com a ação, sendo socorrida por outros
praticantes. Além da agressão física, o grupo foi insultado com gritos preconceituosos e
de intolerância religiosa. Segundo a avó da menina:

Quando viram várias pessoas vestidas de branco, começaram a


insultar, gritando que a gente ia “queimar no inferno” por ser
“macumbeiro”.46

"Macumbeiro" e "queimar no inferno" são algumas das acusações e ameaças


recorrentes que sofrem estes os praticantes da cultura afro-brasileira. O termo
"macumbeiro" designa um sentimento diabólico, como se a religião existisse para fazer
o mal. A expressão "queimar no inferno" pode ser compreendida como a máxima
condenação cristã, demonstrando que aquelas pessoas não estão alinhadas com
"verdade" e, por consequência, serão punidas de alguma forma. No caso em questão, o
grupo foi representado pelo mal e condenados por exercerem outra fé.
Os locais sagrados também representam alvos da intolerância religiosa. Grupos
extremistas invadem os locais quebrando seus objetos sagrados, imagens e ateando fogo
no local. Para ilustrar, podemos citar o caso ocorrido em 2014 no terreiro da mãe
Conceição de Lissá. A religiosa afirma sofreu uma tentativa de homicídio e seu local de
culto foi invadido por seis oportunidades.47 Segundo a mãe Conceição de Lissá, os
criminosos entraram na casa e incendiaram o local, destruindo seus bens e estrutura.
A destruição dos locais de culto e atentados aos adeptos das religiões afro-
brasileiras são uma constante no Brasil. Uma rápida pesquisa na internet é suficiente
para perceber a quantidade de agressões que os grupos sofrem de norte a sul do país. No
entanto, há pouca mobilização para mudar esse quadro, sendo ignorado tanto por setores
da polícia, quanto da política.

A força da resistência

Mesmo com a toda a intolerância presente em seu histórico, as religiões de


matriz africana sobrevivem e lutam diariamente para fazer valer seus direitos
constitucionais. Uma tarefa árdua, com pouca sensibilidade política e social. Depois de
séculos de repressão e censura, o cenário atual não parece promissor. Com o
crescimento exponencial das religiões majoritárias, especialmente no seu viés
extremista religioso, as agressões continuam a serem somadas.
Por sua vez, o poder público se mostra incapaz de proteger as religiões
minoritárias, especialmente quando dezenas de fanáticos religiosos ocupam suas
cadeiras legislando para causas próprias. É verdade que existem diversos grupos de
religiões majoritárias procurando dialogar e estabelecer um elo de tolerância com as
religiões minoritárias, no entanto, há uma dificuldade em projetar e aprovar pautas de
proteção. Socialmente, o "Macumbeiro", o "Exu" e a "Pomba Gira", ainda encontram
conforto nas opressões diárias e no humor racista corriqueiro.
Ademais, a questão religiosa está inserida na dinâmica das relações raciais do
Brasil. A disputa entre religiões está alinhada a aceitação de cor e raça e os significados
do passado. A negação de uma religião essencialmente negra faz parte da ordem do dia
da opressão racial. Embora as religiões afro-brasileiras contem com adeptos de cor
branca, seus signos estão conectados à figura do negro e pobre. O teor classista também
constitui uma evidência da sua negação, pois há uma abertura para a pluralização da
sociedade. Evidentemente isso não significa que as religiões dominantes não tenham
entre seus adeptos negros e pobres, pelo contrário, há uma latente variedade de públicos
nessas religiões. No entanto, religiões como o candomblé e a umbanda carecem de um
suporte financeiro que as coloque em comparação às religiões dominantes.
Para encerrar, as palavras do professor do professor da Universidade de São
Paulo, Reginaldo Prandi, arrematam o que representa as religiões afro-brasileiras no
cenário nacional:
Desde os tempos de sua formação até recentemente, o candomblé
sofreu intensa perseguição por parte de autoridades do governo,
política e muitos órgãos da imprensa, que mantiveram nas páginas de
jornais campanhas odiosas contra uma prática religiosa que julgava,
de forma preconceituosa, magia negra, coisa do diabo, coisa de negro,
enfim. Como se fosse uma praga prejudicial ao Brasil que devia ser
erradicada. O preconceito racial, que considerava o negro africano um
ser inferior ao homem branco, se desdobrou em preconceito contra a
religião fundada por negros livres e escravos. Ao longo de mais de um
século, em diferentes partes do país, terreiros foram invadidos,
depredados e fechados, pais e filhos de santo, presos, objetos sagrados
profanados, apreendido e destruídos. Isso obrigou o candomblé a se
esconder, buscando lugares distantes, às vezes no meio do mato, para
poder realizar suas cerimônias em paz. Transformou-se numa religião
de muitos segregados, pois tudo tinha que ocultar dos olhares
impiedosos da sociedade branca. O sincretismo católico que lhe serviu
também de guarida e disfarce. A presença de um altar com santos
católicos ocupando lugar de relevo no barracão do candomblé
indicava, e em muitos terreiros ainda indica, que as pessoas ali
reunidas são, antes de mais nada, católicas.48
Capítulo 6
Questões sobre o racismo moderno

O último capítulo é um breve exercício para responder os comentários racistas


que se naturalizaram nas relações sociais do Brasil. São, em sua totalidade,
questionamentos ou racismos que acompanham os debates da internet e redes sociais.
Procuramos selecionar as que aparecem com mais frequência. Além de oferecer uma
resposta, pretendemos demonstrar como o racismo sobrevive através da roupagem da
opinião. De modo geral, com o advento da internet ficou muito mais fácil perceber as
formas do racismo para discutir a falácia da democracia racial.
A seguir, serão expostos sete itens sobre a questão racial e sua resistência no
pensamento coletivo. São opiniões frequentes, muitas delas vinda de pessoas que
afirmam não serem racistas, mas direta ou indiretamente, propagam sentimentos e
noções do universo racista.

1- "O negro se faz de vítima"

Em geral, a acusação do "negro se fazer de vítima" está alinhada às posições


daqueles que acreditam na eficácia da meritocracia. Este grupo interpreta a sociedade
oferecendo tanto para negros, como para brancos, as mesmas condições de ascensão
social. Muitos partem da sua própria experiência de vida, alegando que não precisaram
de "benefícios ou auxílios" para crescer profissionalmente ou socialmente.
Aqui há duas frentes interpretativas. Na primeira, tentam projetar no discurso
uma autovalorização, uma vez que procuram ser exemplos para outros indivíduos.
Depois, negar qualquer esforço de assistencialismo ou políticas públicas, considerando
essas práticas um rebaixamento moral e intelectual. Exercem assim uma pressão social
para que o negro desconsidere as ações afirmativas e de rearranjo social.
No discurso de meritocracia, o negro que se beneficiasse de auxílios estaria
reafirmando a sua incapacidade perante aos brancos. Bastaria o esforço individual para
conquistar um suposto lugar de "direito". Esta concepção é frequente principalmente
para aqueles que tomam a questão racial sem levar em conta os processos classistas.
Com mais de 200 milhões de habitantes, o Brasil apresenta um contexto frágil nas
condições socioeconômicas, tanto para negros como para brancos. No entanto, a
população negra aparece em maior percentual/proporção nas camadas desassistidas. A
disputa de cor é mais visível quando tomamos os altos cargos profissionais como
elemento comparativo. Nesse sentido, o negro pobre ocupa um lugar privilegiado na
pobreza.
Desse modo, o negro não se faz de vítima, ele é uma vítima por excelência.
Como lembramos em capítulos anteriores, sua condição atual está associada à
espoliações históricas e qualquer proposta para reverter este quadro, sofre uma
contrarreação das elites, sobretudo nos eufemismos do "vitimismo". Em alguns casos,
há a insinuação de oportunismo da população negra ao aceitar as ações afirmativas.
Uma concepção naturalmente enraizada no estereótipo cultural do negro "malandro por
natureza".
Reajustes sociais com a população negra não configuram "vitimismos", mas uma
tentativa de equiparação socioeconômica. A meritocracia aparece como uma estratégia
promissora para causar mal-estar entre a população negra, fazendo-a negar uma
condição de direito.

2- "Não sou culpado pela existência da escravidão"

O primeiro aspecto da presente expressão encontra-se na ignorância histórica. O


modo como esses indivíduos foram apresentados aos processos históricos faz com que a
análise seja distante da sua realidade. Não há empatia ou percepções de continuidades
históricas. Em outras palavras, uma deficiência no ensino de História. Negar o processo
histórico em uma sociedade da qual você faz parte ajuda no distanciamento das
responsabilidades enquanto cidadão. Parte da resposta está na tomada das interpretações
históricas como um jogo de opiniões pessoais, como situamos no terceiro capítulo.
Para perceber os efeitos do processo de escravidão do Brasil não é preciso,
atualmente, ser ou ter escravizados. A compreensão da história nacional aparece como
uma responsabilidade em transformar situações que outrora eram normais e legalizadas.
É como afirmar que o povo alemão, nascido após o holocausto, não se sente responsável
por aquele momento. É uma questão de identidade nacional. Um dos papéis do cidadão
do presente é lugar contra os antigos estigmas e formas de opressão para que eles não
assumam o sentimento de normalidade.
Ao compreender a força dos processos históricos, o cidadão passa a perceber as
cicatrizes históricas, que se mantém até hoje na estrutura da sociedade. Quando se
percebe os efeitos do pós-abolição e as dificuldades da inserção do negro no mundo
assalariado, nota-se como essa divisão permanece por mais de cem anos. A negação da
participação da população negra na sociedade de forma igualitária é um projeto de uma
elite pensada nas questões raciais. Ignorar as consequências do processo de escravidão
demonstra o desconhecimento histórico, especialmente ao considerar que esse episódio
já foi superado.
Um caso clássico que permanece visualmente no nosso dia a dia está no
aparecimento favelas no Rio de Janeiro. Com o projeto de saneamento e modernização
implantado no Rio de Janeiro do início do século XX, o público pobre e negro foi
marginalizado para longe da Avenida Central e dos locais higienizados. O negro não
estava incluído no processo de embelezamento da cidade, logo deveria ocupar outro
espaço urbano. O resultado foi a fixação de negros e pobres nos morros cariocas. É
comum observar o cidadão desinformado afirmar que a fixação nos morros é sinal de
"malandragem" ou "esperteza", mas não conseguem visualizar que a modificação do
espaço urbano é resultado também de formas de opressão. Um vínculo que está ligado à
questão de raça e cor.
Para buscar a equiparação social e racial é preciso expulsar os egoísmos
presentes no entendimento das políticas públicas e ações afirmativas. Quando passamos
a reconhecer o problema do "outro" como "nosso" fica mais fácil delimitar os pontos em
comum da identidade nacional e ajustar as contas.

3- "Hoje em dia tudo é racismo, o mundo ficou sem graça, querem censurar
até o humor"

Em paralelo ao segundo capítulo, esta tem sido uma das mais famosas frases das
redes sociais. Quando alguém se revolta contra uma piada racista, sexista ou
homofóbica, surgem grupos em defesa do direito de oprimir. A defesa desse argumento
expõe a faceta dos seus defensores, normalmente pessoas que se sentem à vontade com
comentários preconceituosos.
Há duas formas de observar a questão. Em primeiro lugar há um lado positivo,
uma vez que o racista se revela. Nesse momento notamos grupos contra o preconceito
se manifestando e lutando pelo fim das discriminações. Era comum a vítima permanecer
em silêncio enquanto o opressor destilava o seu racismo. Com as redes sociais parece
haver uma união coletiva, na qual os oprimidos se mobilizam em uma forma de reação.
Em outras palavras é dar voz a quem não a tinha.
Por outro lado, o polo negativo está no alto índice de indivíduos que não
percebem o problema em rir da cor. A afirmação de que o mundo estaria sem graça sem
a opressão racial revela como são postadas as relações de cor e raça entre brancos e
negros. Tais indivíduos parecem se preocupar com as consequências do humor racista,
correndo o risco de serem identificados e expostos publicamente.
Há casos registrados de indivíduos que perderam seus empregos por exporem
conteúdo racista no espaço virtual. Pela lógica, os empregados são uma extensão da
empresa, o que pode gerar associações entre o pensamento do indivíduo e da marca.
Todavia, esses são casos isolados, pois a grande massa adepta ao racismo permanece às
sombras da punição.
Expressões como "mulher no fogão", "loira burra", "bicha louca" e "negro
bandido" são frequentes no riso opressor. A manutenção desses termos torna-se
importante para um público que só se encontra no humor opressivo. Sem ele, parte da
diversão deixa de existir. A ideia das minorias como elemento de riso da maioria é um
dispositivo que sustenta a manutenção da desigualdade social e racial.
Por fim, é preciso interpretar as reações de grupos oprimidos como uma forma
de resistência contra o opressor. O mundo deixou de ser "engraçado", ao menos em
alguns momentos, para quem oprime. As consequências negativas para quem se
apropria do humor racista devem ser comemoradas por toda a população como forma de
resposta.

4- "Racismo não existe! Querem criar uma guerra e dividir o povo


brasileiro".

Parte do discurso da democracia racial, este argumento tenta inverter a lógica e


acusar o oprimido de divisão social. A guerra em si existe há muito tempo. Se o debate
ainda permanece é porque a luta ainda não terminou. A crença de uma sociedade
igualitária tem como intuito colocar panos quentes nas discussões e manter o status quo
das estruturas vigentes. O maior interessado nesse debate é quem o dominador, uma vez
que sua posição não sofre reivindicações. Com efeito, faz parte do discurso da
democracia racial negar o seu aspecto fantasioso.
Em termos palpáveis, o mapa da violência de 201549 expõe a legitimidade dessa
discussão. Elaborado pelo pesquisador Julio Jacobo Waiselfisz, o documento é uma
importante referência na observação das mortes de negros no Brasil. Dois gráficos são
esclarecedores para fomentar a nossa discussão. Ao analisar os gráficos, o leitor poderá
comparar a taxa de homicídio por armas de fogo entre negros e brancos referente ao ano
de 2012. As conclusões são mais que óbvias.
Os Gráficos 8.1 e 8.250 ilustram que há uma guerra em curso contra a população
negra há décadas. As charges que utilizamos no capítulo dois são formas de
compreender a dimensão desse conflito social. Ao culpar o debate das relações raciais
no Brasil, percebe-se um esforço em esconder ou modificar o histórico genocídio de
negros no país.

5- "Tenho orgulho de ser branco e sofro 'racismo inverso'"


Frases como a do quinto item são cada vez mais frequentes, por mais estranho
que posso parecer. Em um rápido exercício, é como imaginar membros da Ku Klux
Klan ou adeptos do neonazismo afirmarem que sofrem preconceitos por partilharem de
tais ideologias.
A ideia do "racismo inverso" expõe a incompreensão do conceito de igualdade
racial e do próprio processo histórico do racismo à brasileira. O contexto brasileiro não
permite afirmar que existiu um sistema de opressão à população branca, projetando-a a
um nível inferior em sua existência. É como se os nazistas julgados em Nuremberg,
após a Segunda Guerra Mundial, reclamassem de um "preconceito inverso" pelas
punições dos seus crimes. É ilógico imaginar que em uma sociedade, na qual um grupo
tem todas as garantias dos seus direitos asseguradas, alegar que sofre um preconceito
racial, principalmente quando ocupa os principais postos do país.
A frase "orgulho branco" vem a reboque da negação da luta pela igualdade
racial. Contrapondo a famosa frase afirmativa do Black Power, constitui em uma
tentativa de diluir as identidades, fazendo com que o negro não se perceba enquanto
unidade. O "Orgulho negro" atua como quebra de sistema da hegemonia branca e suas
tentativas de negação. Sua força compreende em lutar contra um mercado capitalista
que impõe um padrão de beleza branco, bem como a marcas comerciais que induzem
negros a alisar o cabelo e transformar-se esteticamente em brancos.
Em tempo, o "orgulho branco" tupiniquim não fica muito longe do White Power
estadunidense. A ideia de uma supremacia branca vai ao encontro dos ideais de
intolerância projetados na sociedade racista brasileira. Embora a sociedade brasileira
tenha em sua identidade o aspecto da miscigenação, sendo praticamente impossível
identificar no mundo atual alguém "puro sangue", os racistas ignoram este detalhe. Não
há, portanto, nenhuma coerência em se apropriar do discurso de resistência do oprimido
para benefício próprio.

6- "Ignorar os racistas é a solução"

Muita gente bem-intencionada usa o argumento de "ignorar o racismo" na


esperança que ele deixe de existir por meio do esquecimento. É um pensamento comum
crer que ao ignorar o racismo, o sentimento irá diminuir e paulatinamente será extirpado
do convívio social. Infelizmente esta alternativa já se mostrou falha e contribuiu para o
aumento da atividade de opressão. Silenciar-se perante a atitude do opressor é fazer do
racismo um lugar comum.
A identificação e exposição do racista ajuda a diagnosticar um problema
imediato. Seu combate e constrangimento, de certa forma, o faz de exemplo à ação de
outros racistas, ao menos publicamente. A ausência de enfrentamento fortalece as
estruturas do racismo, motivando outros indivíduos à prática. Em maior escala, a
exposição acarreta, para o agressor, problemas judiciais e profissionais, demonstrando
para a sociedade que sua conduta é reprovável.
A manifestação e o repúdio organizado contra o racismo configuram mais uma
estratégia anti hegemônica. As denúncias colocam na ordem do dia a discussão racial,
ocasionando punições e propostas de fortalecimento das leis.

7 - "Racismo é uma forma de autopromoção"

Por fim, gostaríamos de sublinhar as acusações de que o racismo seria uma


forma de autopromoção para quem sofre. A frase geralmente aparece quando uma
personalidade da mídia expõe um preconceito sofrido por conta da cor. Quando o caso
se torna público, grupos surgem na defesa do racista, reafirmo o conceito de democracia
racial e insinuando que o denunciante quer para si os holofotes.
Desconsiderando todo o sofrimento do ataque, há quem perceba o racismo como
autopromoção. A ausência de empatia está, sobretudo, naqueles que nunca foram
discriminados e nasceram em posições privilegiadas na hierarquia social. São mais
agressivos ainda quando se trata de mulheres, outro grupo com histórico de
discriminação e restrições de direitos no Brasil. A mulher negra sente em dobro os
ataques e desumanização da sua condição social.
Diferentemente do que se imagina, o racismo não ajuda a promover o indivíduo,
principalmente na sociedade que defende a democracia racial. A vítima do racismo
acaba se expondo e sendo malvista por parte da população. Tomam sua imagem como
alguém que usou a questão racial para se favorecer e não como denunciante do processo
de opressão racial. Em alguns momentos, protestar contra o racismo acaba sendo um
suicídio profissional.
Um exemplo recente está no futebol. O goleiro Mário Lúcio Duarte Costa,
conhecido como "Aranha", foi chamado de "macaco" por torcedores da torcida do
Grêmio. O jogador denunciou a situação e levou o caso às últimas consequências.
Naturalmente, esperava-se uma discussão profunda sobre o racismo no futebol e uma
proposta em abrir o diálogo. No entanto, o caso tomou outras proporções. Em entrevista
ao jornalista Jorge Nicola, afirmou que sofreu reação por denunciar a situação sendo
apelidado pejorativamente "Branca de Neve" por outros torcedores:

O preconceito continua, mas de maneira mascarada. Só mudaram os


termos. Os caras acham que vão me afetar. Agora, em vez de
“macaco”, me chamam de “Branca de Neve”. Alguma autoridade acha
que é comum um torcedor chamar um jogador de Branca de Neve?
Claro que isso não é xingamento de futebol.51

Denunciar o racismo nem sempre ajuda a promover o debate, embora seja de


extrema necessidade para revelar seus eufemismos. No caso de artistas ou expostas ao
grande público, sua vida profissional pode entrar em risco, perder contratos, contatos e
alvo de mais opressão.
Considerações finais

Embora esta parte represente o fechamento do livro, há ainda muita coisa a ser
debatida. O "descobrimento" da internet revelou um novo ecossistema, uma terra muitas
vezes sem leis na qual o preconceito mostra sua força e sobrevivência. Mesmo no
século XXI, as redes sociais confirmam a manutenção das práticas racistas e ao mesmo
tempo a persistência da falsa tese da democracia racial brasileira. Protegidos por
computadores e celulares conectados à internet, o racista se sente protegido para revelar
a essência da sociedade brasileira sobre a questão racial. A curto prazo, o cenário é
pessimista, pois pouca coisa pode ser feita e os instrumentos de identificação e punição
tem se mostrado ineficientes.
A potencialidade dos discursos racistas atingiu novos patamares de percepção
com as redes sociais. Se fosse vivo hoje, Florestan Fernandes talvez tivesse menos
trabalho em confirmar suas teses sobre o mito da democracia racial de décadas atrás.
Bastaria acessar as notícias sobre racismo e ler os comentários dos usuários na internet.
Independente do momento histórico, o racismo vem sofrendo metamorfoses e se
adaptando a cada nova década ou novo século. Sua manifestação no humor, nas ideias
provenientes das teorias raciais, na política, no cotidiano, nas abordagens policiais e nos
estereótipos culturais, mostram como a luta ainda está apenas no começo.
Diante o quadro pessimista, qual a solução? A saída não parece ser outra, senão a
luta e a denúncia constante do racismo em todas as suas formas. A mobilização social
exigindo as políticas públicas de equidade racial, bem como o fortalecimento de
movimentos e instituições que buscam dialogar e representar a questão racial. O maior
temor do discurso da democracia racial é a tarja de mito. Sua estrutura se mantém
convencendo a população que o racismo é uma imaginação de grupos negros e o país
vive em plena harmonia.
Para revelar a verdadeira face do discurso de democracia racial é preciso
desvendar seus eufemismos, revelando suas principais estratégias de ação e
sobrevivência. Os eufemismos têm o poder de adoçar a amargura, distribuído uma nova
roupagem para algo negativo, deixando mais atraente e receptivo. O humor racista
talvez seja a sua faceta mais sombria.
Por fim, é preciso insistir no debate sobre a questão racial e resistir as investidas
daqueles que tentam dizer que "está tudo bem". Na agenda da luta contra o racismo
deve entrar a democratização racial das universidades, na qual as cotas passem a existir
como regra e não exceção. Outro ponto consiste no aparelhamento dos mecanismos de
identificação do racismo na internet e redes sociais. Somente com uma vigilância
constante é que podemos intimidar aqueles que ainda pensam que podem oprimir.

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1
Definição do historiador Marc Bloch ao pensar o tempo histórico. BLOCH, 2002, p. 55.
2
ANDREWS, 1985.
3
SCHWARCZ, 2012, p. 117
4
Recomenda-se a leitura dos textos de Marcos Chor Maio sobre o projeto UNESCO e sua atuação no
Brasil.
5
Quadro de Costa Pinto, p. 153.
6
Idem., p. 155.
7
ANDERSON, 2011, p. 29-30.
8
Recomenda-se a consulta em: IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida
da população brasileira. Rio de Janeiro : IBGE, 2015. Disponível em: http://ibge.gov.br/ (Acesso em
10/07/2016).
9
Idem.
10
RIBEIRO, 1995, p. 226.
11
BRECHT, 2000 p. 80.
12
WEINMANN; CULAU, 2014, p. 631.
13
GRUDA, 2014.
14
PROPP, 1992, p. 32.
15
BERGSON, 1993, p. 31-32.
16
DELIGNE, Alain, 2011, p. 36.
17
EVOLA, 1895 apud BAUMAN, 1998, p.44.
18
FERNANDES, 2008, p. 166.
19
ZINK, 2011, p. 49.
20
Ver: SECRETARIA GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA; SECRETARIA NACIONAL DE
JUVENTUDE; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA.
Índice de vulnerabilidade juvenil à violência e desigualdade racial 2014. Brasília: Presidência da
República, 2015, p. 34.
21
LAVILLE, Christian, 1999, p. 133-134.

22
COLLINS; PINCH, 2003, p. 197.

23
Ver: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho; FERREIRA, Ricardo Alexandre. Três vezes Zumbi: a
construção de um mito brasileiro. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
24
MUNGANA, 1987, p. 53.

25
SCHWARCZ, 1993, p. 63.
26
HOBSBAWM, 2014, p. 213.
27
HOFBAUER, 2006, p. 126.
28
GOULD, 1999, p. 76.
29
LOMBROSO 1911b APUD, CARVALHO, 2014, p. 10.
30
SANTOS, 2010, p. 86.
31
Para uma leitura mais aprofundada recomenda-se: DE LUCA, Tania Regina. A Revista do Brasil: um
diagnóstico para a (N)ação. São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1999.
32
STEPAN, 2005, p. 54.
33
KEHL, 1929, p. 188.
34
STEPAN, 2005, p. 37-39.
35
https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=53 (Acesso em 02/12/2016).

36
SHAW, 1916 apud COSTA PINTO, 1988, p. 169.
37
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm (Acesso em
11/03/2016).
38
SILVA, 1994, p. 34-35
39
PARÉS, 2007, p.126.

40
SEVCENKO, 1983, p.33.
41
VERGER, 2000, p. 23.
42
http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/06/comissao-de-direitos-humanos-aprova-autorizacao-para-
cura-gay.html. (Acesso em 10/08/2016).
43
http://g1.globo.com/bahia/noticia/2012/02/lei-do-pai-nosso-comeca-ser-praticada-nas-escolas-de-ilheus-
ba.html. (Acesso em 10/08/2016).
44
http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2012/11/evangelicos-se-recusam-apresentar-projeto-sobre-
cultura-africana-no-am.html. (Acesso em 10/08/2016).
45
http://educacao.uol.com.br/noticias/2014/09/03/rj-aluno-e-impedido-de-frequentar-escola-com-guias-
de-candomble.htm. (Acesso em 10/08/2016).
46
http://extra.globo.com/casos-de-policia/vitima-de-intolerancia-religiosa-menina-de-11-anos-apedrejada-
na-cabeca-apos-festa-de-candomble-16456208.html. (Acesso em 10/08/2016).
47
http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,terreiro-de-candomble-e-incendiado-na-baixada-
fluminense,1519654. (Acesso em 10/08/2016).
48
PRANDI, 2009, p. 51.
49
Ver: www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf. (Acesso em 07/07/2016).
50
www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf, p. 83-84. (Acesso em 07/07/2016).
51
https://esportes.yahoo.com/blogs/jorge-nicola/desempregado-aranha-diz-que-%C3%A9-chamado-de-
branca-120342362.html (Acesso em 15/10/2016).

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