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comunicação
antirracista
no Brasil
LEONARDO CUSTÓDIO
JÚLIA TAVARES
MÔNICA SACRAMENTO
LÚCIA XAVIER (ORGS.)
Conectadas com seu tempo, pessoas negras têm utilizado diferentes meios
de comunicação e tecnologias para comunicar suas ideias e propostas para
a sociedade. Com a internet, essas muitas vozes ampliaram-se em número, vi-
sibilidade e alcance geográfico. Em diferentes áreas e carreiras profissionais
ou formações, em especial as mulheres negras travestis, trans e cis ocupam o
espaço virtual (ciberespaço) para disputar brechas no acesso e na criação de
sistemas de produção como autoras-narradoras de suas histórias de vida, in-
quietações, ações, demandas e sonhos.
Boa leitura!
SUMÁRIO
HISTÓRIA E CULTURA................................................. 93
Leonardo Custódio*
Ao ouvir o termo “comunicação antirracista”, em Porém, vozes negras (CORRÊA, 2019) sempre se fize-
quais exemplos concretos você pensa? Não seria ram ecoar e ouvir no Brasil contra as violências, limita-
surpresa se você pensasse imediatamente em algu- ções e silenciamentos gerados pelas desigualdades
ma página do Facebook, em canais do YouTube ou sociais e raciais constitutivas do país (NASCIMENTO,
TikTok, ou perfis de influenciadores no X/Twitter ou 2017; ALMEIDA, 2019; OLIVEIRA, 2021; SOUZA, 2021;
Instagram como práticas comunicacionais que infor- SODRÉ, 2023). Nos primórdios do cativeiro na África,
mam, denunciam e mobilizam ações contra as tantas nas travessias nos porões dos navios negreiros e nas
formas de racismo que acontecem diariamente no senzalas coloniais, o cantar, o dançar e o contar de
Brasil e no mundo. Afinal, hoje em dia vivemos em histórias mantiveram vivas ancestralidades, memó-
sociedades hiperconectadas onde parte significati- rias, espiritualidades, amor, dignidade, esperança e
va das nossas experiências cotidianas ocorrem em a luta por liberdade. Ao dominar o idioma do coloni-
interações através das tecnologias móveis e digitais. zador e se apropriar de seus gêneros literários e po-
Além disso, é inegável que o desenvolvimento e a líticos, versos e prosas negras, escritas, impressas e
popularização da Internet, da telefonia celular e de faladas, foram fundamentais para a luta abolicionista
tantas outras tecnologias de informação e comunica- no Brasil Império. Com o fim da escravidão e a cons-
ção (TIC) a partir do final da década de 1990 facilita- trução do Brasil urbano-industrial com sangue e suor
ram a produção, disseminação e alcance de vozes e da mão-de-obra negra, a música, a dança e, mais
representações negras até então restritas, caricatu- tarde, a dramaturgia, a atuação negra no audiovisu-
radas ou silenciadas pela branquitude dominante nas al e na literatura curavam almas de corpos cansados
grandes empresas de mídia impressa, rádio e televi- e mantinham viva a dignidade do nosso povo dian-
são. Apesar da acessibilidade às tecnologias digitais te da exploração capitalista, do preconceito racial,
em massa das últimas duas décadas ser problemáti- do descaso político e da repressão governamental.
ca por sua natureza comercial, as chamadas “novas Além disso, o avanço educacional, social e político
TICs” representaram um amplo quebrar de correntes do povo negro tem gerado um aumento exponencial
institucionais que por tanto tempo aprisionaram ou da produção intelectual e científica negra que se re-
limitaram a construção de narrativas, representações troalimenta e se fortalece mutualmente em diálogo
e informações negras empoderadoras de si contra as com práticas pedagógicas, narrativas militantes e ar-
históricas e diárias violências racistas. gumentações políticas que emanam da proatividade
prolífica da negritude brasileira.
Introdução
Imagine que você é uma mulher negra nascida no crição do Notícia Preta como uma experiência de
Brasil entre as décadas de 1980 e 1990. Você pode quilombismo e de resistência. Essa nossa escolha
ter nascido no Rio de Janeiro, o segundo estado mais se dá para homenagear e demarcar a importância da
negro do país, assim como a fundadora do Notícia proteção dos territórios quilombolas brasileiros, or-
Preta, ou na zona rural em uma dessas cidadezinhas ganizações que ao longo do tempo seguem sendo
que chamamos de interior, como eu. Quem sabe você atacadas pela branquitude, e como uma ampliação
nasceu em uma das mais de 13 mil favelas existen- da palavra quilombo para organizações de pessoas
tes hoje no Brasil, como um dos nossos editores, ou que lutam pela existência do povo negro. Nas pala-
em uma das 5.972 localidades quilombolas urbanas vras de Beatriz, de maneira ampliada, “estando um
e rurais que estão recenseadas pela primeira vez em negro com outro negro já é um quilombo” (NASCI-
2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- MENTO, M. B., 2022, p. 130).
tica (IBGE). Talvez sua vivência tenha se construído
até longe de comunidades negras estruturadas ou, Este mesmo senso de união é que me Oríenta e Oríen-
como a maioria dos comunicadores que integram o ta a criadora do portal Notícia Preta, Thaís Bernar-
Notícia Preta, você tenha escolhido a comunicação des, quem resume com a expressão a seguir que nos
Social como profissão. Talvez você somente não es- guiará (eu e você leitor) na busca por entender o que
teja satisfeita com o modo como as pessoas negras é uma comunicação antirracista e como podemos
são retratadas pela imprensa nacional. Sejam quais utilizar o jornalismo como uma ferramenta de trans-
forem as experiências que formam sua identidade, formação social. Ela nos diz: “nós (pessoas negras)
caso deseje ser ou já se veja como alguém antirracis- somos diversos, mas não somos dispersos”. A frase
ta ou que quer mudar como as pessoas negras são é inspirada no discurso proferido pela vereadora, mu-
vistas e tratadas no Brasil, convido você a ouvir esse lher negra e periférica Marielle Franco, em 8 de mar-
nosso1 registro memorialístico. ço de 2018, quando a parlamentar lembrou o lema do
movimento de mulheres daquele ano, que dizia: “sim,
Em 12 de julho de 1942, na cidade de Aracaju, nascia nós somos diversas, mas não estamos dispersas”. E
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Maria Beatriz Nascimento, uma intelectual e militante foi no intuito de reunir jovens comunicadores de todo
do movimento negro brasileiro que dedicou grande
parte da vida dela em pesquisas sobre o quilombo * Nayara Luiza de Souza é mineira, nascida na zona rural de Sete Lagoas e cria-
como uma organização de pessoas negras. Nasci- da pelos cantos da mãe, tias e avó que embalaram sua paixão pela história das
pessoas. Neta de congadeiro, sempre foi guiada pelos tambores da resistência.
mento é uma das mulheres que nos inspira na des- Jornalista pela Universidade Federal de Viçosa (UFV/2012) e mestranda em Co-
municação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), formação
esta potencializada pela política de cotas na pós-graduação. Integra a linha de
1. Embora eu, Nayara Luiza de Souza, assine esse texto, o registro traz consigo Textualidades Midiáticas com pesquisas sobre racialidade, racismo, gênero,
muitas vozes, por isso chamo esse registro de “nosso”. violência e mulheres negras. Jornalista voluntária no portal Notícia Preta desde
2021, aprende na prática o quilombismo como cura.
mente ser capacitada e ouvida em uma escola de for- de sofrimento repetida tantas vezes nas capas de jor-
nais, nos programas de TV, em vídeos que circulam
pela internet, que nós podemos terminar por acredi-
2. https://noticiapreta.com.br/quem-somos/
3. “Torna-se negro” é um conceito que também nomeia o livro da psiquiatra tar que esse sofrimento imposto a essas mulheres
e psicanalista, mulher negra, Neusa Santos Souza, a quem honramos neste
capítulo. Neusa resume a percepção de tornar-se e saber-se negra com as se- faz parte delas e que não há nada a ser feito.
guintes palavras: “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada
em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências,
compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência Essa reprodução da “mãe negra sofrendo” que os
de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialida-
des” (SOUZA, 2021, p. 46).
nizados pelos negros”. Ela diz que os negros sempre ainda enfrentamos o genocídio negro. Alguns dados
produziram esses espaços em que podem ser livres, tristes que o Notícia Preta tem repetido são, como
desde os quilombos até as favelas, e, para nós, o lembrava o professor, parte do projeto de nação ins-
Notícia Preta tem se constituído como esse espaço tituído desde o império brasileiro de que, dentro do
em que podemos ser livres. Abaixo um trecho bonito que se entende como população brasileira, não exis-
de como Beatriz fala sobre o que é esse quilombo: tissem mais pessoas negras. Essa matança do povo
O quilombo é um avanço, é produzir ou preto foi, desde o fim oficial da escravização no Bra-
sil, um projeto de governo que incluiu o encarcera-
entretenimento, saúde e muito mais. Na palestra do que quase a totalidade dos currículos dos cursos de
TEDxPelourinho, ela dá um exemplo que vamos re- jornalismos no Brasil não tem essa disciplina no currí-
petir aqui: “quando eu faço uma matéria dizendo que culo e mal fala sobre uma imprensa negra secular que
não há investimento na saúde pública e nos hospitais resiste no país)?
públicos, a maioria das pessoas que utiliza hospitais A escola de formação
públicos no Brasil é uma maioria negra. Se a gente
racializa essa matéria a gente vai entender que falta 4. “A gente combinamos de não morrer” é o título de um dos contos do livro
“Olhos d’água” da escritora negra e mineira Conceição Evaristo (2016). É tam-
bém a frase repetida pelas personagens do conto.
Sul do país é diferente de ser uma pessoa negra no como uma constante vivenciada por nós, jornalistes
Norte. E em cada estado, em cada cidade e, se na negres.
mesma cidade, em cada comunidade em que nasce-
mos, crescemos e fomos criados. Muitas das vezes escrever sobre a morte de pesso-
as que nós sentimos que podiam ser nós mesmas,
Aprendemos que a educação antirracista precisa ser, mesmes e mesmos ou ainda nossos pais, mães, fi-
lhos, filhas e filhes, conhecidos, amigos e vizinhos…
do jornalismo (FELIX, 2022, p. 13). ser observada outra disparidade em relação à região
do país em que residem: no Nordeste, nas redações,
Um dos questionamentos de Thais, que inclusive in- apenas 39%, seguido pela região Norte (25%), Cen-
gressou na universidade através do sistema de co- tro-Oeste (21%), Sudeste (20%) e Sul (5%).
tas, foi exatamente o mesmo ouvido por outres cola-
boradores do NP nestes quatro anos: “O que a gente A pesquisa ainda nos apresenta outros dados que fo-
aprende na faculdade de jornalismo com recorte ra-
ao chegar ao Notícia Preta e hoje posso dizer que que também compartilhamos angústias e
esse “mais” não diz só da extensão de redação para frustrações (além do brilho da pele preta).
escola de formação, mas, também, da comunidade Disso ficou nítido que ter a oportunidade de
quilombista de acolhimento que o NP se constituiu passar por esse coletivo jornalístico – que se
para mim e para meus companheiros de resistência. difere de espaços regidos pelos métodos de
Quando comecei a ouvir de outres noticiapretenses produção colonial – tem me preparado para
(palavra inspirada pelas escolas de samba e que ago- construir um jornalismo com resgate à essência
ra transfiro para cá) que essa experiência de cura era da profissão: dar voz ao povo e contribuir para
Introdução
Lélia Gonzalez, em “A mulher negra na sociedade bra- ricamente e, indo além, contribuem com uma nova
sileira”, criticou as teorias que formam os “mitos” da perspectiva dentro e fora da academia.
democracia racial e do brasileiro como um ser cordial
(GONZALEZ, 2020). Sueli Carneiro (2011) denuncia o Neste capítulo, discutiremos como o Portal Geledés
quanto o pensamento social brasileiro contribui para tem sido um espaço seguro de prática de comunica-
a invisibilização da raça como elemento estruturante ção antirracista para as mulheres negras, construindo
das desigualdades no Brasil. Além disso, mostra que outras perspectivas sobre o imaginário social vigen-
os avanços para a superação deste cenário ainda não te. A partir da ideia de Autodefinição, uma forma de
foram significativos. No mesmo trabalho, critica a falta reapresentar as populações negras a partir do ponto
de políticas públicas elaboradas a partir da raça como de vista das pessoas negras, analisaremos algumas
causa de desigualdade social (CARNEIRO, 2011). das produções textuais do Portal Geledés (www.gele-
des.org.br).
Ter acesso a textos como os da Lélia e Sueli nos dão
fôlego e inspiração para produzir nossas próprias
narrativas e dar continuidade ao trabalho de tantas
mulheres negras que produziram e produzem teo-
*Liana Cristina de Souza Sant’Anna é Mestre em Políticas Públicas em Direitos pela Universidade Federal de Goiás, pós-graduada em Comunicação Hipermedia
Humanos pela UFRJ / NEPP-DH. Bacharel em Produção Cultural pela UFF / CURO, pelo Instituto Internacional de Jornalismo José Martí (Cuba); em Documentário
com especialização em Políticas Culturais de Base Comunitária Flacso/Argentina. Criativo pela Univalle (CO); e mestre em Comunicação e Cultura pela Universi-
Como produtora cultural independente, atua na captação de recursos, planeja- dade de Buenos Aires. Trabalha com extensão e pesquisa, principalmente nos
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mento de projetos e programas socioculturais, bem como analista e parecerista. temas: comunicação comunitária; Internet; audiovisual; educação e relações
Tem experiência como articuladora social e educadora social na facilitação de étnico-raciais. Associada à Associação Brasileira de Pesquisador@s Negr@s e
processos educativos, participativos e políticos. à International Association for Media and Communication Research, onde atua
como vice-chair da Seção Comunicação Participativa.
*Ana Lúcia Nunes de Sousa é Professora Adjunta no Instituto Nutes de Educa-
ção em Ciências e Saúde, com atuação no Laboratório de Vídeo Educativo e *Anna Marina Barbará Pinheiro possui graduação em Sociologia e Política pela
no Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde. Líder do Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestrado e doutorado em His-
NEGRECS – Núcleo de Estudos de Gênero e Relações Étnico-raciais na Educa- tória Social pela Universidade Federal Fluminense (2005). Atualmente é Profes-
ção Audiovisual em Ciências e Saúde e do GERAES – Grupo de Pesquisa em Re- sora do Departamento de Ciência Política da UFRJ, onde coordena o Laboratório
cepção Audiovisual em Educação em Ciências e Saúde. Pesquisadora no Grupo de Estudos de Gênero (LEG: www.legufrj.net) e o mestrado em Políticas Públicas
de Pesquisa “O Mundo do Trabalho, Comunicação e Educação em Enfermagem” e Direitos Humanos do NEPP-DH/UFRJ. Tem experiência nas áreas de Ciência
(EEAN – UFRJ). Doutora em Comunicación y Periodismo pela Universitat Autono- Política e História do Brasil, atuando principalmente nos temas relativos ao gêne-
ma de Barcelona e em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio ro, à sexualidade e aos feminismos.
de Janeiro. É formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo
(GONZALEZ, 2020) –, tal pensamento acaba refletin- por mediação do Estado, incluindo o uso da violên-
do na formulação e execução das políticas públicas. cia.
Silvio de Almeida (2018) afirma que o racismo, para E como os grupos subalternizados se movimentam
ser mantido, requer a “criação e recriação do ima- para contradizer os valores impostos? Há, dentre as
ginário social”, em que se associam características diversas ferramentas, o uso das comunicações e das
biológicas ou práticas culturais à raça e naturaliza-se culturas para fortalecimento dos valores e princípios
– para fluir informações que conectem os indivíduos sível elaborar um discurso que contradiz o que nos
e propagar novas formas de pensar sobre si e sobre foi ensinado historicamente, mesmo sem ter poder
o outro, propondo outras formas de observar e viver sobre as indústrias da comunicação. A popularização
no mundo. da internet propiciou o uso das TICs e o surgimento
de novas protagonistas na elaboração e difusão de
informações.
O ciberespaço promove um amplo alcance das infor- É necessário inserir novas imagens das mulheres
mações, onde a comunicação toma formato aberto, negras em diversas posições e situações para re-
heterogêneo e abandona o verticalismo um-todos, construção de um novo imaginário social. Vemos um
operando em formato de rizoma todos-todos (LEVY, caminho com a “autodefinição”, o processo de au-
1999; ALMEIDA, 2018). Para Pierre Levy (1999), a ci- toconhecimento, troca e autoafirmação dos valores
bercultura desenvolve-se a partir da interação dos in- realmente importantes para as comunidades negras,
divíduos, no tráfego dos seus valores e princípios, na em particular para os indivíduos e, em especial, para
forma e formatos de usos, nos comportamentos que as mulheres negras (COLLINS, 2013).
as pessoas apresentam, nos seus modos de navegar
no ciberespaço – nas formas de convívio digital. É urgente romper com o aprisionamento das ima-
gens controladoras que limitam as personalidades e
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Acreditamos que a cibercultura é um campo fértil para as subjetividades das populações negras. Inclusive,
a construção do poder simbólico no que se refere à esses aprisionamentos dificultam o acesso às afetivi-
construção das imagens e do imaginário social sobre dades, como argumentou Patrícia Hills Collins (2013).
as mulheres negras em múltiplos territórios, por isso, As imagens controladoras (COLLINS, 2013) podem
nos dedicamos a analisar a utilização do ciberespaço ser compreendidas como parte dos estereótipos
pelas mulheres negras como lugar de disputas sim- (FANON, 2008) usados para o controle das popula-
bólicas de poder. ções negras em nichos sociais. São imagens que per-
meiam o imaginário social e reforçam as diferenças so-
Sentido do Conteúdo /
Unidade de significado Classificação
olhar feminista negro
Convidamos a quem ler este capítulo a navegar pelo Portal Geledés para conhecer suas di-
versas formas de atuação, mas principalmente a forma como agrupam narrativas acolhedoras
às mulheres negras.
Ao passo que realizamos a leitura dos dez (10) textos escolhidos, escritos por dez (10) au-
toras, na seção “Mulher Negra”, encontramos narrativas em primeira pessoa, e percebemos
que esta seção configura um espaço seguro para o encontro das ideias e dos ideais que bus-
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d. As escritas são feitas por mulheres que envia- Escolhemos este trecho porque encontramos a re-
ram ao Portal Geledés, ou re-post de artigos escri- produção da “imagem controladora” e a apropriação
tos e publicados em outras fontes, mas que estão do “espaço seguro”. A primeira classificação porque
de acordo com os temas inerentes às mulheres ne- a autora coloca “o sentimento de insuficiente” como
gras e o Portal Geledés. parte do aprendizado na infância, e a segunda classi-
ficação porque falou sobre seus sentimentos, o que
Encontramos nesta seção discursos tanto para cons- é íntimo e subjetivo.
truir outras imagens e identidades de si, quanto para
desconstruir as ‘imagens controladoras’ (COLLINS, Esse aprendizado de “insuficiência” está no cerne
2013) e contradizer o imaginário social dominante so- da manutenção do sistema econômico vigente, que
bre as imagens das mulheres negras. Vamos detalhar tem o racismo como pilar. Assim, manter a população
a análise de alguns trechos de três (3) textos selecio- negra acreditando no estereótipo de subalterno por
nados para este capítulo. natureza de sua raça é uma estratégia para perpe-
tuar a exploração de uns sobre o outro. O racismo,
No artigo A doutora da pele preta, a autora Monique enquanto estrutura do sistema capitalista (MBEMBE,
Rodrigues Prato compartilha suas vivências enquan- 2018a) tem mecanismos de retroalimentação desta
to advogada, e ilustra situações de racismo velado estrutura. A autora revela em seu desabafo um dos
que vivenciou devido à sua cor da pele. No entanto, mecanismos do racismo.
a autora demonstra que não questiona a própria ca-
pacidade. Pelo contrário, relata, segura de si, como No artigo Mulheres negras no poder potencializam
revela o trecho: “Na mesa, eu era a única que de- a restruturação da esquerda, Débora Britto apresen-
tinha o conhecimento jurídico da matéria” (PRATO, ta uma entrevista com duas deputadas estaduais,
2018), referindo-se a um episódio em que clientes se recém-eleitas na ocasião, cada uma em um estado
direcionavam a uma colega de trabalho caucasiana da região sudeste. Compreendemos que as entrevis-
para ter suas dúvidas sanadas. tas têm consciência da disputa simbólica de poder,
como parte da reconstrução da esquerda.
Este trecho destacado foi classificado como autode-
finição; a autora apresenta outra imagem de si para “As mulheres negras são a vanguarda. Tenho qua-
JORNALISMO E CIBERATIVISMO
o outro e nega a imagem controladora das mulheres se que certeza profética de que as mulheres negras
negras enquanto subalternas e incapazes por nature- são a vanguarda da reorganização da esquerda”
za. As imagens controladoras reforçam estereótipos (BRITTO, 2018). Esta fala de uma entrevistada evoca
que alimentam a crença de que negros e negras são o papel de protagonistas para mulheres negras, so-
pessoas subalternizadas por condição natural da cor lucionadoras de uma problemática política posta em
da pele (ALMEIDA, 2018). debate público. Classificamos como autodefinição
na construção de um discurso contra hegemônico,
v. 8, n. 2, p. 207, 2000.
LOPES, Juliana. Nós somos as mulheres que nunca serão
suficientes. Geledés – Instituto das Mulheres Negras [on-
line], São Paulo, 28 out. 2018. Disponível em: https://www.
geledes.org.br/nos-somos-as-mulheres-que-nunca-serao-
-suficientes/#. Acesso em: 6 jul. 2023.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução Sebas-
tião Nascimento. São Paulo: n-1 Edições, 2018a.
MBEMBE, Achille. Necropolítica – biopoder, soberania,
Introdução
Para além de um Portal em formato de site, a Platafor- organizações sociais, lutando na prática através da
ma de Comunicação Popular e Colaborativa Ocorre- comunicação popular, como um lugar de aprendiza-
Diário é uma tecnologia que movimenta registros his- do e democratização dos saberes.
tóricos. Atua principalmente nas áreas do Jornalismo,
Educação Popular, Círculo de Saberes e Cultura, Arte Há quase quatro anos no ar, a plataforma já acumu-
e Coletividades, Direito à Moradia, Direito à Cidade, lou mais de 105 mil visualizações e 400 publicações.
onde os conteúdos perpassam organicamente pela Pelo menos 38% das produções são da editoria de
raça e a defesa de comunidades tradicionais e povos Direitos Humanos e 17% de Arte e Cultura. São mais
originários. de 40 conteúdos na editoria de Povos Originários,
em parceria com organizações orgânicas; cerca de
Com colaboradores multidisciplinares, utiliza a escri- 50 matérias na editoria da Boa Esperança, comuni-
ta, a oralidade e as ferramentas da comunicação para dade tradicional ribeirinha e quilombola piauiense im-
criar possibilidades ‘outras’ de vida e práticas comu- pactada pelo Projeto desenvolvimentista do Parque
nicacionais, articulando forças junto a movimentos e Lagoas do Norte, que nomeia o OcorreDiário como o
megafone da comunidade.
*Carmen Kemoly da Silva Santos é rapper, poeta, jornalista, mestra em Comuni- zou, em 2020, o I Congresso Internacional de Jornalismo, Inovação e Igualdade.
cação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutoranda É cofundador da Plataforma de Comunicação Popular e Colaborativa Ocorre Diá-
em Estudos Étnicos e Africanos na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e reali- rio, com produções focadas nas áreas de política e direitos humanos.
zadora audiovisual. Nascida e criada em Timon, e morando atualmente em Salva-
dor, é colaboradora e cofundadora da Plataforma Ocorre Diário de Comunicação
Popular. Dirigiu e roteirizou, em 2019, o curta-metragem Esperança 1770. A partir *Sarah Fontenelle Santos possui graduação em Comunicação Social: Jornalis-
de 2018, começa uma trajetória em Slam’s pelo Rio de Janeiro, sendo finalista de mo e Relações Públicas pela Universidade Estadual do Piauí (2013) e mestrado
alguns, como o Slam Pequena África da FLUP e Slam Liberdade de Petrópolis, em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (2015) e doutorado pelo
em 2018, o Slam das Minas RJ, em 2019, e em 2021 fica em terceiro lugar no Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia pela Universidade Federal do
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Slam Insubmisso, de poetas negras e nordestinas. Inserida no hip hop do Piauí Rio Grande do Norte (PPGEM-UFRN). Integrante do grupo do grupo de estudos
desde 2014, lança em 2019 seu primeiro EP intitulado ‘KARMA’, com nove faixas Epistemologias Subalternas e Comunicação (desCom). Cofundadora da Platafor-
disponíveis em todas as plataformas digitais e também alguns clipes e produções ma de Comunicação Popular e Colaborativa - Ocorre Diário. Tem experiência na
audiovisuais no Youtube. Autora do livro-reportagem Timonegra: Vida e cultura área de Comunicação, assessoria de imprensa e jornalismo, Relações Públicas,
em comunidades negras na cidade de Timon. atuando principalmente nos seguintes temas: direito à comunicação, direito à
cidade, comunicação popular, contracolonialidade, mídia regional. Atualmente
atua como professora no Departamento de Comunicação Social da Universidade
*Luan Matheus dos Santos Santana é pai, jornalista, educomunicador popular, Federal do Maranhão.
mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), doutorando
em comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor tempo- *Maria Angela Pavan é professora associada do Departamento de Comunicação
rário no curso de jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA). Nascido na Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atua na Pós-Gra-
Chapada do Corisco (Teresina-PI), tem dedicado seu tempo de estudo e trabalho duação em Estudos da Mídia (PPGEM/UFRN).
na construção de outras alternativas de pensar e fazer jornalismo. Compõe o
Grupo de Pesquisa JOII (Jornalismo, Inovação e Igualdade), por onde organi-
O desenvolvimento tornou o discurso onipresente Atualmente a diretoria coletiva é composta por cin-
para justificar as mais diversas agressões, quer seja co homens e cinco mulheres, sendo que 60% dos/
na usurpação das terras indígenas e quilombolas, as coordenadores/as são pessoas negras. Há, ainda,
quer seja para o desmatamento das florestas, assas- entre os/as coordenadores/as, pessoas LGBTQUIA+,
sinato dos rios, poluição dos mares e muitos outros. lideranças comunitárias, professores, artistas, jorna-
Partindo inicialmente das provocações teórico-prá- listas, arquitetos, antropólogos.
ticas de Maria Sueli Rodrigues Sousa (2020, 2022),
buscamos aqui lançar um outro olhar sobre a repre- Mais que um direcionamento, essa é uma opção po-
sentação do desenvolvimento na mídia, não como lítica que garante um compromisso com pautas que,
parte de um projeto de evolução social, mas como para nós, são inegociáveis: defesa da democracia e
parte de amplo processo de separação, segregação dos direitos humanos, combate ao racismo, machis-
e subalternização dos povos, em que a comunicação mo, LGBTQUIA+fobia e toda forma de opressão. Uma
é um polo de sustentação dessas ideias e o desen- opção que se reflete nas produções da plataforma e
volvimento uma justificativa política para tal; portan- gera outros movimentos de resistência e re-existên-
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to, trata-se de uma colonialidade comunicacional in- cia, como Santana (2021) analisou em sua disserta-
trínseca. ção de mestrado.
O caminho, para Sousa (2020), é parar e voltar. Se Re-existir em um contexto digital é a possibilidade de
o desenvolvimento foi responsável por des-envolver se apropriar socialmente das novas tecnologias a fim
(entendendo o ‘des’ como prefixo que indica nega- de construir comunidades digitais, conexões e con-
ção, separação ou cessação), seria, portanto, neces- teúdos capazes de gerar visibilidade às demandas
0
direitos pandemia política meio questão geral cultura Periferia
autorais digital ambiente racial
As fontes ouvidas pelo Ocorre Diário também deslocam os sujeitos historicamente protago-
nistas dos espaços midiáticos e jornalísticos. De acordo com Santana (2021), as fontes uti-
lizadas pela plataforma são de uma grande diversidade, abarcando sindicalistas, advogados
populares, artistas, lideranças comunitárias, ativistas sociais, mulheres, negros e negras, etc.
15
10
0
mulheres
negros/as
sindicalista
advogado
popular
artista
popular
movimento
hip
moradores /
lideran
pesquisadores
ambientalistas
movimento hip
indigena
movimento
gestor
público
vitima
de crime
promotor MPE
empresas / empres
ativista LGBTIA+
Fonte: Santana (2021)
Ao trazer essas pessoas para o centro das suas produções, acreditamos que o OcorreDiário
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É o mais velho contando uma história, ou um por meio de entrevistas gravadas com os morado-
mais novo que teve uma experiência que pode res, geram um movimento de re-humanização das
compartilhar com o coletivo que ele pertence práticas comunicacionais, na medida em que coloca
e isso vai integrando um sentido da vida, como protagonistas da histórias pessoas que histori-
enriquecendo a experiência da vida de cada camente foram colocadas à margem.
sujeito, mas constituindo um sujeito coletivo
(KRENAK, 2018).
linguagens, crenças, territorialidades e ancestralida- péssimo jornalismo ou ainda de notícias falsas, fato
des. É uma comunicação tão rica quanto mais parti- de que nos distanciamos firmemente.
cipação e mais marcas identitárias consegue trazer
para o centro da roda. O objetivo aqui é o de quebrar com as hierarquias
coloniais do saber/poder (QUIJANO, 2005) que con-
tribuíram para que a comunicação midiática seja um
espaço de subalternização e negação da palavra dos
A participação é mais do que opinar ou ser fonte de informação, mas é elaborar conjuntamen-
te a palavra a ser anunciada, partilhando responsabilidades e ensaiando modos de emanci-
pação, ao tempo em que cria condições de uma re-humanização. Para Villanueva (2018), a
re-humanização é potência da comunicação quando se faz decolonial, por sua vez, a deco-
lonização da comunicação é também libertá-la conceitualmente, pois a comunicação hege-
mônica e colonizadora reduz a comunicação a um efeito transmissivo e unicamente mediado
pelas tecnologias.
Para elaboração deste material, duas pessoas moradoras do território foram entrevistadas,
Salvador Viana, licenciado em filosofia, membro da Associação do Território Quilombo Lagoa
e do MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração), e Nayane Magna Ribeiro Via-
na, historiadora e mestra em sua área, moradora da comunidade Baixão Fundo em Bonfim do
Piauí, atingido pela mineração. A entrevista, como afirma Cremilda Medina, uma das técnicas
de interação social, “pode também servir à pluralização de vozes e a distribuição democrática
da informação” (MEDINA, 1986, p. 8). Acreditamos que por meio da entrevista conseguimos
restaurar a escuta como uma reparação histórica aos sujeitos e sujeitas que tiveram negado
A matéria citada é de maio de 2021, com a qual foi possível denunciar as práticas de racis-
mo ambiental sobre o território quilombola com dados estatísticos e precisão de vivência de
quem vem sofrendo com as diversas investidas. Outro formato comunicacional, escolhido em
outra ocasião, de avanço da mineração, foi o artigo de opinião “SEMAR – omite existência do
maior Quilombo do Nordeste para beneficiar mineração no Piauí”.
Acreditamos que essas parcerias coletivas para elaboração das contranarrativas que foram
historicamente silenciadas são a razão de existir a comunicação popular, insurgir contra os
sufocamentos e apagamentos da história é dizer também sobre o direito fundamental de co-
municar. É impedir que a histórica única continue a pautar a memória social e coletiva. Dizer
a palavra coletiva é também barrar os projetos desenvolvimentistas que fazem do progresso
o discurso de legitimação da destruição socioambiental, das opressões de raça, classe e de
gênero. Construir a palavra de forma horizontal e colaborativamente é fazer da comunicação
uma re-humanização e uma reinvenção contracolonial.
Considerações finais
JORNALISMO E CIBERATIVISMO
Feitiço é, para os dicionários, um substantivo masculino que representa uma ação de enfei-
tiçar, encantar. Feitiço é encantaria, simpatia, bruxaria. Os feitiços foram e ainda são asso-
ciados a algo ruim ou maléfico pelo senso comum. No século XV, o livro escrito pelo clérigo
alemão Heinrich Kramer foi responsável por difundir uma ideia que levou incontáveis mulheres
para a forca e para a fogueira: Malleus Maleficarum, ou “O Martelo das Bruxas”, foi uma espé-
cie de manual de caças às bruxas, utilizado para julgar e condenar mulheres que negavam a
condição de subjugação ao patriarcado.
Monique Paulla*
Introdução
Nas eleições de outubro de 2018, primeiro pleito elei- com Franco. E Petrone, além de dar continuidade ao
toral após a execução de Marielle Franco, que deci- programa político coletivo, negro, popular, feminista
diria os representantes para os cargos de Presidente e LGBTQIAP+, o ampliou para a esfera federal, na Câ-
da República, governadores e senadores, deputados mara dos Deputados em Brasília. Portanto, a Depu-
federais e estaduais, no Rio de Janeiro, estado de re- tada Federal Talíria Petrone é a representante desse
sidência e atuação política de Franco, quatro mulhe- movimento político institucional do Estado do Rio de
res negras, em resposta à brutal execução de Mariel- Janeiro atuando na esfera da política nacional.
le Franco, no dia 14 de março de 2018, em exercício
de seu mandato, lançam-se candidatas aos cargos No evento Papo Franco Especial – Aniversário de
do poder legislativo e são eleitas. Para o Legislativo Marielle, mediado por Anielle Franco no galpão Bela
Estadual (Deputada Estadual), Dani Monteiro, Monica Maré, no dia 27/07/2019, a parlamentar Talíria Petrone
Francisco e Renata Souza foram eleitas na primeira apontou a reação de mulheres negras ao assassina-
candidatura; e Talíria Petrone, que já era vereadora to de Marielle Franco como um Levante de Mulheres
na cidade de Niterói desde 2016, foi eleita Deputada Negras na política institucional. No campo da filoso-
Federal (Legislativo Federal) pelo Estado do Rio de fia, o movimento de Levante é apontado por Judith
Janeiro. Butler (2017) como uma reação visceral que traz à
tona a consciência e convicção de terem chegado
Todas essas quatro mulheres compartilhavam a mes- ao limite ou de o limite ter sido ultrapassado. E foi
ma proposta de trabalho, que era dar continuidade ao com essa dor visceral que as mulheres negras foram
legado político e econômico construído juntamente transformando o luto em luta e resistência política
para ocupar a política institucional no Brasil.
pular e político. E outras 41 postagens, totalizando assim fizer, o conteúdo continua circulando e impac-
23%, eram sobre Denúncias de violências racistas tando as pessoas dentro e fora das redes. E, nes-
e política contra mulheres negras, desmatamento da se contexto, Talíria utiliza o Instagram para destacar
Floresta Amazônica e, também, sobre os embates e Pautas do Cotidiano e Denúncias.
debates entorno da retirada de direitos da população
travados na Câmara dos Deputados. De acordo com Andrea Brighenti (2010, p. 20), “as
visibilidades são constituídas a partir do interior de
eventos sociais”, na vida de todo dia, no Cotidiano.
Ainda sobre o Cotidiano, a filósofa Agnes Heller (2016) descreve que todos nós estamos inse-
ridos e vivemos a vida cotidiana com a “organização do trabalho e da vida privada, os lazeres
e o descanso e atividade social sistematizada”. Porém Heller (2016, p. 26) salienta que a “vida
cotidiana é, em grande medida, heterogênea; e isso sob vários aspectos, sobretudo no que
se refere ao conteúdo e à significação ou importância de nossos tipos de atividade”. Nesse
sentido, por insubmissão à lógica racista vigente na sociedade brasileira, o Cotidiano de que
trata Petrone no seu Instagram é um Cotidiano bem específico. É a vida cotidiana do povo
que é preto, indígena, quilombola. São as demandas, debates e pautas desses grupos sociais
interconectados que de fato orientam o fazer político da parlamentar.
A multiplicidade dos temas que surgem na vida de todo o dia ou a própria rotina na Câmara
dos Deputados configuram as Pautas do Cotidiano. É interessante pensar que se trata de um
Cotidiano que pode não ser importante para a sociedade civil brasileira racista, mas é para
o povo de favela, indígenas, quilombolas, movimento funk, LGBTQIAP+ e todos aqueles que
sentem as mazelas de um Estado que retira direitos do povo. Todas as pessoas que “a todo
momento tentam nos fazer sentir em um não-lugar”, segundo Petrone (OLIVEIRA, 2021, p.
150), especialmente quando se trata de ocupar os espaços de poder e disputa orçamentária
na sociedade, como na política institucional.
Dentre as publicações sobre esse Cotidiano preto, popular e político trabalhado por Petrone
no seu perfil, no quadro abaixo seguem as que tiveram maior audiência em cada mês obser-
vado na pesquisa:
Reprodução: /taliriapetrone
Reprodução: /taliriapetrone
Reprodução: /taliriapetrone
O destaque feito por Petrone sobre as Pautas do Cotidiano também tem uma dimensão histó-
rica. Segundo Heller (2016, p. 38), “A vida cotidiana não está “fora” da história, mas no “cen-
tro” do acontecer histórico”. Ou seja, além de o perfil no Instagram funcionar como um portal
de notícias, também pode ser observado como uma ferramenta de registro do cotidiano e da
história do país. Ainda por Heller (2016), os grandes feitos históricos que são contados nos
livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam.
Nesse sentido, Angela Davis argumenta que as mudanças históricas ocorrem sob o protago-
nismo dos movimentos sociais com o engajamento de grandes números de pessoas. Esmiúça
Davis que “Quando nós nos reunimos, quando nós damos as mãos umas às outras e uns aos
outros. Quando nós atuamos de forma coletiva, quando lutamos juntas e juntos nós podemos
vencer” (ANGELA DAVIS…, 2019). Por isso é tão simbólico e importante que a principal abor-
dagem de Petrone no seu Instagram seja sobre as Pautas do Cotidiano. Podemos considerar,
a partir disso, que a parlamentar faz registro da história da população negra e indígena a partir
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Em uma fala publicada no dia 12 de março de 2021, para a escolha do mês de março a celebração do dia
por meio de um vídeo editado com 16 segundos, que internacional das mulheres. Porém, o que Petrone
atingiu 77.165 mil visualizações, Talíria afirmou que apresentou com a sua principal referência na chega-
“Já faz um ano. E não adianta para nós apenas saber da à Câmara no mês de março de 2019 foi a pres-
quem apertou o gatilho, mas é fundamental para o es- são ao Estado brasileiro quanto à investigação sobre
tado brasileiro a resposta de quem mandou executar ‘quem mandou matar Marielle Franco e Anderson’.
Marielle Franco e Anderson.” (OLIVEIRA, 2019, p. 134). Com o suporte do Instagram, Talíria promove tam-
É importante ressaltar que as abordagens de Petrone bém uma espécie de prestação de contas para seus
no Instagram não são aleatórias, descoladas da rea- eleitores, especialmente, a partir da mediação das
lidade política, econômica e social do país. Trata-se Pautas do Cotidiano e das Denúncias, além de ex-
da continuidade e ampliação para a esfera da política por no seu perfil na rede social a lógica de funcio-
nacional do projeto político institucional construído namento da casa legislativa e os embates políticos
junto com Marielle e coletivos sociais desde a época que ela precisa travar nesse território para defender
da vereança da cidade do Rio de Janeiro e Niterói. os direitos básicos para a população. Nesse bojo, a
Um projeto de ampliação da democracia brasileira comunicação antirracista praticada por Talíria Petro-
para toda a população, incluindo negra e indígena. ne no mandato parlamentar federal é um espelho da
sua atuação política institucional.
Assim, com a legenda “Não basta saber quem aper-
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Diante desse contexto, a fala verdadeira (hooks, 2019) das mulheres negras é uma marca
expressiva na luta antirracista em duas matrizes expressivas que sustentam o racismo no
país, o sistema midiático e o sistema político. A autora Câmara Phyllis Jones (2002), ilustrada
por Werneck (2016) – figura 6 – expõe a estrutura de funcionamento do racismo institucio-
nal que perpetua desvantagens para alguns indivíduos e comunidade e, na proporção injus-
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tamente inversa, garante que sejam gerados benefícios a outros indivíduos e comunidade.
inferioridade
sentimentos superioridade
Pessoal/internalizado
condutas passividade / proatividade
aceitação / recusa
falta de respeito /
ações desconfiança / desvaliração /
RACISMO
perseguição / desumanização
Interpessoal
omissões negligência ao lidar com o
racismo e seus impactos
Fonte: https://www.instagram.com/p/Bzdp6avJaFF/
Para corroborar com a abordagem de racimo institucional a partir de Jones (2002), torna-se
oportuno recuperar o trabalho de Janaina Aires e Suzy dos Santos (2017) sobre as interco-
nexões do sistema político e o sistema midiático no Brasil. As autoras definem tal engendra-
mento como Coronelismo Eletrônico, sendo o ator central o coronel eletrônico caracterizado
como “todo personagem que simultaneamente exerce mandato eletivo e é proprietário de
meios de comunicação” (AIRES; SANTOS, 2017, p. 45). Assim, as características do modo uni-
ficado de funcionamento dos dois sistemas imprimem “a marca clientelista na relação entre
estado e meios de comunicação” (AIRES; SANTOS, 2017, p. 16-17).
Portanto, para mulheres negras assumirem cadeiras no poder legislativo e conseguirem co-
municar ou midiatizar sobre suas ações parlamentares é subverter a ordem de poder vigente.
Uma vez que o campo midiático atende ao campo político, bem como o sistema político está
para o campo midiático. É nessa conjuntura que as parlamentares negras, ainda que sub-re-
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presentadas na política institucional, têm provocado fissuras nas estruturas das instituições
racistas do país. E, no campo midiático, as redes sociais têm funcionado como um megafone
da política que já é feita no chão das favelas e periferias.
Petrone destaca que, frente ao oligopólio dos meios de comunicação concentrado nas mãos
de poucas famílias, “as redes sociais são importantes instrumentos para prestar contas da
nossa atuação às pessoas que nos confiaram seu voto e que acreditam no nosso trabalho.”
(OLIVEIRA, 2021, p. 189). A pesquisa MOM-Brasil 2017, realizada em parceria com o Intervo-
comunicar sobre propostas que atingem efetivamen- pervisibilização (NOBLE, 2013) nos espaços midiá-
te a vida das pessoas. Talíria destaca que a leitura ticos, vinculando as pessoas negras à memória do
sobre as iniciativas que afetam a população muitas período colonial escravocrata do país. Aos homens,
vezes não é expressa nos veículos da grande impren- associando-os à força corporal, à virilidade e ao cri-
sa. A historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto (NETO, me – especialmente do comércio varejista de drogas
2015) expõe que “a imprensa hegemônica não tem e assaltos a bens materiais –, carro, dinheiro. E às
condições de registrar os problemas brasileiros re- mulheres, às violências do racismo e do sexismo, à
conhecendo a importância dessa população”. Com repetida associação à servidão e hipersexualização
Os sistemas midiáticos, portanto, bem como no cam- Portanto, para as populações negra e indígena com-
po financeiro e político, dentro da dinâmica do racis- prometidas com a luta antirracista, a atuação no Cam-
mo sobre as pessoas pretas, atuam de forma a “do- po da Comunicação e Política Institucional configu-
mesticar” (GONZALEZ, 2020, p. 77) o olhar sobre as ra-se um duplo compromisso político antirracista.
pessoas pretas e para as pessoas pretas. De acordo Sendo na comunicação o desafio de distribuir suas
com Dona Sueli Carneiro (2003, p. 125): próprias notícias e conteúdos e, na política institucio-
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a Lei 12.965/2014, que traz as diretrizes do Marco Ci- que usa roupas como as nossas.
vil da Internet, divulgação de fake news, e a Lei Geral
de Proteção de Dados Pessoais (LGPD ou LGPDP) – Assim, nesse circuito, temos, com o Instagram, ou-
Lei nº 13.709/2018. tros parâmetros de comunicação, inviabilizados pe-
las mídias tradicionais. Outro aspecto é trazer para a
No entanto, mesmo com todas as contradições vida cotidiana a vivência na Câmara dos Deputados,
apontadas sobre as redes sociais com o adicional do inclusive divulgar os debates e embates nesse espa-
oligopólio racista dos veículos de comunicação no ço institucional. E nesse aspecto a integridade física
Uma sociedade racista utiliza de múltiplas estratégias Não há hierarquias entre conhecimentos,
para discriminar, retirar do negro o status de humani- saberes e culturas, mas, sim, uma história de
dade, transformando as diferenças inscritas no corpo dominação, exploração, e colonização que deu
em marcas de inferioridade (GOMES, 2003). O racis- origem a um processo de hierarquização de
mo está diretamente ligado ao modelo de escravidão conhecimentos, culturas e povos. Processo
que originou o capitalismo que vivemos atualmente esse que ainda precisa ser rompido e superado
(MBEMBE, 2014). Em consequência desse proces- e que se dá em um contexto tenso de choque
so colonial, instituíram-se conhecimentos e ciências entre paradigmas no qual algumas culturas
acerca de padrões eurocêntricos, bem como os es- e formas de conhecer o mundo se tornaram
tudos sobre educação. dominantes em detrimento de outras por meio
de formas explícitas e simbólicas de força e
A respeito desta questão, Gomes (2012, p. 102) nos violência. Tal processo resultou na hegemonia
diz que: de um conhecimento em detrimento de outro
e a instauração de um imaginário que vê de
forma hierarquizada e inferior as culturas,
povos e grupos étnico-raciais que estão fora
do paradigma considerado civilizado e culto,
a saber, o eixo do Ocidente, ou o “Norte
colonial”.
*Camila Oliveira é professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na rede
municipal SME/RJ, atuo na escola de Formação Paulo Freire com formação con-
tinuada de professores. Mestre em Ciências Sociais PPGCS-UFRuralRJ, Douto- Nós, enquanto mulheres negras em constante movi-
randa em Antropologia Social pelo PPGAS-Museu Nacional e Coidealizadora do
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seguidores, compartilhando práticas de nossas roti- necessário que se abordem desde cedo os valores
nas de trabalho, uma vez que, no momento, atuamos éticos para criar uma relação de respeito ao próximo
em esferas distintas: Camila Oliveira na formação con- que possa preparar o educando para respeitar as di-
tinuada, Carolline Sotero retornando para a sala de versidades, diferenças e criar um espaço escolar de-
aula, após um tempo na coordenação pedagógica, e mocrático. Trazendo o conhecimento ancestral para
Graziele Vidal na coordenação pedagógica. Organi- nosso contexto, compreendemos a necessidade de
zamos nossa produção de conteúdo fundamentada que famílias, professores e toda a comunidade es-
nos três pilares – gestão, regência e formação – e colar se envolvam na tarefa de fazer do educando
escolares e combate ao racismo. Em 9 de janeiro de dentre elas, quiçá mais importante, paradigmas edu-
2003, o então Presidente da República, Luís Inácio cacionais, desvelamento do racismo, promoção de
Lula da Silva, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da práticas pedagógicas antirracistas, representação do
Educação com a sanção da conhecida Lei 10.639, povo negro como protagonista na formação da so-
que acrescentou os seguintes artigos: ciedade brasileira.
Online
Ciberativismo Pedagógico:
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Como dito anteriormente, o Àwa tem trilhado um caminho que não foi imaginado por nós.
Na plataforma Instagram, pessoas que acompanham perfis são chamadas de seguidoras, no
entanto, estabelecemos um processo interacionista do Àwa que transpõe a ação de apenas
seguir, fazendo do Àwa fruto da construção coletiva. Hoje, passado três anos de seu início,
o trabalho do Áwa é acompanhado por mais de 4.000 pessoas de todo o território nacional.
A página Àwa Educadoras tem sido um ambiente transgressor, pois, através da internet, nos
foi possível reunirmos muitos profissionais que já possuem em sua prática docente um arca-
bouço intenso de atividades que promovem o antirracismo, mas que muitas vezes não foram
registrados e só se deram conta ao conversarmos em lives e eventos promovidos nesse pe-
ríodo. O que fica para nós é o sentimento que o movimento negro nos deixou, a coletividade
como estratégia potente de subversão ao racismo, organização, registro das nossas memó-
rias e fazeres para os próximos que virão. O futuro realmente é ancestral!
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Reprodução: /awaeducadoras
Introdução
atravessam a vida de pessoas negras diariamente. inspirou justamente em Paulo Freire. Diante disso, é
possível afirmar que a educomunicação possui bases
teóricas na comunicação social e dialógica de Paulo
Freire. Conforme Ismar Soares (2002), a educomuni-
cação se fundamenta a partir de entendimentos de
cunho tradicional nos campos da educação e outras
áreas das ciências sociais e entendendo que a edu-
comunicação se trata de um conjunto de ações com
cimento e explorar diferentes temas, que eles e elas sendo expostas de forma grotesca, sem o direito à
sejam protagonistas em narrativas relacionadas às resposta.
suas comunidades e expressem suas necessidades
específicas. Quem são essas pessoas que comunicam essas no-
tícias? A quem interessa a veiculação dessas notícias
Outro ponto importante que a educomunicação po- sensacionalistas? A quem interessa o distanciamento
pular e periférica proporciona é o de fortalecer a das pessoas negras do amplo debate racial, veicula-
capacidade dessas pessoas de avaliar criticamen- do nas mídias?
ram que aprender a lidar com um mecanismo virtual liação do público-alvo; na segunda etapa, formamos
para o qual não estavam preparados, desde a criação os jovens nos temas já citados, com uma equipe téc-
do design de uma peça para divulgar o produto até nica capacitada para orientar os jovens e as jovens
a manutenção da página de divulgação da marca, o negros e negras moradores de periferias acerca das
pós-venda, entre outros processos que buscamos ferramentas utilizadas; e no terceiro momento lança-
ensinar no curso oferecido. mos a nossa plataforma digital.
Ariel Thamara*
Introdução
Todas as vezes que preciso me apresentar para al- físico, como cremes para cabelos lisos, maquiagens
guém ou a algum grupo, a característica que mais se que não tinham a nossa cor de base e por aí vai.
destaca é a minha facilidade para me comunicar e me
enturmar. Tenho a lembrança clara de quando come- Contudo, por volta de 2015, começaram a aparecer
cei a me identificar de forma digital com outras pes- coisas novas, principalmente no Youtube. Eram ví-
soas que tinham essas mesmas características, fica- deos sobre transição capilar, maquiagens para peles
va assistindo a horas e horas de vídeos no Vine e no negras, como finalizar o seu cabelo cacheado, todos
Youtube desses perfis. A facilidade da comunicação com uma estética bem mais simples. Todavia, dife-
e a simplicidade que aqueles vídeos aparentavam ter rentemente do exemplo de 2013 mencionado ante-
me faziam pensar que apenas isso era necessário riormente, poucos desses nomes se mantêm em alta
para ser o que ainda não tinha esse nome: um(a) in- até hoje. De forma rápida, observam-se alguns no-
fluenciador(a) digital. mes como: Camila Nunes, Jacy Carvalho, Gabi das
Pretas, dentre outras que na época ficaram conheci-
Dentro daquele contexto, uma garota negra, minei- das por ajudar no processo de empoderamento de
ra, de 14 anos de idade, no ano de 2013, estudando garotas negras, como eu.
em escola pública e de classe média baixa. Os ví-
deos a que eu assistia já não se enquadravam tanto Ao assistir a tudo isso do outro lado da tela, repli-
no meu cotidiano. Vídeos de criadoras de conteúdo cando os passos a passos de maquiagens para pele
como Francine Elke, Maju Trindade, dentre outras in- negra, começando a entender as diversas diferenças
fluencers mulheres, que não só eu, como também que existem entre pessoas como eu e as influencers
toda a minha bolha de amigas, amávamos ver, eram a que eu assistia em 2013 e vendo mulheres negras
completamente diferentes de nós, ou seja, brancas, começando a ganhar espaço na tela do meu celular,
de classe média alta, mostrando produtos que esta- começaram a surgir ideias como:
vam fora da nossa realidade financeira e que muitas
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vezes nem eram sequer aplicáveis ao nosso aspecto Tá muito fácil crescer no youtube.
aqui, vamos pensar algo para isso também? soais, a política, a economia (D’ANDRÉA, 2020).
Concordaram que era uma pauta importantíssima e Além do mais, as coisas não eram tão simplistas como
me disseram que ninguém seria melhor para puxar acompanhar durante horas influencers falando sobre
essa estratégia e campanha do que eu, e, por fim, me beleza. Com o passar dos anos, a internet e esses
falaram para ir conversar com outras pessoas negras fóruns digitais que foram se constituindo nela foram
e ver o que podia ser feito. Voltamos para a discussão se tornando indispensáveis para os estudos socio-
de inclusão de mulheres. Todavia, o questionamento lógicos, e, consequentemente, publicitários. Dessa
que ficou na minha cabeça foi além dessa situação:
O meu ponto sobre todo esse processo de platafor- A estrutura matemática do algoritmo não é
mização da sociedade e inovações tecnológicas é racista ou machista, mas os dados incorporam
que isso tudo não está andando no mesmo passo o passado e não apenas o passado recente,
que a resolução de problemas estruturais que exis- mas o passado obscuro.” (CODED BIAS, 2020).
tem relacionados ao racismo. Volto a repetir aqui a
mesma pergunta que fiz há um tempo: Tcharam! Eis a resposta para a minha pergunta:
O que esperar de um produto desenvolvido por O que esperar de um produto desenvolvido por
um mercado tão incrível, mas que não existe um mercado tão incrível, mas que não existe
representatividade na produção dele? representatividade na produção dele?
contextos.
nidades, reprimendas ou atenção por agentes edu-
cacionais não é igualitária.
Pronto, agora com todas as microagressões apresen-
tadas, quero entrar em um outro ponto, sobre como
Discursivamente, supor que um indivíduo conseguiu
os vieses raciais, que estão diretamente atrelados a
entrar em faculdades por meio de cotas e que isso
essas microagressões, aparecem no meio digital, em
invalida a sua presença ali é um tipo de suposição de
especial, no Instagram.
inferioridade intelectual, como a “surpresa” com a ar-
ticulação ou ideias de grupos racializados ou, ainda,
Para fins de privacidade e segurança deles, não vou que já tinha, um curso de maquiagem focado em pe-
citar os nomes aqui, mas os perfis se caracterizam da les negras em seu perfil.
seguinte forma:
Dentre todas as microagressões, a mais presente nas
Influencer A: entrevistas foi a de exclusão e isolamento, seguida
A primeira influencer entrevistada é uma mulher negra, da negação de realidades raciais, exotização e supo-
que atua no meio digital como criadora de conteúdo
para o Instagram e o Twitter desde 2016. Atualmen-
15
12
0
negações de exotização exclusão e suposição de negação de patologização suposição de
realidades isolamento criminalidade cidadania de valores inferioridade
raciais culturais intelectual
Exclusão e isolamento
No contexto das entrevistas, a exclusão e isolamento foram muito atreladas a outros dois ter-
mos que gostaria de acrescentar aqui, o de invisibilidade e o de invalidação.
Em uma parte da sua entrevista, a entrevistada A relatou a dificuldade para ser verificada3,
mesmo sendo uma influencer com um grande público, reconhecida por vários outros artistas
e reconhecida, inclusive, pelo próprio Instagram como uma pessoa relevante.
Quando a plataforma foi testar no Brasil a ferramenta Reels4, convidaram a influencer para ser
uma das pessoas a participar e a testar com o público a nova ferramenta.
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Apesar disso, e também apesar de trabalhar como criadora de conteúdo há mais de seis anos,
ela vê influencers não negros de mesmos segmentos e tamanho que ela apresentando um
desempenho e reconhecimento muito maior pela plataforma.
3. A verificação é uma forma de as pessoas saberem se as contas de destaque que estão seguindo ou pesquisando são exatamente quem elas
dizem que são. Dessa forma, as pessoas poderão saber quais contas são autênticas e relevantes.
4. Disponível em: <https://about.Instagram.com/pt-br/features/reels>. Acesso em: 12 jan. 2022.
Fiquei chateada, mas passou né, fazer o quê, é Ainda nessa microagressão, um dos relatos que mais
uma coisa que acontece muito com as pessoas me marcou no processo das entrevistas foi o rela-
pretas, eu vejo as postagens do pessoal e cionado ao impacto das falhas no reconhecimento
identificando assim, poxa, isso é real, é muito facial no racismo algorítmico do Instagram. Durante
chato, a gente fica produzindo conteúdo, mas sua entrevista, a influencer D afirmou que o seu perfil
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tem que produzir mil vezes melhor. A gente abrange várias tonalidades de peles, por isso, apon-
tem que se esforçar muito mais e ainda assim tou o impacto do colorismo nos vieses raciais do
a gente é invisibilizado pelas pessoas e pela algoritmo do Instagram. Quando perguntada sobre
plataforma (Influencer A, em entrevista). como o colorismo impactava o alcance de suas pu-
blicações, ela afirmou: “Quanto mais escura a pele,
Essa invisibilização e descredibilização de pessoas menos engajamento”. O problema não é um algorit-
negras é uma característica extremamente forte no mo ou outro de forma isolada, mas como sociedades
racismo estrutural e a ideia de que, para conseguir
5. Disponível em: <https://www.tiktok.com/pt-BR/>. Acesso em: 12 jan. 2022.
Já para a influencer B, a exotização ocorre de outras de a religião não ser um tópico recorrente nas pautas
formas, como uma forma de “cota de pessoas ne- de nenhum dos entrevistados. Dessa forma, como
gras para publicidade” que as marcas que a procuram não trabalhavam publicações relacionadas às religi-
buscam trabalhar. De acordo com ela, é comum che- ões em suas publicações, não conseguiram observar
gar para fazer um trabalho com marcas e ser a única algum viés relacionado a essa microagressão.
pessoa negra no casting e no grupo de WhatsApp.
Esse fator também está presente na microagressão
de exotização.
bíveis para pessoas negras falarem sejam limitados você vai cobrar isso? Fulana tem muito mais
às consequências do racismo. Dessa forma, ignoran- seguidores que você e vai cobrar isso. E aí
do o trabalho de vários intelectuais negros e, conse- rolou uma crise na empresa porque eu gritei e
quentemente, supondo uma inferioridade intelectual. fui lá né expor a palhaçada que eles estavam
fazendo, foi uma das semanas mais tensas
que eu já tive na minha vida, gerou uma crise
dentro da minha empresa sabe, o problema
de uma pessoa branca influenciou na minha
Em suma, o mercado de influência não trata de ma- Então, antes eu tentava criar assim
neira equilibrada criadores de conteúdos brancos e desesperadamente, entregar alguma coisa,
não brancos (BLACK INFLUENCE, 2020). Criadores de tipo, eu ficava pensando o que eu vou falar,
conteúdo pretos recebem cachês menores, mesmo no que eu posso impactar, aí eu ficava nessa
possuindo base e engajamento similares aos bran- loucura: Eu tenho que pensar alguma coisa, eu
cos e são menos contratados por marcas para ações tenho que pensar alguma coisa… E aí teve um
publicitárias. momento que eu falei: Gente, não dá, eu estou
cansada (Influenciadora B, em entrevista).
Contudo, o impacto financeiro pode acarretar uma
série de outros problemas, por exemplo, na saúde Todavia, esse questionamento em torno de conteú-
mental. dos produzidos em larga escala e a ansiedade que
isso causa nos criadores de conteúdo não estão
O impacto psicológico apenas relacionados a criadores de conteúdo ne-
gros. A cada minuto de 2020, quase 150 mil fotos fo-
Em 2019, a youtuber Gabi Oliveira palestrou no So- ram postadas no Facebook, mais de 300 mil stories
cial Media Week 2019 (ARAUJO, 2019) sobre a saúde foram publicados no Instagram e mais de 40 milhões
mental de criadores de conteúdo. Dentre vários tó- de mensagens foram enviadas pelo WhatsApp (ALI,
picos comentados durante a palestra da criadora de 2020).
conteúdo, um dos principais foi que as redes sociais
tendem a trabalhar em cima dos medos e da inse- Entretanto, apesar de criadores de conteúdo brancos
gurança dos criadores. Segundo ela: “Medo de pos- também estarem submetidos a essa pressão para a
tar poucas vezes, medo da mudança do algoritmo, criação de conteúdos em massa e com uma boa qua-
medo do flop”. lidade, a competição no meio digital ainda é muito
desigual. Além dessa ansiedade causada pela neces-
Esse receio também apareceu durante as entrevistas. sidade de estabelecer uma frequência alta de conte-
Para a influenciadora A, existe uma pressão psicoló- údos, influenciadores negros têm que lidar com os
gica e da própria ferramenta para que os criadores vieses raciais que existem no algoritmo da ferramen-
REDES SOCIEIAS E TECNOLOGIA
de conteúdo utilizem todos os recursos disponibili- ta que eles utilizam para divulgarem seus conteúdos
zados. Esse tópico também surgiu quando a influen- e, consequentemente, conseguirem suas rendas.
ciadora B falou sobre a exaustão de correr atrás da
frequência ideal de publicações, que, apesar de não Mas, além dessas inseguranças que também são ci-
existir um consenso, é fortemente divulgada entre tadas por criadores de conteúdo brancos, criadores
“gurus do marketing” (SKAF, c2015) para que seja a de conteúdo negros encontram outras barreiras que
maior possível. fazem com que esse medo seja ainda mais aguçado.
Segundo a influenciadora B:
Não quero que a minha pesquisa seja desmotivado- O grande experimento: Facebook Papers: as provas
ra para criadores de conteúdo negros. Muito pelo que faltavam para mostrar como a rede manipulou
contrário, quero ajudar a dar visibilidade para esses você. Intercept Brasil, São Paulo, 1 dez. 2021. Dispo-
problemas técnicos e estruturais que existem e que nível em: https://www.intercept.com.br/2021/12/01/
são uma pedra no sapato dessa galera. Não há como facebook-papers-provas-rede-manipulou-voce/.
vencer uma guerra quando não sabemos ao certo Acesso em: 25 jan. 2022.
contra quem estamos lutando. Espero que esse tra- MESQUITA, Giuliana. O algoritmo do padrão. Elástica
balho sirva como acalento para esses criadores, para Abril, São Paulo, 3 mar. 2021. Disponível em: https://
Introdução
“Eu sou porque nós somos.”
(provérbio africano)
Quando há um holofote muito forte em cima de algo, se caracteriza pela rigidez e crueldade (OXFORD LAN-
em volta há sombras igualmente fortes, e o medo do GUAGES, 2013). Com o significado literal de desalma-
desconhecido torna-se combustível para discursos do, por mais que tenha muito mais familiaridade com
perigosistas. No Brasil pós-abolição, a necessidade o colonizador do que com o colonizado, a religião
de “ordem”, o medo do desconhecido e o racismo cristã contribuiu fortemente para a hegemonia do re-
foram as bases estruturantes dos novos ordenamen- gime escravocrata e, além da condenação à escra-
tos jurídicos e da criminologia brasileira, e os refe- vidão, um povo desalmado consequentemente tem
ridos ordenamentos introduzidos pela escravidão e seus hábitos e cultura condenados e criminalizados.
pós-escravidão na formação socioeconômica so- Dessa forma, com a existência condenada, os com-
frem diversos abalos a qualquer ameaça de insurrei- portamentos dos negros, sejam escravos ou liber-
ção (MALAGUTI BATISTA, 2003). tos, sofreram “consequências” (SIMÕES, 2000, p.
28). “Com os negros escravos trazidos para o Brasil,
O fator histórico é basilar na discussão. Não só no vieram também diversificada cultura milenar, que in-
Brasil, mas em toda a América Latina, a sua história fluenciou na formação do povo brasileiro como sen-
de formação é baseada em violência manifestada de timentos, crendices, superstições, hábitos, costu-
todas as formas possíveis e os africanos sequestra- mes, danças e tradições. Dentre esses legados está
dos, além de escravizados, são considerados desal- a capoeira, de suma importância na luta pela sobrevi-
mados por não seguirem o cristianismo (já plantanda vência dos negros de Angola” (PALMEIRO, 1997).
a cultura da “necessidade de salvação” aos que não
seguem a religião cristã que ainda prevalece, inclusi- O jogo de luta que a capoeira representa também é
ve florescendo no cenário político dos dias atuais). comunicação e corpo em movimento, e ela sofreu as
Considerar um povo desalmado significa dizer que consequências e mudanças diante da penetração do
aquele povo não se sensibiliza, não se comove com colonizador na vida dos negros, assim como o sam-
a tragédia do próximo, nem corresponde ao amor ba e as religiões de matrizes africanas. Dessa forma,
HISTÓRIA E CULTURA
que recebe; um povo desumano, desnaturado; que com a repressão legislativa e repressiva voltada aos
negros durante a escravidão e pós-abolição, para que
seus hábitos culturais fossem preservados, seus re-
*Amanda Rangel Bittencourt é advogada e Mestranda em Sociologia e Direito presentantes precisaram fazer mudanças. Como, por
na Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF).
(BATISTA, 2018). No referido período (pós-abolição) e JO, 2009). Enquanto o sujeito soberano de origem
com o advento da República, as bases para o exercí- europeia, masculino, branco, cristão e detentor dos
cio, mesmo que limitado, da cidadania foram lançadas meios de produção é pertencente à zona do ser. No
(ALVAREZ et al., 2003), e os setores das elites, ilu- Rio de Janeiro, ainda no ano de 1850, com a proibi-
das ante-salas do Parlamento, das eleições concor- cravidão no Brasil. A real intenção desta medida era
ridas, dos votos cabalados, do regime parlamenta- destruir a documentação existente sobre as dívidas
rista. (SOARES, 2008, p. 50-51) de indenizações que a República passaria a ter com
os proprietários de terra, mas também ocultar todos
Enquanto a república procurou ocultar este Assim como o saber médico foi muito valorizado na
período da história, a Capoeira, por meio dos República do Brasil na elaboração de leis penais com
fundamentos ensinados pelos mais velhos, base na criminologia lombrosiana, durante a transição
pelo cancioneiro cantado nas rodas, e pelo para o século XX, o Brasil teve influências de teorias
repertório corporal desenvolvido com o jogo, científicas que atravessaram o olhar social sobre a
ao som da bateria de instrumentos, liderados capoeira e iniciaria um novo patamar para esta dentro
pelo berimbau, narra o que a historiografia da história nacional. Nas palavras de Nazaré Cristina
oficial, propositalmente, tentou camuflar. A Carvalho:
Capoeira é mais que um elemento simbólico
de resistência, é factual. Homens e mulheres A capoeira teve um processo de
negros (a)s desenvolveram-na para se esportivização, pois muitos intelectuais
defender perante o colonialismo europeu, se passaram a defender a ideia de que esta
defender fisicamente, defender sua cultura representaria a “luta nacional”, (assim como
e tradições, defender sua história. Usou seu outros países, bem como o JiuJitsu no Japão,
próprio corpo na organização de seu sistema o Boxe na Inglaterra) uma manifestação
de defesa, se tornando um dos capítulos mais genuinamente brasileira e que possuía
sugestivos da cultura popular. todas as características que as emergentes
(CORDEIRO e CARVALHO, 2013) teorias sobre a ginástica e educação física
preconizavam. Então a capoeira precisou
A capoeira não precisou mudar suas características passar por um “processo civilizador”. A
durante os anos de proibição, segundo Ariane Pa- sua relação com a criminalidade deveria
checo Palmeiro (1997), manteve-se fiel ao seu prin- ser apagada, as maltas desmanteladas
cípio de arma, defesa e ataque, embora demais mo- e extinguidas, para enfim, poder ser
dalidades tenham se distanciado dos fundamentos aproveitadas suas características desportivas.
originais, fazendo-se responsáveis por uma concep- (CORDEIRO e CARVALHO, 2013, p. 77)
ção equivocada de que a capoeira era uma atividade
inofensiva, festiva, de forma dançada e teatralizada. A capoeira deixa de ser crime apenas no ano de 1934,
Após a abolição da escravidão, não foi compreendi- no governo de Getúlio Vargas, quando o jogo-luta
da como luta, e hoje em dia não passou da condição passou a ter mais prestígio e reconhecimento social.
da modalidade esportiva, devido a sua característica No entanto, como já dito, ainda demorou muito para
(alterada), que foi obrigada a converte-se em espetá- que o “carimbo” sinalizador de vagabundagem fosse
culo de dança. apagado. Ainda que a legalização já fosse uma reali-
dade, o viés era regulador, porque qualquer manifes-
Na capoeira as pessoas são envolvidas de tação da cultura negra que era legalizada – Capoeira
uma forma integral, onde a razão, a emoção e e Candomblé, por exemplo – deveria ser praticada
o físico são únicos. Mais do que uma simples em espaços fechados e com alvará de instalação.
dança ou luta, a capoeira é um estilo de vida, A legalização se tornou um meio eficaz de controle
HISTÓRIA E CULTURA
uma maneira de encarar o ato de viver. A roda social (ABIB, 2004). Hodiernamente, a capoeira pos-
de capoeira é exercício permanente para se sui o prestígio que outrora seria inconcebível, não só
estar no aqui e agora. A agilidade e malícia a capoeira, mas outros hábitos culturais negros cri-
determinam a necessidade de se estar sempre minalizados à época, como as religiões de matrizes
Conclusão
Introdução
Figura 2 Mulheres Negras em Marcha na Avenida Atlântica Figura 4 Mulheres Negras em Marcha na Avenida Atlântica
Marcha de Mulheres Negras, Copacabana, 2019 Marcha de Mulheres Negras, Copacabana, 2018
Para se entender as várias opressões que atraves- Marchar em Copacabana é trazer para este
sam as mulheres negras no território e nas relações lugar que historicamente não nos pertence,
que se estabelecem, é necessário um esforço de o nosso pertencimento. (entrevistada)
se compreender as várias camadas contidas nos
agentes que perpetuam, que vivenciam e atuam na
produção dessa cidade. É necessário ruptura com o
atual modelo hegemônico construído sem incorpo-
rar as especificidades das diversidades étnicas ra-
ciais e sociais que compõem a cidade. Ao marchar
no território, Copacabana, Mulheres Negras dão voz
no território às maiorias negras excluídas, oprimidas,
e ressignificam no tempo, em marcha, uma outra re-
configuração, o espaço passa ser o território de visi-
HISTÓRIA E CULTURA
bilidade.
ancestral no Brasil tiveram sua história invisibilizada ca, que reconfigura – apresenta um outro olhar, uma
pela história única do feminismo. Dar visibilidade às maneira de pensar a mulher negra fora dos padrões
nossas histórias é restituir, sobretudo, humanidade estéticos determinados por uma elite consolidada
às mulheres negras. desde a colonização. Mas não há a pretensão de se
A forma como construímos nosso acervo coletivo é As imagens produzidas na Marcha de Mulheres Ne-
muito complexo, vem marcado pelo eurocentrismo gras são também o reconhecimento de resistência.
colonial que, como projeto, nos trouxe a escravidão Nosso corpo não está tenso, preso, fixo, detido, apri-
como uma cultura visual dentro de um modelo de sionado, mas livre. As imagens nos colocam várias
aquisição e submissão europeu. Mulheres negras em camadas, de como somos muitas e diversas. As dire-
marcha é uma construção contemporânea de outros ções possíveis são inúmeras no tensionamento entre
sujeitos. Invocamos nossa humanidade historicamen- o que é reivindicado em Marcha e as disposições do
te suprimida pela dor da violência sem precedentes cotidiano do território.
da escravidão. Recontamos nossa história visual em Imagens de protesto são uma forma de agregar ou-
imagens de afeto e luta. tras reflexões na cidade, expressam visualmente uma
vontade política e agregam outros signos ao coti-
Mulheres Negras, criam-se estratégias para que seja culturalmente em movimentos artísticos, literários e
visualmente potente. As mulheres negras fazem car- religiosos, é um movimento político de mobilização
tazes, escolhem roupas, turbantes, pintam os corpos racial. É um importante ator político educador.
e assim se inicia a construção da visualidade da Mar-
cha.
*Mariana Alves de Sousa é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Este texto é parte dos resultados do projeto de mapeamento dos territórios ne-
Educação da Universidade Estadual Paulista Campus Marília (UNESP), na linha de gros no município de Marília – SP, que vem sendo desenvolvido pelos membros
pesquisa Psicologia da Educação: processos educativos e desenvolvimento hu- do Núcleo Negro Para Pesquisa e Extensão Universitária – NUPE, da Faculdade
mano. Possui graduação (licenciatura e bacharelado) em Ciências Sociais (2017) de Filosofia e Ciências/UNESP. Além dos(as) autores(as) que elaboraram este
pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e mestrado em Sociologia (2020) texto, também participam do projeto os(as) seguintes pesquisadores(as): Eduar-
pela UNESP/Marília (ProfSocio). Participa do grupo de pesquisa PsiCUqueer – do Baroni Borghi, Glayton Ezequiel Pereira, Michele Carlesso Mariano, Pollyanna
Psicologias, coletivos e culturas queer e do Laboratório de Ensino e Pesquisa Fabrini Silva, Vinicius Luiz Pires Queiroz.
Educação e Sociedade (LEePES), ambos certificados pelo CNPq. Participa do
NUPE – Marília (Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão). Atualmen-
te desenvolve a pesquisa intitulada “Marcas da Decolonialidade nas Práticas e
Saberes de Mulheres Negras Educadoras” com financiamento da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Introdução
*Daniela Almeida Lira é Mestra em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) – Faculdade de Filosofia e Ciências,
na linha de pesquisa: “Pensamento Social, Educação e Políticas Públicas”, com Esta pesquisa busca mapear o que pode ser enten-
projeto intitulado “A Implantação das ações afirmativas para negras(os) nas uni-
versidades públicas estaduais paulistas”, orientado pela Profª Drª Maria Valéria
dido como “territórios negros” no município de Ma-
Barbosa e financiado pela CAPES. Licenciada e bacharela em Ciências Sociais, rília1 – SP, destacando os aspectos comunicacionais
também pela UNESP-FFC, tendo versado em sua monografia os seguintes temas:
Educação de Jovens e Adultos, Relações Étnico-Raciais e Exclusão Educacional, antirracistas de cada grupo. Trata-se de uma ação
com bolsa PIBIC – CNPq. Atualmente integra o Núcleo Negro para Pesquisa e
Extensão Universitária da UNESP-FFC e o LEePES – Laboratório de Ensino e Pes- coletiva do Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão
quisa Educação e Sociedade.
Universitária da Faculdade de Filosofia e Ciências de
*Andreas Hofbauer possui doutorado em Antropologia Social pela Universidade Marília (UNESP/FFC) e vem sendo desenvolvida pe-
de São Paulo (1999) e doutorado em Völkerkunde pela Universidade de Viena
(1986). Atualmente é professor assistente doutor da Universidade Estadual Pau- los(as) pesquisadores(as) do grupo desde o início de
lista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus Marília. Atua principalmente nos
seguintes temas: racismo e antirracismo, diferença e desigualdade em contex- 2022. Os objetivos da pesquisa consistem em: ela-
tos afrodiaspóricos, cultura e religiosidade afro-brasileiras, teoria antropológica
e pós-colonialismo. É coordenador do Núcleo Negro Para Pesquisa e Extensão
borar um mapeamento da presença negra em Marí-
(NUPE/Marília). lia e registrar as ações desenvolvidas pelos grupos/
*Anderson da Silva Rodrigues é graduado e mestre em Ciências Sociais pela Fa- coletivos que abrangem a questão negra; promover
culdade de Filosofia e Ciências de Marília. Durante sua graduação, foi voluntário
no projeto PIBID de Ciências Sociais. Seus principais campos de estudo são: a troca entre comunidade universitária e comunidade
religião, juventude, contemporaneidade e educação. Atualmente participa das
atividades do Núcleo Negro da UNESP para Pesquisa e Extensão (NUPE), além
externa a partir da realização de entrevistas semies-
de ser docente na rede pública de São Paulo. truturadas e atividades coletivas com membros dos
*Fabiana da Silva Soares é Mestranda em Antropologia Social pelo PPGAS/USP grupos/coletivos mapeados; discutir questões rela-
sob orientação de José Guilherme Magnani, professora de Sociologia na rede
básica de ensino, além de integrante dos grupos Núcleo Negro para Pesquisa de cionadas à presença negra na cidade de Marília em
Extensão (NUPE/Marília) e Grupo de Estudos Enfoques Antropológicos (GEA),
ambos ligados a UNESP de Marília, onde realizou a graduação em Ciências So-
seus aspectos políticos e culturais; apontar os resul-
ciais. tados da pesquisa, visando a divulgação das formas
HISTÓRIA E CULTURA
sistematizam conhecimentos sobre as questões ét- e combatem o “perigo da história única”, que cria es-
nico-raciais, a importância da valorização da cultura tereótipos inferiorizantes, superficializa a existência
africana e afro-brasileira e os efeitos deletérios do de pessoas negras e comprometem o legado de tan-
racismo, de modo que tais conhecimentos não se tas outras histórias que nos constituíram enquanto
surgia via busca por criar espaços de discussão para ário Marília Notícias, em que um integrante do gru-
disseminar e despertar o questionamento acerca das po afirma que a comemoração da abolição seria uma
opressões vivenciadas pela população negra, tradu- farsa. Em outro momento, no mesmo diário, uma das
zindo-se em estratégias comunicacionais de denún- integrantes realiza denúncia de um caso de racismo
no contexto universitário, o Diáspora Preta também terrâneo – também participou do coletivo Diáspora
Preta e outra atividade relevante que realizaram foi
3. Os dados quantitativos secundários disponibilizados pelo estudo sobre “Ação
Afirmativa e População Negra na Educação Superior” produzidos pelo Instituto
o Baile Black, que, a princípio, foi uma ação pioneira
de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) demonstram que, em 2020, apenas do coletivo PretáPretô. Esse evento também tinha a
18% dos(as) estudantes entre 18 e 24 anos no ensino superior eram negros(as).
(SILVA, 2020).
2017. Um grupo de estudantes cotistas da UNESP de à medida que as redes sociais se tornaram a principal
Marília organizou a batalha de poesia “Pela liberdade ferramenta para circulação de conteúdo e as lives, o
de Rafael Braga” na praça do Jardim Cavalari, locali- recurso mais utilizado para a realização de eventos
zada próxima ao campus da universidade. Para me- durante o período de isolamento social.
ser de três minutos; a poesia tem que ser autoral e inédita naquele Slam; as
poesias são avaliadas imediatamente após a apresentação por cinco jurados; os
jurados são escolhidos de forma aleatória a partir do público que está assistindo;
4. O Slam Subterrâneo surgiu a partir da mobilização estudantil “Liberdade para as notas podem variar de zero a dez; a nota mais baixa e mais alta são anuladas,
Rafael Braga”, jovem negro catador de materiais recicláveis que foi preso e con- e as demais contabilizadas.
denado pela justiça, após ser detido com uma garrafa de Pinho Sol durante as
manifestações de 2013. As informações da mídia apontam que as acusações 6. Em geral, cada grupo de slam possui um grito de guerra fixo que antecede
da polícia civil contra Rafael foram feitas com base na alegação de que a garrafa as poesias faladas durante as batalhas. No caso do Slam Subterrâneo, o grito é:
alvejante teria sido confundida com um coquetel molotov pelos policiais. “poesia como arma/boca atira/pow/slam Subterrâneo”.
são destacar as ações de grupos que têm como cer- em um núcleo comum: a pauta antirracista, o que
ne de atuação aspectos da diversidade étnico-racial, promove uma conexão entre os grupos, mesmo com
sobretudo no que se refere às práticas que priorizam as ações distintas.
a afirmação de aspectos socioculturais de origens
Introdução
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 121
impulsionamento e de espetáculo, que não positivam samentos de quem está distante do que é decidido
em nada aqueles que já são lançados à vulnerabili- e discutido diariamente. É preciso envolvimento para
dade social. E fizeram e fazem isso por muitos anos, se ter comunicAÇÃO. Esse cuidado, de ser alguém
consolidando estruturas sociais. O chamado “crité- nosso para mostrar ao mundo quem somos e com a
rio de noticiabilidade jornalística”, que aponta o que nossa cara, é fundamental quando reafirmamos a im-
é importante ou não para ser divulgado, não é algo portância de uma narrativa antirracista que seja ação
neutro, mas pautado por uma série de requisitos, in- estratégica.
clusive o que o veículo e a editoria entendem como
“importantes”.
Romper com a
Este texto não pretende trazer uma conclusão so-
bre o assunto, mas tem a ideia de propor reflexões e
narrativa única
compartilhar experiências e, se possível, incômodos.
Para que tenhamos em mente que não estamos sozi- É preciso imagem para recuperar a identidade, tem
nhas na luta e que o espaço digital também é um es- que tornar-se visível, porque o rosto de um é o re-
paço nosso enquanto ativistas pelo futuro digno da flexo do outro, o corpo de um é o reflexo do outro e
população negra. Também para que isso provoque em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibi-
dúvidas para produzirmos conteúdos que possam, lidade está na raiz da perda da identidade. (Beatriz
de alguma forma, projetar possíveis respostas outras Nascimento - Ôrí1)
a partir da nossa existência, a partir do nosso chão e
a partir dos objetivos das nossas irmãs. Nesse caminho, quais imagens são utilizadas afe-
tam diretamente a recepção do material e como isso
Como já podem perceber, a linguagem a ser utilizada demonstrará os objetivos do grupo. Para seguirmos
nesse texto será, em sua grande maioria, no femini- com a conversa, apresento os grupos nos quais me
no, em coerência com os grupos que tentarei expor baseio para falar de comunicação.
aqui, que são grupos de mulheres negras de Goiás.
Esses grupos foram selecionados tanto por já atua- Coletiva Pretas de Angola
rem produzindo conteúdo nas redes sociais quanto
devido a sua historicidade. São as primeiras mulheres A primeira é a Coletiva Pretas de Angola2, formada
que fundam bases sólidas de movimentos de mulhe- em 2015, que reúne mulheres negras acadêmicas,
res negras no estado e que vêm articulando diversas jovens e adultas, de diferentes lugares da região me-
ações de expansão desses movimentos. Também tropolitana de Goiânia e Aparecida de Goiânia, que
são grupos nos quais circulo, participo da realização atuam nas bases dos movimentos sociais e de mu-
de atividades e acompanho as redes sociais. Destes, lheres negras, desenvolvendo projetos de defesa de
já integrei dois enquanto comunicadora e gestora das direitos, potencializando ações em rede para promo-
redes sociais. ver a emancipação política, social e econômica da
Nesse sentido, precisamos ter em mente algo em população negra. É nesse grupo onde estou, desde
comum: articular uma produção de comunicação ati- o final de 2021, como comunicadora envolvida em
vista nas redes sociais nesses grupos só ocorre de todos os projetos.
forma colaborativa, a ponto de requerer que a comu- A própria logo da coletiva já nos aponta os rumos e
nicadora não só faça os materiais e poste, mas seja propostas dessas mulheres. Pensada pela perspecti-
parte envolvida nos processos, além de todo mundo va da afrocentricidade em diáspora, a imagem é bem
concordar com o que é produzido. Apenas assim po-
HISTÓRIA E CULTURA
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 122
de e continuidade. Isso porque é preciso ter os pés não só dos Direitos Humanos, mas dos direitos bio-
firmes no chão que nos alimenta para que alcance- cósmicos, termo cunhado pelo professor Bas’ilele
mos grandes voos. Ancestralidade é futuro, como já Malomalo (2019), isto é, a defesa do todo em que
aponta a intelectual, quilombola e filósofa, Katiúscia não são possíveis direitos humanos sem os direitos
Ribeiro (2020). Ninguém chega aos grandes picos da natureza, da espiritualidade e da ancestralidade.
sem antes adentrar a terra e, muito menos, se tem O reforço a esses objetivos dialoga com as pautas
transformação sem referências, sem as raízes e o fir- do cotidiano que afetam diretamente as mulheres
mamento. negras em diáspora. Tudo isso transbordando em
projetos de atrevivência política e de urgência dia-
lógica que criam espaços de diálogos democráticos
para convocar diversos temas para o centro da re-
flexão junto à ocupação de espaços públicos e da
população periférica de diversas idades. Importante
destacar também que a Coletiva atua e é composta
pela pluralidade de ser mulher negra LBTs (Lésbicas,
Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Transgêneros),
de espiritualidade de matriz africana e com diferen-
tes idades.
gola e antecedem o processo de ativismo nas redes outros grupos, e são encontros de corpos-políticos
sociais enquanto produção de conteúdo forjada para que movimentam, materializam e fundamentam a am-
o posicionamento, amplificação de narrativa e divul- pliação do debate.
gação de ações. Isso sem perder de vista a defesa
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 123
Dessa forma, a primeira tecnologia em uma comuni- Nomear algo requer uma certa repetição ao longo
cAÇÃO é o corpo. A partir dele e de seus sentidos, do tempo e em contextos diferentes para se ligar um
podemos organizar o que queremos falar e como nome a uma imagem. Observe, por exemplo, qual
falar. Quando afirmamos que nossa comunicAÇÃO é imagem vem a sua mente quando ouve ou lê a pa-
uma tecnologia ancestral, estamos ressaltando que, lavra “médico”, “princesa”, “advogada” e “bandido”.
para chegar a todas as técnicas, saberes e fazeres Essas imagens não vêm à toa, tivemos um processo
os quais conhecemos na chamada atualidade, preci- de ensino cotidiano entre a palavra e o seu significa-
samos entender a sua construção que tem suas raí- do junto à aparição de uma imagem. E isso também
zes no continente africano e no coração das mulhe- é fator que demonstra a complexidade social que
res negras enquanto matrigestoras, matripotências naturaliza lugares e ainda hierarquiza o perfil de uma
– termo cunhado pela socióloga nigeriana Oyèrónkẹ pessoa, os traços de uma pessoa, a uma “profissão
Oyěwùmí (2016) – e sapientes nas engenhosidades de prestígio”, como ter “cara de médico” ou a uma
do fazer viver e curar. “pessoa perigosa”, como “ter cara de bandido”.
Não à toa que historicamente a invasão ao continente Isso tudo vai formando as aparentes normalidades,
africano começa com a repressão das mulheres afri- naturalidades, que se tornam enquanto tal pela co-
canas, segundo Vânia Bonfim (2014), pois eram elas municação de uma história única, como nos alerta a
e são elas – a partir da perspectiva africana em di- intelectual nigeriana Chimamanda Adichie (2009)3,
áspora e não exploratória/machista como o ocidente quando diz sobre o perigo da história única, de saber
prega – que organizavam o território e gestavam-po- sobre o mundo apenas por uma lente que é imposta
tencializavam a comunidade para o bem viver físico- como a verdade sobre as coisas.
-espiritual. Retomar a centralidade dessa imagem se
mostra importante ao percebermos a população ne- Em uma das ações presenciais da Coletiva Pretas de
gra brasileira – sem romantismo e entendendo o per- Angola tivemos uma experiência bem evidente sobre
curso de violência que ainda lança essas mulheres a o poder das imagens em nossa comunicAÇÃO. A prio-
todo tipo de vulnerabilidade – e encontrarmos quem ridade, dentro do plano de comunicação da Coletiva,
são as gestoras solos de lares, quem compõe as re- é sempre usar imagens de mulheres negras nos con-
des de mulheres no cuidado com as filhas e filhos de teúdos, independentemente de qual assunto seja –
outras mães, as grandes lideranças dos movimentos, característica presente também no Grupo de Mulhe-
e quem compõe a maioria da população brasileira: as res Negras Dandara no Cerrado e Grupo de Mulheres
mulheres negras. Negras Malunga. Esse posicionamento nos ajudou a
perceber que a história-imagem única e universal ain-
Para se contar uma história é preciso ter referências. da é atuante. Durante a roda de conversa “Quem tem
Em cada ato de produção da imaginação-comunicA- medo de mulheres na política”, realizada em um es-
ÇÃO produzimos e estimulamos imagens, (re)criamos paço institucional, a Assembleia Legislativa de Goiás,
memórias e tornamos o dito em algo que faz alguma em que foram convidadas diversas mulheres que es-
coisa no mundo e nas pessoas. O que quero dizer tavam se candidatando a algum cargo partidário em
é: A palavra tem poder. Talvez essa seja uma frase 2022, uma das convidadas, uma mulher branca, em
comum, do ditado popular, mas o seu sentido é pro- sua fala, comentou que quando recebeu o convite
fundamente explícito e efetivo em nossas vidas. A pensou que seria um evento apenas para mulheres
palavra é uma força vital na qual a diáspora negra se negras, porque no cartaz havia uma mulher negra.
agarrou para continuar existindo. Sem palavra esta-
ríamos sem vida, sem as palavras que contam/can-
HISTÓRIA E CULTURA
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 124
O incômodo com qual imagem foi usada é importan-
te e revela o percurso de ignorância na formação da
ideia daquilo que é colocado no cotidiano de forma
recorrente como sendo algo “natural”, mas é uma
construção, estimulada, especialmente, pelo consu-
mo midiático que nos educa ao que é “bonito” e ao
que é “feio”, ao que devemos “ser” e “não ser” e ao
que é “ser mulher” ou não. Aliás, quem tem medo da
imagem da mulher negra como a “universal” em um
Card de divulgação da atividade “Quem tem medo de chamado sobre mulheres na política? Qual espaço a
mulheres na política?”, da Coletiva Pretas de Angola. mulher negra pode ocupar quando o assunto é polí-
tica partidária?
Apesar de que, após essa fala, algumas mulheres re- Uma vez que as mulheres negras estão ausentes
plicaram dizendo que era uma forma de chamar aten- tanto na Assembleia Legislativa de Goiás quanto no
ção para que as mulheres negras também ocupem cenário político goiano, a ideia do evento era tocar
aquele espaço institucional, enquanto comunicadora também nessa ferida aberta do racismo e do sexismo
negra, aquela fala, que sinaliza um diagnóstico social, nos espaços de poder branco, elitista e de homens
me atingiu não só porque era eu a autora da arte do mais velhos, para que as mulheres, especialmente as
cartaz, mas também porque aquele mesmo questio- mulheres negras candidatas, tivessem a possibilida-
namento jamais seria feito a respeito de outros carta- de de dialogar com as demais e com as suas.
zes com mulheres brancas. Pois, sendo estas o rosto
de algum evento, as pessoas não se questionam se Romper com a narrativa única é construir ou desper-
é algo exclusivo para mulheres brancas. Foi naturali- tar outras memórias que positivem a população ne-
zado que mulheres brancas são a imagem “universal gra em um país e principalmente em um estado como
que representa” todas as outras. Goiás, que o tempo todo tenta silenciar e apagar as
trajetórias comunicATIVAS que se desviam das tradi-
Tal questionamento, por outro lado, é fundamental ções dos veículos midiáticos burgueses e disputam
para uma comunicAÇÃO que cause o incômodo e o lugares de existência e efetivação de direitos. O po-
espanto para quem ainda entende o mundo apenas der da comunicAÇÃO feita por grupos de mulheres
por uma narrativa única. O propósito aqui foi alcan- negras goianas é uma ação estratégica que, mesmo
çado e pautou que mulheres negras também estão e aparentando estar “apenas” divulgando uma ativida-
devem estar nos espaços institucionais políticos. As de ou uma data comemorativa, atua taticamente in-
imagens são palavras poderosas para desestabilizar comodando a estrutura das imagens, a estrutura ra-
lugares. cista que coloca quem pode ser e quem não pode,
ao desafiar, inclusive, o latifúndio dos algoritmos.
É preciso lembrar que mulheres negras são a maioria
da população brasileira – são o maior grupo demo-
gráfico do país: 28% dos brasileiros. Apenas esse
dado já nos indica que, dentro de uma sociedade
democrática, ter a imagem de uma mulher negra re-
presentando algum evento seria o mais próximo de
representar a maioria da população. Porém, com uma
HISTÓRIA E CULTURA
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 125
Grupo de Mulheres Negras Dandaras do Cerrado
O Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado4, Mais do que denunciar, a ação e a condução narrativa
fundado formalmente em 2002, que se nomeia como são de anunciar os saberes e fazeres, evidenciando
ONG (organização não governamental), também re- outras linguagens-performances nas redes sociais,
aliza essa ação nas redes sociais como forma de a coletividade dos corpos-políticos que fazem des-
expandir o ativismo e as narrativas sobre formação, sas mulheres – localizadas fora do eixo geopolítico
capacitação e divulgação de conhecimentos sobre brasileiro, fora das disputas midiáticas e de recursos
a população negra, as mulheres negras e seus fami- centralizadas no Rio de Janeiro-São Paulo-Brasília –
liares. Tendo como objetivos a geração de trabalho corpos em movimentos na fundamentação cotidiana
e renda, a defesa e garantia de direitos, o combate de uma Améfrica Ladina Cerradeira.
à violência contra as mulheres, além de produções
coletivas de artesanato e transformação do lixo em Comunicação
lucro, ainda realiza regularmente feijoadas para arre-
cadar recursos para a ONG.
cardiografada e
cerradeira como lugar
Aqui, nos sertões goianos, ser antirracista é uma luta de partida/chegada/
constante de criar liberdades e lembrar-se das mulhe- partida
res negras que abriram caminhos. Interessante res-
saltar que dar a cara de quem constrói o movimento Atuar em coletivo é atuar junto à sociobiodiversidade.
como parte dessa comunicAÇÃO é importante para Coletivo não são somente as pessoas envolvidas, é
o posicionamento no território digital e demarcação o que possibilita que esse coletivo esteja de pé, com
deste espaço para fertilizar o sertão digital, apesar saúde, com os pés firmes no chão para poder asse-
HISTÓRIA E CULTURA
dos entraves dos algoritmos que selecionam o que gurar a palavra, o dizer e o fazer. Isso envolve uma
será entregue a quem usa a rede social virtual. série de fatores que passam pelo reencontro com a
ancestralidade, quando reconhecemos que não sa-
bemos de tudo e que sempre podemos aprender
4. Conheça a rede social: https://www.instagram.com/dandaranocerrado/
umas com as outras, quando procuramos nos inspirar
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 126
nos trabalhos de comunicação realizados por outros é sapiente, sábio e ginga criando existências diante
coletivos, quando procuramos entender a ideia de dos projetos de morte.
uma irmã e tentamos traduzi-la dentro das produções
de conteúdo que sempre trazem a nossa cara. Isso tudo é muito evidente nos três grupos aqui em
reflexão e cada um se fundamenta conforme suas
Tudo isso é movido por uma pulsão de vida que demandas. Além disso, a prática do autocuidado,
ORIenta5 uma estratégia de (sobre)vivência que nas- o direito ao descanso, o respeito ao ritmo de cada
ceu primeiro no coração de nossas antepassadas. E, uma, a potencialização do conhecimento de cada
falando especialmente de Goiás, uma terra com mais integrante, o incentivo a ir atrás dos objetivos pes-
de 60% da população autodeclarada negra, estado soais, o ouvir as mais velhas e reverenciá-las nos es-
que abriga atualmente o maior território quilombola do paços de poder, o ato de reafirmar que é uma mu-
país, o Quilombo Kalunga, e diversos assentamentos lher do Cerrado ou Mulher-Cerrado, a cura coletiva
de Sem Terra, estamos pisando em um território de compartilhando saberes das plantas medicinais e a
pulsão de vida sertaneja. expansão das raízes profundas enquanto formação
de redes pelo território, são tecnologias ancestrais
Esses elementos percorrem o ato de aquilombar en- acionadas constantemente. Tudo isso parece sim-
quanto força que forja o território de vida e perma- ples, mas são detalhes cotidianos que fazem toda a
nência, se aliam ao nosso chão, no caso o Cerrado, diferença quando o assunto é avançar como grupo,
a Améfrica Ladina Cerradeira, onde se localizam as de andar junto para andar melhor.
mulheres-Cerrado, as mulheres-águas, como as Dan-
daras no Cerrado – inclusive o uso do “no” e não do Nesse sentido, sabendo que a paciência é histórica,
“do” Cerrado é uma forma de acionar, convocar, Dan- como afirma Marta Cezaria, – fundadora do Grupo de
dara dos Palmares como a liderança referência que mulheres negras Dandara no Cerrado e também do
também circula e está presente nos sertões goianos. Grupo de Mulheres Negras Malunga, liderança com
Mas não como “a mulher de Zumbi dos Palmares”, e incidência nacional e internacional –, entendemos
sim como a articuladora, a capoeirista, a curandeira e que nosso povo exerceu e exerce estratégias a lon-
a gestora militar do território. Dandara também está e go prazo para manter sua continuidade de saberes.
se encontra imortal no Cerrado ORIentando a comu- Obviamente, em uma organização social que nos diz
nicAÇÃO que apenas a plataforma midiática do corpo o tempo todo que “tempo é dinheiro” e que preci-
político pode traduzir. samos fazer as coisas com velocidade, dar tempo
ao tempo e aguardar o tempo certo de agir não é
E o que aprendemos com esse grande bioma? Sen- fácil, mas é um investimento que produz frutos só-
do o Cerrado o primeiro bioma a se formar no planeta, lidos a longo prazo. Isso nos diz que é preciso fin-
com mais de 60 milhões de anos de existência, esse car primeiro as raízes para ir alcançando os céus. A
Ser mais velho que chega primeiro, conhecido tam- continuidade é nossa herança e a comunicAÇÃO faz
bém como o berço das águas, está a todo tempo nos essa continuidade se tornar documento, não só vir-
ensinando e chamando atenção para a necessidade tual, mas também no seu formato de biotecas6, e ser
das raízes e do cuidado com o nosso interior, pois repassada. Apropriar-se disso é ocupar o lugar de di-
é lá que encontraremos a nós mesmas e as águas – reito de existir, de poder fazer com que a cardiografia
o sopro de vida para continuar de pé – que nutrem da comunicAÇÃO possa reverberar em memórias, em
possibilidades outras. Ler o Cerrado é ler o movimen- ações práticas de anúncio e, sobretudo, na popula-
to das mulheres negras cerradeiras, profundas, enrai- ção negra viva e com vida digna.
zadas e que frutificam mesmo quando a terra parece
HISTÓRIA E CULTURA
sem vida. O sertão cerradeiro tem cara de mulher, O Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado é
um dos precursores na projeção das mulheres ne-
5. Entendendo “Orí” a partir das mitopoéticas em diáspora que se movimentam
hoje nas matrizes africanas como sendo a “cabeça”, a força que sereniza a nossa
cabeça física e espiritual, em conexão com a espiritualidade e a ancestralidade.
6. Bibliotecas biológicas, humanas, da natureza, animais, onde se acomodam os
conhecimentos da comunidade.
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 127
gras goianas no âmbito nacional e internacional, que Segundo a produtora cultural, comunicadora e inte-
levantou voz para enegrecer o feminismo. Entre ou- grante do grupo, Ana Clara Gomes Costa (2022), que
tros projetos que o grupo atualmente incorpora, te- escreveu a tese Micropolíticas de Dandaras: a co-
mos o “Investiga Menina!”, que aproxima estudantes municação como tática de existências de mulheres
negras das ciências, promovendo ações em esco- negras, a comunicAÇÃO das Dandaras é orgânica,
las e na própria sede das Dandaras a respeito desse vai em direção ao cuidado pessoal com cada uma –
tema. O que reforça o fazer científico em diálogo com sempre tendo algum café, algum bolo nos encontros
a produção de conhecimentos pelo corpo histórico –, a criar formas de agregar as pessoas para que elas
da negritude, que sempre teve a sapiência da trans- se sintam acolhidas. Por ter como maioria mulheres
formação desde o bater do primeiro coração, que foi anciãs e que trabalham fora, o grupo ainda tem difi-
no continente africano. culdades em fortalecer e ampliar a ocupação digital.
Isso porque os sertões digitais têm armadilhas que
ainda necessitam ser decodificadas pelos movimen-
tos, no sentido de priorizar pessoas a isso e priorizar
a formação delas para caminharem nesse ciberespa-
ço. Independentemente da idade das integrantes, a
comunicação nas redes sociais é considerada impor-
tante e precisa se movimentar para se fazer conheci-
da por quem está em busca de outras narrativas.
as sabedorias nas trocas, cursos e oficinas sobre a Janeiro – São Paulo. Esse posicionamento reescreve
reutilização do que é chamado de lixo e da continui- mulheridades nas encruzilhadas do interior do país a
dade/sabedoria do uso das plantas medicinais em ponto de desnortear os “quadrados de humanidade”
contexto urbano. impostos pela branquitude. Essa é a mulher sertane-
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 128
ja cerradeira goiana que é herdeira, por exemplo, de latifúndio midiático que reorganiza qual narrativa é in-
Maria Grampinho, Chica Machado, Leodegária de Je- teressante ser publicada e como será narrada. Daí a
sus, Erondina Ferreira, Maria Dalva Mendonça, Maria urgência de ocupar também os espaços de amplifi-
José Alves Dias e Procópia dos Santos Rosa. Assim, cação narrativa, como as redes sociais, para que se
o Cerrado é lugar de partida/chegada/partida não só possa ter o direito de narrar.
para narrar, ler e se movimentar no mundo, mas de
retorno e enraizamento, onde não existe o fim, e sim Grupo de Mulheres Negras Malunga
a continuidade.
Contra o latifúndio da comunicação, a formação e
Rebeldia e insurgência são palavras que atuam como instrumentalização da comunicAÇÃO antirracista e
parte da trajetória dessas mulheres negras do inte- cerradeira é um fazer contra a invasão dos nossos
rior do país, como forma de construção de defesa corpos, de nossas narrativas e criação de memórias
de suas vidas em um lugar onde, até os dias atuais, na animação de futuros que foram desencantados
operam a branquitude, a concentração de poder pela estrutura racista. A gente narra para poder existir
econômico e a prática da destruição dos territórios como somos. O Grupo de mulheres negras Malunga8
pelo agronegócio7. Assim como muitos apontam que também vem criando espaços nesse sentido de fa-
zer saúde mediante a troca coletiva. É formado ma-
as redes sociais são “terra de ninguém, terra sem lei” joritariamente por mulheres mais anciãs e isso está
– sabemos que tem dono sim e ele não é invisível –, em atenção nas ações do grupo, como tentar inserir
algo parecido ocorre no interior do país, onde o po- essas mulheres na comunicação digital, através não
der se efetiva melhor também na incorporação dos só de oficinas técnicas, mas também da produção de
veículos midiáticos, isto é, consolidando o chamado conteúdo.
Reprodução: /grupo.malunga
HISTÓRIA E CULTURA
7. Que não é apenas um modo de negócio, e sim um modo de vida, uma forma 8. Conheça a rede social: https://www.instagram.com/grupo.malunga/
de ressignificar a vida e a terra a favor da violência capitalista que se espelha
diretamente na qualidade de vida das mulheres negras e indígenas do campo.
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 129
interpreta o mundo a partir e com mulheres negras
que constroem, há anos, por estratégias educativas
não formais, a consolidação do que hoje chamamos
de redes virtuais, mas, principalmente, de encontros
de tecnologias herdadas pela ancestralidade.
Logo do Grupo de Mulheres negras Malunga. A nossa comunicAÇÃO é encantamento, ladainhas ar-
ticuladas nos segredos das imagens que tiram nos-
Sendo um dos grupos precursores do movimento sa imaginação do anonimato, rezas brabas na cons-
de mulheres negras em Goiás, fundado em torno de trução do que queremos ser e do que precisamos
1999, com uma história que atravessa o Grupo de ser: gente que ocupa e transforma. Inspirada no que
Mulheres Negras Dandara no Cerrado, é atualmen- diz a grandiosa escritora Conceição Evaristo (2020),
te sede regional do Centro-Oeste na Articulação de a nossa comunicAÇÃO não é para adormecer os da
Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e atua no âmbito casa grande, e sim para incomodá-los em seus sonos
nacional e internacional. E tem como objetivo, entre injustos. A nossa comunicAÇÃO é para estilhaçar as
outros, promover atividades relacionadas à estética máscaras do silêncio. Onde for espaço democrático
afro, vestuário, maquiagem, culinária, política, em es- ali estaremos para reafirmar o nosso corpo-histórico
pecial ao cuidado com a saúde da população negra e em primeira pessoa e para parir narrativas-imagens
suas especificidades. Esse cuidado engloba a saúde há tanto tempo gestadas e entaladas na garganta.
mental e o quanto o racismo afeta a nossa conexão
com a espiritualidade, questão que é reforçada em Inquietações finais
encontros que buscam sintonizar o nosso corpo à
ancestralidade mediante a sabedoria com as ervas,
Como a magia de uma comida feita pelas mãos das
a meditação e rodas de cuidado coletivo ancestral.
mulheres negras, com seu poder de transformar a
A travessia forçada pelo Atlântico fez com que nossa
morte em vida, o que era cru em algo saboroso, a
bagagem fosse o próprio corpo e nele vieram escri-
comunicAÇÃO, a partir do nosso lugar de existência,
tas, incorporadas e traduzidas as táticas de sobre(-
nos sertões goianos, no Cerrado, também se articu-
vivência) que hoje nos colocam de pé. A comunicA-
la nessa sabedoria, tornando a terra árida em terra
ÇÃO realizada pelos grupos de mulheres negras, de
de abundância do Ser, em aquilombamentos sinto-
diversas faixas etárias, dilacera a máscara do silêncio
nizados ao Cerrado vivo e seus povos vivendo dig-
e do universal para construir outras memórias, espe-
namente, seja no campo ou na cidade. Neste texto,
cialmente, na produção de conteúdo que parte da
não falamos a partir de um veículo midiático desti-
ação no mundo material e vai para as redes sociais
nado a trabalhar exclusivamente com comunicação,
através de uma escritura midiativista que tem a cara
mas trouxemos um panorama sobre a experiência da
e a diversidade das mulheres negras e do Cerrado. É
comunicAÇÃO junto à ampliação da luta e como força
uma comunicAÇÃO orgânica que espelha o cuidado
matriz das narrativas do futuro ancestral.
com o corpo em espaços diferentes e de diferentes
maneiras, a depender da demanda de se fazer ser
Ações que só são possíveis quando a comunicAÇÃO
ouvida.
tem envolvimento com o que é feito em um grupo e
procura contar a história não contada, de forma que
Com isso, saberes-fazeres de autocuidado coletivo,
tudo o que é feito nada mais é que reforçar, com for-
fortalecimento positivo dos nossos cabelos e inci-
matos plurais, ligando mundo offline e online, que
HISTÓRIA E CULTURA
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 130
para depois isso se espelhar nos sertões digitais, nas de. No entanto, é preciso estarmos firmes e de pé. A
redes sociais, como um conteúdo-documento que segurança das lideranças e o cuidado com o próprio
tem responsabilidade e compromisso de potenciali- corpo são fundamentais na comunicAÇÃO estratégi-
zar as pessoas negras enquanto pessoas que exis- ca-política de nossas organizações.
tem.
E, ao falar de tudo isso, reforço que, inspirada no
O trabalho coletivo não é fácil, é cheio de conflitos e que diz a intelectual e atual deputada estadual, Célia
eles são importantes para o avanço de todo o grupo Xakriabá, antes da escrita, da literatura, da divulga-
e, principalmente, de qual comunicAÇÃO precisamos ção em redes sociais, existe a lutalitura, a luta é uma
e de qual comunicação é estratégica, politicamente, forma de nos inscrevermos no mundo que antecede
dentro dos nossos objetivos enquanto grupo e para qualquer outra representação nossa em documen-
a segurança dele. Nesse sentido, não pode haver tos, pois o primeiro livro que lemos são nossas mais
medo e nem ausência de confiança, a comunicadora velhas e a primeira comunicAÇÃO que nos chega são
que atua com e junto aos movimentos de mulheres as palavras que ecoam junto com o coração, do co-
negras necessita que o grupo deposite nela a con- ração, do coração de nossas ancestrais. É esse eco-
fiança de que a narrativa será bem posta, mas tam- ar em continuidade que faz a comunicAÇÃO cerradei-
bém o grupo precisa segurar na mão dessa comu- ra e cardiografada existir para além do virtual e para
nicadora para que, mesmo onde ela não esteja de além de qualquer tempo-espaço.
corpo presente, possa traduzir o que aconteceu em
determinada atividade.
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 131
Referências
Pelos sertões goianos: Comunicação antirracista e cerradeira como tecnologia ancestral 132
Sangue entre as pernas:
experiência de cinema feminista,
periférico e pedagógico
Introdução
do Rio de Janeiro.
corre, rola, se estica
Admirado com sua alta capacidade de se mover Foto: Vatuzi Leontina.
No quarto, na quarta
reforma agrária. Já Mayá nos traz o caminhar como preender as potências pedagógicas de todos os pro-
verbo que rege sua obra e sua prática pedagógica, cessos criativos e de intervenção social.
itinerante, nas guerrilhas pela retomada do território
ancestral.
Introdução
Este capítulo apresenta o projeto de extensão inti- bros da sociedade civil. Junto com um grupo de fa-
tulado Diálogos Negros. Criado em 2018, o projeto cilitadores, as participantes foram preparadas para
funcionou como uma ferramenta de comunicação uma prática antirracista com foco especial na saúde
antirracista que visa romper com a narrativa de saú- da população negra. O município de Porto Alegre se
de universal segundo a qual os corpos são destitu- tornou referência devido à criação desse espaço for-
ídos de raça e marcadores sociais. A fundação dos mativo voltado para os profissionais de saúde, que
Diálogos Negros também serviu para que duas estu- também vai ao encontro de um dos objetivos da Po-
dantes negras do curso de enfermagem atingissem lítica Nacional, o combate ao racismo institucional.
protagonismo e colocassem luz ao enfrentamento do O curso de Promotoras de Saúde da População Ne-
racismo institucional dentro do curso, pois era pauta gra tem como objetivo que os cursistas sejam agen-
inexistente dentro daquele espaço. tes multiplicadores da Política Integral de Saúde da
População Negra e de práticas não discriminatórias
Uma dessas alunas teve a oportunidade de fazer o dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse es-
curso de “Promotores da Saúde da População Ne- paço potente serviu de disparador para a idealização
gra”. Oferecido pela Área Técnica de Saúde da Po- dos Diálogos Negros. Após a finalização do curso,
pulação Negra do município de Porto Alegre, o curso a aluna retorna à universidade com questionamen-
completou dez anos de existência em 2022, forman- tos que foram provocados no curso e junto com sua
do mais de 400 pessoas, entre elas profissionais de colega conseguem criar o projeto de extensão. Ao
saúde, gestores, profissionais da educação e mem- apresentar o projeto, argumentamos que é necessá-
rio preservar espaços de comunicação antirracistas
e se justificam sua manutenção e permanência.
*Luiza Figueiredo Farias é enfermeira formada pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), residente pelo programa de Residência Multiprofissional
de Saúde Coletiva da mesma instituição, atualmente componho, como campo
de prática, a Área Técnica de Saúde da População Negra do Município de Porto
As práticas de comunicação antirracista dentro de
Alegre. Na minha família nuclear fui a primeira a ingressar na universidade, logo espaços formativos são essenciais para constru-
após isso, minha irmã passou no vestibular e hoje cursa nutrição. Foi fundamen-
tal o papel dos meus pais no processo de entrada na universidade, sempre ti- ção de um olhar equânime sobre a saúde e nasce
vemos muito estímulo/apoio para estudar. A frase do meu pai é: “o estudo é a
chave para o teu futuro”, e essa frase de alguma forma orientou minha caminhada da necessidade de romper com o discurso hege-
acadêmica. Desde a graduação encontrei a barreira do racismo e dentro do curso
sempre contei com o afeto e amizade das minhas colegas negras. Criamos nossa
mônico ainda existente no meio acadêmico. Desde
rede de proteção e isso nos fortaleceu para seguir na caminhada até a formatura. a Lei 10639/2003, é obrigatório o ensino de história
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
*Lisiane Vieira dos Santos é enfermeira, mãe, especialista em saúde pública e e cultura afro-brasileiras dentro das instituições de
saúde mental, mestranda em Enfermagem (UFRGS), promotora em saúde da
Pop. Negra. Enquanto ativista integra: ACMUN, Comissão Intersetorial de Saúde ensino, como uma das formas de enfrentamento ao
Mental (CNS), Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, Rede Mulheres Ne-
gras do Paraná e Conselho do Povo Negro de POA; porém inicia o ativismo na
apagamento histórico produzido pelo racismo e a ne-
ONG Maria Mulher em 2005, conhecendo e atuando também na ACMUN e Rede gação das contribuições do negro na construção da
Mulheres Negras do Paraná. No campo da pesquisa é coordenadora adjunta do
projeto de extensão NEPARC (Psicologia na UFRGS), integra o projeto Diálogos sociedade brasileira (PEREIRA; DA SILVA, 2012).
Negros (Enfermagem UFRGS) e Grupo de Estudo e Pesquisa em Enfermagem
Psiquiátrica e Saúde Mental (GEPESM) UFRGS. É terapeuta holística e mentora
em liderança e RH. Atua na assistência e gestão da atenção básica desde 2009.
Esta sequência de encontros foi pensada no intuito de trazer para o espaço acadêmico a diversidade
a partir da interseccionalidade, abordando os temas da inserção do negro no trabalho, a formação em
enfermagem sob o olhar de alunos negros, o diálogo com a população LGBTQIAP+ com recorte racial e,
não menos importante, no campo da cultura, ações antirracistas a partir da arte e o resgate e importân-
cia da abordagem ao tema das religiões de matriz africana sob a ótica gaúcha.
Fonte: @dialogosnegros
como convidados músicos gaúchos e estudiosos da não tivessem sido identificados, pois eram falsos, o
cultura negra gaúcha. Como o link das atividades era registro se fez necessário.
amplamente divulgado, e o intuito era abranger não
somente a comunidade acadêmica, as pessoas com Todas as atividades realizadas geram um relatório
interesse na temática acabavam ingressando. Cabe que fica registrado dentro do banco de dados da uni-
também salientar que os encontros virtuais não eram versidade, fato que contribui para que todas essas
A notável presença em grande número de pessoas Durante o debate, foi possível apresentar os dados
negras institucionalizadas no hospital de Barbacena, da pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde e pela
tema central do filme, provoca nos alunos e profes- Universidade de Brasília, que foi publicada em 2018,
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
sores a necessidade também de olhar para as reper- e que demonstrou que o risco de suicídio de jovens
cussões na saúde mental de pessoas negras e de negros do sexo masculino entre 10 e 29 anos é 45%
que forma o estigma imposto pelo sistema hegemô- maior do que entre jovens brancos da mesma faixa
nico criado pela branquitude impacta na vida dessas etária. Indicador que também não pode mais ser ig-
pessoas. norado no campo de estudo e atuação dos profissio-
nais de saúde e dos docentes que têm por missão
Introdução
No ano de 2003, foi sancionada a Lei 10.639/03, que pel fundamental na formação dos sujeitos. Tais pro-
alterou a Lei 9394/961 ao estabelecer as diretrizes e duções ganham destaque no cotidiano escolar devi-
bases da educação nacional e incluir no currículo a do à exposição dos alunos a esse tipo de produção,
obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro- um processo de midiatização que, segundo Hjarvard
-Brasileira nos estabelecimentos de ensino em ter- (2014), envolve a institucionalização de novos pa-
ritório brasileiro, resgatando a participação do povo drões de interação e relações sociais entre os atores,
negro na história do Brasil. Para a aplicação da Lei incluindo a institucionalização de novos padrões de
10.639/03, algumas ações foram realizadas, entre comunicação mediada. Neste cenário, as mídias são
elas o Projeto A Cor da Cultura. Iniciado no ano de potentes “ferramentas sociais”, pois podem atuar
2004, esse projeto deu origem aos recursos audio- enquanto recurso da representação de informação,
visuais e aos materiais de apoio ao trabalho docente ação comunicativa e construção de relacionamen-
que integram o Kit A Cor da Cultura. Sendo a edu- tos, tornando-se um valioso recurso para a socieda-
cação a temática central, o projeto busca modificar de como um todo (HJARVARD, 2014, p. 26). Sendo
a realidade educacional no país e as desigualdades assim, as mídias estruturam percepções de mundo
significativas através dos seus recursos audiovisuais dos sujeitos que com elas interagem. No caso dos
como um meio de comunicar outras histórias no coti- recursos audiovisuais do Projeto A Cor da Cultura,
diano escolar. o objeto empírico de nosso estudo, os sujeitos são
afetados pelas imagens ali representadas.
A utilização das TICs (tecnologias da informação e co-
municação) no campo da educação torna a comuni- As reflexões que eu, uma professora negra, apresen-
cação potente neste espaço onde exerce seu poder to, fazem parte de um trabalho mais amplo, que de-
cultural ou simbólico. Como mediadoras no processo senvolvi durante o curso de Mestrado no Programa
educacional, tornam-se um mecanismo valioso de
poder nas relações que se estabelecem no espaço
escolar. As novas tecnologias de comunicação (TICs),
*Luciana Costa da Silva é Mestre em Mídia e Cotidiano pelo Programa de Pós-
sobretudo a televisão e o computador, movimentaram Diálogos Negros: Enegrecendo a Universidade
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
utilização das mídias digitais. O uso acontece a par- dem que esses recursos precisam fazer parte do tra-
tir dos recursos audiovisuais disponíveis no espaço balho da escola.
escolar de forma física, os que se encontram na es-
cola e os que são acessados através da internet. A Destaco a seguir algumas considerações das en-
escola conta com um acervo audiovisual direciona- trevistadas sobre os programas do Projeto A Cor da
do ao segmento infantil, com aproximadamente 200 Cultura. Professora 4 relatou trabalhos com alguns
produções audiovisuais (desenhos infantis e filmes recursos do projeto e os desdobramentos a partir
combate ao que Kilomba (2019) identifica como ra- mulheres que não aceitaram a vida que é imposta às
cismo cotidiano, percebido, segundo a autora, a par- mulheres negras. Chiquinha Gonzaga foi rejeitada por
tir de ações cotidianas que, naturalizadas, refletem o ter escolhido viver seu sonho e lutar a favor das li-
racismo. berdades, não se adequando à imagem de uma mu-
lher que exerce um papel determinado pela socieda-
de. Ela contrariou as imagens de controle (COLLINS,
Eduarda Nunes*
Introdução
Poucas vezes antes na história do Brasil, a relação Esse novo cenário, em que organizações e projetos
entre emissor e receptor de informações esteve tão estruturados e realizados fora do escopo organiza-
correlacionada e embaralhada. No entanto, é preci- cional das empresas tradicionais de jornalismo gal-
so deixar nítido que nunca houve uma lateralidade gam, dia após dia, a própria relevância, ao mesmo
nessa relação – ou não deveria haver. Quem recebe tempo que tem um ar de renovação, ainda mantém
informação também informa, faz história, faz con- algumas coisas no mesmo lugar onde estão. A indis-
teúdo e escreve o mundo. De qualquer lugar onde pensabilidade da publicidade para a publicação dos
esteja. Falar sobre isso hoje é até meio óbvio. Em conteúdos e a conquista de grandes números de al-
2023, nós já ultrapassamos muitas barreiras da mo- cance é uma delas.
nopolização da informação. As redes sociais foram o
pé-de-cabra utilizado para que os chamados espec- No meio desse zumzumzum, a população negra, indí-
tadores pudessem ter mais visibilidade e relevância gena e periférica segue sendo uma grande questão.
para reclamar e reivindicar o que querem consumir Mesmo sendo fatores essenciais para a interpreta-
nas mídias. E dizer também como preferem receber ção da realidade atual – bem como o passado e o fu-
as informações. turo –, ainda existem muitas dúvidas, deslizes, erros
e acertos nas mídias sociais. Sejam elas tradicionais
A ciência da comunicação está constantemente pro- ou não. O mote “Representatividade Importa” transita
vando sua importância. Se antes do Orkut, Fotolog, entre a reivindicação popular, o esforço em garantir
Flogão, e Myspace, a exemplo de algumas redes so- que esses espectadores sintam-se satisfeitos na vi-
ciais que já fizeram parte da vida dos brasileiros com sibilidade de suas faltas e também no oportunismo
força, as grandes mídias telecomunicacionais, os de quem não pretende colaborar, de fato, na resolu-
jornais e as revistas tinham uma verdadeira hegemo- ção desse problema, mas “surfa no hype”.
nia em eleger os assuntos que seriam comentados
em todo lugar por um tempo considerável, hoje as Hoje temos protagonistas de novela negras e negros
redes sociais e outras plataformas online disputam – que passam mais tempo em tela sofrendo e se sa-
com mais força essa relevância. Particularmente, crificando; inserção de participantes negros em rea-
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
acredito que haja certa complementaridade entre lities shows – que são expostos a situações racistas
esses atores. As mídias tradicionais carregam uma constantemente, têm seus gatilhos ativados e televi-
credibilidade construída por décadas, enquanto as sionados e, assim, ativam os dos espectadores ne-
redes otimizam a circulação de informações mais gros; apresentadores de programas negros que são
aprofundadas e possibilitam a visibilidade de uma colocados em segundo plano ou seguindo os scripts
maior diversidade de fontes e pautas. e nada muito além disso. Parece a exemplificação
A tv é símbolo de modernidade, que depois se trans- Nesse cenário de alta relevância de marcas e famílias
forma em instrumento de facilitação do controle so- influentes e políticas na Comunicação Social, tem um
cial nos anos da Ditadura Civil-Militar e, desde o pe- pessoal que está sempre vigilante e atuante nessa
ríodo da redemocratização do país, tem estado mais movimentação. É o caso do Movimento Pelo Direito
ligado ao desenvolvimento tecnológico e alinhamen- Humano à Comunicação.
to com as tendências internacionais de desenvolvi-
mento das telecomunicações e produção de conte-
natureza política, ideológica e artística. jeto, bem como a noção do que estava sendo propos-
§ 3º Compete à lei federal: to. Mesmo com o esforço em expandir ao máximo o
I - regular as diversões e espetáculos públicos, alcance da campanha em todo o território nacional, a
cabendo ao Poder Público informar sobre a partir de inúmeras estratégias, a campanha não teve
natureza deles, as faixas etárias a que não se êxito. Mas isso não significou que a briga pela demo-
recomendem, locais e horários em que sua cratização dos veículos midiáticos tenha cessado.
antes de ter conhecimento das informações mais que a contemporaneidade traz nessas novas formas
técnicas que estavam sendo apresentadas. de comunicar profissionalmente é o debate ideológi-
co que existe por trás de cada lifestyle que influen-
cia milhares de pessoas. O racismo em suas diversas
perspectivas, a aporofobia (aversão à pobreza), a xe-
Documentos elaborados pelo Coletivo Brasileiro de Em 2019, com o auxílio da jornalista negra pernam-
Comunicação Social – Intervozes também fornecem bucana e doutoranda pelo Programa de Pós-Gradu-
subsídios para dar seguimento a essa discussão, ten- ação em Comunicação da Universidade Federal de
do como foco os veículos de comunicação de mas- Pernambuco (UFPE), Mariana Reis, pude facilitar uma
sa, que até meados da década de 2010 influenciavam Oficina De Leitura Crítica Da Mídia enquanto ativida-
com muito mais força a opinião pública.
há décadas sofre com a estigmatização da violência, brechas e oportunidades que as pessoas periféricas
os participantes se empolgaram em falar sobre como podem aproveitar para fazer a diferença na produção
a tv e algumas páginas do Instagram corroboram com e consumo das informações para pessoas que nem
essa imagem negativa do Ibura e do Jordão. Expon- elas. Também foi possível realizar trocas constantes
do, assim, qual o tipo de comunicação de que sen- sobre erros, acertos e projeções futuras de uma co-
municação independente e tradicional.
ciais e outros meios de comunicação, mas eles só cas. Esse é um mercado que circula uma quantidade
ganhariam em profundidade no debate com a inclu- de recursos muito grandes, o que acaba por facilitar
são dessa metodologia de discussão sobre como que as pessoas sigam tendo não só suas opiniões e
tem sido exercido o trabalho da Comunicação Social. percepções de mundo direcionadas e guiadas, mas
Em 2020, com a pandemia do coronavírus e o isola- também seus padrões de consumo. E nesse pon-
mento social, a relevância das redes sociais e da in- to é importante pontuar que é preciso ter criticida-
Referências
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
Introdução
O Brasil foi o último país da América Latina a abolir a suma importância para identificação e engajamento
escravatura, em 1888. Esta ação não foi seguida de de pessoas negras nos diferentes âmbitos da so-
políticas públicas de inclusão do contingente de pes- ciedade. Para que seja possível essa realidade, uma
soas negras na sociedade. Muito pelo contrário, não comunicação antirracista tem que primar pela efici-
receberam condições para morar, estudar ou traba- ência e efetividade continuada. A comunicação antir-
lhar de forma digna, passando a viver à margem das racista compreende um processo no qual as pessoas
cidades onde tais desigualdades sociais foram per- têm o propósito de entrar em contato com outras,
petuadas desde então. Podemos citar Andrade, Ni- através de fatos, ideias, comportamentos ou pen-
colaides e Mota (2021), que tratam sobre a temática, samentos, sem dar continuidade a estereótipos ou
discorrendo sobre as inconsistências entre o ideal e pré-conceções de grupos que estão à margem sob
real vivenciadas pela população negra, pós-liberta- algum aspecto, destacando, nesse contexto, negros
ção, de uma forma esclarecedora e concisa, já que e negras. Corroborando essa perspectiva, Machado
a abordagem menciona a pós-covid, que evidencia (2022) nos diz que:
o cenário de desigualdade social. Logo, a busca por
representatividade negra em diferentes profissões,
nas universidades e em cargos de alto nível, é de
*Andréa de Carvalho Pereira é coordenadora do Neabi Oliveira Silveira, Biblio- *Elimara Gonçalves é graduada Tecnóloga em Gestão Pública; Servidora Pública
tecária, Especialista em Rio Grande do Sul: Sociedade, Política e Cultura pela na Unipampa; Membro Fundadora do Neabi Oliveira Silveira; Coordenadora Re-
FURG; Especialista em Gestão em Arquivos pela UFSM; Mestra em Educação pela gional do Consórcio Nacional de NEABIS.
UNIPAMPA.
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
Observando esse cenário, nós entendemos, enquan- Vivemos em um contexto social, financeiro e político
to grupo, que sem um combate efetivo, através de que, apesar de todos os anos de luta, não reflete as
ações e posturas que remetam à comunicação antir- necessidades de uma sociedade diversa, racialmen-
racista, não será possível erradicar práticas que enfa- te falando. De acordo com Silva (2021), vivenciamos
tizam a discrepância social existente. várias espécies de racismo, e é nítida quem é a par-
cela dos cidadãos que são afetados por esse siste-
Para tanto, a empatia é uma ferramenta que auxilia ma. Djamila (2017) também traz esse contexto neste
também em uma nova construção intelectual, po- aspecto no seu livro O que é lugar de fala?, já que o
dendo deixar um registro histórico para uma socieda- cotidiano da população negra está voltado para vá-
de atual e também futura, visto que tivemos nossas rias situações que a discriminam e a impedem, desde
epistemologias negras apagadas, ou, podemos dizer a mais tenra idade, de alcançar posições de desta-
poeticamente, não contadas. Para Veiga (2019), po- que em qualquer nível social, escolar, esportiva ou
demos verificar essas questões através da necessi- profissional, com algumas exceções, direcionadas
dade de reavaliar questões relacionadas, já que: principalmente ao esporte (geralmente futebol).
do racismo.
Quando nos dispusemos a dar liberdade aos parti- Cabe ressaltar que as escolas não foram visitadas
cipantes para que eles pudessem expor suas vivên- apenas uma vez, já que algumas têm todo o ciclo da
cias, buscou-se conferir um “lugar de fala” ao interlo- educação infantil, ensino fundamental e médio, e fo-
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
cutor, o que para Ribeiro (2017) remete a uma ênfase ram realizadas na modalidade presencial. O retorno
ao lugar social ocupado pelos sujeitos numa matriz às escolas se dá para que seja possível dar conti-
de dominação e opressão, dentro das relações de nuidade à proposta, pois, ao contrário, seriam ações
poder, isto é, às condições sociais (ou locus social) isoladas. Outra justificativa para o retorno é para que
que autorizam ou negam o acesso de determinados possamos, através de novas propostas de debates,
grupos a lugares de cidadania. averiguar de forma presencial, após as avaliações
dos acessos. O que as críticas que vão por são tratadas no dia a dia como sendo significativas,
essa via aparentemente não reconhecem é muitas vezes mascaradas em “tom de brincadeira”,
o fato de que há uma política (e uma polícia) mesmo que saibamos o quanto a “cor da pele” aca-
da autorização discursiva que antecede a ba influenciando uma série de decisões e situações
quebra promovida pelos ativismos do lugar de aceitação e sucesso acadêmico, social e profis-
de fala. Quero dizer: não são os ativismos sional.
Fórum: Trajetórias
Profissionais Negras
em Foco
Pensando nisto, o Neabi Oliveira Silveira promoveu, Há uma carência de abordagem dessas temáticas nos
no dia 23 de novembro de 2023, o 1º Fórum: Trajetó- ambientes acadêmicos de forma mais efetiva. Assim,
rias Profissionais Negras em Foco. O evento apresen- intensificamos nossas propostas durante o mês de
tou a comunidade acadêmica e comunidade externa, novembro, apesar de termos trabalhado durante todo
formada por escolas públicas de ensino médio, assim o ano de 2023, não só no âmbito da universidade
como demais setores da sociedade, profissionais ne- como também nas escolas do município de Bagé.
gros que têm destaque em suas atividades na cidade
de Bagé/RS (Figura 06). Cabe ressaltar que nenhuma ação é efetiva de forma
isolada e sem que o coletivo consiga ter efetiva par-
Em sua primeira edição, cinco profissionais com dife- ticipação, sendo assim, essa movimentação fortale-
rentes formações (Direito, Engenharia, Música, Psico- ceu o trabalho do grupo e nos trouxe resultados mui-
logia e Economia) realizaram explanações sobre sua to positivos no que tange ao reconhecimento em um
trajetória acadêmica e/ou profissional, bem como sua nível não só local, como regional e, por que não dizer,
luta contra o preconceito encontrado ao longo des- nacional, considerando que foi transmitido através
te percurso. Por meio dos depoimentos, foi possível do Canal do Youtube do Campus Bagé. Quanto maior
observar pela interação dos participantes o impacto o alcance de uma comunicação antirracista, maior o
de se perceberem como inseridos em um contexto impacto que causa no ambiente em que se propaga,
social que nem sempre aponta possibilidades reais gerando transformações significativas e necessárias.
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
Introdução
(…) morava uma senhora nesta casa chamada Somos professores da educação básica, formado-
Maria. Estava um dia sentada nesta escada res de professores e educadores sociais com atua-
chupando o caroço da manga. Acabou de ção em redes municipais de ensino e comunicação
chupar, abriu um buraquinho aqui e colocou comunitária de favela. Estamos localizados em ter-
o caroço da manga e disse para minha mãe: ritórios que convergem em sua origem para o aqui-
vocês ainda vão chupar o caroço da manga, lombamento de homens e mulheres que resistiram/
eu não. Ela morreu antes, a minha mãe ainda resistem historicamente com força criativa contra do-
chupou muita manga desse pé. O tronco da minação e todo tipo de exploração material e simbó-
mangueira, pertence à tranca rua das almas. lica. A título de informação, situamos nossos lugares
As folhas da mangueira, pertencem à Oxossi, de origem brevemente.
o fruto da mangueira – porque ela é Espada –
pertence a Ogum e as flores são das crianças.
Tia Dorinha1
da educação escolar antirracista e movimentos so- *Edmilson dos Santos Ferreira é pós-doutorando em História Comparada pelo
PPGHC-UFRJ, Doutor em Educação pelo PPGE-UFRJ. Mestre em Educação pela
ciais que têm a comunicação comunitária em perife- Universidade Católica de Petrópolis, Licenciado em Pedagogia pela UERJ e em
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
*Léo Lima é pai de Malu, Ariel e Zuri. Casado com Carolina Meirelles. Fotógrafo
1. Narrativa que abre o filme Favela que me viu crescer, produzido pelo Coletivo Ca- desde 2009, formado pela escola de fotógrafos populares do Imagens do Povo
funé na Laje (2014-2015). O filme foi exibido na escola Municipal Profª Ophélia Ribeiro no Observatório de Favelas, Maré-RJ. É estudante de pedagogia, co-autor da
Martins. Link para acesso: https://www.youtube.com/watch?v=JiT3ovJgbYM pesquisa do documentário Favela que me viu crescer (2014) e co-criador da Ca-
funé na Laje (2013).
acordo com Arroyo (2012), ao passo que novas pe- 2011. Muito competente, atuava no Bela Maré como produtora. Certa vez fomos
ao Complexo do Alemão entregar fotos que fiz de moradores e as imprimi para
dagogias são criadas, novos sujeitos pedagógicos devolvê-las, bebemos alguns litrões e nos fotografamos. Papo vai, papo vem,
surgiu a paixão que virou amor e gerou nossa filha Malu. Paralelamente a isso, cri-
também emergem com suas experiências coletivas, ticávamos muito as formas de fazer dos projetos das favelas voltados às crianças
e adolescentes nos quais não previam que eles fossem as cabeças pensantes
das ações, como também incomodava o fato de não haver uma produtora local
2. Narrativa retirada do Relatório Técnico do Programa de fomento – retomada do na favela do Jacarezinho. Tínhamos uma câmera e uma ideia na cabeça, o amor
audiovisual carioca 2021. a nosso favor e um edital a concorrer. Aline é o coração desse projeto. Até hoje
3. Dado retirado do Relatório Técnico do Programa de fomento – retomada do batemos cabeça para tentar organizar as ideias, colocar no papel e soltar no
audiovisual carioca 2021. mundo. Aline não parava nas vírgulas dos textos da vida. Ela corria. Sorria. Brin-
cava, incentivava e organizava. Ela talvez soubesse que tinha pouco tempo de
vida, mal sabia ela que era eterna. (Léo Lima)
rentes de modernidade (em que imperam os padrões pos bem atuais de resistência dos povos indígenas e
colonial, patriarcal e capitalista), parece-nos um ca- da população negra em defesa de um projeto cultu-
minho acertado para a promoção de um curriculum ral, político, social, ético e estético, em uma perspec-
descolonizado (SANTOS, 2019). tiva intercultural.
municam ao produzirem cultura e constroem outras realizou naquele ano ações curriculares no âmbito
formas de pensar seus afro-saberes, constituídos a da educação antirracista. Práticas educativas de
5. Cabe esta nota para ressaltar que, posteriormente à Lei nº 10.639/03, políticas
foram criadas para regulamentar e apontar os caminhos de implementação da
educação antirracista brasileira, a saber: criação de órgãos para atuação na área 6. Em 2018, foi criada a Coordenação de Promoção de Igualdade Étnico-racial
da igualdade racial, documentos como o Parecer 003/2004 e as Diretrizes Cur- e Diversidade (COPIED) pela Secretaria de Educação Municipal de Magé, onde
riculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino atuamos como professores técnicos por três anos. (Daise Pereira e Edmilson
de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana que visaram orientar a implementa- Ferreira)
ção da Lei e tantos outros meios.
O momento foi conduzido por sorrisos, olhares atentos e muitas trocas. Inicialmente, os alu-
nos, junto aos professores, apresentaram seus vídeos, tematizados pelo racismo e precon-
ceito. Posteriormente, o coletivo fez a exibição dos curtas de Cinema Brincante. Em seguida,
aconteceu uma roda de conversa sobre maneiras de usar recursos tecnológicos disponíveis
para criar e contar histórias que amplifiquem suas vozes, mesmo em meio à escassez de re-
cursos materiais e humanos.
7. Agradecemos a generosidade do amigo Léo Custódio por nos apresentar e promover este encontro em 2018. Prometemos que teriam outros
e aqui estamos!
8. A reportagem sobre esse momento pode ser encontrada no link: https://m.facebook.com/prefeituramage/videos/interc%C3%A2mbio-de-
-cinema-em-oph%C3%A9lia-ribeiro-martins-e-coletivo-cafun%C3%A9-na-laje/251789182198734/
afirmar que o contrário da alegria seja o que Simas epistemologia por meio do que chama de epistemo-
e Rufino (2020, p. 11) têm chamado de desencanta- logias do Sul (em contraposição às epistemologias
mento, estando relacionado às “formas de desvita-
lizar, desperdiçar, interromper, desviar, subordinar, 9. Esta narrativa compõe a entrevista que os integrantes do coletivo deram à
Prefeitura Municipal de Magé na ocasião do intercâmbio de práticas na esco-
silenciar, desmantelar e esquecer as dimensões do la Municipal Ophélia Ribeiro Martins. Pode ser acessado pelo seguinte link:
https://m.facebook.com/prefeituramage/videos/interc%C3%A2mbio-de-ci-
vivo.” Os autores relacionam o desencanto com uma nema-em-oph%C3%A9lia-ribeiro-martins-e-coletivo-cafun%C3%A9-na-la-
je/251789182198734/
Oficina de Cinema
Brincante
Não vou esquecer que cresci fazendo filme. sidade Federal Fluminense em 2019. Link: https://www.youtube.com/watch?v=-
(…) Não vou ter vergonha quando eu crescer Zc5yEPaVcoE
14. EntreTelas (2022) é a atual produção do coletivo a ser lançado neste ano de
porque aqui (na favela) eu tenho história, 2023.
15. De acordo com Vera Candau (2017), a expressão Euro-USA-centrismo é uma
diversão. Kamilly Pacheco da Silva (Florzinha)13 ampliação da categoria de eurocentrismo defendida pelos intelectuais do grupo
Modernidade/Colonialidade, que trata de uma perspectiva da ciência construída
no mundo ocidental não só a partir da Europa, mas também dos EUA. Essa refe-
13. As três narrativas podem ser encontradas no vídeo Fazendo Cafuné, um fil- rência pode ser encontrada no vídeo “Abecedário de Educação e Interculturali-
me (produto midiático), fruto do trabalho de monografia de João Vitor dos Santos dade” produzido pelo CINEAD LECAV/UFRJ, disponível no YouTube: https://www.
(integrante do Coletivo), apresentado no Curso de Estudos de Mídia da Univer- youtube.com/watch?v=0OWPYJUaT10
Aline, idealizadora do projeto, gerou um consenso científica na década de 1990 por Mark Dery, um pro
sobre a necessidade de repensar o lugar dessa pro-
posta no mundo. Postura que exigiu humildade e, dutor cultural branco dos EUA. A ausência de escri-
como já afirmava Santos (2019), uma humidade que tores negros/as nas produções relacionadas à ficção
científica era uma questão a ser problematizada. A
16. Cada participante recebeu neste momento inicial um incentivo em bolsa-
-auxílio no valor de R$ 100,00 para alimentação e materiais necessários para as 17. A menina do futuro – Episódio 1 <https://www.youtube.com/watch?v=PHJn-
oficinas. 7Vhk4FM >
A menina do futuro foi pensado para ser uma série com alguns episódios. As imagens/planos
em destaque estão relacionadas ao episódio 1. Como princípio do Cinema Brincante, a temáti-
ca dos filmes nasce de um acontecimento cotidiano e o filme é gestado para marcar o vivido.
As meninas e meninos do Cafuné protagonizam o fu- Se para Tia Dorinha o tronco da mangueira pertence
turo, sem deixar de retomar um passado, onde per- à tranca rua das almas, suas folhas a Oxossi, o fru-
cebem que elementos fundamentais para uma vida to a Ogum e as flores são das crianças, desejamos
digna sempre foram negados, como saneamento bá- imaginar que virão dessas flores o aroma, as cores
sico, moradia e educação. A crítica social enquanto e a vitalidade para resistir e lutar contra violações de
premissa do afrofuturismo se faz presente no enredo, direitos, seja em territórios subalternizados como a
junto à ideia de não linearidade do tempo: passado, favela, seja em instituições que foram feitas para re-
presente e futuro fazem interlocução, com a própria produzir o que não dá prazer, para expropriar a huma-
ideia do pássaro mítico de pés para frente e cabeça nidade do outro ao contar uma única história e reite-
para trás, já mencionada aqui. rá-las cotidianamente.
No plano 1, duas meninas sentadas na cadeira (Ka- O fazer cinema dos meninos e meninas do Jacarezi-
rolyn e Florzinha) atuam como blogueiras que acom- nho vem ao longo desses 10 anos potencializando o
panham a saga do 1º episódio de forma humorada e que mais tem de seu: a ludicidade, que proporciona,
descontraída, através de reacts (reações) no canal dentre outras coisas, realizar perguntas instigantes
delas. No plano 2 e 3, o Rei Miguel está em sua nave e respondê-las na mesma medida. Esse modo insur-
espacial observando tudo e começa a articular um gente de pensar e fazer cinema na favela tem se afir-
plano para resgatar a menina e fechar o portal a fim mado e feito presença em diferentes espaços, como
de romper com o desequilíbrio da Terra. No plano 4, a escola e a universidade22, instituições que histo-
um fundo ilustrando a chamada do filme, assim como ricamente detêm a exclusividade do conhecimento.
em todas as cenas, apresenta aspectos de uma arte Ao entrar nesses espaços, o Cinema Brincante do
futurista com nave espacial, máquinas, velocidade e Cafuné na Laje abre brechas para a criação de Outros
dinamismo. Conhecimentos e Outras Pedagogias, em um tempo
difícil, cada vez mais exigente de respostas fortes,
Neste filme foi a primeira vez que a técnica chama- narrativas outras e comprometidas com a luta antir-
da Chroma Key (recurso que usa fundo verde para racista.
ser manipulado em software de edição) foi utilizada.
Jovens e crianças pretas criando e protagonizando Nós, enquanto professores e educadores antirracis-
a tridimensionalidade do tempo (passado, presente tas, esperançamos com encontros como esse que
e futuro) com caminhos metodológicos que envol- aconteceu em uma escola de Magé e que se atualiza
vem princípios da ludicidade, dos afro-saberes, das nesta escrita, onde a reciprocidade, a cooperação e
mídias digitais e da ficção científica em compromisso a complementaridade se fazem busca para a cons-
com a comunidade negra presente na favela e na es- trução de outros mundos e pedagogias possíveis
cola.
Conclusão
EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA
190
ONG CRIOLA
Boa leitura!
Realização Apoio