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Gramma Editora
Conselho Editorial: Bethania Assy, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Geraldo Tadeu
Monteiro, Gisele Cittadino, Gláucio Marafon, Ivair Reinaldim, João Cézar de Castro Rocha,
Lúcia Helena Salgado e Silva, Maria Cláudia Maia, Maria Isabel Mendes de Almeida, Mirian
Goldenberg e Silene de Moraes Freire.
ISBN 978-85-5968-746-0
CDD : 370
Gramma Editora
Rua da Quitanda, nº 67, sala 301
CEP.: 20.011-030 – Rio de Janeiro (RJ)
Tel./Fax: (21) 2224-1469
E-mail: gramma.editorarj@gmail.com
Site: www.grammaeditora.com
APRESENTAÇÃO 1
CAPÍTULO 1
Por uma estética relacional ameríndia: uma outra
ontologia da imagem? 9
Els Lagrou
CAPÍTULO 2
As manifestações artísticas dos indígenas nos museus 24
Keyde Taisa da Silva
Poliene Soares dos Santos Bicalho
CAPÍTULO 3
Águas que se cruzam: hãtxu karajá e omágua-yetê anaquiri 43
Vanessa Hãtxu de Moura Karajá
Mirna Kambeba Omágua Yetê Anaquiri
CAPÍTULO 4
Ações afirmativas e racismo estrutural: considerações
sobre o sistema de cotas na pós-graduação 52
Mariza Fernandes dos Santos
CAPÍTULO 5
Processos educacionais na Terra Indígena Avá-Canoeiro de Goiás 73
Lorranne Gomes da Silva
Ariel Pheula do Couto e Silva
X Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
CAPÍTULO 6
Olhares brasileiros sobre a África: questões para reflexão 80
Ernesto Jorge Macaringue
CAPÍTULO 7
O que significa ser afrodescendente hoje? 100
Ana Lúcia Nunes de Sousa
CAPÍTULO 8
Povos indígenas, ameaças de grandes projetos
desenvolvimentistas e afirmação cultural indígena 107
Stephen Grant Baines
CAPÍTULO 9
“Brasil: outros 500”: as comemorações e o desrespeito 118
Poliene Soares dos Santos Bicalho
CAPÍTULO 10
Territorialidade e identidade étnica Kalunga frente à
construção da PCH Santa Mônica 138
Vercilene Francisco Dias
Izadora Nogueira dos Santos Muniz
Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
CAPÍTULO 11 162
O uso de plantas medicinais pelos indígenas e pela
população de Goiás do século XIX 162
Andreia Marquezan
Roseli Martins Tristão Maciel
CAPÍTULO 12
Pankararu do Tocantins: história, lutas e identidades
de um povo esquecido e sem terra 183
Elvio Juanito Marques de Oliveira Júnior
André Demarchi
CAPÍTULO 13
Presídios do Sertão: a solução final para o
“problema dos canoeiros” 199
Maria Juliana de Freitas Almeida
Robson Mendonça Pereira
APRESENTAÇÃO
1
Abya Ayla é um termo que foi convencionado para nomear as terras que habitamos – em contrapo-
sição à América – pelos movimentos indígenas, a partir da II Conferência Continental dos Povos e
Nações Indígenas, realizada em Quito, em 2004. O nome remete ao termo utilizado pelo Povo Kuna,
residente no Panamá e na Colômbia, para referir-se ao continente antes da invasão colonial. Abya Ayla
significaria “terra em plena madurez” ou “terra do sangue vital”.
2
O termo África é, aqui, utilizado baixo protesto, seguindo Ramose (2005). O filósofo explica que
este nome foi imposto pelos “conquistadores” e que, portanto, deveria ser usado baixo protesto.
2 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
3
Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em
Comunicación y Periodismo pela Universidad Autónoma de Barcelona. Professora do Instituto Nutes
de Educação em Ciências e Saúde, com atuação no Programa de Pós-Graduação em Educação em
Ciências e Saúde e no Laboratório de Vídeo Educativo. Dedica-se à docência, pesquisa e extensão em
comunicação, educação, gênero e relações étnico-raciais.
4
Doutora em História Social pela Universidade de Brasília (UnB), pós-doutora em Antropologia So-
cial pela Universidade de Brasília (UnB), docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER/UEG) e da graduação em História do cam-
pus de Ciências Socioeconômicas e Humanas da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
5
Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). É professor e pesquisador da
Universidade Estadual de Goiás com publicações nas áreas de história política, escrita autobiográfica
e primeira república.
6
Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Docente na Universidade Estadu-
al de Goiás (UEG) com atuação no Programa de Mestrado Interdisciplinar em Territórios e Expressões
Culturais no Cerrado (TECCER/UEG) e no Centro de Ensino e Aprendizagem em Rede (CEAR).
7
Pós-doutoranda do Programa Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF) e bolsista CAPES/FAPEG-Edital 2018/1009. Docente no Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado da Universidade Estadual de Goiás
(TECCER/UEG).
Capítulo 1
nônimo pelos não indígenas, que, dizem os Huni Kuin, se equivocaram − ver Lagrou [2007]). O nome
“povo do morcego” alude ao hábito do morcego de andar de noite e de se alimentar de sangue, duas
coisas que os Huni Kuin não fazem. O problema com o etnônimo, que é também pronome nominal,
nós, a gente, é que ao usar este nome o enunciador se inclui no coletivo ao qual se refere. O mesmo
paradoxo vale para a maioria de outras recentes mudanças de nome (como os Piro/Yine: GOW apud
VIVEIROS DE CASTRO, 2002); mas é, mesmo assim, preferido pelos movimentos indígenas con-
temporâneos ao ser chamado pelo nome dado pelo inimigo. Outro inconveniente, no caso dos Huni
Kuin, é que outros grupos Pano, com língua muito próxima à deles, se autodenominariam pelo mesmo
nome, como os Oni Koin.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 11
dos espíritos, isto é, dos duplos. Passei minha vida a seguir os caminhos
por ela indicados nestes primeiros dias de pesquisa, um pouco como
Warburg perseguia as ninfas gregas e como se persegue borboletas:
seres-imagens fugidios, que se metamorfoseiam e fogem quando você
chega perto e tenta segurá-los (WARBURG, 1927). Imagens são como
duplos, sempre a fazer pontes entre o visível e o invisível, entre o aqui e
o que pertence ao alhures (LAGROU, 2018a). As imagens dão a ver as
conexões, as relações entre os seres.
Por isso, entre os ameríndios, o estudo da arte sempre nos leva
ao estudo do xamanismo e vice-versa, mas não somente entre eles. A
arte indígena nos ensina outro modo de pensar a arte e sua relação com
a vida, uma outra maneira de pensar sua relação com o corpo. Por isso
disse no meu livro sobre arte indígena que, para entender a arte indí-
gena, precisávamos de uma inversão copernicana de perspectiva, assim
como Pierre Clastres (1974) defendeu para a política e Lévi-Strauss
para a razão (LAGROU, 2009, 2011).
Em vez de pensar outras socialidades e coletivos como girando
em torno de nossos conceitos de Estado e política, de razão e verdade
ou de arte como distinto de artefato, teríamos que inverter a perspec-
tiva para ver que, ao não mais separar arte de vida, podemos enxergar a
arte indígena como uma estética específica do viver. Pode-se dizer que
as ontologias ameríndias são ontologias eminentemente estéticas. Pois,
se a perspectiva está na forma que os corpos assumem e as formas são
altamente instáveis, podendo se transformar umas nas outras, a esté-
tica se torna a chave para viver esta ontologia transformacional, onde
pessoas vivem o devir-pássaro, o devir-múltiplo, o devir-jiboia e uma
multiplicidade de outros devires no cotidiano e no ritual (LAGROU,
2018b). Se a cura depende da possibilidade de olhar o mundo a partir
de outra forma, da forma do duplo que tenta nos capturar, então toda
terapia tem que ser uma terapia estética11. E é isso que as artes indíge-
nas nos ensinam a ver.
11
Tomo emprestada esta expressão, “terapia estética”, de Gebhart-Sayer que a utiliza para falar da arte
visionária do xamã shipibo que concerta desenhos invisíveis na pele do seu paciente (GEBHART-
-SAYER, 1986).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 13
A arte gráfica podia, deste modo, ser lida como um verdadeiro sistema
visual de comunicação (VIDAL, 1992).
Por outro lado, a maioria dos trabalhos, de antropologia da
arte, orientados por Vidal, se situavam na Floresta Amazônica. Assim
temos, para os anos 1980, Lucia Van Velthem, com sua pesquisa so-
bre os Wayana; Dominique Gallois entre os Waiãpi; e Regina Müller
entre os Asurini. As três autoras publicaram artigos no famoso Grafis-
mo indígena, livro editado por Lux Vidal em 1992, que reunia o que
existia naquele tempo sobre o tema. E o que ressalta aos olhos é o
fato de termos nestas sociedades uma ênfase diferente no funciona-
mento dos sistemas gráficos. Os grafismos servem ali não para falar
das diferenças entre grupos sociais, mas para falar das relações entre
diferentes seres e níveis do cosmos.
Entre os Wayana, os diferentes sistemas gráficos separam ani-
mais, sobrenaturais e humanos. É porque são ontologicamente e tec-
nicamente tão próximos que as marcas na pele precisam garantir a
sua diferenciação (VAN VELTHEM, 2003). Já entre os Waiãpi e Asurini
que são Tupi, o grafismo une os diferentes seres, visíveis e não visíveis
(GALLOIS, 1992; MÜLLER, 1992). O xamã Waiãpi é ligado aos seus
espíritos auxiliares por linhas invisíveis, e o que tenho tentado mostrar
nos meus escritos sobre os grafismos dos grupos Pano da Amazônia
Ocidental é que os grafismos dão a ver exatamente estes caminhos,
estas linhas que conectam os seres (LAGROU, 2013).
Cheguei em São Paulo para ser orientada por Lux Vidal no
meu trabalho sobre grafismo Huni kuin nos anos 1990. Os Huni kuin
tinham metades e os especialistas da área estavam convencidos de
que se tratava de pictogramas associados a eles. Tentei confirmar
estas hipóteses. Mas o que descobri foi outra coisa: os grafismos
não pertenciam a grupos distintos, mas davam a ver a relação en-
tre eles. Por isso que a leitura de um desenho complexo, como os
motivos nas redes, produz uma narrativa de diferentes caminhos, os
caminhos do olho do periquito (txed bedu kene); da pata da onça (inu
tae kene); ou do rabo de jacaré (kape hina kene), caminhos estes que
às vezes se cruzam, outras vezes se tocam. E todos estes motivos,
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 15
REFERÊNCIAS
15
O movimento pós-modernista se caracterizou por mudanças nas ciências, nas artes e nas sociedades
desde os anos 1950. Ele traz uma ruptura com a representação perfeita do real, a partir do surgimento
de novas linguagens, para não mais representar, mas interpretar livremente a realidade, segundo sua
visão, diferenciando a arte da realidade. “O movimento pós-modernista se caracterizou por mudanças
nas ciências, nas artes e nas sociedades desde os anos 1950. Ele traz uma ruptura com a representação
perfeita do real, a partir do surgimento de novas linguagens, para não mais representar, mas interpre-
tar livremente a realidade, segundo sua visão, diferenciando a arte da realidade” (LYON, 1998, p. 35).
32 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
sociais, não seria muito adequado adjetivar a arte produzida nas socie-
dades indígenas como “arte indígena”, pois, tais artes, com caracterís-
ticas muito semelhantes às produzidas na pós-modernidade brasilei-
ra, não precisariam ser categorizadas ou classificadas, pois o que eles
produzem neste âmbito é arte, indubitavelmente, embora com suas
próprias especificidades etnoculturais.
Considerações finais
Ao longo da discussão, buscamos abordar a arte na perspectiva
da produção indígena, já que coadunamos com a assertiva de que a arte
é única, logo, é desnecessário adjetivá-la. Tendo em vista a diversidade
de povos indígenas no Brasil, as artes produzidas por estes povos ainda
vivem à margem, assim como as sociedades que as produzem. Trata-se
de uma clara representação da marginalização de sociedades que tive-
ram sua participação na formação da cultura brasileira invisibilizada ao
longo dos séculos.
O que é facilmente apreendido quando fazemos uma retrospec-
tiva histórica e encontramos os indígenas representados, geralmente,
de forma estanque e subalternizada, quando deveriam ser os prota-
gonistas do processo, já que antes da chegada de qualquer europeu ao
continente eles já pertenciam à terra. Contudo, ainda são, em grande
medida, ignorados, e, muitas vezes, dizimados em nome do progresso.
Sua produção artística, advinda de uma cultura que não é a
dominante, não poderia ter outro tratamento, senão a não aceitação
pela cultura dominante, que se vê representada na arte sob uma pers-
pectiva ocidentalizada, e que conserva os traços europeus, os concei-
tos nobres daqueles que são, ainda hoje, tidos como “superiores”. O
próprio povo brasileiro nega suas origens quando aceita e venera as
imposições do colonizador e relega à subalternidade o que é eminen-
temente brasileiro.
Um suspiro de esperança na luta dos indígenas, juntamente com
outros grupos étnica e culturalmente diferenciados, em busca de reco-
nhecimento, pode ser sentido nos museus, que expõem as produções
indígenas, geralmente, com a mesma valoração de outras manifesta-
ções artísticas; e que, nos últimos anos, estão sendo organizados pelos
próprios indígenas, como forma de resistência, de modo a levar ao
conhecimento das pessoas uma cultura que é rica em detalhes e signi-
ficações, como qualquer outra produção artística.
A pós-modernidade trouxe sua parcela de contribuição ao re-
conhecimento, ainda superficial, das produções indígenas como arte,
40 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
REFERÊNCIAS
16
Graduanda em pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (FE/UFG). Par-
ticipa da União dos Estudantes Indígenas e Quilombolas (UNEIQ/UFG). E-mail: vns.hatxu@gmail.com.
17
Doutoranda em Arte e Cultura Visual na Faculdade de Artes Visuais da UFG. Participa do grupo de
pesquisa Cultura Visual e Educação (FAV/UFG) e do projeto de pesquisa “Práticas Artísticas Autobio-
gráficas: intersecções entre prática artística, escritas de vida e decolonialidade (FAV/UFG) e “Mídia
indígena: identidade, política e comunicação entre os Jê do Brasil Central (FIC/UFG)”. Tem experiên-
cia na área de Artes, com ênfase em Artes Visuais, atuando principalmente nos seguintes temas: estudos
indígenas, educação da cultura visual, autobiografia e performance. E-mail: mirnaanaquiri@gmail.com.
44 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
19
Resolução CONSUNI nº 07/2015. Dispõe sobre a política de ações afirmativas para pretos, pardos
e indígenas na Pós-Graduação Stricto Sensu na UFG. Disponível em: https://prpg.ufg.br/up/85/o/
Resolucao_CONSUNI_2015_0007.pdf. Acesso em: nov. 2018.
48 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
REFERÊNCIAS
20
Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre em Geografia e ba-
charela em Comunicação Social.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 53
22
Cirqueira, Gonçalves e Ratts (2012) relatam que a UFG desconsiderou os pré-projetos apresentados
pelos coletivos que integravam o Movimento Negro Acadêmico na UFG e, em 2007, apresentou à
Câmara de Graduação uma proposta de ação afirmativa que previa um bônus na nota da segunda fase
do vestibular para estudantes de escolas públicas, sem recorte étnico-racial. Os pesquisadores apon-
tam que o repentino “interesse” por parte da instituição em implementar uma iniciativa de inclusão se
deveu à intenção de angariar verbas do Governo Federal dentro da proposta de expansão da educação
superior com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(Reuni). O projeto inicial causou surpresa e reação no Movimento, que, após uma série de embates,
conseguiu alterar a proposta.
A primeira universidade brasileira a adotar ação afirmativa em todos os seus programas de pós-gra-
23
duação foi a Universidade Estadual da Bahia (UNEB) (VENTURINI; FERES JÚNIOR, 2018).
56 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
lutar por mais direitos e pela inclusão de mais membros de seu grupo nos espaços de poder. Com foco
no Brasil, Santos e Ratts (2015, p. 642) apontam que a participação de estudantes negros em projetos
ou programas de ação afirmativa na universidade amplia a experiência acadêmica, inclusive ajudando
a tornar a pós-graduação uma possibilidade, o que produz reflexos na formação de um Movimento
Negro de Base Acadêmica. Além disso, é preciso considerar os impactos da formação de profissionais
negros que poderão atuar a partir de uma perspectiva antirracista em diversas áreas. Alguns dos efeitos
socioespaciais da presença de mais estudantes negros no espaço acadêmico da UFG foram identificados
em minha pesquisa de mestrado (SANTOS, 2016).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 59
27
Em Goiânia, Ferreira (2014) constatou que a população branca está concentrada nos bairros mais
elitizados, enquanto o grupo que se autoidentificou no censo 2010 como preto se concentra principal-
mente nas regiões leste e noroeste da cidade. Esse padrão também é observado em outras capitais, em
trabalhos como o de Silva (2006), que analisou a segregação urbana e racial em São Paulo.
60 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
29
O projeto de extensão ofereceu aulas de inglês e espanhol instrumentais, mas, para aqueles que
nunca haviam tido contato com o aprendizado desses idiomas, as aulas não foram suficientes.
68 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
né? [...] Então a gente criou uma norma geral que valia pra todo
mundo e que talvez não seja ainda a ideal. Talvez não, não é a ideal,
não é a melhor, mas é a possível (Representante da UFG apud VEN-
TURINI, 2018, p. 25).
O trecho da entrevista evidencia que, se hoje temos uma ação
afirmativa deficiente, isso é resultado do ativismo do grupo hegemôni-
co que usa sua posição de poder nas instâncias burocráticas da univer-
sidade para perpetuar privilégios e desigualdades com base em ideais
excludentes e subjetivos, a exemplo da “questão do mérito” citada pelo
entrevistado.
Considerações finais
O caso da aplicação das cotas na pós-graduação da UFG é um
exemplo notório do racismo estrutural funcionando em sua melhor
forma: após provocação de um grupo interessado na luta antirracista,
os gestores acatam o que foi sugerido como solução para o problema,
desde que sejam atendidas as suas demandas também, o que resulta em
um projeto que provoca poucas mudanças, têm poucos resultados prá-
ticos e mantém os privilégios do grupo hegemônico. Tudo isso sob um
discurso por vezes propagandista de que a universidade está realmente
empenhada em promover a inclusão.
Busquei evidenciar, ao longo deste texto, que, para avançar na
solução do problema da exclusão das pessoas negras na pós-graduação,
é preciso partir de uma compreensão do que é o racismo, e que a abor-
dagem do racismo estrutural parece ser adequada para esse exercício.
Para além disso, esse entendimento sobre o racismo precisa ser conside-
rado ao se elaborar e colocar em prática as ações afirmativas, sob o risco
de criarmos medidas que ficam apenas no papel e não promovem mu-
danças significativas na prática. Por outro lado, observamos que o fato
de iniciativas de inclusão pouco efetivas estarem sendo implementadas
sem uma real preocupação de combate à discriminação racial é uma
demonstração do racismo estrutural atuando em sua total capacidade.
Por um longo período na história e com apoio de intelectuais
que usaram o crivo da ciência para legitimar esse discurso, o Brasil se
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 69
REFERÊNCIAS
Breve histórico
Os primeiros registros sobre o povo Avá-Canoeiro são do fim do
século XVIII. Tem uma língua própria, pertencente ao sub-ramo IV da
30
Doutora em Geografia, professora da UEG, campus Cora Coralina; do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Língua, Literatura e Interculturalidade, e do curso superior de Tecnologia em Gestão
de Turismo.
31
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade de
Brasília (PPGL/LIP/IL/UnB, bolsista CAPES) e membro do Laboratório de Línguas e Literaturas
Indígenas – Aryon Dall’Igna Rodrigues (LALLI/UnB).
74 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
REFERÊNCIAS
Introdução
Entre março de 2014 e agosto de 2018, os desafios impostos pela
vida me obrigaram a abandonar a minha família, a minha terra e o meu
país em busca do que se pode considerar “chaves” de sobrevivência,
neste mundo tão cruel e contraditório para as massas populares que se
encontram nos países subdesenvolvidos, uma vez que, segundo Harvey
(2011), em O enigma do capital: e a crise do capitalismo, as regras do
jogo são ditadas pelo “dinheiro” – capital financeiro e, pelas tecnolo-
gias de comunicação e informação. Estes meios de vida do século XXI,
além de serem escassos, estão sob controle das grandes corporações
mundiais. É assim, como interpretamos o funcionamento e as relações
sociais que são estabelecidas na atualidade.
No jogo das relações entre as nações, há uma tendência de se
privilegiar os acordos de assistência técnica, que promovem desin-
tegração temporária dos membros em comunidades que lutam pela
edificação de infraestruturas de provisão de serviços básicos, no lugar
de promoção de medidas que reforcem entrosamentos permanentes
e coesos. Foi dentro desse contexto que tivemos a oportunidade de
conhecer Goiânia, capital do estado de Goiás, no Brasil. Goiânia, uma
cidade maravilhosa, que Chaveiro (2007, p. 17) define como “expres-
33
Doutor em Geografia. Professor dos cursos de Turismo na Escola Superior de Hotelaria e Turismo
de Inhambane, da Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 81
tuosas, deixaram legados, alguns dos quais aqui são enquadrados como
elementos de índole identitária e cultural, e, como tal, são classifica-
dos, para efeitos desta análise, como “elos de aproximação”, e que, até
então, não constam das pautas de investigação para sua interpretação.
O elemento escolhido para intermediação do diálogo é basica-
mente o de “nomes” que são atribuídos aos lugares/às coisas. Do que
é do nosso conhecimento, as palavras “Moçambique”, “Gorongoza” e
“Rio de Janeiro” são nomes de lugares e/ou coisas, tanto em Moçam-
bique quanto no Brasil. Moçambique é comumente conhecido como
nome de uma Nação africana que foi constituída no âmbito das dispu-
tas das potências capitalistas europeias, nomeadamente Alemanha, Bél-
gica, França, Inglaterra e Portugal. A sua constituição tinha em vista,
unicamente, a exploração dos bens naturais, incluindo os povos fixados
dentro do espaço demarcado.
Rio de Janeiro é nome de uma das mais belas cidades brasileiras,
construída ao longo da costa atlântica, sob comando da nobreza portu-
guesa, que, por sua vez, reuniu esforços suficientes para conquistar um
vasto território na América Latina.
E, por fim, Gorongoza é nome de um distrito, inserido na pro-
víncia de Sofala, em Moçambique. Em função da documentação oficial,
tudo nos conduz a deduzir que a gênese dos três nomes coincide com
o período em que os portugueses e asiáticos fixaram-se e exerceram o
domínio aos povos africanos.
As três palavras, como nomes de lugares, são vulgarmente co-
nhecidas. No entanto, as mesmas palavras são também usadas com ou-
tros significados, a saber: Moçambique é nome de um grupo cultural
– Terno de Congada – uma das manifestações culturais que ainda pre-
servam valores culturais africanos; por sua vez, Rio de Janeiro é nome
de um lugar na Baía de Inhambane, lugar de lazer, onde os moradores
locais desfrutam a beleza paisagística da costa do Índico; e, por fim,
Gorongoza é nome de um bar, em Niterói, no estado do Rio de Janeiro.
Aqui está-se perante significados de palavras, em Moçambique e
Brasil, dois países cujo passado foi determinado pelo mesmo país colo-
nizador – Portugal. Além dos fatos acima descritos, há outros que, no
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 89
37
Para mais informações, visitar o site da ONU através do endereço: https://www.un.org/pga/wp-
-content/uploads/sites/3/2014/11/International-Decade-for-People-of-African-Descent.pdf.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 95
38
Disponível em: http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/prizes-and-ce-
lebrations/2015-2024-international-decade-for-people-of-african-descent/. Acesso em: 21
abr. 2019, 17h40.
96 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
Considerações finais
Aqui estão os alicerces de uma reflexão sobre os olhares lançados
à África por quem conhece a África através dos manuais da escola, da
mídia, das missões religiosas etc. Realmente, para a maioria dos sujei-
tos com os quais tivemos a oportunidade de interagir, ficou patente
para nós que as únicas fontes com as quais se conta para a difusão de
saberes, culturas e modos de vida dos povos africanos são os acima ci-
tados: manuais escolares, mídia e missões religiosas.
Com este texto não se pretende criar uma outra fonte de di-
fusão de saberes, culturas e modos de vida dos povos africanos, mas
contribuir para a sistematização das identidades construídas e que
qualificam a cultura e os povos vítimas de processos de colonização
como inferiores.
39
Desde que foram empregadas as noções de “brancos” e “negros” para nomear genericamente os
seres humanos; os colonizadores, brancos, passaram a ser considerados superiores, e os colonizados,
os africanos, foram levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado pela
pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras, e destinado ao trabalho for-
çado, o africano veio a simbolizar, na consciência de seus dominadores, uma essência racial imaginária
e ilusoriamente inferior: a de negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos
africanos no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das realidades
históricas e culturais não podia ser senão falseada (M’BOW, 2010).
98 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
REFERÊNCIAS
40
Professora adjunta no Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde, onde atua no Programa de
Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde e no Laboratório de Vídeo Educativo. Doutora em
Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e em Comunicação e Jornalismo
pela Universidad Autónoma de Barcelona.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 101
Considerações finais
Ao tornar-me negra aprendi a compreender a dor causada pelo
racismo; me fortaleci e ganhei uma grande família. Ao deixar de ser
apenas “negra” para ser afrodescendente e afro-indígena, passei a reco-
nhecer-me de forma ainda mais profunda, respeitando minhas raízes e
as diferenças que unem a todos que têm a África como paraíso imagi-
nado, como Aruanda. Retomando a nossa pergunta inicial: o que sig-
106 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
REFERÊNCIAS
Introdução
Inicia-se este texto apresentando a definição de Terras Indígenas
(TI) no Brasil e as principais legislações que regem a demarcação e o pro-
cesso de regularização. Apresenta-se a política indigenista em relação ao
povo Waimiri-Atroari, no Norte Amazônico, como exemplo de uma so-
ciedade indígena que foi sujeita ao indigenismo empresarial patrocinado
pela empresa construtora da Usina Hidrelétrica de Balbina, na forma do
Programa Waimiri-Atroari (ELETRONORTE/Fundação Nacional do
Índio – FUNAI), atrelado a interesses de grandes empresas que exploram
seu território. Aborda-se, também, no litoral Nordeste do Brasil, a situa-
ção dos Tremembé da TI Almofala, Tapera, Varjota e Barra do Mundaú e
dos Jenipapo-Kanindé na Aldeia Lagoa Encantada
Na Constituição Federal de 1988, o art. 231, § 1º, define que as
TI são aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas
para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”
(BRASIL, 1988, p. 37-38), o que reforça o anterior Estatuto do Índio
(Lei nº 6.001/1973). Os povos indígenas são os povos originários do
42
Professor Titular, Pesquisador PQ 1A/CNPq, na Universidade de Brasília (UnB)/Departamento de
Antropologia (DAN), membro do Laboratório e Grupo de Estudos em Relações Interétnicas (LAGERI).
108 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
Brasil, fazendo com que seu direito a uma terra determinada independa
de reconhecimento formal.
O procedimento administrativo de demarcação das terras indí-
genas é delineado no Decreto nº 1.775, de 8 de janeiro de 1996. De
acordo com o decreto, as suas etapas do procedimento são: 1. Estudos
de identificação: estudo antropológico de identificação da Terra Indígena,
com a constituição de um grupo técnico; 2. A aprovação do relatório pela
FUNAI, e publicação do resumo no Diário Oficial da União (DOU) e no
Diário Oficial (DO) da Unidade Federada correspondente; 3. O período
de contestações; 4. Declarações dos limites da TI; 5. A demarcação física,
em que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)
procederá ao reassentamento de eventuais ocupantes não índios; 6. A
homologação da TI pela presidência da República; e 7. Seu registro, no
cartório de imóveis da comarca correspondente e na Secretaria de Patri-
mônio da União (SPU). Entretanto, o cumprimento completo de todas
estas etapas torna-se cada vez mais complexo e burocrático o processo,
especialmente em decorrência da mencionada fase “3. período de contes-
tação”, que afirma: “Todo interessado, inclusive estados e municípios, po-
derá manifestar-se, apresentando ao órgão indigenista suas razões [...].”43
REFERÊNCIAS
ao Ministério da Agricultura, atualmente comandado pela líder ruralista Teresa Cristina (DEM-MS),
claramente comprometido com os interesses de ruralistas e empresários vinculados ao campo. Além
desta medida, o novo Governo também transferiu a FUNAI para o Ministério da Mulher, Família e
Direitos Humanos, atualmente comandado pela pastora evangélica Damares Alves. Estas medidas, entre
outras, evidenciam uma óbvia intenção de esvaziamento e enfraquecimento da FUNAI, assim como
expõe as questões e os direitos indígenas a uma série de riscos. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/
poder/2019/01/bolsonaro-retira-da-funai-a-demarcacao-de-terras-indigenas.shtml. Acesso em: 29
jan. 2019, às 10:28h, ehttps://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/novo-decreto-de-bolsona-
ro-retira-da-funai-licenca-de-empreendimentos.shtml. Acesso em: 29 jan. 2019, às 10:35h.
120 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
50
Termo que melhor se ajusta à chegada dos portugueses ao Brasil, já que as terras alcançadas por
eles em 1500 não foram descobertas e nem povoadas inicialmente por eles. Elas já eram densamente
habitadas pelos indígenas, cerca de mil etnias e de 2 a 4 milhões de habitantes, em números estimados
(ALMEIDA, 2010, p. 29); e há ainda evidências de que não foram eles, os portugueses, os primeiros
europeus a chegarem ao território onde é hoje o Brasil.
126 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
52
“Fui pisoteado pelo batalhão.” Excerto do depoimento de Gildo Jorge Roberto Terena, pronuncia-
do no ato público de solidariedade e acolhida da delegação da Marcha Indígena de 2000, na cidade
de Rondonópolis, no dia 24 de abril de 2000, na Praça dos Carreiros, às 17 horas (RICARDO,
2000, p. 68).
132 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
REFERÊNCIAS
Introdução
O caminho da efetivação dos direitos territoriais quilombolas
da comunidade Kalunga tem sido árduo no estado de Goiás. Realidade
que não é, de modo algum, exclusiva desse povo. Antes, é herança da
hegemonia escravista colonial e imperial, que buscou mecanismos le-
gais de manutenção da concentração de terras no Brasil – Lei de Terras,
1850 (OSÓRIO, 2008).
Passados 30 anos da promulgação da Constituição Federal (CF),
a não observância do caráter afirmativo que o acesso à terra tem para
as comunidades quilombolas tem implicações diretas nos modos de
reprodução sociocultural das respectivas comunidades e no direito dos
seus membros à livre-escolha do modelo de vida que pretendem ado-
53
Mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás (UFG), onde foi bolsista CAPES e
integrante do Observatório da Justiça Agrária do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da
UFG (e-mail: vercilenekalunga@hotmail.com).
54
Mestranda em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás, bolsista FAPEG e integrante do
Observatório da Justiça Agrária do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG (e-mail:
n.izadora@gmail.com).
55
Mestre e Doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora Titular na Facul-
dade de Direito da Universidade Federal de Goiás e Professora na Universidade de Ribeirão Preto.
Coordenadora do Núcleo Emergente Comunidades Tradicionais. Bolsista Produtividade em Pesquisa
CNPq. E-mail: mcvidotte@uol.com.br.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 139
56
Doações de terras realizadas a partir da desagregação da lavoura de monoculturas, como a cana-de-
-açúcar e o algodão, compra de terras, terras que foram conquistadas por meio da prestação de servi-
ços, inclusive de guerra, bem como áreas ocupadas por negros que fugiam da escravidão. Há também
as chamadas terras de preto, terras de santo ou terras de santíssima, que indicam uma territorialidade
vinda de propriedades de ordens religiosas, da doação de terras para santos e do recebimento de terras
em troca de serviços religiosos (SEPPIR, 2013, p. 8).
140 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
lapso temporal entre os séculos XVII a XIX, apenas uma menção é feita
por Dom João Manoel de Mello, no ano de 1760, revelando a existên-
cia de um quilombo no vale do Rio Paranã, onde conviviam mais de
200 pretos em liberdade, dedicando-se ao cultivo de roças e pomares.
Nesse ponto, torna-se imprescindível explanar os parâmetros
de identificação e pertencimento das comunidades quilombolas, mais
especificamente na Comunidade Kalunga, a fim de dirimir críticas vi-
rulentas que questionam o critério de “autoatribuição” dessas comuni-
dades, que encontra respaldo jurídico na Convenção OIT nº 169 e no
Decreto nº 4.887/2003.
Dias (2016), em conversa com o líder comunitário e Presiden-
te da Associação Quilombo Kalunga, Vilmar Souza Costa, explica que
“autoatribuição” não implica simplesmente se autodeclarar quilombola
Kalunga para ser aceito na comunidade, mas implica um processo com
várias etapas: 1º) No momento em que a pessoa se autodeclara Kalunga
começam todos os trâmites costumeiros de investigação genealógica.
Assim, o declarante deve apresentar um estudo genealógico da família,
indicando quem são ou eram seus familiares Kalunga, se moram na
comunidade ou não; 2º) Juntamente com o estudo genealógico, deve-
-se apresentar uma declaração assinada por três lideranças de região
da qual o declarante diz pertencer, atestando que o declarante ou seus
familiares descendem daquela região (ancestralidade); 3º) A apresen-
tação da documentação é feita ao líder comunitário e Presidente da
Associação, que emite uma declaração de que o declarante pertence à
Comunidade Quilombola Kalunga, e, a partir daí, passa a ter todos os
direitos e obrigações de qualquer quilombola Kalunga.
No caso de a liderança suspeitar de qualquer tipo de fraude
ou qualquer outro ato inverídico, o processo será suspenso ou ex-
tinto e o declarante será denunciado, podendo responder civil e pe-
nalmente pelo ato ilícito. Ou seja, além da autodeclararão definida
pelo Decreto nº 4.887/2003, o pertencimento será atestado pela
própria comunidade.
Ressaltemos uma vez mais que a necessidade de Decreto Pre-
sidencial de Desapropriação por Interesse Social, fase em que atual-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 149
Importante citar que Ronaldo Caiado, membro da família, é, atualmente, governador do estado de
61
Goiás (2019-2023), havendo antes exercido os cargos de deputado federal e senador da República.
62
Em 2018, o deputado federal Ronaldo Caiado, integrante desta família, foi eleito como governador
do estado de Goiás.
152 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
Considerações finais
Diante do exposto, conclui-se que estamos frente a modelos
conflitantes em relação ao acesso à terra: territorialidade versus pro-
priedade. Isso coloca em evidência que não existe apenas um modelo
calcado na individualidade patrimonial no Brasil.
No que tange à visibilidade jurídica desses novos sujeitos de di-
reitos – os quilombolas –, a etnização e racialização da luta pela terra
têm menos o condão de demonstrar a diversidade étnico-racial do povo
brasileiro, e mais de explicitar a desigualdade étnico-racial brasileira.
Mediante a percepção de Lígia Osório (2008), constatamos que
as estratégias das classes proprietárias de terras se mantêm para neutra-
lizar a ação do Estado, todas as vezes que este procura adequar o acesso
às terras: primeiro, resistir ao máximo à aprovação da lei disciplinado-
ra – como exemplo temos a frente parlamentar formada por políticos
partidários do DEM, Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)
e Movimento Democrático Brasileiro (MDB, antigo PMDB) que atua
na defesa dos grandes proprietários rurais, formando a “bancada ru-
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 157
REFERÊNCIAS
tante, esta questão acaba por tocar no veio sociológico quando é perce-
bida clara influência do etnocentrismo dentro da medicina dita oficial,
que considera de cultura inferior qualquer coisa fora de sua abordagem
científica, mas que se utiliza do conhecimento de grupos subalterniza-
dos não valorados a seu favor, cientificizando este conhecimento em
nome da medicina hegemônica; ainda, no interior de questões hege-
mônicas, mas, sob outro aspecto, o econômico.
Entretanto, não se pode deixar de relevar a importância das plan-
tas medicinais utilizadas por comunidades indígenas para a população
de baixa renda, que não dispõe do alcance da medicina convencional
para o tratamento de doenças. Especificamente nos países periféricos
do sistema capitalista menos desenvolvidos, a indústria farmacêutica
não se interessa pela medicina popular, tendo em vista o tratamento de
determinadas doenças:
Especialmente em países com rica biodiversidade e conhecimentos
tradicionais abundantes, como é o caso do Brasil e com elevada inci-
dência das chamadas “doenças negligenciadas”, tais como tuberculose
(UNICEF et al., 2002a), malária (UNICEF et al., 2002b), mal de cha-
gas (UNICEF et al., 2002c), esquistossomose (UNICEF et al., 2002d),
leishmaniose (UNICEF et al., 2002e) e doença do sono, [...] o desenvol-
vimento de novas drogas para o tratamento destas doenças, que afetam
sobretudo populações de países em desenvolvimento, pouco interessa à
indústria farmacêutica, pois embora estes países reúnam 80% da popula-
ção mundial, correspondem a apenas 20% das vendas globais de remédios
(FUNARI; FERRO, 2005, p. 178).
Lei nº 13.123/2015
Artigo 8º - Fica protegido por esta Medida Provisória o conhecimento tradicional das comunidades
indígenas e das comunidades locais, associado ao patrimônio genético, contra a utilização e exploração
ilícita e outras ações lesivas ou não autorizadas pelo Conselho de Gestão de que trata o artigo 10, ou por
instituição credenciada.
§ 1º - O Estado reconhece o direito das comunidades indígenas e das comunidades locais para decidir
sobre o uso de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do País, nos termos
desta Medida Provisória e do seu regulamento.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 177
Lei nº 13.123/2015
Artigo 9º – À comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem, detêm ou conservam
conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético, é garantido o direito de:
III – perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conheci-
mento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade, nos termos desta Medida Provisória.
Artigo 24 – Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido
a partir de amostra de componente do patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado,
obtidos por instituição nacional ou instituição sediada no exterior, serão repartidos, de forma justa e
equitativa, entre partes contratantes, conforme dispuser o regulamento e a legislação pertinente.
Lei nº 13.123/2015
Artigo 47 – A concessão de direito de propriedade intelectual pelo órgão competente sobre produto acabado
ou sobre material reprodutivo obtido a partir de acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional
associado fica condicionada ao cadastramento ou autorização, nos termos desta Lei.
Artigo 31 – A concessão de direito de propriedade industrial pelos órgãos competentes, sobre processo ou
produto obtido a partir de amostra de componente do patrimônio genético, fica condicionada à observância
desta Medida Provisória, devendo o requerente informar a origem do material genético e do conhecimento
tradicional associado, quando for o caso.
Conclusão
Mesmo encontrando dificuldades no desenvolvimento de es-
tudos referentes ao conhecimento indígena sobre plantas medicinais,
esta é uma pesquisa fascinante, pois, por meio do pouco material en-
contrado, percebe-se o domínio que essas comunidades possuem e,
consequentemente, a riqueza da flora do Cerrado goiano. Não é à toa
que o governo e as indústrias farmacêuticas se interessem tanto pelos
indígenas, visto que conseguiriam realizar pouco ou com um dispêndio
enorme de tempo, não fosse o comprazimento dos índios em repassar
seus domínios a cientistas e pesquisadores.
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 179
Referências
.
Capítulo 12
Apresentação
Há algum tempo percebemos a necessidade de escrever sobre
os Pankararu, especificamente um dos povos localizados no estado
do Tocantins. Ora desconhecidos, ora apenas identificados entre os
povos indígenas do estado, seja pela sociedade ou pelo poder público.
O povo Pankararu é originário do estado de Pernambuco. Tal povo se
configura como uma das comunidades indígenas brasileiras, as quais
foram sendo reconhecidas, com o passar do tempo, como povos que
vivem em meio à preservação de suas tradições e diante do constante
contato e das imposições provocadas pela sociedade envolvente, prin-
cipalmente após o período de colonização do Brasil. Muitos desses
indígenas migraram para outros lugares do país, devido ao grande nú-
mero de invasões, perseguições de posseiros e fazendeiros; até mes-
mo por buscarem melhores condições para sobreviverem, visto que o
Nordeste sofria também com a escassez de água, comida e emprego.
Entre os estados escolhidos por estes nativos indígenas estavam
São Paulo, Mato Grosso e o norte goiano, que hoje é o Tocantins.
Para melhor traçar a origem, história e anseios desses indígenas no
estado do Tocantins é preciso se deslocar cerca de 250 quilômetros
da capital, Palmas, com destino a duas cidades na região sudeste do
184 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
viverem aqui. Não era fácil. Genildo continua aí com muitos outros
Pankararu pela demarcação das terras. Era um sonho de Manoel ter essa
terra demarcada, mas, nada até hoje. E torço pra que meus filhos, netos
e bisnetos consigam preservar as culturas de alguma forma, que Manoel
tanto sonhou (BARROS, 2017).
Antes de adentrar ao tema da luta pela demarcação da terra indí-
gena, descrevo a história pelo viés de Genildo Pankararu, sobrinho de
Manoel Pankararu. Veio para o estado, em 1989, como relatado, por in-
fluência do tio e para buscar melhores condições de vida:
Muitos falam de povos nativos do Tocantins, mas nunca lembram dos
Pankararu. Nós chegamos na década de 1940, meu tio Manoel estava
aqui antes do Estado ser criado, então nós também somos nativos [...]
Pra você vê, ele participou da primeira missa na construção de Palmas,
viu o Estado crescer. Nem mesmo somos lembrados por nossa história.
Eu vim pra cá graças a ele, que me ajudou muito. Vim pra tentar a vida
aqui, mas não foi e não está sendo fácil. Somos de Pernambuco, mas
somos também de São Paulo e do Tocantins (PANKARARU, 2017).
O esquecimento é uma das palavras mais utilizadas pelos indígenas,
principalmente ao relatarem suas histórias no Tocantins.Todavia, a história
aqui narrada nunca foi aprofundada em pesquisas, livros ou reportagens
jornalísticas. As instituições e estudiosos em antropologia, geografia ou
história sempre mencionaram superficialmente os Pankararu, seja para
quantificar os povos indígenas do Tocantins, seja para mencioná-los nos
“traços pluriculturais do estado” (SILVA, 2010), ou ainda em catálogos,
livros, notícias ou portais institucionais.Tal como a citação do livro Tocan-
tins: história e geografia, do autor e professor Júnior Batista do Nascimento:
A população indígena do Tocantins é composta pelas etnias: Apinajé,
Xerente, Karajá, Krahô, Xambioá, Javaé e Krahô-Kanela, todas já re-
conhecidas e com terras demarcadas, além dos povos Pankararu, que
estão em fase de reconhecimento e aguardando a demarcação de suas
terras no município de Figueirópolis. [...] São originários do sertão de
Pernambuco, aldeia Brejo dos Padres, e há mais de 30 anos migraram
para o antigo norte goiano (NASCIMENTO, 2011, p. 87).
Os poucos relatos comprovam que os Pankararu são lembrados
quantitativamente apenas para realçar a existência e não para enfatizar
suas contribuições históricas e culturais para o estado. Ao continuarmos
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 191
Identidades em transformação
Nesse período, dividido entre universidade, família e espera por
demarcação das terras, Genildo relata as dificuldades que enfrentou jun-
tamente com outros Pankararu que residem especialmente em Gurupi.
Buscam sobreviver na cidade e, em paralelo a isso, convivem com as bar-
reiras do preconceito:
Ninguém quer dar emprego pra um índio. A gente sofre muito precon-
ceito. Falam assim: “E índio trabalha? Índio tem que ficar é na aldeia, não
pode morar na cidade, não.” Como se a gente não tivesse capacidade.
A gente que eu falo, eu e meus parentes Pankararu, primo e amigos,
que vieram morar no Tocantins por causa de mim e do tio Manoel. E
nós nos profissionalizamos, estudamos [...] ninguém quer saber disso.
Mas não é fácil sobreviver na cidade. Eu vendo artesanato que a gente
traz lá de Pernambuco, corro atrás de uma coisinha aqui, outra ali pra
sobreviver [...] Outros estão se virando por aí (PANKARARU, 2017).
Ao buscarem o acesso ao mercado de trabalho estão sujeitos, qua-
se sempre, a terem condições inferiores, inclusive as várias formas de
trabalho escravo (FRANÇA, 2008). Assim, ao procurar o mercado de
trabalho, “os índios são vistos como preguiçosos e propensos ao furto,
sujos e ignorantes” (MELLATI, 1967 apud SILVA, 2010, p. 152). A so-
ciedade, por sua vez, cria essas barreiras preconceituosas pelos equívo-
cos construídos desde o período colonial, especialmente aquela de que as
culturas indígenas são atrasadas, sem lhes dar a liberdade de transitarem
em outras formas culturais, congelando assim suas culturas (FREIRE,
2000), sem notar que as identidades estão se transformando constante-
mente (HALL, 1992).
Assim, os Pankararu estariam construindo suas próprias iden-
tidades, visto que toda identidade é construída a partir da negação de
outra (LÉVI-STRAUSS, 2012). Todavia, como pontua Sahlins (1977,
p. 64), “não podemos subestimar o poder que os povos indígenas têm
de integrar culturalmente as forças irresistíveis do sistema mundial”.
Ao falar em apropriação, estamos chamando a atenção para as trans-
formações inerentes à vida e à cultura dos Pankararu, ao se mudarem
para outras terras que não as suas, e transformarem esses novos lugares
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 193
em seu novo lugar. Assim, esses indígenas não estariam perdendo suas
tradições culturais, mas reinventando novas formas de viver, já que as
identidades estão sempre em construção, como enfatiza Hall:
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tem-
po, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente
na consciência no momento do nascimento. Ela permanece sempre
incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”
(HALL, 2006, p. 38).
Em meio às transformações provocadas pelo tempo, os Panka-
raru vivem o paradoxo entre a manutenção de suas tradições culturais
e as novas formas de viver e se relacionar nas grandes cidades. Para
que ocorra a garantia de seu modo de vida, os Pankararu entendem
que é necessário ter as terras devidamente demarcadas no Tocantins.
É possível considerar que essa demarcação se tornou uma das maio-
res problemáticas para essa população indígena. Os Pankararu abriram
um processo judicial em 2001 junto ao Ministério Público Federal, no
Tocantins, para demarcação da terra ou reserva indígena Pankararu e
aguardam desde então. Genildo Pankararu relatou que a ausência da
terra dificulta as práticas rituais indígenas:
Como vamos fazer o Toré e invocar os Encantados? Se a gente fizer aqui
na rua, vão achar que é macumbaria, feitiçaria. E outra coisa, com a
terra vamos ter mais união. Tem Pankararu espalhado pra todo canto, é
aqui, é em Figueirópolis, Goiânia, Palmas [...] Estamos se [sic] perden-
do [...] porque estamos buscando outras formas de viver e não é fácil.
Estamos dentro dos costumes do homem branco, não temos um local
pra expressar nossa cultura. Só temos mais controle sobre nossa cultura
e sobre nosso povo quando temos terra. A nossa referência chama-se
terra (PANKARARU, 2017).
Os discursos anteriores enfatizados pelos indígenas retratam
o enfraquecimento de algumas práticas culturais dos Pankararu, jus-
tamente pela ausência das terras. Isso ocasiona, ainda, com o passar
do tempo, o risco do esquecimento, apagamento e silenciamento
(BARTH, 1995) de certas formas culturais desses indígenas, especial-
mente dos existentes no Tocantins, visto que há novas experiências e
práticas culturais, outras interações sociais e, assim, constantes trans-
194 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
Considerações finais
A história e, consequentemente, a etnografia, nunca chegam ao
fim, visto que é apenas o começo de uma jornada desses nativos indíge-
nas. Com isso, poderão surgir, quiçá, novas perspectivas. Porquanto, é
nos centros urbanos de Gurupi e Figueirópolis, sul do Tocantins, que os
Pankararu fazem história e são resistentes ao tempo, aos preconceitos, ao
desemprego, à marginalização dos centros urbanos, e estão, infelizmente,
diante do esquecimento da sociedade e do estado tocantinense.
Ao mesmo tempo que os Pankararu do Tocantins possuem uma
diversidade cultural graças às novas apropriações que eles realizam, há
sinais diacríticos (elementos simbólicos) presentes nos novos modos de
viver desses indígenas, que os difere dos grupos com os quais estão em
contato. Isso nos faz compreender que a globalização e o capitalismo não
estão destruindo ou homogeneizando as culturas, e, sim, gerando uma
multiplicidade de novas formas culturais (SAHLINS, 1977).
Os indígenas, como os Pankararu, continuam a nos ensinar sobre
diversidade, convivência, direitos, igualdade e, sobretudo, que as identi-
dades continuam em plena transformação e ressignificação, nunca estáti-
cas, como quer o senso comum. Só precisamos saber/aprender a ouvi-los.
REFERÊNCIAS
“O problema canoeiro”
Todas as populações indígenas sofreram as pressões da ocu-
pação de Goiás desde o século XVIII. Algumas tiveram um contato
menos violento, outras mais, mas, de modo geral, independente-
mente de como este se deu, os efeitos foram bastante semelhantes:
servidão, desocupação dos territórios tribais e morte por guerras
ou epidemias.
Goiás, na segunda metade do século XIX, tem por caracte-
rística marcante o “recrudescimento de violências entre índios e
brancos” (ROCHA, 1998, p. 55) frente à expansão da pecuária. Aos
indígenas, diante da diminuição de seus territórios, restavam duas
alternativas: a resistência ou a fuga para lugares mais distantes.
Rocha (1998, p. 36) afirma que, entre todos os grupos indí-
genas de Goiás, os Avá-Canoeiro eram os mais temidos, chegando a
ameaçar a ocupação em extensas áreas. A história das relações entre
os Avá-Canoeiro e os colonizadores é semelhante a vários outros
(des)encontros interétnicos: “é a história da dominação marcada
pela violência e pelo esbulho dos territórios tribais de várias socie-
dades indígenas” (PEDROSO, 1994, p. 53).
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 205
Os presídios do Sertão
Para conter o “problema dos Canoeiro” foram utilizadas expedi-
ções punitivas oficiais ou não. A criação de bandeiras para perseguir os
indígenas era constante, contando com até duzentas praças (MEMÓ-
RIAS GOIANAS 3, 1986, p. 74-75), número que pode ser considerado
dilatado diante dos inúmeros registros existentes quanto à insuficiência
numérica da força pública da província. Entretanto, os resultados espe-
rados foram pífios, permanecendo a população do Sertão sem “nenhu-
ma segurança, e quase nenhuma esperança há para estes desgraçados
habitantes”, conforme palavras de Luiz Gonzaga de Camargo Fleury,
em 1838 (MEMÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 111).
Além das bandeiras oficiais, existiam também aquelas que cor-
riam por conta de particulares, com autorização do governo, inclusive
com a utilização de índios aldeados, “amigos”, como os Apinagés (ME-
MÓRIAS GOIANAS 3, 1986, p. 113); e, provavelmente, muitas outras
aconteceram sem que as autoridades fossem comunicadas.
Foram várias as ofensivas contra os Avá-Canoeiro, sob o pretexto
de proteger, ou revidar algum “ataque”, o que legitimava as ofensivas
dos não indígenas. Em 1839, o presidente de Província, D. José de
Povos e saberes indígenas e afrodiaspóricos 209
Considerações finais
Os documentos investigados são pouco precisos quanto à forma
de contato entre a população dos presídios com os povos indígenas
que os circundavam, muito em função do “Regulamento das Missões”,
que preconizava o convívio pacífico. Marta Amoroso (2014, p. 49), ao
descrever as práticas usuais nas colônias militares de Minas, destaca
o controle armado e o sequestro das crianças indígenas. O controle
armado fica evidente diante do “medo da farda e da clavina”, e, sobre
o sequestro de crianças, a documentação consultada não nos permite
afirmar sua existência nos presídios goianos.
Hugo de Carvalho Ramos, em seu Tropas e boiadas (1984), nos
indica os caminhos dessa reflexão: “Eram sempre histórias antigas, das
passadas eras do Império e Presídios do Araguaia [...] narrações da vida
à beira do rio, proezas de caça e pesca, combates e matanças dos índios
canoeiros, caiapós e xavantes [...]” (RAMOS, 1984, p. 48).
A conquista dos territórios dos Avá-Canoeiros, especialmente
o Sertão de Amaro Leite, foi possível graças ao respaldo ideológico
à conquista: a suposta fertilidade e riqueza dos terrenos, a teoria da
origem miscigenada dos Avá-Canoeiro, e a crença na incapacidade de
serem “civilizados”, são os fatores que, de certa forma, os excluía da
política indigenista.
216 Ana Lúcia Nunes de Sousa, Poliene Soares dos Santos Bicalho e Robson Pereira Mendonça (Orgs.)
REFERÊNCIAS