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© Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson

Pereira Mendonça (Orgs.)

Gramma Editora
Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo Tadeu
Monteiro, Gisele Cittadino, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro Rocha,
Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel Mendes de Almeida, Mirian
Goldenberg e Silene de Moraes Freire.

Supervisão Editorial: Gisele Moreira


Coordenação Editorial: Flávia Midori
Revisão: Lara Alves
Capa: Paulo Ferreira
Imagens de capa: índia @Marcus Pinho (Pexels); negro @Clement Eastwood (Pexels)
Diagramação: Leonardo Paulino Santos

Este livro foi avaliado e aprovado por pares.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecário Fabio Osmar de Oliveira Maciel – CRB-7 6284
P879

Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos: educação, cultura e políticas públicas


[recurso eletrônico] / Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos
Bicalho, Robson Pereira Mendonça (orgs.). – Rio de Janeiro : Gramma, 2020.
3113 Kb ; PDF.

ISBN 978-85-5968-746-0

1. Povos Indígenas. 2. Cultura afro-brasileira. 3. Educação.


I. Sousa, Ana Lúcia Nunes de, org. II. Bicalho, Poliene Soares dos Santos, org. III.
Mendonça, Robson Pereira, org.

CDD : 370

Gramma Editora
Rua da Quitanda, nº 67, sala 301
CEP.: 20.011-030 – Rio de Janeiro (RJ)
Tel./Fax: (21) 2224-1469
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Site: www.grammaeditora.com

Todos os direitos reservados.


A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,
constitui violação de direitos autorais (Lei 9.610/1998).
À memória dos povos indígenas e afrodiaspóricos que vieram antes de nós e
tombaram em combate por um mundo mais justo, onde suas cosmovisões não
fossem proibidas e silenciadas.
AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões


Culturais no Cerrado.

À CAPES, pelo financiamento concedido por meio do recurso


proveniente do Edital FAPEG nº 11/2012 – Apoio a Programas de
Pós-Graduação Stricto Sensu – Acordo CAPES/FAPEG.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 1
CAPÍTULO 1
Por uma estética relacional ameríndia: uma outra
ontologia da imagem? 9
Els Lagrou

CAPÍTULO 2
As manifestações artísticas dos indígenas nos museus 24
Keyde Taisa da Silva
Poliene Soares dos Santos Bicalho

CAPÍTULO 3
Águas que se cruzam: hãtxu karajá e omágua-yetê anaquiri 43
Vanessa Hãtxu de Moura Karajá
Mirna Kambeba Omágua Yetê Anaquiri

CAPÍTULO 4
Ações afirmativas e racismo estrutural: considerações
sobre o sistema de cotas na pós-graduação 52
Mariza Fernandes dos Santos

CAPÍTULO 5
Processos educacionais na Terra Indígena Avá-Canoeiro de Goiás 73
Lorranne Gomes da Silva
Ariel Pheula do Couto e Silva
X Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

CAPÍTULO 6
Olhares brasileiros sobre a África: questões para reflexão 80
Ernesto Jorge Macaringue

CAPÍTULO 7
O que significa ser afrodescendente hoje? 100
Ana Lúcia Nunes de Sousa

CAPÍTULO 8
Povos indígenas, ameaças de grandes projetos
desenvolvimentistas e afirmação cultural indígena 107
Stephen Grant Baines

CAPÍTULO 9
“Brasil: outros 500”: as comemorações e o desrespeito 118
Poliene Soares dos Santos Bicalho

CAPÍTULO 10
Territorialidade e identidade étnica Kalunga frente à
construção da PCH Santa Mônica 138
Vercilene Francisco Dias
Izadora Nogueira dos Santos Muniz
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega

CAPÍTULO 11 162
O uso de plantas medicinais pelos indígenas e pela
população de Goiás do século XIX 162
Andreia Marquezan
Roseli Martins Tristão Maciel

CAPÍTULO 12
Pankararu do Tocantins: história, lutas e identidades
de um povo esquecido e sem terra 183
Elvio Juanito Marques de Oliveira Júnior
André Demarchi

CAPÍTULO 13
Presídios do Sertão: a solução final para o
“problema dos canoeiros” 199
Maria Juliana de Freitas Almeida
Robson Mendonça Pereira
APRESENTAÇÃO

A população brasileira é estimada em mais de 200 milhões de


pessoas (IBGE, 2017), das quais 52,1% são autodeclaradas negras
(pretas e/ou pardas); e 0,47% são indígenas, distribuídas entre 305
etnias, falantes de 274 línguas diferentes, por todo o país, de acordo
com dados do último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE, 2010). Somos a maioria do povo brasileiro, e esta di-
versidade étnico-racial e linguística deveria apontar também para uma
multiplicidade em perspectivas, teorias, métodos, objetos e sujeitos/
atores sociais em todos os espaços, inclusive no acadêmico.
Entretanto, nossos conhecimentos, saberes e cultura vêm sendo
negados e silenciados desde a invasão colonial de Abya Ayla1 e o início
do tráfico transatlântico de pessoas oriundas da África.2 O racismo
epistemológico (CARNEIRO, 2005; GROSFOGUEL, 2003) pode
ser verificado em diversos âmbitos, desde a ausência de referências
bibliográficas, que fogem aos padrões caucasiano-europeu, à escassa
representação dos povos indígenas e afrodescendentes na produção
científica nacional, até as dificuldades de implementação da Lei nº

1
Abya Ayla é um termo que foi convencionado para nomear as terras que habitamos – em contrapo-
sição à América – pelos movimentos indígenas, a partir da II Conferência Continental dos Povos e
Nações Indígenas, realizada em Quito, em 2004. O nome remete ao termo utilizado pelo Povo Kuna,
residente no Panamá e na Colômbia, para referir-se ao continente antes da invasão colonial. Abya Ayla
significaria “terra em plena madurez” ou “terra do sangue vital”.
2
O termo África é, aqui, utilizado baixo protesto, seguindo Ramose (2005). O filósofo explica que
este nome foi imposto pelos “conquistadores” e que, portanto, deveria ser usado baixo protesto.
2 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

11.645/2008 (Brasil), que estabelece a obrigatoriedade do ensino de


história e cultura afro-brasileira e indígena na educação nacional.
A urgência de aprofundar esse debate dentro da Universidade,
e também fora dela, que já vinha sendo pautada pela implementação
das cotas étnico-raciais, há mais de uma década, nos levou a organizar
o “I Seminário Internacional Povos e Saberes Indígenas e Afrodiaspó-
ricos”, na Universidade Estadual de Goiás (UEG), que ocorreu entre
os dias 20 e 21 de junho de 2018, no campus de Ciências Socioeconô-
micas e Humanas, em Anápolis, com o intuito de reunir estudantes,
professores, pesquisadores e gestores de políticas públicas, de todo o
mundo, interessados em discutir a diáspora africana e indígena e sua
influência na formação da nossa sociedade, principalmente na cons-
trução de outros saberes.
O evento foi construído a partir de duas referências: 1) a déca-
da internacional de afrodescendentes, decretada pela Organização das
Nações Unidas – ONU (Resolução nº 68/237), que cita a necessidade
de reforçar a cooperação nacional, regional e internacional em relação
ao pleno aproveitamento dos direitos econômicos, sociais, culturais,
civis e políticos de pessoas afrodescendentes, bem como sua participa-
ção plena e igualitária em todos os aspectos da sociedade; e 2) a neces-
sidade de aprofundar e qualificar o debate sobre as políticas afirmativas
de acesso ao ensino superior, que já completa mais de 10 anos na UEG
e em outras universidades públicas goianas.
Propusemos a realização deste I Seminário objetivando cons-
truir um espaço plural, e internacional, que pudesse ser referência
na temática, preenchendo uma lacuna na discussão destas questões
no cenário goiano, e interligando as universidades do estado a ins-
tituições internacionais de prestígio. É importante considerar que
as universidades do Cerrado têm sido pioneiras no debate e na apli-
cação das políticas afirmativas raciais no Brasil. A UEG destina 45%
de suas vagas de ingresso na graduação para políticas afirmativas, e
a Universidade Federal de Goiás (UFG) e a Universidade de Brasília
(UnB) foram pioneiras no país em implementar as políticas afirma-
tivas raciais na pós-graduação. Assim, consideramos que, aprofundar
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 3

e qualificar este debate, além de reafirmar a necessidade e a impor-


tância do reconhecimento dos povos indígenas e afrodiaspóricos em
todas as suas dimensões, era e ainda é uma tarefa premente para a
comunidade acadêmica goiana.
O livro que vocês encontram em mãos agora é fruto desse even-
to, que reuniu acadêmicos, movimentos sociais e gestores de políticas
públicas, durante dois dias, em conferências, debates e rodas de con-
versa. Os textos publicados neste livro são uma forma de estender
estas discussões a um público ainda mais amplo.

A obra e seus capítulos


O capítulo de abertura do livro, “Por uma estética relacional
ameríndia: uma outra ontologia da imagem?”, de Els Lagrou, resultou
da sistematização da palestra proferida pela pesquisadora no evento
que deu origem a este livro. Lagrou discorre, sobretudo, a respeito das
artes entre os ameríndios, com foco no caráter agentivo das mesmas, e
tendo como campo de observação o povo Huni kuin, mas sem dispensar
ilações com as artes ameríndias do Cerrado. Segundo a autora, a estéti-
ca relacional inerente às artes ameríndias sempre nos leva ao estudo do
xamanismo, e vice-versa, mas não somente entre eles. A sua peculiari-
dade nos ensina outro modo de pensar a arte e sua relação com a vida,
uma outra maneira de compreender sua relação com o corpo, e é sobre
esta multiplicidade de olhares e sentidos, a partir do universo indígena,
que a autora discorre de forma densa e complexa.
O segundo capítulo, “As manifestações artísticas dos indígenas
nos museus”, inicia fazendo menção a uma população brasileira que
teria se tornado “homogênea”, mas que parece fazer questão de esque-
cer os primeiros habitantes que aqui chegaram, e que vieram não pelo
Oceano Atlântico, mas, sim, pelo Estreito de Bering, que, congelado,
ligou a Ásia à América. O capítulo destaca a contribuição indígena no
campo das artes, que, para eles, se traduz em grafismos e artefatos
repletos de significados, os quais são distintos para cada povo, mas que
os identificam étnica e culturalmente. Por fim, as autoras Keyde Taisa
da Silva e Poliene Soares dos Santos Bicalho discorrem sobre as artes
4 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

indígenas, tendo em vista os vários embates teóricos que permeiam


o tema, com vistas a apresentá-las como importante instrumento de
valorização e reconhecimento das identidades e culturas indígenas. O
lugar que estas manifestações artísticas vêm ocupando nos museus in-
dígenas e etnográficos, entre outros, principalmente a partir das dé-
cadas de 1970 e 1980, é o eixo norteador da narrativa, que explicita,
após várias reflexões, os novos caminhos abertos para o protagonismo
indígena e suas artes nos museus, que também passam por releituras,
tendo em vista as perspectivas lançadas pela Nova Museologia.
No terceiro capítulo, “Águas que se cruzam: Hãtxu Karajá e
Omágua-Yetê Anaquiri”, as autoras, mulheres indígenas, apresentam
um relato da sua origem e um pouco de suas histórias. Vanessa Hãtxu
Iny-Karajá é do “povo Iny”, originário das profundezas do Rio Araguaia.
Ela se afasta do rio em busca de novos instrumentos de luta e resistên-
cia, agora não mais arco e flecha, mas, sim, estudos e conhecimento
para sobreviver e resistir no mundo dos não indígenas, no qual estão
inseridos desde muito tempo, e não por uma escolha do seu povo. Em
meio às surpresas da vida, dois filhos, a impossibilidade de permanecer
com eles, vieram as lágrimas, mas, como gotas que formam um rio,
elas a fortaleceram. Mirna também vem das águas, pertence ao povo
indígena Kambeba Omágua-Yetê, das margens do Rio Solimões. Povo
valente, que resistiu à colonização, mas que, massacrado, se dispersou,
e hoje luta pelos seus direitos. Também em busca de instrumentos de
luta se fez mestre em Artes e Cultura Visual, e professora da rede mu-
nicipal de Goiânia. As autoras falam da importância em registrar suas
histórias e da política de cotas, como uma forma de possibilitar outras
mulheres indígenas e quilombolas a saírem em busca de seus novos ins-
trumentos de resistência: o conhecimento e a formação profissional.
Nosso quarto capítulo é assinado por Mariza Fernandes dos San-
tos, “Ações afirmativas e racismo estrutural: considerações sobre o sis-
tema de cotas na pós-graduação”, traz reflexões da autora em torno da
aplicação do sistema de cotas étnico-raciais como política de inclusão
nos Programas de Pós-Graduação da Universidade Federal de Goiás. O
texto tece uma análise crítica das ações afirmativas, apontando suas de-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 5

bilidades e as dificuldades de implementação das medidas, muitas vezes


ainda levadas a cabo por elementos defensores da branquidade. Ou
seja, as ações afirmativas no Brasil continuam esbarrando no racismo
estrutural e ainda têm um longo caminho pela frente para que possam
ser, de fato, instrumento de reparação ao povo negro.
O quinto capítulo, intitulado “Processos educacionais na terra
indígena Avá-Canoeiro de Goiás”, apresenta uma síntese do capítulo
“Processos Educacionais na Terra Indígena Avá-Canoeiro de Goiás: pa-
norama histórico e perspectivas futuras”, publicado no livro Artes Indí-
genas no Cerrado: saberes, educação e museus. Artigo que trata do histórico
do povo Avá-Canoeiro, povo forte e valente, além de guerreiro, mas
que, diante da força do opressor, foi perseguido e massacrado, disper-
sando-se parte para o Rio Araguaia, em Tocantins, parte para o Rio
Tocantins, em Goiás. Relata o insucesso nas tentativas de escolarização
desses povos e os novos esforços, buscando formas de integração das
culturas, com foco no letramento, a partir das línguas Avá-Canoeiro,
Tapirapé e Português, e do uso dos espaços de aprendizagem, consi-
derando a realidade da cultura indígena, chamado de “varanda-escola”.
O capítulo seguinte veio das terras longínquas de Moçambique,
da mão do geógrafo Ernesto Jorge Macaringue. “Olhares brasileiros
sobre a África: questões para reflexão” é um relato autoetnográfico do
autor sobre os anos que viveu no Brasil. Durante esse tempo, o autor
foi convidado inúmeras vezes para falar sobre a África. O texto é reve-
lador dos muitos preconceitos e barreiras que ainda separam povos tão
próximos: o povo brasileiro e os vários povos do continente africano.
Macaringue faz, então, um esforço para vincular ou revincular Brasil e
Moçambique, além de nos apresentar um relato dos diversos olhares
sobre a África apreendidos durante sua estadia em nosso país.
O antropólogo Stephen Grant Baines assina o sétimo capítulo.
Em seu texto, Baines (UnB) aborda a temática do indigenismo empre-
sarial e seu enorme impacto nos territórios e nas culturas indígenas
no Brasil contemporâneo. Analisa casos específicos como o da atuação
da ELETRONORTE, em parceria com a Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), na terra indígena Waimiri-Atroari, no norte amazônico, que
6 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

permitiu que nesse território se desenvolvessem atividades de empre-


sas mineradoras. No litoral cearense, destaca pressões sobre o povo
indígena Tremembé, por parte da empresa Ducoco e do consórcio
Grupo Nova Atlântida, com apoio dos governos federal e estadual; e,
por fim, a luta do povo indígena Jenipapo-Kanindé contra empresas de
turismo empresarial, que tentavam se apropriar de seu território.
Em seguida, no capítulo “‘Brasil: outros 500’ – as comemora-
ções e o desrespeito”, a autora Poliene Soares dos Santos Bicalho abor-
da os 30 anos da Constituição brasileira, que trata como “um dos mais
significativos acontecimentos da história dos povos indígenas no Bra-
sil”, mas que, diante do cenário político atual, não temos muito o que
comemorar. Se, por um lado, tal Carta Magna trouxe reconhecimento
à cultura diferenciada e ao direito às terras tradicionalmente ocupadas
pelos indígenas, possibilitando o protagonismo destes povos; por ou-
tro, o chamado movimento indígena contribuiu para dar ao índio o au-
torrespeito e a consciência das necessidades constantes de luta social,
a qual está longe do fim, pois o reconhecimento expresso na Consti-
tuição de 1988, constantemente, necessita ser reafirmado e, assim, os
sobreviventes dos primeiros habitantes, que aqui estavam antes mesmo
do “descobrimento”, seguem em luta por suas terras e por seus direitos
neste Brasil de “outros 500”, ainda muito semelhante ao dos 500 que
já se passaram.
O nono capítulo aborda os sentidos de ser afrodescendente hoje.
Assinado por Ana Lúcia Nunes de Sousa, é um relato em primeira pes-
soa, que parte de situações cotidianas para abordar a questão afrodes-
cendente, tanto do ponto de vista teórico quanto do político. A autora,
num texto curto, consegue trazer a teoria para o comum, e nos faz
refletir sobre os desafios da organização e da unidade em torno da luta
do povo negro diante de suas experiências diaspóricas diversas.
No décimo capítulo da obra é abordada a luta longa e árdua tra-
vada pela comunidade quilombola dos Kalunga, em Goiás, contra inte-
resses empresariais que ameaçam a preservação de seu território tradi-
cional nas últimas duas décadas. O tema é analisado do ponto de vista
do direito agrário por Vercilene Francisco Dias, Izadora Nogueira dos
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 7

Santos Muniz e Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega. As autoras ex-


põem o imbróglio jurídico em torno da tentativa da megacorporação
Rialma de obter o licenciamento ambiental para empreendimentos na
Chapada dos Veadeiros, como a Central Hidrelétrica de Santa Mônica,
com impacto direto sobre a comunidade Kalunga, que se encontra em
condição de vulnerabilidade devido ao lento processo de regularização
que tramita no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) desde 2004.
Os conhecimentos tradicionais sobre o uso de plantas medicinais
do Cerrado, desenvolvidos pelos povos indígenas, e as formas polêmi-
cas de sua apropriação no contexto dos medicamentos fitoterápicos,
assim como sua industrialização, constituem o mote temático do tex-
to de Andreia Marquezan e Roseli Martins Tristão Maciel. As autoras
discutem questões relacionadas à etnobotânica, ao debater acerca do
acesso e do uso da biodiversidade e dos retrocessos da legislação, que
representam enorme desafio para o reconhecimento de direitos sociais
e ambientais aos povos indígenas.
O sentimento de invisibilidade social e esquecimento, comparti-
lhado por povos indígenas que sofreram deslocamentos e aldeamentos
forçados ao longo de sua história, é problematizado por Elvio Juani-
to Marques de Oliveira Jr. e André Demarchi, no estudo de caso dos
índios Pankararu do Tocantins. Expulsos de suas terras e explorados
por fazendeiros e posseiros em Pernambuco, os Pankararu enfrenta-
ram a fome e o desemprego, iniciando um movimento de dispersão
ao longo do século XX. Os autores procuram demonstrar como os
Pankararu do Tocantins têm buscado reconstruir sua identidade e suas
tradições culturais em meio ao moroso processo de reconhecimento
de suas terras.
Os historiadores Maria Juliana de Freitas Almeida e Robson
Mendonça Pereira fecham o livro tratando do processo de implantação
dos Presídios Militares de Santa Bárbara, Santo Antônio e Santa Cruz,
que foram construídos na região do Rio Tocantins, na porção central
da Província de Goiás (também conhecido como Sertão do Amaro Lei-
te), na segunda metade do século XIX. Esses presídios tiveram como
8 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

objetivo auxiliar uma política de ocupação e expansão do povoamento;


e seus efeitos devastadores para o povo indígena Avá-Canoeiro com-
põem o mote da pesquisa apresentada.

Anápolis, Goiás, Brasil

Ana Lúcia Nunes de Sousa3


Poliene Soares dos Santos Bicalho4
Robson Pereira Mendonça5
Adriana Aparecida Silva6
Mary AnneVieira da Silva7

3
Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em
Comunicación y Periodismo pela Universidad Autónoma de Barcelona. Professora do Instituto Nutes
de Educação em Ciências e Saúde, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Educação em
Ciências e Saúde e no Laboratório de Vídeo Educativo. Dedica-se à docência, pesquisa e extensão em
comunicação, educação, gênero e relações étnico-raciais.
4
Doutora em História Social pela Universidade de Brasília (UnB), pós-doutora em Antropologia So-
cial pela Universidade de Brasília (UnB), docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER/UEG) e da graduação em História do cam-
pus de Ciências Socioeconômicas e Humanas da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
5
Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É professor e pesquisador da
Universidade Estadual de Goiás com publicações nas áreas de história política, escrita autobiográfica
e primeira república.
6
Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Docente na Universidade Estadu-
al de Goiás (UEG) com atuação no Programa de Mestrado Interdisciplinar em Territórios e Expressões
Culturais no Cerrado (TECCER/UEG) e no Centro de Ensino e Aprendizagem em Rede (CEAR).
7
Pós-doutoranda do Programa Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF) e bolsista CAPES/FAPEG-Edital 2018/1009. Docente no Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da Universidade Estadual de Goiás
(TECCER/UEG).
Capítulo 1

Por uma estética relacional ameríndia: uma outra


ontologia da imagem?8
Els Lagrou9

“Às mulheres também, o cosmos!”


Queria começar minha fala hoje com esta frase final retirada
do belo artigo de André Demarchi (no livro Artes indígenas no Cerrado,
2018, p. 76). A frase remete à possibilidade de considerar a pintura
corporal como fazendo parte de um xamanismo feminino, também
entre os Jê.
Gostei muito de ler esta frase porque eu também tenho enfa-
tizado, para os grupos Pano na Amazônia Ocidental, e especialmente
para os Huni kuin (Kaxinawa)10, este forte paralelismo entre a iniciação
8
Este artigo é a reprodução fiel de uma palestra proferida em junho de 2018, na Universidade Esta-
dual de Goiás (UEG), no contexto do 1o Seminário Internacional Povos e Saberes Indígenas e Afro-
diaspóricos, no qual foi também lançado o livro Artes indígenas no cerrado: saberes, educação e museus
(BICALHO; MACHADO, 2018) para o qual contribuí com o artigo sobre Warburg e a figuração do
invisível. A palestra dialoga com este contexto comparativo: a relação entre as artes do Cerrado e as
artes amazônicas, e a questão da arte indígena no contexto político atual. Por ser um texto sobre arte
indígena, em termos gerais, há referências a outras discussões feitas em publicações anteriores.
9
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA, UFRJ); bolsista
do CNPq. Doutora em Antropologia Social pela University of St. Andrews e pela Universidade de São
Paulo. Coordena o grupo de pesquisa NAIPE (Núcleo de Arte, Imagem e Pesquisa Etnológica) e os
Seminários Ameríndios (Universidade Federal do Rio de Janeiro − UFRJ). Publicou os livros A fluidez
da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (2007); Arte indígena no Brasil (2009; 2015);
editou com Carlo Severi Quimeras em diálogo, grafismo e figuração nas artes ameríndias (2014); e editou o
catálogo “No caminho da miçanga” (2017).
10
Sigo os Huni Kuin na sua decisão recente e política de se autodenominarem Huni Kuin, gente de ver-
dade (ou gente como nós), em vez de Kaxinawa, povo do morcego, nome pelo qual são conhecidos na
literatura há tempos imemoriais, mas que lhes fora atribuído por vizinhos inimigos (e fixado como et-
10 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

feminina na arte gráfica e a iniciação masculina no xamanismo (LA-


GROU, 1991, 1996). Na verdade, no caso Huni kuin, ambos os rituais
são idênticos: consistem em matar uma jiboia para obter seu couro, e
através da dieta, do resguardo e do sonho, tentar tornar-se, devir par-
cialmente jiboia. O devir gente-jiboia permite à pessoa ver o mundo
através dos seus olhos. Quem tem o olhar da jiboia sabe desenhar, sabe
tecer com desenho e sabe atrair gente e caça. Quem sabe cantar na voz
da jiboia sabe curar e sabe causar doença. O mundo da caça e das visões
xamanísticas está intrinsecamente entrelaçado com o mundo dos dese-
nhos, dos grafismos labirínticos que cobrem peles, corpos e artefatos
(LAGROU, 2018b; 2018c).
Devir-jiboia para os Huni kuin é parcial. O que se quer é captu-
rar para a eficácia da vida cotidiana capacidades que se encontram, em
alta concentração, em outros seres, como na jiboia. A pessoa se torna
dois em um, jiboia e humano. A construção desta pessoa complexa e
múltipla se dá no ritual, mas perdura no cotidiano. Trata-se de uma
estética eficaz: belas pessoas são pessoas com capacidades agentivas au-
mentadas. Este aumento se dá a partir da incorporação de agências
outras. Na Amazônia, a serpente não remete ao mal ou ao demônio,
como acontece no velho mundo desde os gregos e israelitas antigos,
passando pelo Renascimento (WARBURG, 1927) até os novos cris-
tianismos, mas à capacidade de atrair. As mulheres atraem e capturam
através da malha do seu desenho labiríntico. Este desenho tece relações
e mostra como relações geram novas formas. Os homens atraem a caça
pelo canto e pelo cheiro das plantas apropriadas. Quem correr atrás da
caça sem se lembrar dos caminhos de volta para casa torna-se presa dos
espíritos que caçam humanos.

nônimo pelos não indígenas, que, dizem os Huni Kuin, se equivocaram − ver Lagrou [2007]). O nome
“povo do morcego” alude ao hábito do morcego de andar de noite e de se alimentar de sangue, duas
coisas que os Huni Kuin não fazem. O problema com o etnônimo, que é também pronome nominal,
nós, a gente, é que ao usar este nome o enunciador se inclui no coletivo ao qual se refere. O mesmo
paradoxo vale para a maioria de outras recentes mudanças de nome (como os Piro/Yine: GOW apud
VIVEIROS DE CASTRO, 2002); mas é, mesmo assim, preferido pelos movimentos indígenas con-
temporâneos ao ser chamado pelo nome dado pelo inimigo. Outro inconveniente, no caso dos Huni
Kuin, é que outros grupos Pano, com língua muito próxima à deles, se autodenominariam pelo mesmo
nome, como os Oni Koin.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 11

Esse exemplo, de matar a jiboia para tornar-se parcialmente jiboia,


se assemelha ao caso do guerreiro Araweté, que, depois da reclusão, se
erguerá como um ser duplo (VIVEIROS DE CASTRO, 1986). A voz que
dele emana é a voz do inimigo. Ao morrer, o inimigo passou a viver den-
tro do matador, e é ele que canta dentro dele. A lógica de incorporação
de nomes e enfeites de povos inimigos humanos e não humanos entre os
Kayapó segue a mesma lógica (LEA, 2012; DEMARCHI, 2014).
Temos aqui uma atitude frente à alteridade que é muito diferente
daquela que tem caracterizado as guerras contra o inimigo no velho con-
tinente europeu. Desde os gregos antigos, a guerra no Ocidente visava
eliminar os inimigos. Como muito bem explicitou Manuela Carneiro da
Cunha, o inimigo é bárbaro porque é inimigo, não é inimigo porque é bár-
baro (1978). Ou seja, é preciso transformar o outro em bárbaro, próximo
do animal, para justificar sua aniquilação. Se os gregos já visavam civilizar
os bárbaros e impor-lhes sua cultura considerada superior, a empreitada
civilizatória do Ocidente ganhou ainda mais ímpeto quando esta conquis-
ta se fazia em nome de Deus e de uma suposta superioridade religiosa.
O proselitismo, aquela convicção de que minha verdade tem que se
tornar também a sua, é o melhor aliado do imperialismo porque permite
subjugar sem culpa. Ao tentar aniquilar a alteridade do outro, o conquis-
tador se convence de estar salvando-o. Esta mentalidade ainda está muito
viva hoje e se manifesta por uma aguda intolerância estética e moral por
costumes que diferem das nossas próprias.
A concepção ameríndia de alteridade, no entanto, valoriza as va-
riações, as diferenças. Mesmo quando os diferentes coletivos indígenas se
juntam em causas políticas comuns, nunca deixam de expressar seu apre-
ço por estas diferenças. Cada povo tem seu jeito, sua estética, um jeito
próprio de fazer o corpo, de comer. A convivência com a multiplicidade
caracteriza o mundo ameríndio, uma multiplicidade de espécies de ani-
mais, de plantas, de coletivos humanos, um belo cromatismo que resiste
ao Um, como disse um profeta guarani a Clastres (1980).
Mas voltemos ao xamanismo e sua relação com as mulheres. Foi
uma anciã, Dona Maria Sampaio, minha professora, que me colocou
nesta pista quando me disse, kene yuxinin hantxaki: o grafismo é a fala
12 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

dos espíritos, isto é, dos duplos. Passei minha vida a seguir os caminhos
por ela indicados nestes primeiros dias de pesquisa, um pouco como
Warburg perseguia as ninfas gregas e como se persegue borboletas:
seres-imagens fugidios, que se metamorfoseiam e fogem quando você
chega perto e tenta segurá-los (WARBURG, 1927). Imagens são como
duplos, sempre a fazer pontes entre o visível e o invisível, entre o aqui e
o que pertence ao alhures (LAGROU, 2018a). As imagens dão a ver as
conexões, as relações entre os seres.
Por isso, entre os ameríndios, o estudo da arte sempre nos leva
ao estudo do xamanismo e vice-versa, mas não somente entre eles. A
arte indígena nos ensina outro modo de pensar a arte e sua relação com
a vida, uma outra maneira de pensar sua relação com o corpo. Por isso
disse no meu livro sobre arte indígena que, para entender a arte indí-
gena, precisávamos de uma inversão copernicana de perspectiva, assim
como Pierre Clastres (1974) defendeu para a política e Lévi-Strauss
para a razão (LAGROU, 2009, 2011).
Em vez de pensar outras socialidades e coletivos como girando
em torno de nossos conceitos de Estado e política, de razão e verdade
ou de arte como distinto de artefato, teríamos que inverter a perspec-
tiva para ver que, ao não mais separar arte de vida, podemos enxergar a
arte indígena como uma estética específica do viver. Pode-se dizer que
as ontologias ameríndias são ontologias eminentemente estéticas. Pois,
se a perspectiva está na forma que os corpos assumem e as formas são
altamente instáveis, podendo se transformar umas nas outras, a esté-
tica se torna a chave para viver esta ontologia transformacional, onde
pessoas vivem o devir-pássaro, o devir-múltiplo, o devir-jiboia e uma
multiplicidade de outros devires no cotidiano e no ritual (LAGROU,
2018b). Se a cura depende da possibilidade de olhar o mundo a partir
de outra forma, da forma do duplo que tenta nos capturar, então toda
terapia tem que ser uma terapia estética11. E é isso que as artes indíge-
nas nos ensinam a ver.
11
Tomo emprestada esta expressão, “terapia estética”, de Gebhart-Sayer que a utiliza para falar da arte
visionária do xamã shipibo que concerta desenhos invisíveis na pele do seu paciente (GEBHART-
-SAYER, 1986).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 13

Nessa perspectiva, André Demarchi vai mostrar que, entre os


Jê, são também as mulheres que nos ensinam a ver este caminho, o
caminho da cura através do cuidado para com a pele, pintando-a, ador-
nando-a para torná-la mais forte e para permiti-la acumular agências,
e, assim, alcançar a magnificação das pessoas belas. A entrada pelo diá-
logo com André possui aqui uma força estratégica: se eu falo da arte
ameríndia a partir da Alta Amazônia, ele fala dela a partir dos povos
Jê que fazem a transição da Amazônia para o Cerrado. A diferença ou
complementaridade entre Jê e Tupi, entre os povos que habitam ma-
joritariamente o centro do Brasil e aqueles que habitam suas margens
setentrionais, estruturou a discussão na etnologia por muito tempo, e
que continua, de algum modo, a estruturá-la, apesar de ter sido tam-
bém questionado, como veremos.
A polaridade ganhou forma no contraste formulado por Eduar-
do Viveiros de Castro entre os Araweté, grupo de língua tupi, e seu devir
deuses canibais; e os Mehin Krahô, grupo de língua jê, cujos mortos são
outros. Refiro-me aqui ao fato de Viveiros de Castro ter construído sua
imagem dos Araweté em estreito diálogo com o trabalho de Manuela
Carneiro da Cunha. Para Viveiros de Castro, os Araweté pareciam como
a imagem invertida dos Mehin Krahô. Se os Mehin tinham uma comple-
xíssima organização social interna, que se manifestava nos abundantes
e elaborados rituais que colocavam em relação os diferentes grupos
de metades, toda vida ritual dos Araweté estaria direcionada para sua
relação com o mundo extra-aldeia, com os deuses canibais, destino
póstumo dos vivos (1986).
O mesmo contraste pode ser encontrado nos estudos da arte in-
dígena. Lux Vidal, fundadora deste campo de pesquisa, trabalhou com
os Mebengôkre Kayapó-Xikrin, grupo Jê. Lux mostrou como o sistema
gráfico deste povo podia ser lido como um código a informar sobre as
diferenças entre classes sociais, homens e mulheres, grupos de idade,
e fases por onde passavam as pessoas no ciclo da vida, assim como as
pessoas ligadas aos que passavam por essas fases. O motivo gráfico in-
formava se uma mulher havia dado à luz recentemente ao seu primeiro
filho, e quais as pessoas próximas que com ela partilhavam o resguardo.
14 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

A arte gráfica podia, deste modo, ser lida como um verdadeiro sistema
visual de comunicação (VIDAL, 1992).
Por outro lado, a maioria dos trabalhos, de antropologia da
arte, orientados por Vidal, se situavam na Floresta Amazônica. Assim
temos, para os anos 1980, Lucia Van Velthem, com sua pesquisa so-
bre os Wayana; Dominique Gallois entre os Waiãpi; e Regina Müller
entre os Asurini. As três autoras publicaram artigos no famoso Grafis-
mo indígena, livro editado por Lux Vidal em 1992, que reunia o que
existia naquele tempo sobre o tema. E o que ressalta aos olhos é o
fato de termos nestas sociedades uma ênfase diferente no funciona-
mento dos sistemas gráficos. Os grafismos servem ali não para falar
das diferenças entre grupos sociais, mas para falar das relações entre
diferentes seres e níveis do cosmos.
Entre os Wayana, os diferentes sistemas gráficos separam ani-
mais, sobrenaturais e humanos. É porque são ontologicamente e tec-
nicamente tão próximos que as marcas na pele precisam garantir a
sua diferenciação (VAN VELTHEM, 2003). Já entre os Waiãpi e Asurini
que são Tupi, o grafismo une os diferentes seres, visíveis e não visíveis
(GALLOIS, 1992; MÜLLER, 1992). O xamã Waiãpi é ligado aos seus
espíritos auxiliares por linhas invisíveis, e o que tenho tentado mostrar
nos meus escritos sobre os grafismos dos grupos Pano da Amazônia
Ocidental é que os grafismos dão a ver exatamente estes caminhos,
estas linhas que conectam os seres (LAGROU, 2013).
Cheguei em São Paulo para ser orientada por Lux Vidal no
meu trabalho sobre grafismo Huni kuin nos anos 1990. Os Huni kuin
tinham metades e os especialistas da área estavam convencidos de
que se tratava de pictogramas associados a eles. Tentei confirmar
estas hipóteses. Mas o que descobri foi outra coisa: os grafismos
não pertenciam a grupos distintos, mas davam a ver a relação en-
tre eles. Por isso que a leitura de um desenho complexo, como os
motivos nas redes, produz uma narrativa de diferentes caminhos, os
caminhos do olho do periquito (txed bedu kene); da pata da onça (inu
tae kene); ou do rabo de jacaré (kape hina kene), caminhos estes que
às vezes se cruzam, outras vezes se tocam. E todos estes motivos,
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 15

caminhos, imagens e padrões remetem no fim à grande pele cósmica


da jiboia (dunuã), que une todos os seres.
Lembro que Lux achava tudo isso muito exótico. Mas quando ela
mesma foi para o Oiapoque, no extremo Norte da Amazônia Oriental,
ela voltou de lá falando da grande anaconda que conecta tudo. “Só ago-
ra”, disse ela, “entendo de que estavam falando vocês, meus orientan-
dos.” Neste mundo amazônico tudo tem a ver com o mundo invisível,
com os encantados, como dizem os povos do Oiapoque. Então, por
mais que existam evidentes continuidades, acho muito interessante
também ficarmos atentos às diferenças estilísticas, de estilo de vida e
de arte, de povos e coletivos de povos.
Na floresta muita coisa se esconde, por isso é preciso imaginar
para ver, é preciso licitar, provocar a sua revelação. Tenho trabalhado
bastante sobre esta arte da sugestão, de sugerir sem mostrar totalmen-
te. E as teorias da visão amazônica, como aquela expressa por Davi
Kopenawa em A queda do céu (2010), enfatizam isso também. Como
afirma Kopenawa (2010), para ver os Xapiri, os seres-imagens, auxi-
liares do xamã, é preciso primeiro ser visto por eles. Isso também vale
para Yube, o ancestral, dono das jiboias e anacondas, é preciso primeiro
ser visto por ele para poder vê-lo na experiência visionária.
No Cerrado, por outro lado, tem-se uma visão ampla do todo. E
nesta paisagem predominam aldeias com grandes formas circulares e per-
formances coletivas impressionantes. O mesmo vale para o complexo do
Xingu, em cujos grandes rituais interaldeãs desfilam belos conjuntos mo-
nocromáticos que complementam ou contrastam com outros conjuntos.
Trinta anos depois da publicação de Grafismo indígena, editei –
com Carlo Severi – um livro que considero um sucessor deste clássico.
O livro se chama Quimeras em diálogo, figuração e grafismo nas artes indíge-
nas; e dele participam as pessoas que, naquele momento, na primeira
década de 2000, estavam trabalhando com grafismo indígena no Brasil.
Tem também um artigo de André Demarchi sobre pintura Mebengokre,
e, naquele artigo, André traz um complemento para a leitura de Lux
Vidal, mostrando como entre os Kayapó o desenho não somente co-
munica, mas também age sobre os corpos das pessoas.
16 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

A proposta editorial do livro é mostrar a mudança que se deu


na abordagem da antropologia da arte entre os anos 1980 e 2000,
de uma ênfase na comunicação e no sistema simbólico para a praxio-
logia e o estudo da eficácia da imagem. Esta mudança de um repre-
sentacionalismo para um presentacionalismo acompanha mudanças
paradigmáticas, teóricas, na própria disciplina e nas ciências sociais
e humanas em geral.
A obra Arte e agência, de Alfred Gell (1998), teve um impac-
to muito grande nesta virada, mas o que tenho tentado mostrar nos
meus escritos é o quanto esta virada já estava prefigurada na própria
etnologia ameríndia e seus estudos sobre artefatos, pessoas e imagens.
A relação entre artefatos e pessoas, por exemplo, onde os artefatos
incorporam capacidades agentivas de seres vivos e são, portanto, pro-
duzidos e pensados como quase-corpos, está presente na literatura et-
nológica bem antes da chegada do paradigma da agência da arte através
de Gell. Como exemplo, podemos citar a descrição por Lucia Van Vel-
them (2003) do tipiti, que é como uma cobra constritora, só que sem
cabeça e sem rabo. O tipiti é, portanto, um animal incompleto, despe-
daçado. Um instrumento, artefato, é assim um ex-proto ou quase-ser
vivo, como atestam os mitos da “revolta dos objetos” coletados por
Lévi-Strauss nas Mitológicas. Corpos (de animais e gente) e artefatos
possuem donos distintos, mas são feitos através de técnicas similares
(LAGROU, 2009). Corpos são, assim, adornos para os Nambiquara
Mamaindê (MILLER, 2007; 2018) e para muitos outros povos amerín-
dios (LAGROU, 2016).
Desse modo, vivemos num mundo habitado por intencionalida-
des outras que se materializam em artefatos, animais, plantas e outros
fenômenos visíveis e invisíveis. O modo como estes seres se relacio-
nam tem a ver com o modo como eles se dão a ver, e tudo isso leva a
uma estética relacional bem especificamente amazônica.
Outras obras vão, depois, levar adiante os insights de autores
como Gell e Strathern. Um exemplo é o livro editado por Martin
Holbraad e colegas em 2007, chamado Thinking through Things (Pen-
sar através das coisas). Na introdução para esse livro surge, pela pri-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 17

meira vez, a expressão “virada ontológica” para falar da radicalização


da empreitada antropológica no sentido de levar outras ontologias a
sério. E uma das consequências desta abertura para o pensamento de
outros tempos e lugares é que coisas e imagens podem passar a signifi-
car “coisas” muito diferentes de acordo com o contexto no qual estão
inseridos. Assim, Holbraad (2007) vai dar o exemplo do uso do pó nos
rituais afro-cubanos, onde pó e poder são significados de modo indis-
sociável pela palavra axé.
Exemplos para pensar segundo essas linhas abundam na etno-
logia ameríndia, e não é assim, por acaso, que a etnologia ameríndia
contribuiu em grande medida para esta virada ontológica na disciplina.
Em artigo recente, fiz uma tentativa de arqueologia deste debate a par-
tir da antropologia feita no Brasil (LAGROU, 2018b). E o que vemos é
que o Brasil teve esta vocação para a inversão copernicana de perspec-
tivas desde os primeiros escritos dos viajantes lidos por pessoas como
Montaigne e la Boetie, passando por Lévi-Strauss e Clastres; este, por
sua vez, influenciando Deleuze.
Para surgir o conceito de perspectivismo formulado por Viveiros
de Castro, muita gente pensou junto sobre como entender o xama-
nismo, como entender um modo diferente de conceber as relações
entre natureza e cultura, entre humanos e não humanos; onde a na-
tureza é animada e não objetivada, e onde humanos coabitam em vez
de destruir. Este contexto cosmopolítico, do antropoceno, época em
que o humano passou a dominar e modificar o planeta de tal maneira
que coloca sua sobrevivência em perigo, tornou a estética e ética do
viver ameríndio muito relevantes para a ciência e para o mundo das
artes, antenados nas questões políticas urgentes do momento. Pois es-
tes coletivos coevoluíram com a Floresta e o Cerrado, e foram corres-
ponsáveis pela biodiversidade que ambas as regiões hoje apresentam.
O estudo da estética ameríndia, na sua relação com a Etnologia e a
Antropologia da arte, tem à sua disposição um material riquíssimo,
ainda pouco explorado, para contribuir com este renovado interesse
na antropologia das imagens, das figurações e das figuras, das coisas e
suas relações com as pessoas.
18 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Tenho usado o conceito “estética relacional” para me referir à


estética ameríndia. Mas é preciso diferenciar a estética relacional ame-
ríndia da estética relacional de Nicolas Bourriaud, que cunhou este
rótulo para falar de um movimento dentro da arte francesa dos anos
1990 (1998). Bourriaud queria chamar a atenção para uma arte que
fala das relações sociais em ambientes urbanos, ou melhor, uma arte
que suscita estas relações, relações de convivência fugidia, festiva, pas-
sageira, de intensa participação do público, uma volta da atenção aos
pequenos prazeres da intersubjetividade cotidiana, longe das grandes
utopias dos anos 1960.
Por mais que possam existir conexões parciais entre esses
dois usos do termo, as diferenças são mais marcantes, porque a
estética ameríndia tem tudo a ver com a necessidade de criarmos
novas utopias a nos ajudar a inventar novos mundos, e isso implica
reconhecer as intensas relações que os humanos têm com seres não
humanos que habitam o Cerrado, as florestas, as montanhas e os
mares. Uma estética relacional ameríndia implica uma cosmopo-
lítica (STENGERS, 2010; SZTUTMAN, 2012), e a cosmopolítica
praticada pelos (e pelas) xamãs ameríndios(as) implica uma sofisti-
cada estética relacional que visa tornar perceptível, visível, audível
ou tátil, a teia de aranha que amarra os seres (INGOLD, 2011),
que revela os efeitos das ações de uns sobre os outros e que ensina
como atar e desatar os nós. A teoria agentiva ameríndia não opera
com circuitos curtos de causa-efeito, mas permite examinar as re-
verberações quase imperceptíveis às pessoas comuns, mas decisivas
para a saúde das pessoas, dos coletivos e do mundo ao nosso redor
(BATESON, 1972) para uma crítica à lógica de pensamento curto
no mundo ocidental).
A estética relacional ameríndia dá a ver determinada concepção
sobre o que é uma relação e o que são pessoas, incluindo nesta rede
relacional as pessoas não humanas. Além desta extensão da noção de
intencionalidade a seres além do restrito universo humano, estamos
num universo onde a noção de pessoa com a qual lidamos é fractal.
Como mostrado por Roy Wagner para a Melanésia (1991), no caso
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 19

da pessoa fractal as relações são internas e externas às pessoas. Deste


modo, superamos a oposição indivíduo/sociedade. E é esta constitui-
ção relacional da pessoa que a arte dá a ver de um modo muito mais
sugestivo do que ilustrativo.
Marilyn Strathern mostrou como na Melanésia as formas dão
a ver as relações: crianças, inhames e colares de conchas são o resul-
tado de relações de colaboração entre pessoas do mesmo sexo e de
sexo cruzado. Na Amazônia Ocidental, por outro lado, o que as formas
dão a ver são as próprias relações, não seus resultados. Mas é possível
que no centro do Brasil, com sociedades que possuem elaborados ri-
tuais em termos de sistemas de trocas entre grupos sociais internos
aos sócios, estejamos mais próximo da Melanésia e seu igualitarismo
competitivo do que da Amazônia e seus poderes ocultos nas alianças
invisíveis do xamã com seres não humanos. E, neste caso, vale retor-
nar a Marcel Mauss (1923) e sua teoria sobre a dádiva, onde é o hau
das coisas doadas que mantém um circuito sempre aberto de pessoas
interconectadas vivo e saudável, porque, quando o fluxo de partilha e
troca de substâncias e presentes para, a malha começa a se desfazer, e
os coletivos com ela.

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Capítulo 2

As manifestações artísticas dos indígenas nos museus


Keyde Taisa da Silva12
Poliene Soares dos Santos Bicalho13

O Brasil é um país de raízes culturais bastante diversas, já que


concentrou características de vários povos, distintos entre si, em seu
território; mas que teria dado origem a uma população homogênea,
arvoram os discursos de uma certa historiografia de caráter mais ofi-
cial. Apesar de tal fator ser bastante relevante para uma ideia de nação
que começou a ser gestada no século XIX (RENAN, 1997; HOBSBA-
WN, 1990), ainda subsiste considerável desconhecimento nacional so-
bre os primeiros habitantes das terras tupiniquins, que, atualmente (e
desde sempre), fazem parte das nossas raízes culturais, mas, também,
integram a população brasileira.
Por muito tempo, um determinado grupo dessa historiografia
de caráter mais oficial, assim como diferentes setores do Estado e da
sociedade brasileira, desprezou a existência dessas etnias, que eram
(e, em certa medida, ainda são) consideradas inferiores, e, portanto,
não possuíam espaço no cenário nacional. Porém, nas últimas décadas,
o que se tem visto é um crescente movimento de luta e de reconhe-
cimento dos direitos dos povos indígenas; e a participação destes na
formação da nação brasileira, valorizando-se o uso sustentável de suas
12
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Territórios e Expressões Culturais no
Cerrado da Universidade Estadual de Goiás − TECCER/UEG.
13
Doutora em História Social e professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Territórios
e Expressões Culturais do Cerrado (TECCER) da UEG.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 25

terras, sua contribuição para a preservação do meio ambiente, seus


hábitos e culturas, embora tudo ainda muito sutilmente e com muitos
percalços pelo caminho.
Muitos são os interesses pela produção indígena em vários seg-
mentos, como a cultura e as manifestações religiosas, conhecimentos
milenares, que, constantemente, são alvos de estudos científicos, ma-
térias televisivas, entre outras maneiras de exposição direcionadas aos
não indígenas. Desses interesses, um bastante complexo são as “artes”
produzidas por várias etnias atualmente. São manifestações expressas,
em sua maioria, por grafismos e artefatos que possuem as mais com-
plexas organizações, que tecem teias de significados (GEERTZ, 1989)
distintas a cada povo, revelando identidades também distintas, que não
são compartilhadas por todas as etnias14 da mesma maneira, e que se
caracterizam pela unicidade e a independência.

Por que falar sobre artes indígenas...


O conceito de “arte”, para caracterizar as produções indígenas,
está envolto em uma grande discussão teórica, já que no meio indígena
não existe uma palavra ou expressão que exprima o significado ociden-
tal de arte. “Não somente não têm palavra ou conceito equivalente aos
de arte e estética em nossa tradição ocidental, como parecem repre-
sentar, no que fazem e valorizam, o polo contrário do fazer e pensar
do Ocidente neste campo” (LAGROU, 2010, p. 1), já que, para os in-
dígenas, todo objeto ou traçado construído precisa ter uma função no
seu cotidiano, não havendo, assim, a criação de algo belo simplesmente
para ser contemplado.
Porém, mesmo não havendo a preocupação “com o que vem a
ser chamado de fruição estética entre nós” (LAGROU, 2010, p. 1), há
14
Os dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010 falam em
896.917 pessoas indígenas existentes no Brasil, subdivididas em cerca de 255 povos diferenciados,
segundo o Instituto Socioambiental, o que corresponde o 0,47% da população brasileira. A Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) reconhece o correspondente a 0,4% da população brasileira e o número
de 734 mil pessoas, utilizando dados de 2000. In ISA – Quantos são? Disponível em: https://pib.so-
cioambiental.org/pt/Quantos_s%C3%A3o%3F. Acesso em: 24 nov. 2018, às 7:46h; FUNAI. Quem
são? Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao. Acesso em: 21
nov. 2018, às 7:42h.
26 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

uma preocupação entre os indígenas em fabricar adornos e utensílios


que pareçam agradáveis aos olhos deles e dos outros, portanto, o que
se percebe é que, mesmo não partilhando conosco os mesmos concei-
tos de estética e de beleza, não quer dizer que “outros povos não teriam
formulado seus próprios termos e critérios para distinguir e produzir
beleza” (LAGROU, 2010, p. 1).
Ao abordar sobre o tema ao longo do tempo, Lagrou (2010) diz
que a produção artística urbana e erudita já se distancia da apreciação
do “belo”, que marcou a origem da filosofia moderna sobre arte e esté-
tica no século XVIII. Segundo a autora:
Muito do que é produzido na vertente, hoje em dia dominante, da
arte conceitual tem mais a ver com o questionamento de tal defini-
ção do que com sua afirmação. O que estes artistas visam com sua
obra é provocar um processo cognitivo no espectador que se torna,
desta maneira, participante ativo na construção da obra, à procu-
ra de possíveis chaves de leitura. Quanto mais complexas e menos
evidentes as alusões presentes na obra, mais esta será conceituada
(LAGROU, 2010, p. 1).
Nesses parâmetros, a obra de arte não serviria apenas para ir-
radiar sua beleza aos olhos dos contempladores, mas agiria sobre as
pessoas, produzindo nelas reações distintas. Referenciando as palavras
de Gell (1996), Els Lagrou enfatiza que “se fôssemos comparar as ar-
tes produzidas pelos indígenas com as obras conceituais dos artistas
contemporâneos, encontraríamos muito mais semelhanças do que à
primeira vista suspeitaríamos” (LAGROU, 2010, p. 1). Ainda segundo
Lagrou (2010, p. 1), os artefatos e grafismos marcam o estilo dos gru-
pos indígenas que o produzem, “se tornando materializações densas de
complexas redes de interações que supõem conjuntos de significados”.
Para a autora, “são objetos que condensam ações, relações, emoções e
sentidos, porque é através dos artefatos que as pessoas agem, se rela-
cionam, se produzem e existem no mundo” (LAGROU, 2010, p. 1).
Nesse sentido, Lagrou (2010) observa que os objetos produzi-
dos pelos indígenas conseguem cristalizar ações, valores e ideias, assim
como acontece na arte conceitual, e, ao mesmo tempo, atendem aos
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 27

conceitos de beleza e perfeição formal que provocam apreciações va-


lorativas. Neste sentido, o desconhecimento, entre eles, do conceito
que nós temos de arte não deveria implicar a visão, equivocada, de que
eles desconhecem e/ou executam produções artísticas, ainda que de
acordo as suas próprias cosmovisões.
Quanto ao desconhecimento acerca das produções indígenas pe-
los não indígenas, Velthen (2010) traz uma contribuição bastante re-
levante. Segundo ela, a dificuldade do reconhecimento da produção
artística dos indígenas, frente ao cenário nacional:
[...] talvez resida no fato de que, nas cidades, as pessoas experimen-
tam certa estranheza ao se deparar com expressões artísticas formula-
das segundo critérios não hegemônicos. Nesse confronto devem dis-
cernir a origem da valoração estética de um artefato que se organiza
através de materiais, palavras, usos, hábitos, mobilidades e contextos
completamente diversos dos habituais (VELTHEN, 2010, p. 6).
A estranheza causada pela exposição ou classificação da produção
indígena como arte, certamente, se deve à concepção e à execução de
tais produções, que não partem das mesmas premissas cultivadas pelo
pensamento ocidental sobre a que seria a “arte” e a sua finalidade. Po-
rém, a discussão acerca da temática que circunda o conceito de “arte” é
muito complexa. Ela possui um simbolismo herdado da sociedade que
a produziu e, geralmente, só poderemos compreender os seus signos
a partir da compreensão da sociedade da qual ela se originou. Vidal e
Silva (1992) buscam amparo na Antropologia para compreender esse
simbolismo. Segundo elas:
Os antropólogos possuem uma maneira específica de abordar as ma-
nifestações artísticas e estéticas. Desde os trabalhos de Boas, Mauss,
Lévi-Strauss e, mais recentemente, Victor Tuner e Geertz, sabemos
que, se queremos entender o simbolismo da arte, precisamos enten-
der a sociedade. Segundo esses autores, nas sociedades pré-indus-
triais, a ambição da arte é significar e não apenas representar. Por isso
a arte envolve todo um sistema de signos compartilhados pelo grupo
e que possibilita a comunicação (VIDAL; SILVA, 1992, p. 281).
André Demarchi (2009, p. 179) sintetiza essa discussão na se-
guinte frase: “Toda uma tradição antropológica se funda então na abor-
28 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

dagem da arte como um sistema simbólico, uma linguagem visual, que


deve ser apreendida através do entendimento da sociedade.” No con-
texto de tal citação, o autor se referia à arte de forma geral, porém,
ela é perfeitamente cabível à discussão que ora se delineia. Quando
nos referimos à temática indígena, compreender a sociedade na qual a
arte está inserida é essencial para que a apreendamos e aprendamos a
pensar a partir de outras realidades, para além da perspectiva ocidental
de arte; uma vez que, no universo indígena, ela é também carregada de
simbologia, mesmo trazendo consigo uma finalidade prática inerente
ao cotidiano da etnia que a produziu.
Nessa perspectiva, a obra de Mario Pedrosa (1975) traz con-
tribuições que nasceram bem antes de toda essa discussão atual ser
delineada. Em meados do século XX, Pedrosa já fazia questionamentos
sobre a existência de traços indígenas na arte brasileira, e se referia aos
mesmos como “arte” existente desde a ocupação colonial do Brasil, mas
esquecida por muito tempo, voltando à tona apenas simultaneamente
à identificação de uma nova fase da arte brasileira, a pós-modernidade.
Corrêa (2016), interpretando as ideias de Mario Pedrosa, enfati-
za como o autor relaciona a expansão da arte produzida por indígenas,
enquanto manifestação artística, no contexto da pós-modernidade:
Pedrosa propõe que se pensem as condições e processos artísticos
contemporâneos a partir de certos aspectos da arte indígena, o que
significa que ele também propõe a compreensão da arte indígena a
partir de sua experiência da arte contemporânea no Brasil.
Nesses escritos, a produção indígena não é um conjunto inerte de
objetos ou imagens, mas emerge como trama entre materialidade e
capacidade agentiva, como processo eficaz de presentificação, con-
densação e deslocamento de relações sociais, modo de conhecimen-
to e exercício de restrições e liberações, enfim, como acesso a uma
reinvenção constante da coletividade. Tais percepções são claramen-
te ativadas pelos anseios, sucessos e fracassos que ele identificava na-
quilo que, já em 1966, chamava de arte pós-moderna (CORRÊA,
2016, p. 325).
A arte brasileira, de forma geral, não reconhece a participação
indígena em sua constituição, pois o indígena ainda é tratado como um
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 29

integrante da memória do país situada no passado, sendo quase que


automaticamente excluído do presente, não se admitindo, então, que
ele possa ser produtor de qualquer tipo de arte. Dessa forma, segundo
Corrêa (2016, p. 324), “a arte indígena, como complexo de formas e
relações vivas, perde toda efetividade e atualidade para a compreensão
da arte brasileira, o que revela a marca da colonialidade em sua elabo-
ração histórica”.
A desconsideração de qualquer contribuição indígena para as
narrativas históricas brasileiras possui um caráter muito mais amplo
do que somente a negação das suas produções artísticas. Para Santos
(2009, p. 52), devemos perguntar até que ponto “a nulificação do indí-
gena como agente artístico nas mais importantes narrativas históricas
então produzidas sobre a arte brasileira não corroborava seu exílio do
Brasil, no contexto mais amplo de um epistemicídio”. Para o autor, o
extermínio das representações indígenas em suas mais variadas for-
mas, inclusive dos sistemas efetivos de produção do conhecimento, se
tornou uma eliminação paralela mais eficaz do que a prática genocida
de suas populações.
Assim, é perceptível que o fato de a negação das contribuições
indígenas para a formação da nação brasileira, assim como na arte bra-
sileira, deve-se ao cerceamento obscuro e à marginalização destes ato-
res sociais do processo de constituição de nossa nacionalidade; pois,
se nos atentarmos aos fatos históricos, perceberemos que a existência
indígena em terras brasileiras tende sempre a ser obliterada, isto quan-
do não são tratados como entraves ao desenvolvimento a ser superado
(entenda-se: integrados, assimilados, desfragmentados étnica e cultu-
ralmente, fragilizados, ou mesmo, dizimados).
A produção artística indígena possui significados distintos para
cada atividade, assim como na noção de arte ocidental, que produz
representações de imagens muitas vezes desfocadas da realidade em
função de uma ideia a ser transmitida. Os desenhos corporais indígenas
são bons exemplos de tal situação, já que podem ser entendidos como
desdobramentos da personalidade daquele que tem sua pele pintada
em algum ritual. Sobre essa trama de significações, Corrêa (2016) usa
30 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

da análise das memórias de Lévi-Strauss para ilustrar como as pinturas


assimétricas feitas pelo povo Kadiwéu seriam um modo de sonhar so-
luções para alguns problemas bastante reais inerentes à sua sociedade.
Neste sentido, a autora, interpretando Lévi-Strauss, afirma:
As rígidas castas hereditárias e endogâmicas dos kadiwéu faziam a na-
talidade cair a ponto de pôr em risco sua existência. As pinturas sim-
bolizariam uma solução que eles conheciam através de outros grupos
étnicos, como os guaná que foram seus servos, mas não puderam
ou quiseram adotar: a divisão das castas em metades com regras de
casamento invertidas, o que dinamizaria a procriação através de uma
espécie de equilíbrio assimétrico por divisões e rebatimentos sociais
(CORRÊA, 2016, p. 329).
Para Lévi-Strauss, o que faltou no plano social dos indígenas para
a perpetuação da comunidade foi experimentado no plano simbólico,
através das pinturas e da representação de outra configuração social,
sendo que, como “não podiam tomar consciência dele e vivenciá-lo,
puseram-se a sonhá-lo. Não de forma direta, que teria se chocado com
seus preconceitos, de forma transposta e na aparência inofensiva: em
sua arte” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 186). Dessa maneira, a arte pode
ser vista para além de uma ferramenta da vida social dessas comunida-
des, já que a pintura, nesse contexto, foi apropriada de forma utópica
por esta sociedade.
Nessa perspectiva, Pedrosa (1975) analisa a diferença entre a
arte realizada pelos indígenas em questão e a arte feita por artistas
cubistas, que se pautavam na representação de uma realidade defor-
mada. Para ele:
Apesar de todo o seu empenho em fugir a uma arte de representa-
ção, o cubismo, mesmo picassiano, não deixou de ser, na deformação
da imagem ou da figura, uma arte de representação. Na arte dos
caduceus, porém, o que é deformado é uma imagem dada, a matéria
dada, ou a realidade. A arte picassiana é apenas uma deformação da
representação da realidade. A diferença é fundamental (PEDROSA,
1975, p. 222).
Nessa perspectiva, os artistas dessa corrente, estando preocupa-
dos com a beleza, a vitalidade plástica, qualidades estruturais de obje-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 31

tos retirados de sua função social e coletiva, não perceberam o caráter


agentivo e participante de tais objetos no contexto cultural de suas res-
pectivas etnias, sendo essa arte “a própria realidade, ou uma das fontes
de criação dessa realidade” (PEDROSA, 1975, p. 222). Para o autor,
os artistas atuais, diferentemente destes outros, estariam voltados para
essa capacidade artística, de realizar ações e conduzir a sociedade a
comportamentos coletivos.
Os pós-modernistas,15 na perspectiva de Pedrosa, estariam em
busca de uma equivalência de sua arte com a arte africana ou a indíge-
na, aproximando-a da capacidade agentiva, pois, a sociedade de massa
transforma o trabalho artístico em algo isolado e sem ressonâncias co-
letivas. Para o crítico, o artista da década de 1960 buscava se libertar
das amarras do mundo capitalista, depois de ter descoberto uma arte
participante nas culturas tribais. “O artista de hoje, com algo de um
desespero dentro dele, chama os outros a que deem participação ao
seu objeto” (PEDROSA, 1975, p. 225).
Corrêa (2016) encontra em Pedrosa a observação de “tendên-
cias coletivistas, performativas, ambientais e corporais, além daqui-
lo que descrevera como uma ansiedade, um desespero dos artistas
por refazer os vínculos sociais do trabalho de arte para além das
tramas do capitalismo” (CORRÊA, 2016, p. 331). Para a autora, o
modelo de arte agentiva e comunitária, presente na produção indí-
gena, marca a visão de Pedrosa em sua conexão com a arte pós-mo-
derna, que também será encontrada em outras comunidades, como
os hippies, por exemplo.
Nesse sentido, considerando as marcas da produção indígena em
outras produções, e o quanto há de comum entre o que é produzido
nessas comunidades e o que se produz como arte em outros âmbitos

15
O movimento pós-modernista se caracterizou por mudanças nas ciências, nas artes e nas sociedades
desde os anos 1950. Ele traz uma ruptura com a representação perfeita do real, a partir do surgimento
de novas linguagens, para não mais representar, mas interpretar livremente a realidade, segundo sua
visão, diferenciando a arte da realidade. “O movimento pós-modernista se caracterizou por mudanças
nas ciências, nas artes e nas sociedades desde os anos 1950. Ele traz uma ruptura com a representação
perfeita do real, a partir do surgimento de novas linguagens, para não mais representar, mas interpre-
tar livremente a realidade, segundo sua visão, diferenciando a arte da realidade” (LYON, 1998, p. 35).
32 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

sociais, não seria muito adequado adjetivar a arte produzida nas socie-
dades indígenas como “arte indígena”, pois, tais artes, com caracterís-
ticas muito semelhantes às produzidas na pós-modernidade brasilei-
ra, não precisariam ser categorizadas ou classificadas, pois o que eles
produzem neste âmbito é arte, indubitavelmente, embora com suas
próprias especificidades etnoculturais.

As artes dos indígenas no museu


Museus são instituições que possuem em si a possibilidade de
oferecer às pessoas, de diferentes classes sociais, o acesso à informação
e à educação. Neles é possível se travar um diálogo entre diferentes
códigos culturais. No interior de um museu é possível encontrarmos
representações culturais de diferentes grupos étnicos, tanto os majo-
ritários quanto os minoritários. Assim, configuram oportunidades de-
safiadoras que oportunizam o desenvolvimento da percepção, da emo-
ção, do conhecimento, além de confrontar diferentes óticas para um
mesmo fenômeno, fomentando diálogos.
Sob a perspectiva da Nova Museologia, que vem se consolidando
desde o fim da Segunda Guerra Mundial, principalmente nos anos
1970 e 1980, os museus têm se tornado espaços nos quais se tecem mi-
cro-histórias, memórias e patrimônios, e são também lugares de falas e
vozes de grupos outrora subalternizados pela história oficial. Esta nova
ótica tem possibilitado o surgimento dos “ecomuseus, museus regio-
nais, comunitários, de cidade e outros que proliferam e se expandem
no ideal de museu ou patrimônio integral” (CURY, 2016, p. 12).
A partir de uma exposição, um museu pode facilitar a com-
preensão da diversidade cultural, já que terá exposto artefatos que fa-
zem parte de um modo de vida, criados a partir de materiais e técnicas
que serão familiares ou estranhas à realidade dos visitantes. Essa possi-
bilidade de contato com o igual e/ou o diferente, no museu, propicia
desafios e leva o visitante a interagir com a riqueza e a natureza de
aspectos culturais impressos no discurso expositivo.
Nesse sentido, a questão da exposição de artefatos indígenas em
museus pensados por não indígenas e, até mesmo, pelos próprios in-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 33

dígenas, traz novo ânimo à discussão acerca do pertencimento ou não


pertencimento de sua produção no âmbito das artes. Neste cenário, os
museus etnográficos, acompanhando as mudanças propostas pela Nova
Museologia, vêm se renovando a cada dia.
A formação das coleções se adapta a uma nova ética e protocolo de
trabalho, novas formas de representar e expor vão se formando,
outras problemáticas surgem, e o comprometimento com os povos
indígenas vem se formando e apoiando iniciativas de reivindicações
por direitos e reconhecimento desses povos. [...] No pós-Segunda
Guerra Mundial esse Museu assume um papel político de combate
ao racismo e construção da paz, incorpora o caráter de museu como
prática social e torna-se a formulação de um modelo museal [...]
(CURY, 2016, p. 12).
Nesse contexto, observa-se que os artefatos expostos em mu-
seus encontram-se intrinsecamente relacionados às histórias e às cultu-
ras de seus criadores. Podem ter sido parte de rituais ligados ao nasci-
mento, casamento ou até mesmo à sobrevivência, de alguma maneira.
Esses objetos são portadores de uma história e, por sua vez, também
geram uma história. Para Frange (1998), a relação entre observador e
a exposição é regida por trocas, uma vez que:
[...] nossos corpos vêem e se fazem ver. Somos videntes e visíveis.
As relações se estabelecem por uma transitividade. O que define o
sujeito é o que está em relação ao objeto. O que define o objeto é o
que está em relação com o sujeito. Isto significa que as unidades se
dão pelas relações (FRANGE, 1998, p. 8).
Quando uma série de objetos é exposta em um museu, há a
proposição de contato com valores, diversidade e culturas diferentes
daquela do observador. Esse fato faz reconhecer a importância das
múltiplas vozes envolvidas no ato de contar histórias, talvez até várias
versões de uma mesma narrativa. Quando se expõe detalhes de uma
cultura em um museu, proporciona-se, a qualquer pessoa, a possibi-
lidade de conhecer um pouco daquela cultura ali evidenciada. Deste
modo, “dar voz aos indígenas e orientar-se por suas perspectivas cons-
tituem um modelo museal de prática social. Assim, da formação das
coleções às exposições a presença indígena é essencial” (CURY, 2016,
34 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

p. 13), porque ninguém mais do que eles próprios está preparado


para falar sobre os seus artefatos e as suas significações, nos âmbitos
cultural e social.
Para Frange (1998), esse conhecimento é a ferramenta para a
significação, pois é a partir dele que podemos formular um entendi-
mento sólido sobre determinado assunto. Segundo ele:
Conhecer é fazer significar, é dar a ver as relações que são pres-
supostas por um percurso gerativo de sentido. Compreender arte
significa formular um entendimento; construir um conhecimento
alicerçado na intuição, em atos de percepção e em uma trajetória
de conhecimentos inteligíveis e sensíveis, quero dizer, uma condi-
ção interdisciplinar perfurada pelos contágios significantes e patê-
micos. As paixões são transformadoras de ações, são modalizações
de estados: de amor, ambição, medo, espera, cólera, desejo, de-
cepção, inveja, rancor, presentes na arte contemporânea, tanto nos
textos visuais quanto nos nossos encontros e desencontros com eles
(FRANGE 1998, p. 8).
Esse conhecimento no museu é criado através da exposição de
artefatos e de informações acerca de sua origem e do contexto ao qual
pertenceu, o que requer, cada vez mais, a presença dos próprios indí-
genas nas curadorias, “em meio a processos colaborativos e participati-
vos” (CURY, 2016, p. 123). O contexto no qual o artefato foi produzi-
do se torna essencial para a compreensão do seu sentido e significado,
especialmente na era pós-moderna da arte, que vivenciamos atualmen-
te. A obra de arte, na visão contemporânea, se constitui a partir da sua
qualidade estética, mas também por um conhecimento do seu contex-
to, ambos estão interligados e não existem separadamente. Ao reforçar
a necessidade de conhecimento, que Frange (1998) anuncia, Parsons
(1998) enfatiza o caráter simbólico dos objetos criados a partir do seu
contexto social. Segundo o autor:
Uma obra, sob o ponto de vista contemporâneo, é mais um obje-
to simbólico do que puramente estético, cuja interpretação depen-
de em parte do que pode ser visto em si e em parte do contexto
cultural. A interação do que pode ser visto e um conhecimento do
contexto acontece na interpretação; e uma resposta adequada para
uma obra de arte, podemos dizer, requer interpretação ao invés de
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 35

apenas percepção. A interpretação inclui a percepção, mas vai além


(PARSONS, 1998, p. 4).
Quando uma peça é parte de um museu, a lacuna entre o estí-
mulo que o autor ou artista teve para produzir a obra e a interpreta-
ção do fruidor é reduzida e, dessa forma, permite a expressão de uma
infinidade de significados e interpretações. A apreciação permite que
as pessoas façam contato com a arte e a cultura em um processo
dinâmico de diálogo e criação. Porém, a apreciação vai além da sim-
ples contemplação. É necessário que haja uma percepção do que é
observado. Para isso, é preciso criar uma experiência própria entre
o espectador e a obra. Dewey (1974) discorre sobre tal necessidade,
tratando da arte de forma geral. Neste sentido, compreender os por-
menores, quando se trata de arte na perspectiva indígena, é muito
relevante, por se tratar de outra cultura e de outra percepção de arte.
Segundo ele:
[...] para perceber, um espectador precisa criar sua própria expe-
riência. E sua criação tem de incluir conexões comparáveis àquela
que o produtor original sentiu. Não são as mesmas, em qualquer
sentido literal. Não obstante, com o espectador, assim como com
o artista, tem de haver uma ordenação dos elementos do todo que
é, quanto à forma, ainda que não quanto aos pormenores, a mes-
ma do processo de organização que o criador da obra experimentou
conscientemente. Sem um ato de criação, o objeto não será percebi-
do como obra de arte. O artista selecionou, simplificou, clarificou,
abreviou e condensou de acordo com o seu desejo.
O espectador tem de percorrer tais operações de acordo com seu
ponto de vista próprio e seu próprio interesse. Em ambos tem lugar
um ato de abstração do que é significativo. Em ambos, há compreen-
são, em sua significação literal, isto é, um ajuntar minúcias e parti-
cularidades fisicamente dispersas em um todo experienciado. Há um
trabalho realizado pelo que percebe, assim como pelo artista.
Aquele que, por ser demasiadamente preguiçoso, frívolo ou obstina-
do nas convenções, não efetue esse trabalho, não verá, nem ouvirá.
Sua “apreciação” será uma mistura de fragmentos do saber em con-
formidade com normas de admiração convencional e com uma con-
fusa, ainda se genuína, excitação emocional (DEWEY, 1974, p. 261).
36 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Esse processo de apreciação faz com que as pessoas se sintam


envolvidas diante da sensibilidade e dos valores daqueles que estão
ali representados. É um encontro, onde vivências e experiências
são aproximadas, tendo a possibilidade de vir a existir um respeito
maior através do conhecimento de algo que antes causava estranheza.
A exposição de objetos de uma determinada cultura em um mu-
seu proporciona o exercício da singularidade, onde se pode pensar e
expressar como sujeitos/atores, não repetindo padrões exteriores,
mas se compreendendo conscientemente no processo como igual e
diferente dos demais.
Nesse ínterim, a existência de museus voltados para a temática
indígena já é um avanço – uma vez que os museus etnográficos renova-
dos, e mesmo os museus indígenas, vêm ocupando lugar de destaque
(CURY, 2016) –, cuja cultura, até pouco tempo atrás, não era conside-
rada enquanto parte fundamental da cultura brasileira. Exposições de
artes indígenas permanentes ainda são reduzidas em quantidade, mas já
configuram avanços importantes, especialmente no âmbito acadêmico,
propiciando a disseminação de conhecimentos construídos através de
pesquisas e estudos científicos nesta área.
Um bom exemplo é o Museu Antropológico da Universidade
Federal de Goiás, fundado em 1970 com a intenção de salvaguardar a
cultura material indígena da Região Centro-Oeste do Brasil, a partir
da exposição de objetos e artefatos oriundos de projetos culturais e
ações de coleta, inventário, documentação, preservação e segurança
de seu acervo, originado de pesquisas antropológicas orientadas pela
universidade. O museu executa ações voltadas para o conhecimento e
disseminação da cultura e artes dos povos indígenas da região, entre
outros grupos sociais; mas o impacto na comunidade ainda é pequeno
em relação a museus dedicados a outras temáticas.
O período pós-Segunda Guerra Mundial é um marco quan-
to aos questionamentos e críticas aos museus tradicionais, afetando
profundamente a visão de museu e a práxis museográfica. Assim, as
décadas de 1960 a 1980 representam a consolidação de uma nova
museologia, com “os ecomuseus, museus regionais, comunitários, de
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 37

cidade e outros que se proliferam e se expandem no ideal de museu


ou patrimônio integral” (CURY, 2016, p. 12). Com a ascensão dos
museus etnográficos:
[...] a formação de coleções se adapta a uma nova forma ética e
protocolo de trabalho, novas formas de representar e expor vão se
formando, outras problemáticas de pesquisa surgem, e o compro-
metimento com os povos indígenas vem se formando e apoiando
iniciativas de reivindicações por direitos e reconhecimento desses
povos (CURY, 2016, p. 12).
A própria ideia de museu vem sendo reinventada a partir da
realidade em que se insere. As diferentes óticas étnicas emergem em
direção a uma construção de representações ligadas ao diálogo com
o “outro”, ou à construção de caminhos que não destoem daqueles
do grupo representado. Para Velthen (2012, p. 58), a emergência
de uma “consciência da existência dos museus (e de seus acervos),
enquanto lugares onde novos significados podem ser atribuídos aos
movimentos de preservação cultural e de afirmação de identidades”,
é de suma importância e surge em um contexto bastante propício,
a pós-modernidade.
Nesse ínterim foi que os indígenas descobriram os museus e
vêm se apropriando deles como importante instrumento de forta-
lecimento de suas culturas e identidades étnicas, assim como, tam-
bém, importante espaço de difusão de suas artes e de seus sentidos e
significados. Para José Ribamar Bessa Freire (1999), tudo começou
na década de 1980, com a criação do Museu Magüta, na cidade de
Benjamin Constant, Amazonas, pelo povo Ticuna.
A esses museus, organizados e protagonizados por indígenas,
são atribuídos sentidos próprios, que rompem o discurso colonialis-
ta e cedem espaço a representações etnoculturais específicas; uma
construção na primeira pessoa do plural, dos povos indígenas sobre
eles próprios (GOMES, 2012). Essa tomada de posição dos grupos
indígenas reforça a mudança de paradigma da exposição feita pela
cultura dominante sobre outras culturas consideradas “menos” im-
portantes, pois “[...] fortalece uma revisão do papel e significado das
38 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

coleções etnográficas ao mesmo tempo que, nestes processos, indí-


genas orquestram a história sob a lógica de seus próprios esquemas”
(SAHLINS, 1997, p. 126).
Especificamente no Brasil, há um movimento de criação de
museus indígenas na década de 1990, o que de fato já existia no
México, para citar um exemplo de constituição de museus por co-
munidades. Em 1995, é criado o Museu Indígena Kanindé, situado
em Aratuba, Ceará; em 2000 temos a criação do Museu Indígena
Aldeia Pataxó, em Santa Cruz de Cabrália, Bahia; o povo Tapeba
criou em 2005 o Memorial Cacique Perna-de-Pau, em Caucaia,
Ceará; em 2007 foi inaugurado o Kuahí – Museu dos Povos Indí-
genas do Oiapoque, Amapá; em 2010 abre-se o Museu dos Povos
Indígenas da Ilha do Bananal – Javaé e Karajá, em Formoso do Ara-
guaia, Tocantins.
Temos ainda informação sobre a existência da Oca da Memó-
ria, iniciativa dos povos Kalabaça e Tabajara, em Poranga; e o Museu
Indígena Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz, ambos no Ceará; no Mato
Grosso temos o Museu Comunitário e Centro de Cultura Bororo do
Meruri (criação em 2001), em General Carneiro; e o Museu Rosa
Bororo (1988), em Rondonópolis. Mais recentemente, foi criada a
Casa da Memória do Tronco Velho Pankararu, por esse povo, situada
em Tacaratu, e foi inaugurado (23 de julho de 2015) o Museu Indí-
gena Pitaguary, em Pacatuba (CE), que faz campanha pela associação
Kickante, divulgada no Facebook, para obter recursos. O Museu
Guarani M’bya, em Paraty, está em formação (CURY, 2016, p. 13).
Esses museus indígenas são, ainda, de um alcance social pe-
queno, mas representam um grande avanço para as comunidades
indígenas e não indígenas brasileiras, pois recontam suas histórias a
partir de um olhar que subverte a supremacia do colonizador; e por
que se tornaram uma força de luta importante para os movimentos
de mobilização dos povos indígenas contemporâneos. Essas expe-
riências remetem às relações intensas entre os espaços de autorre-
presentação e a organização e mobilização desses povos.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 39

Considerações finais
Ao longo da discussão, buscamos abordar a arte na perspectiva
da produção indígena, já que coadunamos com a assertiva de que a arte
é única, logo, é desnecessário adjetivá-la. Tendo em vista a diversidade
de povos indígenas no Brasil, as artes produzidas por estes povos ainda
vivem à margem, assim como as sociedades que as produzem. Trata-se
de uma clara representação da marginalização de sociedades que tive-
ram sua participação na formação da cultura brasileira invisibilizada ao
longo dos séculos.
O que é facilmente apreendido quando fazemos uma retrospec-
tiva histórica e encontramos os indígenas representados, geralmente,
de forma estanque e subalternizada, quando deveriam ser os prota-
gonistas do processo, já que antes da chegada de qualquer europeu ao
continente eles já pertenciam à terra. Contudo, ainda são, em grande
medida, ignorados, e, muitas vezes, dizimados em nome do progresso.
Sua produção artística, advinda de uma cultura que não é a
dominante, não poderia ter outro tratamento, senão a não aceitação
pela cultura dominante, que se vê representada na arte sob uma pers-
pectiva ocidentalizada, e que conserva os traços europeus, os concei-
tos nobres daqueles que são, ainda hoje, tidos como “superiores”. O
próprio povo brasileiro nega suas origens quando aceita e venera as
imposições do colonizador e relega à subalternidade o que é eminen-
temente brasileiro.
Um suspiro de esperança na luta dos indígenas, juntamente com
outros grupos étnica e culturalmente diferenciados, em busca de reco-
nhecimento, pode ser sentido nos museus, que expõem as produções
indígenas, geralmente, com a mesma valoração de outras manifesta-
ções artísticas; e que, nos últimos anos, estão sendo organizados pelos
próprios indígenas, como forma de resistência, de modo a levar ao
conhecimento das pessoas uma cultura que é rica em detalhes e signi-
ficações, como qualquer outra produção artística.
A pós-modernidade trouxe sua parcela de contribuição ao re-
conhecimento, ainda superficial, das produções indígenas como arte,
40 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

já que ressignificou a própria noção do que vem a ser arte, saindo da


contemplação estética puramente e buscando, no contexto no qual
foi produzida, as significações e os sentidos que lhes serão impressos,
numa teia de símbolos e signos que só poderão ser compreendidos
pelo observador se este se dispuser a conhecer a origem de tal obra, se
se permitir submergir em outros mundos e adentrar outros universos.
Portanto, concluímos que o caminho para o reconhecimento das
práticas e produções indígenas, como arte, ainda é bastante extenso e
espinhoso, uma vez que esta é também uma luta contra as raízes colo-
niais do nosso país, que tem por tradição ignorar importantes passa-
gens e personagens de sua história; especialmente aqueles que tendem
a não enaltecer os grandes acontecimentos nacionais, mas, ao contrá-
rio, acabam por questioná-los embrionariamente.

REFERÊNCIAS

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cas com Mário Pedrosa. Viz – Revista do Programa de Pós-Graduação
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São Paulo: Secretaria da Cultura; ACAM Portinari; Museu de Arqueo-
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da Universidade de Brasília, ano 1, n. 1, sem. 1999.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 41

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42 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

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Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém: MCTI/MPEG, 2012. v.
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FAPESP/EDUSP, 1992. p. 279-293.
Capítulo 3

Águas que se cruzam: hãtxu karajá e omágua-yetê anaquiri


Vanessa Hãtxu de Moura Karajá16
Mirna Kambeba Omágua Yetê Anaquiri17

Caminhos de duas mulheres indígenas cotistas

Figura 3.1 Percurso de Vanessa Hãtxu de Moura Karajá

Fonte: Acervo pessoal/Foto: Laine Lobo (2018)

16
Graduanda em pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (FE/UFG). Par-
ticipa da União dos Estudantes Indígenas e Quilombolas (UNEIQ/UFG). E-mail: vns.hatxu@gmail.com.
17
Doutoranda em Arte e Cultura Visual na Faculdade de Artes Visuais da UFG. Participa do grupo de
pesquisa Cultura Visual e Educação (FAV/UFG) e do projeto de pesquisa “Práticas Artísticas Autobio-
gráficas: intersecções entre prática artística, escritas de vida e decolonialidade (FAV/UFG) e “Mídia
indígena: identidade, política e comunicação entre os Jê do Brasil Central (FIC/UFG)”. Tem experiên-
cia na área de Artes, com ênfase em Artes Visuais, atuando principalmente nos seguintes temas: estudos
indígenas, educação da cultura visual, autobiografia e performance. E-mail: mirnaanaquiri@gmail.com.
44 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Eu,Vanessa Hãtxu de Moura Karajá, pertenço ao povo indígena Iny,


“nós”, a forma que nos autodenominamos. Mas, infelizmente, somos mais
conhecidos como Karajá, a nomenclatura dada pelos colonizadores.
Segundo a cosmologia, nós, o povo Iny, viemos do Berahatxi Mah-
ãdu, o povo do fundo das águas do Rio Araguaia, e vivemos ainda hoje às
margens dele, que se localiza nos estados de Goiás, Mato Grosso, Pará e
Tocantins. Falamos a língua Inyrebe, pertencente ao tronco linguístico Ma-
cro jê. De acordo com os Matukari (velhos), existe uma aldeia no fundo
do rio, e lá não há doenças, sofrimentos e nem morte. O povo Iny é muito
conhecido por suas cerâmicas feitas pelas mulheres, as Ritxòkó, ou bonecas
Karajá, que são consideradas Patrimônio Imaterial Brasileiro desde 2012,
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Atualmente, nas comunidades Iny, há um grande número de jo-
vens, eu, particularmente (Vanessa), pertenço à Aldeia Lago Grande. A
cidade mais próxima é o município de Santa Terezinha, no MT. Muitos
jovens Iny estão buscando se fortalecer; e, em busca de melhorias para
suas comunidades, ingressam nas universidades, apreendidas como um
instrumento de luta e, ao mesmo tempo, de resistência!
Sigo compondo na resistência com o meu povo. No ano de 2014
decidi fazer o vestibular e consegui ser aprovada. Foi a primeira vez que
consegui ingressar em uma universidade, na Universidade Federal do To-
cantins (UFTO), no curso de Ciências Contábeis. Deixei com meus pais
meu filho David Vinnycius Mahalani de Moura Karajá, ainda com 2 anos
de idade. Estudei um semestre, mas acabei desistindo do curso. Não me
identifiquei com o mesmo, pois sentia muitas dificuldades nas disciplinas;
não conseguia compreender quase nada.
Logo depois, em 2015, consegui ingressar novamente na univer-
sidade, mas, desta vez, na UFG. Estudei dois semestres, mas engravidei
nesse período; eu, que já tinha um filho, estava grávida de novo. Quando
estava próximo de minha filha nascer, tranquei a faculdade e fui para a
aldeia, pois morava na Casa do Estudante da Universidade e não é permi-
tido a estudantes morarem com crianças na casa.
Foi aí que eu pude perceber que a universidade não é para qualquer
um, e que estudantes mães não se encaixam nesse sistema egoísta. Fui
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 45

para a aldeia do meu companheiro Leomar Wainnê Xerente, que tam-


bém é estudante desta universidade (UFG). Fiquei um tempo na aldeia;
já estava desistindo de continuar o curso, mas sou resistente, voltei para a
universidade. Mas tive de deixar minha filha de apenas um ano na aldeia
Mrâiwahã (TO).
Não foi fácil, eu estava amamentando a minha filha Thayná Waiti
Kuahiru Xerente. Quantas vezes chorei, e ainda choro! Ser estudante,
mãe e indígena não é nada fácil; mas somos persistentes, não sou a pri-
meira nem a última estudante indígena a passar por isso. Esse é um dos
desafios que as mulheres e mães indígenas passam na universidade.
Na UFG existe a creche, mas, infelizmente, não conseguimos esse
acesso para nossas crianças. Mães indígenas e quilombolas, e outras que
também precisam, muitas vezes acabam desistindo de seus cursos.
Atualmente, estou quase me formando no curso de Pedagogia. Em
breve voltarei para minha comunidade e vou retribuir, de alguma forma,
para a Educação Escolar Indígena na minha comunidade.

Figura 3.2 Percurso de Mirna Kambeba Omágua-Yetê Anaquiri

Fonte: Acervo pessoal/Foto: Priscila Aguiar (2018)

As águas de onde eu, Mirna, venho, ficam situadas na região amazô-


nica brasileira. Pertenço ao povo indígena Kambeba Omágua-Yetê, povo da
46 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

água. A cidade mais próxima da Aldeia Amanain do Jaduá é Coari (AM),


onde nasci, em 1985.
O povo Kambeba,18 também conhecido como Omágua-Yetê, ou
povo da água, está distribuído em toda a margem do Rio Solimões. Quan-
do os colonizadores chegaram ao Amazonas, em meados do século XVIII,
o contato com o meu povo não foi nada agradável, pelo contrário, foi
agressivo e muito violento.
Diante da violência, da discriminação, da escravização e dos
massacres ocorridos, muitos parentes deixaram de se identificar como
indígenas, sendo necessário se dispersar para sobreviver. Na década
de 1980, a partir do reconhecimento constituinte da luta pelos seus
direitos, o povo Kambeba volta a se afirmar como indígena (SILVA,
2012). Atualmente, a aldeia Amanain do Jaduá, situada no médio Soli-
mões, juntamente com outros povos originários dessa região, luta pela
demarcação de seu território.
O preconceito que o povo indígena ao qual pertenço enfrentou e
continua enfrentando fez com que o nosso sobrenome indígena Anaquiri
quase desaparecesse. São poucos os parentes que têm esse sobrenome.
O cacique da aldeia, Vitor Marinho Gomes Anaquiri, algumas tias-avós e
algumas primas ainda possuem ou mantêm essa identidade oficialmente.
Em dezembro de 2017 abri um processo na Defensoria Pública do
Estado de Goiás, em Goiânia, cidade onde vivo, solicitando o direito de
ter o sobrenome indígena e minha etnia no registro civil. Recentemente,
recebi a sentença judicial deferindo a ação de retificação de registro civil.
Sigo aguardando os trâmites judiciais.
Meu ingresso na UFG ocorreu com a primeira turma de cotas para
estudantes indígenas, em 2009. Uma das exigências foi apresentar o Rani,
registro administrativo indígena, que levou mais de quatro anos para ficar
pronto. Foi necessário que eu abrisse um processo judicial para não per-
der a vaga, então, com o mandado de segurança, consegui iniciar os es-
tudos. Consegui finalizar o curso com o trabalho de conclusão orientado
pela professora Noeli Batista, que teve o título “Histórias de Anaquiri e os
encantamentos pela cestaria xavante”.
18
Povos Indígenas no Brasil, disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Kambeba.Acesso em: 3 nov. 2018.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 47

Após terminar a graduação em licenciatura em Artes Visuais,


tentei, pela primeira vez, ingressar no mestrado, mas fui reprovada na
prova de inglês. Não sendo aprovada, fui trabalhar na rede municipal
de Goiânia como professora contratada. Mas meu desejo de continuar
estudando seguia. Então, no fim de 2015, com a aprovação das cotas
na pós-graduação na UFG,19 enxerguei, novamente, a possibilidade de
tentar a seleção no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura
Visual. Nessa seleção, fui aprovada e desenvolvi uma pesquisa auto-
biográfica, onde escrevi sobre o meu percurso, orientada pelo profes-
sor Raimundo Martins. A dissertação teve o título “Que memórias me
atravessam: meu percurso como estudante indígena” e foi defendida
em dezembro de 2017.
No mesmo ano participei da seleção para o doutorado. Entrei no-
vamente pelas cotas com o projeto “Cultura indígena e docência: como
meu percurso de estudante indígena e minha construção docente podem
contribuir para a formação de professores?”. Continuo sob orientação do
professor Raimundo Martins.
Atualmente tenho me esforçado para refletir e escrever sobre a im-
portância das cotas nos nossos percursos como estudantes indígenas.

Figura 3.3 Mulheres indígenas nas universidades: Ruam Anaquiri, Mirna


Anaquiri, Stefany Anaquiri, Vanessa Hãtxu Karajá, Rosa Anaquiri, Diberu
Karajá, Suzilar Karajá, Nelma Reredique e Vanusa Karajá

Fonte: Acervo pessoal de Mirna Anaquiri (2017)

19
Resolução CONSUNI nº 07/2015. Dispõe sobre a política de ações afirmativas para pretos, pardos
e indígenas na Pós-Graduação Stricto Sensu na UFG. Disponível em: https://prpg.ufg.br/up/85/o/
Resolucao_CONSUNI_2015_0007.pdf. Acesso em: nov. 2018.
48 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

As narrativas sobre as mulheres indígenas foram feitas por


quem? Para quem e atendendo a quais interesses? As narrativas exis-
tentes sobre os indígenas representam qual povo indígena? As mu-
lheres indígenas narram seus próprios percursos? É refletindo sobre
essas perguntas que pensamos na importância de ser autoras das
nossas próprias histórias, na necessidade de escrever sobre os nossos
percursos dentro e fora do espaço acadêmico. Glória Anzaldúa, em
sua carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, destaca a
importância dessa escrita:
Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da compla-
cência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo
manter vivo o espírito de minha revolta em mim mesma também.
Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real
não me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma
alça para poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus
apetites e minha fome. Escrevo para registrar o que os outros apa-
gam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim,
sobre você (ANZALDÚA, 2000, p. 232).
A escrita, para nós, é um grande desafio, pois somos de uma
cultura baseada na oralidade. Porém, entendemos que escrever tam-
bém faz parte das nossas lutas e das nossas conquistas. Escrevemos para
que outras mulheres indígenas também possam se sentir estimuladas
a ocupar esses espaços, para que também vejam a possibilidade de ser
autoras de suas histórias em seus diferentes percursos.

A importância das cotas


O acesso à educação superior para nós, povos indígenas, é de
grande importância, pois esse acesso pode trazer e fazer transforma-
ções individuais, mas, principalmente, coletivas para nossas comunida-
des. Como afirma Baniwa:
Basta analisar o fato de que o interesse dos povos indígenas pelo
ensino superior está relacionado à aspiração coletiva de enfrentar
as condições de vida e marginalização, na medida em que veem a
educação como uma ferramenta para promover suas próprias pro-
postas de desenvolvimento, por meio do fortalecimento de seus
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 49

conhecimentos originários, de suas instituições e do incremento


de suas capacidades de negociação, pressão e intervenção dentro e
fora de suas comunidades (BANIWA, 2010, p. 8).
É a partir da criação de políticas públicas como as cotas para nós,
povos indígenas, que nossa presença começa a ser vista nas universi-
dades públicas. É uma grande conquista, o nosso direito ao acesso ao
ensino superior, pois é com esse acesso que se abrem as muitas possi-
bilidades e a oportunidade para melhores condições a nós, mulheres
indígenas, e a todo o nosso povo (BANIWA, 2010).
Devemos nos formar politicamente para estar atentos aos de-
safios que temos com a nossa educação, a luta pela terra, pela saú-
de indígena, que são muito importantes e urgentes. Precisamos estar
informadas e conscientes das nossas conquistas e lutas, pois temos a
responsabilidade de ocupar esses espaços para que outras e outros pa-
rentes também tenham acesso ao curso superior.
Nossa permanência nesses espaços ainda possui grandes obstá-
culos. Nossa decisão de sair da comunidade é algo difícil, pois nós, in-
dígenas, somos muito ligados aos laços familiares. Neste ano de 2018,
muitos estudantes indígenas e quilombolas ficaram sem receber a bol-
sa permanência. Sem essa bolsa não é possível a nossa presença nas
universidades. Alguns parentes tiveram que voltar para suas aldeias e
comunidades quilombolas. Além da bolsa, temos pensado também em
outras formas de permanência, como participar de programas de pes-
quisas e auxílio, como a creche, que é de extrema relevância para que
as mulheres indígenas possam estudar. Também temos nos perguntado
quando teremos referenciais teóricos do nosso povo nos planos de aula
que recebemos ano após ano.
Eu, Vanessa, sou estudante, indígena e mãe, assim como mui-
tas, que sonham formar-se em um curso superior, mas que, de alguma
forma, se sacrificaram, e ainda se sacrificam, com o intuito de, futura-
mente, poder retribuir de alguma forma para nosso povo. Tenho que
deixar meus filhos com as minhas parentes mais próximas para que eu
possa estudar aqui na cidade de Goiânia, e ficar longe das crianças não
tem sido uma tarefa fácil para mim.
50 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Acredito que, para nós, estudantes indígenas, mulheres e ho-


mens, este acesso à educação superior também é romper paradigmas.
Quantas mulheres indígenas e mães conseguem estar nesses espaços?
Acreditamos que, com nossas presenças e questões, irão surgir trans-
formações, pois também estamos ocupando a linha de frente nessa luta
por educação.

Para não concluir…


Temos consciência da nossa responsabilidade nessa caminhada,
mas sabemos também que não estamos sozinhas nessa lida. A nossa an-
cestralidade tem nos guiado para que possamos fazer o que for preciso,
dentro das nossas possibilidades, para lutar com beleza e firmeza pelas
nossas vidas e pelas vidas dos nossos parentes indígenas e quilombolas.

Figura 3.4 Resistência – Ensaio fotográfico de Mirna Anaquiri

Fonte: Acervo pessoal de Mirna Anaquiri/Foto: Sallisa Rosa (2017)

O facão, ou o terçado, como falamos, é um forte símbolo da nossa


luta, pois outras mulheres indígenas já os levantaram, seja para abrir um
trieiro na mata, seja para performar ou para plantar, nessa escrita levan-
tamos o terçado e ousamos resistir também nesse espaço da escrita.
Seguimos na resistência, descobrindo brechas e possibilidades de
nos manter em espaços que, muitas vezes, foi-nos dito que não são para
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 51

nós. Vamos inventando formas de aprender e ensinar mesmo diante


das dificuldades que diariamente aparecem, dialogando com a nossa
criatividade e desejo que temos de um mundo melhor, mais justo, mais
possível, para que nós, indígenas e quilombolas, possamos ter respeito
e dignidade em todos os espaços, seja ele acadêmico ou não.

REFERÊNCIAS

ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres


escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Floria-
nópolis, p. 229- 236, 2000.
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Dissertação (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em Geogra-
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mentos pela cestaria Xavante. 2012. 68 f. Monografia (Trabalho
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Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2012.
SILVA, Mirna P. Marinho. Que memórias me atravessam? Meu
percurso como estudante indígena. 2017. 150 f. Dissertação (Mestra-
do)–Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual, Faculdade
de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás. Goiânia, 2017. Dis-
ponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/8047.
Acesso em: 20 out. 2018.
Capítulo 4

Ações afirmativas e racismo estrutural: considerações


sobre o sistema de cotas na pós-graduação
Mariza Fernandes dos Santos20

O objetivo deste capítulo é apresentar algumas questões com as


quais tenho me deparado em meus estudos sobre a aplicação do sis-
tema de cotas étnico-raciais como política de inclusão nos programas
de pós-graduação (PPG) da Universidade Federal de Goiás (UFG). O
principal argumento que pretendo desenvolver é que qualquer política
de inclusão com base em critérios étnico-raciais precisa ser elaborada
a partir de uma compreensão muito bem definida do que é o racismo
e de como ele opera, e que a desconsideração desse aspecto funda-
mental dos processos de exclusão é elemento causador de diversas
disfuncionalidades nas políticas de ação afirmativa (PAA) criadas para
a população negra.
Ainda, o surgimento e a implantação de propostas para a inclu-
são racial sem uma sólida compreensão sobre o racismo estrutural e os
efeitos disso podem ser lidos como uma evidência de que o racismo se
atualiza e se torna cada vez mais sofisticado, em face das diversas medi-
das que vêm sendo elaboradas com vistas à sua eliminação, desvelando
o que Sueli Carneiro (2018) denomina como “neodemocracia racial”.
Abordo as ações afirmativas (AA) conforme a definição adotada
pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da Popu-

20
Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em Geografia e ba-
charela em Comunicação Social.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 53

lação Negra (GTI).21 Este é considerado por Santos (2001) como um


conceito brasileiro de ação afirmativa. Conforme o autor, o GTI define
as AA como medidas temporárias determinadas pelo Estado de forma
espontânea ou compulsória para eliminar desigualdades acumuladas ao
longo da história e compensar as perdas sofridas pelo grupo margina-
lizado. A opção por essa definição deve-se ao fato de ser uma maneira
de pautar a nossa análise pelo que o Estado brasileiro entende (ou já
entendeu em algum momento) por ação afirmativa, tendo em vista
que vamos tratar aqui de políticas públicas.

Ações afirmativas no Brasil: ganhamos, mas não levamos?


Passados quase 20 anos após a implantação das primeiras inicia-
tivas de cotas em universidades públicas brasileiras, e mais de duas
décadas de aplicação de diversas modalidades de ações afirmativas em
diferentes setores da sociedade, podemos fazer um balanço de que o
Movimento Negro tem muitas conquistas a comemorar. No entan-
to, quando lançamos um olhar mais aproximado sobre alguma dessas
ações, como tenho feito desde 2013 com os estudos sobre as cotas na
UFG, não é difícil identificar deficiências que nos causam a sensação de
que “ganhamos, mas não levamos”.
O assunto foi tema de reflexão da filósofa Sueli Carneiro, in-
tegrante de um grupo de intelectuais militantes que formam o que
Ratts (2013) denomina como Movimento Negro Acadêmico ou de
Base Acadêmica. Considero que esses intelectuais possuem uma visão
“privilegiada” (com todas as aspas que a expressão deve conter quando
nos referimos a pessoas negras) sobre a temática. Além de filósofa,
Sueli Carneiro é escritora, uma das principais autoras do feminismo
negro no Brasil e fundadora do Geledés-Instituto da Mulher Negra.
Trago essa breve biografia da autora na intenção de chamar a atenção
para o fato de que os problemas que identifico atualmente em minha
pesquisa já foram debatidos antes por pessoas que, como Sueli Carnei-
21
O GTI foi criado em 1995, como uma das respostas às demandas do Movimento Negro Brasileiro
após a realização da Marcha Zumbi dos Palmares, contra o racismo, pela cidadania e a vida, com mais
de 30 mil participantes, em Brasília, no dia 20 de novembro de 1995. De acordo com Santos S.A.
(1999), esse evento marcou o avanço da temática racial para as fronteiras do Estado.
54 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

ro, estão de fato envolvidas com o tema e procuram apontar soluções.


No entanto, parece haver pouco ou nenhum interesse por parte dos
gestores das políticas públicas em considerar as contribuições dos(as)
intelectuais negros(as), conforme discutiremos mais adiante. Ao fa-
zer um balanço sobre novos e velhos desafios do Movimento Negro
brasileiro, Sueli Carneiro conclui que estamos vivendo momentos
de “[...] reciclagem da nossa velha democracia racial, que sinalizam
a antecipação das elites desse país diante do avanço da questão racial”
(CARNEIRO, 2018, p. 147).
Um exemplo elencado pela autora para caracterizar essa situação
é a forma como a emissora de televisão Rede Globo passou a implan-
tar “ação afirmativa por conta própria” (CARNEIRO, 2018) em suas
novelas. Segundo Carneiro, a emissora estabeleceu uma cota mínima
de três atores negros por produção. Apesar de ter lutado para ampliar
a representatividade de pessoas negras nos meios de comunicação, o
Movimento Negro nunca definiu que isso deveria ser feito por meio
de uma cota mínima de três pessoas. Sueli Carneiro segue elencando
alguns elementos que apontam que não conseguimos obter controle
sobre os processos que desencadeamos e questionando quais seriam
os motivos disso. Principalmente no caso de produtos desenvolvidos
especificamente para a população negra, todas as determinações ficam
nas mãos do mercado. No geral, fica a impressão de que iniciativas
como as cotas étnico-raciais não são conquistas alcançadas com mui-
to enfrentamento, resultado de uma construção cujos passos vêm de
longe, mas algo que surgiu de forma espontânea ou de uma repentina
vontade de valorizar a diversidade e/ou combater o racismo.

Ações afirmativas e neodemocracia racial nas universidades


Com as devidas ressalvas, fazemos uma crítica semelhante em
relação à aplicação do primeiro programa de ação afirmativa na UFG:
o UFGInclui. No relato de Cirqueira, Gonçalves e Ratts (2012) sobre
o processo de criação do programa, é evidente a tentativa, por parte da
universidade, de fazer uso político das ações afirmativas sem dialogar
com o Movimento Negro Acadêmico que, àquela altura, somava um
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 55

histórico de cerca de sete anos debatendo o tema na instituição, e já


havia elaborado mais de uma proposta de ação afirmativa para a UFG,
propostas essas que foram completamente ignoradas quando a institui-
ção elaborou a primeira versão do que seria o UFGInclui.22
No cenário atual, temos ainda mais alguns indícios de que, ape-
sar de o Movimento Negro Acadêmico ter alcançado uma série de con-
quistas na UFG (em 2008, a Universidade adotou cotas étnico-raciais
em todos os seus cursos de graduação por meio do Programa UFG
Inclui e, em 2015, foi a segunda23 universidade brasileira a implantar
reserva de vagas em todos os programas de pós-graduação), não exis-
tem mecanismos que garantam que o Movimento Negro seja sujei-
to participante na gestão dessas políticas (SANTOS, 2014; SANTOS,
2018), o que compromete a sua efetividade, tendo em vista que, dado
o histórico de ocupação do espaço acadêmico brasileiro, a gestão das
instituições é composta majoritariamente por pessoas brancas, o que
nos permite inferir que dificilmente haverá, entre as equipes gestoras,
pessoas engajadas na luta antirracista.
Ainda em Goiás, o caso da Universidade Estadual de Goiás
(UEG) também é ilustrativo. A provocação para a implantação de um
sistema de cotas étnico-raciais surgiu fora da Universidade, por meio
da proposição de um projeto de lei na Assembleia Legislativa, o que,
conforme avaliou Vaz (2012), resultou em um processo verticalizado
que produziu efeitos “de fora para dentro”. A questão que fica, quan-
do avaliamos determinadas políticas de inclusão, é como solucionar o
abismo que se forma entre as instituições responsáveis pela construção

22
Cirqueira, Gonçalves e Ratts (2012) relatam que a UFG desconsiderou os pré-projetos apresentados
pelos coletivos que integravam o Movimento Negro Acadêmico na UFG e, em 2007, apresentou à
Câmara de Graduação uma proposta de ação afirmativa que previa um bônus na nota da segunda fase
do vestibular para estudantes de escolas públicas, sem recorte étnico-racial. Os pesquisadores apon-
tam que o repentino “interesse” por parte da instituição em implementar uma iniciativa de inclusão se
deveu à intenção de angariar verbas do Governo Federal dentro da proposta de expansão da educação
superior com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(Reuni). O projeto inicial causou surpresa e reação no Movimento, que, após uma série de embates,
conseguiu alterar a proposta.
A primeira universidade brasileira a adotar ação afirmativa em todos os seus programas de pós-gra-
23

duação foi a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) (VENTURINI; FERES JÚNIOR, 2018).
56 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

e a gestão dessas iniciativas e os grupos beneficiados, conforme aponta


Sueli Carneiro (2018, p. 148):
[...] entendo que o Estado busca recuperar a iniciativa sobre o or-
denamento das relações raciais, ao mesmo tempo que expropria o
movimento negro da condição de sujeito de um processo no qual,
em verdade, o Estado foi obrigado a intervir sob pena de perder o
controle; a ele, portanto, caberia estabelecer os limites em que o
debate deva se processar.
Esse processo é denominado por Carneiro (2018) como neo-
democracia racial. Trata-se de uma reelaboração do velho mito da de-
mocracia racial brasileira, que atende a pelo menos dois interesses: o
primeiro, de ordem política, visa ao apagamento dos conflitos raciais;
e o segundo, de ordem econômica, vê no surgimento de uma classe
média negra um novo nicho de mercado. Os interesses apontados por
Carneiro expõem que pode haver, por trás das políticas de inclusão
que vêm sendo implantadas no Brasil, uma concepção liberal de ação
afirmativa que tem como objetivo central que os negros alcancem o
status de consumidores, o que termina por solapar o foco principal
das ações afirmativas, que deveria ser a transformação social. “O status
de consumidor é garantido a alguns afrodescendentes, enquanto, por
outro lado, ampliam-se os mecanismos de exclusão social da maioria”
(CARNEIRO, 2018, p. 149). Angela Davis (2018) nos alerta para os
perigos que os avanços das ideologias neoliberais oferecem ao Movi-
mento Negro, principalmente no que diz respeito ao egoísmo e ao in-
dividualismo capitalista, o que torna ainda mais preocupante esse tipo
de concepção sobre as ações afirmativas.
Essa abordagem liberal pode ser observada em diversos ele-
mentos das políticas que temos estudado e se revela, principalmente
na permanência de uma perspectiva meritocrática sobre os postos a
serem alcançados pelas populações subalternizadas e no entendimen-
to de que os ganhos obtidos por meio de ações afirmativas se referem
apenas à ascensão social, sendo, portanto, ganhos individuais e não
coletivos. No que diz respeito à lógica meritocrática, temos como
exemplo a pressa, por parte da mídia e de alguns intelectuais brasi-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 57

leiros, para realizar levantamentos com a intenção de verificar se a


inclusão de cotistas reduziria a qualidade do ensino nas universida-
des24 logo que as primeiras iniciativas de cotas foram implementadas.
É como se o ensino superior fosse lugar exclusivo para aqueles que
passaram pelo crivo do mérito, e não um espaço educativo, portanto,
um direito de todos. Não demorou para que tais pesquisas indicas-
sem que não há impacto negativo e que, em alguns casos, os cotistas
tendem a apresentar desempenho superior ao alcançado pelos in-
gressantes pelo sistema universal.
Em relação à ideia de que as ações afirmativas promovem apenas
ganhos individuais, temos como principal exemplo o argumento do
cream layer, cunhado por críticos a essas medidas para alegar que elas
atingem apenas a “nata” das camadas excluídas, ou seja, aqueles menos
afetados pela exclusão e, portanto, com mais condições de competiti-
vidade. No limite, usa-se tal argumento para afirmar que esses sujeitos,
por serem mais competitivos, alcançariam ascensão social mesmo sem
as políticas de inclusão e, ainda, que não há ganho coletivo, pois as
PAA estariam privilegiando um grupo já privilegiado. Ao realizar uma
análise sobre o uso desse modelo de argumento, em contraponto com
as falas de defensores das ações afirmativas nos mesmos contextos,
Feres Júnior e Daflon (2015) apontam a perversidade desse tipo de
pressuposto25 que desconsidera os ganhos coletivos das PAA, os quais
extrapolam o viés econômico, apesar de terem potencial para atingir
também esse campo.26
24
Na UFG, Soares et al. (2014) compararam as médias globais de estudantes cotistas e não cotistas
dos cursos de jornalismo e engenharia mecânica e concluíram que não há diferença nas notas obtidas
entre os dois grupos. Quando analisada a evasão entre 2009 e 2012, no curso de Jornalismo, de 22
estudantes que evadiram, apenas uma era cotista. Já no curso de Engenharia Mecânica, com um total
de 40 evasões no mesmo período, 34 eram não cotistas e apenas seis ingressaram por cotas. Nos dois
cursos, portanto, o percentual de evasão de estudantes não cotistas que evadiram é muito superior
ao de cotistas.
25
Os pesquisadores apontam que hipóteses como a do “benefício da nata”, não se baseiam em evidên-
cias concretas e que, no Brasil, as PAA de recorte racial que vigoravam no período estudado eram
estruturadas a partir de um excesso de cuidado para evitar o benefício dos “mais privilegiados” (FERES
JÚNIOR; DAFLON, 2015, p. 241).
26
Feres Júnior e Daflon (2015) citam o exemplo das cotas nas legislaturas na Índia, que deram con-
dições para que uma classe média integrante do grupo mais prejudicado historicamente seja capaz de
58 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Com isso, pode-se observar que, apesar de, em geral, as ações


afirmativas terem como principais interessados e mobilizados pela sua
implantação os grupos sociais prejudicados por processos históricos e
que buscam reparação, a elaboração e a gestão dessas políticas envol-
vem múltiplos interesses (mercado, Estado, meios informativos, mo-
vimentos sociais etc.) em uma disputa com evidentes assimetrias de
poder, o que nos leva de volta ao questionamento de Sueli Carneiro
(2018, p. 148): “Por que não conseguimos manter o controle sobre
processos que nós mesmos desencadeamos?”

Ações afirmativas e racismo estrutural


Apesar de uma necessária crítica sobre o modo como o Movi-
mento Negro se posicionou diante da gestão das políticas de inclusão
no Brasil na última década, seria ingênuo, e talvez injusto, supor que o
cenário atual é resultado apenas de dificuldades organizativas de nossa
parte. Para compreender a permanência do racismo e sua evolução
para o atual contexto de neodemocracia racial, é preciso estabelecer,
primeiro, o que se compreende por racismo. Entendo que a concepção
de racismo estrutural proposta pelo jurista Silvio Almeida (2018, p.
27) oferece importantes elementos para o debate.
O racismo – que se materializa como discriminação racial – é defi-
nido pelo seu caráter sistêmico. Não se trata, portanto, de apenas
um ato discriminatório ou mesmo de um conjunto de atos, mas de
um processo em que condições de subalternidade e de privilégio
que se distribuem entre grupos raciais se reproduzem nos âmbitos
da política, da economia e das relações cotidianas (grifos do autor).
Para Almeida (2018), o pensamento social que não consi-
dera os conceitos de raça e racismo não é capaz de compreender

lutar por mais direitos e pela inclusão de mais membros de seu grupo nos espaços de poder. Com foco
no Brasil, Santos e Ratts (2015, p. 642) apontam que a participação de estudantes negros em projetos
ou programas de ação afirmativa na universidade amplia a experiência acadêmica, inclusive ajudando
a tornar a pós-graduação uma possibilidade, o que produz reflexos na formação de um Movimento
Negro de Base Acadêmica. Além disso, é preciso considerar os impactos da formação de profissionais
negros que poderão atuar a partir de uma perspectiva antirracista em diversas áreas. Alguns dos efeitos
socioespaciais da presença de mais estudantes negros no espaço acadêmico da UFG foram identificados
em minha pesquisa de mestrado (SANTOS, 2016).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 59

a sociedade contemporânea. A noção de raça é uma construção


social que surge com a modernidade. De acordo com o autor, o
racismo é sempre estrutural, pois faz parte da organização eco-
nômica e política da sociedade. “Em suma, o que procuramos de-
monstrar é que o racismo é a manifestação normal de uma socie-
dade, e não um fenômeno patológico [...]” (2018, p. 15). Pensar
o racismo como estrutural ou como algo que faz parte do funcio-
namento normal da sociedade nos ajuda a entender, por exem-
plo, como ele opera mesmo quando não há ou não conseguimos
identificar uma “vontade” de cometer atos racistas por parte de
gestores que tomam decisões que afetam o acesso da população
negra a direitos básicos.
A reprodução do racismo se dá, nas instituições, como um
procedimento normal, assim como o não questionamento e até
mesmo o apagamento de situações em que o racismo é evidente, a
exemplo do genocídio da população negra (NASCIMENTO, 2016),
do encarceramento em massa dessa população e até mesmo de sua
segregação socioespacial.27 Não se questiona, por exemplo, o fato
de que os(as) negros(as) são maioria nos presídios e minoria nas
universidades, apesar de somarem mais de 50% dos brasileiros. In-
telectuais brancos permanecem reproduzindo a estrutura de “clãs”
dentro das universidades e perpetuando o racismo epistêmico que
contribui para o que Sueli Carneiro (2005) denomina como epis-
temicídio. Tudo isso sob os não ditos que contribuem para que essa
estrutura se retroalimente ao mesmo tempo que políticas de ação
afirmativa estão em andamento.
Todos esses aspectos já foram apontados anteriormente por
pensadores como a intelectual e ativista Angela Davis, que, ao debater
a criminalização e o encarceramento da população negra, aponta a
necessidade de uma “mudança sistêmica” para combater essa situação.

27
Em Goiânia, Ferreira (2014) constatou que a população branca está concentrada nos bairros mais
elitizados, enquanto o grupo que se autoidentificou no censo 2010 como preto se concentra principal-
mente nas regiões leste e noroeste da cidade. Esse padrão também é observado em outras capitais, em
trabalhos como o de Silva (2006), que analisou a segregação urbana e racial em São Paulo.
60 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

“Existem elementos estruturais bastante importantes do racismo e,


em geral, esses elementos não são levados em conta quando se dis-
cute seu fim ou sua contestação” (DAVIS, 2018). Stokely Carmichael
(2018), apontado como um dos primeiros pensadores negros a abor-
dar o racismo como estrutural/institucional, destaca o fato de que,
nesse tipo de racismo, é difícil identificar quem são os indivíduos que
cometem os atos e, dessa forma, a sociedade não se mobiliza para
denunciar tais práticas.
[...] quando na mesma cidade – Birminghan, Alabama – não cin-
co, mas quinhentos bebês negros morrem anualmente por falta de
alimentação, abrigo e instalações médicas adequados – e outros
milhares são destruídos e mutilados física, emocional e intelectual-
mente devido às condições de pobreza e discriminação na comu-
nidade negra –, esta é uma função do racismo institucionalizado
(CARMICHAEL, 2018, p. 18).
Voltando a pensar o racismo estrutural nas universidades brasi-
leiras, pelo modelo de gestão vigente em nossas instituições de ensino
superior, o mesmo grupo hegemônico de intelectuais é quem compõe
as equipes gestoras e toma as decisões que afetam as populações que
lutam para ingressar nesse espaço. São esses intelectuais que detêm
o poder para determinar como serão geridas as PAA, e é assim que
nós perdemos o controle sobre os processos que desencadeamos. Se
tomarmos mais uma vez o caso da UFG como exemplo, temos que
reconhecer que houve não apenas uma provocação do Movimento
Negro para que a Universidade implementasse ações afirmativas, mas
uma construção coletiva de propostas concretas de inclusão que foram
apresentadas à instituição e que, em um primeiro momento, foram
completamente ignoradas.
Após uma série de embates, a proposta apresentada pelo grupo
de professores e estudantes ativistas da luta antirracista e que, de fato,
têm conhecimento e vivência sobre a causa, foi parcialmente adota-
da pela UFG. Anos depois, quando avaliamos como essa proposta foi
aplicada, percebemos um abismo entre o que o Movimento Negro
aspirava como efeitos da política de inclusão e o que de fato aconteceu
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 61

(SANTOS, 2016). Temos números que indicam um aumento28 na pre-


sença de negros(as), indígenas e quilombolas na UFG, mas a perma-
nência desses estudantes e sua inclusão na pós-graduação, na docência
e no mercado de trabalho ainda são problemas sobre os quais pouco
se discute fora dos grupos interessados, e esses dados não são conside-
rados quando as instituições avaliam o sucesso das medidas adotadas.
Outro ponto importante é que, conforme verifiquei durante mi-
nha pesquisa de mestrado, a institucionalização do debate sobre ações
afirmativas na UFG não garantiu a gestão participativa das PAA (SAN-
TOS, 2016), o que reduz as possibilidades de ação do Movimento Ne-
gro Acadêmico após a conquista das medidas de inclusão. Esse cenário
indica que, de fato, o que ocorre na UFG é um reflexo do que Carneiro
(2018) define como neodemocracia racial, e que essa situação conse-
gue se sustentar pela manutenção do racismo estrutural. Conforme
apontado por Carmichael (2018), a sociedade faz de conta que ignora
o racismo institucionalizado e não faz nada pela sua eliminação porque
ele resulta em privilégios. O que precisamos pensar é como garantir
que as PAA consigam romper com esse ciclo de reprodução.

Conquista negra, gestão branca: a reprodução do racismo


estrutural na pós-graduação
Ao analisar as ações afirmativas que estão sendo adotadas na
pós-graduação no Brasil, Venturini (2018, p. 15) conclui que a maior
parte das instituições – a UFG está incluída nesse grupo – adota me-
didas que introduzem poucas modificações, as quais coexistem com
práticas antigas.
Na maioria dos programas que adotaram ações afirmativas, as co-
tas não excluem as fases tradicionais dos processos de admissão, tais
como realização de provas de proficiência em idiomas estrangeiros,
28
De acordo com dados da plataforma Analisa UFG, em 2008, a instituição possuía um total de 370
estudantes autodeclarados pardos e 78 pretos nos cursos de graduação. Em outubro de 2018, o regis-
tro foi de 11.649 pardos e 2.464 pretos. Deve-se considerar que, no período, além da implantação
das cotas, ocorreu aumento significativo no número de vagas e um possível aumento na quantidade de
pessoas se autodeclarando pretas/pardas devido à ampliação do debate sobre autodeclaração e per-
tencimento étnico-racial na sociedade brasileira. Fonte: Plataforma Analisa UFG (www.analisa.dados.
ufg.br). Acesso em: 30 jan. 2019.
62 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

provas dissertativas, entrevistas, apresentação de projetos de pesqui-


sa, avaliação de currículos e publicações, entre outras. No entanto,
se essas políticas visam, em última instância, incluir indivíduos de
grupos desfavorecidos, alguns desses procedimentos tradicionais
têm alto potencial de exclusão e podem afetar a eficácia das políticas.
Em seu estudo, Venturini identificou que um dos principais obs-
táculos que permanecem inalterados na maioria dos processos seleti-
vos é a prova de proficiência em língua estrangeira. Apesar de ser óbvio
o fato de que, no Brasil, a possibilidade de um indivíduo de baixa renda
ter acesso ao conhecimento de uma língua estrangeira é quase nula,
muitos programas mantêm a prova como etapa eliminatória nas sele-
ções. No caso dos indígenas, a situação é ainda mais perversa, tendo
em vista que, para a maior parte, o Português já é uma língua estran-
geira. Segundo a pesquisadora, um dos elementos usados para justificar
a manutenção das práticas excludentes na pós-graduação é a ideia de
mérito ou de excelência acadêmica, como se tais aspectos estivessem
vinculados exclusivamente à nota obtida pelo estudante no processo
seletivo que, destaque-se, não são totalmente objetivos e impessoais,
conforme aponta Carvalho (2004).
Outro ponto que deve ser elencado entre os elementos que con-
tribuem para a manutenção das práticas excludentes e, portanto, redu-
zem a possibilidade de sucesso das ações afirmativas na pós-graduação
é o que Carvalho (2004) denomina como racismo acadêmico e que
considero como um desdobramento do racismo estrutural. Para o pes-
quisador, a pós-graduação, a docência e a pesquisa são os níveis onde o
racismo acadêmico tem maior capacidade de se reproduzir, é onde há
maior necessidade de intervenção e, ao mesmo tempo, onde de fato se
elaboram estratégias de manutenção e silenciamento da exclusão.
A rede de pesquisa é uma espécie de supra-rede da elite da rede de
professores universitários que vão indicando seus “melhores talen-
tos” (por sua vez recrutados da rede dos estudantes de pós-gradua-
ção) para irem formando os centros de pesquisa. A imagem que faço
é de um edifício da academia (docência e pesquisa) que foi cons-
truído nos anos 60 e 70 e que está agora inteiramente ocupado por
brancos. Há uma fila de brancos dando volta no quarteirão à espera
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 63

para entrar no primeiro apartamento que vagar. E os negros? Vão


entrar no final desta fila? Se tal for o caso, dificilmente entrarão no
sistema, pois não haverá vagas disponíveis para eles pelo menos por
alguns séculos (CARVALHO, 2004, p. 8-9).
Sem se aprofundar na temática, e falando a partir de sua vivência
como intelectual negro em uma época em que se dialogava menos ain-
da sobre o tema na academia brasileira, Milton Santos (1997), durante
um discurso, denunciou que a vida intelectual no Brasil se organiza
em torno de “clãs”. Ratts (2007, p. 30) detalha, em parte, como este
processo ocorre:
Os intelectuais brancos, que não deixam de ser atuantes (ou mesmo
“ativistas”) em seus campos de pesquisa/intervenção, fazem desse
circuito próximo suas redes profissionais. Promovem uns aos outros,
citam-se mutuamente em seus escritos. Criam ou elegem para si fe-
chados espaços acadêmicos e quase nunca evidenciam a branquitude
que os amalgama, ainda que se aproximem de um(a) ou outro(a)
intelectual negro(a).
Tendo em vista que são esses os sujeitos que compõem a maio-
ria na pós-graduação brasileira hoje, não é difícil imaginar o motivo
da pouca mobilização pela criação de medidas com vistas ao sucesso
das políticas de inclusão. Em sua pesquisa, Venturini (2018) identificou
que são poucos os programas que se empenharam em elaborar estra-
tégias para que as cotas realmente alcançassem o seu objetivo, inclusi-
ve pensando na permanência dos cotistas. Além disso, a pesquisadora
verificou que, nos casos em que houve mudanças significativas, isso
ocorreu por provocação dos atores favoráveis às ações afirmativas, par-
tindo, portanto, de uma iniciativa endógena.
Na UFG, Santos (2018) entrevistou docentes com produtividade
em pesquisa (PQ) sobre suas percepções a respeito das cotas na uni-
versidade. A pesquisadora constatou que a maior parte dos entrevis-
tados reconhece que os cotistas enfrentam mais dificuldades em suas
trajetórias acadêmicas, mas consideram que as cotas não são a solução
ideal para o problema. De acordo com Santos (2018), a maioria dos
entrevistados não têm conhecimento sobre as ações afirmativas e alega
que um dos motivos para o desconhecimento seria a falta de circula-
64 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

ção de informações sobre o tema. A conclusão da pesquisadora é que


os docentes que participaram da pesquisa não formarão um grupo de
agentes políticos atuantes em prol da manutenção ou modificação das
cotas na UFG.
A falta de engajamento – e até mesmo uma posição contrária –
por parte de integrantes do grupo de docentes PQ da UFG para tornar
a pós-graduação mais inclusiva não seria um problema se não fosse esse
o grupo situado na posição mais privilegiada da escala de poder na aca-
demia, conforme apontou Carvalho (2004). No limite, é essa a parcela
que controla esse espaço e que, em muitos casos, integra a gestão, os
conselhos e demais instâncias de decisão. São essas, portanto, as pes-
soas que decidem como serão atendidas as demandas que o Movimento
Negro, nos melhores cenários, consegue pautar, mas não consegue ge-
rir. Tomemos como exemplo o percurso que levou a que a UFG fosse
a segunda universidade federal do país a adotar cotas em todos os seus
programas de pós-graduação, mas sem estabelecer uma regulamenta-
ção objetiva sobre como essa ação afirmativa deve ser aplicada, o que
compromete o sucesso da estratégia.
De acordo com o relato publicado por Diniz Filho et al. (2016),
o debate sobre cotas na pós-graduação da UFG teve início em agosto
de 2014, por provocação do Programa de Pós-Graduação em Antro-
pologia Social (PPGAS), que apresentou à Pró-Reitoria de Pós-Gra-
duação (PRPG) a minuta de um edital de seleção com reserva de
vagas baseado em critérios étnico-raciais. O PPGAS também encami-
nhou um documento em que afirmava o interesse em elaborar polí-
ticas de ação afirmativa para a pós-graduação, juntamente com infor-
mações sobre medidas semelhantes que haviam sido implementadas
em programas de outras universidades e pressupostos jurídicos que
fundamentam a proposta.
A iniciativa do PPGAS gerou um debate mais amplo na UFG,
que resultou na aprovação da Resolução CONSUNI nº 07/2015 (UFG,
2015), que estabelece reserva de 20% das vagas para pretos, pardos e
indígenas (PPI) em todos os processos seletivos de pós-graduação na
UFG. Apesar de determinar o percentual de cotas, o documento ga-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 65

rante, às coordenações, a liberdade de definir quais serão os critérios


para o ingresso dos discentes, considerando as especificidades das áreas
do conhecimento e as diretrizes do órgão federal de avaliação e acom-
panhamento (UFG, 2015). Com relação às medidas de ação afirmativa
com foco na permanência dos cotistas na pós-graduação, a Resolução
diz apenas que as coordenações “poderão” adotar tais medidas, o que
depende, portanto, da vontade da gestão. O mesmo ocorre com rela-
ção à adoção de critérios diferenciados para a distribuição de bolsas.
Art. 8º Sugere-se às Comissões de Bolsa dos Programas de Pós-Gra-
duação Stricto Sensu que considerem os termos do art. 4º a fim de
definir critérios que contemplem os candidatos aprovados pelo sis-
tema de cotas, observadas as normas dos órgãos de fomento e de
acompanhamento e avaliação (UFG, 2015, p. 4).
O documento de apenas cinco páginas não apresenta de forma
objetiva como as cotas devem ser aplicadas e quais medidas, além da
reserva de vagas, devem ser adotadas para garantir o sucesso da ação
afirmativa. A PRPG divulgou uma instrução técnica para explicar
como deve ser feita a distribuição de vagas, tendo em vista a variedade
de modelos de processo seletivo existentes na instituição. O documen-
to define, basicamente, como deve ser feita a reserva nos casos em que
as vagas são distribuídas por área de concentração/linha de pesquisa e
quando a distribuição é feita por orientador(a).
Diniz Filho et al. (2016) fizeram uma avaliação da demanda e
do desempenho dos estudantes PPI no primeiro ano de aplicação da
Resolução nº 07/2015. Os pesquisadores avaliaram 30 processos se-
letivos realizados por 29 PPG da UFG, com um total de 1.378 candi-
datos inscritos. Segundo a pesquisa, apenas 16,1% dos candidatos ao
mestrado e 12,6% dos candidatos ao doutorado se declararam PPI. Em
relação aos indígenas, o mestrado recebeu duas inscrições, e o douto-
rado, nenhuma. Os candidatos PPI representam 13,7% dos aprovados
nas seleções de mestrado, e 9,5% no doutorado, resultando em um
número bem abaixo dos 20% previstos na Resolução nº 07/2015. Um
dado que chama a atenção no estudo é que os candidatos PPI aprova-
dos tiveram, em geral, uma boa classificação, de modo que apenas três
66 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

cotas foram efetivamente utilizadas. Ao comparar as taxas de aprova-


ção dos candidatos PPI e dos do sistema universal, os pesquisadores
verificaram que o sucesso do primeiro grupo ainda é muito pequeno
em relação ao segundo, do que se pode concluir que apenas as cotas,
sem uma mudança nas provas, nos critérios e nas exigências mínimas
dos processos seletivos, não serão suficientes para garantir a inclusão,
conforme apontou Venturini (2018) em seu estudo sobre as ações afir-
mativas na pós-graduação em âmbito nacional.
O fato de apenas três vagas de cotista terem sido efetivamente
utilizadas no período estudado chama a atenção para outro ponto im-
portante, que tenho observado em minhas vivências junto a um cole-
tivo de estudantes PPI da pós-graduação da UFG, e também como es-
tudante que ingressou por cotas nesse nível de ensino: da forma como
as cotas estão sendo aplicadas, sem mudanças necessárias nos processos
seletivos, os estudantes PPI que conseguem ser aprovados no proces-
so de seleção são estudantes com alto desempenho, que tiveram uma
trajetória na graduação um pouco diferente da maioria que compõe o
grupo PPI e, por isso, têm currículo e preparo para concorrer com os
brancos sem necessidade de mecanismos de inclusão nessa etapa.
O baixo índice de inscrições de estudantes PPI constatado pelos
pesquisadores nas seleções de mestrado e doutorado é um dado que
precisa ser analisado a partir de múltiplos fatores. Não nos detere-
mos sobre esse aspecto neste trabalho, mas um elemento que deve ser
considerado é a trajetória dos estudantes PPI na graduação. Diversos
estudos apontam que o ingresso na universidade é apenas o primeiro
obstáculo a ser enfrentado pelos estudantes negros no espaço acadê-
mico. Suas trajetórias, em geral, são marcadas por dificuldades de per-
manência que envolvem questões materiais (muitos precisam conciliar
trabalho e estudo) e subjetivas, como a sensação de não pertencimento
ao lugar, as diversas situações de racismo que enfrentam nesse am-
biente e as deficiências de formação resultantes de um ensino básico
precário na rede pública (CIRQUEIRA, 2008; SANTOS, 2014; 2016).
A partir disso, pode-se questionar: quais são as chances de um
estudante PPI vislumbrar a pós-graduação como uma possibilidade? O
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 67

corpo docente tem se empenhado em promover essa mudança de pers-


pectiva, inclusive ao selecionar seus bolsistas de iniciação científica?
Um estudante que não tem o nível de conhecimento em língua estran-
geira exigido pelos programas vai investir tempo e dinheiro (muitas
vezes dos quais não dispõe) em um processo seletivo no qual será eli-
minado na primeira etapa (a prova de língua estrangeira), sem sequer
ter a chance de apresentar o seu projeto de pesquisa?
A partir de minha experiência na coordenação do projeto de ex-
tensão “Travessia – Curso preparatório para a pós-graduação na UFG”,
posso dizer que a resposta a todas essas perguntas é não. No curso, vol-
tado para estudantes PPI de baixa renda, ofertamos apenas 20 vagas e
recebemos mais de 150 inscrições, o que indica que há demanda desse
grupo para a pós-graduação. Por outro lado, após o curso, que ocorreu
no segundo semestre de 2018, apenas dois cursistas foram aprovados
em processos seletivos até o momento da escrita deste capítulo. Menos
da metade da turma chegou a se inscrever em seleções de mestrado.
No decorrer das aulas e reuniões do projeto, observamos que a maioria
dos estudantes não tinha conhecimento sobre como funcionam a pós-
-graduação e os processos de seleção. Percebemos que parte da turma
se sentiu desmotivada diante dos critérios exigidos pelos PPG e pre-
cisaria de mais tempo, tanto para “melhorar” o currículo quanto para
aprender uma língua estrangeira.29 Isso evidencia que as ações afirmati-
vas na pós-graduação precisam ser pensadas de forma mais ampla, indo
além da reserva de vagas.
A necessidade de aperfeiçoamento do que está previsto na Resolu-
ção nº 07/2015 foi exposta por um representante da UFG entrevistado
por Venturini (2018). De acordo com o entrevistado, adotar a reserva de
vagas sem promover mudanças mais profundas nos critérios e regras de
seleção foi uma estratégia para conseguir a aprovação da resolução.
A ideia era que era melhor avançar dessa forma do que entrar em
uma discussão que poderia ter mais resistência com relação à questão
do mérito e de qualidade e de tudo. De que está criando privilégio,

29
O projeto de extensão ofereceu aulas de inglês e espanhol instrumentais, mas, para aqueles que
nunca haviam tido contato com o aprendizado desses idiomas, as aulas não foram suficientes.
68 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

né? [...] Então a gente criou uma norma geral que valia pra todo
mundo e que talvez não seja ainda a ideal. Talvez não, não é a ideal,
não é a melhor, mas é a possível (Representante da UFG apud VEN-
TURINI, 2018, p. 25).
O trecho da entrevista evidencia que, se hoje temos uma ação
afirmativa deficiente, isso é resultado do ativismo do grupo hegemôni-
co que usa sua posição de poder nas instâncias burocráticas da univer-
sidade para perpetuar privilégios e desigualdades com base em ideais
excludentes e subjetivos, a exemplo da “questão do mérito” citada pelo
entrevistado.

Considerações finais
O caso da aplicação das cotas na pós-graduação da UFG é um
exemplo notório do racismo estrutural funcionando em sua melhor
forma: após provocação de um grupo interessado na luta antirracista,
os gestores acatam o que foi sugerido como solução para o problema,
desde que sejam atendidas as suas demandas também, o que resulta em
um projeto que provoca poucas mudanças, têm poucos resultados prá-
ticos e mantém os privilégios do grupo hegemônico. Tudo isso sob um
discurso por vezes propagandista de que a universidade está realmente
empenhada em promover a inclusão.
Busquei evidenciar, ao longo deste texto, que, para avançar na
solução do problema da exclusão das pessoas negras na pós-graduação,
é preciso partir de uma compreensão do que é o racismo, e que a abor-
dagem do racismo estrutural parece ser adequada para esse exercício.
Para além disso, esse entendimento sobre o racismo precisa ser conside-
rado ao se elaborar e colocar em prática as ações afirmativas, sob o risco
de criarmos medidas que ficam apenas no papel e não promovem mu-
danças significativas na prática. Por outro lado, observamos que o fato
de iniciativas de inclusão pouco efetivas estarem sendo implementadas
sem uma real preocupação de combate à discriminação racial é uma
demonstração do racismo estrutural atuando em sua total capacidade.
Por um longo período na história e com apoio de intelectuais
que usaram o crivo da ciência para legitimar esse discurso, o Brasil se
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 69

apresentou ao resto do mundo como o país da democracia racial, ne-


gando todo um passado de escravidão, abandono, exclusão e genocídio
da população negra. Foi árduo o trabalho do Movimento Negro para
que o país assumisse formalmente o seu racismo na década de 1990
e que o combate ao racismo entrasse na agenda pública, ainda que de
forma tímida. Aqueles que militaram por essa conquista, no entanto,
provavelmente não imaginavam que chegaríamos a 2019 ainda tendo,
como principal percalço, o mito da democracia racial, agora em uma
versão mais sofisticada.

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72 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

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Boletim Gemma, n. 6, 2018.
Capítulo 5

Processos educacionais na Terra Indígena Avá-Canoeiro


de Goiás
Lorranne Gomes da Silva 30
Ariel Pheula do Couto e Silva 31

Apresentamos aqui uma síntese do que fora trabalhado no Ca-


pítulo 4 do livro Artes indígenas no cerrado: saberes, educação e museus (or-
ganizado pelas professoras Poliene Bicalho e Márcia Machado), cujo
lançamento oficial ocorreu durante o Seminário Internacional Povos e
Saberes Afrodiaspóricos, nas dependências do campus de Ciências So-
cioeconômicas e Humanas da Universidade Estadual de Goiás (UEG),
entre os dias 20 e 21 de junho de 2018, evento do qual se originaram
as discussões que dão corpo a este livro. Apresentaremos ainda dois
eixos de continuação da pesquisa sobre as formas de aprendizagem e o
conhecimento tradicional Avá-Canoeiro.
Primeiramente, gostaríamos de falar um pouco sobre o povo
Avá-Canoeiro, em especial a família Avá-Canoeiro de Goiás.

Breve histórico
Os primeiros registros sobre o povo Avá-Canoeiro são do fim do
século XVIII. Tem uma língua própria, pertencente ao sub-ramo IV da
30
Doutora em Geografia, professora da UEG, campus Cora Coralina; do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade, e do curso superior de Tecnologia em Gestão
de Turismo.
31
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de
Brasília (PPGL/LIP/IL/UnB, bolsista CAPES) e membro do Laboratório de Línguas e Literaturas
Indígenas – Aryon Dall’Igna Rodrigues (LALLI/UnB).
74 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

família Tupi-Guarani, tronco linguístico Tupi. O termo “awã”, na língua


Avá-Canoeiro, como em outras línguas tupi-guarani, significa gente,
pessoa, ser humano, homem adulto. O cognome “canoeiro” deve-se à
habilidade para navegar canoas.
Organizados em aldeias, os Avá-Canoeiro mantinham uma forte
relação com os rios, deslocavam-se com facilidade por eles; além de
fazerem da pesca uma prática cotidiana. Entre as estimativas demográ-
ficas mais antigas sobre esse povo, destaca-se a pesquisa de André Toral
(1984), que afirma a existência de 300 guerreiros.
Os Avá-Canoeiro eram temidos porque resistiam e reagiam
bravamente à dominação colonizadora que lhes era imposta pelos
não indígenas, por outros povos indígenas que consideravam ini-
migos, e por todos aqueles que tinham como propósito a ocupação
de suas terras e o seu aliciamento em aldeamentos oficiais. Diante
desta postura de resistência, desde então, passaram a ser persegui-
dos e massacrados.
Depois dos massacres sofridos e de todo o processo de dispersão
espacial, atualmente, os Avá-Canoeiro estão divididos em duas famí-
lias: uma habitando a bacia do Rio Araguaia, em Tocantins, e a outra
habitando a bacia do Rio Tocantins, em Goiás.
Os estudos de Rodrigues (2012) mostram que a separação his-
tória entre as duas famílias sobreviventes do povo Avá-Canoeiro é de
aproximadamente 180 anos, dado a que se chega a partir de relatos
históricos e da biografia de migrações recentes pelos Avá-Canoeiro do
rio Araguaia e do povo Javaé. Neste sentido, os Avá-Canoeiro do rio
Araguaia não veem mais uma origem comum junto aos Avá-Canoeiro
do rio Tocantins.
Os conflitos e os massacres, que se sucederam em Goiás a partir
da década de 1950, liderados por fazendeiros e mediados por conquis-
tas de terras, foram responsáveis por uma quase dizimação dos Avá-
-Canoeiro. Destaca-se, pois, o que ocorreu aproximadamente no fim
da década de 1960, na região da Mata do Café,32 tal como conhecida
pelos Avá-Canoeiro.
32
Região próxima às cidades de Minaçu e Campinorte, no norte do estado de Goiás.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 75

Foi apenas em 1983, depois de muitas tentativas de contato rea-


lizadas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e de aproximada-
mente 20 anos em fugas nas áreas de Cerrado, que os Avá-Canoeiro
fizeram contato com um morador local. Logo, foram instalados na Ter-
ra Indígena Avá-Canoeiro (com 38 mil hectares), ao norte de Goiás,
na margem esquerda do Rio Tocantins, a 14 quilômetros da Usina de
Serra da Mesa e a 10 quilômetros da Usina Hidrelétrica de Cana Brava.
Em 2018, viviam em Goiás oito Avá-Canoeiro.
O presente texto objetiva retratar os estudos realizados na Ter-
ra Indígena Avá-Canoeiro de 2016 a 2018, sobre alguns aspectos das
tentativas de implementação de educação escolarizada junto aos Avá-
-Canoeiro de Goiás, buscando analisar o seu insucesso ao longo de pelo
menos 10 anos.
Tratamos ainda dos recentes esforços de implementação, a pe-
dido dos próprios Avá-Canoeiro, de uma escola na aldeia que consiga,
ao mesmo tempo, dialogar os saberes indígenas e sua forma tradicio-
nal de aquisição de conhecimento com os conhecimentos necessários
para o pleno exercício de sua cidadania junto à sociedade nacional.
Apresentamos o que virá a ser a Escola Indígena Ikatoté (“o que é bom
de verdade”), desde os primeiros esboços de uma educação escolar
diferenciada do modelo regular e específica para os Avá-Canoeiro e
Tapirapé, discutido desde o ano de 2013, e elaborado a partir de 2014
pelo Grupo de Trabalho sobre a Educação Escolar Indígena Avá-Ca-
noeiro, até a sua primeira implementação como uma Extensão Escolar
na Terra Indígena Avá-Canoeiro, em maio de 2016. Discutimos alguns
dos diferenciais pedagógicos e curriculares desta última proposta, em
relação aos esforços anteriores, visando compreender o seu sucesso,
principalmente na alfabetização e letramento, em língua avá-canoeiro,
em tapirapé e em português.
Como contribuição sobre algumas das formas tradicionais de
aquisição do conhecimento Avá-Canoeiro e Tapirapé, na Terra Indígena
Avá-Canoeiro, entre as gerações, apresentamos e discutimos como se
configuram alguns dos espaços de aprendizagem Avá-Canoeiro, par-
tindo dos estudos de Silva (2016). Os espaços de aprendizagem são
76 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

construções socioespaciais nas quais a prática e a teoria convergem, de


modo que a observação e a coparticipação nas atividades a eles rela-
cionadas são fatores de aquisição e atualização do conhecimento trans
e intergeracional. Focamos nos espaços de aprendizagem seguintes: os
“arredores das casas”, os “espaços de criação de animais”, os “espaços de
caça, pesca e coleta”, os espaços de “plantio e roça” e o que foi chamado
de “varanda-escola”, o qual se desenvolveu no local atual onde as aulas
da extensão Ikatoté ocorrem.
De forma breve, os arredores das casas são os locais nos quais são
fabricados e reparados alguns dos elementos de cultura material Avá-
-Canoeiro relacionados a caça, pesca e coleta; artesanatos e adornos
corporais; objetos de processamento de alimentos; entre outros.
Por sua vez, os espaços de criação de animais se relacionam ao
tipo e à função do animal junto aos Avá-Canoeiro e Tapirapé, e também
ao seu estágio de vida. Os animais tradicionais, como araras, papagaios
e periquitos, são criados no interior da casa Avá-Canoeiro, podendo
possuir papéis de relevo em rituais noturnos em volta do fogo. Espé-
cies de macaco, como os saguis, além de filhotes de quati e paca, já
foram animais de criação dos Avá-Canoeiro, não mais atualizados como
tal devido às imposições da FUNAI local na década de 1990.
Animais que foram introduzidos no contexto Avá-Canoeiro nor-
malmente não ocupam o interior da casa. Esse é o caso de galos e ga-
linhas, introduzidos pela FUNAI entre a década de 1990 e 2000 como
elementos de segurança alimentar, que vivem em galinheiro próprio e
com relativa distância da casa dos Avá-Canoeiro. No entanto, os Avá-
-Canoeiro não costumam comer a sua criação. Os galos mais velhos ou
com mais raiva – pois brigam com os demais no galinheiro – passam
a morar ao lado da casa Avá-Canoeiro devido ao seu canto matinal ser
bastante apreciado.
Os cachorros são animais familiares aos Avá-Canoeiro desde a
época anterior ao contato, o que fica claro ao analisarmos a língua
Avá-Canoeiro (SILVA, 2016, em preparação) e textos históricos so-
bre as primeiras tentativas do contato. São fundamentais nas caçadas
e pescarias, uma vez que são usados para acuar a caça. Um dado in-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 77

teressante sobre a criação de animais diz respeito à forma como são


alimentados: normalmente compartilham do mesmo alimento dos
Avá-Canoeiro.
Os espaços de caça, pesca e coleta traduzem a dinâmica do cami-
nhar entre os Avá-Canoeiro (GARCIA, 2012). Os locais de abundância
de determinados animais caçados pelos Avá-Canoeiro – como cotia,
paca, tatu, veado, teju, entre outros – bem como os locais de abundân-
cia de peixes e locais de abundância de frutos, são majoritariamente
sazonais, e dependem do conhecimento, por parte dos Avá-Canoei-
ro, de sua temporalidade (SILVA, 2016). No Capítulo 4 do referido
livro descrevemos em detalhes a configuração desses três espaços e
como são tidos como espaços de aprendizagem. Em trabalhos futuros,
trataremos de forma mais concisa sobre o modo como o caminhar é
fundamental para atualizar a rede de relações entre estados e eventos,
e para a previsão do momento e do local certos para a garantia de uma
boa pesca, caçada e coleta.
Os espaços de “plantio e roça” também foram objetos de aná-
lise, e levantaram questões interessantes. Tanto os Avá-Canoeiro
quanto os Tapirapé se utilizam da técnica da coivara para o plantio:
escolhe-se uma área relativamente próxima da aldeia, queima-se esse
terreno de forma controlada, para depois propriamente se dedicar
ao plantio. No entanto, no atual local onde residem, muito prova-
velmente por ser uma região de encosta de morros e ao lado de um
pequeno rio, os Avá-Canoeiro e os Tapirapé não tiveram muita op-
ção, a não ser plantar nos arredores de suas casas. O momento tanto
da preparação do solo – hoje com o auxílio de novos instrumentos
e máquinas – quanto da seleção de sementes, o plantio e o acompa-
nhamento do crescimento até a colheita são momentos singulares de
aprendizado, nos quais são atualizados conhecimentos milenares por
parte dos mais novos.
Por fim, o espaço que fora chamado de “varanda-escola” trata-se,
na verdade, de uma iniciativa, própria dos Avá-Canoeiro, de manter
a varanda das casas construídas para o Posto Indígena (PIN) Avá-Ca-
noeiro como um espaço de leitura das imagens contidas em livros e
78 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

revistas levados à aldeia por pesquisadores e funcionários; assim como


um espaço de desenho e ilustração. Com a criação da extensão escolar
Ikatoté, em 2016, a qual ainda não goza de espaço próprio, a varanda-
-escola mantém a sua função, agora com materiais adequados também
a alfabetização e letramento, a atividades motoras como o desenho, o
recorte, a colagem, entre outros.
Em estudos posteriores, pretendemos inventariar um maior
número de espaços tradicionais de aprendizagem Avá-Canoeiro, a
forma com que se configuram e os conhecimentos que são atualiza-
dos e exercitados segundo faixas etárias e gêneros. Não nos foi possí-
vel, até então, observar e analisar a relação entre gênero e produção
ou atualização de conhecimento segundo os espaços de aprendiza-
gem. Podemos dizer, no entanto, que grande parte das atividades de
caça e pesca é realizada por homens, enquanto os trabalhos manuais
com artesanato e adornos são feitos por mulheres. Caberia, no en-
tanto, levarmos em consideração a atualização dos papéis de gênero
pelos Avá-Canoeiro em fuga, após o massacre da década de 1960,
para termos uma visão mais clara.
Na sequência do texto, relacionamos o fortalecimento linguís-
tico e cultural a esse modelo de Escola Indígena, diferenciada e espe-
cífica, que considera seus alunos e professores como pesquisadores e
aprendizes da cultura tradicional, na qual não somente o espaço físico
da escola, mas também os diversos espaços de aprendizagens (como
a varanda da escola e das casas, o rio, o Cerrado, as roças, as visitas
nas casas de moradores vizinhos, os arredores das casas, entre outros)
são apropriados e utilizados pela escola para, de forma sistematizada,
poder trabalhar o conhecimento tradicional e o conhecimento externo
fundamental ao exercício da cidadania.
Comentamos, por exemplo, que a manutenção dos contex-
tos de uso das línguas indígenas Avá-Canoeiro e Tapirapé – sobre-
tudo pela transmissão e atualização de conhecimento nos espaços
de aprendizagem – é fundamental para a manutenção e o fortaleci-
mento dessas línguas. Ademais, o letramento trilíngue proposto pelo
Grupo de Trabalho, do qual os Avá-Canoeiro e Tapirapé fazem parte,
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 79

é fundamental para manter-se a simetria no estudo das três línguas,


atentando-se sempre para que o Português não fique em uma situa-
ção de dominância na escola.

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Capítulo 6

Olhares brasileiros sobre a África: questões para reflexão


Ernesto Jorge Macaringue33

Introdução
Entre março de 2014 e agosto de 2018, os desafios impostos pela
vida me obrigaram a abandonar a minha família, a minha terra e o meu
país em busca do que se pode considerar “chaves” de sobrevivência,
neste mundo tão cruel e contraditório para as massas populares que se
encontram nos países subdesenvolvidos, uma vez que, segundo Harvey
(2011), em O enigma do capital: e a crise do capitalismo, as regras do
jogo são ditadas pelo “dinheiro” – capital financeiro e, pelas tecnolo-
gias de comunicação e informação. Estes meios de vida do século XXI,
além de serem escassos, estão sob controle das grandes corporações
mundiais. É assim, como interpretamos o funcionamento e as relações
sociais que são estabelecidas na atualidade.
No jogo das relações entre as nações, há uma tendência de se
privilegiar os acordos de assistência técnica, que promovem desin-
tegração temporária dos membros em comunidades que lutam pela
edificação de infraestruturas de provisão de serviços básicos, no lugar
de promoção de medidas que reforcem entrosamentos permanentes
e coesos. Foi dentro desse contexto que tivemos a oportunidade de
conhecer Goiânia, capital do estado de Goiás, no Brasil. Goiânia, uma
cidade maravilhosa, que Chaveiro (2007, p. 17) define como “expres-
33
Doutor em Geografia. Professor dos cursos de Turismo na Escola Superior de Hotelaria e Turismo
de Inhambane, da Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 81

são urbana de um estado e de uma região urbanizados”, foi escolhida


ocasionalmente para uma missão de “aventura”, “de sonhos”; e de “no-
vas possibilidades de vida” após o regresso a Moçambique, mas que
hoje é um lugar que considero minha segunda terra.
A cidade de Goiânia, tratando-se de ser capital de um estado
(Goiás), que figura nos lugares cimeiros na lista dos estados brasileiros,
devido à robustez socioeconômica, pode-se dizer que foi, para mim,
realmente um centro de aprendizagem e troca de experiências ricas.
Há que assinalar que um dos seus esteios de economia – o agronegócio
– é objeto de debates divergentes entre membros dos governos, ban-
queiros, grandes corporações e outros intervenientes econômicos, em
particular, empresas de pequeno porte e camponeses, tanto no Brasil
quanto em Moçambique. O que se tem testemunhado é que os primei-
ros se articulam no sentido de formarem um bloco, que abraça o agro-
negócio, visto por eles como novo modelo de estruturação econômica.
Em Moçambique, por exemplo, o governo, através do Ministé-
rio da Agricultura e Segurança Alimentar, tem-se articulado com os
governos dos países mais ricos, como são os casos de Brasil, Japão,
Estados Unidos, África do Sul, Índia, entre outros, no sentido de se
criar condições para viabilização de importação de experiências e/ou
modelos de produção.
As técnicas de produção agropecuária que foram criadas no cer-
rado brasileiro são um dos exemplos mais recentes da assistência técni-
ca oferecida pelo Japão ao Brasil, a partir da importação de experiên-
cias externas. Esse processo, tal como se pode constatar observando as
descrições das ações do PRODECER I, fornecidas por Pessôa (1988),
resultou numa estrutura econômica na região do cerrado brasileiro,
dominada essencialmente por empresas vinculadas ao agronegócio. O
grupo defende a tese de que o agronegócio é a melhor alternativa para
solucionar os diversos problemas com que Moçambique se confronta,
sobretudo, a insegurança alimentar e o desemprego rural.
Do lado contrário, as instituições não governamentais, moçam-
bicanas e estrangeiras, levantam vozes de contestação, não apenas para
denunciarem as aludidas experiências do agronegócio brasileiro desen-
82 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

volvidas no âmbito de Cooperação Técnica entre os governos do Brasil


e do Japão como algo perverso, mas, também, para chamar atenção
para aquilo que consideram como falta do envolvimento dos campone-
ses nos debates sobre as questões de agricultura e da questão agrária em
Moçambique. Além disso, apontam que o contexto socioeconômico de
Moçambique não se adéqua às experiências do agronegócio brasileiro.
Esse assunto é amplamente debatido por vários autores, poden-
do-se citar os trabalhos de Sayaka Funada-Classen (2013), “Fukushima,
ProSavana e Ruth First. Análise dos mitos por trás do ProSavana”, de
Natália Fingermann; ainda o texto de Natália N. Fingermann (2013),
“Os mitos por trás do ProSavana”; e as teses de Elizabeth Alice Cle-
ments (2015), “Brazilian policies and strategies for rural territorial
development in Mozambique: South-South Cooperation and the case
of Prosavana and PAA”, e de Ernesto Jorge Macaringue (2018), “Mo-
dernização da agricultura no distrito de Monapo em Moçambique no
contexto de redefinição da geopolítica da fronteira agrícola mundial
entre 2004 a 2017”.

Uma missão espinhosa e dolorosa


O deslocamento para o Brasil, através do Programa Estudan-
te Convênio – Pós-Graduação (CAPES/PEC-PG Edital 063/2013),
como estudante de Doutorado em Geografia no Programa de Pós-
-Graduação do Instituto de Estudos Socioambientais (IESA), da Uni-
versidade Federal de Goiás (UFG), se enquadra nos termos da Coope-
ração Técnica que o Brasil mantém com os países em desenvolvimento
e que “possui acordo de cooperação cultural e/ou educacional, para
formação em cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e douto-
rado) em Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras”.34 Por im-
perativos desse programa/convênio (profissionais), passei boa parte
do tempo no Brasil, em particular, em Goiânia (GO), buscando novos
conhecimentos científicos, aprimorando novas metodologias e outras
experiências de vida.
34
Para mais informações, consultar: http://www.dce.mre.gov.br/PEC/PECPG.php. Acesso em: 21
abr. 2019, às 18h20.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 83

No decurso da minha estadia, na condição do migrante africa-


no no Brasil, recebi convites de professores universitários das redes
pública e privada. Alguns eram colegas do curso de Geografia no
IESA, e não só. De um modo geral, todos os convites foram endere-
çados para proferir palestras sobre vários assuntos que, no mínimo,
pudessem contextualizar a África contemporânea. Entenda-se que,
embora seja um africano, vinculado ao mundo acadêmico, encarei
a missão como sendo “espinhosa e dolorosa”, dado o meu limitado
conhecimento sobre um continente que é mais falado a partir dos
seus aspectos negativos: conflitos armados, miséria, precárias condições
sanitárias, obscurantismo, ditaduras,...
O meu maior constrangimento sempre foi como falar de um
continente marginalizado pelo sistema-mundo moderno, cujos níveis
de rendimento, para a maioria dos países que o compõem, situam-se
nas posições mais baixas do mundo, nas escalas do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional (FMI)?
O fato é que as imagens penosas da África, que circulam nos
canais de TV internacionais, não são uma invenção, elas retratam os
dramas vividos por milhões de africanos e africanas, sob olhar impávi-
do dos que se enriquecem a partir da riqueza africana. Concomitan-
temente, há que destacar que os sistemas de administração instalados
em África ainda não conseguiram se libertar das garras das potências
coloniais, tal como evidenciam as organizações político-administrati-
vas que, em muitos aspectos, não refletem, na totalidade, a evolução
sociopolítica africana.
Outro quebra-cabeça que tive de enfrentar foi o de como falar
de um continente que “desconheço”.
No esforço de contextualização dessa África contemporânea,
por mim desconhecida, estrategicamente em todas as palestras pro-
feridas, optei por dissertar sobre o percurso histórico de estruturação
de uma nação que Newitt (2012) denomina “moderno Moçambique”.
Segundo esse autor, o moderno Moçambique é o resultado de uma
série de tratados internacionais assinados entre Portugal e a Grã-Bre-
tanha em 1891.
84 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Essa realidade, infelizmente aceite pelas elites políticas africanas


que lideraram o processo de expulsão dos administradores estrangei-
ros35, é uma afronta aos esforços do resgate da soberania plena que a
África clama.
Em função do público-alvo das palestras, composto por sujei-
tos vinculados às instituições de ensino, sendo uma parte deles os que
estão vinculados à UEG, a estratégia adotada consistiu em ministrar
palestras em formato de aulas magistrais, nas disciplinas de Geografia
e História, nos campi de Itapuranga, Cidade de Goiás, Iporá e Anápolis.
As instituições citadas são apenas alguns exemplos ilustrativos
dos campi da UEG com as quais interagi. Além dessas, outras entidades
de ensino, que tive o privilégio de visitar, foram os colégios estaduais
e os municipais. Em todas essas instituições, a convite de professores/
professoras, ativistas dos movimentos sociais sediados na região metro-
politana de Goiânia, em particular, os que estão filiados ao Movimento
dos Sem Terra (MST) e à Associação de Geógrafos Brasileiros, proferi
palestras sobre o continente africano.

Aprendendo para além da Academia


Enquanto residente temporário no território brasileiro, meu ob-
jetivo fundamental estava centrado em atividades de ensino e aprendi-
zagem, que decorriam no Programa de Pós-Graduação em Geografia.
Obviamente que o processo de ensino e aprendizagem decorreu tanto
nas instalações do IESA quanto em outras instituições de ensino supe-
rior da região Centro-Oeste, nos colégios, nos institutos federais, nos
órgãos dos governos municipais, nas igrejas, nos circuitos familiares e,
claro, nos espaços de lazer e de diversão.
Há que se assinalar que os momentos e os lugares alargaram
os circuitos de amizade, aprofundaram os conhecimentos no cam-
po da Geografia, assim como também as escutas de falas sertanejas,
acadêmicas, urbanas, em sua maioria enaltecendo as suas alegrias,
em virtude do protagonismo da economia brasileira no mercado in-
35
Cf. Resolutions adopted by the First Ordinary Session of the Assembly of Heads of State and Gov-
ernment Held In Cairo, UAR, from 17 to 21 July 1964.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 85

ternacional das commodities; mas também, fiquei comovido com os


clamores e as angústias daqueles que, perante a “voracidade” dos en-
genhos tecnológicos, não se curvam para denunciar o que eles cha-
mam de “os males” do agronegócio brasileiro – que se traduz em
destruição dos bens naturais…
No caderno vermelho, presenteado pelo meu orientador, o pro-
fessor Eguimar Felício Chaveiro, aprendi a arte de anotar as falas das
palestras, dos seminários, dos diálogos entre amigos; com o apoio dos
dispositivos tecnológicos modernos, os vulgos smartphones; gravadores
de áudio e máquinas fotográficas fotografei as monstruosas plantações
de soja, de milho, de cana-de-açúcar, que compõem a nova face da agri-
cultura comercial – o agronegócio com que o Brasil se apresenta no
mercado internacional como um dos maiores produtores do mundo.
Nos gravadores também estão guardadas as vozes dos trabalhadores,
professores e alunos de diversas crenças ideológicas. Registrei ainda o
que se pode chamar de “retalhos” de formações naturais do bioma Cer-
rado, cursos de água, fábricas, centros comerciais, estabelecimentos
hoteleiros etc. Pode-se dizer mesmo que, a partir desses procedimen-
tos, a experiência se valeu por agregação de sensibilidades, inoculadas
por meio de olhares, audições e cheiros.
Do conjunto dos fatos que foi possível captar e reter no decurso
das falas e olhares, há aspetos que dizem respeito ao imaginário bra-
sileiro sobre a África, que denomino neste texto “olhares brasileiros
sobre África”, que constitui objeto de presente reflexão, na qual uma
parte das ideias foi apresentada no I Seminário Internacional dos Povos
e Saberes Indígenas e Afrodiaspóricos36, que teve lugar na UEG, campus
de Ciências Socioeconômicas e Humanas de Anápolis, entre os dias de
20 e 21 de junho de 2018.
Um fato tão marcante é que uma boa parte das pessoas com
quem interagimos transmitiu-nos uma ideia de que, administrativa-
mente, a África é uma única nação. Esse entendimento se configurou a
36
Este texto é uma adaptação da comunicação oral apresentada no I Seminário Internacional Povos
e Saberes Indígenas e Afrodiaspóricos, organizado pela UEG, campus de Ciências Socioeconômicas e
Humanas de Anápolis, entre os dias de 20 e 21 de junho de 2018.
86 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

partir, por exemplo, do desconhecimento da existência de uma nação


como Moçambique. Ficou para nós a ideia de que há um imaginário de
uma África diferente da que resultou da divisão administrativa a partir
dos interesses das potências imperialistas europeias. Essa África não
existe, e nada comprova que certa vez tenha existido. Por outro lado,
algumas nos deram a entender um pensamento de que todos os povos
africanos coabitam harmonicamente com a fauna.
Assim, numa mesa em que se pretendia que a reflexão girasse
em torno de uma questão óbvia, “Por que falar sobre diáspora africana
na Universidade?”, a nossa fala situou os olhares lançados à África pelos
alunos brasileiros. Assim, o nosso fio de pensamento dialoga em torno
da seguinte pergunta: Quais são os imaginários que os brasileiros criam
sobre o continente africano?
A partir da sistematização das falas que mantive com brasileiras
e brasileiros, dos mais diversos estratos sociais, alunos e professores
universitários e de colégios, nosso objetivo nesta reflexão é apresentar
uma análise das narrativas mais comuns com as quais se constrói um
imaginário do continente africano por estes sujeitos.

Moçambique e Brasil: dois mundos próximos?


Tanto Moçambique quanto o Brasil são apenas pontos de refe-
rência de uma reflexão das narrativas, ideologias associadas às ima-
gens construídas sobre a África, que, tal como refere M. Amadou
– Mahtar M’Bow, Diretor Geral da UNESCO, entre 1974 e 1987 –,
por muito tempo “nunca era considerado como uma entidade histó-
rica” (2010, p. 21).
Nesse trabalho, considera-se essa constatação de Mahtar M’Bow
como um episódio relevante, dado que tudo o que foi construído sobre
África tem como bases de sustentação ideias preconceituosas. O autor
diz que o esforço empreendido por tais preconceituosos era o de:
[…] enfatizar “tudo o que pudesse reforçar a ideia de uma cisão
que teria existido, desde sempre, entre uma “África branca” e uma
“África negra” que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se fre-
quentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 87

impossíveis misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens,


crenças, hábitos e ideias entre as sociedades constituídas de um lado
e de outro do deserto. Traçavam-se fronteiras intransponíveis entre
as civilizações do antigo Egito e da Núbia e aquelas dos povos subsaa-
rianos. Certamente, a história da África norte-saariana esteve antes
ligada àquela da bacia mediterrânea, muito mais que a história da
África subsaariana mas, nos dias atuais, é amplamente reconhecido
que as civilizações do continente africano, pela sua variedade lin-
guística e cultural, formam em graus variados as vertentes históricas
de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares
(MAHTAR M’BOW, 2010, p. 21).
Entendemos nesse trabalho que a construção das aludidas
“África branca e África negra” demarca a divisão internacional de
trabalho em África. A atribuição da tarefa de fonte de mão de obra
barata, e a consequente fixação de redes de comercialização de escra-
vos em África (povos fixados na região a sul do Saara – a dita, África
Subsaariana), faz parte das estratégias capitalistas, em sua etapa ini-
cial de acumulação primitiva.
O comércio de escravos em África é encarado neste trabalho
como uma crueldade humana que estabeleceu o que chamamos ele-
mentos identitários entre Moçambique e Brasil. Em função da com-
plexidade da temática das narrativas e ideologias sobre África, deci-
dimos pegar o caminho de desconstrução, a partir do enaltecimento
dos elementos que figuram como traços de irmandade entre Moçam-
bique e Brasil.
A História, a Geografia e a Economia Política já deram provas
suficientes dos processos de evolução humana, no que diz respeito
aos primeiros povoamentos e surgimento da noção de território. Das
evidências que foram apontadas, destacamos neste trabalho os inter-
câmbios humanos como a centralidade de todas as transformações e
dinâmicas processadas. É sobejamente conhecido que, por razões his-
tóricas, em 1996, foi criada a Comunidade dos Países da Língua Por-
tuguesa (CPLP).
A criação da CPLP é a concretização do reconhecimento de que
os intercâmbios humanos estabelecidos, a partir de ideias preconcei-
88 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

tuosas, deixaram legados, alguns dos quais aqui são enquadrados como
elementos de índole identitária e cultural, e, como tal, são classifica-
dos, para efeitos desta análise, como “elos de aproximação”, e que, até
então, não constam das pautas de investigação para sua interpretação.
O elemento escolhido para intermediação do diálogo é basica-
mente o de “nomes” que são atribuídos aos lugares/às coisas. Do que
é do nosso conhecimento, as palavras “Moçambique”, “Gorongoza” e
“Rio de Janeiro” são nomes de lugares e/ou coisas, tanto em Moçam-
bique quanto no Brasil. Moçambique é comumente conhecido como
nome de uma Nação africana que foi constituída no âmbito das dispu-
tas das potências capitalistas europeias, nomeadamente Alemanha, Bél-
gica, França, Inglaterra e Portugal. A sua constituição tinha em vista,
unicamente, a exploração dos bens naturais, incluindo os povos fixados
dentro do espaço demarcado.
Rio de Janeiro é nome de uma das mais belas cidades brasileiras,
construída ao longo da costa atlântica, sob comando da nobreza portu-
guesa, que, por sua vez, reuniu esforços suficientes para conquistar um
vasto território na América Latina.
E, por fim, Gorongoza é nome de um distrito, inserido na pro-
víncia de Sofala, em Moçambique. Em função da documentação oficial,
tudo nos conduz a deduzir que a gênese dos três nomes coincide com
o período em que os portugueses e asiáticos fixaram-se e exerceram o
domínio aos povos africanos.
As três palavras, como nomes de lugares, são vulgarmente co-
nhecidas. No entanto, as mesmas palavras são também usadas com ou-
tros significados, a saber: Moçambique é nome de um grupo cultural
– Terno de Congada – uma das manifestações culturais que ainda pre-
servam valores culturais africanos; por sua vez, Rio de Janeiro é nome
de um lugar na Baía de Inhambane, lugar de lazer, onde os moradores
locais desfrutam a beleza paisagística da costa do Índico; e, por fim,
Gorongoza é nome de um bar, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro.
Aqui está-se perante significados de palavras, em Moçambique e
Brasil, dois países cujo passado foi determinado pelo mesmo país colo-
nizador – Portugal. Além dos fatos acima descritos, há outros que, no
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 89

nosso entender, merecem uma menção: em um dos pontos da Baía de


Inhambane, no extremo da linha costeira no município de Maxixe, no
posto administrativo de Chicuque, há uma pequena praia natural que
os locais denominam Praia Rio de Janeiro. Outro caso é o município
de Quelimane, que ostenta nome de “pequeno Brasil”. O “pequeno
Brasil”, tal como os quelimaneses denominam a sua magnífica cidade,
acolhe, em determinadas épocas do ano, uma das maiores festas brasi-
leiras – o Carnaval.
Os quatros topônimos aqui referidos: Rio de Janeiro/Brasil e
Moçambique/Gorongoza, pelo que eles simbolizam, em ambientes
acadêmicos, escolares e não só, pode-se julgar desnecessária sua ex-
plicação. No entanto, a partir dos exemplos aqui citados, pode-se
concluir que essa interpretação demonstrou que não se restringem
ao que é sobejamente de senso comum. De nossa interação no Brasil,
comprovamos que os ambientes acadêmicos e escolares são espaços
de narrativas e imaginários sobre o “Outro”, e não propriamente da
sua realidade.
Os dados de que dispomos não são suficientes para se aferir o
que se conhece, bem como a história real das toponímias “Brasil”, “Rio
de Janeiro” e “Moçambique”, em referência aos territórios, espaços
físicos de Moçambique, como também, Terno Moçambique, a uma ce-
lebração religiosa negra no Brasil. Ao mencioná-los, nosso objetivo é
apresentar as evidências que demonstram as ligações históricas entre
os dois países.
O porto de Quelimane, de acordo com fontes históricas, foi um
dos pontos de partida, no Índico, dos sujeitos que foram capturados,
no âmbito do negócio de escravos entre os séculos XIX a XX. Os rela-
tos desse mercado revelam que o transporte desses sujeitos tinha como
ponto de partida a África, e como destino diversos pontos do mundo,
entre eles, na América Latina, o Brasil foi o que mais se beneficiou.
Em relação ao “Terno Moçambique”, o que se sabe é que é nome
de um grupo de Congada mais prestigiado entre outros agrupamentos.
Segundo Monteiro (2016, p. 4), as congadas são as festas e as cerimô-
nias que o Reinado de Nossa Senhora do Rosário faz para os santos
90 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

católicos, festejados africanamente. Assim, uma Congada é uma ce-


lebração religiosa que exalta a espiritualidade religiosa afrocatólica, a
partir da “Nossa Senhora do Rosário”. Nossa Senhora de Rosário sim-
boliza o “sagrado negro”, “protetor/salvador” no seio das comunidades
diaspóricas no Brasil.
Quanto ao nome de Gorongoza, que se atribuiu a um Bar em Ni-
terói, o relato que foi possível obter, junto a um dos empregados, foi
que o proprietário do bar, nos princípios da década de 1970, residiu no
distrito de Gorongoza, na província de Sofala, em Moçambique. A par-
tir desse fato, pode-se deduzir que o proprietário do bar foi explorar/
caçar alguns dos bens faunísticos mais procurados no mercado turísti-
co, nomeadamente elefante, leão, hipopótamo, rinoceronte, leopardo,
entre outros. O argumento dessa aproximação está no fato de que,
no distrito de Gorongoza, existe uma extensa área que ostenta uma
diversidade de fauna e flora, tendo sido objeto de declaração como um
patrimônio natural da humanidade. No quadro legal moçambicano, fi-
gura como Parque Nacional.
O Brasil, nos últimos 20 anos, passou a dedicar uma parte da sua
atenção, no contexto internacional, à promoção de um novo modelo
de cooperação, que Clements (2015) chama de “Cooperação Sul-Sul”.
Pode-se dizer que a constituição de um grupo formado por África do
Sul, Brasil, China, Índia, Rússia (BRICS) abrange os domínios políti-
cos, econômicos, sociais, culturais e religiosos. Nesse sentido, a coo-
peração técnica entre governos, assistência social aos grupos vulnerá-
veis (crianças, mulheres e idosos), cuidados sanitários, disseminação
de programas de assistência alimentar e promoção de intercâmbios
humanos são outras áreas que mereceram atenção nos últimos anos, a
partir dos projetos de cooperação já citados. Com essa aproximação,
poder-se-ia julgar que o Brasil, em relação à África, tem se empenha-
do no sentido de usar o capital histórico acumulado para estreitar as
relações de cooperação nos domínios de economia, política e cultura.
Embora seja factual que a organização e realização de eventos
científicos, como de outra índole, para divulgar resultados de pesqui-
sas e debater propostas para solução dos problemas enfrentados pelos
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 91

povos irmãos, como as comunidades indígenas e os afrodescendentes,


também passou a ser parte da agenda pública nos últimos 20 anos.
Porém, essa conquista pode ser abandonada nos próximos anos, uma
vez que o presidente eleito no Brasil em 2018, por várias vezes, tenha
se mostrado hostil às políticas de cotas em favor dos negros; como
também revelou que iria promover a expansão do agronegócio em ter-
ritórios ocupados pelos indígenas.
É evidente que tem sido através dessas ações que houve incre-
mento dos intercâmbios entre as instituições de ensino superior nacio-
nais e estrangeiras. Por outro lado, a agenda das pesquisas que abordam
a situação dos sujeitos inviabilizados, designadamente, negros, indíge-
nas, quilombos, moradores de favelas, trabalhadores e trabalhadores
de sexo têm denunciado a marginalização desses grupos por parte dos
órgãos públicos. O reconhecimento do papel desempenhado por essas
iniciativas tem motivado o aprofundamento do debate e o surgimento
de novas propostas de linhas de pesquisa e demandas a serem aborda-
das nas grades curriculares para todos os níveis de ensino.

Olhares dos alunos sobre a África


Tal como foi assinalado na secção introdutória, a nossa reflexão
é sobre as narrativas e percepção dos alunos vinculados aos níveis de
ensino fundamental, médio e superior, no estado de Goiás. O que é
exposto não representa o que se poderia julgar como pensamento dos
alunos do estado de Goiás. Os depoimentos recolhidos são apenas opi-
niões – como também, base de reflexão sobre os conteúdos ministra-
dos nas redes de ensino – sobre a África.
Para nós, alguns depoimentos (perguntas, respostas e comen-
tários) demostram o que se pode classificar como “desconhecimento
das culturas e percursos históricos do continente africano”. Uma vez
admitida tal ignorância, uma indagação que se faz é: o que a determina?
Para se interpretar os determinantes da ignorância em certos
alunos, convidamos o leitor a observar as representações africanas em
manuais de história geral: a África é sempre considerada como “o ber-
ço da humanidade”, como, também, salienta-se que os povos africanos
92 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

mantêm modos de vida que se enquadram na “barbárie”. No seio dos


religiosos, o discurso é de que “os povos africanos são ateus, pagãos,
isto é, difunde-se uma imagem de que os africanos não conhecem
Deus”. Nos meios informativos, o que é mais difundido sobre a África
é a “penúria que dilacera os povos, as guerras de disputas pelo controle
do poder político e dos bens naturais”.
No quadro acima traçado há fatos que são questionáveis, mas,
também, uma boa parte do que se imagina como verdade absoluta são
meras falácias com carga preconceituosa. Aqui a nossa interpretação é
de que há uma demonstração inequívoca de que a África, no imaginário
das forças hegemônicas, não passa de reserva dos recursos naturais e
de mão de obra barata, daí a razão da negligência quanto ao reconheci-
mento de sua participação, mesmo que tenha sido a partir de métodos
coercitivos, no processo de povoamento do território brasileiro. Neste
sentido, até que ponto se pode assumir que o desinteresse pela África,
embora seja uma parte das raízes do povo brasileiro, está no fato de os
africanos terem chegado ao Brasil na condição de escravos?
Tratando-se de um ensaio que analisa olhares dos estudantes em
relação ao estágio socioeconômico em que a África se encontra, em re-
lação aos outros continentes e/ou países, a nossa perspectiva de análise
foi baseada em distinguir as palavras-chave nas narrativas dos alunos,
usadas para descrever o continente africano.
Do que se constatou nos colégios, a partir das perguntas for-
muladas pelos alunos, durante as palestras proferidas e seminários de
que participei, é que a imagem que se tem sobre a África, é que para
uns a África é um país; todavia, para outros, a divisão administrativa
africana é produto de partilha europeia; e a de que a população vive
em condições deploráveis devido à pobreza. A única causa do estado
de pobreza é a má governação, pois há uma ideia de que a África é
rica em bens naturais; país onde há guerras étnicas; país com eleva-
dos índices de HIV/AIDS; a maioria da população está organizada
em tribos; onde as desigualdades baseadas no gênero são maiores; a
situação da mulher é penosa; a população coabita o espaço habitacio-
nal com a selva etc.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 93

No nosso entender, algumas questões que foram formuladas não


apenas pelos alunos dos colégios, como também das universidades,
demonstraram claramente que a “pluralidade africana” não existe nas
falas, o que pode ser interpretado na mesma perspectiva dos autores
que afirmam que a marginalização da África pelos grupos hegemônicos
do mundo é um fato, incluindo entidades que, aparentemente, têm
por vocação promover a igualdade ou emancipação em todo o mundo.
O desconhecimento de uma África Lusófona, das regiões econômicas
como a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (em in-
glês, Southern Africa Development Community – SADC), que é uma orga-
nização intergovernamental criada em 1992 e dedicada à cooperação
e integração socioeconômica, bem como à cooperação em matérias
de política e segurança, dos países da África Austral; assim como o
Mercado Comum da África Oriental e Austral (COMESA, em inglês,
Common Market for Eastern and Southern Africa), uma organização
de integração econômica entre países da África que tem como objetivo
promover a prosperidade econômica dos estados-membros, através do
estabelecimento de uma área livre para o comércio. Como se pode
notar, assim como a heterogeneidade cultural africana, o mundo dos
saberes africanos é gritante.
Nesse sentido, o nosso debate se desdobra para desconstruir os
olhares que subestimam a pluralidade africana, que pudemos captar
durante os debates ocorridos, quer em salas de aulas, como também
em outros espaços de interações sociais. Parece-nos que a África é
um continente misterioso no seio do/as brasileiro/as. Essa realida-
de contrasta, e, ao mesmo tempo, é uma afronta, com a história da
sociedade brasileira, cuja formação contou com a participação do/
as africano/as.
Olhando para os sujeitos, Nelson Mandela provavelmente
seja a figura mais conhecida. Os dramas do ebola, da AIDS, as guer-
ras e a poligamia aparecem com maior frequência nas narrativas
ou questionamentos efetuados por aqueles que estão interessados
em conhecer um pouco sobre a África. Nos meios informativos
mais poderosos, as notícias sobre a África dão primazia às guerras,
94 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

consideradas como de motivações étnicas. O que se passa com o


sistema de ensino brasileiro para negligenciar uma África que é tão
viva no Brasil?
Paradoxalmente, entre os africanos e os brasileiros há um alar-
gamento das distâncias que separam os sujeitos em função das crenças
políticas e das condições econômicas de sua reprodução. Na qualidade
de sujeito africano, submetido ao jogo frenético acima exposto, re-
cebi um convite da UEG, campus de Anápolis, para participar como
expositor no I Seminário Internacional Povos e Saberes Indígenas e
Afrodiaspóricos.
De acordo com as organizadoras do evento, a sua convocação
insere-se no âmbito das articulações da Organização das Nações Uni-
das (ONU), que, através da Resolução nº 68/237, decretou a Década
Internacional de Afrodescendentes,37 como, também, para as organi-
zadoras, o evento tinha em vista o reforço e a inserção nos debates
acadêmicos de temáticas que versam sobre os saberes; culturas; artes;
direitos; territórios e lutas por reconhecimento dos povos indígenas do
Cerrado brasileiro, pensando-se sempre que o debate ecoe em outros
segmentos sociais e comunidades mais amplas.
Ao que tudo aponta, o evento foi desenhado para constituir um
espaço de chamada de atenção para a necessidade de reforço das coo-
perações nacional, regional e internacional para promoção do respeito,
das medidas conducentes à proteção e realização de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais de afrodescendentes, citados nos
seguintes termos:
A Década será uma oportunidade para se reconhecer a contri-
buição significativa feita pelos afrodescendentes às nossas socie-
dades, bem como propor medidas concretas para promover sua
inclusão total e combater todas as formas de racismo, discrimi-
nação racial, xenofobia e qualquer tipo de intolerância relacio-
nada. Nesse sentido, os objetivos que foram prescritos e a serem
perseguidos na Década, incluem: i) o fortalecimento da coope-
ração e as ações nacionais, regionais e internacionais relativas ao

37
Para mais informações, visitar o site da ONU através do endereço: https://www.un.org/pga/wp-
-content/uploads/sites/3/2014/11/International-Decade-for-People-of-African-Descent.pdf.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 95

pleno gozo dos direitos econômicos, sociais, culturais civis e po-


líticos pelos afrodescendentes, bem como sua participação plena
e igualitária em todos os aspectos da sociedade; ii) promoção
de um maior conhecimento e um maior respeito aos diversos
patrimônios culturas e contribuições de afrodescendentes para
o desenvolvimento das sociedades; iii) adoção e fortalecimento
de marcos legais nos âmbitos nacional, regional e internacional,
de acordo com a Declaração e Plano de Ação de Durban, e com a
Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial, bem como garantir a sua implementa-
ção total e efetiva.
A Década Internacional permitirá que as Nações Unidas, Estados-
-membros, sociedade civil e outros atores relevantes se juntem aos
afrodescendentes e tomem medidas efetivas para a implementação
do programa de atividades, com o espírito de reconhecimento, justi-
ça e desenvolvimento (UNESCO, 2017).38
Tal como se pode apurar na citação acima transcrita, há um re-
conhecimento de que os sujeitos descendentes da África são vítimas
de práticas que se enquadram nos preconceitos, cujos praticantes são
ocultados pela própria ONU. É importante lembrar aqui que, embora
a escravatura tenha sido abolida no século XIX, ela continua viva e os
seus praticantes, na maioria das circunstâncias, não foram punidos.
As vicissitudes a que estão votados os sujeitos africanos e afrodescen-
dentes devem ser entendidas no contexto das contradições capitalis-
tas, em particular, as que estão relacionadas com os conflitos entre as
classes sociais.
A marginalização da África e dos seus povos não se resume a um
problema em que os seus responsáveis são exclusivamente os gover-
nantes africanos, pois as potências imperialistas construíram territó-
rios que não permitem nenhuma possibilidade para sua libertação. Em
relação aos afrodescendentes e indígenas, a sua marginalização insere-
-se nos conflitos das novas formas de colonização, que alguns autores
denominam colonialismo interno (QUIJANO, 2007).

38
Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/prizes-and-ce-
lebrations/2015-2024-international-decade-for-people-of-african-descent/. Acesso em: 21
abr. 2019, 17h40.
96 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Para entender as contradições da África


Para o entendimento das contradições que são responsáveis
pela marginalização do continente africano, procuramos explorar o
desconhecimento da pluralidade africana, no seio das instituições de
ensino no estado de Goiás. A nossa amostra revelou um fraco domínio
sobre a realidade da pluralidade africana. Tal como demonstramos nos
parágrafos acima, há um processo de construção de imagens sobre a
África. Para se chegar a essa conclusão, baseou-se em questões formu-
ladas pelos alunos e alunas das escolas fundamentais e das universida-
des durante a interação mantida em torno da cultura, da política, da
economia e da religião em África.
É importante registrar que o problema das imagens inventa-
das é secular, tal como ilustram as duas Áfricas criadas, a partir da
distribuição geográfica dos povos africanos com base na retrógrada
noção de raça; de um lado, a “África branca”, e do outro, a “África
negra”, que o Diretor Geral da UNESCO (1974-1987) interpre-
tou nos seguintes termos: “O continente africano quase nunca era
considerado como uma entidade histórica” (M’BOW, 2010, p. 22).
Nesse sentido, a demarcação das duas Áfricas visava “[…] reforçar
a ideia de uma cisão, que teria existido, desde sempre, entre uma
‘África branca’ e uma ‘África negra’ que se ignoravam reciproca-
mente.” O autor acrescenta, ainda, que:
Apresentava-se frequentemente o Saara como um espaço impe-
netrável que tornaria impossíveis misturas entre etnias e povos,
bem como trocas de bens, crenças, hábitos e ideias entre as so-
ciedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traça-
vam-se fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo
Egito e da Núbia e aquelas dos povos subsaarianos (M’BOW,
2010, p. 22).
Por circunstâncias alheias à sua vontade, os negros foram deslo-
cados dos seus territórios, em condições desumanas, para outros ter-
ritórios, em particular, para a América Latina, como mera mercadoria;
tendo sido, por essa via, usados como instrumentos de trabalho na for-
mação de nações modernas, como é o caso do Brasil.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 97

Se o deslocamento do PRETO às Américas se destinava a ser


mercadoria, que era transacionada nas relações das trocas comerciais39,
não menos verdade é que, uma vez convertido o PRETO a instrumen-
to de trabalho, havia necessidade de criação dos mecanismos para que a
sua existência como instrumento de trabalho fosse assegurada. Resulta
daí que, através das políticas de gestão demográfica, a reprodução dos
pretos era objeto de controle, com base em ideias malthusianas.
A distribuição espacial dos pretos no Brasil, tanto o seu cresci-
mento natural quanto o seu status social, tem explicação nas políticas
de gestão demográfica e econômica aplicadas aos escravos. Não é de
estranhar que a presença dos pretos no campo brasileiro não se faça
acompanhar com a ocupação da terra e sua posse. Em função das cir-
cunstâncias que ditaram a presença dos pretos no Brasil, a estes, ne-
gou-se o direito de acesso e ocupação da terra.

Considerações finais
Aqui estão os alicerces de uma reflexão sobre os olhares lançados
à África por quem conhece a África através dos manuais da escola, da
mídia, das missões religiosas etc. Realmente, para a maioria dos sujei-
tos com os quais tivemos a oportunidade de interagir, ficou patente
para nós que as únicas fontes com as quais se conta para a difusão de
saberes, culturas e modos de vida dos povos africanos são os acima ci-
tados: manuais escolares, mídia e missões religiosas.
Com este texto não se pretende criar uma outra fonte de di-
fusão de saberes, culturas e modos de vida dos povos africanos, mas
contribuir para a sistematização das identidades construídas e que
qualificam a cultura e os povos vítimas de processos de colonização
como inferiores.
39
Desde que foram empregadas as noções de “brancos” e “negros” para nomear genericamente os
seres humanos; os colonizadores, brancos, passaram a ser considerados superiores, e os colonizados,
os africanos, foram levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado pela
pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras, e destinado ao trabalho for-
çado, o africano veio a simbolizar, na consciência de seus dominadores, uma essência racial imaginária
e ilusoriamente inferior: a de negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos
africanos no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das realidades
históricas e culturais não podia ser senão falseada (M’BOW, 2010).
98 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Ao se considerar o estágio socioeconômico dos africanos como


“vida selvagem”, procura-se construir uma imagem que coloca os afri-
canos como povos irracionais, tal como foi sustentado para justificar a
necessidade de “civilização”, uma prática recorrente na era dos desco-
brimentos. O descobridor – a nobreza portuguesa, munida das ideo-
logias imperialistas, sustentadas com ideias de supremacia de cor da
pele impregnadas nas aristocracias europeias do século XV – sempre
se colocou numa posição de enviado de Deus para educar e civilizar os
ditos irracionais pretos.

REFERÊNCIAS

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2013.
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Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 99

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ções agrárias no Cerrado das zonas de Paracatu e do Alto
Paranaíba – MG. 1988. Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Gra-
duação em Geografia, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesqui-
ta Filho. Rio Claro, 1988. 251 f.
Capítulo 7

O que significa ser afrodescendente hoje?


Ana Lúcia Nunes de Sousa40

Completamos mais de cinco séculos desde que o tráfico tran-


satlântico de pessoas negras modificou o conceito de pessoa humana.
Também completamos três anos desde que a Organização das Na-
ções Unidas (ONU) proclamou o Decênio Internacional dos Povos
Africanos (SEPTIEN, 2017). Em 15 de fevereiro de 2018 foi às te-
las do cinema Pantera Negra, o primeiro filme hollywoodiano pro-
tagonizado por heróis negros e com maioria do elenco também de
pessoas afrodescendentes. Ao mesmo tempo, no Brasil, as casas de
culto afro-brasileiras passam por um período de constrangimentos
e perseguições; jovens negros continuam a ser assassinados todos os
dias, e os resultados da intervenção na segurança do estado do Rio de
Janeiro, no Brasil, demonstram que só houve mais violência para esta
população. E eu, mulher, descendente de africanos e indígenas, con-
tinuo a ser, quase sempre, a única pessoa desta origem na maior par-
te dos eventos acadêmicos dos quais participo, ao redor do mundo.
Neste momento, me pergunto: o que significa ser afrodescendente?
Minha proposta neste ensaio curto é cruzar reflexões pessoais, dados
históricos e conjunturais e referências teóricas sobre a questão.

40
Professora adjunta no Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, onde atua no Programa de
Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde e no Laboratório de Vídeo Educativo. Doutora em
Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em Comunicação e Jornalismo
pela Universidad Autónoma de Barcelona.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 101

A memória de qualquer pessoa considerada não branca guarda


inúmeros exemplos que podem alavancar questões teóricas profundas,
temas para livros, conferências, documentários etc. Para começar este
texto, tomo a liberdade de evocar uma memória recente. Em 2017,
eu vivia em Barcelona, Espanha. Estava passeando num belo dia de sol,
com um companheiro. Eu, brasileira; ele, do povo haussa, nigeriano.
Há quem diga que pudéssemos ser primos distantes. Passeávamos e vi
uma barraquinha de “produtos naturais”. Perguntei pelo “sabão de Alep-
po”. O vendedor, muito prontamente, um senhorzinho catalão, tentan-
do ser simpático, logo atirou: “Este produto é excelente, as ‘pessoas de
raça’ compram muito.” Eu e meu companheiro nos olhamos, cúmplices.
Comprei o sabão mesmo assim. Rimos depois. “Pessoas de raça?” Não
precisávamos explicar um ao outro o racismo explícito nesta frase e já
não nos restava mais que sorrir para estas pessoas caucasianas.41 Assim,
a primeira questão teórica levantada por minhas memórias, e que abor-
daremos aqui, é a de raça. A raça, diferentemente da forma como este
senhorzinho catalão deve imaginar, não deve ser tomada como algo “na-
tural e inócuo, sino como resultante de relaciones de poder” (SEPTIEN, 2017,
p. 1). De acordo com Quijano, a ideia de raça é:
o instrumento mais eficaz de dominação social inventando nos
últimos 500 anos. Produzida no começo da formação da América
e do capitalismo, na passagem do século XV ao XVI. Nos séculos
seguintes, foi imposto sobre toda a população do planeta como parte
da dominação colonial europeia (2011, p. 1, a tradução é nossa).
A ideia de raça e, obviamente, a de que uma raça era superior à
outra, que alguns seres humanos não eram assim tão humanos, não foi
senão uma ficção criada para justificar a invasão colonial e a necessidade
do nascente capitalismo inerente ao trabalho escravo. É claro que esta
ideia foi se revestindo, com o passar dos anos, de roupagens mais mo-
dernas e menos óbvias, assentando-se, principalmente, em bases como
as da religião, da literatura, das artes, do cinema etc. Era necessária
41
Este não é, obviamente, o posicionamento que sempre adotamos. Mas, acredito, hoje, que não vale
a pena gastar tempo e energia com quem não quer entender. Um aprofundamento teórico sobre esta
posição pode ser encontrado em EDDO-LODGE, R. Why I’m no longer talking to white peo-
ple about race. London: Bloomsbury Publishing, 2017.
102 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

a criação de toda uma narrativa que demonstrasse a inferioridade da


“raça negra”, e isto foi se dando através destes elementos e imbricando,
de forma bastante pervasiva, todo o imaginário social do Ocidente.
O racismo, tão explícito para mim e meu companheiro, na fala
do senhor catalão, explica Septien (2017), é uma opressão baseada na
suposta existência de “raças” e na inferioridade de uma sobre as obras,
sobre a base do modelo hegemônico da branquidade e a visão subalter-
na da negritude e de outras populações não brancas. Obviamente, esta
ideia biológica da separação de raças pelo fenótipo já não se sustenta
atualmente, mas as consequências do racismo engendrado desde 1500
seguem mais vivas do que nunca, uma vez que o racismo é estrutural e
sistêmico, e não um comportamento ou ação individual.

De tornar-se negra a tornar-se uma negra organizada


Toda pessoa negra poderia escrever um livro contando as várias
vezes em que foi vítima de racismo. Eu sofro racismo quase todos
os dias e, hoje, na maior parte das vezes, pouco me afeta. Não por-
que não afete materialmente ou psicologicamente, mas porque, por
uma estratégia de sobrevivência, as populações afrodescendentes e de
outras etnias, como ciganos, indígenas etc., que sofrem racismo co-
tidianamente, temos que desenvolver práticas e estratégias para nos
proteger e manter-nos vivos, e isto implica, algumas vezes, ignorar
fatos e situações. Mas não era assim quando eu era uma criança ou
uma adolescente. Como criança, lembro-me particularmente bem da
primeira lembrança de racismo que tenho guardada em minha memó-
ria. Eu tinha por volta dos 5 anos de idade. Gostava muito de brincar
com um menino, que era meu vizinho. Porém, o pai dele não gostava
de mim e sempre que ia à casa deles brincar e ele estava, atiçava a
criança a me maltratar. Lembro-me claramente do dia em que ele fez
o garoto expulsar-me de casa e dizia: “Tranca o portão, chama ela de
cabelo de bombril. Grita mais forte. Você não vai brincar com uma
negra.” Fui embora chorando, debaixo do coro de pai e filho me cha-
mando de “cabelo de bombril”. Nunca ousei contar esta história para
minha mãe, e a primeira vez que a relatei em público foi em outubro
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 103

de 2016, durante um workshop que organizei em Barcelona, junto ao


“Colectivo Afrofeminista” para falar de identidade e autoestima para
pessoas negras e racializadas.
Sendo uma mulher negra, enfrentamos situações de racismo diá-
rias. O racismo dói, fere. E quando não entendemos que aquela situa-
ção se deve ao racismo, quando tomamos o problema como “nosso”,
nos machucamos ainda mais. Perder o emprego, ser sempre preterida
em relacionamentos afetivos, ter poucos amigos, ser humilhada, rece-
ber menores salários e menos reconhecimento no ambiente laboral ou
acadêmico; ganhar o prêmio de menina mais feia da escola, nunca ter
par para dançar nas festinhas etc. Eu poderia seguir enumerando mais
e mais situações que as mulheres negras passam devido ao racismo,
mas que sem entender que são fruto do racismo tomam para si de uma
forma ainda mais destrutiva. O que costuma acontecer em grupos de
mulheres negras é que estas histórias se repetem de tal forma que, um
dia, uma de nós começa a se perguntar o motivo pelo qual isso acon-
tece conosco, mulheres negras. É, então, a partir deste momento que
o sofrimento deixa de ser individual, deixa de ser o problema pessoal
de uma mulher, para poder ser a compreensão de como o racismo nos
afeta como um coletivo.
Da compreensão de que sua “dor”, e não somente ela, mas tam-
bém práticas socioculturais que te compõem enquanto sujeito, são,
na verdade, não uma característica sua, mas algo compartilhado entre
seres humanos de tez escura, cabelo crespo, lábios grossos etc., espa-
lhados por todo o mundo, nasce também outra compreensão: a de que
agora és parte, mesmo sem querer, de uma comunidade e – na melhor
das hipóteses – de um movimento social organizado.
Lembro-me de quando me mudei para a Espanha, era comum
responder a perguntas deste tipo, principalmente das pessoas euro-
brancas: e você gosta daqui? Sente falta do Brasil? A verdade é que meu
sentimento de falta, de deslocamento, acabou no momento em que
consegui me conectar com a comunidade afro residente na cidade. Não
sem contradições, claramente, até porque, mais do que brasileira, eu
era afro-indígena. A compreensão de ser “afrodescendente”, além da
104 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

consciência de que os processos de racialização e racismo te colocam


diante de uma grande família. Isto porque:
O conceito de campo político afrodescendente vem sendo utilizado
para conceitualizar cenários e espaços políticos constituídos pelas
articulações nacionais e transnacionais/translocais das esferas públi-
cas negras. Usar esta nomenclatura é defender a existência de um
campo político afrodescendente, reconhecendo a existência de uma
comunidade política heterogênea, onde se debatem uma diversidade
de perspectivas políticas e ideológicas, há interesses e projetos em
conflito, uma pluralidade de reportório de ações, e distintas defini-
ções dos significados e implicações da identidade afrodescendente, a
política antirracista e o poder negro (LAO, 2017, p. 3).
A identificação que eu tenho com qualquer pessoa afrodescen-
dente ao redor do mundo é, quase sempre, maior do que eu posso ter
com um brasileiro branco, de origem polaca ou italiana, residente no
sul do país. Nós, afro, somos comunidade ao compartilharmos nossa
reidentificação simbólica com o continente africano (HALL, 2011),
além de sermos obrigados a nos organizar para reivindicar nossos direi-
tos. No caso da Espanha, unimo-nos com todas as pessoas racializadas
e imigrantes sem documentos. Assim, meu círculo de amigas e amigos
era formado por pessoas negras oriundas da Inglaterra, dos Estados
Unidos, da Espanha, da Nigéria, da Guiné Equatorial, da Guiné-Bissau,
da França etc.
Dentro do círculo afrodescendente de Barcelona se formaram
duas plataformas: “Black Barcelona” e “Colectivo Afrofeminista”, além
de manter contatos próximos com o Sindicato Popular de Vendedores
Ambulantes de Barcelona, o Espacio del Inmigrante e organizações cí-
vico-culturais africanas atuantes na cidade. A grande discussão, pelo
menos entre as duas primeiras organizações citadas, era a primazia da
luta em torno das questões políticas e/ou culturais, como explica Lao
(2017, p. 11), referindo-se às gerações da luta afrodescendente:
Na primeira geração, a ênfase principal era na política do reconheci-
mento da identidade étnico-racial e nos direitos culturais, enquanto
na segunda era combater o racismo e adquirir poder político. Ambas
colocam em prática políticas antirracistas, sendo que a primeira opta
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 105

pelo ativismo desde o cultural e o intelectual; e, a segunda, a partir


de políticas de empoderamento coletivo que abertamente comba-
tem o racismo.
A grande discussão entre as que acabamos por conformar o Co-
lectivo Afrofeminista, a maior parte mulheres negras com alguma apro-
ximação com o feminismo ou com as lutas das mulheres revolucionárias
(meu caso) oriundas de países latino-americanos, era que a luta pelo
reconhecimento identitário era importante, mas não poderia ser nossa
bandeira principal, pois era uma luta que contemplava de forma mais
profunda apenas as pessoas negras nascidas em solo espanhol, já que elas
não eram reconhecidas como tais. Além do que, defendíamos uma pers-
pectiva interseccional, e, como consequência, nossa luta deveria estar
em favor dos que mais opressões sofriam: os/as imigrantes africanos/
as sem documentos, organizados no Sindicato Popular dos Vendedores
Ambulantes. Assim, enquanto nós levantávamos bandeiras como “docu-
mentos para todos”/“nenhum ser humano é ilegal”/“vidas negras im-
portam”, uma parcela significativa dos espanhóis e espanholas negras le-
vantavam, primordialmente, a bandeira de “sou negro/a e espanhol/a”.
As diferenças, entretanto, apesar de constituir um debate impor-
tante dentro dos movimentos antirracistas naquele contexto, não com-
punham um elemento desagregador ou antagonista. Aqui, buscávamos,
nem sempre com sucesso, aplicar o conceito de différance, de Derrida,
na interpretação de Hall (2017, p. 484): “Que as diferenças não fun-
cionem como binarismos, de fronteiras, que nos separem, mas como
lugares de passagem, e de significados e relações, sempre em fuga, ao
longo de um espectro sem princípio nem fim.”

Considerações finais
Ao tornar-me negra aprendi a compreender a dor causada pelo
racismo; me fortaleci e ganhei uma grande família. Ao deixar de ser
apenas “negra” para ser afrodescendente e afro-indígena, passei a reco-
nhecer-me de forma ainda mais profunda, respeitando minhas raízes e
as diferenças que unem a todos que têm a África como paraíso imagi-
nado, como Aruanda. Retomando a nossa pergunta inicial: o que sig-
106 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

nifica ser afrodescendente hoje? Significa compreender nossas origens,


nossa cultura; unir-nos aos nossos irmãos e irmãs em diáspora em toda
e qualquer parte do mundo; organizar-nos e defender nosso direito à
vida, à cultura e ao bom viver. Em resumo, este é o sentido que recobra
ser “afrodescendente” hoje, na minha interpretação.

REFERÊNCIAS

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cional Autónoma de México/CISAN, 2011.
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diente en América Latina. Boston: Universidad de Massachusetts
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nal de los pueblos afrodescendientes. La Habana: Centro de In-
vestigaciones Psicológicas y Sociológicas, 2017.
Capítulo 8

Povos indígenas, ameaças de grandes projetos


desenvolvimentistas e afirmação cultural indígena
Stephen Grant Baines42

Introdução
Inicia-se este texto apresentando a definição de Terras Indígenas
(TI) no Brasil e as principais legislações que regem a demarcação e o pro-
cesso de regularização. Apresenta-se a política indigenista em relação ao
povo Waimiri-Atroari, no Norte Amazônico, como exemplo de uma so-
ciedade indígena que foi sujeita ao indigenismo empresarial patrocinado
pela empresa construtora da Usina Hidrelétrica de Balbina, na forma do
Programa Waimiri-Atroari (ELETRONORTE/Fundação Nacional do
Índio – FUNAI), atrelado a interesses de grandes empresas que exploram
seu território. Aborda-se, também, no litoral Nordeste do Brasil, a situa-
ção dos Tremembé da TI Almofala, Tapera, Varjota e Barra do Mundaú e
dos Jenipapo-Kanindé na Aldeia Lagoa Encantada
Na Constituição Federal de 1988, o art. 231, § 1º, define que as
TI são aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”
(BRASIL, 1988, p. 37-38), o que reforça o anterior Estatuto do Índio
(Lei nº 6.001/1973). Os povos indígenas são os povos originários do

42
Professor Titular, Pesquisador PQ 1A/CNPq, na Universidade de Brasília (UnB)/Departamento de
Antropologia (DAN), membro do Laboratório e Grupo de Estudos em Relações Interétnicas (LAGERI).
108 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Brasil, fazendo com que seu direito a uma terra determinada independa
de reconhecimento formal.
O procedimento administrativo de demarcação das terras indí-
genas é delineado no Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. De
acordo com o decreto, as suas etapas do procedimento são: 1. Estudos
de identificação: estudo antropológico de identificação da Terra Indígena,
com a constituição de um grupo técnico; 2. A aprovação do relatório pela
FUNAI, e publicação do resumo no Diário Oficial da União (DOU) e no
Diário Oficial (DO) da Unidade Federada correspondente; 3. O período
de contestações; 4. Declarações dos limites da TI; 5. A demarcação física,
em que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
procederá ao reassentamento de eventuais ocupantes não índios; 6. A
homologação da TI pela presidência da República; e 7. Seu registro, no
cartório de imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patri-
mônio da União (SPU). Entretanto, o cumprimento completo de todas
estas etapas torna-se cada vez mais complexo e burocrático o processo,
especialmente em decorrência da mencionada fase “3. período de contes-
tação”, que afirma: “Todo interessado, inclusive estados e municípios, po-
derá manifestar-se, apresentando ao órgão indigenista suas razões [...].”43

O ataque aos direitos indígenas, quilombolas e comunidades


tradicionais à terra
A atual ofensiva legislativa da bancada ruralista está atuando contra
os direitos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais, por
meio de diversos Propostas de Emenda Constitucional (PEC), Projetos
de Lei Complementar, Projetos de Lei (PL), Portarias e Decretos. De-
talhamos algumas dessas medidas a seguir: a PEC nº 215/2000 propõe
retirar do Poder Executivo o atributo de demarcar terras indígenas, e pas-
sá-lo ao Poder Legislativo, o Congresso Nacional, o que representa uma
das principais ameaças às terras indígenas. O Projeto de Lei Complemen-
tar (PLC) nº 227/2012 pretende legalizar invasões em terras indígenas,
inclusive com grandes projetos de desenvolvimento, usinas hidrelétricas,
43
Instituto socioambiental, povos indígenas do Brasil, demarcação hoje. Disponível em: https://pib.
socioambiental.org/pt/Demarca%C3%A7%C3%B5es. Acesso em: 13 jun. 2019.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 109

mineração, extração de madeira e agropecuária. A Portaria nº 303/2012


interpreta as 19 condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Fe-
deral (STF) no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em
2009, como vinculantes a todas as terras indígenas do Brasil e propõe
a revisão de demarcações já finalizadas. O PL nº 1.610/1996 incentiva
a mineração em terra indígena, sem levar em consideração o direito de
consulta às populações afetadas.
A PEC nº 237/2013 propõe legalizar a tomada de posse de terras
indígenas por produtores rurais por meio de concessão. A Portaria nº
419/2011 propõe prazos muito curtos para a FUNAI e demais órgãos
para elaborar pareceres em processos de licenciamento ambiental, com
o objetivo de acelerar a liberação de licenças para obras de infraestru-
tura em terras indígenas. O Decreto nº 7.957/2013 propõe a criação
de uma Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Se-
gurança Pública, para reprimir ações de povos indígenas e comunidades
tradicionais que se posicionem contra empreendimentos em seus ter-
ritórios. Essas medidas afrontam tanto a Convenção nº 169 sobre Po-
vos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
quanto a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direi-
tos dos Povos Indígenas.
Esses atos legislativos, acima mencionados, da bancada ruralista, vi-
sam extinguir direitos adquiridos e dificultar o processo de demarcação
de terras indígenas para favorecer sua exploração por latifundiários, e a
implantação de megaprojetos (hidrelétricas, mineração e agronegócio),
e anular tanto os direitos indígenas constitucionais no Brasil quanto os
direitos internacionais.

Ataque às lideranças indígenas, aos antropólogos e às


organizações não governamentais (ONGs) de apoio por uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) FUNAI/INCRA na
Câmara dos Deputados
Em 11 de novembro de 2015, a pedido de deputados da bancada
ruralista, foi criada uma CPI para investigar o papel da FUNAI e do
INCRA na demarcação de terras indígenas e terras de quilombos. Esta
110 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

CPI tem como objetivo prejudicar a autonomia científica e o compro-


misso ético do antropólogo, caracterizando os relatórios antropológi-
cos de fraudulentos, com o intuito de atacar a aplicação dos direitos
territoriais indígenas e das comunidades quilombolas, garantidos pela
Constituição Federal (CF) de 1988.
Na negociação de compra de votos dos parlamentares ruralistas,
por parte do presidente Michel Temer, para evitar seu afastamento da
presidência, por acusações de corrupção, o presidente assinou o Pa-
recer nº 001/2017 da Advocacia Geral da União (AGU), em 19 de
julho de 2017, com o objetivo de vincular toda a administração pública
federal de modo a cumprir as 19 condicionantes fixadas no julgamento
da TI Raposa Serra do Sol, pelo STF;44 inclusive, com o argumento
do “marco temporal”45 e “a vedação à ampliação de terras indígenas
já demarcadas”, desta maneira, ameaçando paralisar 748 processos de
demarcação atualmente em curso.
44
Em março de 2019, no julgamento do STF que decidiu que a TI Raposa Serra do Sol terá demarca-
ção contínua e que os produtores rurais que a invadiram teriam de deixar esta TI, os ministros do STF
analisaram as 18 condições propostas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito para regular a
situação nos territórios da União ocupados por indígenas, e garantir a soberania nacional sobre as ter-
ras demarcadas. Ao fim dos debates, foram fixadas 19 ressalvas. O STF anunciou que são consideradas
terra tradicionalmente ocupadas aquelas em que existiam indígenas na data da promulgação da CF, em
5 de outubro de 1988. No entanto, o STF também deixou claro que não se aplicaria a chamada “tese
do marco temporal” nos casos de “renitente esbulho”, ou seja, nos casos em que os indígenas tivessem
sido expulsos de suas terras em razão de violência e agressão. O STF decidiu também que essas 19
condicionantes se aplicam apenas à TI Raposa Serra do Sol e que a decisão não é vinculante em sen-
tido técnico para juízes e tribunais quando do exame de outros processos relativos a terras indígenas
diversas (Instituto Socioambiental. STF decide que condicionantes só são obrigatórias para
TI Raposa Serra do Sol (RR). Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-
-socioambientais/stf-decide-que-condicionantes-so-sao-obrigatorias-para-ti-raposa-serra-do-sol-rr.
Acesso em: 10 jan. 2019.
45
Em março de 2019, no julgamento do STF que decidiu que a TI Raposa Serra do Sol terá demarcação
contínua e que os produtores rurais que a invadiram teriam de deixar esta Terra Indígena, os ministros
do STF analisaram as 18 condições propostas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito para re-
gular a situação nos territórios da União ocupados por indígenas, e garantir a soberania nacional sobre
as terras demarcadas. Ao fim dos debates, foram fixadas 19 ressalvas. O STF anunciou que são conside-
radas terras tradicionalmente ocupadas aquelas em que existiam indígenas na data da promulgação da
Constituição em 5 de outubro de 1988. No entanto, o STF também deixou claro que não se aplicaria
a chamada “tese do marco temporal” nos casos de “renitente esbulho”. STF decide que condicio-
nantes só são obrigatórias para TI Raposa Serra do Sol (RR). Disponível em: https://www.
socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/stf-decide-que-condicionantes-so-sao-obrigato-
rias-para-ti-raposa-serra-do-sol-rr. Acesso em: 10 jan. 2019.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 111

O argumento do citado “marco temporal” não leva em conta as


expulsões de povos indígenas dos seus territórios, assim como as di-
versas tentativas de retornarem a seus territórios, que foram e são im-
pedidas com violência por latifundiários e pelo próprio estado. Desta
maneira, além de legalizar as violências cometidas contra os povos até
a data da CF de 1988, o chamado “marco temporal” significa recom-
pensar crimes cometidos contra os povos indígenas, favorecendo as
invasões de terras indígenas já demarcadas, ao negar os direitos que
são garantidos aos povos indígenas pela referida Constituição de 1988.
O marco temporal, defendido pelo governo Temer no men-
cionado parecer, está estreitamente relacionado ao quadro político
de investimentos no Brasil, que revela mudanças rápidas, como um
grande aumento de investimentos de grupos empresariais de capital
transnacional. Empresas chinesas investiram US$ 21 bilhões na compra
de empresas brasileiras entre 2015 e 2016, sobretudo nos setores de
energia e mineração, e, em 2017, planejavam investir US$ 20 bilhões
na compra de ativos brasileiros, 87% mais do que em 2016, trans-
formando o Brasil no segundo destino de investimentos chineses na
área de infraestrutura no mundo. Em 2017, empresas chinesas também
planejavam aumentar a compra de ativos brasileiros, 87% mais do que
em 2016, transformando o Brasil no segundo destino de investimentos
chineses na área de infraestrutura no mundo, atrás apenas dos Estados
Unidos, sobretudo nos setores de energia, transportes e agronegócio.
A forte demanda do mercado chinês para a soja levou à expansão do
corredor logístico para o escoamento pelo Norte do país, impactando
a região no entorno do rio Tapajós. Considerando-se os exemplos an-
teriormente mencionados da situação de povos indígenas do Ceará, os
desrespeitos aos territórios tradicionais situados na faixa litorânea leste
e oeste deste Estado estão cada vez mais visados por grandes empresas
transnacionais, pois, em outubro de 2015, o governo do Ceará anun-
ciou que faria investimento de R$ 65 milhões, até o fim de 2016, em
campanhas turísticas e obras que pudessem atrair turistas ao Ceará.46
46
Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/10/governo-do-ceara-investira-r-
-65-milhoes-em-turismo-ate-2016.html. Acesso em: 20 ago. 2018.
112 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Em 2016, o Ceará foi o segundo principal destino para investimentos


estrangeiros no Brasil. No segundo trimestre deste ano, o Estado rece-
beu um aporte de R$ 6,03 milhões. E no caso do povo indígena Wai-
miri-Atroari, esta violação de direitos por parte de grandes empresas
atravessa décadas.

O povo indígena Waimiri-Atroari


O povo indígena Waimiri-Atroari, da família linguística Caribe,
habita o norte do estado do Amazonas e sul de Roraima. Após uma
longa história de invasões armadas, epidemias de doenças novas que
se alastraram entre as aldeias, massacres e ocupações do seu territó-
rio, a população Waimiri-Atroari foi reduzida de um total estimado
entre 2 mil e 6 mil, no início do século XX, a apenas 332 indivíduos
em 1982/1983 (BAINES, 1991). Com acesso às vacinas e um aten-
dimento médico básico, a população voltou a crescer rapidamente a
partir de 1982, entretanto, foram subordinados a uma política indi-
genista autoritária.
O autor deste artigo realizou pesquisa de campo entre janeiro de
1982 e agosto de 1985, para o doutorado em Antropologia, no Depar-
tamento de Antropologia (DAN) da Universidade de Brasília (UnB),
sob a orientação do Professor Julio Cezar Melatti, com 18 meses de
pesquisa etnográfica na Terra Indígena, entre janeiro de 1982 e agosto
de 1985. Após a área original delimitada, no início dos anos 1970, pelo
sertanista Gilberto Pinto Figueiredo ser desconstituída e transformada
em “área temporariamente interditada para fins de atração e pacifica-
ção”, a Terra Indígena Waimiri-Atroari foi homologada em 1989, com
área de 2.585.910 hectares (Decreto nº 97.837, 1989).
É importante pontuar que a homologação ocorreu após este
povo indígena ter sofrido os impactos da rodovia BR-174, cuja cons-
trução atravessou o território indígena entre 1970 e 1977; a invasão da
Mineração Taboca S.A. (Mina de Pitinga), a partir de 1979, nas cabe-
ceiras do Rio Uatumã, renomeado Rio Pitinga; e a construção da Usina
Hidrelétrica (UHE) Balbina, entre 1973 e 1987. As comportas dessa
UHE foram fechadas em outubro de 1987, criando um reservatório
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 113

de 2.928 quilômetros quadrados, com potencial energético máximo


de apenas 250 megawatts, com um grande desastre socioambiental que
beneficiou, em primeiro lugar, o governo militar e as empresas cons-
trutoras; não se justificando, portanto, os custos de sua construção.

O Programa Waimiri-Atroari (PWA)


A CF de 1988 exigiu uma mudança de estratégia dos grandes
consórcios construtores de hidrelétricas. Diferente dos anos da ditadu-
ra militar (1964-1985), quando a política era invadir territórios indí-
genas onde havia interesses econômicos para a construção rodoviária,
a instalação de grandes UHE e mineração:
Uma nova estratégia de grandes empresas de construção de hidrelé-
tricas e de mineração em colaboração com o Estado é de favorecer
a regularização de terras indígenas e exercer seu poder econômico
para pressionar as novas lideranças indígenas a assinar acordos dire-
tos entre as comunidades indígenas e as empresas, em nome de uma
“autodeterminação indígena” (BAINES, 1993, p. 239).
A ELETRONORTE criou, em abril de 1987, seis meses antes
do fechamento das comportas da UHE Balbina, o Programa Waimi-
ri-Atroari (ELETRONORTE/FUNAI), um programa de indigenis-
mo assistencialista, implantado tardiamente, quando todas as deci-
sões quanto à UHE Balbina já haviam sido tomadas sem consultar
os Waimiri-Atroari. Assim que se instalou o Programa Waimiri-A-
troari, sua supervisão proibiu a continuação de todas as pesquisas
em Antropologia não subordinadas ao seu controle empresarial. A
proibição de pesquisas dentro da Terra Indígena continua até os dias
de hoje.
Em junho de 1989 acordos foram assinados entre a Mineração
Taboca e dez líderes Waimiri-Atroari, dando direitos exclusivos para
pesquisa e lavra de mineração na Terra Indígena Waimiri-Atroari a essa
empresa mineradora, embora as atividades de mineração estejam sus-
pensas enquanto não houver legislação complementar para regulamen-
tar a mineração em terras indígenas, conforme previsto na Constitui-
ção Federal de 1988.
114 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Em anos recentes, o povo Waimiri-Atroari continua sob a


ameaça da ELETRONORTE, diante das tentativas de impor a insta-
lação da linha de transmissão que pretende ligar Boa Vista e Manaus
à rede nacional de eletricidade, paralela à trajetória da BR-174, sem
ouvir os Waimiri-Atroari. A ELETRONORTE enviou uma carta aos
Waimiri-Atroari ameaçando suspender os repasses de verba indeni-
zatória ao PWA.

Conflitos em terras indígenas no Ceará


Nessas outras situações comentadas, no Nordeste brasileiro, es-
pecificamente no Ceará, a empresa “Ducoco”, uma das maiores em-
presas de beneficiamento de coco na América Latina, vem impedindo
a regularização das terras indígenas do povo indígena Tremembé de
Almofala, Tapera e Varjota. No início dos anos 1980, a empresa Duco-
co ocupou o território indígena Tremembé com extensas plantações
de coco, e efetivou a paralisação do processo de demarcação da Ter-
ra Indígena Tremembé de Almofala, delimitada em 1986 pela FUNAI.
Em 1993, a proposta de identificação e delimitação da Terra Indígena
Tremembé foi aprovada pela FUNAI e enviada ao Ministério da Jus-
tiça, entretanto, ações judiciais foram movidas pela Ducoco contra a
FUNAI e a União, na Terceira Vara da Justiça Federal.
Outro consórcio de empresas transnacionais, o “Grupo Nova
Atlântida”, com o apoio dos governos federal e estadual, desde o início
dos anos 2000, vem pressionando o povo Tremembé da Barra do Mun-
daú para construir uma megacidade turística em suas terras tradicionais
(LUSTOSA, 2012). Mesmo que essa Terra Indígena tenha sido assim de-
clarada pela Portaria nº 1.318, da FUNAI, de 11 de agosto de 2015, o
processo aguarda homologação. A empresa vem pressionando membros
das comunidades Tremembé da Terra Indígena Barra do Mundaú a negar
a existência de indígenas na área e acarretando conflitos dentro das co-
munidades (LUSTOSA, 2012; BAINES 2016). No caso da Terra Indígena
da Barra do Mundaú, a Escola Indígena Brolhos da Terra, na comunidade
Buriti, inaugurada em setembro de 2010, tornou-se o cerne do fortale-
cimento cultural e identitário Tremembé (LUSTOSA; BAINES, 2015).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 115

No caso do povo indígena Jenipapo-Kanindé, também no litoral


do Ceará, após anos de luta contra empresas de turismo empresarial
que tentavam se apropriar do seu território, em 23 de fevereiro de
2011, uma portaria do Ministério da Justiça declarou a TI Aldeia Lagoa
Encantada como de posse permanente do povo indígena Jenipapo-Ka-
nindé. Um recurso ordinário em mandado de segurança, de autoria
da empresa Pecém Agroindustrial Ltda., contra sua demarcação, foi
rejeitado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, publicado no
Diário de Justiça Eletrônico, do STF, em 1º de setembro de 2017. O re-
curso argumentava que a demarcação do território de 1.734 hectares,
em 2011, teria desrespeitado o princípio do contraditório. A empresa
ainda poderá recorrer para que seja julgado por Colegiado do STF.

Estratégias de resistência indígena à guisa de conclusão


O ingresso de jovens indígenas, quilombolas e pessoas de outras
comunidades tradicionais no ensino superior está sendo considerado,
por muitas dessas populações, como um dos caminhos mais efetivos
para enfrentar os ataques aos direitos e combater as desmobilizações
que vêm acontecendo frente às pressões da expansão do agronegó-
cio e de grandes empresas (LUCIANO, 2009; 2011; 2012; BENITES,
2014). De 2010 a 2016, cresceu 255% o número de indígenas matri-
culados/as no ensino superior no Brasil. Apenas por um esforço por
parte das associações indígenas, quilombolas e de outras comunidades
tradicionais, junto com as entidades de apoio da sociedade civil, o Mi-
nistério Público Federal, com o apoio de parlamentares que se opõem
às medidas articuladas pela Frente Parlamentar Agropecuária (FPA),
ou “bancada ruralista”, junto com grandes empresas que têm interesse
em explorar os recursos naturais em Terras Indígenas e outros terri-
tórios tradicionais, será possível resistir às novas estratégias que estão
sendo impostas com a intenção de anular os direitos desses povos.
As autodemarcações e retomadas têm surtido efeitos positivos
diante da lentidão do Estado em regularizar as terras tradicionais. A
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) foi criada pelo Acam-
pamento Terra Livre (ATL), de 2005, em Brasília, visando articular e
116 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

fortalecer o movimento indígena em nível nacional, unificar as lutas e


a política do movimento e mobilizar os povos e organizações indígenas
regionais do país contra os ataques aos direitos indígenas. Em docu-
mento enviado pela APIB, em agosto de 2017, para a ONU e a Comis-
são Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denuncia-se a vio-
lação dos direitos dos povos indígenas pelo governo de Michel Temer e
apela para a suspensão de ações que criminalizam lideranças indígenas,
comunidades e entidades parceiras e, simultaneamente, o reforço de
programas e estratégias de proteção a defensores de direitos humanos.

REFERÊNCIAS

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1, p. 5-6, 2014.
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Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 117

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UCDB, 2009. v. 1, p. 32-39.
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luta dos povos indígenas no litoral do Ceará para a demarcação de suas
terras. Ruris – Revista do Centro de Estudos Rurais, Campinas, v. 10,
p. 75-100, 2016.
Capítulo 9

“Brasil: outros 500”: as comemorações e o desrespeito47


Poliene Soares dos Santos Bicalho48

– As leis são uma invenção – ao que fui obrigado a concordar, apesar de


ser invenção formalmente criada e com legitimidade presumida, ainda que
raras vezes comprovada.
– Então os brancos que inventem outra lei que defenda os direitos dos
índios – arrematou Paiaré, sem dar margem para novas explicações.
Diálogo entre o líder indígena Paiaré e Carlos Frederico
Marés de Sousa Filho (2009, p. 24)

Em 2018 a Constituição da República Federativa do Brasil (CF)


completou 30 anos, marco importante para celebrar um dos textos
mais promissores e aclamados no mundo, no âmbito do Estado Demo-
crático de Direito, quanto ao reconhecimento dos direitos dos povos,
do homem e dos cidadãos. Entretanto, a alvorada dos novos tempos49
47
Este capítulo corresponde a uma parte da tese de doutoramento defendida pela autora em 2010:
BICALHO, Poliene Soares dos Santos. Protagonismo indígena no Brasil: movimento, cidadania
e direitos (1970-2009). 2010. Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História Social,
Departamento de História, Universidade de Brasília. Brasília, 2010. 593 f.
48
Docente da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na Graduação em História e no Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER). Doutora
em História Social pela Universidade de Brasília (UnB) e pós-doutora pelo Programa de Pós-Gradua-
ção Stricto Sensu em Antropologia Social (UnB). E-mail: poliene.soares@gmail.com.
49
Em 2018 foi eleito à Presidência da República Federativa do Brasil o candidato de extrema direita Jair
Bolsonaro (PSL), empossado em 1º de janeiro de 2019. Suas primeiras medidas à frente da Presidência,
no que diz respeito aos direitos indígenas, preocupam sobremaneira indígenas, indigenistas, antropólo-
gos e ativistas dos mais diferentes matizes, porque, entre outras atitudes, retirou do Ministério da Jus-
tiça, via Fundação Nacional do Índio (FUNAI), a função de demarcar as terras indígenas, e transferiu-a
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 119

mais preocupa do que anima, no que tange ao respeito e ao reconheci-


mento dos direitos indígenas no Brasil.
A CF de 1988 é um dos mais significativos acontecimentos da his-
tória dos povos indígenas no Brasil, e uma série de fatores justificam essa
constatação. Vários autores e testemunhas oculares do processo consti-
tuinte, e daquele inolvidável 5 de outubro de 1988, deixaram as suas con-
siderações sobre a importância deste que se reconhece como um dos mais
marcantes acontecimentos fundadores do Movimento Indígena no Brasil.
A Carta Magna de 1988 reservou aos indígenas um capítulo in-
teiro (Capítulo VIII – Dos Índios), no qual foram reconhecidos sua “or-
ganização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”;
além de determinar que “Os índios, suas comunidades e organizações
são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos
e interesses intervindo o Ministério Público em todos os atos de pro-
cesso” (BRASIL, 2002, p. 132).
Em outros momentos, a CF também tratou de resguardar às co-
munidades indígenas, no que diz respeito ao ensino fundamental re-
gular, “a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem” (BRASIL, 2002, p. 124). Ressaltou também que “as
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente” (BRASIL, 2002, p. 133), sendo permitida a remoção dos
mesmos somente por decisão do Congresso Nacional em casos de “ca-
tástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interes-
se da soberania do País” (BRASIL, 2002, p. 132). Logo, como sugeriu
o líder Paiaré, a nova lei foi inventada.

ao Ministério da Agricultura, atualmente comandado pela líder ruralista Teresa Cristina (DEM-MS),
claramente comprometido com os interesses de ruralistas e empresários vinculados ao campo. Além
desta medida, o novo Governo também transferiu a FUNAI para o Ministério da Mulher, Família e
Direitos Humanos, atualmente comandado pela pastora evangélica Damares Alves. Estas medidas, entre
outras, evidenciam uma óbvia intenção de esvaziamento e enfraquecimento da FUNAI, assim como
expõe as questões e os direitos indígenas a uma série de riscos. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/
poder/2019/01/bolsonaro-retira-da-funai-a-demarcacao-de-terras-indigenas.shtml. Acesso em: 29
jan. 2019, às 10:28h, ehttps://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/novo-decreto-de-bolsona-
ro-retira-da-funai-licenca-de-empreendimentos.shtml. Acesso em: 29 jan. 2019, às 10:35h.
120 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Nesse sentido, a nova CF favoreceu significativamente o prota-


gonismo da sociedade civil, que é a “expressão da capacidade dos ci-
dadãos de agir por si mesmos” (OLIVEIRA apud SORJ; OLIVEIRA,
2007, p. 75); neste sentido, a notoriedade do protagonismo indígena
se manifesta na consciência da luta pelo reconhecimento, que, segun-
do Axel Honneth, se origina a partir de “experiências de desrespeito”
(HONNETH, 2003, p. 227). Para o autor, há três formas de reconhe-
cimento: o amor, o direito e a estima social, que trariam na sua essência
o “potencial para a motivação dos conflitos”, quando não respeitados
(HONNETH, p. 23).
Para cada uma das três formas de reconhecimento Honneth
identificou três formas de desrespeito. O amor acontece nas relações
primárias, as mais pessoais e íntimas, para as quais os maus-tratos e a
violação são as formas de desrespeito mais frequentes. Na esfera do
direito, no âmbito das relações interpessoais, é o autorrespeito que
fica ameaçado quando se identifica, numa relação social em que deve-
ria haver reconhecimento recíproco, “privação de direitos e exclusão”
(HONNETH, 2003, p. 216). Nas relações sociais mais amplas, que en-
volvem grupos de diversos matizes, é que deve ocorrer a estima social
ou a solidariedade, e quando as mesmas não se realizam, o desrespeito
se apresenta através da degradação e da ofensa, atingindo diretamente
a autoestima dos indivíduos organizados coletivamente.
Segundo Honneth, é nas relações intersubjetivas impessoais –
espaço no qual a vivência social ampliada se configura, possibilitando
a formação dos conflitos sociais numa perspectiva generalizante e uni-
versal – que as esferas do direito e da estima social se concretizam;
enquanto a esfera do amor tem sua ação direcionada à dimensão das
relações pessoais. Nesse sentido, o direito e a autoestima são determi-
nantes para se compreender o processo de formação e estruturação
dos conflitos sociais precursores de movimentos sociais organizados,
como o Movimento Indígena no Brasil.
Ao esposar a teoria de Honneth, para entender a problemática do
protagonismo indígena e do próprio Movimento Indígena no Brasil, em
tese de doutoramento defendida em 2010 (BICALHO, 2010), notou-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 121

-se que há outras produções acadêmicas ancoradas nessa mesma teoria.


Nesse sentido, observou Cardoso de Oliveira que o “movimento indíge-
na se encarregou de dar ao índio o autorrespeito que faltava” (CARDO-
SO DE OLIVEIRA, 2006, p. 53); e o fez a partir da ação de lideranças
e organizações indígenas, apoiadas por diversas entidades, que vêm as-
sumindo, ao longo das décadas, um protagonismo sociopolítico típico
dessa tomada de consciência que caracteriza a luta social e evidencia a
resistência coletiva como expressividade dos movimentos sociais.
Cardoso de Oliveira, igualmente ancorado na teoria do reco-
nhecimento de Honneth, observou que a demanda por reconheci-
mento da identidade étnica e do direito à cidadania plena, sustenta-se
por “argumentos de ordem moral e não apenas políticos”; de modo
que “a dimensão da eticidade tem todas as condições de prevalecer
na sustentação da luta política pela cidadania” (CARDOSO DE OLI-
VEIRA, 2006, p. 54). O autor em pauta ressaltou ainda que as “rei-
vindicações afirmadas no bojo do que ficou conhecido como ‘Movi-
mento Indígena’ em escala nacional”, é resultado de uma tomada de
consciência que os levou a assumir “a sua condição étnica como foros
de uma nova cidadania que até então lhes era praticamente negada”
(CARDOSO DE OLIVEIRA, p. 42).
Nesse sentido é que o protagonismo das lideranças e das organi-
zações indígenas têm evidenciado também a necessidade de uma rela-
ção interétnica em que os valores morais que justificam sua luta sejam
legitimamente reconhecidos por todos os membros da comunidade
nacional, o que possibilitaria aos indígenas “as condições da autorreali-
zação” (HONNETH, 2003, p. 278) que, uma vez estimados socialmen-
te, os colocariam em condições igualitárias com os demais, sem deixar
de ser diferentes em sua particularidade étnica, possibilitando-lhes vi-
ver uma vida verdadeiramente boa.
As relações intersubjetivas impessoais que começaram a ser es-
tabelecidas entre povos e lideranças indígenas diversas, entidades da
sociedade civil e o Estado na década de 1970 – mais precisamente a
partir de 1974, quando aconteceu a primeira Assembleia Indígena – no
âmbito do “direito” e da “estima social”, viabilizaram o surgimento de
122 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

um protagonismo indígena atuante e consciente da necessidade da luta


social para fins de reconhecimento dos direitos indígenas no Brasil, na
perspectiva da legalidade e da legitimidade.
É importante ainda destacar que a luta social, como apresenta-
da por Honneth (2003, p. 257), reflete o resultado de “experiências
individuais de desrespeito” compreendidas e “interpretadas como ex-
periências cruciais típicas de um grupo inteiro, de forma que elas po-
dem influir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por
relações ampliadas de reconhecimento”. Nesse sentido, mais uma vez,
apenas a partir da década de 1970 visualizam-se as condições ideais
para a existência da luta social, propensa à formação de uma identida-
de indígena coletiva, capaz de dar origem a um movimento social no
qual “experiências de desapontamento pessoal” alcancem “um círculo
de muitos outros sujeitos” (HONNETH, 2003, p. 258).
Para Honneth, apenas quando ocorre a diferenciação dos padrões
de reconhecimento, entre a esfera do amor e as do reconhecimento
jurídico e da estima social, é que, nestas duas últimas esferas, se evi-
denciam as três formas de reconhecimento recíproco – autoconfiança,
autorrespeito e autoestima – capazes de ampliar “as relações de reco-
nhecimento”; de maneira que o indivíduo coletivamente organizado –
nesse caso o indígena – passa a “se conceber de modo irrestrito como
um ser autônomo e individuado e de se identificar com seus objetivos
e seus desejos” (HONNETH, 2003, p. 266).
Por essa lógica, a luta e a conquista dos direitos garantidos na
CF de 1988, após diferentes formas de luta social, insere o Movimen-
to Indígena do Brasil, plenamente, nas relações sociais intersubjetivas
típicas das esferas do direito e da estima social, por, entre outros mo-
tivos, compor um panorama de conflitos étnicos que se realizam em
espaços e contextos sociais mais amplos e generalizados. Nesse estágio,
segundo Honneth (2003, p. 256-257), os movimentos sociais e os ato-
res que os compõem “têm de estar conscientes dos motivos morais de
sua própria ação”.
Nessa perspectiva, o reconhecimento jurídico deu ao indígena a
condição de reconhecer a si mesmo como sujeito de direito, garantin-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 123

do-lhe a autoconfiança e a autonomia jurídica que o faz se sentir livre


e autorrealizado, “pressuposto social da autonomia juridicamente asse-
gurada” (HONNETH, 2003, p. 277). O próximo passo é o do “reco-
nhecimento da estima social”, que, para os indígenas, se esboça numa
luta contínua pela legitimação desses direitos na sociedade como um
todo, o que levaria ao que Honneth chama de “estima simétrica entre
cidadãos juridicamente autônomos” (2003, p. 278-279).
Assegurados juridicamente, após as conquistas da Carta de 1988,
os indígenas passam a sentir-se livres, autônomos e autoconfiantes,
pré-requisito para a autorrealização humana. O reconhecimento do
direito na esfera jurídica cria as condições para que a autorrealização se
complete na esfera da estima social, cujas relações precisam ser “par-
tilhadas em comum” (HONNETH, 2003, p. 278). Na teoria apresen-
tada por Honneth, o indivíduo que se reconhece como sujeito tende a
alcançar a autoconfiança ainda na “experiência do amor”, que se realiza
na esfera emotiva dos âmbitos familiares e comunitários; o autorres-
peito na “experiência do reconhecimento jurídico”, na esfera jurídico-
-moral; e a autoestima na “experiência da solidariedade”, que se realiza
na esfera da estima social (HONNETH, 2003, p. 272).
Nesse momento, o “padrão de reconhecimento de uma solida-
riedade social” é a meta a ser alcançada por indígenas socialmente esti-
mados, conscientes e autoconfiantes, capazes de falar por eles mesmos
e de lutar para que, como “cidadãos juridicamente autônomos”, pos-
sam alcançar, em um futuro próximo, o respeito e a “estima simétrica”
entre os demais cidadãos brasileiros (HONNETH, 2003, p. 278-279).
Esse é o caminho rumo à legitimação social dos direitos dos povos
indígenas no Brasil.
O reconhecimento e a legitimação desses direitos indígenas ad-
vêm de motivações morais e valores sociais que resultam, como as-
sinala Honneth, em lutas por reconhecimento. Nesse estágio da luta
indígena, pós-Constituição de 1988, depreende-se que o Movimento
Indígena, ou os movimentos indígenas, caminha rumo à estima social,
que, através da justiça e do direito, almeja legitimar e autenticar os
direitos conquistados perante a sociedade como um todo.
124 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

A noção de estima social recíproca desencadeia a luta por reco-


nhecimento mútuo, ou seja, as “condições igualitárias com os demais”
(MENDONÇA, 2006, p. 2). Neste sentido, Charles Taylor considera
que o que está em jogo, na realidade, não é apenas a demanda por reco-
nhecimento dos direitos culturais, mas o reconhecimento dos valores
igualitários para diferentes culturas, atendo-se, para além da luta pela
sobrevivência das mesmas, ao reconhecimento do seu valor no contex-
to intercultural (TAYLOR, 1994, p. 64).
O reconhecimento mútuo é apreendido, portanto, em socieda-
des cujas experiências interétnicas já estejam alicerçadas na esfera da
estima social. Nesta perspectiva, pensando o conflito social e as movi-
mentações sociais indígenas, a esfera jurídica encontra-se parcialmente
atendida mediante as conquistas legais alcançadas nas últimas décadas.
Um aspecto destas relações de reconhecimento, porém, ainda merece
ser observado mais detidamente, considerando que as lutas indígenas
não se encerraram com as garantias legais, ao contrário, é a partir daí
que os conflitos se ampliam, ganhando novos patamares. Nesta dire-
ção, Luís Roberto Cardoso de Oliveira, ao analisar os direitos de cida-
dania no Brasil e em Quebec, ressalta que:
[...] a garantia do reconhecimento de fato da identidade distinta
dos quebequences no Canadá, trata-se de mudanças que deman-
dam uma aceitação genuína de certos valores, cuja efetivação im-
plica sua internalização. Ou seja, trata-se de um processo que re-
quer alterações não apenas no corpo do comportamento, mas no
das atitudes, e que não pode ser implementado por decreto ou a
partir de iniciativas exclusivamente legislativas (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2011, p. 130).
Sob a hipótese que será explicada adiante, de que os indígenas
são pessoas de direito, amparadas pela Lei Maior do Brasil, no que tan-
ge às suas principais demandas, embora estes direitos sejam ameaçados
recorrentemente, questiona-se o grau de reconhecimento e respeito
recíproco que estes povos, considerando a sua diversidade e identida-
de “distinta”, alcançaram e/ou almejam alcançar no âmbito da estima
social, ou seja, em relação à comunidade nacional. Neste sentido, res-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 125

salta-se que, para que os “membros de uma sociedade se reconheçam


mutuamente”, é necessário que se respeitem reciprocamente como
pessoas de direito. Por pessoas de direito se compreende, para além
dos indivíduos cujos direitos são reconhecidos legalmente, aquelas
capazes de “decidir racionalmente, com autonomia individual, sobre
questões morais” (HONNETH, 2003, p. 188).

As comemorações dos 500 anos: a representação do


desrespeito
As comemorações dos 500 anos do achamento50 do Brasil pe-
los portugueses marcaram profundamente a história da luta e do
Movimento Indígena no Brasil, e destacaram dois importantes as-
pectos de sua atuação na atualidade: o protagonismo indígena e a
dificuldade do Estado e de algumas organizações indigenistas em
aceitar que os indígenas se tornassem atores sociais protagonistas de
suas próprias histórias.
A movimentação em torno das comemorações oficiais dos 500
anos começou bem antes da fatídica data de 22 de abril de 2000. Em
âmbito mais geral, tomando a América Latina como objeto de análise,
as comemorações do quinto centenário do “descobrimento” do Brasil
foram antecedidas pelas comemorações do quinto centenário do “des-
cobrimento” da América, rememorado em 1992 sob incisivas críticas
de diversos movimentos sociais, intelectuais e estudiosos.
Para o escritor Jesus Contreras, os povos indígenas sobreviventes
no território latino-americano não tinham mesmo o que comemorar,
pois os europeus trouxeram consigo, em 1492, uma série de mazelas
que não foram de todo superadas ainda na atualidade: genocídio, etnocí-
dio, doenças, fome, miséria, escravidão, servidão es outras tantas mais.
Resulta difícil conmemorar tantos infortunios en un sólo día, y resulta difícil
de comprender que un Estado que se considera democrático y pluralista lo

50
Termo que melhor se ajusta à chegada dos portugueses ao Brasil, já que as terras alcançadas por
eles em 1500 não foram descobertas e nem povoadas inicialmente por eles. Elas já eram densamente
habitadas pelos indígenas, cerca de mil etnias e de 2 a 4 milhões de habitantes, em números estimados
(ALMEIDA, 2010, p. 29); e há ainda evidências de que não foram eles, os portugueses, os primeiros
europeus a chegarem ao território onde é hoje o Brasil.
126 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

oficialice. Cuánto más ético hubiera resultado aceptar la propuesta india de


declarar el día 12 de octubre Día de Indianidad y reconocer, así, unas culpas
que son históricas, unas consecuencias por las que más cabría pedir perdón
que enorgullecerse (CONTRERAS, 1988, p. 17-18).
Infelizmente, países como México e Brasil, entre outros, não se
mostraram tão conscientes ao ponto de reconhecerem as suas respon-
sabilidades históricas e pedirem perdão aos povos indígenas sobrevi-
ventes por uma série de intempéries que assolaram suas vidas nesses
500 anos de história. No México – onde cerca de 30% da popula-
ção total é indígena, dividida em “65 grupos étnicos... de 112 nações”
(PORANTIM, 1992, p. 1) –, para o povo Mixe, as comemorações do
5º Centenário causaram:
[...] uma preocupação generalizada por parte dos povos indígenas e
negros, que habitam este Continente [...] Consideramos estas co-
memorações como uma afronta a mais que fere nossa dignidade, já
que é motivo de alegria para os descendentes dos invasores de nossas
terras, para nós é uma lembrança dos milhões de mortos deixados.
O chamado descobrimento e o início da evangelização constituem
para nós o ponto de partida de uma era de opressão e cativeiro, de
roubo e assalto, de injustiça e de pobreza, assim como a imposição de
um governo alheio aos nossos interesses (PORANTIM, 1992, p. 4).
No Brasil também houve críticas e mobilizações contrárias às
comemorações de 12 de outubro de 1992, como ocorreu durante a
manifestação que reuniu mais de “mil índios da Amazônia, em protes-
to contra os 500 anos da chegada dos ‘descobridores’” (PORANTIM,
1992, p. 7). Entre os dias 10 e 13 de julho de 1992, organizados pela
então Comissão de Professores Indígenas do Amazonas e de Roraima
(COPIAR), durante o V Encontro de Professores Indígenas do Amazo-
nas e de Roraima, vários indígenas protestaram contra o despropósito
desse tipo de comemoração.
Esse sentimento de indignação diante das pretendidas comemo-
rações do 5º centenário da chegada dos europeus à América repetiu-se
no Brasil, especificamente, com a aproximação da virada do século e o
prelúdio das comemorações oficiais dos 500 anos do Brasil. Nesse pe-
ríodo, o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações Indígenas
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 127

do Brasil (CAPOIB) exerceu importante papel de crítico das iniciativas


do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e do governo
do estado da Bahia, que, com o apoio do Banco Interamericano de
Desenvolvimento (BID), pretendiam comemorar o aniversário da con-
quista europeia com um Museu Aberto do Descobrimento.
Havia, por parte dos governantes, uma pretensão clara de negar a
diversidade e enaltecer uma identidade nacional única em pleno século
XXI, ao não reconhecer e respeitar os direitos e o desolador passado
indígena neste processo. Assim, não se ativeram ao novo contexto his-
tórico, bastante diferente daquele de 500 anos atrás: muitos indígenas
foram massacrados, mas outros tantos sobreviveram, resistiram e estão
vivos não só para contar a sua história, como também para mudá-la.
O Brasil do novo milênio tem uma constituição que reconhece a plu-
ralidade de povos existentes em seu território e lhes garante direitos
originários e permanentes.
Por mais que se quisesse impor, por meio de uma “memória co-
letiva oficializada” e “ideologizada” (SILVA, 2002, p. 437), um marco
simbólico às comemorações dos 500 anos de descobrimento, a história
demonstrou que as vítimas do passado ainda estavam vivas e em con-
dições de contestar e reivindicar contra essa tentativa de manipulação
da memória pretendida pelos governantes. O CAPOIB reuniu-se em
Brasília entre os dias 8 e 10 de julho de 1996, para debater a questão e
se posicionar por meio de uma carta aberta em que os povos e organi-
zações indígenas declararam:
a) Repudiamos veemente o projeto do Museu Aberto do Descobri-
mento que vem sendo desenvolvido no estado da Bahia;
b) Repudiamos a comemoração triunfalista do V Centenário do chama-
do “descobrimento”, feita sobre os cadáveres de nossos antepassados
e através de novas invasões de terras indígenas;
c) Denunciamos a atitude ilegal e arbitrária do governo do Estado da
Bahia com tal projeto e as conivências do Governo Fernando Henri-
que Cardoso e do Banco Interamericano de Desenvolvimento;
d) Solidarizamo-nos com o povo Pataxó e conclamamos a opinião pú-
blica nacional e internacional a unir-se a nós na denúncia contra o
128 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

projeto para que os direitos constitucionais indígenas sejam respeita-


dos (PORANTIM, 1996, p. 2).
Os anos que seguiram foram de intensa mobilização social, en-
volvendo não somente o Movimento Indígena, mas diversos outros
movimentos e organizações representativos das populações marginali-
zadas ao longo desses séculos: negros, mulheres, sem-terra, sem-teto
etc. Foi organizado um grande movimento nacional denominado “Bra-
sil: 500 anos de resistência indígena, negra e popular”, que tinha por
objetivo desmistificar a história contada até aquele instante e que os
governantes pretendiam continuar repetindo falaciosamente.
Em torno da resistência indígena, negra e popular formou-se o
chamado “Movimento 500 anos” ou “Brasil: Outros 500”, que preten-
dia dizer a verdade sobre a real situação dos indígenas e dos negros no
Brasil; dos trabalhadores que lutavam pela terra, emprego e moradia;
e chamar a atenção da sociedade como um todo “sobre o significado
destes 500 anos de história do ponto de vista indígena, negro e po-
pular” (PORANTIM, 1999, p. 6), articulando todos os movimentos
sociais engajados na luta contra a marginalização social, política, étnica
e econômica.
Enquanto uma grande festa de Estado era preparada para ocor-
rer em Porto Seguro, com a participação de autoridades estrangeiras e
nacionais, como os presidentes do Brasil e de Portugal – e com direito
a “réplica da nau capitânia de Cabral”, que “custou 3,8 milhões e não
saiu do lugar” (GARÇONI, 2000, p. 70) –, os povos indígenas brasi-
leiros organizaram a “Marcha Indígena 2000”, que tinha por objetivo
chegar a Porto Seguro e protestar contra as comemorações oficiais dos
500 anos, representativas do desrespeito e da ausência de reconheci-
mento das autoridades nacionais em relação aos indígenas do Brasil.
Estas comemorações, da maneira como foram projetadas, simbolizam
a ausência de estima social evidente não apenas no poder público, mas
em grande parte da população não indígena do país.
Iniciada no dia 4 de abril, a Marcha pretendia chegar às terras
onde ocorreu o primeiro encontro entre os portugueses e os ancestrais
indígenas no dia 22 de abril, quando então se comemora o aniversário
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 129

do “descobrimento” do Brasil. Essa mobilização indígena, que aglome-


rou povos de todos os cantos do país em torno de um mesmo objetivo,
representa um dos momentos mais importantes do Movimento Indíge-
na no Brasil, pois reforça a capacidade organizativa dos povos e organi-
zações; o protagonismo indígena em torno da luta pelos seus direitos; e
o caráter mobilizador do Movimento em torno de carências e angústias
comuns aos diversos povos indígenas do Brasil.
Para o então Presidente da FUNAI, Carlos Frederico Marés de
Souza Filho, a Marcha e a Conferência Indígena de Coroa Vermelha
– marcada para acontecer entre os dias 17 e 22 de abril de 2000, du-
rante as comemorações oficiais do Estado brasileiro – apresentam-se
como a primeira grande “mobilização nacional dos povos indígenas”
(RICARDO, 2000, p. 64), que, com sucesso, reuniu as caravanas de
índios do “Amazonas, Amapá, Acre, Pará, Maranhão, Tocantins, Mato
Grosso, Rondônia e Mato Grosso do Sul” (BITTENCOURT, 2007, p.
167), caravanas estas que, segundo Neves, “mobilizou cerca de 3.600
índios” (NEVES apud SANTOS, 2003, p. 128).
Entre os temas debatidos durante a Conferência e que conduzi-
ram todas as caravanas rumo a Porto Seguro, estavam o respeito e o
“cumprimento dos direitos indígenas garantidos na Constituição Fe-
deral”; “a revogação do Decreto 1.775/96”; a “aprovação do Estatuto
dos Povos Indígenas” e o reconhecimento pelo governo brasileiro da
Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); a
construção de escolas indígenas, assim como uma maior “fiscalização
das verbas destinadas às mesmas”; a reestruturação da FUNAI; a apli-
cação da Lei Arouca, direcionada à reestruturação da saúde indígena;
entre outros exemplos de exercício do poder sem o verdadeiro re-
conhecimento dos direitos e da diversidade étnico-cultural dos povos
indígenas (RICARDO, 2000, p. 66).
Muitas dessas demandas acima mencionadas continuam em aberto
na atualidade, 19 anos depois das fatídicas comemorações dos 500 anos,
como a aprovação do Novo Estatuto dos Povos Indígenas; e, no caso da
restruturação da FUNAI, no início deste ano de 2019 a mesma vivenciou
um verdadeiro esfacelamento, provocado com a nítida intenção de fragi-
130 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

lizá-la ainda mais51, com a sua transferência para o Ministério da Mulher,


Família e Direitos Humanos, e que acabou retornando, meses depois,
após vários problemas e questionamentos, ao Ministério da Justiça; e a
remoção de sua principal função para o Ministério da Agricultura: a or-
ganização e a realização dos trâmites relativos à demarcação das terras
indígenas – o que não se sustentou por muito tempo, diante das lutas e
resistências indígenas e indigenistas, de modo que também as obrigações
relativas às demarcações das terras indígenas retornaram à FUNAI.
Os organizadores das festividades oficiais não queriam que as co-
memorações fossem interrompidas por manifestações e protestos popu-
lares, o que levou os Governos Federal e o da Bahia a se prevenirem con-
tra todo e qualquer empecilho. Com este intuito, em clima de tensão, o
Ministério da Defesa (RICARDO, 2000, p. 64) foi acionado para fazer
a segurança do evento, transformando as praias e os sítios históricos de
Porto Seguro em verdadeiros campos de atuação das Forças Armadas.
O clima de violência e tensão já havia sido testado pelos índios Pa-
taxó quando um monumento construído pelos mesmos, em Santa Cruz
de Cabrália, foi destruído pela Polícia Militar da Bahia (O GLOBO apud
RICARDO, 2000, p. 64). Em meio a desentendimentos e tensões entre
os organizadores do evento oficial e a programação paralela dos povos
indígenas em marcha, e demais movimentos sociais envolvidos, além da
preocupação do Governo de esconder do mundo os conflitos reais do
país, os indígenas, reunidos em Coroa Vermelha, decidiram marchar até
Porto Seguro em protesto contra as comemorações oficiais.
Esse dia 22 de abril de 2000 não se distinguiu muito daquele no qual
os índios foram avistados e colonizados há 500 anos. O diferencial estava
nas leis de um Brasil democrático que em sua Carta Magna se diz defensor
e protetor dos direitos dos povos indígenas; e que, na prática, se mostrou
incapaz de tolerar as manifestações e protestos pacíficos dos mesmos. Pela
manhã, vários manifestantes do Movimento Negro e do Movimento dos
Sem-Terra, entre outros, foram presos quando tentaram chegar ao local
onde ocorria a Conferência Indígena, com o fito de “engrossar a marcha
dos índios a Porto Seguro” (OESP apud RICARDO, 2000, p. 69).
51
Ver nota 49.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 131

O então presidente da FUNAI, Carlos Frederico Marés de Sousa


Filho, a Senadora Marina Silva (ainda no PT-AC) e o deputado Federal
José Dirceu (também naquele momento no PT-SP) tentavam libertar
as pessoas presas, enquanto a Polícia Militar da Bahia barrava a saída da
marcha indígena da região de Santa Cruz de Cabrália, rumo a Porto
Seguro. Esse foi o momento de maior tensão e violência das frustradas
comemorações oficiais dos 500 anos; e as cenas produzidas durante o
confronto entre os indígenas, que protestavam pacificamente, e a po-
lícia, dotada de cavalaria e bombas de gás lacrimogêneo, indignaram a
opinião pública nacional e internacional engajada e comprometida com
os povos indígenas do Brasil.
A repressão violenta aos protestos dos indígenas foi interpretada
como um ato de ditadura, que não combinava com um país que co-
meçou o seu processo de redemocratização em meados da década de
1980, e se vangloriava de ter uma das Constituições mais democráticas
do mundo. Para a Senadora Marina Silva (PT-AC), os atos de truculên-
cia contra os indígenas presenciados na Bahia provam “que a democra-
cia só chegou na casa grande. Na senzala ainda é ditadura” (GARÇONI,
2000, p. 70). Para o indígena Gildo Terena, que, durante o choque com
a Polícia Militar da Bahia foi atingindo por estilhaços de bomba, levado
ao chão e pisoteado pelo batalhão, aquele foi um momento de profun-
da dor e desrespeito a ele e ao seu povo:
[...] fui empurrado pela bomba e eu caí no chão sem defesa nenhu-
ma, sem agressão nenhuma, eu tentei levantar e fui pisoteado pelo
batalhão. Senti como se fosse animal depois. Eu chorei. Eu não
aguentei ver em mim que [sic] um índio pisado, pisado no começo
de uma nova era dos 500 anos. Eu chorei, chorei me perguntando,
o que eles estavam fazendo. É doído, é doído em mim. É doído
ver meu povo triste de longe, de todo o Brasil, foi pra protestar
com paz. Chegando lá com violência, foram embora, não de cabe-
ça baixa, mas esperando os outros 500 que não possam ser assim
(RICARDO, 2000, p. 68).52

52
“Fui pisoteado pelo batalhão.” Excerto do depoimento de Gildo Jorge Roberto Terena, pronuncia-
do no ato público de solidariedade e acolhida da delegação da Marcha Indígena de 2000, na cidade
de Rondonópolis, no dia 24 de abril de 2000, na Praça dos Carreiros, às 17 horas (RICARDO,
2000, p. 68).
132 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Esse depoimento demonstra bem o que significou, para os indíge-


nas, todo o processo de organização da resistência às comemorações dos
500 anos; assim como o desfecho dessa truculência do Governo indicou
aspectos claros do quão frágil pode ser uma democracia que se pauta em
leis bem redigidas e pouco respeitadas. Para os indígenas, mais uma vez,
ficou a esperança de que nos próximos 500 anos a história seja diferente,
e a certeza de que a sua participação direta nesse processo é fundamental.
Nessa circunstância, observa-se que o caminho entre o reco-
nhecimento do direito e o alcance da estima social, na perspectiva de
análise apresentada por Honnteh, ainda está por se fazer, e a distância
entre um e outro é muito longa quando se observa esta realidade da
luta indígena no Brasil. Houve nítido desrespeito aos direitos indígenas
conquistados em 1988 nesta ação do Governo, simbólica por causar
“experiências de rebaixamento” que afetaram o “autorrespeito moral”
(HONNETH, 2003, p. 216) das populações indígenas atingidas, e por
fragilizar temporariamente o Movimento Indígena no Brasil.
Com esse ato de truculência percebe-se que Estado, sociedade
e povos indígenas não estavam, e ainda não estão, plenamente aptos
a vivenciar uma situação de solidariedade social. Os indígenas se vi-
ram constrangidos em um evento em que eles deveriam participar,
como sujeitos de direito que são da coletividade social brasileira, como
“membro de igual valor”, logo, não lhes foi “concedida imputabilida-
de moral na mesma medida que aos outros membros da sociedade”
(HONNETH, 2003, p. 216).
Nesse sentido, a legalidade dos direitos conquistados não implica,
automaticamente, reconhecimento e legitimidade social às populações
indígenas, esta representa outra etapa da luta social. Após resistirem co-
letivamente às experiências de desrespeito como as aqui apresentadas,
tendem a se engajar na luta por reconhecimento entre os diferentes
setores da sociedade e do Estado, almejando o “autorrespeito perdido”
e a “estima mútua” entre todos os setores da sociedade (HONNETH,
2003, p. 258-260).
A imagem de Gildo Terena ajoelhado no chão, entre homens far-
dados e armados, correu o mundo, e multidões conheceram a fragili-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 133

dade da democracia brasileira em matéria de reconhecimento étnico e


de respeito mútuo frente aos direitos coletivos dos povos. A utilização
de força militar para impedir as manifestações pacíficas de vários movi-
mentos sociais organizados, contra uma comemoração que não condizia
com a realidade histórica vivenciada pelos grupos que, ironicamente,
mais contribuíram para a formação dessa grande e multiétnica nação, e
que sequer foram convidados para a festa, significa que ainda havia (há)
ranços de uma cultura política autoritária em pleno processo de rede-
mocratização do Brasil, na passagem do século XX para o século XXI; e,
infelizmente, 20 anos depois esta história pouco mudou.

Figura 9.1 Gildo Terena de joelhos diante de policiais

Fonte: Arquivo do Setor de Documentação do CIMI/Foto: Sérgio P. Cruz (2000)

Considerações preliminares sobre uma história que


ainda não acabou
Parafraseando Paul Ricoeur, Helenice Silva (2002, p. 428) ob-
serva que uma comemoração é o resultado de “um trabalho de cons-
trução da memória coletiva”. E essa memória coletiva geralmente se
constrói em torno de acontecimentos tidos como fundadores, repletos
de simbolismo e ideais que devem funcionar como princípio unificador
de uma comunidade, de uma nação, de um Estado etc. Os responsáveis
oficiais por fortalecer os sustentáculos da memória coletiva selecionam
134 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

acontecimentos, lugares, objetos, símbolos, datas, entre outros arti-


fícios, capazes de revigorar concomitantemente a memória nacional.
Com este intuito é que as comemorações dos 500 anos do Brasil se
tornaram, para o governo, uma oportunidade ímpar de revitalização
da memória nacional, além de fortalecer a imagem do Brasil grande,
unificado, pacífico, étnico e socialmente harmônico.
Não foi proposta uma discussão crítica e aprofundada sobre as
reais consequências da colonização para os indígenas e os afro-brasi-
leiros; não se questionou a situação socioeconômica do país e a sua
repercussão na vida da maioria dos brasileiros; nem mesmo houve uma
reflexão sobre o uso do termo “descobrimento”, que, em Portugal,
foi preterido pela terminologia “achamento” (SILVA, 2002, p. 434). E
a pergunta mais importante dos movimentos sociais reunidos contra
aquela falsa comemoração foi: comemorar o quê?
A data comemorativa dos 500 anos não cumpriu o papel de “rea-
propriação do acontecimento passado” (SILVA, 2002, p. 436) – pois, para
a maioria da população, especialmente os indígenas e os afro-brasileiros,
a realidade das suas vidas não condizia em nada com os discursos oficiais
daquele 22 de abril de 2000 – com os símbolos de uma época com a qual
não há nenhum vínculo sagrado, a exemplo da réplica da nau capitânia de
Cabral, aquela mesma que custou R$ 3,8 milhões e sequer saiu do lugar.
Do período que originou este texto aos dias atuais, 20 anos já se
passaram, e os indígenas no Brasil ainda continuam permanentemente
lutando por reconhecimento diante do desrespeito com as pessoas e o
coletivo indígena, e pelos direitos por eles conquistados na Carta de
1988. Isto porque vivenciam situações recorrentes de desrespeito e
ausência de estima mútua, como os enfrentamentos por demarcação
e desintrusão de seus territórios, a exemplo do caso da Terra Indígena
Marãiwatsédé, do povo Xavante (MT); ou a situação periclitante em que
vivem os Guarani-Kaiwoá (MS), sob risco de genocídio iminente, cujo
território tradicional segue sem demarcação e sob intensa disputa com
fazendeiros da região. Estes são apenas dois de centenas de casos de
desrespeito, violência física e moral e ausência de reconhecimento dos
direitos coletivos dos povos no Brasil.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 135

Depreende-se de tudo isso que, no Brasil, os outros 500 ainda se


encontram em fase inicial de gestação, e serão necessárias, ainda, mui-
tas lutas para que esta história seja reescrita de modo a dar voz àqueles
que vivenciam as situações mais degradantes, violentas e desrespeito-
sas, ou seja, aos próprios indígenas. Os prenúncios deste 2020 não são
nada animadores, em matéria de respeito aos direitos conquistados e
garantidos na Constituição Cidadã; assim como também parece muito
distante o tempo em que os indígenas serão verdadeiramente reconhe-
cidos, na perspectiva das relações sociais simétricas e de estima mútua,
como iguais, sem que, para tanto, precisem deixar de ser diferentes.

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Capítulo 10

Territorialidade e identidade étnica Kalunga frente à


construção da PCH Santa Mônica
Vercilene Francisco Dias53
Izadora Nogueira dos Santos Muniz54
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega55

Introdução
O caminho da efetivação dos direitos territoriais quilombolas
da comunidade Kalunga tem sido árduo no estado de Goiás. Realidade
que não é, de modo algum, exclusiva desse povo. Antes, é herança da
hegemonia escravista colonial e imperial, que buscou mecanismos le-
gais de manutenção da concentração de terras no Brasil – Lei de Terras,
1850 (OSÓRIO, 2008).
Passados 30 anos da promulgação da Constituição Federal (CF),
a não observância do caráter afirmativo que o acesso à terra tem para
as comunidades quilombolas tem implicações diretas nos modos de
reprodução sociocultural das respectivas comunidades e no direito dos
seus membros à livre-escolha do modelo de vida que pretendem ado-
53
Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), onde foi bolsista CAPES e
integrante do Observatório da Justiça Agrária do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da
UFG (e-mail: vercilenekalunga@hotmail.com).
54
Mestranda em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás, bolsista FAPEG e integrante do
Observatório da Justiça Agrária do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG (e-mail:
n.izadora@gmail.com).
55
Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular na Facul-
dade de Direito da Universidade Federal de Goiás e Professora na Universidade de Ribeirão Preto.
Coordenadora do Núcleo Emergente Comunidades Tradicionais. Bolsista Produtividade em Pesquisa
CNPq. E-mail: mcvidotte@uol.com.br.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 139

tar, afetando a forma de exercício de suas autonomias pública e priva-


da, conforme estabelecido pela Convenção da Organização Internacio-
nal do Trabalho (OIT) nº 169. As implicações são: interferência direta
em direitos fundamentais constitucionalmente previstos e violação de
direitos humanos.

Contextualização da proteção jurídica no Brasil e no


estado de Goiás
Os três séculos e meio do modo de produção escravista colonial
no Brasil marcaram significativamente a estrutura fundiária brasileira.
Ao longo desse período de hegemonia do sistema econômico da es-
cravidão, e mesmo após, se formaram, a partir das mais diversas si-
tuações,56 os “quilombos” – espaço sistemático de resistência, mediante
fuga, empreendido pelo trabalhador e trabalhadora escravizada. Porém,
como aponta Gorender (2016, p. 56), uma vez que “numa sociedade es-
cravocrata, não há coisa melhor do que possuir escravos”, o conceito de
quilombo – que caracteriza uma relação mais expressa de tensões entre
senhor e escravo –, em sua origem jurídica no Brasil, adquire “raízes
coloniais de natureza penal e discriminatória” (BALDI, 2015, p. 196).
Passados 130 anos de assinatura da Lei Áurea (1888), persistem
as comunidades étnico-raciais negras na realidade fundiária brasileira,
o que se expressa nos dados apresentados pela Secretaria de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR, 2013), indicando que em
24 dos 26 estados da Federação brasileira existem comunidades qui-
lombolas. Ou seja, as comunidades quilombolas não são representantes
de um passado, nem vestígios, nem meros remanescentes do que foi
outrora, antes são parte da estrutura agrária e fundiária do presente.
No entanto, a base legal que ressignifica o conceito de quilom-
bo, tirando-o do foco repressivo e trazendo-o para a seara do reco-

56
Doações de terras realizadas a partir da desagregação da lavoura de monoculturas, como a cana-de-
-açúcar e o algodão, compra de terras, terras que foram conquistadas por meio da prestação de servi-
ços, inclusive de guerra, bem como áreas ocupadas por negros que fugiam da escravidão. Há também
as chamadas terras de preto, terras de santo ou terras de santíssima, que indicam uma territorialidade
vinda de propriedades de ordens religiosas, da doação de terras para santos e do recebimento de terras
em troca de serviços religiosos (SEPPIR, 2013, p. 8).
140 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

nhecimento e proteção de direitos, é muito recente no ordenamento


jurídico brasileiro. O marco inicial se deu no plano internacional, com
a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial, assinada pelo Brasil em 1966, em vigor no país
no ano de 1969. Tal convenção tem como fim eliminar a discriminação
racial em suas mais diferentes manifestações, e prevenir e combater
doutrinas e práticas racistas.
Mas o aperfeiçoamento legal referente às especificidades dessas co-
munidades de ancestralidade negra, bem como o ressurgimento do ter-
mo e sua ressignificação se dá a partir da Constituição Federal de 1988.
Nela, o Estado brasileiro garante o direito à proteção das manifestações
culturais afro-brasileiras, bem como o tombamento dos sítios históricos
quilombolas (arts. 215 e 216). Mas é no Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias (ADCT) que a Constituição reconhece o direito à
propriedade das terras de comunidades remanescentes de quilombos.
No plano internacional, o Brasil é um dos países signatários da
Convenção OIT nº 169 – Decreto nº 5.051/2004 –, que reconhece o
direito à autodeterminação de Povos e Comunidades Tradicionais. É,
portanto, esse marco legal internacional que assegura às comunidades
quilombolas o controle de suas próprias instituições e formas de vida e
seu desenvolvimento econômico.
Essa nova relação com o Estado se mostra, por exemplo, quando
o governo deve consultar as comunidades quilombolas, quando forem
interessadas, cada vez que houver a previsão de uma medida legislativa
ou administrativa suscetível de afetar a região que ocupam ou utilizam
de alguma forma.
Já o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) estabe-
lece que a participação da população negra, em condição de igualdade
de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do país,
será promovida mediante implementação de programas de ação afir-
mativa57, destinados ao enfrentamento das desigualdades étnico-raciais
no tocante ao acesso à terra.
57
Ações afirmativas: os programas e medidas especiais, adotados pelo Estado e pela iniciativa privada, para
a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades (BRASIL, 2010).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 141

O Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, trata da


regularização fundiária de terras de quilombos, conforme dispõe o
art. 68 do ADCT, e define as responsabilidades governamentais nessa
regularização.
A constitucionalidade do referido decreto foi questionada me-
diante Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN nº 3.239/DF),
ajuizada em 2004 pelo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Demo-
cratas (DEM); após 14 anos tramitando perante o Supremo Tribunal
Federal (STF), oito dos ministros manifestaram-se contrariamente à
alegada inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003. Sendo, por-
tanto, constitucional e tendo eficácia e efeito vinculante contra todos,
em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
federal, estadual e municipal.
Em fevereiro de 2007 o Decreto nº 6.040 traçou princípios e
diretrizes para a política nacional de desenvolvimento sustentável dos
povos e comunidades tradicionais no âmbito do Governo Federal.
O Decreto nº 6.261, de 20 de novembro de 2007, dispõe sobre
a gestão integrada para o desenvolvimento da Agenda Social Quilom-
bola no âmbito do Programa Brasil Quilombola, sendo que uma das
primeiras ações da Agenda é voltada ao acesso à terra. É importan-
te destacar que, quando o Programa Brasil Quilombola foi lançado,
em 2004, coordenado pela Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (SEPPIR, a comunidade Kalunga foi escolhida como
“experiência-piloto” desta política pública, contando, inclusive, com a
presença do então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva
(INCRA, 2009).
No âmbito administrativo, temos a Portaria Fundação Cultural
Palmares (FCP), nº 98, de 26 de novembro de 2007, que institui o
Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos,58
da Fundação Cultural Palmares, a fim de regulamentar o Decreto nº
4.887/2003. Esse cadastro é importante, uma vez que, para que o IN-
CRA inicie os trabalhos de regularização em determinada comunida-
Também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre
58

outras denominações semelhantes.


142 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

de, ela deve apresentar a Certidão de Registro no Cadastro Geral de


Remanescentes de Comunidades de Quilombos, emitida pela Funda-
ção Cultural Palmares.
No mais, a partir do Decreto nº 4.887/2003, a atribuição de
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilom-
bos passa a ser do INCRA. Assim, nós temos a Instrução Normativa
INCRA nº 57, de 20 de outubro de 2009, que regulamenta os procedi-
mentos “para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação,
desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescen-
tes das comunidades dos quilombos”, atribuídos ao INCRA pelo refe-
rido decreto.
Já no âmbito legislativo do estado de Goiás, norteado pela CF,
a Constituição estadual traz dispositivos sobre direitos territoriais das
comunidades quilombolas goianas e cita expressamente a comuni-
dade Kalunga, maior território remanescente de quilombo do país,
que extrapola a organização administrativa, estendendo-se por três
municípios goianos:
Art. 16. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que es-
tejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos.
§ 1º Lei complementar criará a reserva Calunga [sic], localizada nos
Municípios de Cavalcante e Monte Alegre, nos vãos das Serras da
Contenda, das Almas e do Moleque.
§ 2º A delimitação da reserva será feita, ouvida uma comissão com-
posta de oito autoridades no assunto, sendo uma do movimento ne-
gro, duas da comunidade Calunga [sic], duas do órgão de desenvol-
vimento agrário do Estado, uma da Universidade Católica de Goiás,
uma da Universidade Federal de Goiás e uma do Comitê Calunga
(GOIÁS, 1989, p. 99).
Em 1991, com base em estudos conduzidos por arqueólogos, e
principalmente por Mari Baiocchi, mediante o projeto “Kalunga: Povo
da Terra” (1981-2004) – em parceria com a UFG, o Governo do estado
de Goiás institui a Lei Estadual nº 11.409, de janeiro de 1991, a partir
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 143

da qual a Assembleia Legislativa do estado constitui patrimônio cultural


e sítio de valor histórico a área de terras situadas nos vãos das Serras
do Moleque, de Almas, da Contenda-Calunga e Córrego Ribeirão dos
Bois, nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás,
no estado de Goiás, com fulcro no § 5º do art. 216 da Constituição Fe-
deral, e o art. 163, § 2º, itens I e IV, da Constituição do estado de Goiás.
Observa-se que, no caso da comunidade Kalunga, primeiro hou-
ve um reconhecimento estadual de uma área como patrimônio his-
tórico cultural, para, posteriormente, garantir-se aos seus ocupantes
propriedade exclusiva, a posse e a integridade da área delimitada como
sítio histórico.
O reconhecimento por parte do Governo Federal veio no ano
2000, 11 anos após a promulgação da Constituição Federal, quando
a FCP emitiu Título de Reconhecimento de Domínio de uma área de
253,19 mil hectares em favor da Associação do Quilombo Kalunga,
Associação-Mãe que representa todo o território quilombola.
Entretanto, conforme informações técnicas cedidas pelo IN-
CRA para o Processo Administrativo nº 257/2008, que tramita junto
à Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do Estado de
Goiás (SEMARH), essa titulação, promovida pela FCP, em proprieda-
des particulares, não desapropriou esses proprietários e não cancelou
títulos de ocupantes não quilombolas.
Com o advento do Decreto nº 4.887/2003, já não cabia mais ao
Ministério da Cultura – ao qual a FCP é vinculada – titular essas áreas,
então, o processo Kalunga é remetido ao INCRA, vinculado ao Minis-
tério do Desenvolvimento Agrário. Percebemos que há uma mudança:
aqui a questão quilombola deixa de ficar somente no âmbito cultural
para ser uma questão fundiária.
Dessa maneira, conforme informações dispostas pela autarquia
federal INCRA, o processo de regularização da comunidade Kalunga59
tramita desde 2004, sendo operacionalizado pela Superintendência do
Distrito Federal e Entorno (SR 28). Isto é, atualmente o processo se
encontra pendente de Decreto Presidencial que autoriza as desapro-
59
Processo nº 54700.000189/2004-12.
144 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

priações privadas, bem como encaminhamentos a entes públicos que


tenham a posse. Uma vez que, de acordo com o INCRA (2009), no
perímetro que corresponde ao território Kalunga, incidem áreas da
União, do estado e alguns imóveis de domínio particular a serem ava-
liados e indenizados.
A comunidade Kalunga tem uma área de 261.999,6987 hecta-
res, com o número de 600 famílias, e encontra-se parcialmente titula-
da. Como a área comporta mais de um imóvel particular – sendo que
cada um desses imóveis avaliados, após o decreto, tem uma ação de
desapropriação judicial própria, e ainda cabe ao desapropriado discutir
o valor da avaliação, recorrendo ao juiz –, conforme as sentenças são
emitidas, para garantir a celeridade do processo, o INCRA procede a
destinação do imóvel, emitindo títulos parciais do território, para ga-
rantir o acesso à terra das comunidades quilombolas.
Todavia, na regularização fundiária de comunidades quilom-
bolas, o título expedido pelo INCRA é coletivo, pró-indiviso e em
nome das associações que legalmente representem as comunidades
quilombolas. Quando todos os títulos parciais referentes a um ter-
ritório são emitidos, o INCRA unifica as matrículas em uma única,
em nome da associação legalmente constituída (INCRA, 2017). Mes-
mo que sejam temporários, esses processos desapropriatórios levam
anos tramitando.
É importante notarmos que a área da comunidade Kalunga,
sua propriedade definitiva, bem como a delimitação de sua reser-
va, é constitucionalizada (está expressa na Constituição do estado
de Goiás). Entretanto, a morosidade no processo de regularização
quilombola se mostra um empecilho ao cumprimento da norma – do
dever ser constitucional.
A consequência da ausência do título coletivo deixa todo o terri-
tório Kalunga mais vulnerável aos interesses particulares, inclusive da
mineração, conforme aponta Chianca (2010):
Constam no [sic] território Kalunga, conforme relatório de ativida-
de do DNPM e relatório do IBAMA – GO, a existência de 106 pro-
cessos relativos à atividade de mineração, dos quais, 59 se referem à
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 145

[sic] Requerimento de Pesquisa e 47 à Autorização de Pesquisa; tota-


lizando 228.043 hectares, ou seja, os processos minerários referem-
-se à [sic] 99% da área total do quilombo Kalunga (MPF, informação
técnica nº 053/08) (CHIANCA, 2010, p. 76).
No ensejo, Chianca (2010) aponta alguns processos minerários
no quilombo Kalunga, principalmente no município de Cavalcante,
onde se situa a maior parte do território Kalunga, e também onde está
localizado o núcleo comunidade Vão de Almas, sendo as substâncias
requeridas o ouro, o ferro, o manganês, dentre outras.
Assim sendo, a longa espera do Decreto Presidencial que autori-
za a desapropriação das áreas privadas instruídas na área Kalunga gera
conflitos fundiários na região, uma vez que estão em jogo duas concep-
ções distintas sobre terra e que reflete direitos em disputa, como apon-
ta Maia (2012). De um lado, uma concepção que associa a terra ex-
clusivamente à função econômica (propriedade), associa o homem ao
mercado de trabalho (emprego), intermediado pelo dinheiro (padrão
ouro), três dogmas fundantes do liberalismo, de acordo com Polanyi
(2000). Essa concepção fica expressa no “Relatório Ambiental Simpli-
ficado – RAS PCH Santa Mônica”, parte do processo administrativo de
Licenciamento Ambiental nº 257/2008, que, ao tratar dos benefícios
da construção de uma pequena Central Hidrelétrica no sítio histórico
Kalunga, aponta como impacto para o desenvolvimento local a geração
de emprego para os quilombolas.
De outro lado, tem-se uma concepção de relação com a terra
diversa da noção de individualidade patrimonial. Segundo Maria de
Lourdes Bandeira (1990), a territorialidade dessas comunidades negras
é referida na identidade étnica de cada grupo que as constitui. A posse
da terra, independentemente das suas origens patrimoniais, se efetiva
pelas comunidades negras enquanto sujeito coletivo configurado como
grupo étnico. A apropriação coletiva é feita por negros organizados et-
nicamente como sujeito social, diferente de como se construiu a ideia
da propriedade privada no direito.
Nesse ponto, torna-se importante acentuar que o modo de vida
dessas comunidades atua na preservação e conservação da área, não
146 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

sendo mera casualidade que 75% da biodiversidade preservada se en-


contre em terras indígenas e de comunidades tradicionais, bem como
o respeito à sociodiversidade (BALDI, 2015).
Não podemos descuidar, entretanto, por mais que estejamos
diante de direitos em disputa, como apontou Maia (2012), principal-
mente na fase de desintrusão, do caráter de ação afirmativa que o Es-
tado confere ao acesso à terra por parte das comunidades quilombo-
las. No mesmo sentido, Tárrega (2016, p. 87) assinala que discutir os
direitos quilombolas é tratar de matéria de “caráter eminentemente
histórico e é resultado de uma tentativa de revisão ética da história bra-
sileira e de resgate da dívida que tem o Brasil para com a comunidade
afrodescendente, pelos muitos séculos de negação de direitos”.
Portanto, não se trata de uma mera disputa legal sobre quem
tem direito ao título e à terra, as ações afirmativas dispostas no Es-
tatuto da Igualdade Racial, no Programa Brasil Quilombola, no De-
creto nº 6.261/2007, bem como as demais bases legais nacional e
internacional de proteção quilombola, tem o condão, como apontam
Canotilho et al. (2013), de corrigir a injusta estrutura fundiária do
país e no combate à persistência do racismo na sociedade brasileira
frente às elites agrárias racistas do Brasil. Portanto, trata-se de uma
função reparadora.

Territorialidade e identidade étnica Kalunga


Para a compreensão da formação do território Kalunga é pre-
ciso ter em mente o contexto socioeconômico do modo de produção
escravista no Brasil colonial e imperial, bem como a diáspora forçada
de trabalhadoras e trabalhadores escravizados. Tárrega (2019, p. 121)
disserta que dentro desse sistema econômico da escravidão “o homem
e a mulher escravizados foram convocados a reconfigurar suas vidas e a
recriar modos de existência como resposta à própria continuidade do
existir, e o fizeram a partir de uma integração com a natureza”.
Goiás possuía ecossistemas que constituíam refúgios ideais aos qui-
lombolas. Ali, os trabalhadores escravizados encontravam “florestas
densas, montanhas inexploradas, cerrados espinhosos, manguezais
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 147

infestados por mosquitos, ilhas escondidas, inúmeros rios e muita


distância dos brancos” (FIABANI, 2005, p. 254).
E assim, resistindo ao tempo, protegidos pelas barreiras naturais,
temos a comunidade Kalunga, circunscrita pelos municípios de Arraias
(TO) ao norte, Monte Alegre de Goiás (GO), Teresina de Goiás (GO)
e Cavalcante (GO). Dentro dessa circunscrição se abrigam cinco nú-
cleos, também chamados de “municípios”, na região, sendo: Contenda,
Kalunga, Vão de Almas, Vão do Muleque, Ribeirão dos Bois (antigo
Ribeirão dos Negros); que se subdividem em vários outros agrupa-
mentos com diversas denominações locais.
A comunidade quilombola Kalunga, de acordo com os estudos
conduzidos pela antropóloga Baiocchi (2006), se forma a partir do sé-
culo XVIII, às margens do Rio Paranã, com as bandeiras colonizadoras,
e tem continuidade no movimento minerador – as Minas dos Goyazes;
e remonta às expedições empreendidas por Bartolomeu Bueno – o
Anhanguera – e João Leite da Silva.
A referida antropóloga ressalta que o povoamento dos vãos e
serras por africanos e afrodescendentes, que originaram o território
Kalunga se desenvolve no mesmo passo da formação do estado de
Goiás, contudo, de forma independente e, de certo modo, isolada.
Do trabalho nas minas se origina, em parte, a formação do povo
Kalunga. Fugidos do trabalho forçado da mina Boa Vista – localizada
no limite norte da atual cidade de Teresina de Goiás – os escravos
se dirigiam para os vãos das serras; dentre elas, Mendes, Mocambo,
Mangabeira, Boa Vista, Contenda, Bom Jardim, Bom Despacho, São
Pedro e Muleque (CHIANCA, 2010, p. 52).
Assim foi se constituindo a territorialidade da comunidade
Kalunga, na qual a terra é ocupada e utilizada de maneira coletiva, com
seus valores culturais e espirituais próprios. O rio Paranã – que nasce
próximo à cidade de Formosa –, que pertence à bacia do Rio Tocan-
tins, corta todo o território Kalunga, e os seus principais afluentes são
os Rios do Prata, Bezerra, das Almas e Ribeirão dos Bois.
Não há muitos relatos documentados sobre a comunidade qui-
lombola Kalunga ao longo da história. Chianca (2010) aponta que, no
148 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

lapso temporal entre os séculos XVII a XIX, apenas uma menção é feita
por Dom João Manoel de Mello, no ano de 1760, revelando a existên-
cia de um quilombo no vale do Rio Paranã, onde conviviam mais de
200 pretos em liberdade, dedicando-se ao cultivo de roças e pomares.
Nesse ponto, torna-se imprescindível explanar os parâmetros
de identificação e pertencimento das comunidades quilombolas, mais
especificamente na Comunidade Kalunga, a fim de dirimir críticas vi-
rulentas que questionam o critério de “autoatribuição” dessas comuni-
dades, que encontra respaldo jurídico na Convenção OIT nº 169 e no
Decreto nº 4.887/2003.
Dias (2016), em conversa com o líder comunitário e Presiden-
te da Associação Quilombo Kalunga, Vilmar Souza Costa, explica que
“autoatribuição” não implica simplesmente se autodeclarar quilombola
Kalunga para ser aceito na comunidade, mas implica um processo com
várias etapas: 1º) No momento em que a pessoa se autodeclara Kalunga
começam todos os trâmites costumeiros de investigação genealógica.
Assim, o declarante deve apresentar um estudo genealógico da família,
indicando quem são ou eram seus familiares Kalunga, se moram na
comunidade ou não; 2º) Juntamente com o estudo genealógico, deve-
-se apresentar uma declaração assinada por três lideranças de região
da qual o declarante diz pertencer, atestando que o declarante ou seus
familiares descendem daquela região (ancestralidade); 3º) A apresen-
tação da documentação é feita ao líder comunitário e Presidente da
Associação, que emite uma declaração de que o declarante pertence à
Comunidade Quilombola Kalunga, e, a partir daí, passa a ter todos os
direitos e obrigações de qualquer quilombola Kalunga.
No caso de a liderança suspeitar de qualquer tipo de fraude
ou qualquer outro ato inverídico, o processo será suspenso ou ex-
tinto e o declarante será denunciado, podendo responder civil e pe-
nalmente pelo ato ilícito. Ou seja, além da autodeclararão definida
pelo Decreto nº 4.887/2003, o pertencimento será atestado pela
própria comunidade.
Ressaltemos uma vez mais que a necessidade de Decreto Pre-
sidencial de Desapropriação por Interesse Social, fase em que atual-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 149

mente se encontra o processo administrativo dentro do INCRA, da


comunidade Kalunga, se dá porque a comunidade se encontra também
em terras privadas. Assim, a morosidade se daria devido à falta de re-
cursos, à burocracia e às pressões políticas (THOMSON REUTERS
FOUNDATION, 2018).

A pequena Central Hidrelétrica Santa Mônica na Região Kalunga


No dia 23 de outubro de 2008 foi protocolado, pela RIALMA
S/A Centrais Elétricas do Rio das Almas, tendo como responsável o
diretor jurídico Breno Boss Cachapuz Caiado, o Processo Administra-
tivo nº 257/2008 – instruído de RAS, onde é solicitada à SEMARH
Licença Prévia (LP) para a implantação de uma Pequena Central Hi-
drelétrica, denominada PCH Santa Mônica.
A comunidade Kalunga se estende por três unidades administra-
tivas municipais, Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás (GO),
sendo que a superfície de 261.999,6987 hectares é composta de cinco
núcleos, ou “municípios, e esses núcleos principais se ramificam em
inúmeros outros agrupamentos com nomes locais. No entanto, o nú-
cleo ao qual nos detemos é o Vão de Almas, que fica a cerca de 339
quilômetros ao norte de Brasília, pois é essa região que poderá ser
diretamente impactada pela construção da PCH Santa Mônica.
Conforme Relatório Ambiental Simplificado apresentado pela
empresa RIALMA, a bacia do Rio das Almas, um dos afluentes do Rio
Paranã, é objeto de interesse econômico desde o ano de 1988. Assim,
foi elaborado um estudo hidroenergético do Rio das Almas, tributá-
rio do Rio Paranã. O relatório desse inventário foi protocolado na
Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), em 24 de outubro de
2002, e aprovado em 28 de maio de 2003, cerca de sete meses depois.
Quatro meses depois, em 24 de setembro de 2003, a ANEEL conferiu
anuência ao projeto básico da PCH Santa Mônica, apresentado pela
empresa RIALMA.
Ainda, de acordo com a Resolução Autorizativa da ANEEL nº
1.174/2007, a RIALMA é autorizada a estabelecer-se como produtora
independente de energia elétrica, mediante a implantação e explora-
150 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

ção do potencial hidráulico denominado PCH Santa Mônica, compos-


ta por duas unidades geradoras de energia elétrica de 15 mil kilowatts
cada, totalizando 30 mil kilowatts de potência instalada no Rio das Al-
mas. A energia elétrica produzida será destinada à comercialização. No
entanto, o Ministério Público Estadual de Goiás faz ressalvas referentes
aos recursos hídricos, sobre recomendações estabelecidas no Estudo
Integrado da Bacia Hidrográfica do Rio das Almas (EIBH) para que o
projeto básico considere a possibilidade de inexistência e/ou redução
significativa de trechos de vazão. Diante disso, a Procuradoria Geral do
Estado alegou que a análise desses fatos seria técnica, cabendo somente
ao órgão licenciador, SEMARH/Secretaria do Meio Ambiente e dos
Recursos Hídricos (SECIMA).
Aqui é importante assinalar que a Constituição Federal foi pro-
mulgada em 05 de outubro de 1988, reconhecendo a propriedade defi-
nitiva às comunidades quilombolas que estivessem ocupando suas ter-
ras. Entretanto, conforme a organização não governamental de direitos
humanos “Justiça Global” (2017), o orçamento para titulação de terras
quilombolas surgiu, pela primeira vez, 21 anos após a promulgação da
CF/1988, com R$ 5,4 milhões. Chegou a R$ 51,6 milhões em 2012,
mas foi sofrendo grandes baixas, chegando a apenas R$ 3,5 milhões em
2017. Vale lembrar que a existência dos Kalunga é conhecida desde a
década de 1960, e o estudo e o contato sistemático com a comunidade
começam em 1981.
Dessa forma, os direitos territoriais Kalunga esbarram em in-
teresses privados no referente aos recursos hídricos da área, que se
travestem no discurso de “desenvolvimento nacional”, e que também
se encontram em consonância com o desenvolvimento do agronegó-
cio60 e a participação de investimentos privados no setor energético
e mineral.
De acordo com reportagem publicada pela Thomson Reuters
Foundation (2018), sobre o Núcleo Vão de Almas da comunidade qui-
lombola Kalunga, cerca de 700 hectares de terra, que estão situados
dentro do sítio histórico da comunidade Kalunga, pertencem à em-
60
Modelo que prioriza a monocultura intensiva de exportação.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 151

presa RIALMA – empreendedora da PCH Santa Mônica. No entanto,


conforme despacho proferido pela SEMARH/SECIMA, em sede do
processo de licenciamento ambiental (nº 257/2008), foi concluído,
por via de ação discriminatória, que parte da matrícula do imóvel da
RIALMA (nº 6.618), que foi usado para pleitear autorização da ANEEL
para exploração de potencial hidráulico dentro do território Kalunga,
sobrepõe-se à Gleba Sossego, área devoluta do estado de Goiás, sob a
matrícula nº 7.875.
Frise-se que, para a titulação dos territórios quilombolas em que
há imóveis privados (títulos ou posses) incidentes no território, é ne-
cessária a publicação de um Decreto Presidencial de Desapropriação
por Interesse Social; esses imóveis desapropriados serão avaliados em
preço de mercado, pagando-se sempre em dinheiro. Avalia-se a terra
nua, no caso dos títulos válidos, e as benfeitorias em qualquer hipóte-
se, ou seja, caso incida uma ação de desapropriação judicial contra a
companhia RIALMA, cabe à mesma discutir o valor da avaliação, re-
correndo ao Judiciário.
De acordo com Chianca (2010), a propriedade dessa área seria
do Diretor Jurídico da RIALMA S/A, Breno Caiado, integrante da
família Caiado61, sendo características dessa família a propriedade
da terra e a permanência política no estado de Goiás,62 conforme
aponta Ribeiro (1998).
O RAS que serviu para deflagrar o processo administrativo da
Licença Prévia nº 257/2008, junto à SEMARH/SECIMA, é marcado
pela tendenciosidade. A companhia entrevistou 13 pessoas, que não
tinham informações detalhadas sobre a implantação da PCH Santa Mô-
nica, para saber as percepções e expectativas delas. Chamamos atenção
para a pergunta capciosa formulada pela empresa: foi indagado sobre
a possibilidade de empreendimentos como a PCH contribuir para o
desenvolvimento socioeconômico da região. Ou seja, o próprio enun-

Importante citar que Ronaldo Caiado, membro da família, é, atualmente, governador do estado de
61

Goiás (2019-2023), havendo antes exercido os cargos de deputado federal e senador da República.
62
Em 2018, o deputado federal Ronaldo Caiado, integrante desta família, foi eleito como governador
do estado de Goiás.
152 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

ciado já supõe que um empreendimento como esse trará desenvolvi-


mento socioeconômico para os moradores e moradoras da região.
Outra pergunta formulada pela companhia, no RAS, foi quanto
às sugestões que os 13 entrevistados teriam para que a PCH Santa Mô-
nica funcionasse com os melhores resultados para a região. Novamente
percebe-se que a companhia conduz as respostas, pois o enunciado da
pergunta dá a entender que a hidrelétrica será construída e que a obra
trará bons resultados para a região.
Frente ao edital de comunicação, anexado pela empresa, de que
a reunião técnica informativa sobre o RAS da PCH Santa Mônica seria
realizada na capital de Goiás, mas a região mais afetada pelo empreen-
dimento seria o município de Cavalcante de Goiás – que fica cerca de
513 quilômetros de Goiânia –, a Promotoria de Justiça de Cavalcante
redigiu recomendação para a SEMARH/SECIMA de Goiás dizendo
ser inadmissível apenas a exigência do RAS, mesmo se tratando de uma
PCH, devendo ser promovido o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e
o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), bem como o Estudo Inte-
grado de Bacia Hidrográfica (EIBH).
Foi recomendado, também pelo Ministério Público Estadual da
comarca de Cavalcante, que se atentassem para o fato de a PCH San-
ta Mônica encontrar-se situada em área de comunidade quilombola,
dentro do Sítio Histórico Kalunga, portanto, uma audiência pública
deveria ser realizada na região de Cavalcante.
Assim, a companhia organizou uma audiência pública no mu-
nicípio de Cavalcante, em outubro de 2008. Entretanto, precisamos
chamar atenção para a questão legal de que:
[...] consulta não deve se confundir com as audiências
públicas realizadas sob os ditames da Resolução nº 09/87 do
CONAMA, pois como o próprio termo indica, se trata de espaço
coletivo em que qualquer pessoa poderá se fazer presente, sendo
facultado o ingresso e participação de todos aqueles que se demons-
trarem interessados na questão (SALES, [2018?] – grifos nossos).
Ou seja, frente à Convenção OIT nº 169 (arts. 6º e 7º), que é
um instrumento que visa enfrentar violação dos direitos de comuni-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 153

dades tradicionais, os governos deverão consultar, no presente caso,


a comunidade Kalunga, que é diretamente interessada, mediante
procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas insti-
tuições representativas, em relação a esse processo administrativo de
licenciamento ambiental, que é suscetível de afetar essa comunidade
diretamente.
É importante destacar que essa consulta deve ser viabilizada pelo
governo, não somente pela RIALMA, uma vez que ela é parte interes-
sada no empreendimento. Basta verificar, no processo administrativo,
que em ofício enviado ao Subsecretário de Políticas para Comunidades
Tradicionais, em 2008, o diretor jurídico da RIALMA alega que o em-
preendimento da PCH Santa Mônica é de propriedade da empresa há
mais de cinco anos, e que a construção da mesma não atingirá qualquer
comunidade Kalunga. Acontece que a PCH Santa Mônica se situaria in-
tegralmente em território Kalunga, de acordo com informação técnica
fornecida pelo INCRA/DF/2009.
Nesse mesmo ofício, a companhia alega que a população local,
incluindo líderes das Associações Kalunga de Cavalcante, encontra-se
bastante esclarecida e ansiosa para o início das obras da PCH. O que
diverge dos relatos feitos pelos entrevistados pela Thompson Reuters
Foundation, em reportagem publicada em junho de 2018, onde Valde-
mir F. da Conceição, morador do quilombo Kalunga, o presidente da
Associação quilombola Kalunga, Vilmar de Souza Costa, e o líder do
Núcleo Vão de Almas, José dos Reis da Cunha Santos, são diretos ao
afirmar que o projeto de construção de uma PCH ameaça a vida dos
moradores da região, cerca de 140 famílias que moram às margens do
Rio das Almas. Este também é o núcleo onde ocorrem os festejos tra-
dicionais de Nossa Senhora das Neves e de Nossa Senhora D’Abadia,
importantes manifestações culturais do povo Kalunga.
A Convenção OIT nº 169 garante à comunidade Kalunga o di-
reito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao pro-
cesso de desenvolvimento, à medida que afete suas vidas, crenças, ins-
tituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou
utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu
154 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, o


povo Kalunga deve participar da formulação, aplicação e avaliação dos
planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis
de afetá-los diretamente.
Observa-se que a melhoria das condições de vida e de trabalho, e
do nível de saúde e educação da comunidade, deverá ser prioritária nos
planos de desenvolvimento econômico global das regiões onde eles
moram. Os projetos especiais de desenvolvimento para essas regiões
também deverão ser elaborados de forma a promoverem essa melho-
ria. Ainda, o governo deve adotar medidas, em cooperação com os
Kalunga, para proteger e preservar o meio ambiente dos territórios
que eles habitam.
Assim, o INCRA (2009) destacou à SEMARH que a área para o
empreendimento da PCH Santa Mônica incide integralmente no in-
terior do território Kalunga, situado ao sul do território quilombo-
la. Além disso, a área do empreendimento abrange 67.045 hectares
(26,5%) dos 253 mil hectares do Sítio Histórico Kalunga. E ainda, o
reservatório da PCH corresponderia a 2,97 quilômetros quadrados,
equivalente a 0,11% da extensão total do território quilombola, tam-
bém situada integralmente no interior do território Kalunga.
De acordo com a autarquia federal, o caso da PCH Santa Mô-
nica implica, ainda, uma maior complexificação do procedimento de
regularização do território Kalunga, o que provavelmente acarretaria
mais atrasos no andamento do processo de titulação coletiva. E finaliza
fazendo a ressalva de que o impacto de uma obra desse porte, em par-
ticular sobre um território quilombola, não se restringe apenas à área
do perímetro da PCH, divergindo, portanto, do EIA de que “não ha-
verá impactos diretos do empreendimento sobre modos de vida dessa
comunidade” (GOIÁS, 2008, p. 346).
Nesse cenário, foi ajuizada Ação Civil Pública (ACP)63 pelo Mi-
nistério Público Federal e pelo Ministério Público do estado de Goiás
contra a RIALMA e o estado de Goiás – SEMARH, tendo em vista
inúmeras irregularidades no processo de licenciamento ambiental: não
63
Autos nº 2009.35.01.000422-3.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 155

apresentava estudos consistentes; ausência de consulta prévia, livre e


informada da comunidade Kalunga; ausência da manifestação da Fun-
dação Cultural Palmares; irregularidades no EIBH; irregularidades no
EIA, que seria na verdade um mero RAS; irregularidades no proce-
dimento conduzido pela SEMARH/SECIMA, cheio de lacunas, mas
conduzido com muita celeridade. Entretanto, o Judiciário entendeu
que não cabe a ele fazer o papel de autoridade ambiental administrati-
va e decretar o embargo da obra; indeferindo, assim, a antecipação de
tutela pleiteada pelos Ministérios Públicos federal e estadual de Goiás,
em sede de ACP.
É importante asseverar que os conflitos agrários e fundiários na
comunidade Kalunga não surgem com a construção da PCH Santa Mô-
nica, mas se intensificam com a ameaça do empreendimento. Materia-
lização disso é o Boletim de Ocorrência contra a empresa RIALMA,
anexado ao Processo Administrativo nº 257/2008, no qual é relatada
invasão de propriedade pela companhia RIALMA, com cerca de 30
homens, derrubada de mata, acampamentos da firma e grande quanti-
dade de lixo espalhada pelo território Kalunga. Tárrega (2019, p. 132)
explica que esses “conflitos têm caráter sistêmico na acomodação da
práxis econômica e ambiental e dão origem a grupos e modos de resis-
tência à desigualdade por eles gerada”. Traço disso é que a resistência
quilombola configura o maior movimento étnico por terra da história
do Brasil (FIABANI, 2017).
É interessante observar, no que diz respeito a direitos quilom-
bolas, que existe um arcabouço normativo dispondo sobre questões
territoriais, sociais, econômicas e culturais desse grupo, pois suas ne-
cessidades são diferentes, demandando do poder público ações dife-
renciadas (ações afirmativas), de modo a garantir essa igualdade de
direitos e oportunidades. Portanto, é imprescindível que os gestores
se atentem para as ações diferenciadas voltadas para as comunidades
quilombolas, devido às suas especificidades.
No entanto, em parecer jurídico, a SEMARH/SECIMA alega
que não cabe a ela interferir em questões fundiárias e de demarcação de
terras da comunidade Kalunga porque a companhia teria demonstrado
156 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

que possui domínio do imóvel rural situado dentro do Sítio Histórico.


Assim, o dever ser constitucional de proteção da territorialidade qui-
lombola é fragilizado frente ao interesse particular de construção de
um empreendimento hidrelétrico.
Entretanto, como já apontado, o próprio Processo Administrati-
vo de Licenciamento Ambiental (nº 257/2008) foi conclusivo no que
se refere à parte da matrícula do imóvel da RIALMA (nº 6.618), que
em tese seria de domínio privado do grupo que atua no segmento de
energia elétrica, usado para pleitear autorização da ANEEL, sobrepõe-
-se à área devoluta do estado de Goiás.
Dessa forma, diante das especificidades quilombolas, fica evi-
dente que a responsabilidade deve ser conjunta de entidades, agên-
cias, órgãos, fundação, instituto e autarquia federal – ANEEL, FCP,
IPHAN, INCRA, SEMARH/SECIMA – para lidar, de maneira trans-
versal, com direitos territoriais quilombolas dentro da administração
pública federal e estadual.

Considerações finais
Diante do exposto, conclui-se que estamos frente a modelos
conflitantes em relação ao acesso à terra: territorialidade versus pro-
priedade. Isso coloca em evidência que não existe apenas um modelo
calcado na individualidade patrimonial no Brasil.
No que tange à visibilidade jurídica desses novos sujeitos de di-
reitos – os quilombolas –, a etnização e racialização da luta pela terra
têm menos o condão de demonstrar a diversidade étnico-racial do povo
brasileiro, e mais de explicitar a desigualdade étnico-racial brasileira.
Mediante a percepção de Lígia Osório (2008), constatamos que
as estratégias das classes proprietárias de terras se mantêm para neutra-
lizar a ação do Estado, todas as vezes que este procura adequar o acesso
às terras: primeiro, resistir ao máximo à aprovação da lei disciplinado-
ra – como exemplo temos a frente parlamentar formada por políticos
partidários do DEM, Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)
e Movimento Democrático Brasileiro (MDB, antigo PMDB) que atua
na defesa dos grandes proprietários rurais, formando a “bancada ru-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 157

ralista”; em não sendo possível evitá-la, introduzir no texto dispositi-


vos que dificultem sua aplicação – exemplo foi ADIN nº 3.239/2004,
ajuizada pelo DEM, que questionava a norma editada pelo Executivo
e argumentava que o governo teria invadido a competência do Con-
gresso Nacional para regulamentar dispositivo da Constituição; e, por
fim, aproveitando-se das insuficiências da lei, usar seu poder político
para criar situações de fato que frustrem os objetivos da mesma, como
no caso em questão, em que a companhia RIALMA quer construir a
hidrelétrica, e não tem intenção de abrir mão da área de cerca de 700
hectares de terra na comunidade Vão de Almas.
Por fim, quanto à norma internacional de obrigatoriedade de
consulta prévia, livre e informada no processo de licenciamento am-
biental, concluiu-se, portanto, que não foi realizada de acordo com
as exigências da comunidade Kalunga. Aconteceram apenas audiências
públicas organizadas pela empresa, que não devem, em hipótese algu-
ma, ser confundidas com consulta prévia.
Verificou-se, conforme apontou Tárrega (2019), que consti-
tucionalismo democrático significa importante avanço nos direitos
dos quilombolas, no entanto, escrever um arcabouço de proteção
dos direitos territoriais quilombolas não significou efetivar o dis-
curso normativo, não resultando igualdade com os brancos, frente
aos entraves da estrutura fundiária consolidada a partir do escravis-
mo colonial no Brasil.
Detectou-se, também, que os gestores que lidam com questões
fundiárias ainda não compreenderam que os instrumentos legislativos
e atos administrativos dizem respeito às especificidades quilombolas,
sendo urgente a necessidade de entenderem o acesso à terra e sua
titulação coletiva, para esses povos, como ação afirmativa. Portanto,
não se trata de meros direitos de propriedade (individual e coletivo)
em contraposição. O acesso à terra, para comunidades quilombolas –
que deve ser facilitado pelo caráter das ações afirmativas –, também
tem o viés de reparação histórica e de fazer justiça social. Portanto,
os direitos da comunidade quilombola Kalunga, no presente caso, de-
vem ser observados não somente de forma estanque pela FCP ou pelo
158 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

INCRA, deve ser pensado de modo transversal por todos os departa-


mentos, órgãos, autarquias e repartições públicas municipais, distri-
tal, estaduais e federais.
No entanto, apesar das adversidades, a comunidade Kalunga não
é passiva frente ao avanço capitalista, resiste ao licenciamento ambien-
tal, processo que se arrasta desde o ano de 2008, acarretando a exis-
tência de conflitos que “[...] implicam um custo político para o Estado
e financeiro para as empresas”, no caso, a Companhia RIALMA (TÁR-
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Capítulo 11

O uso de plantas medicinais pelos indígenas e pela


população de Goiás do século XIX
Andreia Marquezan64
Roseli Martins Tristão Maciel65

Este capítulo apresenta o resgate da cultura indígena referente


às plantas medicinais utilizadas por eles em Goiás, durante o século
XIX, assim como o valor e a autonomia do conhecimento tradicional
introduzido, compreendendo a experimentação e a utilização dessas
plantas. O conhecimento tradicional indígena foi descaracterizado ao
longo dos anos e sua contribuição é muito ampla, frente à riqueza tera-
pêutica do Cerrado, difundida e conhecida no estado, sendo relevante
dar visibilidade e crédito às primeiras sociedades que dela fizeram uso.
Este conhecimento é considerado tradicional por ser produzido por
esses povos, que possuem uma cultura específica, e por ser transmitido
oralmente às gerações, tornando-se parte de sua identidade e de seus
valores, além de assegurar sua sobrevivência.
A utilização das plantas medicinais como medicamento é muito
antiga e data da origem da humanidade. A preocupação com a cura de
64
Licencianda em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG). Voluntária de Iniciação Cientí-
fica CNPq/UEG na área de História pelo campus Anápolis de Ciências Socioeconômicas e Humanas da
Universidade Estadual de Goiás, sob orientação da professora Dr.ª Roseli Martins Tristão Maciel, com
ênfase em “Uso de plantas medicinais pelos indígenas e população de Goiás dos séculos XVIII e XIX”.
65
Licenciada em História pela Universidade Católica de Goiás e mestre em História pela Universidade
Federal de Goiás (UFG). Doutorado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora na área de História pelo campus Anápolis de
Ciências Socioeconômicas e Humanas da Universidade Estadual de Goiás (UEG), com o tema “Uso de
plantas medicinais pelos indígenas e população de Goiás dos séculos XVIII e XIX”.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 163

doenças foi tema presente em tempos remotos, quando o homem já


utilizava ervas para fins alimentares e medicinais. Hipócrates (460-377
a.C.), considerado o “Pai da Medicina”, escreveu sobre remédios feitos
com plantas para combater as doenças (NOLLA; SEVERO; MIGOTT,
2005 apud COAN; MATIAS, 2013, p. 2). Ademais, o tema evidenciado é
complexo e a visão fragmentada da sociedade moderna dificulta a com-
preensão e a efetivação dos direitos derivados dos conhecimentos tradi-
cionais em relação à diversidade biológica (GARCÉS, 2007 apud Dantas
et al., 2019, p. 50).
São poucos os estudos referentes ao tema e não fornecem uma
abordagem aprofundada dos métodos utilizados nem a aplicação da di-
versidade da flora goiana no que concerne ao conhecimento dos indíge-
nas. Entretanto, sua importância, além do resgate cultural, repousa no
conhecimento das interações entre: populações humanas e plantas; suas
experimentações; os tipos de tratamentos feitos com os remédios casei-
ros; e o modo como se difundiu não apenas entre os meios populares,
mas como chegou à atualidade, exercendo grande influência na própria
medicina oficial, que faz a mediação entre este conhecimento tradicional
e a racionalidade do mundo ocidental. Do ponto de vista científico, é um
campo a ser explorado, pois as pesquisas realizadas sobre a cultura indí-
gena abrangem mais o Folclore e a Antropologia, sendo extremamente
relevante o enriquecimento desta parte da historiografia goiana.
Como aconteceu em todo o território brasileiro, em Goiás fo-
ram os índios que ensinaram os primeiros homens brancos, isto é, os
bandeirantes paulistas como viver da caça, da pesca, da coleta de fru-
tos, do mel, das plantas medicinais e de tantos outros recursos naturais
do Cerrado. Esse processo explica a influência da cultura indígena e
sua sobrevivência por longo período entre a população do estado.
Esta pesquisa parte do materialismo dialético, que articula uma
teoria e um método para o entendimento de qualquer realidade, uti-
lizando categorias de análise de origem marxista. O marxismo consi-
dera a concepção do conhecimento uma apreensão do real pelo pen-
samento, a interação entre sujeito e objeto. A partir desta concepção,
desenvolvemos uma análise, a partir de artigos, revistas e periódicos
164 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

publicados, sobre a introdução de plantas medicinais pelos indígenas


no século XIX; a difusão dos conhecimentos tradicionais; e a questão
da exploração etnobotânica por parte da medicina moderna e da in-
dústria farmacêutica. Elencamos também algumas das principais plan-
tas introduzidas pelos indígenas e sua difusão nos meios populares e
na medicina atual. Todavia, este artigo foca na investigação da Lei nº
13.123, de 20 de maio de 2015, que regulamenta o acesso e o uso do
patrimônio genético da biodiversidade e dos conhecimentos tradicio-
nais associados, bem como a repartição de benefícios daí decorrentes.

Conhecimento indígena e medicina


Em se tratando da medicina atual, o conhecimento indígena refe-
rente às plantas é o fator que contribuiu para a obtenção de resultados
quanto ao aproveitamento de substâncias presentes na biodiversidade,
utilizadas na composição de vários medicamentos, tanto para tratamento
de doenças quanto na medicina estética e operatória. Tal legado é atri-
buído também ao sertanejo, entretanto, este aprendeu com os índios, o
que faz do indígena um elemento essencial para o desenvolvimento desta
“farmacopeia natural”. Outro fator que muito contribuiu com a medi-
cina moderna foi a valoração de seus produtos a partir da utilização da
imagem e das expressões culturais das comunidades indígenas.
Contudo, existem outros “protagonistas” envolvidos no processo
histórico das práticas médicas populares que decorrem da diversidade
de crenças inseridas neste processo: curandeiros, benzedeiras, rezado-
res, raizeiros, pais e mães de santo, mestres catimbozeiros e juremei-
ros66, pajés urbanos e pajoas67, entre outros. Segundo Ferreira (2007),
as medicinas tradicionais indígenas, caracterizadas como sistemas xa-
mânicos – o conjunto de práticas e saberes que gera saúde, previne e
66
Catimbó e jurema, como essa modalidade religiosa é conhecida, resultam desses dois elementos.
Catimbó é provavelmente uma deturpação da palavra “cachimbo”, e jurema, o nome da planta e da
sua beberagem sagrada. Ver BASTIDE, Roger. Catimbó. In PRANDI, Reginaldo (Org.). Encanta-
ria brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. Disponível em: http://web.fflch.usp.br/sociologia/
prandi/dancacab.htm. Acesso em 5 fev. 2019.
67
Lembramos que o termo “pajé” tanto pode ser designativo de pajé indígena ou caboclo,
como aqueles que, em comunidades negras, desempenham atividades médico-religiosas (FER-
RETTI, 2004).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 165

cura doenças –, estão relacionadas aos aspectos culturais e às questões


religiosas e políticas. Nesse contexto, a medicina dos povos indígenas
se constrói como resultado de relações individuais e coletivas estabele-
cidas com a natureza, a cosmologia, a organização social e o exercício
do poder (LUCIANO, 2006).
Os índios já utilizavam há muito tempo as plantas como remé-
dios para inúmeros males, e este avanço da medicina moderna referen-
te às plantas medicinais só foi possível a partir do momento que a ciên-
cia passou a estudá-las. Na verdade, os cientistas teriam se delongado
bastante na identificação das propriedades medicinais de tais plantas e,
até mesmo, no seu conhecimento, não fosse o conhecimento indígena
repassado pelas gerações.
Muitas plantas são comumente utilizadas pelo homem por
meio de chás, infusões, garrafadas68 etc. ou até mesmo por remé-
dios e drogas comercializados em farmácias e drogarias. As receitas
“caseiras” feitas com estas plantas surgem através dos ascendentes
(pais, avós, bisavós), embora muitos acreditem que a fórmula dos
medicamentos comprados advém da criação desta por algum cien-
tista/químico. No entanto, o conhecimento deste cientista vem de
onde? O conhecimento científico resulta dos estudos pautados na
sabedoria indígena e tradicional sobre plantas medicinais. A par-
tir disso, esses estudiosos desenvolveram fórmulas e combinações
de substâncias ou princípios ativos dessas plantas para manipular e
produzir medicamentos que podem ser encontrados em estabele-
cimentos comerciais (farmácias, drogarias, farmácias de manipula-
ção, entre outros).
Nas sociedades modernas, a medicina popular vem, ao longo dos
anos, conquistando espaço ao lado da medicina convencional. Não obs-
68
As garrafadas são produtos complexos que, de modo geral, consistem em combinações de plantas
medicinais contidas em bebidas alcoólicas, sendo o vinho o mais utilizado, podendo-se, ainda, utilizar
mel, vinagre ou água. Garrafada é uma espécie de remédio feito em casa a partir de ervas naturais e vi-
nho branco. Ver PASSOS, M. B.; ALBINO, R. C.; FEITOZA, Michele; OLIVEIRA, D. R. A dissemina-
ção cultural das garrafadas no Brasil: um paralelo entre medicina popular e legislação sanitária. Saúde
Debate. Rio de Janeiro, v. 42, n. 116, p. 249, jan.-mar. 2018. Disponível em: https://www.scielosp.
org/article/ssm/content/raw/?resource_ssm_path=/media/assets/sdeb/v42n116/0103-1104-s-
deb-42-116-0248.pdf. Acesso em: 5 fev. 2019.
166 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

tante, esta questão acaba por tocar no veio sociológico quando é perce-
bida clara influência do etnocentrismo dentro da medicina dita oficial,
que considera de cultura inferior qualquer coisa fora de sua abordagem
científica, mas que se utiliza do conhecimento de grupos subalterniza-
dos não valorados a seu favor, cientificizando este conhecimento em
nome da medicina hegemônica; ainda, no interior de questões hege-
mônicas, mas, sob outro aspecto, o econômico.
Entretanto, não se pode deixar de relevar a importância das plan-
tas medicinais utilizadas por comunidades indígenas para a população
de baixa renda, que não dispõe do alcance da medicina convencional
para o tratamento de doenças. Especificamente nos países periféricos
do sistema capitalista menos desenvolvidos, a indústria farmacêutica
não se interessa pela medicina popular, tendo em vista o tratamento de
determinadas doenças:
Especialmente em países com rica biodiversidade e conhecimentos
tradicionais abundantes, como é o caso do Brasil e com elevada inci-
dência das chamadas “doenças negligenciadas”, tais como tuberculose
(UNICEF et al., 2002a), malária (UNICEF et al., 2002b), mal de cha-
gas (UNICEF et al., 2002c), esquistossomose (UNICEF et al., 2002d),
leishmaniose (UNICEF et al., 2002e) e doença do sono, [...] o desenvol-
vimento de novas drogas para o tratamento destas doenças, que afetam
sobretudo populações de países em desenvolvimento, pouco interessa à
indústria farmacêutica, pois embora estes países reúnam 80% da popula-
ção mundial, correspondem a apenas 20% das vendas globais de remédios
(FUNARI; FERRO, 2005, p. 178).

O Ministério do Meio Ambiente estima que as populações indí-


genas brasileiras dominem a aplicação medicinal de 1.300 plantas bra-
sileiras (SILVEIRA, 2003). A própria Organização Mundial de Saúde
reconhece no conhecimento tradicional sobre produtos da biodiversi-
dade um importante instrumento no desenvolvimento de novos pro-
dutos farmacêuticos para o combate de doenças que assolam as popu-
lações dos países em desenvolvimento (OLIVEIRA, 2003). Além disso,
a opção de conduzir pesquisas a partir da indicação de plantas utilizadas por
comunidades encurta o percurso do desenvolvimento de uma nova dro-
ga, já que os pesquisadores dispõem, antes mesmo de iniciarem os estudos
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 167

científicos, uma indicação de qual atividade biológica esta droga poderia


apresentar (FUNARI; FERRO, 2005, p. 179).

A epistemologia médica indígena


A diversidade biológica do Brasil é muito grande, e o Cerrado
é um bioma que reúne variedade de flora, numa extensão de 2 mi-
lhões de quilômetros quadrados. É uma diversidade que muito inte-
ressa à etnobotânica.
Um campo interdisciplinar que compreende estudos e interpretações dos
conhecimentos como significado cultural, manejo e uso tradicional da flora,
tem ligações com este universo de rezas e poções que envolvem plantas e
pessoas. Seu principal objeto é o estudo das sabedorias botânicas tradicio-
nais, compreendendo o estudo das interpretações e conhecimento, o signi-
ficado cultural, manejo e uso tradicional dos elementos da flora (BARRE-
RA, 1983 apud MACIEL; GUARIM NETO, 2006, p. 64).

Este estudo está particularmente relacionado às plantas medici-


nais e tem atenção especial de estudiosos que se atentam para o poten-
cial e a riqueza dos recursos vegetais e que necessitam de informações
adquiridas por meio do conhecimento tradicional, ou seja, dos indíge-
nas ou pessoas que o adquiriram por seus ascendentes.
O conhecimento empírico sobre o tratamento de diferentes males que
perturbam o homem é geralmente evidenciado em conversas com pessoas
idosas, que por vários motivos carregam consigo informações preciosas.
O resgate dessas informações faz-se necessário, pois as mesmas servem de
subsídios para o conhecimento do potencial da flora nacional (GUARIM
NETO, 1987, apud MACIEL; GUARIM NETO, 2006, p. 64).

Mas de que forma esses estudiosos e cientistas utilizam essas infor-


mações? Ou melhor, com que objetivo? Quais são as intenções do repasse
desse conhecimento ancestral por parte de seus destinatários? Como já
exposto, esse conhecimento é oriundo da população indígena e da heran-
ça africana na medicina popular do Brasil, de acordo com Almeida:
Com a vinda dos africanos para o Brasil, após três séculos de tráfico escravo,
muitas foram as espécies vegetais trazidas, substituídas por outras de mor-
fologia externa semelhante, enquanto algumas foram levadas daqui para o
continente africano. No processo histórico brasileiro, os negros realizaram
168 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

um duplo trabalho; transplantaram um sistema de classificação botânica da


África e introjetaram as plantas nativas do Brasil na sua cultura, através de
seu efeito médico simbólico. Sendo assim, ao incorporarem-se ao novo ha-
bitat e às novas condições sociais, algumas plantas indispensáveis aos rituais
de saúde foram substituídas (ALMEIDA, 2011, p. 44).

Não é o cerne deste estudo a herança cultural africana, que, sem


dúvida, é de suma importância para o país, especialmente para a medicina
popular. Entretanto, o que se procura demonstrar aqui é a importância
da presença indígena no Brasil, mais especificamente no Cerrado, como
conhecedores soberanos de sua biodiversidade, como povo precedente
desta terra e como as instituições e o governo brasileiro se associam ao
conhecimento tradicional para usurpar os direitos e os princípios indíge-
nas. Afora esses aspectos, este capítulo também tenta elencar alguns dos
conhecimentos tradicionais sobre a biodiversidade local, adquirida, du-
rante séculos, por comunidades indígenas, que a usaram e a transmitiram
para novas gerações e que são utilizadas pela medicina moderna.
O mundo ocidental não traduz a complexidade epistemológica
indígena, pois cerceia uma tradição ligada aos rituais de cura, impedin-
do a compreensão da prática médica desses povos. O processo de cura
que os indígenas alcançam vai além da simples utilização de plantas,
abrangendo uma deferência e, ao mesmo tempo, um envolvimento com
os elementos da natureza, que não é assimilado pelo mundo ocidental.
É compreensível que a medicina positiva tenha dificuldade em
assimilar esses conhecimentos, pois estão relacionados com a cultura
religiosa. Além disso, retirar apenas o racional deste conhecimento tra-
dicional acaba por desmerecer os fundamentos da medicina indígena.
Nessas sociedades, a cura é realizada por um pajé, um xamã. De acordo
com Joseph Campbell, na obra O poder do mito,
o xamã é uma pessoa, homem ou mulher, que, no final da infância
ou no início da juventude, passa por uma experiência psicológica
transfiguradora, que a leva a se voltar inteiramente para dentro de
si mesma. É uma espécie de ruptura esquizofrência. O inconsciente
inteiro se abre, e o xamã mergulha nele. Encontram-se descrições
dessa experiência xamânica ao longo de todo o caminho que vai da
Sibéria às Américas, até a Terra do Fogo (1990, p. 989).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 169

De certa forma, a cultura fortalece a epistemologia da medicina


indígena, e dissociá-las significa descaracterizar a habilidade indígena
de potencial de cura, pois aproveitam-se apenas os benefícios conside-
rados racionais desse conhecimento. Esta habilidade é conferida pela
tênue relação entre a sabedoria natural e a religiosidade, que forne-
cem a competência na cura de enfermidades, e a medicina ocidental,
que, ao desconsiderar esta tradição, muitas vezes não consegue atingir
a destreza indígena.
Para entender melhor as práticas medicinais dos nativos, é pre-
ciso mergulhar um pouco em seus mitos e rituais, uma vez que toda a
sua cultura influencia a saúde e a forma como lidam com seus corpos.
O índio retira da flora os mais diversos remédios e os utiliza de dife-
rentes maneiras, repassando esses hábitos por gerações. Lúcia Gaspar69
apresenta alguns medicamentos e formas de utilização como:
• Cataplasma – preparado como uma pomada para uso tópico e
externo;
• Decocção – espécie de fervura que dissolve as substâncias volá-
teis das plantas aromáticas;
• Inalação – combinação do vapor de água e das substâncias volá-
teis também das plantas aromáticas;
• Maceração – planta ungida em álcool, óleo, água ou outro líqui-
do com a função de dissolução de seu princípio ativo;
• Sumos ou sucos – planta espremida num pano, triturada no li-
quidificador ou no pilão, adicionando água ou não;
• Vinhos medicinais – dissolução da planta em vinho puro;
• Poções – agregação de xaropes, tinturas, extratos etc. nas soluções;
• Torrefação – planta torrada em fogo para a retirada da água e
modificação de algumas de suas propriedades;
• Unguento e pomadas – mistura de suco, tintura ou chá da planta
com lanolina ou vaselina;
• Xarope – dissolução da planta em açúcar e água aquecidos para
obtenção do ponto de fio.
69
Disponível em: http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/.
170 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

A sabedoria tradicional não diz respeito unicamente às comuni-


dades indígenas, uma vez que muitas receitas com plantas medicinais
são utilizadas na cura de doenças “através de hábitos observacionais do
ser humano e o meio que o cerca, resultando no surgimento de um
conhecimento rico em fusões culturais, religiosas e étnicas que duran-
te muito tempo foi utilizado para tratar a saúde das pessoas e de suas
famílias” (OLIVEIRA, 2016).

Algumas plantas medicinais do cerrado introduzidas pelos


povos indígenas
Badkel et. al (2011) apresentam alguns tipos de plantas medicinais,
a indicação popular e a indicação científica, como se vê no Quadro 11.1:

Quadro 11.1 Plantas medicinais


Nome científico (nome popular) Indicação popular Indicação científica
Problemas digestivos e diuréticos, distúrbios
Cyanara scolymus (alcachofra) Fígado
hepáticos
Rosmarinus officinalis (alecrim) Calmante Calmante, flatulência, problemas digestivos
Hipertensão arterial, regulação dos níveis de
Allium sativum (alho) Colesterol
colesterol e triglicérides, antigripal
Sidago chilensis (arnica) Rinite Contusões, reumatismos, traumatismos
Nervos, estômago, Hipertensão arterial, problemas digestivos,
Plectranthus barbatus (boldo)
coração doenças cardiovasculares
Problemas digestivos e diuréticos,
Maytenus ilicifolia (cancorosa) Dor de estômago
antitumoral, analgésico
Equisetum giganteum (cavalinha) Dor, machucadura, gripe Problemas renais, antiviral
Dor, limpeza do sangue, Depurativo do sangue, problemas diuréticos,
Grandiflorus (chapéu de couro)
faz bem à saúde reumatismo
Cymbopogon citratus (erva-cidreira/
Calmante Calmante, antiespasmódica, analgésico
capim-santo)
Citrus sinensis (folha de laranjeira) Nervosismo Calmante, febre, problemas digestivos
Campomanesia xanthocarpa Controle de colesterol, hipoglicemia,
Colesterol
Berg (guavirova) emagrecimento
Mikania glomerata (guaco) Sono, gripe Broncodilatação, problemas pulmonares, asma
Sphagneticola trilobata (insulina da horta) Glicose alterada Não encontrado
Achyrocline satureioides (macela) Dor de cabeça, vômito Analgésico, sedativo, antipasmósdico
Coronopus didymus (mentruz) Rinite Infecção respiratória, expectorante, bronquite
Smilax sp. (salsaparrilha) Dor lombar Antirreumático, antitérmico, diurético
Diurético, prisão de
Senna occidentalis (sene) Purgativo, laxante
ventre
Fonte: Adaptado de Badkel et al. (2011)
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 171

Esses conhecimentos tradicionais são os “saberes, inovações e


práticas das comunidades indígenas e locais relacionados aos recur-
sos genéticos”, que resultaram da “luta pela sobrevivência e da ex-
periência adquirida ao longo dos séculos pelas comunidades, adap-
tados às necessidades locais, culturais e ambientais e transmitidos
de geração em geração” (CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE
BIOLÓGICA, 2012, p. 2).

O marco legal da utilização e/ou exploração do conhecimento


médico indígena
As comunidades indígenas são, ao mesmo tempo, dependen-
tes e guardiãs dos recursos biológicos, pois seus conhecimentos têm
ajudado, ao longo do tempo, na preservação e no aumento desta
diversidade, constituindo uma fonte vital de informações benéficas
para a humanidade. É claro que a ciência é um saber que trouxe
muitos progressos, mas, no tocante à biodiversidade, na sociedade
moderna, a ciência não dialoga com a sabedoria indígena, uma vez
que, à medida que se desenvolve o interesse pela fitoterapia, cresce
a exploração econômica e, sem a proteção dos conhecimentos tra-
dicionais, afeta esta sabedoria, o valor ambiental e seu uso. Turolla
(2006 apud Bettega et al., 2011, p. 91) discorre sobre os estudos
mais aplicados à fitoterapia, principalmente após a década de 1980,
e consideram que “o interesse pelos fármacos de fontes naturais e
extratos vegetais cresceu de maneira a impulsionar novas pesquisas,
com o intuito de comprovar a eficácia da fitoterapêutica e de desen-
volver novos fármacos”.
Desta forma, a ciência, ao abrir espaço para os medicamen-
tos fitoterápicos, abre também espaço à exploração da biodiversi-
dade, que, na era colonial, se concentrava na importância do de-
senvolvimento da ciência no Brasil através dos recursos locais. A
valorização dos saberes e de determinadas práticas desses povos a
cada dia desperta mais interesse no mercado industrial, farmacêu-
tico entre outros setores econômicos. No entanto, tal conjuntura
não se dispõe exclusivamente na contemporaneidade – o interesse
172 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

pela sabedoria dos povos indígenas existe desde a colonização, e o


intercâmbio entre estes diferentes conhecimentos produziu as ba-
ses das ciências brasílicas.
Neste contexto, faz-se necessária a problematização das rela-
ções do mundo letrado imperial com o saber tradicional indígena,
que diversas vezes acaba passando despercebido, porém é de grande
relevância para a sociedade brasileira, especialmente para as popu-
lações indígenas, em particular na perspectiva de valorizar o papel
das comunidades indígenas no processo histórico de construção das
ciências no Brasil.
Entretanto, esse desenvolvimento acarretou impacto social
sobre as comunidades tradicionais, pois as lutas dos movimentos in-
dígenas vão além das disputas por seu território que se vê constan-
temente ameaçado, estendendo-se até o âmbito epistemológico. É o
caso, por exemplo, de algumas ervas medicinais utilizadas há séculos
pelas comunidades indígenas e que hoje são usurpadas das florestas
pelas grandes indústrias farmacêuticas, e na maioria dos casos as
populações tradicionais nada recebem em troca.
Mesmo submetidos às condições do período colonial, os po-
vos indígenas encontraram meios de subverter a situação em favor
próprio, apropriando-se da imposição em prol de suas próprias lu-
tas, em que o que os inferiorizava agora contribui para fortalecer
suas lutas. Além disso, tanto os povos indígenas quanto as popula-
ções tradicionais têm em comum o fato de que tiveram, pelo menos
em parte, “uma história de baixo impacto ambiental e de que têm no
presente interesses em manter ou em recuperar o controle sobre o
território que exploram” (CUNHA; ALMEIDA, 1999, p. 184 apud
SILVA, 2014, p. 12-13).
Sem essa sabedoria tradicional, muitas espécies, atualmen-
te usadas em pesquisas e em produtos comercializados, poderiam
nunca ter sido identificadas. Constituem, portanto, um importan-
te aspecto do acesso e da repartição de benefícios derivados do
uso comercial dos recursos genéticos. É fundamental que aqueles
que acessem os conhecimentos tradicionais os valorizem adequa-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 173

damente (CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA,


2012, p. 3).
Porém, esta valorização adequada está muito distante da rea-
lidade das comunidades indígenas que vivem no Cerrado. O item
j do art. 8º da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) es-
tabelece que “os governos devem respeitar, preservar, manter e
promover o uso dos conhecimentos tradicionais com a aprovação
transparente e ampla participação das comunidades indígenas e
locais pertinentes” (CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIO-
LÓGICA, 2012, p. 4). Contudo, a Lei nº 13.123, de 20 de maio de
2015, que regulamenta o acesso e o uso do patrimônio genético da
biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados, bem
como a repartição de benefícios daí decorrentes, versa contraria-
mente ao disposto na CDB:
a lei 13.123 não tem a legitimação social, pois não foi feita por demanda
daqueles cujos modos de fazer, criar e viver renovam o conhecimen-
to tradicional e deveriam ser seus principais usuários. Ao contrário, os
usuários da Lei são pesquisadores e empresários públicos e privados, a
serviço de indústrias que se beneficiarão desses conhecimentos, com o
objetivo de diminuir seus custos em pesquisa e desenvolvimento elabo-
rada e proposta por poderosos usuários (MOREIRA et al., 2017, p. 24).

Um dos pontos mais críticos da lei, aprovada em regime de


urgência, e do Decreto nº 8,772/2016, que a regulamentou, é o de-
sacato aos direitos de Consulta Prévia, Consentimento Prévio, Livre
e Informado e Repartição de Benefícios70, que, ao serem violados,
afetam gravemente os “direitos de autodeterminação e direitos so-
bre os territórios indígenas, quilombolas e territórios de comuni-
dades tradicionais e agricultores tradicionais que possuem estreita
relação com estes direitos” (MOREIRA et al., 2017, p. 27).
A Lei nº 13.123 representa um grave retrocesso aos direitos
sociais e ambientais, pois se configura numa lei de proteção da re-
70
Esses direitos devem estar de acordo com o cenário jurídico internacional, principalmente a
Convenção de Diversidade Biológica, o Protocolo de Nagoya, a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho e acordos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO).
174 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

serva e do mercado da biodiversidade e da reserva de mercado. Não


existe um artigo que proteja os conhecimentos tradicionais, nem as
comunidades indígenas foram consultadas para discutir sobre um
órgão de controle próprio para proteção de seus conhecimentos.
Além disso, elas não foram consultadas sobre vários pontos:
Em termos de participação democrática, a tramitação do projeto de lei
foi uma afronta para a participação da sociedade civil, ignorando os posi-
cionamentos defendidos pelos povos e comunidades tradicionais afetadas
diretamente pela legislação (ASA Brasil et al., 2014). Prova disso é que a
Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que funciona
no âmbito do Governo Federal, com participação do Ministério do Meio
Ambiente, apenas tomou conhecimento do Projeto de Lei quando ele
já havia sido encaminhado para a Câmara dos Deputados, em regime de
urgência constitucional (TERRA DE DIREITOS et al., 2014 apud SILVA;
DALLAGNOL, 2017).

As comunidades que tiveram a oportunidade de acompanhar o


processo de formulação da lei, desde 2001, foram surpreendidas
com um projeto de lei que foi enviado ao Congresso para ser ava-
liado sem nos consultar. Outras comunidades sequer sabiam que
existiu uma medida provisória e que se esperava um projeto de lei
[...] (MOREIRA et al., 2017, p. 32).
Ou seja, a lei resulta em uma supressão ao direito das comu-
nidades indígenas de serem consultadas sobre a composição de de-
terminações que as afetam diretamente e que dizem respeito a seus
costumes, seus conhecimentos e seu território. Sem nos alongarmos
mais sobre as especificidades desta lei, as comunidades “somente fo-
ram incluídas no processo quando a lei já estava passando pela etapa
de regulamentação” (MOREIRA et al., 2017, p. 33). Outro ponto
é que elas participaram de oficinas regionais de capacitação apenas
para que os povos, as comunidades tradicionais e os agricultores
familiares não participassem da construção e da elaboração dos arti-
gos desta lei e não conhecessem substancialmente a regulamentação,
diferente do setor industrial, que teve participação efetiva.
A lei ainda estabelece que a repartição de benefícios deriva-
dos do acesso ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradi-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 175

cionais só se dá quando acompanhada dos seguintes critérios: “(i)


quando for passível de exploração econômica, (ii) se tratar de pro-
duto acabado ou material reprodutivo (iii), e em relação àquele ser
elemento principal de agregação de valor” (MOREIRA et al., 2017,
p. 138). Ao associar o patrimônio genético e o conhecimento tradi-
cional à agregação de valor e ao impacto no mercado, na realidade a
lei vincula o retorno financeiro às comunidades apenas em caso de a
exploração econômica prosperar.
Portanto, além de teor abstrato, a lei é tendenciosa e não pos-
sui parâmetros de quantificação, mas somente apelo mercadológico.
Outro ponto que deve ser levado em consideração é a dis-
tinção que a legislação estabelece entre “conhecimentos tradicio-
nais associados ao patrimônio genético” e “patrimônio cultural”, que
retira totalmente das mãos indígenas a competência e o domínio
sobre a utilização da natureza. Por conhecimentos tradicionais, a
legislação entende que são os que se referem a plantas e animais e
que podem ser de grande utilidade na elaboração de medicamentos
e cosméticos. Por patrimônio cultural, entende-se o conjunto de
manifestações culturais que fazem parte da construção de identida-
des coletivas dos povos indígenas e comunidades tradicionais e que
devem ser preservados.
Ao se estabelecer esta conceituação, a legislação separa a cul-
tura – referente a diferentes línguas, organização social, festividades
e rituais – da parte de animais e plantas que fundamenta os saberes
indígenas. Desta forma, a lei abarca o conjunto de saberes tradicio-
nais sobre plantas e animais no âmbito da exploração econômica e
separa o que é indissociável: esse conjunto de saberes da cultura
indígena, o material do imaterial, o que é passível de riqueza eco-
nômica do comportamento e dos hábitos desses povos. A legislação
acaba por dissolver a tradição, e, com isso, tenta enquadrar as comu-
nidades ao modo de produção capitalista, impregnando os conheci-
mentos tradicionais com as artimanhas oriundas ao sistema e que
visam à acumulação, sem se preocupar com a proteção e o resguardo
deste patrimônio genético.
176 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

De acordo com Moreira et al. (2017, p. 231), “um dos mais


importantes princípios que regem o Direito Internacional dos Di-
reitos Humanos é o princípio da progressividade, segundo o qual os
direitos humanos devem sempre avançar e jamais regredir perante
os patamares alcançados na afirmação destes direitos”. A proteção
da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais está no escopo
dos direitos socioambientais e é um tema que pertence ao campo
dos direitos sociais, econômicos e culturais, pois a proteção am-
biental e cultural são direitos humanos, portanto preponderantes, e
requerem proteção progressiva. Todavia, a Lei n.º 13.123 fere esse
princípio ao regredir vários direitos, como demonstrado por Morei-
ra et al. (2017, p. 237), em quadros explicativos de retrocessos de
direitos da atual legislação:

Quadro 11.2 Direitos: Consentimento de povos e


comunidades tradicionais

Lei nº 13.123/2015

Artigo 9º - O acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável está condicionado à


obtenção de consentimento prévio informado.
§ 2º - O acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável independe de consenti-
mento prévio informado.
§ 3º - O acesso ao patrimônio genético de variedade tradicional local ou crioula ou à raça localmente
adaptada ou crioula para atividades agrícolas compreende o acesso ao conhecimento tradicional associa-
do não identificável que deu origem à variedade ou à raça e não depende do consentimento prévio da
população indígena, da comunidade tradicional ou do agricultor tradicional que cria, desenvolve, detém
ou conserva a variedade ou a raça.

Medida Provisória nº 2.186-16/01

Artigo 8º - Fica protegido por esta Medida Provisória o conhecimento tradicional das comunidades
indígenas e das comunidades locais, associado ao patrimônio genético, contra a utilização e exploração
ilícita e outras ações lesivas ou não autorizadas pelo Conselho de Gestão de que trata o artigo 10, ou por
instituição credenciada.
§ 1º - O Estado reconhece o direito das comunidades indígenas e das comunidades locais para decidir
sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do País, nos termos
desta Medida Provisória e do seu regulamento.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 177

Quadro 11.3 Direitos: Repartição de benefícios

Lei nº 13.123/2015

Artigo 17 – Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto acabado ou de material


reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético de espécies encontradas em condições in situ ao
conhecimento tradicional associado, ainda que produzido fora do País, serão repartidos, de forma justa e
equitativa, sendo que no caso do produto acabado o componente do patrimônio genético ou do conheci-
mento tradicional associado deve ser um dos elementos principais de agregação de valor, em conformi-
dade ao que estabelece esta Lei.
§ 2º – Os fabricantes de produtos intermediários e desenvolvedores de processos oriundos de acesso
ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado ao longo da cadeia produtiva estarão
isentos da obrigação de repartição de benefícios.
§ 4º – As operações de licenciamento, transferência ou permissão de utilização de qualquer forma de
direito de propriedade intelectual sobre produto acabado, processo ou material reprodutivo oriundo do
acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado por terceiros são caracterizados
como exploração econômica isenta da obrigação de repartição de benefícios.
§ 5º – Ficam isentos da obrigação de repartição de benefícios, nos termos do regulamento:
I – as microempresas, as empresas de pequeno porte, os microempreendedores individuais, conforme
disposto na Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006; e
Artigo 18 – Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto oriundo de aceso ao patri-
mônio genético ou ao conhecimento tradicional associado par atividades agrícolas serão repartidos sobre
a comercialização do material reprodutivo, ainda que o acesso ou a exploração econômica dê-se por
meio de pessoa física ou jurídica subsidiária, controlada, coligada, contratada, terceirizada ou vinculada,
respeitando o disposto no § 7º do artigo 17.
§ 2º – No caso de exploração econômica de material reprodutivo oriundo de acesso a patrimônio gené-
tico ou a conhecimento tradicional associado para fins de atividades agrícolas e destinado exclusivamente
à geração de produtos acabados nas cadeias produtivas que não envolvam atividade agrícola, a repartição
de benefícios ocorrerá somente sobre a exploração econômica do produto acabado.
§ 3º – Fica isenta da repartição de benefícios a exploração econômica de produto acabado ou de material
reprodutivo oriundo do acesso ao patrimônio genético de espécies introduzidas no território nacional
pela ação humana, ainda que domesticadas, exceto:
I – as que formem populações espontâneas que tenham adquirido características distintivas próprias no
País; e
II – variedade tradicional local ou crioula ou a raça localmente adaptada crioula.

Medida Provisória nº 2.186-16/01

Artigo 9º – À comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem, detêm ou conservam
conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de:
III – perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conheci-
mento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta Medida Provisória.
Artigo 24 – Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido
a partir de amostra de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado,
obtidos por instituição nacional ou instituição sediada no exterior, serão repartidos, de forma justa e
equitativa, entre partes contratantes, conforme dispuser o regulamento e a legislação pertinente.

Fonte: Adaptado de Moreira et al. (2017, p. 237-238)


178 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Quadro 11.4 Direitos: Propriedade intelectual e obrigação de observância de


sua função socioambiental

Lei nº 13.123/2015

Artigo 47 – A concessão de direito de propriedade intelectual pelo órgão competente sobre produto acabado
ou sobre material reprodutivo obtido a partir de acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional
associado fica condicionada ao cadastramento ou autorização, nos termos desta Lei.

Medida Provisória nº 2.186-16/01

Artigo 31 – A concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos competentes, sobre processo ou
produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, fica condicionada à observância
desta Medida Provisória, devendo o requerente informar a origem do material genético e do conhecimento
tradicional associado, quando for o caso.

Fonte: Adaptado de Moreira et al. (2017, p. 237)

De acordo com os quadros, vários direitos sofreram regressão


em seu grau de proteção, principalmente os referentes ao consenti-
mento livre, prévio e informado das comunidades tradicionais e à dis-
tribuição de benefícios, deixando desprotegidos os povos indígenas e
a biodiversidade.
Portanto, a legislação não assegura a sondagem do uso susten-
tável da biodiversidade e, ao liberar o quase total acesso ao uso do
patrimônio genético, o governo se esqueceu de sua obrigação consti-
tucional de assegurar o meio ambiente, estabelecendo uma proteção
deficiente da biodiversidade e do patrimônio cultural indígena.

Conclusão
Mesmo encontrando dificuldades no desenvolvimento de es-
tudos referentes ao conhecimento indígena sobre plantas medicinais,
esta é uma pesquisa fascinante, pois, por meio do pouco material en-
contrado, percebe-se o domínio que essas comunidades possuem e,
consequentemente, a riqueza da flora do Cerrado goiano. Não é à toa
que o governo e as indústrias farmacêuticas se interessem tanto pelos
indígenas, visto que conseguiriam realizar pouco ou com um dispêndio
enorme de tempo, não fosse o comprazimento dos índios em repassar
seus domínios a cientistas e pesquisadores.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 179

Percebe-se, ainda que com escassez de fontes, que essas comu-


nidades dominam a farmacopeia referente à flora, não só do Cerrado
goiano, mas de qualquer lugar onde ainda há a presença desses pri-
meiros habitantes no Brasil. Os índios desenvolveram sua vida coti-
diana em meio à flora e à fauna. E, através de suas práticas ritualísticas
relacionadas às suas crenças, este conhecimento “da natureza” local se
tornou mais apurado, uma vez que sempre utilizaram plantas e raízes
para seus rituais de cura de qualquer mal que afligisse algum integrante
de suas comunidades étnicas.
Esse conhecimento foi transmitido por gerações , mas o que
se tem atualmente é uma lei federal que pretende reduzir os direitos
indígenas e, até mesmo, anulá-los, sob um disfarce mal-engendrado
de proteção à biodiversidade e às comunidades tradicionais (Lei nº
13.125/2015). O intuito desta lei, obviamente, é atender ao mer-
cado farmacêutico para a livre exploração da flora, não só por parte
de indústrias brasileiras, e sim indústrias e centros de pesquisas es-
trangeiros. Ou seja, a legislação passa a conferir a essas comunidades
nacionais e estrangeiras o livre acesso à flora do país e também ao
conhecimento tradicional indígena – o que é um contrassenso, tendo
em vista que representa a exploração predatória da flora e do conhe-
cimento indígena, visando atender interesses mercadológicos da área
farmacêutica.
As comunidades indígenas e seus conhecimentos devem ser res-
peitados, pois seus costumes e crenças resultam em um patrimônio
brasileiro riquíssimo, que deve ser preservado, e não explorado em
benefício do capital. As culturas modernas não devem eliminar as tra-
dições e as memórias, muito menos a consciência ética adquirida pela
história de um povo.

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.
Capítulo 12

Pankararu do Tocantins: história, lutas e identidades de


um povo esquecido e sem terra
Elvio Juanito Marques de Oliveira Júnior
André Demarchi

Apresentação
Há algum tempo percebemos a necessidade de escrever sobre
os Pankararu, especificamente um dos povos localizados no estado
do Tocantins. Ora desconhecidos, ora apenas identificados entre os
povos indígenas do estado, seja pela sociedade ou pelo poder público.
O povo Pankararu é originário do estado de Pernambuco. Tal povo se
configura como uma das comunidades indígenas brasileiras, as quais
foram sendo reconhecidas, com o passar do tempo, como povos que
vivem em meio à preservação de suas tradições e diante do constante
contato e das imposições provocadas pela sociedade envolvente, prin-
cipalmente após o período de colonização do Brasil. Muitos desses
indígenas migraram para outros lugares do país, devido ao grande nú-
mero de invasões, perseguições de posseiros e fazendeiros; até mes-
mo por buscarem melhores condições para sobreviverem, visto que o
Nordeste sofria também com a escassez de água, comida e emprego.
Entre os estados escolhidos por estes nativos indígenas estavam
São Paulo, Mato Grosso e o norte goiano, que hoje é o Tocantins.
Para melhor traçar a origem, história e anseios desses indígenas no
estado do Tocantins é preciso se deslocar cerca de 250 quilômetros
da capital, Palmas, com destino a duas cidades na região sudeste do
184 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

estado, Gurupi e Figueirópolis. Nessas cidades é que habitam hoje os


Pankararu do Tocantins.
A pesquisa surge da relação pessoal de um dos autores deste ca-
pítulo, Elvio Marques, com os Pankararu, já que pertence à comu-
nidade Pankararu. Sua mãe é Pankararu, seu pai é gaúcho, tendo ele
crescido, portanto, em meio a um processo de hibridização cultural,
relacionado a boa parte da história desses indígenas. A principal refe-
rência da família era o avô materno, Manoel Barros ou Manoel Panka-
raru (como era conhecido), que contava histórias, crenças e ensina-
mentos sobre seu povo. Outra referência importante é seu tio Genildo
Pankararu, o mais importante dos representantes desse povo no estado.

Serra de muitas pontas e a história conflituosa dos Pankararu


Entre a Serra Grande e a Serra da Borborema, nas proximidades
do Rio São Francisco, é onde surge e está grande parte desse povo e
suas principais tradições, especificamente nos municípios de Tacaratu,
Petrolândia e Jatobá, em Pernambuco. Os Pankararu eram “caçadores
coletores, pescadores, criadores de gado, galinha, cabras e agriculto-
res” (OLIVEIRA, 2016, p. 8). Nas fontes históricas dos séculos XVII
e XVIII são nomeados como “Pancararu”, “Brancararu”, “Pancaru” ou
“Caruru” (FRANÇA, 2008). Todavia, é impossível descrever a história
dos indígenas do Nordeste sem relacioná-la com o período de coloni-
zação e as imposições dos não indígenas, como os europeus.
Assim, a história dos Pankararu remete às ações missioná-
rias, que incluíam “deslocamentos e aldeamentos forçados, impon-
do a convivência e a posterior indiferenciação de diversas etnias na
região” (FRANÇA, 2008, p. 17). Prova disso é que esses indígenas
foram expulsos de suas terras e passam a ser aldeados à margem do
São Francisco por missionários jesuítas, franciscanos e capuchinhos,
onde mais tarde formam a aldeia conhecida como Brejo dos Padres,
no início do século XVII (FRANÇA, 2008; OLIVEIRA, 2016). O
início dessa história foi descrito por Genildo Pankararu, 52 anos, um
dos principais representantes dos Pankararu no Tocantins e que vive no
centro de Gurupi, que, por meio de entrevista, contou:
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 185

Nós éramos povos que já existiam em Pernambuco, às margens do


São Francisco. Pankararu significa serra de muitas pontas, já que fi-
cava entre as serras. Daí chegou o homem branco, principalmen-
te os padres. E nós fomos aos poucos procurando lugar pra se [sic]
refugiar. E os padres queriam nos catequizar de todo jeito. Mas os
Pankararu prenderam eles, numa espécie de caverna. E por isso a
grande aldeia tradicional ficou conhecida como Brejos dos Padres
(PANKARARU, 2017).
Nesse processo de contato, os missionários jesuítas começaram
a introduzir a Língua Portuguesa, forçosamente. Assim, os nativos
tiveram que aprendê-la, o que acarretou o esquecimento de muitas
de suas palavras de origem. Como vemos na sequência do relato de
Genildo Pankararu:
No início, bem no início, os Pankararu falavam Tupi Guarani, aí vie-
ram os missionários e acabaram com tudo. Era assim: se você falasse
na língua Tupi eles vinham e cortavam sua língua, porque a gente
tinha que falar o Português, aí os Pankararu ficaram com medo e
pararam de falar até acabar. Hoje poucos Pankararu falam a língua
original (PANKARARU, 2017).
Dessa forma, o português, sendo a principal língua falada hoje
na etnia Pankararu, é resultado de séculos de invasões, que “envol-
ve negros, colonizadores e vários povos indígenas [...]” (OLIVEIRA,
2016, p. 28). Vale ressaltar que alguns membros mais velhos ainda fa-
lam o Tupi. Assim, outras formas de viver foram impostas, sem que
eles pudessem ter, muitas vezes, qualquer tipo de escolha.
[...] os índios não puderam ter liberdade de escolha, de olhar o leque
de opções e dizer: “Nós queremos isso, nós queremos trocar aquilo.”
As relações foram assimétricas em termos de poder. Não houve diá-
logo. Houve imposição do colonizador (FREIRE, 2000, p. 13).
No mesmo trajeto histórico, Oliveira (2016) discorre que o pes-
quisador e antropólogo Dr. Carlos Estevão, em 1934 (século XX), re-
gistrou a existência dos índios que viviam na Canabrava, hoje, municí-
pio de Tacaratu. “Foi feito um estudo que confirmou então a existência
dos Pancaru (como era chamado antigamente)” (OLIVEIRA, 2016, p.
12). Além disso, uma grande seca atingiu as terras Pankararu no ano
186 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

de 1939 e, “por esta razão, aconteceu a primeira migração significativa


desta etnia, com destino ao Estado do Mato Grosso, onde passaram a
trabalhar na construção de estradas” (LIMA, 2008, p. 7). Em 1940, os
Pankararu começaram a sair novamente de Pernambuco para procurar
outras maneiras de sobreviver.

Novos momentos: perseguições, organização e rituais


Os Pankararu sofriam com mais perseguições, a partir de 1940,
dessa vez de fazendeiros e posseiros, que utilizavam a mão de obra dos
indígenas, tornando-se patrões desses nativos na produção de rapadura,
na criação do gado e nas tarefas domésticas em Pernambuco (ARRUTI,
1996). No entanto, o que poderia parecer aos olhos dos não Pankararu
como apenas exploração, era considerado por estes indígenas como uma
relação possível, já que enquanto respeitavam e exerciam seus trabalhos,
esperavam obter retorno, seja na alimentação ou na tranquilidade das al-
deias (ATHIAS, 2002). E acabavam mantendo relações mais constantes,
principalmente de parentesco, até para garantir suas sobrevivências.
Os conflitos dos Pankararu, no estado do Pernambuco, continua-
ram com os não indígenas até 1984. O término dessas relações confli-
tuosas pode estar relacionado à demarcação de terra, que aconteceu em
1987, com 8.100 hectares homologados, com a chamada Terra Indígena
Pankararu, que conta com 14 aldeias. Mais tarde, em 2004, uma nova
porção é homologada (7.760 hectares), sendo denominada Terra Indígena
Entre Serras (OLIVEIRA, 2016).
Por um lado, a demarcação das terras e os benefícios proporciona-
dos por ela vieram um pouco tarde. As migrações já estavam intensifica-
das, com os Pankararu fugindo dos conflitos e buscando melhores con-
dições de vida em outras regiões do país. Por outro lado, a demarcação
ajudou os Pankararu a fortalecer sua cultura e rituais.
A organização social desses indígenas se resume a duas categorias
amplas, em que todas as famílias Pankararu encontram um lugar, as al-
deias e os troncos ou “ramas” (ARRUTI, 1996; ATHIAS, 2002). A aldeia
relaciona-se à organização local das famílias e dos laços de lealdade, os
troncos as separam em índios de “tronco velho”, chamado por eles de
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 187

puros e autênticos; e aqueles de um presente feito de gente “braiada”, de


“caboclos misturados” (ARRUTI, 1996). Essa organização é mais histórica
que estrutural, sendo que “isso não implica regras para os casamentos e
rituais nas aldeias”, é o que esclarece Genildo Pankararu.
Além disso, Genildo lembra que os principais rituais são o Toré e
o Menino do Rancho, que estão interligados à invocação dos Encantados,
às entidades religiosas ou “deuses dos Pankararu”. Ele descreveu o Toré,
emocionando-se entre uma fala e outra:
Lá nas aldeias de Pernambuco temos vários rituais de danças como
o Toré e Menino do rancho. E tem a corrida do umbu, que é tradi-
cional [...] e vários outros. No Toré, nós dançamos e cantamos mú-
sicas tradicionais. E acontece para invocar os Encantados, que são
nossos deuses, que trazem bênçãos, principalmente quando alguém
está doente. Quando uma pessoa do coração puro e bom morre, ela
não morre, ela passa a morar nas serras e vira um Encantado. Daí
quando precisamos, realizamos os rituais como o Toré e o Menino
do Rancho, fumando [campiô, um cachimbo em forma de cone], be-
bendo [garapa] e invocando, muitos vestidos de Praiás, com roupas
de palha, mas ninguém pode saber quem são os Praiás. Essa é a parte
forte, espiritual dentro da aldeia. Os Pankararu são muito espirituais.
E se a pessoa receber a bênção, a gente mata um carneiro macho
ou um boi pra pagar a bênção. Ainda quero levar isso pro Tocantins
(PANKARARU, 2017).
Assim, o Toré tem passos ritmados ao som de flauta e “exige
muita concentração: só vestem a roupa aqueles “puros de espírito”,
que não mantiveram relações sexuais há pelo menos três dias, e o
nome do índio que veste a roupa é ocultado dos demais participantes”
(FRANÇA, 2008, p. 20).

Do Sertão pernambucano às favelas de São Paulo


Como dito anteriormente, além das invasões e conflitos de terras,
os nativos sofriam com a seca e, proporcionalmente, com a fome, como
muitos outros nordestinos. A partir disso, começaram a migrar desde
1940 para a zona sul da cidade de São Paulo (FRANÇA, 2008), a exemplo
de outros povos indígenas. “Muitos Pankararu migraram para São Paulo
[...] residindo [mais de 800] em uma favela (Real Parque/Morumbi) na
188 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

capital paulista” (ATHIAS, 2002, p. 5). Além dessa favela, os Pankararu


se espalharam pelos bairros Capão Redondo, Jardim Elba, Paraisópolis,
Grajaú, Jardim Palmas, Sônia Maria e Jardim Irene (LIMA, 2008). Na
primeira década do século XXI o número de habitantes Pankararu, em
São Paulo, já chegava a mais de 2.500 indivíduos. Novamente Genildo nos
conta essa história em seus relatos:
Não dava mais pra ficar no Pernambuco, na aldeia. Os Pankararu vi-
viam em conflitos com o homem branco, que queria nossas terras, não
respeitava os índios. E nossos parentes estavam passando fome, não
encontram emprego e fomos atrás de mais condições de vida em vá-
rios Estados. São Paulo era o principal destino. Hoje muitos vivem lá
(PANKARARU, 2017).
O crescente número de Pankararu em São Paulo pode estar ligado,
também, segundo Lima (2008, p. 7), a um caráter sistemático e familiar:
“A cada núcleo familiar que se instalava, aumentava a possibilidade de que
novos jovens percorressem este caminho.” Entre outros fatores, segundo
a autora, estão a busca por trabalho (e, assim, por conseguir recursos para
sobrevivência), além de passeio e tratamento de doenças.
Embora São Paulo (SP) tenha se popularizado e se tornado um
dos principais destinos dos Pankararu, não foi o único lugar escolhido por
esses indígenas.

O povo esquecido: fazendo história no antigo norte goiano


O antigo norte de Goiás, hoje Tocantins, passou a ser também
um dos lugares escolhidos pelos Pankararu para migração, por volta
de 1945. Ainda no centro de Gurupi, Genildo Pankararu foi quem fez
tal afirmativa:
Nós saímos de Pernambuco expulsos por fazendeiros, que invadiam
nossas terras. Tinha muita fome também, por causa da seca e não ti-
nha emprego, as aldeias estavam passando necessidades. E tínhamos
que buscar como sobreviver. Alguns foram pra São Paulo e o que pouca
gente sabe é que a gente veio pra Goiás, onde aqui hoje é o Tocantins.
Ficamos sabendo que aqui tinha oportunidades, aí veio o primeiro, que
era o tio Manoel, depois eu, depois vieram vários parentes. Estamos
aqui até hoje, sobrevivendo dia após dia (PANKARARU, 2017).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 189

Esse relato de Genildo confirma ainda o que outros Pankararu já


haviam dito durante as vivências e coletas de dados: o primeiro Pankararu
a chegar ao Tocantins foi Manoel Marcelino Barros ou Manoel Pankara-
ru, como era conhecido pela comunidade indígena.Veio para o Estado na
década de 1940, morou nas cidades de Araguaçu, Gurupi, Cariri e, por
último, em Figueirópolis, onde faleceu em 2011.
Os relatos de sua vida estão até hoje guardados na memória de sua
esposa Ana Barros, aposentada, 72 anos, moradora da pacata cidade de Fi-
gueirópolis (cerca de 6 mil habitantes), na mesma casa, da rua Amazonas,
Centro, onde Manoel morou por mais de 30 anos. Na porta de sua casa,
no fim de uma tarde, com uma rua quase deserta, ela relatou, por meio
de entrevista:
Manoel saiu de Pernambuco pra trabalhar. Nasceu na aldeia Brejo dos
Padres e foi para a cidade de Corumbá, lá no Mato Grosso, onde foi
servir o Exército [...] isso por volta de 1941, aos 18 anos de idade.
Depois de uns cinco anos foi pra Araguaçu, na época Goiás e hoje To-
cantins, onde trabalhou na Polícia Militar. Lá teve uma mulher e três
filhos, mas separou anos depois. Em 1965, ele muda pra Gurupi e onde
nos conhecemos. Eu não sabia que estaria casando com um indígena
(risos) [...] isso nunca me incomodou, mas incomodou várias pessoas.
Moramos uma época em Cariri e, por último, passamos a morar aqui
em Figueirópolis, desde 1976. Temos seis filhos [...] (BARROS, 2017).
Esse relato comprova, entre outras coisas, o que havíamos citado na
apresentação, a hibridização cultural, não apenas no contato, mas nos re-
lacionamentos afetuosos, entre os Pankararu e os não indígenas, tal como
o de Manoel Pankararu e Ana Barros (não indígena). Além disso, vê-se nos
relatos a existência de preconceitos e ideias equivocadas sobre os povos
indígenas, que abordaremos mais à frente.
Ana Barros relata que, com o passar dos anos, vieram outros fa-
miliares ou parentes, como eles costumam se referir uns aos outros da
mesma comunidade indígena:
Depois de Manoel, veio Genildo. Manoel queria tá perto dos seus pa-
rentes. Então Genildo formou família. Ele e Manoel foram os que mais
lutaram pelos Pankararu. Ajudaram os que vinham de lá e brigavam
com a Funai, Funasa e na Justiça pela terra e por ajuda pra esses índios
190 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

viverem aqui. Não era fácil. Genildo continua aí com muitos outros
Pankararu pela demarcação das terras. Era um sonho de Manoel ter essa
terra demarcada, mas, nada até hoje. E torço pra que meus filhos, netos
e bisnetos consigam preservar as culturas de alguma forma, que Manoel
tanto sonhou (BARROS, 2017).
Antes de adentrar ao tema da luta pela demarcação da terra indí-
gena, descrevo a história pelo viés de Genildo Pankararu, sobrinho de
Manoel Pankararu. Veio para o estado, em 1989, como relatado, por in-
fluência do tio e para buscar melhores condições de vida:
Muitos falam de povos nativos do Tocantins, mas nunca lembram dos
Pankararu. Nós chegamos na década de 1940, meu tio Manoel estava
aqui antes do Estado ser criado, então nós também somos nativos [...]
Pra você vê, ele participou da primeira missa na construção de Palmas,
viu o Estado crescer. Nem mesmo somos lembrados por nossa história.
Eu vim pra cá graças a ele, que me ajudou muito. Vim pra tentar a vida
aqui, mas não foi e não está sendo fácil. Somos de Pernambuco, mas
somos também de São Paulo e do Tocantins (PANKARARU, 2017).
O esquecimento é uma das palavras mais utilizadas pelos indígenas,
principalmente ao relatarem suas histórias no Tocantins.Todavia, a história
aqui narrada nunca foi aprofundada em pesquisas, livros ou reportagens
jornalísticas. As instituições e estudiosos em antropologia, geografia ou
história sempre mencionaram superficialmente os Pankararu, seja para
quantificar os povos indígenas do Tocantins, seja para mencioná-los nos
“traços pluriculturais do estado” (SILVA, 2010), ou ainda em catálogos,
livros, notícias ou portais institucionais.Tal como a citação do livro Tocan-
tins: história e geografia, do autor e professor Júnior Batista do Nascimento:
A população indígena do Tocantins é composta pelas etnias: Apinajé,
Xerente, Karajá, Krahô, Xambioá, Javaé e Krahô-Kanela, todas já re-
conhecidas e com terras demarcadas, além dos povos Pankararu, que
estão em fase de reconhecimento e aguardando a demarcação de suas
terras no município de Figueirópolis. [...] São originários do sertão de
Pernambuco, aldeia Brejo dos Padres, e há mais de 30 anos migraram
para o antigo norte goiano (NASCIMENTO, 2011, p. 87).
Os poucos relatos comprovam que os Pankararu são lembrados
quantitativamente apenas para realçar a existência e não para enfatizar
suas contribuições históricas e culturais para o estado. Ao continuarmos
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 191

adentrando à história desses indígenas, é importante realçar outros mo-


mentos dos Pankararu no Tocantins, relatados por eles, como a luta pela
federalização da universidade pública, hoje UFT, e pela implantação do
Sistema de Cotas na mesma universidade. É o que Genildo Pankararu
descreve nas lembranças de suas memórias:
Anos depois que cheguei, eu logo corri pra fazer faculdade. Porque eu
queria melhorar de vida. Lá em Pernambuco não estava fácil. Daí fui
fazendo agronomia aos poucos em Gurupi, na época a gente recebia
quase nada de ajuda da Funai. Eu tinha que matar aula pra vender arte-
sanato, porque eu também tinha família pra criar. Quando eu estudava
eu ganhei essa casa do meu sogro, em 2000, e passei a morar no cen-
tro de Gurupi, com minha esposa e dois filhos. Tive que ir me virando
[...] Nesse tempo, eu e outros indígenas do Estado começamos a lutar
pela federalização da Unitins, hoje UFT, e pelas Cotas para os índios. E
conseguimos, vencemos, já que em 2003 foi a federalização e depois
chegam as cotas. Depois ainda construímos, com muita luta, a União
dos Estudantes Indígenas do Tocantins – UNEIT. A gente tava [sic] lá,
junto com outros índios (PANKARARU, 2017).
A busca por seus direitos, por qualificação profissional e outras for-
mas de sobrevivência comprovam ainda o caráter dinâmico das identida-
des indígenas. Como afirma Silva:
[...] esse indígena do passado não corresponde aos que transitam nas
cidades, nos espaços públicos e universidades e que reivindicam demar-
cação de terras e questionam os grandes projetos de desenvolvimento
que afetam diretamente sua sobrevivência e suas práticas tradicionais
(SILVA, 2010, p. 159).
Dos mais de 70 anos da presença dos povos Pankararu no Tocantins,
muitos destes foram marcados pela luta em prol da demarcação de terras,
e que perpassa até os dias atuais, como narra e enfatiza Genildo:
Em 2004 entramos com um processo de demarcação de terra pra nós,
Pankararu. O Ministério Público até andou nos procurando, entrevis-
tando, mas até agora nada.Vários índios de outras etnias aí conseguiram
fácil a terra e nós nada, não sabemos em que pé tá. Estamos aí esperan-
do, toda vida.Viver na cidade não é fácil pro [sic] índio, pelo preconcei-
to e pouca oportunidade que temos. E até hoje tá nessa toada. Atrás de
terra, de demarcação, de melhorias (PANKARARU, 2017).
192 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Identidades em transformação
Nesse período, dividido entre universidade, família e espera por
demarcação das terras, Genildo relata as dificuldades que enfrentou jun-
tamente com outros Pankararu que residem especialmente em Gurupi.
Buscam sobreviver na cidade e, em paralelo a isso, convivem com as bar-
reiras do preconceito:
Ninguém quer dar emprego pra um índio. A gente sofre muito precon-
ceito. Falam assim: “E índio trabalha? Índio tem que ficar é na aldeia, não
pode morar na cidade, não.” Como se a gente não tivesse capacidade.
A gente que eu falo, eu e meus parentes Pankararu, primo e amigos,
que vieram morar no Tocantins por causa de mim e do tio Manoel. E
nós nos profissionalizamos, estudamos [...] ninguém quer saber disso.
Mas não é fácil sobreviver na cidade. Eu vendo artesanato que a gente
traz lá de Pernambuco, corro atrás de uma coisinha aqui, outra ali pra
sobreviver [...] Outros estão se virando por aí (PANKARARU, 2017).
Ao buscarem o acesso ao mercado de trabalho estão sujeitos, qua-
se sempre, a terem condições inferiores, inclusive as várias formas de
trabalho escravo (FRANÇA, 2008). Assim, ao procurar o mercado de
trabalho, “os índios são vistos como preguiçosos e propensos ao furto,
sujos e ignorantes” (MELLATI, 1967 apud SILVA, 2010, p. 152). A so-
ciedade, por sua vez, cria essas barreiras preconceituosas pelos equívo-
cos construídos desde o período colonial, especialmente aquela de que as
culturas indígenas são atrasadas, sem lhes dar a liberdade de transitarem
em outras formas culturais, congelando assim suas culturas (FREIRE,
2000), sem notar que as identidades estão se transformando constante-
mente (HALL, 1992).
Assim, os Pankararu estariam construindo suas próprias iden-
tidades, visto que toda identidade é construída a partir da negação de
outra (LÉVI-STRAUSS, 2012). Todavia, como pontua Sahlins (1977,
p. 64), “não podemos subestimar o poder que os povos indígenas têm
de integrar culturalmente as forças irresistíveis do sistema mundial”.
Ao falar em apropriação, estamos chamando a atenção para as trans-
formações inerentes à vida e à cultura dos Pankararu, ao se mudarem
para outras terras que não as suas, e transformarem esses novos lugares
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 193

em seu novo lugar. Assim, esses indígenas não estariam perdendo suas
tradições culturais, mas reinventando novas formas de viver, já que as
identidades estão sempre em construção, como enfatiza Hall:
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tem-
po, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente
na consciência no momento do nascimento. Ela permanece sempre
incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”
(HALL, 2006, p. 38).
Em meio às transformações provocadas pelo tempo, os Panka-
raru vivem o paradoxo entre a manutenção de suas tradições culturais
e as novas formas de viver e se relacionar nas grandes cidades. Para
que ocorra a garantia de seu modo de vida, os Pankararu entendem
que é necessário ter as terras devidamente demarcadas no Tocantins.
É possível considerar que essa demarcação se tornou uma das maio-
res problemáticas para essa população indígena. Os Pankararu abriram
um processo judicial em 2001 junto ao Ministério Público Federal, no
Tocantins, para demarcação da terra ou reserva indígena Pankararu e
aguardam desde então. Genildo Pankararu relatou que a ausência da
terra dificulta as práticas rituais indígenas:
Como vamos fazer o Toré e invocar os Encantados? Se a gente fizer aqui
na rua, vão achar que é macumbaria, feitiçaria. E outra coisa, com a
terra vamos ter mais união. Tem Pankararu espalhado pra todo canto, é
aqui, é em Figueirópolis, Goiânia, Palmas [...] Estamos se [sic] perden-
do [...] porque estamos buscando outras formas de viver e não é fácil.
Estamos dentro dos costumes do homem branco, não temos um local
pra expressar nossa cultura. Só temos mais controle sobre nossa cultura
e sobre nosso povo quando temos terra. A nossa referência chama-se
terra (PANKARARU, 2017).
Os discursos anteriores enfatizados pelos indígenas retratam
o enfraquecimento de algumas práticas culturais dos Pankararu, jus-
tamente pela ausência das terras. Isso ocasiona, ainda, com o passar
do tempo, o risco do esquecimento, apagamento e silenciamento
(BARTH, 1995) de certas formas culturais desses indígenas, especial-
mente dos existentes no Tocantins, visto que há novas experiências e
práticas culturais, outras interações sociais e, assim, constantes trans-
194 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

formações. Ora, se ao invés de praticar seus costumes, os Pankararu


dão acesso ao trabalho, educação, formas de alimentação, modos de
vestir, conviver e viver em sociedade dos não indígenas, por exemplo,
esses apagam e silenciam muitas de suas formas e expressões culturais.
Este esquecimento é fortalecido ainda pelos não indígenas, que criam,
socialmente, maneiras de exclusão ou não aceitação de práticas cul-
turais indígenas, principalmente pela reafirmação da ideia equivocada
de que esses povos são inferiores e devem se adaptar a outras práticas
culturais que não sejam as suas.
O enfraquecimento das identidades Pankararu, segundo os rela-
tos coletados, está ligado à ausência da terra indígena. Genildo ques-
tiona “Até quando isso?”, como se estivesse falando para um todo e
representando a fala dos mais de 25 Pankararu existentes nos centros
urbanos do Tocantins:
Meus filhos foram tentar a vida em Palmas. Lá estudam [...] fazem um
trabalho aqui, outro ali [...] estão se virando sozinhos. Estou pensando
em voltar pra Pernambuco. Aqui em Gurupi o negócio não está fácil. A
demarcação não saiu até hoje. Somos um povo sem terra no Estado do
Tocantins, esquecidos [...] e olha que já somos mais de 25 Pankararu
no Tocantins. Até quando isso? (PANKARARU, 2017).
Dessa forma, o território demarcado é um verdadeiro encontro
das suas expressões culturais. É muito mais simbólico do que geográfico.
Embora ocorra esse discurso de enfraquecimento das tradições Pankararu
e inclusão de várias outras formas culturais, há na identidade Pankararu,
como em todas as identidades, sinais diacríticos, ou seja, elementos sim-
bólicos próprios. Barth (1976) ressalta que são as fronteiras que definem
um determinado grupo.
[...] las fronteras étnicas son conservadas en cada caso por un conjunto de rasgos
culturales. Por tanto, la persistencia de la unidad dependerá de la persistencia de
estas diferencias culturales y su continuidad puede ser especificada por los cam-
bios en la unidad producidos por cambios en las diferencias culturales que definen
sus límites (BARTH, 1976, p. 48).
Ainda para Barth (1976), as fronteiras étnicas são mantidas, em
cada caso, por um conjunto limitado de características culturais, que per-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 195

sistem apesar do contato interétnico e da interdependência. Além disso,


os Pankararu do Tocantins, ao se identificarem como indígenas, se apro-
priam da “autoidentificação”, que é uma das categorias definidas por Barth
(1976); e, com isso, apresentam novas fronteiras étnicas que os diferem
de outros grupos.
Autoidentificación.Ya sea que los individuos se consideren a sí mismos pertene-
cientes al grupo, al menos en algunos aspectos, o que así sean reconocidos por los
demás miembros del grupo. No se debe olvidar el aspecto negativo de esta acti-
tud, esto es, cuando un individuo no se considera perteneciente al grupo vecino.
Esto puede ser muy importante en aquellos casos donde la identificación con el
propio grupo no es particularmente firme. La identificación puede cambiar y el
individuo puede considerar que pertenece al propio grupo sólo en determinadas
situaciones, mientras que en otras puede estar en camino de identificarse con un
grupo distinto (BARTH, 1976, p. 48).
Esses sinais diacríticos que diferem as expressões culturais dos
Pankararu de outras tantas culturas são justificados nos relatos de Arlete
Barros, 51 anos, filha mais velha do casamento de Manoel Pankararu
com Ana Barros, também residente de Figueirópolis. Ela concedeu de-
talhes sobre os costumes do seu pai, que eram diferenciados de muitos
não indígenas, como a confecção de artesanatos com sementes, a sua
alimentação e crenças:
Meu pai sempre que podia ia lá em Pernambuco [...] na aldeia Brejo
dos Padres. Trazia muitas sementes pra plantar e fazer artesanato. E
passava o dia inteiro fazendo colares, pulseiras [...] Na casa dele tem
um quintal cheinho de pinha e murici, que ele plantava. Ele saiu plan-
tando aqui na cidade toda (risos). Não pra vender, mas pra comer
mesmo. E eu sempre notei que as comidas que ele gostava eram bem
típicas deles lá, muita mandioca, muita farinha, muita banana, frutas,
peixes. E no dia do índio ele fazia cocar e saia de palha pras crianças,
pra comemorar a data (risos). Era algo dele, era a cultura dele que era
muito forte. E ele só não fazia os rituais, como Toré porque ele virou
evangélico [protestante] e sempre falava que não gostava de fazer o
ritual sozinho. Mas quando ia orar em casa, ele sentava debaixo de uma
árvore e ficava sozinho (BARROS, 2017).
O relato da indígena confirma justamente essa especificidade da
identidade Pankararu, “ao aprofundar os processos de diferenciação”
196 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

(GONÇALVES, 2010, p. 98). No entanto, essa fronteira étnica específica


dos Pankararu cria, socialmente, formas de exclusão, tal como o precon-
ceito, a dificuldade da demarcação das terras indígenas e, até mesmo, a
imersão em outros grupos sociais.
Em poucas palavras, a cultura indígena e a história dos Panka-
raru estão preservadas na memória desses indígenas, de acordo com
os relatos apresentados, mas aguardam a terra indígena para a prática
dos seus rituais, além da garantia de mais qualidade de vida e direitos
aos povos tradicionais, como o acesso à terra e a constante luta pela
igualdade e o respeito.

Considerações finais
A história e, consequentemente, a etnografia, nunca chegam ao
fim, visto que é apenas o começo de uma jornada desses nativos indíge-
nas. Com isso, poderão surgir, quiçá, novas perspectivas. Porquanto, é
nos centros urbanos de Gurupi e Figueirópolis, sul do Tocantins, que os
Pankararu fazem história e são resistentes ao tempo, aos preconceitos, ao
desemprego, à marginalização dos centros urbanos, e estão, infelizmente,
diante do esquecimento da sociedade e do estado tocantinense.
Ao mesmo tempo que os Pankararu do Tocantins possuem uma
diversidade cultural graças às novas apropriações que eles realizam, há
sinais diacríticos (elementos simbólicos) presentes nos novos modos de
viver desses indígenas, que os difere dos grupos com os quais estão em
contato. Isso nos faz compreender que a globalização e o capitalismo não
estão destruindo ou homogeneizando as culturas, e, sim, gerando uma
multiplicidade de novas formas culturais (SAHLINS, 1977).
Os indígenas, como os Pankararu, continuam a nos ensinar sobre
diversidade, convivência, direitos, igualdade e, sobretudo, que as identi-
dades continuam em plena transformação e ressignificação, nunca estáti-
cas, como quer o senso comum. Só precisamos saber/aprender a ouvi-los.

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Capítulo 13

Presídios do Sertão: a solução final para o


“problema dos canoeiros”
Maria Juliana de Freitas Almeida
Robson Mendonça Pereira

Conquistar o Sertão passava necessariamente pela dominação


dos povos indígenas que o habitavam, motivo que norteou ações
estatais específicas que visavam à ocupação territorial, seja para de-
fesa das fronteiras, ou para o controle de vastas regiões mediante o
enfrentamento de inimigos internos e externos. Durante o Império
essa política foi viabilizada por meio da implantação de Colônias
ou Presídios Militares. Na Província de Goiás foram instalados cin-
co presídios militares ao longo da segunda metade do século XIX,
tendo três funcionado na região do Rio Tocantins (Santa Bárbara,
Santo Antônio e Santa Cruz), mais especificamente na área loca-
lizada na porção central da província conhecida como Sertão de
Amaro Leite. Pretendemos demonstrar que esses presídios tiveram
como objetivo auxiliar uma política de ocupação e expansão do
povoamento de região com efeitos devastadores para a população
Avá-Canoeiro.

Breve histórico da política indigenista nos séculos XVIII e XIX


Os contatos com os indígenas em Goiás, no século XVIII, desde
o início foram mantidos de forma truculenta, acompanhando o que
acontecia em outras regiões brasileiras. Beatriz Perrone-Moisés (1992,
200 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

p. 115) atribui a permanência e a generalidade desta situação à legisla-


ção colonial da metrópole, considerada pela autora como “contraditó-
ria, oscilante e hipócrita” ao tentar compatibilizar interesses incompa-
tíveis, como os dos colonos e dos jesuítas.
De um lado os missionários jesuítas defendiam “a liberdade dos
índios” e, ao mesmo tempo, tinham na sua escravização a mão de obra
necessária para o desenvolvimento de suas atividades econômicas na
colônia, deixando clara a longa distância existente entre o ideário co-
lonial expresso nas leis e a prática vivenciada (PERRONE-MOISÉS,
1992, p. 116).
Em 3 de maio de 1757, o Marquês de Pombal institui a Lei do Di-
retório, que dava uma nova orientação à política indigenista ao expulsar
os jesuítas das colônias ultramarinas portuguesas, ao mesmo tempo
que transforma os gentios em vassalos do rei. Essas medidas acabam
por não ser favoráveis aos indígenas, uma vez que permitiam que suas
aldeias pudessem ser habitadas por qualquer indivíduo, e os tornavam
juridicamente vulneráveis ao serem equiparados a qualquer colono
mais empobrecido.
Perrone-Moisés (1992, p. 120-121) salienta que o aldeamento
foi a consolidação da colonização, ao garantir a conversão e a ocupação
do território; a defesa e a manutenção de constante mão de obra de
reserva para o desenvolvimento econômico da colônia; e a utilização
dos índios aldeados, ou “amigos”, nas guerras contra aqueles conside-
rados inimigos.
A chegada da Família Real ao Brasil, em 1808, marcou também a
política indigenista, com mudanças consideráveis pela ação de D. João
VI, “inaugurando também uma inédita franqueza no combate aos ín-
dios” (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 136).
D. João VI, autorizou, pelas Cartas Régias, as guerras contra
os povos indígenas “hostis” e também o trabalho dos indígenas aos
seus captores.
Quanto ao procedimento com os Gentios: sou servido determi-
nar-vos que com aquellas nações que não hostilidades, mandeis
usar de toda a moderação e humanidade, procurando convence-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 201

l-as da utilidade que lhes resultrará de se conservarem em boa


intelligencia e amizade com esses povos; [...]. Acontecendo porém
que este meio não corresponda ao que se espera e que a nação
carajá continue nas suas correrias, será indispensável usar contra
ella da força armada; sendo este também o meio que deve lançar
mão para conter e repelir as nações Apinagé, Chavante, Cherente
e Canoeiro; [...] (CARTA RÉGIA de 5 de setembro de 1811 apud
SAMPAIO, 2011, p. 35).
O vazio existente na legislação indigenista, desde a revogação do
Diretório Pombalino, em 1798, só foi preenchido em 1845, com o “Re-
gulamento acerca das Missões de Catechese e Civilização dos Índios”
(Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845). Nesse intervalo de tempo,
em virtude da descentralização política e da abdicação de D. Pedro I, as
províncias passaram a legislar sobre a questão sob um viés abertamente
anti-indigenista (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 137-138).
Ainda segundo Carneiro da Cunha (1992, p. 133), desde a re-
forma empreendida pelo Marquês de Pombal não havia mais uma voz
dissonante ou interesses conflitantes, e os grupos indígenas ficaram
sem qualquer representação.
Debate-se a partir do fim do século XVIII e até meados do sécu-
lo XIX, se se devem exterminar os índios “bravos”, “desinfestando”
os sertões – solução em geral propícia aos colonos – ou se cum-
pre civilizá-los e incluí-los na sociedade política – solução em geral
propugnada por estadistas e que supunha sua possível incorporação
como mão-de-obra. Ou seja, nos termos da época, se se deve usar de
brandura ou de violência. Este debate, cujas consequências práticas
não deixam dúvidas, trata-se frequentemente de forma teórica, em
termos da humanidade ou animalidade dos índios (CARNEIRO DA
CUNHA, 1992, p. 134).
O “Regulamento das Missões” foi o único documento que tratou
da política indigenista durante o Império, e retomou a política dos
aldeamentos. Marta Amoroso (2014, p. 76) afirma que esses novos al-
deamentos eram de inspiração jesuíta, mas de orientação pombalina,
por misturar os índios aos demais habitantes, sendo sua vocação conse-
guir que os índios se oferecessem como trabalhadores livres e pobres.
A criação de aldeamentos e a transferência dos indígenas para outras
202 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

localidades obedeciam a duas direções: afastar e controlar os indígenas


e seus territórios.
Com a criação dos aldeamentos indígenas do Império, empreen-
dia-se a mais surpreendente expropriação de terras dos povos in-
dígenas. Criados, os equipamentos passavam a acolher colonos nos
arredores dos equipamentos, em terras declaradas devolutas, e o
segmento formado por colonos nacionais ou estrangeiros passa-
va a pleitear a titulação das terras em áreas indígenas progressi-
vamente ocupadas com a lavoura (MOREIRA NETO, 2005 apud
AMOROSO, 2014, p. 76).

A política indigenista em Goiás


Para Mary Karasch (1992, p. 397), a dissimulação caracterizou
também a política indigenista em Goiás desde fins do século XVIII
e ao longo do século XIX. Indiferente à política oficial adotada pela
metrópole, a capitania de Goiás se orientou pela busca de riquezas
minerais, fazendas e escravos.
Em 1774, o governador José de Almeida Vasconcelos organi-
zou bandeiras de pacificação ao Sertão de Goiás, com o intuito de
convencer os indígenas ao aldeamento, liberando, assim, suas terras,
e abrindo a possibilidade de os índios aldeados serem utilizados como
reserva de mão de obra. Até 1788, foram implantados, na capitania
de Goiás, aproximadamente 11 aldeamentos (SILVA, 2013, p. 38).
Mesmo com o término da política oficial do Diretório Pom-
balino por Carta Régia de 12 de maio de 1798, na distante capita-
nia de Goiás os colonos persistiam aplicando na prática os mesmos
princípios que nortearam a relação com os indígenas recorrendo à
adaptação.
O fim do Diretório, a emancipação dos indígenas aldeados e a
declaração da tutela sobre os índios independentes deram margem
ao reaparecimento de antigos costumes coloniais, neste momento,
sob novas justificativas e pretextos, como a guerra defensiva e a
utilização do trabalho indígena por um determinado período, que
mais se aparentava com um novo regime de servidão temporária
(SILVA, 2013, p. 51).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 203

É preciso salientar que nesse período a escassez aurífera na


capitania de Goiás levou a uma fase de ruralização de sua atividade
econômica. Em contraste com a mineração que funcionava em torno
de núcleos urbanos, empregando elevados capitais em mão de obra
escrava africana, a atividade agropastoril exigia acesso a enormes
extensões de terra, o que implicava o avanço sobre áreas indígenas.
Esse fator determinava a ação dos colonos em relação aos indígenas:
“preservação ao longo do Araguaia, região agrícola, e extermínio
ao longo dos rios Claro e Tocantins, frentes pastoris” (MELLATTI,
1967 apud KARASCH, 1992, p. 402). A maior aptidão para a ati-
vidade agropastoril era determinada também pelas características
dos solos: naqueles de melhor qualidade predominava a agricultura,
enquanto nos mais pobres, a pecuária (MAGALHÃES, 2014, p. 62).
A “questão indígena”, para Manuela Carneiro da Cunha (1992,
p. 133), “deixou de ser essencialmente uma questão de mão-de-obra
para se tornar uma questão de terras”. Entretanto, o trabalho indí-
gena continuou sendo requisitado, mesmo que em menor escala, nas
frentes de expansão e nas rotas fluviais que se pretendia estabelecer.
Ao fim do século XVIII, a Província de Goiás sofreu um afluxo
populacional motivado pelas frentes de expansão pecuária: uma ao
norte, vinda do Maranhão, e outra ao sul, vinda de Minas Gerais, se-
guindo para o Mato Grosso (ROCHA, 1998, p. 19). A frente pasto-
ril vinda do norte, do Maranhão, lentamente seguiu pelo Tocantins
e fez surgirem pequenos povoados; o rio foi utilizado para abastecer
o sudoeste do Maranhão e o norte de Goiás de produtos como sal,
tecidos e ferragens vindos de Belém (ROCHA, 1998, p. 24).
O baixo custo para a implantação das fazendas de criar, as
poucas exigências de mão de obra e a grande oferta de terras foram
fatores de incentivo à pecuária em Goiás (CHAUL, 2001, p. 97),
como também determinante para a disseminação da população por
enormes distâncias, o que, por sua vez, acirrou as disputas territo-
riais entre indígenas e não indígenas.
Ao mesmo tempo em que as frentes de expansão exigiam
maior quantidade de terras, os povos indígenas, que viviam nes-
204 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

ses locais, se viam privados de seus territórios tribais tradicionais e


obrigados a modificar sobremaneira seu modo de vida, interferindo
inclusive em seus hábitos alimentares; e muitas vezes trocando a
caça de animais silvestres pelo consumo do gado dos fazendeiros
(ROCHA, 1998, p. 32).
Os resultados da ação dessas frentes de expansão foram de-
sastrosos para as populações indígenas que habitavam as regiões
onde elas se estabeleceram, em virtude dos conflitos, das doenças
e da “descaracterização cultural dos grupos tribais em contato com
os novos habitantes, principalmente nos aldeamentos” (ROCHA,
1998, p. 19), lembrando que, teoricamente, os aldeamentos seriam
responsáveis pela “civilização dos indígenas”, e que, dos aproxima-
damente 30 mil índios existentes na província, cerca de 8 mil en-
contravam-se aldeados (ROCHA, 1998, p. 25-27).

“O problema canoeiro”
Todas as populações indígenas sofreram as pressões da ocu-
pação de Goiás desde o século XVIII. Algumas tiveram um contato
menos violento, outras mais, mas, de modo geral, independente-
mente de como este se deu, os efeitos foram bastante semelhantes:
servidão, desocupação dos territórios tribais e morte por guerras
ou epidemias.
Goiás, na segunda metade do século XIX, tem por caracte-
rística marcante o “recrudescimento de violências entre índios e
brancos” (ROCHA, 1998, p. 55) frente à expansão da pecuária. Aos
indígenas, diante da diminuição de seus territórios, restavam duas
alternativas: a resistência ou a fuga para lugares mais distantes.
Rocha (1998, p. 36) afirma que, entre todos os grupos indí-
genas de Goiás, os Avá-Canoeiro eram os mais temidos, chegando a
ameaçar a ocupação em extensas áreas. A história das relações entre
os Avá-Canoeiro e os colonizadores é semelhante a vários outros
(des)encontros interétnicos: “é a história da dominação marcada
pela violência e pelo esbulho dos territórios tribais de várias socie-
dades indígenas” (PEDROSO, 1994, p. 53).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 205

Figura 13.1 Expansão agropecuária em Goiás

Fonte: Almeida (2016)

Os territórios dos Avá-Canoeiro localizavam-se no “sertão de


Amaro Leite, ilhas do Tocantins, e terras da margem direita do rio Ma-
206 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

ranhão/Tocantins, pertencentes ao julgados [sic] de São Félix, Traíras


e São João da Palma” (PEDROSO, 1994, p. 54), justamente as regiões
em que, no fim do século XVIII e início do XIX, ganhou fôlego a ex-
pansão agropastoril, ao mesmo tempo que a população se tornava mais
dispersa, em virtude da atividade econômica, como pode ser observa-
do acima na Figura 13.1.
Merece destaque a localização geográfica do Sertão de Amaro
Leite, encravado no “coração” da Capitania/Província de Goiás, que
aparece em destaque na Figura 13.1. O Sertão de Amaro Leite, por sua
centralidade, era o local de convergência das estradas e picadas, que
faziam a ligação entre o norte e o sul da Capitania/Província de Goiás
e formava uma espécie de entroncamento no interflúvio goiano.
De um lado, a ação dos Avá-Canoeiro por muitos momentos
mantinha interditadas estas estradas, criando um vácuo de poder nes-
ta região. Por outro lado, impedia a ocupação das terras para a expan-
são da pecuária, o que na época justificava a denominação “problema
dos canoeiros”.
Os Avá-Canoeiro, diante das inúmeras tentativas de invasão de
seus territórios tribais, iniciaram uma longa história de resistência (PE-
DROSO, 1994), contra os não indígenas, que pretendiam “desinfestar”
a região dessas “pragas” do Sertão (conforme expressões da época). Po-
demos afirmar que, na visão do colonizador, o indígena personificava o
Sertão, o Avá-Canoeiro era o Sertão e, ao mesmo tempo, o responsável
por essa condição.
Três fatores se uniram de forma a justificar o controle do Sertão
de Amaro Leite, dando o respaldo ideológico à conquista: a fertilidade
e a riqueza dos terrenos daquela região proclamada por administra-
dores da província e viajantes; a suposta origem miscigenada da etnia
Avá-Canoeiro, um forte argumento para excluí-los da política indige-
nista; e, por fim, o reconhecimento do fracasso das inúmeras tentativas
de catequização e aldeamento dos Avá-Canoeiro.
Em 1823, o Governador de Armas Raymundo José da Cunha
Mattos começou a percorrer a Província de Goiás, e durante sua pas-
sagem para a Comarca do Norte, registrou suas impressões, nada
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 207

lisonjeiras, dos arraiais localizados naquele Sertão remoto. Sobre a


decadente Traíras, cabeça de julgado, comenta brevemente “que seus
habitantes não são ricos, nem grandes lavradores ou criadores; há
neste lugar inumeráveis vadios, assim como muitos homens honra-
dos” (CUNHA MATTOS, 1979, p. 116). Mais à frente, nota que,
apesar de os arraiais de Amaro Leite e Descoberto da Piedade pos-
suírem terras férteis para o desenvolvimento da pecuária, as hosti-
lidades dos índios “Carijós ou Canoeiros [...] tem [sic] feito decair
da sua antiga prosperidade” (1979, p. 119). Cunha Mattos revela a
existência de tropas de linha especificamente para “repelir os ataques
dos índios canoeiros”, como no caso do povoado de São Félix, cuja
decadência e pobreza eram unicamente explicadas pelas “hostilidades
dos índios Carijós-Canoeiros” (1979, p. 122).
Esse temor em relação aos Avá-Canoeiro era muitas vezes ba-
seado numa hipótese controversa, tomada por verdadeira por Cunha
Mattos: a de que essa etnia seria descendente de índios Carijó “que
fugiram da Bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva em 1722 e se mis-
turaram com negros dos quilombos” (OLIVEIRA, 2006, p. 27; MAR-
TINS, 1978, p. 129). Essa origem cafuza, à qual voltaremos mais à
frente, reforçava o preconceito e a violência dos brancos em relação
aos Avá, sendo sua tenaz resistência interpretada como agressividade e
banditismo. Sendo refratários à colonização e ao aldeamento, o branco
sugeria como ato extremo sua expulsão e mesmo a formação de expe-
dições para eliminá-los, como se isto pudesse resolver, como que por
encanto, os graves dilemas da província (OLIVEIRA, 2006, p. 31-33).
A integração de Goiás deu-se pela incorporação gradual do Ser-
tão. No caso do Sertão de Amaro Leite, integrá-lo ou incorporá-lo
passava pelo controle ou pela eliminação dos povos indígenas que o
habitavam, entre outras medidas, tomadas em diferentes épocas pelos
presidentes da província, garantindo a sobrevivência de uma ativida-
de econômica, a pecuária, essencial nos discursos desses potentados,
que afirmavam existir um natural potencial para seu desenvolvimento
na região. Ao mesmo tempo em que as fazendas de criação aumenta-
vam, os núcleos urbanos existentes retraíam, decorrente da reorienta-
208 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

ção econômica da Província de Goiás para a economia das fazendas de


gado, no início autossubsistentes.
A presença indígena foi um argumento bastante recorrente para
justificar as dificuldades vividas na província. Os Avá-Canoeiro eram
responsabilizados pela situação subalterna do Sertão de Amaro Leite, o
que demandava grandes esforços na tentativa de contê-los.
Ao analisar os relatórios dos presidentes da província, entre 1835
e 1889, percebe-se que o Sertão de Amaro Leite foi alvo de várias me-
didas visando à sua integração à província, com o fim de “desobstrução”
do Sertão. Justamente no período compreendido entre os anos finais do
século XVIII e a década de 1870 são feitos os maiores empenhos para
não permitir o isolamento da região, favorecendo a navegação dos Rios
Araguaia e Tocantins e as ligações internas da província pelas estradas; e
externas, com as províncias da Região Norte do Brasil.

Os presídios do Sertão
Para conter o “problema dos Canoeiro” foram utilizadas expedi-
ções punitivas oficiais ou não. A criação de bandeiras para perseguir os
indígenas era constante, contando com até duzentas praças (MEMÓ-
RIAS GOIANAS 3, 1986, p. 74-75), número que pode ser considerado
dilatado diante dos inúmeros registros existentes quanto à insuficiência
numérica da força pública da província. Entretanto, os resultados espe-
rados foram pífios, permanecendo a população do Sertão sem “nenhu-
ma segurança, e quase nenhuma esperança há para estes desgraçados
habitantes”, conforme palavras de Luiz Gonzaga de Camargo Fleury,
em 1838 (MEMÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 111).
Além das bandeiras oficiais, existiam também aquelas que cor-
riam por conta de particulares, com autorização do governo, inclusive
com a utilização de índios aldeados, “amigos”, como os Apinagés (ME-
MÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 113); e, provavelmente, muitas outras
aconteceram sem que as autoridades fossem comunicadas.
Foram várias as ofensivas contra os Avá-Canoeiro, sob o pretexto
de proteger, ou revidar algum “ataque”, o que legitimava as ofensivas
dos não indígenas. Em 1839, o presidente de Província, D. José de
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 209

Assis Mascarenhas, afirmou que, “[...] em todos os Relatórios existe


huma negra pagina, que se destina a contar o horrores, e atrocidades
praticadas contra nós pelo índio Selvagem [...]” (MEMÓRIAS GOIA-
NAS 3, 1986, p. 158), e destaca os inúmeros pedidos de socorro: “Os
povos assustados envião continuadas, e energicas representações ao
Governo, mas o objeto he de tal magnitude, e importância que excede
em muito nossas poucas forças” (MEMÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p.
160), o que o levou a recorrer ao Governo Imperial.
Porém, D. José de Assis acreditava que a catequese pudesse ser-
vir como meio para pacificação indígena, disponibilizando mão de obra
para suprir as necessidades locais, e substituir o escasso e caro escravo
africano (MEMÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 164). Diante da necessi-
dade de cessar os “males” que os índios vinham causando às fazendas do
norte, terminava com um forte apelo diante do cenário trágico que se
vislumbrava: “Pois o índio ha de ser civilizado, ou o norte da província
ha de caminhar a passos largos para sua total dicadencia, e destruição”
(MEMÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 180).
Em 1845 Joaquim Ignacio de Ramalho afirma que os Avá-Canoei-
ro, “além de selvagens he ainda feroz, e tem produzido gravíssimos males
a esta Província” (MEMÓRIAS GOIANAS 4, 1996, p. 40); e o presidente
da província afirma que os campos conhecidos por Amaro Leite, “[...] que
são incontestavelmente os melhores da Provincia, tanto por sua fertilida-
de, como pela posição Geografica em que se achaõ, e onde existiaõ gran-
des Fazendas de crear, [...]; hoje estaõ abandonados pela [sic] agressões
repetidas que soffreraõ os moradores do selvagem Canoeiro” (MEMÓ-
RIAS GOIANAS 4, 1996, p. 40). Ramalho insiste no mesmo argumento
exposto por Mascarenhas, de que a catequese seria o meio mais eficiente
para atrair índios tão arredios (MEMÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 198).
No entanto, havia uma dificuldade intransponível: o número de missioná-
rios na província era insuficiente para o tamanho da empreitada.
Nos relatórios posteriores é bastante comum o enaltecimento das
características das regiões ocupadas pelo Avá-Canoeiro, especialmente do
Sertão de Amaro Leite, como no relatório de Antônio Joaquim da Silva
Gomes, de 1851: “Os vastos sertões de Amaro Leite, ricos em pastagens,
210 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

e em terreno auríferos, fertilíssimos para todo o gênero de cultura, e


onde outrora floreceraõ muitas, e opulentas Fazendas, achaõ-e hoje er-
mos, e despovoados” (MEMÓRIAS GOIANAS 5, 1986, p. 100).
Na medida em que essa fronteira se torna fonte de disputas internas
pelo acesso a novas terras para pecuária extensiva na região do Rio Tocan-
tins, percebe-se uma mudança na maneira como os presidentes goianos
passam a se referir à questão indígena. Um exemplo disto pode ser per-
cebido no relatório do presidente Eduardo Olimpio Machado, de 1850,
no qual, ao tratar de uma suposta índole dos Avá-Canoeiro, os descreve
como um povo inescrupuloso: “Esta tribu não parece disposta a acceitar
os benefícios da cathequese; pelo contrário, segundo o que tenho ouvido
relatar de sua origem e costumes, parece levar em mira uma obra de vin-
gança e extermínio” (MEMÓRIAS GOIANAS 5, 1996, p. 74).
Conforme vários cronistas de época, era improvável que se incor-
porassem os Avá-Canoeiro como mão de obra, visto que, nos combates,
diante da impossibilidade de fuga para o mato, lutavam até a morte, tanto
homens quanto mulheres. Em virtude disso, poucos foram capturados e
colocados nos aldeamentos. Em 1852, o Presidente da Província chegou
a instituir um prêmio, com aprovação do Governo Imperial, para quem:
[...] apresentar um Indio Canoeiro, já adulto, que depois de bem tra-
tado entre nós, e sufficientemente brindado, possa volver aos seus,
declarar-lhes nossas disposições pacíficas para com elles, e fazer-lhes
conhecer a vantagem de se reunirem em aldeamentos, de se aplicarem
á trabalhos agrícolas, e de cessarem por uma vez suas continuas barba-
ridades contra os Christãos (MEMÓRIAS GOIANAS 5, 1996, p. 171).
Ainda pesavam sobre os Avá-Canoeiro, como afirmamos ante-
riormente, especulações sobre sua origem, sendo corrente a opinião
de que eles eram descendentes dos índios Carijó miscigenados a ne-
gros quilombolas. Sobre a origem dos Avá-Canoeiro, Dulce Pedroso
(1994, p. 43) afirma que:
A concepção ideológica dos habitantes não indígenas das regiões que
sofriam com as hostilidades indígenas levava a crer que a união de seg-
mentos desprezados pela sociedade, tais como negros, índios e ban-
didos, resultou nos avá-canoeiros [sic]. Possivelmente, esta ideologia
preconceituosa reforçara-se naquele tempo pela constante recusa dos
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 211

índios em se enquadrarem nos moldes dos conquistadores. Os avá-ca-


noeiros [sic] não aceitaram nenhum tipo de contato pacífico; eles insis-
tiam em se manter autônomos.
Diante de tantas dificuldades e fracassos sofridos, nas tentativas de
pacificar os Avá-Canoeiro, o administrador provincial Eduardo Olímpio
Machado requer do governo central a criação de uma Companhia de Pe-
destres, com a única finalidade de “bandeirar” o “gentio canoeiro” (ME-
MÓRIAS GOIANAS 5, 1996, p. 74).
A solução para o “problema dos Canoeiro” começou a se delinear
quando, por autorização do Governo Imperial, foi implantada a Coloni-
zação Militar no Araguaia, com a fundação dos Presídios de Leopoldina
e Santa Izabel, no ano de 1850. A colonização militar proposta pela ad-
ministração imperial tinha alcance tridimensional: visava ocupar os va-
zios demográficos, controlar os povos indígenas e favorecer a navegação
(SIMÕES DE PAULA, 1972). Mas é necessário lembrar que do projeto
original à execução eram feitas adaptações, com o predomínio de um as-
pecto sobre os demais, claro, sem excluí-los.
Em Goiás, houve uma experiência anterior com os chamados quar-
téis-aldeamentos, fundados ainda no século XVIII, e localizados no atual
Triângulo Mineiro, tendo por finalidade combater os Kayapó do Sul, e
também se destinando a acolher os Bororo, trazidos pelo sertanista Antô-
nio Pires Campos, além de defender as estradas e os comboios que trans-
portavam o ouro de Goiás (RAVAGNANI, 1986-1987, p. 120-122). Essas
instalações militares, anteriores a 1850, tiveram, em sua maioria, vida
breve, uns por falta de guarnição, outros pelo fim do motivo de sua cria-
ção ou pela ação dos grupos indígenas.
Os primeiros Presídios do Araguaia acabaram sendo transferidos
após autorização do Governo Imperial, e o aval do engenheiro respon-
sável, o francês Ernesto Vallée, em 1854, para o Sertão de Amaro Lei-
te, dando continuidade à política de colonização militar na província de
Goiás, conforme justifica o presidente Francisco Mariani:
O Governo Imperial julgou o território de Amaro Leite nas mesmas
condicçoes do das margens do Araguaya, que não poderão attrahir
população ainda á custa de consideráveis sacrifícios, e por isso orde-
212 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

nou, que ali se reproduzissem os Presidios; quando pelo contrário


os habitantes de toda a Provincia só aspirão que se desinfestem esses
férteis campos das incursões dos selvagens, para ocupal-os sem de-
tença. Para conseguir-se este fim nada seria menos proprio, do que
o Soldado estaccionario, pai de família, e proprietário [...] (MEMÓ-
RIAS GOIANAS 6, 1997, p. 41).
Mariani também esboçou um plano de localização para os presí-
dios: no território de Genipapo, o de Santa Bárbara (1854); próximo a
Amaro Leite, o de Santo Antônio (1854); e nas imediações do Povoado
do Descoberto, o de Santa Cruz (1855), conforme plano estabelecido
pelo engenheiro Vallée (MEMÓRIAS GOIANAS 6, 1997, p. 41-42). Os
presídios colocados de forma triangular formavam um perímetro de se-
gurança: o de Santa Bárbara e o de Santo Antônio impediam o avanço dos
indígenas sobre o Sertão de Amaro Leite e protegiam a Estrada do Norte,
que fazia a ligação entre Pilar e Porto Imperial, enquanto o de Santa Cruz
defendia a estrada pelo norte e o Rio Canabrava.
Havia uma distinção clara entre os presídios instalados ao longo da
Linha Tocantins daqueles instalados no Araguaia: se a navegabilidade do
rio foi a razão de ser desses últimos, naqueles primeiros se objetivava um
projeto de colonização militar que permitisse abrir uma nova frente de
ocupação. Esse aspecto pode ser percebido no “Regulamento” dos presí-
dios da Linha Tocantins, no qual chamam a atenção os objetivos e a forma
de pagamento das etapas das praças, que deveriam ser feitas em gado de
criar (MEMÓRIAS GOIANAS 6, 1997, p. 192-194), ao invés do paga-
mento em dinheiro, como determinava o regulamento anterior.
Para Moraes Antas, somente a fixação do soldado à terra poderia
tornar a colonização militar uma iniciativa de sucesso e, para isso, os
pagamentos das etapas, ao serem feitos com gado de criar, tornariam
os soldados “afeiçoados ao lugar em que vivem”. Pode-se acrescentar
a defesa da propriedade privada, especialmente o gado, que tornaria a
guerra contra o indígena um ato lícito, cumprindo um objetivo implí-
cito à abertura da fronteira.
O projeto iniciado por Mariani foi continuado pelo presidente
Antônio Candido da Cruz Machado (1854), e, nesta nova fase, os pre-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 213

sídios foram instalados em conjunto, com menor distância entre um e


outro, para que pudessem se proteger mutuamente e, ao mesmo tem-
po, estar próximos dos povoados de Pilar, Amaro Leite, Descoberto,
Traíras e Peixe.
A implantação dos presídios do Sertão de Amaro Leite foi segui-
da da abertura de estradas, que proporcionaram a ligação aos núcleos
urbanos existentes em suas proximidades, bem como às regiões mais
distantes, como Porto Imperial e a capital, pela Estrada do Norte, que,
passando pelos três presídios do Sertão, reduziria a distância, da capital a
Porto Imperial, de 180 léguas para 127 léguas (MEMÓRIAS GOIANAS
6, 1997, p. 240-253). A construção dessas estradas, juntamente com
o fato de os novos presídios do Sertão de Amaro Leite estarem locali-
zados em áreas menos isoladas (do que às margens do Araguaia), pró-
ximos a pequenos núcleos urbanos, permitiria que colonos se dirigis-
sem para suas imediações para estabelecerem suas roças (MEMÓRIAS
GOIANAS 6, 1997, p. 248), aumentando a população.
Logo após a implantação dos presídios, em 1855, Cruz Macha-
do comemorava: “os sertões de Amaro Leite erão o principal theatro
das malfeitorias dos Canoeiros, [...] com o estabelecimento dos presí-
dios elles tem migrado para além das contravertentes do Araguaya”
(MEMÓRIAS GOIANAS 6, 1997, p. 232). Segundo o presidente Cruz
Machado, a vitória da “civilização” se dava em virtude do “terror no ani-
mo dos índios” que a farda e a clavina causam, uma vez que os soldados
recebiam instruções para evitar “qualquer choque sanguinolento” e ini-
ciar o processo de aproximação com os indígenas, para o qual deveriam
“[...] empregar meios brandos afim de acaricia-los e reduzi-los a visitar
o presídio” (MEMÓRIAS GOIANAS 6, 1997, p. 232-233).
Nos anos que se seguiram à implantação dos presídios é notório
nos relatórios dos presidentes da província a diminuição de ocorrências
de confrontos entre colonos e os Avá-Canoeiro. No ano de 1864, o pre-
sídio Santa Cruz foi extinto no Sertão de Amaro Leite, e seus bens e a
tropa foram transferidos para o Porto de Jurupensen, no Rio Vermelho,
demonstrando que os Avá-Canoeiro, passados 10 anos de intensa perse-
guição, já se encontravam com menor capacidade de reação, e que ape-
214 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

nas os colonos agricultores e os dois outros presídios seriam suficientes


para manter os indígenas afastados.

Figura 13.2 Caminhos, estradas e picadas

Fonte: Almeida (2016)


Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 215

A invasão do Mato Grosso, pelas tropas de Solano Lopez, fez


com que todos os esforços fossem canalizados no sentido de im-
pedir o avanço paraguaio, os presídios remanescentes tiveram seu
efetivo substituído por homens da Guarda Nacional. Após o tér-
mino da Guerra do Paraguai, os presídios de Santa Bárbara e Santo
Antônio passaram por um período itinerante, sendo transferidos
para onde ainda havia alguma atividade indígena. O Presídio Santa
Bárbara foi extinto em 1880; e o Presídio Santo Antônio foi trans-
ferido para a confluência do Rio Bagagem, em 29 de outubro de
1883. Em fevereiro de 1884, recebeu o nome de Presídio Nova Be-
lém, sendo novamente transferido para o município de Pilar, vindo
a ser extinto em 1886.

Considerações finais
Os documentos investigados são pouco precisos quanto à forma
de contato entre a população dos presídios com os povos indígenas
que os circundavam, muito em função do “Regulamento das Missões”,
que preconizava o convívio pacífico. Marta Amoroso (2014, p. 49), ao
descrever as práticas usuais nas colônias militares de Minas, destaca
o controle armado e o sequestro das crianças indígenas. O controle
armado fica evidente diante do “medo da farda e da clavina”, e, sobre
o sequestro de crianças, a documentação consultada não nos permite
afirmar sua existência nos presídios goianos.
Hugo de Carvalho Ramos, em seu Tropas e boiadas (1984), nos
indica os caminhos dessa reflexão: “Eram sempre histórias antigas, das
passadas eras do Império e Presídios do Araguaia [...] narrações da vida
à beira do rio, proezas de caça e pesca, combates e matanças dos índios
canoeiros, caiapós e xavantes [...]” (RAMOS, 1984, p. 48).
A conquista dos territórios dos Avá-Canoeiros, especialmente
o Sertão de Amaro Leite, foi possível graças ao respaldo ideológico
à conquista: a suposta fertilidade e riqueza dos terrenos, a teoria da
origem miscigenada dos Avá-Canoeiro, e a crença na incapacidade de
serem “civilizados”, são os fatores que, de certa forma, os excluía da
política indigenista.
216 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)

Nesse contexto, pode-se afirmar que o projeto de colonização


militar implantado na Província de Goiás conseguiu atrair e aumentar,
consideravelmente, a população das áreas coloniais, colaborando para
ampliar as áreas de ocupação não indígena, interligar diferentes loca-
lidades e, ao mesmo tempo que conseguiu diminuir, e até extinguir,
alguns povos indígenas, e, por algum tempo, promover a navegação
dos Rios Tocantins e Araguaia. Pode-se afirmar que esse foi, do ponto
de vista dos objetivos iniciais, um projeto de sucesso implantado pelo
Governo Imperial; o mesmo não se pode afirmar com relação aos po-
vos indígenas ou sobre o meio ambiente, nos quais os efeitos negativos
são evidentes ainda na atualidade.

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