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Organizadoras:

Chalini Torquato Gonçalves de Barros


Fernanda Ariane Silva Carrera

mídia e
DIVERSIDADE
CAMINHOS PARA REFLEXÃO E RESISTÊNCIA
A Editora Xeroca! é fruto do Coletivo COMjunto de
comunicadores sociais. Carrega consigo a principal bandeira
levantada pelo coletivo: a Democratização da Comunicação.
Possibilitando o compartilhamento de ideias, de pesquisas e de
diversos pontos de vista através de publicações impressas e
virtuais, com a linha editorial voltada para a desconstrução das
relações opressoras da sociedade. Foge da lógica do lucro, tendo
como prioridade a circulação e o acesso. A Xeroca! é imperativo
de reprodução.

Publicar livros que possam promover o debate crítico


sobre a sociedade, cultura, educação e comunicação,
estimulando à leitura e à produção.

Cecília Bandeira Juliana Terra

Delosmar Magalhães Mayra Medeiros

Isa Paula Morais


mídia e

Editora Xeroca!
João Pessoa
2018
Capa
Priscila Krüger

Diagramação
Priscila Krüger

Editoração
Janaine Aires

O trabalho Midia e Diversidade organizado por Chalini


Torquato e Fernanda Carrera está licenciado com uma
Licença Creative Commons - Atribuição-CompartilhaIgual 4.0
Internacional.

Os dados e as informações contidas nos artigos reunidos


nesta obra são de responsabilidade de seus respectivos autores.
À
Desenhamos o mundo
Com as mãos em punho
Cerramos o vento, as nuvens
Desdobramos os cabelos enrolados pelo tempo
E abrimos um caminho
Resistência é a palavra, a vez, a voz
Abertura das portas invioláveis
Com as chaves de dentro
Seja na floresta Amazônica, na África
Ou em nossos sentimentos oceânicos
Atravessados de esperança
Tocamos a terra como quem ama
com os pés dos índios, negros, todos
juntos
Uma ciranda
Na dança forte de fazer chuva
Na coragem de respirar, florescer
Por uma América Latina com as veias abertas
E o coração pulsante em todas as cores, sexos, raças,
sonhos
Ser
Somos
Um só
A diversidade.

Michelle Ferret | Rio Grande do Norte


Introdução 10

Políticas Culturais e diversidade 19


Nizia Villaça

Comunicação e Diversidade Étnico-racial:


um olhar para leis de mídia na américa
latina 44
Paulo Victor Mello

Quando a mídia pauta a transexualidade:


abordagens controladas de contra-
discursos 68
Denise Mantovani e Viviane Freitas

Conflitos do popular sobre ser negro:


identidades, narrativas e processos 98
Ana Clara Gomes Costa

Imposições midiáticas, pressões sociais,


angústias pessoais: convenções corporais e
o medo de envelhecer 113
Mônica Cristine Fort, Ivânia Skura e Cristina
Brahm Cassel Brisolara

A representação de pessoas trans na


publicidade: um estudo de recepção 142
Renata Barreto Malta, Gardênia Santana de Oliveira e
Nilson Dias Bezerra Netto

Mulheres negras empoderadas: uma


análise crítica sobre representatividade e
consumo no recorte de gênero e raça 167
Jéssica de Souza Carneiro e Aluízio Ferreira de Lima

A representatividade LGBT na publicidade


tradicional brasileira: um estudo
quantitativo sobre como o público percebeu
a campanha publicitária ‘casais’, de o
boticário 191
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte
da Silva
Os ganhos para a representatividade lgbt a
partir das campanhas love wins e
pride do facebook 222
João Paulo Saconi e Leonardo Botelho Dória

Jornalismo, gênero e religiosidades:


produção e disputa de sentidos no discurso
dos leitores 240
Pâmela Caroline Stocker

Representações de mulheres muçulmanas


no jornalismo brasileiro 264
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquíria Michela John

Telenovela, representação e pessoa


com deficiência 293
Bruna Rocha Silveira

Limanthamerepresenta: cultura de fãs e


representatividade lésbica na
telenovela malhação 317
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia
Cavalcanti

Homens, brancos e jovens: um panorama


das (in) visibilidades nas representações de
LGBTS em telenovelas da rede globo,
entre 1970 e 2013 343
Fernanda Nascimento da Silva

Engajamentos e hegemonias midiáticas:


percepções acerca de Rupaul’s Drag Race
357
Lucas Bragança da Fonseca, Edgard Rebouças e Rafael
Bellan Rodrigues de Souza

A falta de visibilidade da mulher gorda na tv


brasileira: um estudo de caso sobre abigail,
personagem da telenovela
A Força Do Querer 384
Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta
Alves da Silva
Representação negra nos desenhos
animados infantis no brasil pós-colonial
411
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach

“O mais profundo é a pele”: perspectivas


teóricas sobre um coletivo chamado Flsh
Mag 431
Diego de Souza Cotta

O olhar Queer de Zanele Muholi:


repensando o imaginário da trabalhadora
doméstica através da fotografia 451
Thiago Rufino da Costa

Mulheres nos muros de Belém do Pará:


os grafites de Cely Feliz 472
Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

Media e produção de sentidos: as famílias


homoafetivas no portal o globo 494
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal Lage
A agenda da representatividade no campo midiático vem
aumentando nos últimos anos, sobretudo pelas possibilidades
tecnológicas para ampliação das vozes insatisfeitas e questionadoras.
Estas, historicamente emudecidas, invisibilizadas e marginalizadas,
conseguem por meio de novos dispositivos técnicos expor a
inadequação da representação de si mesmas em relação àquelas
imagens que estampam normativamente os diversos
meios e veículos de comunicação. Amparadas pelos artifícios da
cibercultura e da potência fortalecida dos movimentos sociais, estas
vozes reivindicam para si o direito à comunicação de suas narrativas,
suas vivências e seus corpos, apropriando-se destes recursos para
tensionar padrões de experiência e sistemas de poder anteriormente
centralizados nos meios de massa.

A aparência de um protagonismo na produção midiática, em


contato com investigações e pesquisas qualitativas e quantitativas a
respeito dos indivíduos consumidores de conteúdo, muitas vezes
pode camuflar a simples adequação ao caráter de consumidor, numa
inclusão artificial que se apropria de suas demandas por um viés
de marketing de causa. Por mais que novas narrativas entrem em
disputa, mesmo nas produções midiáticas tradicionais, as
implicações para as escolhas imagéticas de representação ainda
parecem estar subjugadas a padrões de estereotipia e padronização
características de setores tão concentrados na lógica de mercado que
Introdução

prejudicam a percepção sobre direitos de cidadania em detrimento


de maiores índices de audiência. Nesse sentido, faz-se necessário um
aprofundamento crítico das discussões sobre
representatividade e comunicação em suas mais diversas
manifestações profissionais, como na prática publicitária,
jornalística, ficção e entretenimento, buscando compreender os
processos e os sentidos que permeiam suas escolhas discursivas.

De tal modo, faz-se necessário ampliar o debate sobre os


lugares de fala; os saberes complexos; as diversas
experiências e vivências; as responsabilidades sociais da área da
comunicação e da mídia, uma vez que em seu seio profissional reside
uma constante negociação entre interesses mercadológicos; o
interesse público e o reconhecimento do poder de mediação para
imagens; influências de comportamentos; e hábitos de um corpo
sociocultural.

As diversas narrativas precisam disputar espaço também nas


produções acadêmicas e mostrar qual a sua versão dos fenômenos
sócio-midiáticos, sobretudo no que diz respeito às diversas
alteridades, a exemplo de debates acerca de identidade de gênero,
problematizando as noções de feminino e masculino, dos gêneros
não-binários e da transgeneridade; das questões
raciais e étnicas, e seus reflexos nos debates de classe; suas
interseccionalidades; das problemáticas das pessoas com deficiência;
dos padrões do corpo e também do envelhecimento e suas relações
com as subjetividades e reconhecimentos de si e percepção do outro,
compreendendo seus embates, suas lutas e suas demandas de
representação midiática.

Reconhecer a prioridade deste debate no âmbito


acadêmico é, não apenas, refletir sua merecida centralidade na
sociabilidade cotidiana, sejam nos espaços virtuais ou físicos, entre
os mais diversos grupos de sujeitos, mas questionar também sua
apropriação pelo mercado, a inadequação das leis de mídia para
acomodar as demandas da diversidade e, sobretudo, entender quais
Introdução

contribuições a academia deve trazer para a compreensão desses


fenômenos na contemporaneidade.

Para abrir as discussões nesta obra, o capítulo “Políticas


culturais e diversidade” de Nízia Villaça apresenta as variadas
maneiras com que a periferia é retratada na negociação conflituosa
com a mídia e a indústria cultural – ora de maneira criativa, ora
criminalizando-a –, oferecendo, ainda, uma interessante reflexão
sobre a complementaridade de aspectos econômicos e culturais do
desenvolvimento sustentável, pensando a relação entre diversidade
cultural e gestão da cultura, através da inclusão das diferenças.

As políticas também são tema do capítulo “Comunicação e


Diversidade Étnico-racial: um olhar para leis de mídia na
América Latina” de Paulo Victor Mello. Nele, é feito o estudo das
legislações de Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador e Uruguai,
para entender como está contemplada a diversidade étnico-racial,
sob os eixos representação, produção, propriedade e controle social.

A questão do poder e do controle, sobretudo no campo


midiático, também é abordada no capítulo “Quando a mídia
pauta a transexualidade: abordagens controladas de
contra-discursos”, de Denise Mantovani e Viviane Freitas.
Analisando o campo jornalístico e as abordagens controladas dos
discursos que escapam do padrão dominante, as autoras observam
como se manifestam as desigualdades nas representações das
sexualidades LGBT+ em geral e, especificamente, os
enquadramentos silenciadores em direção à transexualidade.

Em “Conflitos do popular sobre ser negro:


identidades, narrativas e processos”, de Ana Clara Gomes
Costa, também são discutidas as tensões entre discursos midiáticos e
as narrativas subjetivas da vivência diária, que aqui se manifestam na
identidade negra. Em um estudo sobre essa constante negociação e
seus impactos para a subjetividade do sujeito negro, a autora
identifica as nuances dos processos de construção de si, que se
Introdução

legitimam interna e externamente.

Mônica Cristine Fort, Ivânia Scura e Cristina Brahm Cassel


Brisolara trazem em seu capítulo “Imposições midiáticas,
pressões sociais, angústias pessoais: convenções corporais
e o medo de envelhecer” uma reflexão sobre a exaltação do corpo
jovem e magro relacionado a valores sociais, como indicativos de
beleza e de sucesso, e a uma imagem corporal feminina limitadora e
quase compulsória, retroalimentada pela mídia.

A questão de gênero passa, com o texto “A representação


de pessoas trans na publicidade: um estudo de recepção” de
Renata Barreto Malta, Gardênia Santana de Oliveira e Nilson Dias
Bezerra Netto, a direcionar-se para uma pesquisa sobre vídeos
publicitários protagonizados por pessoas trans. Neste capítulo as
autoras e o autor se propõem a extrapolar o olhar analista acadêmico,
permitindo que essas identidades, consideradas transgressoras,
opinem sobre como se sentem ou não representadas ao fazerem parte
das relações de consumo que estruturam a sociedade.

O consumo também é pauta da abordagem analítica de Jéssica


de Souza Carneiro e Aluízio Ferreira de Lima, no capítulo
“Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça”.
Com uma discussão importante sobre o conceito de empoderamento,
os autores traçam uma articulação entre as representações
publicitárias das mulheres negras e os regimes de poder discutidos
pelas perspectivas críticas feministas, observando como o consumo
pode revelar traços discursivos dos processos identitários de uma
época.

Ainda sobre consumo, caminha-se para o texto “A


representatividade LGBT na publicidade tradicional
brasileira: um estudo quantitativo sobre como o público
percebeu a campanha publicitária ‘Casais’, de O Boticário”
de Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da
Silva, cuja pesquisa quantitativa não-probabilística é realizada com
Introdução

500 entrevistados no sentido de investigar as percepções de homens


e mulheres sobre a representatividade LGBT+ na mídia tradicional,
considerando, inclusive, a variável religião, por se tratar de uma
campanha que impulsionou um movimento de boicote à marca
incentivada pelo pastor evangélico Silas Malafaia.

A questão da representatividade midiática dos sujeitos LGBT+


também é a problemática apresentada no capítulo “Os ganhos
para a representatividade LGBT a partir das
campanhas Love Wins e Pride do Facebook”, de João Paulo
Saconi e Leonardo Botelho Dória. Analisando duas campanhas
voltadas a esse público, os autores destacam as repercussões, os
engajamentos, as ações e os desvios que se manifestam em meio a
estas iniciativas, ressaltando os impactos destes discursos à
construção das subjetividades LGBT+.

No capítulo de Pâmela Caroline Stocker, “Jornalismo,


gênero e religiosidades: produção e disputa de sentidos no
discurso dos leitores”, os discursos e suas produções de sentido
são igualmente objeto de análise, mas ressaltando os tensionamentos
entre religião e gênero manifestados nos comentários de leitores em
fanpages de veículos jornalísticos. Construindo núcleos de sentido a
partir deste escrutínio, a autora evidencia as disputas de significação
que envolvem a superfície discursiva sobre o tema.

Em seguida, Kerolaine Rinaldi Batista e Valquíria Michela


John trazem, em seu capítulo “Representações de mulheres
muçulmanas no jornalismo brasileiro”, uma análise de textos
produzidos pelos veículos online Folha de S. Paulo e G1 no que se
refere a mulheres da fé islâmica, problematizando estereótipos de
opressão e preconceito ao serem identificadas muçulmanas.

Estudando conteúdo televisivo, por sua vez, Bruna Rocha


Silveira traz sua pesquisa na seção “Telenovela, representação e
pessoa com deficiência” em que realiza um levantamento de
fôlego da representação deste grupo social nas telenovelas
brasileiras, de 1965 a 2010, observando e questionando a forma como
Introdução

este grupo é tratado ainda com segregação, estereótipos, capacitismo


e falta de inclusão.

Também com objeto de estudo nas telenovelas, Cecília


Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti dedicam seu
texto “LimanthaMeRepresenta: Cultura de fãs e
representatividade lésbica na telenovela Malhação” a
analisar como as identidades sexuais e a questão da
representatividade possuem um papel central na construção de
fandoms. A questão é investigada a partir do fandom do casal
Limantha (Lica e Samantha), apresentado na 25a temporada da
telenovela adolescente Malhação, analisando como fãs lésbicas se
sentiram motivadas a defender o carismático casal fazendo uso de
diferentes práticas ativistas.

Fernanda Nascimento da Silva também se dedica a estudar


telenovela, mas numa perspectiva histórica, em “Homens,
brancos e jovens: um panorama das (in) visibilidades nas
representações de LGBTs em telenovelas da Rede Globo,
entre 1970 e 2013”. No capítulo, a autora realiza um cruzamento
de dados advindos da memória televisiva e de seus personagens
LGBT+, articulando seu olhar com uma perspectiva teórica que
ressalta as problemáticas de classe, gênero e discriminação.

O estudo crítico sobre produtos de entretenimento continua


com o capítulo de Lucas Bragança da Fonseca, Edgard Rebouças e
Rafael Bellan Rodrigues de Souza: “Engajamentos e hegemonias
midiáticas: um olhar sob Rupaul’s Drag Race”. Nele, os
autores tentam compreender as esferas produtivas das 12
temporadas do programa, cruzando estes resultados com os efeitos
de sentido manifestados pela audiência em páginas e grupos do
Facebook. Com essa análise minuciosa, tentam identificar traços
hegemônicos ou contra-hegemônicos nas escolhas discursivas e
midiáticas do programa.
Questões de gênero e dos padrões de beleza vigentes voltam
Introdução

para a pauta de discussão, agora sobre a TV brasileira, com o capítulo


“A falta de visibilidade da mulher gorda na TV brasileira:
um estudo de caso sobre Abigail, personagem da
telenovela A Força do Querer” de Ethiene Ribeiro Fonseca e
Mayara Martins da Quinta Alves da Silva. No texto, as autoras
dedicam-se a um estudo de caso qualitativo analisando como se dá a
visibilidade da mulher gorda no conteúdo televisivo, especialmente
quando a narrativa envolvendo a personagem circula
prioritariamente em torno de sua gordura corporal, ou seja,
tratando-a de forma fragmentada e tematizada.

Os produtos infantis também não escapam da análise da


representação midiática das minorias. O texto “Representação
negra nos desenhos animados infantis no Brasil pós-
colonial”, de Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz
Holzbach, propõe exatamente esse percurso, ao realizar um estudo
sobre a raça nas animações brasileiras a partir de um panorama entre
formas de representação da negritude em desenhos animados
clássicos e recentes.

No capítulo de Diego de Souza Cotta, os agenciamentos


midiáticos são analisados agora sob o viés da autorrepresentação e
das interações em espaços virtuais de sociabilidade. Em “O mais
profundo é a pele”: perspectivas teóricas sobre um coletivo
chamado Flsh Mag”, o autor observa a construção de corpos
hegemônicos e contra-hegemônicos nestes lugares, discutindo sobre
o papel das interseccionalidades na produção do desejo.

Como um traço discursivo e midiatizado que impacta na


construção das subjetividades, o desejo continua a ser analisado no
capítulo “O olhar queer de Zanele Muholi: repensando o
imaginário da trabalhadora doméstica através da
fotografia”, de Thiago Rufino da Costa. O pesquisador realiza uma
leitura de fotografias da artista sul africana Zanele Muholi,
identificando, a partir de uma perspectiva queer, marcas de raça,
gênero e sexualidade importantes para o contexto sociopolítico
Introdução

africano.

Em seguida, o caminho de reflexão sobre diversidade nos leva


ao Norte do Brasil com o texto “Mulheres nos muros de Belém
do Pará: os grafites de Cely Feliz” de Camille Nascimento da
Silva Pinto e Ivânia dos Santos Neves, que se propõem a estudar os
discursos sobre mulheres indígenas e não indígenas, produzidos nas
grafitagens da capital do Pará. Para isso, as autoras tomam o método
arqueogenealógico de Michel Foucault, a partir de seu entendimento
sobre a história descontínua, para compreender a movimentação
histórica das memórias indígenas que emergem nos grafites da Cely
Feliz, artista que dá especial atenção à importância dos povos
indígenas na região amazônica, enfatizando a diversidade étnica
local.

Para finalizar, a contribuição a esta obra de Elias Santos Serejo


e Danila Gentil Rodriguez Cal Lage, intitulada “Media e produção
de sentidos: as famílias homoafetivas no portal O Globo”,
traz um estudo dedicado a análise de discurso na perspectiva dos
estudos sobre jornalismo, observando que apesar dos esforços em
lidar com pautas sensíveis, ainda há equívocos consideráveis no trato
com as famílias homoafetivas.

Sendo assim, perpassando todas essas pautas de fundamental


discussão, o livro Mídia e Diversidade: caminhos para
reflexão e resistência se propôs a reunir contribuições de autores
e autoras que buscassem representar uma ampla gama de visões e
suas pesquisas na área. Houve um esforço no sentido de selecionar
autores e objetos que representassem de fato o tema da diversidade
nas questões de gênero, étnica, etária, localização geográfica, na
medida do possível. Com isso, o objetivo deste projeto se manteve ao
reunir perspectivas teórico-científicas e ensaísticas de estudos
multidisciplinares a respeito das relações entre as mediações
tecnológicas, seus processos e as demandas de representatividade
contemporâneas, tendo como recorte as minorias e suas questões de
Introdução

representação.

Esta obra foi realizada pelas organizadoras e pela Editora


Xeroca! para ser um e-book de download gratuito, por acreditarmos
que este tema precisa ser acessível a todos e todas. Trata-se de uma
contribuição para os estudos da diversidade e do campo midiático,
em sua relação com a sociedade, no sentido de fortalecer os debates
sociais e políticos, aprofundando e ampliando as percepções sobre
práticas mais inclusivas, direitos de cidadania e ações afirmativas
nos âmbitos acadêmico, midiático e profissional. Parabenizamos e
agradecemos a todos os autores e autoras por acreditarem neste
projeto.

Chalini Torquato Gonçalves de Barros | ECO/UFRJ


Fernanda Ariane Silva Carrera | ECO/UFRJ e PPgEM/UFRN
1 Políticas culturais e diversidade

O século XIX instaura o conceito canônico de cultura e a


disciplina que constitui o seu objeto: a antropologia cultural ou
etnologia. No seu sentido etnográfico mais amplo, o termo
designa este todo complexo que compreende simultaneamente o
saber, as crenças, as artes, as leis e os costumes, assim como toda
a outra faculdade ou hábito adquirido pelo homem enquanto
membro de uma sociedade. Os modelos culturais registram
diferenças e se constroem discursivamente em torno das ideias
de sangue, língua, economia, religião etc. Nesse sentido, o
imperialismo cultural é uma violência simbólica que se apóia
sobre uma relação de comunicação que visa a extorquir a
submissão, cuja particularidade consiste em universalizar os
particularismos ligados à história singular.

O modelo “evolucionista” da cultura remete a uma


sucessão de estágios a serem ultrapassados. O modelo
“difusionista”, complementarmente, fala da passagem de uma
cultura a outra, e a mais adiantada seria aquela com capacidade
para difundir seus conteúdos, estabelecendo a hierarquia entre
civilizado e selvagem. O modelo “universalista” tem uma longa

história paralela ao desenvolvimento da identidade nacional,


sobretudo com o romantismo.

19
O fim do século XIX coloca a questão da diversidade e
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

analisa a passagem da comunidade à sociedade com a


importância crescente da mídia na era industrial e a subsequente
crise da alta cultura de modelo europeu. Os filósofos se dividem
em criticar a miséria psicológica da massa e, ao mesmo tempo,
em louvar a indústria cultural como um novo farol da civilização.
A sociedade moderna acessa as multidões teleguiadas pelos
políticos, sindicalistas ou jornalistas. Gabriel Tarde discute a
favor de maior diferenciação e autonomia do público que devem
ser consideradas nas políticas culturais. A rigor, o conceito de
bens culturais era considerado por Walter Benjamin, em 1930,
de origem recente, sendo desconhecido na alta Idade Média pelos
clérigos que visavam a aniquilar as produções da Antiguidade.

Instala-se uma tensão entre a temporalidade da cultura e


a da informação no período entre guerras. A aproximação
cultural recorre às mídias lentas, trocas de pessoas, de livros, de
obras artísticas endereçadas às elites, esperando um retorno
sobre o investimento a longo prazo. Por sua vez, a aproximação
informacional privilegia o uso de mídias rápidas, rádio, filme,
imprensa para audiência de massa. A segunda opção era, por
muitos, julgada populista e superficial. A entrada dos Estados
Unidos na guerra marca o surgimento de um dispositivo
radiofônico de propaganda oficial: A Voz da América. A
experiência adquirida do controle da informação e mobilização
das consciências se reinveste, depois do conflito, em novos
modos de governar em tempos de paz. Tal controle será a partir
de então, discutido. O controle de um poder virtual sobre a
opinião pública deveria depender do Estado ou deixar que o
mercado regulasse a política cultural.

Na atualidade, apesar de já ser recorrente o uso da noção


de gestão urbano-cultural, ela vem sendo usada, sobretudo, para
referir-se aos processos de espetacularização, tanto na escala
global, homogeneizando os espaços urbanos do mundo, quanto

20
na local, por uma valorização de estratégias mercadológicas,
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

manipuladas como imagens de marca, visando mais que o


habitante local, ao turista internacional (JACQUES apud
RUBIM; ROCHA, 2010, p. 161-166). Uma geopolítica das
relações culturais se instala.

Nesse sentido são numerosos os casos em que fica patente


a “domesticação da cultura popular” na vida cotidiana,
promovendo imposições e modificações que são afastadas como
indesejáveis aos padrões turísticos internacionais que buscam a
segurança do já conhecido no desconhecido (ESPINHEIRA,
apud, RUBIM; ROCHA, 2010, p. 191-205). Frequentemente, as
políticas culturais tomam partes da periferia como
representações de um todo num realismo inventado. Por
exemplo, o trabalho da Coopa Roca e seu número instável de
membros passa a representar a Rocinha. Mecanismos de
sinédoque proliferam nas notícias midiáticas como estratégia de
uma visibilidade que se torna a meta a atingir.

Cenários temáticos para turista multiplicam-se ligados


aos eventos no campo da cultura, relegando a política a um plano
inferior. Em vez da luta de classe, passa-se à luta de afirmação de
minorias, na sequência do movimento feminista, étnico e
religioso. São lutas fragmentárias e, como se empenham em
teorizar Hardt e Negri (2004) ou John Holloway (2003), com a
despedida das teses do século XIX, as lutas revolucionárias agora
seriam expressão de um neoanarquismo, a negação do poder:
mudar o mundo sem tomar o poder.

A noção de “dominado” foi riscada da cartografia


cognitiva, bem como aquela das relações de força, e isto
acompanhado do conceito de receptor ativo numa heroização
neopopulista do receptor/produtor resistente ao neoliberalismo.
Catedrais teóricas sobre a globalização e a glocalização se
constroem a partir de pesquisas superficiais. Os dispositivos de
produção midiática e cultural se transformam na nova sociedade

21
de controle flexível de que fala Deleuze. A liberação da
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

criatividade do produtor e a soberania absoluta do consumidor


são os mitos fundadores da servidão voluntária. Uma estratégia,
segundo Gilles Deleuze e Félix Guattari (1972), refere-se ao
desejo confinado ao “espaço da miséria”: orientar o desejo para o
grande medo da falta. A ideia de povo significava uma certa
unidade, a ideia de multidão é de multiplicidade, conjunto de
individualidades, jogo aberto de relações, uma multiplicidade,
como afirmam Negri e Hardt (2000). Entramos, segundo os
autores, em uma era pós-colonial e pós-imperialista. O império
se situa nas corporações industriais e financeiras que reduzem os
Estados-nações a instrumento de registro das mercadorias,
dinheiro e populações que colocam em movimento. A destruição
do capital seria, nesse cenário, obra de um movimento global
saído da multidão que, através da lógica das redes, criaria uma
comunidade global nômade. Procura-se em vão uma referência
histórica que situe estes protagonistas. O cidadão global fica,
frequentemente, sem mediação, sem instituição, pensando
global, abstraído do local. Predomina a fascinação pelas novas
tecnologias. Nessa linha, é interessante observar a publicação de
edital pelo Itaú Cultural em que os projetos deveriam narrar
experiências com as comunidades periféricas e não apenas
produzir eventos. Dessa forma, se promove o local num processo
dialógico com o global.

Michel de Certeau (1974), em La culture au pluriel, chama


a atenção para a flutuação dos conceitos no campo da diversidade
cultural. Em nome desta e sua preservação, estados e instituições
internacionais propuseram políticas públicas, nacionais e
regionais. Uma confrontação se instalou em torno da
uniformidade e da diferença na área do pensar. O projeto da
república mercantil universal desenvolveu-se sob o signo do
liberalismo e universalismo dos valores baseados nas luzes; as
lutas pela manutenção da identidade se organizaram contra o
etnocentrismo das colonizações culturais; o espaço fechado do

22
nacional abriu-se para os vetores transnacionais; a filosofia dos
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

serviços públicos alternou com o pragmatismo da concorrência,


havendo a quebra das fronteiras entre a alta-cultura e a cultura
popular (MATTELART, 2007, p. 5).

É preciso considerar a diversidade das populações-alvo


das políticas públicas, pois há uma heterogeneidade de
problemas. Cabe à atividade jornalística sublinhar esse fato. A
relação raça/etnia, por exemplo, não é devidamente contextuada
no estudo da violência. Em 2002, a ONU proclamou o dia 21 de
maio “Dia Mundial da Diversidade Cultural”. A diversidade do
Brasil e de países da América Latina possui uma dupla matriz. A
primeira faz referência à variedade da miscigenação nesses
países, em virtude das origens raciais, imigrações internacionais
etc. Num segundo viés, a diversidade resulta das lutas pelos
direitos sociais e civis por diferentes grupos rurais e urbanos,
envolvendo questões de gênero, questões etárias e sobre
deficiências etc. Tal cenário exige o reconhecimento das
desigualdades e das diferenças e decorre da crise das sociedades
nacionais homogêneas. As políticas públicas devem também ter
um caráter redistributivo, o que por vezes esbarra nos interesses
das elites. O Estado-nação foi o principal ator da sociedade
industrial. Seu papel foi normatizar, organizar e regulamentar o
trabalho com reflexo na vida das pessoas e criou referenciais
simbólicos de identificação: símbolos, bandeiras etc. (a
comunidade imaginada). O modelo do estado do bem-estar
europeu, no caso brasileiro, contou com políticas de
apadrinhamento. A ordem moderna era vista após a libertação
dos escravos, a Proclamação da República, como formada por um
só povo. A industrialização, por outro lado, foi motor de exclusão
de determinados grupos. Por exemplo, em São Paulo a
industrialização foi mais resultado de políticas de imigração do
que de acesso de negros ao trabalho. O Estado-nação debilitou
muitas políticas e incrementou a relação soberania popular
cidadania/nacionalidade encobrindo as diferenças e as

23
desigualdades. Cultura global e crise nacional criam exigências
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

com a exclusão de alguns grupos. O estado mínimo prega a


desregulamentação, entretanto, após a queda do Muro de Berlim,
em 1989, aumenta o movimento das minorias.

Outra maneira de entender a proliferação das identidades


é a partir das criticas dos pós-modernos e a política da
desconstrução do projeto moderno. Nas duas últimas décadas, o
Brasil experimentou extraordinários momentos de ruptura e
enfrentamento das políticas da modernidade. Movimentos de
resistência versus imposições políticas liberais (Consenso de
Washington). Foram muitas as iniciativas na ordem da
cidadania, da saúde, conferências na ONU para o combate à
desigualdade via negociações. Diversidade, reconhecimento e
distribuição. Não renunciar aos princípios redistributivos do
socialismo. Luta contra preconceitos e heterotipias. Luta pelo
reconhecimento das desigualdades culturais e socioeconômicas
versus apenas o reconhecimento, como é o caso da Agenda
Cultural dos gays.

As indústrias culturais são o cavalo de batalha da


globalização e o calcanhar de Aquiles da diversidade cultural. A
diversidade deve estar associada a qualquer temática,
permeando qualquer tipo de notícia. É necessário que o foco não
seja único, de modo que a imprensa não reproduza estereótipos
e estigmas. Na prática jornalística, é importante a pluralidade
das fontes, bem como a complexidade do tratamento,
apresentando as várias faces de uma notícia. Há que ter cuidado
com as estereotipias vocabulares, conhecimento da realidade e
da legislação. Tais estratégias são por nós sublinhadas no registro
quase sempre simplificado de diversidade periférica.

Em termos de política pública, as manchetes sobre a


virada cultural serviram bem à campanha pelas Olimpíadas de
2016, mas só a consolidação a longo prazo das políticas públicas
recém-iniciadas podem selar a recuperação fluminense. Não

24
basta o boom petrolífero, mas como afirmam os autores André
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

Urani e Fábio Giambiagi no livro Rio, a hora da virada (URANI;


GIAMBIAGI, 2011), só agora começa a repercussão no ânimo
popular e empresarial das políticas de pacificação com o controle
do narcotráfico e das milícias. É interessante que as iniciativas
arquitetônicas na cidade, como as auto-estradas no Recreio e a
remoção de pequenos comércios da região, têm um quê do
espírito que presidiu ao espírito moderno na época das grandes
avenidas. As questões ligadas à homogeneidade e diferença
devem ser mais bem avaliadas para que as peculiaridades da
cidade não sejam muradas e que as Olimpíadas, o pré-sal e a
polícia pacificadora possam transformar a capital de forma
sustentável.

1.1 Unidade e diferença: o protagonismo periférico

As periferias constituem um potencial de experimentação


tanto para os atores que as constroem como para os habitantes
que as vivem e os pesquisadores que as analisam, ameaçando
esquemas de referência anteriores e criando novas formas e
novas normas. Podem desconstruir o olhar clássico lançado
sobre a cidade. Seu caráter criativo provém do movimento
perpétuo que incita a práticas e a representações renovadas e
conduzem os atores para novos modos de funcionamento,
obrigando os pesquisadores a pensar o espaço fora das categorias
estabelecidas (urbanos versus rural ou, ainda, centro versus
periferia ou margens).

Os humores acadêmicos e jornalísticos a propósito da


relação centro/periferia vêm sendo expressos de variadas
maneiras. Por vezes, afirma-se euforicamente a criatividade
periférica e a boa intenção de dar-lhes a voz, de tirá-los do
anonimato; temos também a recorrente criminalização da
periferia, bem como assistimos à crescente produção de seu
autorretrato. Ferréz, autor periférico, em diversas ocasiões,

25
manifesta-se contra as negociações com a mídia e a indústria
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

cultural. Em Terra da maldade (FERRÉZ apud OLIVEIRA,


2007, pp. 78-84), da coletânea Cenas da favela, o autor dirige-se
aos seus iguais, seus manos, aponta diferenças e hiatos próprios
da exclusão, opondo-se à indústria da moda e do consumo: “[...]
você, minha mana de guerra, não tem o vestido importado, do
costureiro fresco, você, minha mana, não tem o par de sapatos
mais caro que a pretensão de salário do seu marido [...]”
(FERRÉZ apud OLIVEIRA, 2007, p. 80). Ainda a propósito da
relação de consumo, Ferréz conta aos companheiros que a gente
do Carrefour não faz trabalho social para o Capão, lugar onde
habitam, porque eles não dão retorno, não consomem.

Para discutir a relação centro/periferia, algumas noções


devem ser percorridas sobre a produção do sentido social, da
identidade e da diferença nas suas diversas formas e relações.
Kathryn Woodward (apud SILVA, 2009, pp. 7-72) escreve texto
importante percorrendo as noções de representação, identidade,
crise da identidade, subjetividade, subjetivação, encaminhando a
conversa em direção à questão da singularidade. Deixa bem claro
que a representação de qualquer objeto ou pessoa se baseia em
oposições frequentemente radicais e de caráter essencialista, em
cuja construção ela busca apontar os artifícios. Entre eles cita os
processos de naturalização e neutralização com a perda do viés
histórico da construção ideológica. Se estabelecermos uma
relação com a antítese centro/periferia, assistimos a
essencialização da norma modelar central com o bem a ser
seguido e a fixação da periferia no lugar rebaixado do mal a ser
extirpado. Essa seria a posição mais simplória sobre o assunto. O
que acontece, entretanto, segundo a autora em seu discurso
sobre a identidade e diferença como estruturante do sentido é
que ela constata a crise da identidade e, portanto, da
representação da unidade e aponta algumas causas na
globalização, na hiperinformação que torna as oposições menos
claras e, se pudermos dizer, mais híbridas. A antropóloga Mary

26
Douglas argumenta que a marcação da diferença é a base da
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

cultura porque as coisas – e as pessoas – ganham sentido por


meio da atribuição de diferentes posições em um sistema
classificatório que nas relações sociais estabelecem desse modo
as formas de diferenças: a simbólica e a social. Se pensarmos na
oposição sagrado/profano os fetiches, máscaras e tótens da
sociedade primitiva eram sagrados por contribuírem para a
unificação cultural. As diferentes culturas possuem diferentes
sistemas classificatórios. Sobre esse aspecto, em cima dessa
concepção de cultura, Contardo Calligaris (2011, p. E8) escreve
interessante crônica sobre o livro de Samuel Huntington (1993)
afirmando que na política global os conflitos entre nações se
darão em virtude dos grupos de civilizações diferentes. Opina o
autor que as oposições são mais complexas do que esta versão e
o próprio indivíduo é conflituoso internamente e a civilização
compreende a arte de viver a diferença.

Já os termos de identidade e subjetividade são às vezes


utilizados de formas intercambiáveis. As posições que
assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas
identidades, por outro lado, a subjetividade inclui as dimensões
inconscientes do “eu” o que implica a existência de contradições.
O conceito de subjetividade permite uma exploração dos
sentimentos que estão envolvidos no processo de produção, de
identidade e do investimento pessoal que fazemos em posições
específicas de identidade. A identidade aponta
preferencialmente para os papéis sociais a serem preenchidos,
embora, no presente, a assunção de uma identidade não impeça
a pluralidade de outros investimentos antes considerados
contraditórios. Segundo Althusser (1971, p. 59), “interpelação” é
o termo utilizado para explicar a forma pela qual os indivíduos
são recrutados para ocupar certas posições do sujeito. Para
Althusser, o sujeito não é a mesma coisa que a pessoa humana,
mas uma categoria simbolicamente construída. Os fatores
materiais não podem, como o marxismo, explicar totalmente o

27
investimento que os sujeitos fazem em posições de identidade.
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

Os sujeitos também são recrutados no nível do inconsciente,


afirma o autor num viés freudiano e lacaniano. Os desejos
reprimidos acabam encontrando uma forma de expressão
através de sonhos e enganos (lapsos freudianos). O sujeito é
estruturado como linguagem segundo Lacan reformulando as
teorias freudianas ao enfatizar o simbólico e a linguagem no
desenvolvimento da identidade.

A crise da representação, como a crise da identidade, faz


pensar nas possibilidades da real representatividade dos
indivíduos e nos leva novamente à periferia, bem como às ideias
de Guattari sobre o caos urbano e as de Deleuze sobre
singularidade. Parece-me que a questão desenvolvida por tais
autores é a ideia de que o sistema deixa brechas para pontos de
fuga rizomáticos. O estudo de Paola Berenstein Jacques (2003)
ilustra bem o caminho e as possibilidades que se apresentam
para uma novidade periférica que não seja incluída na árvore do
centro, mas prolifere em todas as direções como verdadeiras
ervas daninhas.

1.2 Repaginando a periferia: a mediação fashion

A expressão cultura da periferia é algo que passou a ser


utilizado muito recentemente nos movimentos sociais, nas
pesquisas acadêmicas e na mídia. Desde 1980, a palavra periferia
passou por um intenso processo de metamorfose semântica. Nos
anos 1980 já havia na periferia novos personagens políticos
organizados em torno de diversas atividades. Mesmo assim não
existia na época referência a uma cultura ou arte de periferia.
Morar na periferia, segundo depoimento de Renato Souza de
Almeida, era vergonha (ALMEIDA, 2011, pp. 36-37).

A partir de meados de 1990, com o boom do movimento


hip hop, muda o cenário e até mesmo as classes média e alta se
deixam atrair pela estética periférica. A periferia foi valorizada
28
simbolicamente. No início do terceiro milênio, desenvolve-se a
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

literatura periférica ou literatura marginal, segundo a revista


Caros Amigos. Tais escritores passaram a frequentar programas
televisivos e editoras comerciais. Em São Paulo houve a
organização da Semana de Arte Moderna da Periferia. No
Manifesto nota-se que o sentido da periferia não guarda uma
relação íntima com a distância de algum centro. É mais a
indicação de uma categoria social caracterizada pelos
cruzamentos identitários de suas vivências. Se, por um lado, a
reprodução técnica, segundo Walter Benjamin (1994), acabou
com a aura da obra de arte original, no caso da periferia, por
outro lado, a arte vem misturada com a vida. A Cooperifa, 1 em
São Paulo, promove sarau misturando rappers, poetas de cordel
e declamadores de todo tipo de versos (VICTOR, 2011, p. E4).

Por último, a metamorfose semântica da palavra periferia


também cumpriu um papel importante no fortalecimento de
redes de articulação dos coletivos de diferentes lugares da cidade,
para além de seus bairros de origem. Ao se assumir como um
coletivo de arte periférica, o grupo estabelece uma conexão quase
automática com outros coletivos de outras regiões. E esse é um
aspecto muito apontado pelos próprios coletivos, de que há uma
movimentação cultural mais ampla, para além de uma ou outra
experiência pontual, identificada aí como arte ou cultura de
periferia na cidade. Ou podemos dizer que o conceito de classe
pode ser entendido aqui nos termos em que Michael Hardt e
Antônio Negri (2005) o utilizam para compreender a multidão.
Para além da associação com a classe operária ou a classe
trabalhadora, a multidão é associada a um projeto político
daqueles que estão sob a dominação do capital.

Tais comentários servem para iniciar uma abordagem do


que possa ser mão e contramão na área da moda entre centro e

1Ver vídeo do sarau da Cooperifa em: <www.folha.com/tv>. Acesso em: 12 abr


2011.

29
periferia. A revista L´Officiel (ALVES, 2006, pp. 58-61) em seu
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

primeiro número sugere que a próxima tendência seria a Nova


Austeridade, moda urbana europeia que estaria seduzindo
brasileiros. Interrogada sobre o assunto, pareceu-me que a
afirmação era sem propósito, tendo em vista a tendência
contemporânea à interculturalidade e mesmo o anúncio da
morte da “tendência” e o caminho crescente em direção à
pluralização das identificações propiciada, por exemplo, pelos
editorais em rede. Há, por outro lado, claramente, o movimento
das marcas de buscar nas ruas grande parte de sua
informação/inspiração, notadamente nas culturas que Massimo
Canevacci (2005) chama “eXtremas”, referindo-se às mutações
juvenis nos corpos das metrópoles. É nessa perspectiva que
buscamos pensar a dinâmica instalada entre a criação das marcas
e o capital corporal periférico, conectando consumo e cultura e
refletindo sobre alguns dos caminhos recorrentes neste universo
em tempos de globalização (VILLAÇA, 2007, pp. 18-21).

O trajeto da moda é por nós especialmente focado, embora


as apropriações e as hibridações do centro e da periferia se
desdobrem num largo espectro da produção artística e cultural:
dança, música, cinema e outros. A periferia parece oferecer o viés
diferencial perseguido, dialeticamente, pela estética globalizada.

No universo comunicacional que Muniz Sodré (2006)


nomeia como “social irradiado”, a disseminação das mensagens
entre espaços de absorção transforma o fluxo histórico da vida
social em projeções fantasiosas, numa vasta operação de próteses
(telas, vídeos, máquinas inteligentes, tecnoburocratismo). Ao
velho universo do encadeamento, sobrepõe-se a telerrealidade, a
midiatização, e afrouxam-se os laços identitários diretos de
sociabilidade. De alguma forma, criam-se dois Brasis: o real e o
virtual ou telerreal. É nos interstícios desses dois Brasis,
frequentemente em violento confronto, por causa da disparidade
de condições materiais e de cidadania, que o sistema da moda se

30
insere, e é nessa inserção que nos parece importante observar a
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

mão e a contramão dos contatos realizados.

É no interior dessa dinâmica que o imaginário da moda


progressivamente contamina de homogeneização global os
lugares mais afastados e simultaneamente dota de variedades
locais a linguagem globalizada.

A evolução do conceito de identidade torna-se hoje


sempre mais ligada à passagem da sociedade “industrial” à
sociedade de “consumo”. A partir do início da década de 1970,
segundo Don Slater (2002, p. 186), evidenciou-se que o sistema
fordista de produção aproximava-se do declínio. Custos altos e
grandes riscos. As fábricas especializadas em produzir volumes
enormes de mercadorias padronizadas transformam-se
progressivamente em fábricas (e trabalho) destinadas a
quantidades menores de mercadorias mais personalizadas. O
desenvolvimento do design foi um fator de grande importância,
bem como a computadorização e a robótica que baixaram o custo
da reprogramação da produção para atender ao gosto sempre
mais diversificado. Nesse sistema pós-fordista, cresce a
velocidade das informações entre os pontos de venda e os
fornecedores de materiais. A administração é instantânea, o
controle, maior, o prazo, menor, bem como as perdas de
lucratividade com a manutenção de estoque. Os trabalhadores
taylorizados, que só tomavam conta das máquinas, são
substituídos pelo modelo de recursos humanos que investe na
motivação, criatividade e personalidade à medida que se assume
o caráter empresarial da década de 1980. Enquanto na época
fordista lutava-se entre modelos competitivos de produtos, o
marketing pós-fordista decompõe os mercados e o consumo em
“estilos de vida”, “nichos”, “segmentos de mercado”. Os
mercados não são definidos por amplas estruturas demográficas
e sociais, e, sim, por significados culturais que ligam uma série
de mercadorias e atividades numa imagem coerente. No pós-

31
fordismo, as categorias de estilos de vida culturalmente
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

constituídas substituem as categorias estruturais da sociedade


como classe e gênero, mais associadas ao moderno. As formas de
associação e identidade fundamentadas no trabalho ou na
cidadania perdem interesse, e o espírito crítico-político-
ideológico abre caminho para os semiólogos e os senhores das
práticas discursivas.

Com sua agenda veloz, a moda oferece uma permanente


negociação de novos estilos e nichos de consumo que não se
restringem ao vestuário, mas criam um clima constituído pela
gestualidade e forma do corpo, tom de voz, roupas, discurso,
escolhas no campo do lazer, da comida, da bebida ou do carro etc.
Forma-se o perfil do indivíduo consumidor como estrato a ser
considerado nos processos de subjetivação, tendo em vista o fato
decisivo de que vivemos numa sociedade de consumo pós-
massivo e personalizado.

Como lembra Néstor García Canclini (1999), a


racionalidade econômica de tipo macrossocial não é a única que
modela o consumo. Refere-se, com propriedade, à existência de
uma racionalidade sociopolítica interativa que revela a interação
entre produtores e consumidores, com regras móveis,
influenciando a produção, distribuição e apropriação dos bens.

A moda se espalha pela cidade, ou melhor, pelas cidades,


reorganiza seus espaços, dinamizando-os como bem acentua a
manchete Rio top model (MARRA, 2006, p. 2). A estética da
periferia participa dessa dinâmica, através de comunidades
artesanais que cooperam com os estilistas, como, por exemplo, a
Cooperativa de Trabalho Artesanal e de Costura da Rocinha
(Coopa-Roca). A mídia dá notícias de um trânsito de mão dupla
centro/periferia. O alcance do interesse despertado pela
exposição Estética da periferia: diálogos urgentes, curadoria de
Gringo Cardia, é sublinhado por Heloísa Buarque de Hollanda,
estudiosa do assunto e envolvida com o projeto: “é a cultura da

32
periferia e seu poder de resistência e criatividade artística que
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

vem se firmando como a grande novidade que vai marcar a


cultura do século XXI”.2 Entre 13 de agosto e 16 de setembro de
2007, aconteceu uma grande exposição no Centro Cultural
Banco do Brasil, o projeto “Retalhar”, com a produção de
designers, estilistas e artistas a partir das técnicas artesanais da
Coopa-Roca. Paradoxalmente, Tereza Leal, representante das
cooperativas da Coopa-Roca, dá entrevista em O Globo a respeito
de seus contatos na França acrescentando comentário sobre
aonde chegaria o artesanato periférico com bolsinhas e fuxicos.
A complexidade da questão fica aí patente. Os cruzamentos são
sempre mais numerosos, podendo acontecer de forma feliz ou
infeliz, como bem expressou a dinâmica Daslu/Daspu. O Circo
Voador, no coração da Lapa, vestiu roupa nova para receber a
segunda edição da Bienal Favela Festa, com a participação de
oitocentos artistas ligados às favelas do Rio, com desfiles,
mostras de filmes, teatros etc. Mr. Catra, líder controverso do
funk, afirma que o estilo absorve tudo, tem elementos de todas as
culturas. Para a administradora do Circo, Maria Juçá, os artistas
das favelas cariocas fazem uma espécie de antropofagia cultural,
aproveitando os refugos e devolvendo-os à sociedade em forma
de arte (FREITAS, 2007, p. 1).

Na repaginação da periferia, o circuito da mediação


fashion abre progressivamente seu campo performático
geográfica e simbolicamente, pondo em cena agônica o corpo
hegemônico e as corporeidades pluriformes da periferia.

É preciso conhecer as regras do jogo, as ordens dos


discursos para poder estar “efetivamente” incluído nos novos
tempos. Utilizo o termo “efetivamente” para contrastar o que é
apontado na mídia como inclusão visual que funciona apenas
como jogada de marketing pontual. Essa é a discussão quando se

2 Disponível em: <http://www.mamam.art.br>. Acesso em: 15 jun 2011.

33
trata da fala periférica ou da programação periférica. É inclusão
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

real? A escolha do casting de um figurinista caracteriza inclusão


ou apropriação passageira? Nessa ótica, buscamos a opinião de
comunidades periféricas centradas na questão da moda, nos
reflexos da projeção midiática no seu dia a dia, utilizando como
fonte de informações, entre outras, a comunidade criada no
Orkut intitulada DNA periférico, ouvindo, paralelamente,
especialistas sobre a dinâmica centro/periferia nas metrópoles
contemporâneas e especialistas da análise do discurso.

A revista Piauí,3 que atualmente ganha grande destaque,


seria um bom exemplo do mix centro/periferia de que estamos
falando a propósito da moda. Desdobram-se humoristicamente
em suas páginas, num pacto entre a simplicidade local e a
sofisticação global, matérias sobre boates & baratos & boemia &
semiótica & quadrinhos & pós-modernismo. O nacional e o
internacional; Piauí e Nova York. Uma espécie de Pasquim
globalizado. Hibridizações e piratarias trazem para a pauta a
questão da originalidade da moda nacional em artigo de Daniela
Pinheiro (2007, pp. 34-38). Enfim, a eterna questão da
singularidade e da identidade.

A dinâmica da revista ilustra bem o jornalismo


publicitário e globalizado. As estratégias são velozes na busca da
novidade, na releitura de lugares e saberes. Se o livro impresso
vai acabar, criam imediatamente a festa literária internacional de
Parati em que prêmios “Nobel” se confraternizam com jovens
blogueiros. Verônica Stigger, escritora da nova safra, está na
moda e nem sabe o porquê, conforme ela mesma afirma. Os
pensamentos pops se multiplicam entre todo tipo de recursos,
plágios e “óvulos mexidos”. Não se sabe onde encontrar a opinião
que, frequentemente, se lança no aleatório e no contraditório.
Fica sempre mais clara a importância de conhecer o último

3Revista Piauí. Rio de Janeiro: Alvinegra, junho de 2007. Disponível em:


<http://www.revistapiaui.estadao.com.br/outras-edicoes/sumario/edicao-
9>. Acesso em: 12 nov 2011.

34
programa, a estratégia mais sutil para acompanhar as sugestivas
Ni zi a Vi llaç a
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manchetes “Cinema, guaraná e comunistas; de como a Coca-Cola


comprou Jesus. 4 Com essas poucas referências quero apenas
reafirmar a importância do local inserido no contexto
transnacional e na criatividade das marcas.

Se Canevacci atribui “eXtrema” (CANEVACCI, 2005, p.


37) importância à cultura jovem na metrópole e suas mutações,
o mesmo poderíamos dizer da periferia que, aliás, tem na
juventude a sua tônica. À periferia da violência e da miséria
soma-se a importância atribuída ao corpo periférico, sua
linguagem, suas tiradas, sua gestualidade, capitalizadas pela
globalização que persegue seus signos e ritmos. Para Hermano
Vianna, as próprias exposições internacionais não ficam
completas sem artistas “do resto do mundo”. “As diferenças são
‘conectadas’ por curadores que devem ter algumas das maiores
milhagens aéreas do planeta” (VIANNA, 2004, p. 8).
Confirmando essa tendência, temos na revista de O Globo
(MONTEIRO, 2007, pp. 18-20) a manchete “Favela chique”
sobre a obra batizada de Morrinho em exposição na Bienal de
Veneza e agora objeto de filme a respeito da criativa obra de
meninos favelados do Morro Pereirão. Primeiro, a TV Morrinho,
hoje já firme no mercado; depois, o morrinho turismo que leva
visitantes para o alto do Pereirão para admirar a obra; e ainda a
ONG Morrinho com trabalhos sociais para as crianças. A
maquete da obra foi exposta na Espanha, no Ano do Brasil na
França, na Copa da Cultura na Alemanha e, mais recentemente,
na Bienal de Veneza. E tudo partiu da criatividade de meninos
favelados descoberta pelos publicitários Fábio Gavião e Júlio
Souto. Segundo eles, o Morrinho ainda vai render muitos frutos,
e o desafio é criar produtos e sustentar a criatividade desses
meninos. Tal exemplo no campo da arte se aproxima da dinâmica
da Daspu em relação à produção de moda da ONG Davida ou dos

4Referência a marca de guaraná do Maranhão. Revista Piauí. Rio de Janeiro:


Alvinegra, junho de 2007. p. 10.

35
efeitos estéticos e éticos trazidos pelas meninas funkeiras, por
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

exemplo, no filme Sou feia, mas tô na moda.

Para Canevacci, ao longo dos fluxos móveis, as identidades


– plurais, fragmentárias, disjuntivas – não são mais unitárias:
“[...] ligadas a um sistema produtivo de tipo industrial, a um
sistema reprodutivo de tipo familiar, a um sistema sexual de tipo
monoxissista, a um sistema racial de tipo purista, a um sistema
geracional de tipo biologista” (CANEVACCI, 2005, p. 44). São
intersticiais, navegam no limite, são nômades. Contra os
reducionismos identitários, a diferença surge como prazer de
multiplicar e não como dever a ser uniformizado. A diferença é
nômade, anômica, diaspórica. Remetendo à cultura político-
comunicacional dos anos 1960 e 1980, diz Canevacci que o K
recorrente na contracultura juvenil aludia ao autoritarismo e
tinha entre os cachos de significados remissões críticas à política
da época. Sequencialmente, esse K transita do poder à potência e
anuncia a catástrofe simbólica que se seguirá. Pelo contrário, o X
aponta uma dessimbolização e se associa ao extraterrestre, ao
radical, ao paranormal, ao extasy. X é excesso, e nisso a cultura
juvenil se aproxima da publicidade.

O trânsito do K ao X, segundo Canevacci, atesta (de


maneira densa de estratificações de significados) a passagem da
oposição juvenil do conflito político-social, próprio dos anos
1968-77-89 (que assume o K como concentrado de poder ou de
potência, para desmascarar ou reivindicar, K como domínio do
imperialismo ou como controle no próprio território), aos
conflitos não políticos, comunicacionais, metropolitanos,
conferidos ao X, que incorpora “[...] atravessamentos corporais,
espaciais, linguísticos caracterizados pelo irregular, pelo
incontível, pelo imaterial, pelo extra como além e como
anomalia. O extremo como eXtremo procura ultrapassar esses
códigos e esses sentidos” (CANEVACCI, 2005, p. 48).

36
O que chama a atenção no contemporâneo é que as
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

culturas urbanas, progressivamente, perdem sua fisicidade


geográfica, sua estabilidade, e passam a ser visivelmente
elementos coestruturantes dos processos de subjetivação,
contribuindo para isso toda a publicidade midiática.

1.3 O upcycling e a economia sustentável

“É preciso agir, gerar resultados e


depois comunicar.” Geraldo Almeida

A questão da reciclagem, do upcycling, está implícita na


repaginação do espaço utilizando o que chamaremos
genericamente de “restos” no sentido da criação de um novo
olhar sobre o que até então não estava sendo valorizado como
novo. A cultura do retalho se expande a pessoas, lugares e
produtos, numa espécie de customização generalizada. Damos
novo trato a materiais que pareciam inaproveitáveis, criamos
sustentabilidade, ambiência e trabalho para criar produtos novos
que viram objetos de desejo. Lugares são ressignificados, como
bem demonstram projetos realizados por empresas públicas e
privadas em parceria com as comunidades. O segredo da
dinâmica é a reutilização que evita o desperdício. É preciso
distinguir upcycling e reciclagem, pois este último conceito
refere-se à geração de produto exclusivo que pode valer mais até
que o original. Ao contrário da reciclagem, o material
reaproveitado, frequentemente, gera produto de qualidade
superior. Resumindo, a marca faz um link com a cultura criando
novas oportunidades. O exercício da criatividade provoca tanto a
competitividade quanto o surgimento de novas profissões
(SOBRAL, 2010, pp. 16-18).

O conceito de sustentabilidade nos preocupa


especialmente já que esta implica a manutenção da continuidade
37
das políticas públicas. A comunicação da sustentabilidade apoia-
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

se sobre três pilares segundo o Conselho Empresarial Brasileiro


para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS): informação,
mudança e processo. Tal ideia orienta nossa visão da
comunicação para as políticas periféricas. Comunicar temas
relacionados à sustentabilidade constitui-se num valor agregado
ao produto no qual se está trabalhando, atraindo para o projeto
diferentes públicos, seja como receptores, seja como parceiros.
Diversos fatos nacionais e internacionais contribuíram para o
surgimento e desenvolvimento do conceito.

Nos anos 1950, as universidades americanas já discutiam


o conceito de responsabilidade social e empresarial.
Sequencialmente aumentou o interesse pela compreensão das
relações entre economia, meio ambiente e questões sociais.
Conceitos de sustentabilidade expandiram-se a partir dos anos
1970 com a conferência da ONU sobre meio ambiente humano
realizada em Estocolmo, Suécia, em 1972. O termo é usado pela
primeira vez nos anos 1980 por Lester Brown, fundador do
Eearth Policy Institute. Em 1981, após a criação da política
nacional do meio ambiente, foi fundado o Instituto Brasileiro de
Análises Sociais e Econômicas (IBASE) que tem entre os
fundadores o sociólogo Herbet de Souza e cuja missão é
aprofundar a democracia, seguindo os princípios de igualdade,
liberdade, participação cidadã, diversidade e solidariedade. 5

No Brasil, a década de 1990 foi marcada por um forte


movimento das empresas em direção à conscientização de seu
papel social e seu impacto no meio ambiente. Um importante
marco para esse direcionamento foi a realização, no Rio de
Janeiro, da Eco-92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio
Ambiente e Desenvolvimento. Conhecida também como Rio-92
foi um encontro internacional no qual foram debatidos e
elaborados documentos fundamentais com a participação

5 Disponível em: <www.sustainability.com>. Acesso em: 17 set 2011.

38
empresarial, como a Agenda 21, 6 a Convenção-Quadro das
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

Nações Unidas sobre a Mudança do Clima e a Convenção Sobre


Diversidade Biológica.

A partir de então, com o objetivo de discutir e aplicar o


conceito de desenvolvimento sustentável surgiram importantes
organizações, como o CEBDS, o Instituto Ethos de Empresas e
Responsabilidade Social, o Grupo de Institutos, Fundações e
Empresas (GIFE). Criado em 1997, integrado a uma rede
internacional com cerca de 60 conselhos empresariais nacionais
de desenvolvimento sustentável, o CEBDS foi a primeira
organização a trabalhar no Brasil o conceito de Triple Bottom
Line (Informação, Mudança e Processo) e disseminar nas
empresas uma nova maneira de fazer negócios.7

O conceito de sustentabilidade nas ações privadas e


públicas nos leva a pensar a diversidade, determinante para a sua
concretização. A dinâmica entre comunicação e cultura é
fundamental para o estabelecimento de políticas que não se
atenham ao mercado e que sejam verdadeiramente intercultural
e interativa, como apontou Martín-Barbero (apud
BUSTAMENTE, 2007).

O desequilíbrio comercial e a defasagem tecnológica entre


os países centrais e os em desenvolvimento determinaram a
criação, em 2001, da Declaração Universal sobre a Diversidade
Cultural e, em 2005, a Convenção sobre a Proteção e Promoção
da Diversidade das Expressões Culturais. A Proteção e Promoção
das Expressões Culturais oferecem numerosos vetores para
orientação das políticas públicas com a complementaridade dos
aspectos econômicos e culturais do desenvolvimento e do
desenvolvimento sustentável (compreendido não apenas em

6 Disponível em: <http://www.mma.gov/br/agenda21>. Acesso em: 12 ago


2011.
7 Guia de Comunicação e Sustentabilidade. Realização CEBDS – Conselho

Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável / CTCOM –


Câmara Temática de Comunicação e Educação do CEBDS.

39
termos de crescimento, mas como meio de acesso a uma
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

existência intelectual, moral, espiritual satisfatória, numa


economia marcada pela solidariedade). Tal preocupação nos leva
a pensar a relação entre diversidade cultural e gestão da cultura,
convocando não a perspectiva interdisciplinar que festeja a
possibilidade de comunicação e consenso entre aquilo que
restava compartimentalizado, mas sugere um passo à frente no
sentido de produzir uma tensão crítica entre modelos culturais e
gerenciais. Ao falar em diversidade cultural nos referimos a
modelos normativos diversos que não apenas ordenam a
produção e as trocas simbólicas nos campos estético, religioso e
lúdico, mas que se referem também às maneiras como se define
as formas de aprendizagem, circulação, apropriação, distribuição
de bens e processos culturais. Diversidade cultural é diversidade
de modos de instituir e gerir a relação com a realidade. Identificar
o campo da cultura popular e as políticas culturais periféricas
como portadores de uma incapacidade gerencial, normalmente
traduzida como incompetência em transformar contigências em
oportunidades, ainda parece ser o bordão de algumas
consultorias culturais hoje no Brasil. José Márcio Barros (2009,
p. 83-90) afirma a importância de, em substituição aos modelos
provisórios de atenção à diversidade cultural (projetos, oficinas,
concursos e prêmios), a importância de ampliar e multiplicar as
instituições permanentes que trabalham com cultura. A gestão
da cultura impõe aprofundar a discussão sobre os processos de
inclusão das diferenças que não envolvam apenas a meritocracia,
evitando mecanismos pós-coloniais de repor velhas exclusões.8

O culto da cultura trata, de modo cultural, os problemas


que não se quer abordar em termos políticos. Na linguagem
panculturalista, dizia Certeau, a “cultura” torna-se um neutro:
cultural. Como já notava Jean-François Lyotard, a linguagem da
operatividade no sentido das decisões e do capital está nas

8Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/site/?p=903>. Acesso em: 27


ago 2011.

40
antípodas da liberação da multiplicidade dos jogos de linguagem.
Ni zi a Vi llaç a
Políticas Culturais e Diversidade

A esperança no reconhecimento do trabalho da produção de si


(FOUCAULT, 1985) pelo desenvolvimento da criação e da
cognição como fundamento de uma sociedade liberada dos
constrangimentos do produtivismo é contrariada pela
precariedade, a exploração, a mobilidade e a captação pela
empresa do capital humano com fins de lucro. Transformar este
quadro é o objetivo das novas lutas sociais e culturais
(MATTELART, 2007, pp. 106-109).

 Retorne ao sumário

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2011)

43
1 Introdução

Uma das principais características da América Latina é,


certamente, a sua diversidade étnico-racial. Estima-se que há,
nos dias atuais, aproximadamente 45 milhões de indígenas e 150
milhões de afrodescendentes nos países da região, sendo México,
Peru e Bolívia os países com maior presença indígena e Brasil,
Colômbia e Venezuela os de maior índice de população negros e
negras1.

Não ignorando as semelhanças e diferenças entre os


diversos países que compõem a América Latina, Carlos
Hasembalg (1992) afirma que é possível identificar ‘sintomas do
tipo latino’ de relações raciais, sendo as semelhanças baseadas
em dois eixos: a visão da harmonia, tolerância e ausência de
preconceito e discriminação racial a partir da concepção
desenvolvida por elites políticas e intelectuais; e a visão das
sociedades como essencial ou preponderantemente brancas e de
cultura europeia ou hispânica.

1 Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, CEPAL (2016).

44
Como resultados dessas premissas, Ribeiro (2000) aponta
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

o ocultamento do racismo, a discriminação e o que a autora


chama de “efeito mágico”, que relaciona as desigualdades raciais

e étnicas quase que exclusivamente aos fatores de classe e não a


considerações igualmente raciais e étnicas.

Na linha do que defende Ribeiro, dados do estudo El


escândalo de la desigualdade 2: las múltiples caras de la
desigualdade en América Latina e Caribe, confirmam
justamente que o rol das desigualdades políticas e econômicas na
região têm como um dos marcadores fundamentais a questão
étnica e racial.

Las poblaciones indígenas y afrodescendientes no


han experimentado el crecimiento económico y la
reducción de la pobreza en la década pasada de la
misma manera que otros sectores de la población de
América Latina y el Caribe. Las mujeres y hombres
indígenas y las personas afrodescendientes se
enfrentan a la exclusión y discriminación en el acceso
a tierras, educación, servicios básicos, participación
política y trabajo digno además de sufrir el racismo
estructural y mayores niveles de violencia
(CHRISTIAN AID, 2017, p. 13).

Análise semelhante é verificada no entendimento da


Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL),
que, em estudo recente, ressaltou a questão étnico-racial, aliada
a outros fatores, como uma característica central nas
desigualdades da América Latina.

As desigualdades étnico-raciais, junto com as


socioeconômicas, as de gênero, as territoriais e
aquelas associadas ao ciclo de vida, constituem eixos
da matriz da desigualdade social na América Latina.
Elas se manifestam em diversos âmbitos do
desenvolvimento social, entre eles a posição
socioeconômica, a saúde, a educação e o trabalho
(CEPAL, 2017, p. 35).

Considerando, como ressaltou Martín-Barbero (2002), os


meios de comunicação como principal espaço de produção de

45
sentidos e identidades e de mediação social, nos quais
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

constituem-se identidades variadas de gênero, raça e etnia,


orientação sexual e localização geográfica, relacionar a realidade
de desigualdade étnico-racial de uma região como a América
Latina com os meios de comunicação – suas estruturas,
conteúdos e representações – é um desafio contemporâneo tanto
para pesquisadores acadêmicos, no sentido de revisitarem e até
mesmo formularem teorias que contemplem a complexidade
dessa relação, quanto representantes da sociedade civil, no
objetivo de adotarem a perspectiva da garantia da diversidade
étnico-racial nos meios de comunicação como uma reivindicação
democrática.

Buscando contribuir na tarefa de responder a este desafio,


o presente texto objetiva apontar caminhos para algumas
inquietações, como: Qual o papel dos meios de comunicação no
reforço do racismo e das desigualdades étnico-raciais? E para a
sua superação? Como algumas leis de mídia aprovadas nos
últimos anos em países da América Latina incorporam a temática
étnico-racial? Quais os principais pontos contemplados sobre
estas questões nessas leis? Por fim, quais são os eixos
fundamentais na relação entre etnia/raça e os meios de
comunicação?

Nessa perspectiva, o texto obedece à seguinte estrutura: (i)


num primeiro momento, são traçados, do ponto de vista teórico,
apontamentos a respeito da articulação entre comunicação e
questão étnico-racial e apresentados exemplos de iniciativas de
Estados e da sociedade civil sobre etnia e raça que demarcam o
papel dos meios de comunicação; em sequência, (ii) é feita uma
análise de como legislações recentes de comunicação na
Venezuela, Argentina, Bolívia, no Equador e Uruguai
contemplam a perspectiva do respeito à diversidade étnico-racial
em aspectos como propriedade, conteúdo, sustentabilidade e
participação social; e, por fim, (iii) são apresentadas

46
aproximações entre os processos nesses cinco países e
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

considerações e propostas para a garantia da diversidade étnico-


racial na comunicação, a partir de eixos como representação,
produção, propriedade e controle social.

2 Sobre o papel dos meios de comunicação

De acordo com Van Dijk (1993), os diferentes discursos


sociais – incluídos os discursos dos meios de comunicação –
desempenham um papel central tanto na produção quanto na
reprodução do preconceito e do racismo. Desses discursos,
argumenta o autor, provêm os modelos cognitivos e as atitudes
relativas às minorias de qualquer natureza, especialmente os
negros e indígenas, com os discursos atuando nos níveis micro e
macro, assim como nos registros da interação e da cognição.

Na mesma linha de pensamento, em artigo sobre a


importância de uma imprensa produzida pelos grupos étnicos-
raciais, Muniz Sodré (1999) acredita que os meios de
comunicação funcionam como um gênero discursivo capaz de
catalisar expressões políticas e institucionais sobre as relações
inter-raciais, em geral estruturadas por uma tradição intelectual
e elitista que, de uma maneira ou de outra, legitima a
desigualdade social pela cor da pele.

Sabe-se efetivamente que da influência interativa


entre elites de diferentes ordens - grupos de alta
renda, ministérios, organizações de trabalho,
intelectuais e meios de comunicação de massa -
resultam os padrões cognitivos e políticos que
orientam os componentes da ação social e do
julgamento ético presentes no comportamento
racista (...) O racismo ostentado pelas elites
tradicionais desde séculos atrás pode ser reproduzido
logotecnicamente, de modo mais sutil e eficaz, pelo
discurso midiático-popularesco, sem distância crítica
do tecido da civilização tecnoeconômica, onde se
acha incrustada a discriminação em todos os seus
níveis (SODRÉ, 1999, p. 1-2).

47
Para o autor, no setor dos meios de comunicação, mais que
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

um elemento discursivo o racismo é parte de uma estrutura


institucional, suscitado por quatro fatores complementares e
articulados.

a) A negação – quando os meios de comunicação tendem


a negar a existência do racismo, considerando “anacrônica” a
questão étnico-racial, a não ser quando este aparece como objeto
noticioso, devido à violação flagrante desse ou daquele
dispositivo anti-racista ou a episódicos conflitos raciais;

b) O recalcamento – quando, em seus diferentes modos de


produção, os meios de comunicação recalcam aspectos
identitários positivos das manifestações simbólicas de origem
negra e indígena, por exemplo;

c) A estigmatização – aqui, Sodré faz referência à


distinção entre a identidade social virtual (aquela que se atribui
ao outro) e a identidade social real (conferida por traços
efetivamente existentes) e demonstra que, na passagem do
potencial/virtual ao real/atual, surge o estigma, a marca da
desqualificação da diferença, ponto de partida para todo tipo de
discriminação, consciente ou não, do outro. Nesse sentido, os
meios de comunicação constroem identidades virtuais a partir
não só da negação e do recalcamento, mas também de um saber
do senso comum alimentado por uma tradição de preconceitos e
rejeições.

d) A indiferença profissional – Organizando-se


empresarialmente, os meios de comunicação contemporâneos
pautam-se pelos ditames do comércio e da publicidade, pouco
interessados em questões como a discriminação de minorias.
Como consequências, os profissionais que atuam nos meios de
comunicação acabam dessensibilizando-se com problemas dessa
ordem.

Numa proposta argumentativa semelhante à de Sodré


(1999), Silva, Santos e Rocha (2010) afirmam que os meios de
48
comunicação participam da sustentação e produção do
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

preconceito étnico-racial, especialmente em contextos latino-


americanos.

As comunicações midiáticas em geral e televisivas em


particular (…) apresentam duas características
comuns aos discursos racistas observados em países
diversos da América Latina: a branquitude
normativa (o branco que se coloca discursivamente
como padrão de humanidade) e a estética ariana
(hipervalorização de traços europeus,
particularmente nórdicos) como forma de
hierarquização racial e desvalorização,
principalmente, de indígenas e negros (SILVA,
SANTOS e ROCHA, 2010, p. 82).

Na perspectiva de alteração desta realidade, diversas


iniciativas de organismos institucionais de Estado e também
articulações da sociedade civil têm demarcado a importância de
mudanças no setor das comunicações para a garantia da
diversidade étnico-racial. Um marco fundamental neste sentido
foi a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata,
realizada em Durban, África do Sul, em 2001. Tanto na
Declaração quanto no Programa de Ação, a Conferência apontou
uma série de propostas para a área da Comunicação diretamente
relacionadas a superação das desigualdades étnico-raciais.
Abaixo, algumas das principais proposições.

- Incentiva a mídia a promover o igual acesso e a


participação nos meios de comunicação dos Roma, Ciganos, Sinti
e Nômades, assim como a protegê-los das reportagens racistas,
estereotipadas e discriminatórias, e convoca os Estados a
facilitarem os esforços midiáticos neste sentido;

- Enfatiza a importância de se reconhecer o valor da


diversidade cultural e de se adotarem medidas concretas para
incentivar o acesso das comunidades marginalizadas à mídia
tradicional e alternativa, e à apresentação de programas que
reflitam suas culturas e linguagens;

49
- Insta os Estados e incentiva o setor privado a
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

promoverem o desenvolvimento através da mídia, incluindo a


mídia impressa e eletrônica, a internet e a propaganda, levando-
se em conta a sua independência, e através de suas associações e
organizações pertinentes em níveis nacionais, regionais e
internacionais, de um código de conduta ética voluntário e de
políticas e práticas que visem a: (a) Combater o racismo, a
discriminação racial, a xenofobia e a intolerância correlata; (b)
Promover a representação justa, equilibrada e equitativa da
diversidade de suas sociedades, bem como assegurar que esta
diversidade seja refletida entre sua equipe de pessoal; (c)
Combater a proliferação de ideias de superioridade racial,
justificação de ódio racial e de qualquer tipo de discriminação;
(d) Promover o respeito, a tolerância e o entendimento entre
todos os indivíduos, povos, nações e civilizações através, por
exemplo, da assistência em campanhas de sensibilização da
opinião pública; (e) Evitar todo tipo de estereótipos e,
particularmente, o da promoção de imagens falsas dos
migrantes, incluindo trabalhadores migrantes e refugiados com
o intuito de prevenir a difusão de sentimentos de xenofobia entre
o público e para incentivar o retrato objetivo e equilibrado de
pessoas, dos eventos e da história.

Outra iniciativa no sentido de defender a comunicação


como ambiente de garantia da diversidade étnico-racial foi a
Cumbre Continental de Comunicación Indígena, realizada em
novembro de 2010, na Colômbia. Algumas das propostas:

- Exigimos a los estados nacionales una legislación


que garantice que los pueblos y nacionalidades
indígenas contemos con un espectro suficiente para
cubrir las demandas de comunicacón en todos
nuestros territorios;
- Demandamos a los medios de comunicación
públicos y privados respecto a los pueblos y naciones
indígenas en sua línea editorial y en programación,
porque reproducen prácticas discriminatorias a la
imagen y a la realidad de los pueblos y naciones
indígenas del continente, así como violenta y
desvaloriza la identidad de nuestros pueblos;

50
- Demandamos a los medios de comunicación
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

públicos y privados espacios en su programación


para difundir valores culturales, linguísticos, así
como realidades socioculturales y políticas de los
pueblos y nacionalidades indígenas, para el fomento
a la interculturalid, especialmente a través de
contenidos elaborados por los y las comunicadores
indígenas.

3 Leis de Mídia e questão étnico-racial

Ao mesmo tempo em que se ampliavam as discussões em


nível internacional sobre comunicação e diversidade étnico-
racial, a exemplo dos encaminhamentos das citadas Conferência
de Durban e Cumbre na Colômbia, diversos países da América
Latina adotaram iniciativas de mudanças em seus sistemas de
comunicação, a partir da aprovação de novas legislações para o
setor. Em ordem cronológica, é possível citar as seguintes
mudanças legais que vão neste sentido: Ley de Responsabilidad
Social en Radio, Televisión y Medios Electrónicos da Venezuela
(2004); Ley de Radiodifusión Comunitária do Uruguai (2007);
capítulo sobre Direito à Comunicação na Constituição do
Equador (2008); capítulo sobre Direito à Comunicação na
Constituição da Bolívia (2009); Ley de Servicios de
Comunicación Audiovisual da Argentina (2009); Ley
Orgánica de Telecomunicaciones da Venezuela (2010); Ley de
Servicios de Radiodifusión Comunitária Ciudadana do Chile
(2010); Ley General de Telecomunicaciones, Tecnologías de
Información y Comunicación da Bolívia (2011); Lei do Serviço
de Acesso Condicionado do Brasil (2011); Ley Orgánica de
Comunicación do Equador (2013); Ley de Formalización y
Promoción de Empresas de Radiodifusión Comunitárias de
Radio y TV do Peru (2014); Ley de Telecomunicaciones y
Radiodifusión do México (2014); Marco Civil da Internet do
Brasil (2014); Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual do
Uruguai (2015).

51
Com essa diversidade de legislações, como escreveu
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

Ramos (2010), o atual período

trata-se de um momento importante, e rico, para o


estudo das políticas de comunicação na América
Latina, para além de uma polarização simplificada
entre anseios de democratização pela sociedade e
medidas de controle por governos ditos populistas,
com rasgos autoritários. Este momento latino-
americano não é mais o momento das ditaduras e da
censura dos tempos da guerra fria, como não é mais
o momento da imposição de consensos políticos e
econômicos, anteriores à crise dos mercados
financeiros mundiais de 2008 (RAMOS, 2010, p. 25).

Partindo desse pressuposto, e considerando a realidade de


desigualdade étnico-racial na América Latina, como exposto na
introdução deste artigo, cabe observar como algumas dessas
legislações tratam a relação entre meios de comunicação e
questão étnico-racial. Especificamente para este trabalho, foram
selecionadas as legislações de cinco países, a saber: Venezuela
(Ley de Responsabilidad Social en Radio, Television y Medios
Electrónicos, 2004) Argentina (Ley de Servicios de
Comunicación Audiovisual, 2009), Bolívia (Ley General de
Telecomunicaciones, Tecnologías de Información y
Comunicación, 2011); Equador (Ley Orgánica de
Comunicación, 2013) e Uruguai (Ley de Servicios de
Comunicación Audiovisual, 2015).

3.1 Venezuela

Na Venezuela, a Ley de Responsabilidad Social en Radio,


Television y Medios Electrónicos, conhecida como Lei Resorte,
em vigor desde 7 de dezembro de 2004 (e alterada em 2010 para
inclusão da internet), apresenta, dentre os seus objetivos gerais,
a defesa dos direitos de grupos étnicos – com destaque para as
pessoas de origem indígena – e outros grupos sociais nos
conteúdos e informações produzidas e difundidas pela mídia. O
artigo 3, item 4, estabelece que cabe aos meios de comunicação:

52
Procurar la difusión de información y materiales
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

dirigidos a los niños, niñas y adolescentes que sean


de interés social y cultural, encaminados al desarrollo
progresivo y pleno de su personalidad, aptitudes y
capacidad mental y física, el respeto a los derechos
humanos, a sus padres, a su identidad cultural, a la
de las civilizaciones distintas a las suyas, a asumir
una vida responsable en libertad, y a formar de
manera adecuada conciencia de comprensión
humana y social, paz, tolerancia, igualdad de los
sexos y amistad entre los pueblos, grupos étnicos, y
personas de origen indígena y, en general, que
contribuyan a la formación de la conciencia social de
los niños, niñas, adolescentes y sus famílias
(RESORTE, 2010, Art. 3, p, 5).

No sentido de preservação e valorização da cultura


indígena, especificamente a respeito do idioma dos conteúdos
veiculados, a legislação venezuelana, em seu artigo 4, determina
que “en el caso de los mensajes difundidos a través de los
servicios de radio y televisión, especialmente dirigidos a los
pueblos y comunidades indígenas, también serán de uso oficial
los idiomas indígenas” (Resorte, 2010, p. 6).

Também sobre a questão das línguas dos grupos étnico-


raciais, a Lei Resorte estabelece, em seu artigo 14, que ao menos
50% de todas as obas musicais venezuelanas transmitidas pelos
meios de comunicação devem evidenciar, dentre outros aspectos,
o uso dos idiomas oficiais indígenas.

No tocante à participação social na fiscalização do


cumprimento dos seus objetivos, foi criado, pelo artigo 20 da Lei
Resorte, o Directorio de Responsabilidad Social, que, dentre os
seus integrantes, prevê a presença de um órgão com competência
em assuntos relacionados aos povos indígenas.

Abordando não apenas os povos indígenas, mas todos os


grupos étnico-raciais, a legislação da Venezuela também proíbe a
difusão de mensagens e conteúdos que, dentre outras coisas,
“inciten o promuevan el odio y la intolerancia por razones
religiosas, políticas, por diferencia de género, por racismo o
xenofobia” (Resorte, 2010, Art. 27, p. 29). Em caso de

53
descumprimento, o artigo 29 prevê multa de até 10% das receitas
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

brutas da emissora e/ou, em caso de recorrência ou episódio de


violação mais grave ou, suspensão por 72 horas contínuas de suas
transmissões.

3.2 Argentina

Na Argentina, a Lei 26.552, promulgada em 10 de outubro


de 2009, que regula os serviços de comunicação audiovisual no
país, já em seu artigo 3º aborda a questão étnico-racial, quando
aponta como um dos objetivos gerais da legislação “la
preservación y promoción de la identidad y de los valores
culturales de los Pueblos Originarios”.

Na perspectiva de garantia do pluralismo e da diversidade,


a Ley de Medios – como ficou conhecida a Lei 26.552 –, garante
aos povos originários o direito de exploração de serviços de
comunicação audiovisual (artigo 151) e os inclui, junto com a
Igreja Católica, como “personas de derecho público no estatales”
(artigo 23).

Los Pueblos Originarios podrán ser autorizados para


la instalación y funcionamiento de servicios de
comunicación audiovisual por radiodifusión sonora
con amplitud modulada (AM) y modulación de
frecuencia (FM) así como de radiodifusión televisiva
abierta en los términos y condiciones estabelecidos
en la presente ley (LSCA, 2009, p. 223).

Também sobre este aspecto, a legislação prevê, no artigo


89, reservas de frequências locais para os povos originários,
sendo uma frequência de rádio AM, uma de rádio FM e uma de
televisão aberta para esses grupos na localidade em que estejam
inseridos.

Outra preocupação presente na legislação argentina no


que diz respeito aos povos originários é o tema da
sustentabilidade. Sobre isso, o artigo 97 prevê que 10% (dez por
cento) de todos os recursos arrecadados pela Administración

54
Federal de Ingresos Públicos, dos impostos pagos pelos
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

concessionários de radiodifusão, serão destinados a projetos


especiais de comunicação audiovisual e apoio a serviços de
comunicação audiovisual comunitários, de fronteira e dos povos
originários.

De forma complementar na questão da sustentabilidade,


o artigo 98 isenta ou reduz o valor dos impostos previstos pela lei
às emissoras “del Estado nacional, de los Estados provinciales,
de los municipios, de las universidades nacionales, de los
institutos universitarios, las emisoras de los Pueblos
Originarios y las contempladas en el articulo 149 de la presente
ley”.

Ainda sobre a sustentabilidade, o artigo 152 da Lei 26.552


elenca as possibilidades de financiamento das emissoras de
responsabilidade dos Povos Originários.

a) asignaciones del presupuesto nacional; b) venta de


publicidad; c) donaciones, legados y cualquier outra
fuente de financiamiento que resulte de actos
celebrados conforme los objetivos del servicio de
comunicación y su capacidad jurídica; d) la venta de
contenidos de produccón própria; e) auspicios o
patrocinios; f) recursos específicos asignados por el
Instituto Nacional de Asuntos Indígenas (LSCA,
2009, pp. 223-224).

Com o objetivo de fiscalizar o cumprimento dos objetivos


da Ley de Medios no tocante à comunicação pública estatal, o
artigo 124 designa a criação do Consejo Consultivo Honorario de
los Medios Publicos, vinculado à Radio y Televisión Argentina
Sociedad del Estado 1 , composto por 17 integrantes, sendo um
representante dos povos originários.

3.3 Bolívia

1 Responsável por la administración, operación, desarrollo y explotación de


los servicios de radiodifusión sonora y televisiva del Estado Nacional (art. 119)

55
Na Bolívia, a Lei 164, de agosto de 2011, intitulada Ley
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

General de Telecomunicaciones, Tecnologías de Información y


Comunicación destaca, já no seu artigo 1, o respeito à diversidade
e pluralidade étnica como parte do objeto principal.

La presente Ley tiene por objeto establecer el


régimen general de telecomunicaciones y tecnologías
de información y comunicación, del servicio postal y
el sistema de regulación, en procura del vivir bien
garantizando el derecho humano individual y
colectivo a la comunicación, con respeto a la
pluralidad económica, social, jurídica, política y
cultural de la totalidad de las bolivianas y los
bolivianos, las naciones y pueblos indígena originario
campesinos, y las comunidades interculturales y
afrobolivianas del Estado Plurinacional de Bolivia
(LGTTIC, 2011, p.1).

A lei frisa também que a plurinacionalidade deve ser um


dos princípios a reger o setor de telecomunicações, de tecnologias
de informação e comunicação e do serviço postal. Conforme o
texto da lei, o estado boliviano “está conformado por la totalidad
de las bolivianas y los bolivianos, las naciones y pueblos
indígena originario campesinos, y las comunidades
interculturales, y afrobolivianas” (artigo 5).

Um aspecto importante a observar na legislação boliviana


diz respeito ao compartilhamento das competências na
autorização dos serviços de comunicação. Os “Gobiernos
Indígena Originario Campesinos Autónomos” 2 , conforme
previsto no artigo 7, III, são responsáveis por autorizar o
funcionamento de rádios comunitárias em sua jurisdição, em
respeitando as normas e políticas aprovadas pelo nível central do
Estado.

2 A Constituição Política do Estado da Bolívia reconhece a existência de quatro


tipos de autonomias na organização territorial do Estado: departamental,
municipal, regional e indígena originário campesina. Segundo descrição no
sítio eletrônico do Ministério de Autonomias, “La autonomía indígena
originario campesina es el reconocimiento del gobierno propio de las
naciones y pueblos indígena-originario campesinos en el marco de la
libertad, dignidad, tierra-territorio y respeto de su identidad y formas de
organización propia”.

56
Assim como a legislação argentina, a lei da Bolívia
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

também estabelece a exploração de serviços de radiodifusão –


rádio FM e TV – por grupos étnico-raciais, no percentual de até
17% de todas as emissoras em nível nacional. A legislação, no
artigo 10, prevê ainda outras três modalidades de exploração:
estatal, comercial e social-comunitária.

La distribución del total de canales de la banda de


frecuencias para el servicio de radiodifusión en
frecuencia modulada y televisión analógica a nivel
nacional donde exista disponibilidad, se sujetará a lo
siguiente: 1. Estado3, hasta el treinta y tres por ciento;
2. Comercial 4 , hasta el treinta y tres por ciento; 3.
Social comunitario5, hasta el diecisiete por ciento; 4.
Pueblos indígena originario campesinos, y las
comunidades interculturales y afrobolivianas 6 hasta
el diecisiete por ciento (LGTTIC, 2011, p. 13).

Também no artigo 10, está descrito que o uso das


frequências destinadas ao setor social comunitário e de los
“pueblos indígena originario campesinos, y comunidades
interculturales y afrobolivianas” se darão mediante concurso de
projetos qualificados e aprovados com base em indicadores
objetivos.

3 Aquellas entidades y empresas del nivel central del Estado, las Entidades
Territoriales Autónomas en el marco de la normativa aplicable vigente, y las
Universidades Públicas, que tengan por finalidad proveer servicios de
radiodifusión (Reglamento General a la Ley 164/2011, aprovado em 24 de
dezembro de 2012)
4 A las personas naturales y jurídicas del ámbito privado que se encuentran
constituidas para realizar atividades de radiodifusión con fines de lucro
(Reglamento General a la Ley 164/2011, aprovado em 24 de dezembro de
2012)
5 A las personas naturales, organizaciones sociales, cooperativas y
asociaciones, cuya función sea educativa, participativa, social,
representativa de su comunidad y su diversidad cultural, que promueva sus
valores e intereses específicos, que no persigan fines de lucro y los servicios
de radiodifusión sean accesibles a la comunidade (Reglamento General a la
Ley 164/2011, aprovado em 24 de dezembro de 2012)
6 Aquellas organizaciones de estos pueblos y comunidades que prestan
servicios de radiodifusión accesibles a la comunidad y sin fines de lucro, que
tienen usos y costumbres, idioma, tradición histórica, territorialidad y
cosmovisión, representativas de sus pueblos que velan por la revalorización
de su identidad, su cultura y su educación (Reglamento General a la Ley
164/2011, aprovado em 24 de dezembro de 2012)

57
No tocante ao pagamento de tributos, relativos à
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

fiscalização e regulação do setor de radiodifusão, os serviços


geridos pelos setores social comunitário e de los “pueblos y
naciones indígena originário campesinos, y comunidades
interculturales y afrobolivianas” pagarão a taxa de 0,5% das
suas receitas brutas. O artigo seguinte, porém, prevê a
possibilidade de isenção de pagamento da taxa para serviços
geridos por estes últimos grupos “siempre que utilicen
frecuencias establecidas en el Plan Nacional de Frecuencias y
cumplan con los aspectos técnicos relacionados con su uso”
(artigo 64).

Por fim, cabe uma observação acerca da participação


social na legislação da Bolívia. O artigo 110 estabelece que a
sociedade civil organizada participará da definição das políticas
de telecomunicações e tecnologias de informação e comunicação,
“ejerciendo el control social en todos los niveles del Estado a la
calidad de los servicios públicos” (LGTTIC, 2011, p.52). Porém,
dois órgãos de participação criados pela lei em questão não
preveem a participação de grupos étnico-raciais da Bolívia: o
Comité Plurinacional de Tecnologías de Información y
Comunicación, que tem a finalidade de “proponer políticas y
planes nacionales de desarrollo del sector de tecnologías de
información y comunicación, coordinar los proyectos y las
líneas de acción entre todos los actores involucrados, definir los
mecanismos de ejecución y seguimiento a los resultados” (artigo
73), e o Consejo Sectorial de Telecomunicaciones y Tecnologías
de Información y Comunicación, definido como “instancia
consultiva de proposición y concertación entre el nivel central
del Estado y los gobiernos autónomos, para la coordinación de
asuntos sectoriales” (artigo 74).

3.4 Equador

58
Outra recente legislação de comunicação aprovada na
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

região, e que interessa aqui observar, é a Ley Orgánica de


Comunicación, do Equador, aprovada e promulgada em 2013.
Sobre a questão da diversidade étnico-racial, a lei destaca, como
um dos seus princípios, a “interculuralidad y plurinacionalidad”
como uma característica do país.

El Estado a través de las instituciones, autoridades y


funcionarios públicos competentes en matéria de
derechos a la comunicación promoverán medidas de
política pública para garantizar la relación
intercultural entre las comunas, comunidades,
pueblos y nacionalidades; a fin de que éstas
produzcan y difundan contenidos que reflejen su
cosmovisión, cultura, tradiciones, conocimientos y
saberes en su propia lengua, con la finalidad de
estabelecer y profundizar progresivamente una
comunicación intercultural que valore y respete la
diversidad que caracteriza al Estado ecuatoriano
(LOC, 2013, Art. 14, p. 5).

No capítulo II da legislação, “Derechos a comunicación”,


um avanço em termos de consolidação da comunicação como um
direito humano, vale ressaltar, uma seção intitulada “Derechos
de igualdad y interculturalidad” abordam, no artigo 36, o direito
à comunicação intercultural e plurinacional, garantindo que “los
pueblos y nacionalidades indígenas, afroecuatorianas y
montubias tienen derecho a producir y difundir en su propia
lengua, contenidos que expresen y reflejen su cosmovisión,
cultura, tradiciones, conocimientos y saberes”.

O mesmo artigo 36 estabelece que todos os meios de


comunicação do Equador são obrigados a difundir conteúdos que
“expresen y reflejen la cosmovisión, cultura, tradiciones,
conocimientos y saberes de los pueblos y nacionalidades
indígenas, afroecuatorianas y montubias, por un espacio de 5%
de su programación diaria, sin perjuicio de que por su propia
iniciativa los medios de comunicación amplíen este espacio”,
sendo a regulamentação deste dispositivo de responsabilidade do
Consejo de Regulación y Desarrollo de la Información y la

59
Comunicación. Em caso de descumprimento da cota de 5% de
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

programação diária, de acordo com a legislação, os meios de


comunicação pagarão uma multa equivalente a 10% do seu
faturamento nos três meses anteriores.

Um ponto em comum da legislação do Equador com as leis


argentina e boliviana, na perspectiva da diversidade étnico-racial
é a divisão do espectro. A Ley Orgánica de Comunicación, em seu
artigo 106, estabelece que 34% de todas as frequências de rádio e
televisão de sinal aberto serão de operação de meios de
comunicação comunitários (33% serão de meios públicos e os
demais 33% de meios privados).

Los medios de comunicación comunitarios son


aquellos cuya propiedad, administración y dirección
corresponden a colectivos u organizaciones sociales
sin fines de lucro, a comunas, comunidades, pueblos
y nacionalidades. Los medios de comunicación
comunitarios no tienen fines de lucro y su
rentabilidad es social (LOC, 2013, Art. 85, p. 15).
Visando a sustentabilidade do segmento comunitário, o
artigo 86 elenca uma série de medidas relativas a ações
afirmativas para criação, funcionamento e manutenção dessas
emissoras, sendo o Consejo de Regulación y Desarrollo de la
Información y Comunicación também responsável por esta
atribuição.

El Estado implementará las políticas públicas que


sean necesarias para la creación y el fortalecimiento
de los medios de comunicación comunitarios como
un mecanismo para promover la pluralidad,
diversidad, interculturalidad y plurinacionalidad;
tales como: crédito preferente para la conformación
de medios comunitarios y la compra de equipos;
exenciones de impuestos para la importación de
equipos para el funcionamiento de medios impresos,
de estaciones de radio y televisión comunitarias;
acceso a capacitación para la gestión comunicativa,
administrativa y técnica de los medios comunitários
(LOC, 2013, Art. 86, p. 15).
Também no quesito sustentabilidade, a legislação
equatoriana aponta diversas possibilidades de financiamento
para os meios comunitários, como “la venta de servicios y

60
productos comunicacionales, venta de publicidad, donaciones,
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

fondos de cooperación nacional e internacional, patrocinios y


cualquier otra forma lícita de obtener ingresos” (LOC, 2013, Art.
87, p. 16).

3.5 Uruguai

Aprovada em dezembro de 2014 e sancionada em 2015, a


lei 19.307, intitulada Ley de Servicios de Comunicación
Audiovisual, que regulamenta os setores de rádio, televisão e
outros serviços de comunicação audiovisual – não incorporando
internet e redes sociais – é, dentre as cinco legislações aqui
analisadas, certamente a mais tímida no que diz respeito a
mecanismos garantidores de diversidade étnico-racial.

Em diversas passagens do texto, a Ley de Medios uruguaia


afirma a não-discriminação e necessidade do respeito à
diversidade e ao pluralismo como princípios democráticos que
devem reger os meios de comunicação, porém, em termos de
diversidade étnico-racial, não apresenta medidas efetivas como
as leis da Venezuela, Argentina, Bolívia e Equador.

O artigo 7, por exemplo, aponta a “no discriminación en


consonancia con los términos estabelecidos por la Ley N° 17.817,
de 6 de setiembre de 2004”7 e o “apoyo a la integración social de
grupos sociales vulnerables” como dois dos princípios a que estão
submetidos os serviços de comunicação audiovisual.

O outro artigo que trata sobre a questão racial é o 28, que


aborda o “derecho a la no discriminación”, porém, novamente,
tratando de modo generalista, incluindo a questão étnica-racial
num rol de outras diversidades e sem apresentação de medidas
afirmativas.

7
Ley decretada por el Senado y la Cámara de Representantes de la República Oriental
del Uruguay, que declara de interés nacional la lucha contra el racismo, la xenofobia
y toda otra forma de discriminación.

61
Los servicios de comunicación audiovisual no podrán
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

difundir contenidos que inciten o hagan apología de


la discriminación y el odio nacional, racial o religioso,
que constituyan incitaciones a la violencia o
cualquier otra acción ilegal similar contra cualquier
persona o grupo de personas, sea motivada por su
raza, etnia, sexo, género, orientación sexual,
identidad de género, edad, discapacidad, identidad
cultural, lugar de nacimiento, credo o condición
socioeconómica (LSCA-UY, 2015, Art. 28, p. 10).

4 Apontamentos e considerações

A análise das legislações desses cinco países evidencia que


a perspectiva de garantia da diversidade étnico-racial não deve se
limitar a um ou outro fator, mas perpassar os diversos aspectos
dos sistemas de comunicação. Além da presença do ideário de
respeito à diversidade como um princípio ou objetivo, presente
nas leis dos cinco países, é possível sistematizar esses aspectos
em: garantia do direito de exploração dos serviços de
comunicação, com reserva de frequências (como é o caso da
Argentina, Bolívia e Equador); sustentabilidade financeira, a
partir de destinação de recursos oriundos (Argentina), por meio
de isenção de taxas e impostos (Argentina e Bolívia) ou através
de possibilidades múltiplas de financiamento (Argentina, Bolívia
e Equador); participação social, seja como princípio (Bolívia),
seja diretamente com a previsão de representação em órgãos
fiscalizadores (Venezuela e Argentina); e conteúdo, tanto na
proteção contra conteúdos discriminatórios (Venezuela e
Uruguai) quanto em cotas de programação que promovam a
diversidade étnico-racial (Equador).

A conjunção desses distintos e complementares aspectos é


fator fundamental, de acordo com Caribé (2010), para a reversão
do cenário de desigualdade étnico-racial nos meios de
comunicação.

O acesso e desenvolvimento da propriedade da


radiodifusão precisa ser encarado como crucial a
participação da população negra na sociedade de
informação. O acesso à internet, a participação em

62
redes sociais e a convergência tecnológica também
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

são fundamentais, mas não significam a anulação dos


mecanismos tradicionais de dominação. (...) Para a
OEA [Organização dos Estados Americanos], a
concentração da propriedade da radiodifusão é
essencialmente da ordem econômica e afeta
diretamente segmentos historicamente
discriminados, produzindo um efeito similar a
censura: o silêncio. Nesse quesito o Estado tem papel
fundamental em reverter este panorama – no qual ele
é co-autor – ao incluir esses grupos. Não só na
redistribuição das concessões, via atenuação dos
mecanismos burocráticos e econômicos, mas
também ao prover condições para o desenvolvimento
dessa propriedade, seja por fontes alternativas ou
diretamente pela publicidade estatal (CARIBÉ, 2010,
p. 2).

Como forma de contribuir nas discussões acerca da


relação entre a comunicação e a diversidade étnico-racial,
entende-se aqui que, de um modo geral, são fundamentais
proposições em quatro eixos complementares:

a) a representação, no que diz respeito à visibilidade da


diversidade étnico-racial nos conteúdos veiculados pelos meios
de comunicação;

b) a produção, na perspectiva da presença da diversidade


étnico-racial no quadro de trabalhadores dos meios de
comunicação;

c) a propriedade, tanto de modo a garantir que a concessão


de emissoras de comunicação tenha como princípio e objetivo o
respeito à diversidade de etnia/raça, quanto com previsão de
reserva de frequência para os diferentes grupos étnico-raciais

d) o controle social, possibilitando que a diversidade


étnico-racial esteja contemplada nos mecanismos e órgãos de
fiscalização e monitoramento do setor de comunicação.

Nesse sentido, na elaboração de legislações de


comunicação, propõe-se aqui no que diz respeito ao componente
da representação: a veiculação de representações positivas sobre
as distintas matrizes étnico-raciais em todos os formatos; a

63
produção e exibição de programas infantis que abordem a
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

diversidade étnico-racial; e a realização prioritária de parcerias


com produtoras independentes geridas por grupos étnico-raciais
minoritários para veiculação dos conteúdos gerados por esses
grupos.

Sobre o segundo eixo, a produção, importa assegurar


espaços para que as distintas matrizes possam emitir os seus
discursos. Isto implica, como escreveu Origlio (2011), que “en la
una situación ideal, las 'minorías', o sea las voces marginales y/o
disonantes con las hegemónicas, deberían tener la posibilidad de
trabajar en los medios como productores de mensajes” (Origlio,
2011, p. 4).

Como caminhos possíveis para a concretização deste


objetivo, propõe-se aqui: a realização de censos étnico-raciais no
interior dos meios de comunicação e o estabelecimento de cotas
étnico-raciais em todos os níveis de trabalho desses meios, como
a produção, apresentação, direção, etc.

Porém, na perspectiva de uma comunicação pública que


esteja alinhada com o compromisso da diversidade étnico-racial,
a questão da representação nos conteúdos e no quadro funcional
não é suficiente, visto que, de acordo com Origlio (2011):

los grupos minoritarios en los sectores productivos


de la industria mediática no se configuran como una
presencia monolítica, ya que en su interior
representan las mismas dinámicas dialécticas de
negociación identitaria y ejercicio del poder que se
dan también en otros niveles de la vida social. Esto
significa que el simple hecho de permitir la presencia
de algún miembro perteneciente a una 'minoría'
detrás de las pantallas no garantiza que se represente
de manera justa la causa de la minoría misma: no por
el simple hecho de ser indígena, un indivíduo va a
tener que erguise a representante y/o vocero de la
causa indígena en los medios masivos mainstream no
garantiza que los indígenas sean representados en los
medios, ya que la libertad del indivíduo se impone
por encima de sus 'deberes' frente a la colectividad de
la cual es parte (ORIGIO, 2011, p. 5).

64
P au lo Vi c tor Mello
Comunicação e Diversidade Étnico -racial: um
olhar para leis de mídia na américa latina

Assim, sobre os aspectos da propriedade e do controle


social, propõe-se aqui: a implementação de marcos legais
nacionais de comunicação que tenham como determinação a
garantia de meios públicos sob propriedade de grupos étnico-
raciais minoritários; políticas públicas que facilitem, dos pontos
de vista econômico e burocrático, o processo de criação e
desenvolvimento de emissoras públicas de rádio e TV por esses
segmentos; investimento prioritário, via publicidade estatal, em
veículos em que a posse da propriedade esteja em grupos
representativos desses segmentos; reserva de vagas destinadas
aos diferentes grupos étnico-raciais nas instâncias de
fiscalização, gestão e direção das emissoras públicas.

 Retorne ao sumário

Referências
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publicado no Observatório da Imprensa, em 17 de junho de
2010, edição 594. Disponível em:
<http://observatoriodaimprensa.com.br/interesse-
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abril de 2018.

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Documento informativo da Comissão Econômica para a
América Latina e o Caribe, publicado em junho de 2017.
Disponível em <https://www.cepal.org/pt-
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66
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<http://www.leyresorte.gob.ve/ley-resorte/>. Acessada em: 11
de abril de 2018.

67
1 Introdução

No contexto das reflexões teóricas feministas, questões


envolvendo poder e dominação são relevantes para compreender
como as relações se estabelecem a partir de hierarquias de gênero
que posicionam as agências de forma desigual no mundo social.
Ao incorporarmos a sexualidade como temática relevante para o
campo feminista, a discussão amplia-se em direção à crítica ao
modelo liberal da “igualdade” expondo o fato de que a
desigualdade de autonomia sobre o próprio corpo é sexual. O
direito ao aborto, por exemplo, marcado como um direito à
privacidade e à igualdade sexual persiste como um marco teórico
e de ativismo feminista importante para expor a naturalização
dessas hierarquias e do controle dos homens sobre os corpos das
mulheres, afirmada tanto na política, como na religião e no
mundo social (MANTOVANI, 2016; 2017). O gênero estabelece
uma desigualdade distintiva em que se encarnam, também, as
desigualdades de raça e de classe, como pode ser observada na
sexualização de certos atributos raciais e étnicos (MACKINNON,
2014, p. 15). Para Mackinnon, as relações sociais entre os sexos

68
estão organizadas de forma que os homens dominam e as
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

mulheres submetem-se. E essa é uma relação estabelecida pelo


sexo porque há uma “sexualização da desigualdade”
(MACKINNON, 2014, p. 16). Já para Judith Butler (2017b), a
discussão sobre gênero e sexualidades remete a um olhar sobre o
exercício do poder e da dominação, sustentado por uma
perspectiva binária determinada pela heterossexualidade
compulsória. Nas palavras da autora: “A heterossexualidade
compulsória e o falocentrismo são compreendidos como regimes
de poder/discurso [...]” (BUTLER, 2017b, p. 11). Nesse exercício
de reflexão teórica, essas questões perpassam as análises sobre
poder, dominação e sexualidades. No contexto proposto por este
artigo, assume relevância uma análise sobre as palavras, os
discursos, as ideias e as construções históricas para entender
“como a linguagem produz uma construção fictícia de ‘sexo’ que
sustenta esses diversos regimes de poder [definida pela
linguagem falocêntrica]?” (BUTLER, 2017b, p. 11). Por meio
dessa reflexão é que se compreende a relevância de considerar
práticas culturais dissonantes e “subversivas” como significativas
para aprofundar o debate, partindo das perspectivas feministas,
em direção ao aprofundamento da crítica do poder e da
dominação, estruturados em sistemas heteronormativos,
hierárquicos em seu modelo binário compulsório definido –
como chama a atenção Mackinnon –, por uma “diferença” de
gênero (e não pela hierarquia) que oculta a maneira substantiva
na qual o sexo masculino torna-se “a medida” para todas as
coisas (MACKINNON, 2014, p. 59). Para a autora, essa visão
legitima a imposição de um gênero sobre outro pela força,
mantendo a mesma realidade da dominação masculina
(MACKINNON, 2014, p. 17).

Nos marcos do capitalismo, a desigualdade sexualizada


também se estrutura na divisão sexual do trabalho, em que “a
masculinidade do dinheiro” é uma forma de poder
(MACKINNON, 2014). Essas posições são reforçadas pelo

69
racismo que marca as mulheres negras (cis, homo ou trans) e os
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

homens negros (cis, homo ou trans), geralmente excluídas/os e


estigmatizadas/os, distantes de oportunidades profissionais, de
vivências compartilhadas e criminalizadas/os por sua raça, pela
condição social e pelas sexualidades fluidas. Assim, “todas as
práticas sociais envolvem interpretar o mundo”, uma vez que
nada do que é considerado humano está “fora” do discurso
(CONNELL; PEARSE, 2015, p. 172).

Dessa maneira, compreender a diversidade das


existências corporificadas na multiplicidade de possibilidades de
sexualidades e gêneros, presente em contextos de permanente
expressão e transição concreta e discursiva, significa
compreender que a construção identitária é um processo e é
relacional. As ambivalências de nossa existência são partes
constitutivas dos sujeitos. Discutir poder e dominação nessa
perspectiva significa compreender os mecanismos que atuam no
cotidiano das sociedades, na forma de sistemas regulares e
disciplinadores da conduta social e psíquica, nas práticas
discursivas, nas construções da “normalidade” e da
“anormalidade”. E, sobretudo, de como essas formações
discursivas são centrais para compreensões sobre o poder
dominante que nem sempre é visível (mas está presente na forma
simbólica).

2 Poder, dominação e sexualidade

Joan Scott (1995) chama a atenção para definições da


palavra “gênero” no campo da linguagem, e observa que seu uso
gramatical indica um sentido de “organização social das relações
entre os sexos”. Ela também sugere, de forma explícita,
“atribuição do masculino ou do feminino” como definições de
padrões de comportamento, estereótipos, traços de caráter, ou
ainda, a corporalidade compulsória associada ao sexo. Em outras
palavras, “gênero” pode ser entendido como “uma forma de

70
classificar sistemas socialmente consensuais de distinções e não
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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uma descrição objetiva de traços inerentes” (SCOTT, 1995, p. 72).


Para além dessa conceituação, a autora aponta possibilidades
“não-explícitas”, como a categoria “sem sexo ou neutro”. Em sua
atualização sobre esse debate, Scott (2012, p. 345) ressalta que
“gênero é um lugar de lutas sobre o que conta como natural e o
que conta como social e isto não se divide simplesmente entre as
linhas da Direita e Esquerda”. Por ser este “lugar perpétuo para
a contestação política, [é também] um dos locais para a
implantação do conhecimento pelos interesses do poder”
(SCOTT, 2012, p. 346).

Essas questões servem para reforçar compreensões de que


essas descrições na linguagem não são neutras. Ao contrário,
carregam consigo modelos que organizam relações socialmente
hierárquicas, de poder desigual e de dominação. “A linguagem é
um instrumento ou utensílio que absolutamente não é misógino
em suas estruturas, mas somente em suas aplicações” (WITTIG
apud BUTLER, 2017b, p. 58, grifo nosso). A construção histórica
do binarismo heteronormativo masculino-feminino foi
perpetuando uma oposição dicotômica que naturaliza essa
divisão como universal, tornando trajetórias divergentes, no
campo do gênero e da sexualidade, como grupos moralmente
condenáveis ou “abjetos”. Assim, nega-se a possibilidade de
reconhecimento ou respeito às trajetórias e experiências vividas
por agências humanas que não se orientam por essa dicotomia.
Se partirmos do pressuposto de que toda a realidade é
socialmente construída, é possível compreender que todos esses
sistemas estão socialmente inter-relacionados e produzem
significados estruturantes de relações de dominação.

Conforme Scott (1995, p. 86), gênero também pode ser


compreendido como “uma forma primária de dar significado às
relações de poder”, que se relaciona com outros elementos de
poder, entre eles, os símbolos e os conceitos normativos. São

71
esses conceitos que interpretam cognitivamente os significados
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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dos símbolos, limitando e contendo suas possibilidades


metafóricas (sejam esses conceitos difundidos pela educação,
pela religião, pela ciência, pela política, pelas normas jurídicas,
pelos discursos propagados pela mídia). Tais interpretações
normativas reforçam posições, modelos de vida e padrões de
comportamento. Assim, a posição que emerge como dominante
é declarada a única possível (SCOTT, 1995).

Nesse contexto reflexivo, incorpora-se o que Michel


Foucault (1988) considera como a ideologia vitoriana da
“domesticidade” quando trata das sexualidades. O que não é
regulado dentro da norma social da família conjugal
heteronormativa, com a função de reprodução da espécie, deve
ser encoberta, os corpos devem ser escondidos, a decência deve
limpar os discursos. “E se o estéril insiste [em se revelar], se
mostra demasiadamente, vira anormal” (FOUCAULT, 1988, p.
10) – e deverá pagar por isso. Os “dispositivos de sexualidade”
reguladores e normatizadores são impostos para produzir
discursos verdadeiros sobre o sexo: a prática discursiva que se
estabelece nas oposições binárias entre corpo-alma, carne-
espírito, instinto-razão coloca as agências sob o signo da
concupiscência e do desejo (FOUCAULT, 1988, p. 88).

Compreender os mecanismos de dominação que se


estabelecem pela interdição do desejo, pelo confinamento das
sexualidades, significa situar a correlação existente entre o poder
heteronormativo e a dominação no interior das práticas sociais,
a partir das hierarquias que envolvem o poder masculino sobre o
feminino (e o silenciamento em torno de outras possibilidades de
existência de gêneros). O mundo “real”, reproduzido por padrões
discursivos heteronormativos, é sustentado por modelos
“neutros” e “normalizadores” da vida social, que organizam e dão
sustentação ao cânone econômico de exploração e de controle
patriarcal-capitalista (sobre os corpos, os gêneros e as

72
sexualidades). Esse é o sistema mantenedor da ordem e do status
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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quo.

Observar as relações de dominação exercida sobre as


sexualidades oferece um método de análise que permite
compreender a dinâmica do poder “como a multiplicidade de
correlações de força imanente ao domínio”. Significa olhar para
as estratégias que definem a “cristalização institucional” que se
organiza nos aparelhos estatais, na formulação das leis e nas
hegemonias que se constituem na vida em sociedade
(FOUCAULT, 1988, p. 103). Os parâmetros são estabelecidos
pelo modelo da masculinidade do indivíduo heterossexual,
patriarcal-proprietário e branco sobre a diversidade das
feminilidades e masculinidades cis, homossexuais ou
transexuais.

Numa sociedade como a nossa, os aparelhos de poder são


numerosos, com mecanismos sutis que não se expressam
somente pelos dispositivos da lei (do legal/ilegal). O sucesso do
poder também está na proporção do que consegue ocultar, do
quanto consegue mascarar sua dominação e se tornar tolerável,
aceitável, “correto”, “verdadeiro”, “normal”. Embora as disputas
em torno do sistema jurídico, das funções do Estado e seus
aparelhos continuem presentes 1, é necessário incorporar outras
chaves de interpretação e análise sobre o poder no campo social.
Não num foco único, num ponto central, mas na mobilidade das
lutas hegemônicas, nas desigualdades que a correlação de forças
estabelece, pela onipresença do poder, “não porque englobe tudo
e sim porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1988, p.
103). Aqui, consideramos o poder não como uma instituição ou
uma estrutura, mas uma situação complexa de interação em uma
sociedade dada historicamente, em que ele é exercido a partir de
inúmeros pontos, ângulos e perspectivas, por meio de relações

1Exemplos dessas questões são as disputas pela descriminalização do aborto


(MANTOVANI, 2017) e as lutas em torno da despatologização das
transexualidades e travestilidades (BENTO; PELÚCIO, 2012).

73
desiguais e móveis “que não se encontram em posição de
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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exterioridade de outros tipos de relações (econômicas, raciais,


sexuais), mas são imanentes a elas” (FOUCAULT, 1988, p. 103).

Nas relações de poder, a sexualidade é utilizada para um


maior número de manobras. Nos exemplos referidos pelo
pensador francês, estão: a redução do sexo à reprodução; à sua
forma heterossexual; à legitimidade do matrimônio monogâmico
e heteronormativo. São dispositivos que se estruturam em torno
de regras entre o permitido e o proibido, sendo a família uma
esfera reguladora da sexualidade, da definição dos afetos, das
regras, dos padrões de comportamento e das hierarquias. No
entanto, um aspecto destacado por Foucault é relevante: onde há
poder, há resistências e, por isso, nunca [a resistência] se
encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. Há
um caráter relacional nessas correlações que pode provocar
rupturas, embora seja mais comum haver pontos de resistência
móveis e transitórios, que introduzem, na sociedade, clivagens
que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos,
percorrem os próprios indivíduos, recortando-os e atravessando
estratificações sociais (FOUCAULT, 1988, p. 107).

Na obra “A vida psíquica do poder”, Butler (2017a) chama


a atenção para a sujeição como parte constitutiva dos sujeitos. A
autora destaca que, em geral, estamos acostumados a pensar o
poder e a dominação como “algo que pressiona o sujeito de fora,
que subordina, submete e relega a uma ordem inferior”
(BUTLER, 2017a, p. 10). No entanto, o poder também “forma” o
sujeito. Determina a condição de sua existência e a trajetória de
seus desejos (ou a repressão deles pelos dispositivos da
sexualidade definidos por Foucault). Dessa forma, o poder não é
apenas aquilo a que nos opomos. É também parte de nossa
existência, algo que dependemos para existir, algo constitutivo
dos seres.

74
Compreender que o sujeito é iniciado por meio da
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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submissão primária ao poder (dos pais sobre os filhos) é


relevante para compreender como se introjeta a dominação (seja
pela autocensura, pelas automortificações corpóreas, pela
repressão ou pela regulação) e que formam os fenômenos
sobrepostos de consciência e má consciência (BUTLER, 2017a, p.
11). Tais aspectos são essenciais para compreender os
mecanismos de formação, permanência e de continuidade do
sujeito, que também constitui sua identidade pessoal. Aqui,
incorporamos o que a autora procura refletir sobre “como o
poder produz o sujeito”, no sentido que Foucault discute a
“produção discursiva do sujeito” (BUTLER, 2017a, grifos das
autoras). Ao contrário do discurso do dominador, que tenta
“naturalizar” a sujeição e a condição de subordinação dos
sujeitos, essa subordinação primária que se impõe, e também o
forma, sugere uma ambivalência no que concerne ao surgimento
do sujeito: “Se o sujeito jamais se forma sem o apego apaixonado
a quem o subordina [porque esse amor está vinculado aos
requisitos da vida, da sobrevivência], significa que a
subordinação é fundamental para o vir a ser do sujeito”
(BUTLER, 2017a, p. 16).

Para compreender o surgimento desse sujeito, sua ruptura


com a sujeição e com uma “versão aceita da realidade”, Butler
(2017a, p. 21) sugere uma volta performática, ou seja, ao agir, o
sujeito retém as condições de seu surgimento, alterando o poder,
assumindo esse poder sobre si a partir de um deslocamento. Uma
alteração que é ambivalente: ao mesmo tempo, é resistência e
uma recuperação de poder. “O poder não só age sobre o sujeito
como também, em sentido transitivo, põe em ato o sujeito,
conferindo-lhe existência” (BUTLER, 2017a, p. 22, grifo da
autora). Hipoteticamente, podemos considerar os momentos em
que os sujeitos oprimidos pelo padrão heteronormativo de
gêneros tomam consciência de si (sejam as mulheres cis sujeitas
à dominação masculina ou mulheres lésbicas, bissexuais,

75
homens gays, transexuais ou transgêneros), rompem com o
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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processo de dominação e opressão a que estão submetidas/os e


deslocam esse poder no sentido de se apropriar dele,
constituindo-se enquanto outro sujeito.

3 O poder e as construções discursivas: linguagem,


estereótipos e transgressões ao dominante

Os discursos têm uma relação ativa com a realidade. A


linguagem se relaciona com a realidade “no sentido da
construção de significados” e não de forma “passiva”, como mera
referência aos objetos, os quais são tidos como “dados na
realidade” (FAIRCLOUGH, 2016, p. 68). No campo jornalístico,
a notícia é um registro seletivamente construído dos
acontecimentos sociais. Seus agentes estão constituídos de
saberes, procedimentos, “habitus” e normas reconhecidas
socialmente como o ambiente legítimo em que essas práticas
discursivas podem ser construídas e oferecidas diariamente
como forma organizadora de um sentido para o mundo
(BOURDIEU, 2007, p. 9). No contexto discursivo, os estereótipos
atuam nessa dinâmica como mecanismos que auxiliam a
“traduzir” ou simplificar questões para sua propagação massiva.
Com isso, posições e hierarquias podem ser naturalizadas,
conflitos tendem a ser neutralizados ou conduzidos até o limite
em que a ordem estabelecida não seja posta em risco. Narrativas
simplificadoras que estão presentes no discurso jornalístico –
uma característica inerente à atividade – tendem a universalizar
pressupostos, tornando-os senso comum, o que também atua
para a manutenção da ordem social e política vigentes.

Do ponto de vista das reflexões sobre o poder, o controle


sobre os bens de produção simbólica (e o campo jornalístico é
uma esfera central) significa deter um poder sobre as interações
sociais. Aquele mediado pelos meios de comunicação de massa
elabora práticas discursivas que se constituem como

76
universalizantes, contribuem para reproduzir identidades
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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sociais, relações, sistemas de conhecimento, crenças e valores,


bem como para transformá-las (FAIRCLOUGH, 2016, p. 96).
Como prática social, o jornalismo disputa valores, constrói
significados, é um “elemento ativo” na seleção dos
acontecimentos e na construção da realidade social
(MANTOVANI, 2017, p. 65). A ideia de uma esfera em que os
discursos são construídos de forma imparcial, neutra, objetiva e
plural confronta-se com realidades cada vez mais explícitas das
disputas pela definição da agenda política e como os diversos
interesses de grupos sociais dominantes atuam, tensionam e
interagem com a mídia (sobretudo aqueles com acesso ao campo
midiático, como o poder econômico, político e jurídico). A
resultante dessas relações colabora para a construção de
enquadramentos hegemônicos e no posicionamento dos
discursos colocados no centro do debate público. Mas o acesso
aos espaços da “controvérsia legítima” da mídia (HALLIN apud
MIGUEL; BIROLI, 2017, p. 10) é desigual. Vozes dissidentes ou
“desviantes” de um consenso social tendem a não ser
consideradas. Quando o são, isso ocorre de modo relativizado,
atomizado ou, ainda, secundarizado no contexto noticioso. Dessa
forma, ruídos que “não são acomodados facilmente, pelos
antagonismos, tenderão a sofrer uma readequação por meio de
vieses nos enquadramentos ou nos estereótipos selecionados
para compor o relato” (BIROLI, 2017b, p. 107).

Nas palavras de Fairclough (2016, p. 129), “a prática


discursiva, a produção, a distribuição e o consumo (como
também a interpretação) de textos são uma faceta da luta
hegemônica”. Como mecanismos que auxiliam as interpretações
cognitivas coletivas, os estereótipos funcionam como
ferramentas importantes para a rotina jornalística, uma vez que
o noticiário tende a ser construído dentro de parâmetros e de
sentidos que podem ser compartilhados por um conjunto amplo
de indivíduos na sociedade. Na base desses procedimentos,

77
também se encontram padrões morais e valores que o jornalismo
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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contribui para reproduzir, reforçar ou ainda reacomodar em


novas situações (BIROLI, 2017b, p. 138). Nesse aspecto, os
estereótipos atuam como peças-chave nas relações de poder. As
definições de certos parâmetros discursivos podem produzir
julgamentos, estigmas, valorização ou desvalorização de grupos
sociais específicos.

A travesti negra fala a partir de sua localização social


assim como o homem branco cis. Se existem poucas
travestis negras em espaços de privilégio, é legítimo
que exista uma luta para que elas, de fato, possam ter
escolhas numa sociedade que as confina num
determinado lugar, logo é justa a luta por
representação, apesar dos seus limites. Porém, falar
a partir de lugares é também romper com essa lógica
de que somente os subalternos falem de suas
localizações, fazendo com que aqueles inseridos na
norma hegemônica sequer se pensem. Em outras
palavras, é preciso cada vez mais que homens
brancos cis estudem branquitude, cisgeneridade,
masculinos. (RIBEIRO, 2017, p. 84, grifos das
autoras).

O debate sobre “lugar de fala”, mote da citação de Djamila


Ribeiro referenciada acima, é imprescindível para a discussão
sobre os estereótipos reproduzidos e naturalizados, para que seja
considerada a posição de privilégio de quem se coloca na função
de rotular outros indivíduos. Citando Rosane Borges,
entrevistada da matéria “O que é lugar de fala e como ele é
aplicado no debate público”2, Ribeiro (2017, p. 84) frisa que ter
consciência a partir de qual lugar falamos é, antes de tudo, uma
postura ética, para que se percebam também as hierarquias, as
questões que envolvem desigualdades, pobreza, racismo e
sexismo. Se, por um lado, os estereótipos podem atuar de forma
não estática, configurando sínteses simbólicas, promovendo

2MOREIRA, Matheus; DIAS, Tatiana. O que é ‘lugar de fala’ e como ele é


aplicado no debate público. Nexo Jornal, 16 jan. 2017. Disponível em:
<https://goo.gl/KgMHZQ>. Acesso em: 21 set. 2017.

78
novas interações e referências alternativas, estabelecendo
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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compreensões e experiências diferenciadas de uma diversidade


mais ampla do mundo social existente. Por outro lado, tendem a
funcionar como um conjunto de “chaves interpretativas” que
podem atuar como ferramentas de sustentação de posições de
poder e dominação. Os estereótipos, na perspectiva dos estudos
de mídia, são características ou atributos daquilo que é retratado:
são “rótulos” que auxiliam a descrever o objeto, estruturando o
pensamento sobre ele (MCCOMBS, 2009, p. 145).

Em seu artigo sobre “as cinco faces da opressão”, Iris


Marion Young (2000, p. 75) define os estereótipos como
“mecanismos atuando nos processos da vida cotidiana”. Dessa
forma, podemos compreender que os estereótipos e a realidade
se retroalimentam. Podem, inclusive, impor uma interpretação
de traços sob a ótica dominante, oferecendo marcos
interpretativos tratados como naturais e comuns, tornando
invisíveis realidades ou mesmo perspectivas posicionadas no
interior desses mesmos grupos. Assim, os estereótipos são
ferramentas discursivas que promovem a circulação de discursos
que podem institucionalizar modelos de julgamento. Quando
internalizadas, essas imagens podem produzir padrões de
comportamento que confirmam potencialmente os estereótipos
socialmente construídos (BIROLI, 2017a, p. 125).

Nas narrativas jornalísticas, os estereótipos podem estar


posicionados de forma a desvalorizar, distorcer ou hipervalorizar
grupos sociais ou identidades em desacordo com normativas
dominantes. Essas construções discursivas estabelecem
dinâmicas de poder na sociedade. Nessa perspectiva, os
estereótipos funcionam como “artefatos morais e ideológicos que
têm impacto para a reprodução das relações de poder” (BIROLI,
2017a, p. 128). Como exemplo, podemos citar os padrões
femininos e masculinos de beleza, os papéis de gênero, as
hierarquias definidas pela racialidade, o entendimento dos

79
grupos LGBTs como “desviantes” ou dos indígenas como
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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“alcoólatras” e os sem-terra como “invasores”.

A questão a considerar no discurso midiático é que sua


capacidade massificadora pode tornar válidas determinadas
referências como sínteses que auxiliam a traduzir os
acontecimentos, naturalizando essas abordagens e tornando-as
dominantes para interpretar a realidade. Quando observamos a
linguagem e as práticas discursivas nas relações de gênero e nas
definições sobre as sexualidades, por exemplo, certas
configurações culturais de gênero assumem o lugar do “real”,
além consolidar e incrementar sua hegemonia por meio de uma
autonaturalização apta e bem-sucedida (BUTLER, 2017b, p. 69).
Conforme argumenta a autora, se há algo de certo na ideia de que
ninguém nasce mulher, mas “torna-se” mulher – em explícita
referência a Simone de Beauvoir (1980) – isso decorre da
compreensão de que mulher é um termo em processo que não se
pode dizer que tenha uma origem e um fim. Como prática
discursiva contínua, o termo está em aberto a intervenções e
ressignificações, assim como as sexualidades.

Connell e Pearse (2015, p. 156), ao questionarem as


relações de gênero e a política de gênero nas quais estamos
socialmente imersos, reiteram que, ao mesmo tempo em que
“somos ‘cobrados’ por nossas condutas generificadas”, a maneira
com a qual nos colocamos quanto a essa imposição/cobrança, ou
seja, “nossa prática de gênero”, reflete “poderosamente” a
“ordem de gênero em que nos encontramos”. Nesse sentido, as
relações de gênero com as quais nos deparamos cotidianamente
podem ser entendidas por duas vertentes: (a) a reivificação dos
preconceitos e estereótipos que engessam sujeitos, retirando seu
caráter de autonomia e de ser em si; (b) a possibilidade da
ruptura a partir de enxergar o outro como sujeito político e
repleto de sentido em si.

80
As autoras ressaltam que, enquanto houver continuidades
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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consideráveis na ordem de gênero – entendida aqui como


reprodução de estereótipos e naturalização dos papéis que
competem a homens e mulheres na perspectiva heteronormativa
–, a resistência e o debate que tais reproduções inspiram
contribuem para a mudança e para uma nova política de gênero
(CONNELL; PEARSE, 2015, p. 187). Sendo assim, discutir a
partir de parâmetros feministas a linguagem, as construções
discursivas e as relações de poder que se estabelecem a partir das
interações entre gênero e sexualidades significa ampliar o debate
sobre a ideia de que o próprio sujeito das mulheres não é mais
compreendido como estável ou permanente (BUTLER, 2017b, p.
69). Por essa razão, compreender os sistemas simbólicos da
narrativa e da prática discursiva significa considerar que a
representação política e a linguística estão repletas de poder e se
constituem enquanto instrumentos de legitimação do
dominante, organizado pela caracterização normatizadora do
padrão heteronormativo, hierárquico do masculino branco e
patriarcal.

Conforme sustenta Butler (2017b), para o feminismo, é


importante compreender as formas em que são produzidos os
sujeitos e os mecanismos de legitimação, exclusão e
naturalização dos padrões dominantes. Implica num
entendimento sobre a complexidade dessas interações e como o
reconhecimento das novas agências permite confrontar os
modelos hegemônicos de dominação, que tendem a universalizar
e essencializar as identidades sociais. Ao mesmo tempo, oferece
um caminho de análise crítica para observar os sistemas
simbólicos de legitimação do poder, como é o caso dos meios de
comunicação de massa. E como seus mecanismos e práticas
discursivas podem atuar para legitimar e sustentar
ideologicamente tais relações de poder.

81
4 Interações mediadas pela mídia de massa:
abordagens controladas de contra -discursos
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abordagens controladas de contradiscursos

O campo jornalístico é uma esfera importante na


construção da realidade e na forma como os indivíduos orientam
suas compreensões em relação ao mundo social. Sua relevância
está não apenas na capacidade de propagação massiva dos
discursos, mas porque seus processos internos de seleção e
definição do que é importante e como esses discursos serão
construídos produzem efeito na interpretação e compreensão dos
acontecimentos. Por isso, o campo jornalístico não pode ser visto
ou tratado como um espaço neutro, uma vez que seus agentes
atuam sobre as mensagens construídas, reafirmam visões de
mundo e de perspectivas sociais definidas não somente por
posições econômicas e de classe, mas também pelas marcas de
gênero, raça e sexualidades de seus agentes. Assim, as tensões e
os conflitos de poder existentes na sociedade perpassam o
interior da esfera, mas são “mediadas” pelas percepções de
mundo social de acordo com os interesses de classe ou frações da
classe dominante, por meio da produção simbólica, que confere
legitimidade a esse domínio (BOURDIEU, 2007, p. 12).

Desde uma perspectiva crítica, o campo midiático não se


constitui como um espaço “desinteressado”, posicionado “acima”
ou “distante” dos conflitos sociais e das lutas hegemônicas. Ao
contrário, são partícipes desses processos complexos e atuam na
sociedade civil como legitimadores, no plano simbólico, das
estruturas de poder dominantes (BOURDIEU, 2007). Mas, como
dissemos, não são esferas impermeáveis aos conflitos. São
capazes de absorver, promover ajustes e se adaptar às demandas
e pressões sociais, de forma a ocupar novas posições, acomodar
ambiguidades e conflitos nos limites do “aceitável”. Dessa forma,
“mobilizam uma visão parcial e orientada do que é politicamente
relevante e razoável” (BIROLI, 2017b, p. 112):

82
(...) conflitos sociais que estão diretamente
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relacionados às formas de concentração de poder e


distribuição de recursos (simbólicos e materiais) não
são mencionados ou aparecem como uma espécie de
sombra indesejável, que acaba servindo para reforçar
os limites legítimos da política (...). Cabe-lhes o
silêncio ou a estigmatização – de temas, atores e
formas de ação política (BIROLI, 2017b, p. 112).

O tratamento dado à pobreza e ao racismo institucional


podem ser exemplos de temas que, quando abordados no
noticiário ou entretenimento, costumam estar esvaziados de
conflitos, tratados de forma isolada de suas causas estruturais
geradoras da profunda desigualdade. Em algumas situações, são
claramente retratados em formas moralmente orientadas por
compreensões estigmatizadas sobre pobres e ricos em seu
comportamento político (BIROLI; MANTOVANI, 2010). Por
outro lado, a comunicação mediada pelos meios massivos pode
ser um ambiente de afirmação das subjetividades, sobretudo
quanto ao que se refere a mídias sociais e internet. A forma
menos verticalizada e difusa das mídias sociais pode auxiliar na
expressão de demandas políticas relativas aos gêneros, às
sexualidades e as racialidades. Assim, “o contato mediado
permitiu acesso a sujeitos cujos desejos, práticas sexuais e, até
mesmo, demandas políticas que permaneciam invisíveis ou
apenas tangencialmente analisados nas pesquisas sociais”
(MISKOLCI; PELÚCIO, 2017, p. 264). Essas novas mídias
reconfiguram o ambiente político e social, produzem tensões e
ampliam a expressão dos discursos subalternizados, dissidentes
ou de minorias sociais, embora paradoxalmente, seja também o
espaço para difusão de discursos de ódio (MISKOLCI; PELÚCIO,
2017, p. 266).

As mobilizações nas mídias sociais, grupos sociais e


movimentos políticos pressionam os meios tradicionais de
comunicação. A incorporação das agendas e demandas por
reconhecimento vem ocorrendo paulatinamente como forma de

83
adequar os veículos às questões contemporâneas, moldando
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

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essas reivindicações e adequando-as às construções da política


dominante. Numa análise empírica inicial, é possível observar a
presença desse fenômeno de inter-relação. Apenas para efeito de
análise ilustrativa desse artigo, buscamos alguns dados, em uma
pesquisa em andamento, sobre a abordagem da palavra
“transexual/transexuais” no jornal Folha de S. Paulo, de 1 de
janeiro a 31 de dezembro de 2017. Nesse ano, foram encontrados
166 textos com a palavra em diversas editorias, sendo: 43, na
editoria “Ilustrada”; 39, em “Acontece” (página de programação
cultural e de cinema), Guia da Folha (programação cultural e
agenda de eventos); 17 menções em “Cotidiano e Esporte”
(matérias de comportamento e dia a dia da cidade de São Paulo);
15 textos em “Primeiro Caderno” (editoriais, opinião, política,
economia, sendo considerado pela literatura dos estudos de
mídia o espaço hierarquicamente mais elevado na posição
editorial dos impressos)3, três textos em “Revista de S. Paulo”,
outros três em Ilustríssima e dois textos em Cotidiano
(reportagem sobre a conclusão de doutorado de uma mulher
transexual).

A título de comparação, a busca pelas mesmas palavras,


no ano de 2016, retornou 159 resultados. Em 2015, 105 registros
foram publicados com essas palavras; e, em 2014, foram 96
menções. Em todos os anos, a característica principal foi que o
assunto estava, na maioria dos textos, vinculado às editorias
ligadas a cultura, comportamento e entretenimento. Tal
enquadramento reforça um viés para o tratamento em uma área
secundária na hierarquia de importância no interior das
redações, o que sugere que pode haver uma tendência de o campo
jornalístico não abordar o problema da pobreza, da violência e da

3Nesse espaço, estão matérias que abordam decisões judiciais em favor das
pessoas transexuais; direitos civis; ações judiciais proibindo exposições e
peças de teatro – polêmica que envolveu a cidade de São Paulo, mas também
algumas capitais do país, com exposições de arte trans; matérias sobre a
Bancada Evangélica em relação ao tema “identidade de gênero”, entre outros.

84
falta de oportunidades – realidade de grande parte das pessoas
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

transexuais – como um problema político. Ao mesmo tempo,


abordagens deslocadas das relações de poder presentes nessas
realidades tendem a naturalizar a ausência de representação
política e de visibilidade para as demandas coletivas nos espaços
de poder e de decisões. Algo que McCombs (2009, p. 111) aponta
como um dos efeitos da mídia em seus processos de
agendamento em segundo nível; isto é, a forma como os temas
compartilhados serão caracterizados, em que molduras esses
temas se tornarão visíveis, podem orientar como as pessoas veem
os problemas sociais.

Os estudos feministas ressaltam que gênero não é apenas


uma diferenciação político-econômica (de divisão sexual e valor
do trabalho no interior das classes), mas também uma
diferenciação cultural em que a sexualidade é uma categoria
relevante porque aponta diretamente para as injustiças
produzidas pelas conexões entre gêneros e sexualidades, ao
confrontar o poder hierárquico definido pela heterossexualidade
compulsória. Dito de outra maneira: a construção autoritária de
normas androcêntricas privilegiam características orientadas
pelo masculino e seus modelos discursivos e de linguagem
naturalizados como “neutros”. Podemos encontrar o sentido
dessa crítica em uma das reportagens que compõem os estudos e
análises qualitativas dos textos jornalísticos na Folha de S. Paulo.
Trata-se de um jovem gay, evangélico e youtuber que produz
programas a partir de uma concepção definida pelo entrevistado
como “teologia inclusiva”, para “enfrentar preconceitos dentro e
fora” do evangelismo. De acordo com a matéria, no final do texto,
o jovem Artur Vieira diz que “não basta o ‘Fantástico’ fazer
matéria com transexual e não incluir mais trans na equipe. E a
Fernanda Lima não é gay, então não vai saber falar com gay como
eu. Quem conhece essa dor do preconceito sou eu” (VIEIRA apud
BALLOUSSIER, 2017, p. B4).

85
Fraser (2001, p. 260) destaca o sexismo cultural, ou seja,
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

a construção discursiva que pode produzir “a desvalorização e


depreciação aguda das coisas vistas como “femininas” (não
apenas da ‘mulher’)”. Essa depreciação se expressa em
“agressões e exploração sexuais, violência doméstica,
‘coisificação’, humilhação estereotípicas nas representações da
mídia” (FRASER, 2001, p. 261). O noticiário, feito pelas escolhas
e seleções características das rotinas e da visão de mundo dos
profissionais do jornalismo, pode construir “atalhos cognitivos”
que tendem a salientar perspectivas e interpretações dominantes
e, assim, mesmo não intencionalmente, podem reproduzir
caracterizações simbólicas, posicionando pessoas e suas
vivências em modelos hierárquicos e em papeis sociais
subalternos, sustentando relações de poder ao reproduzir
determinadas situações como um dado da realidade 4 . Dessa
forma, por meio dos estereótipos, que procuram oferecer
construções discursivas que “expliquem” a realidade, as
narrativas produzidas pelos meios de comunicação têm o poder
de reforçar injustiças.

Paradoxalmente, é preciso considerar que os estereótipos


podem se tornar formas de resistências cotidianas quando as
experiências são compartilhadas e as queixas individuais
tornam-se coletivas. E, mais relevante, tornam-se ações coletivas
transformando individualidades em sujeitos políticos coletivos
que falam por si e sobre si (SCOTT, 2011). É o que se pode
perceber por meio do ativismo articulado em grupos sociais
organizados como os movimentos negros, movimentos
feministas, movimentos LGBTs e movimentos Queer. São
perspectivas sociais que atuam no sentido de ressignificar

4Exemplos desses enquadramentos podem ser verificados em matérias sobre


o trabalho doméstico, em que as posições sociais reproduzidas no noticiário
naturalizam hierarquias: o mundo público/político dos homens (maior parte
dos parlamentares ouvidos eram homens) e o mundo privado/doméstico das
mulheres, sendo que as mulheres brancas (majoritariamente, na posição de
patroas) e as mulheres negras (na posição de domésticas) (ALMEIDA, 2017).

86
expressões, palavras, piadas sobre seus corpos e suas existências.
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

Os contrapúblicos subalternos, definidos por Fraser (1999, p.


157), atuam como “cenários discursivos paralelos”, nos quais os
contradiscursos são práticas de contestação que atuam no
sentido de formular interpretações de suas identidades,
vivências, interesses e necessidades, que se constituem enquanto
“uma forma de resistência democrática em sistemas
estratificados”, como é o caso da sociedade brasileira.

É também importante destacar o aspecto positivo de o


jornal Folha de S. Paulo abordar a realidade das pessoas trans,
tornando “visíveis” essas vivências. Porém, as realidades são
retratadas de forma pontual, individualizadas, sem aprofundar
questões estruturais como a heteronormatividade dominante,
que oferece um ordenamento moral simplificador e dicotômico
entre “o certo e o errado”, o “normal e o anormal” nas relações
sociais. Ou ainda, desconsidera posições fora do modelo binário
heteronormativo (masculino e feminino). Assim, as pessoas
trans são tratadas como “diferentes”, posicionadas
hierarquicamente pelos enquadramentos (e os estereótipos)
abaixo das sexualidades definidas como “normais” (provenientes
da heteronormatividade dominante).

Um caso que expressa a complexidade do que se pretende


apontar aqui pode ser exemplificado na matéria sobre um
programa social da Prefeitura de São Paulo. A realidade de
ausência de oportunidades e violência foi retratada pelo jornal ao
ouvir a moradora de rua trans Paula Rocha, 42 anos, que “virou
cabeleira em programa de Doria”. O programa intitulado
“Trabalho Novo” foi criado em janeiro de 2017, pela Prefeitura de
São Paulo, a fim de inserir pessoas em situação de rua no
mercado de trabalho (AMANCIO, 2017, p. B5). Em outra
reportagem, uma realidade bem diferente de conquista
profissional de uma pessoa transexual foi apresentada com o
perfil da advogada Gisele Alessandra Schmidt e Silva, primeira

87
transexual a subir no plenário do Supremo Tribunal Federal
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

(STF) para defender o direito de transexuais mudarem o nome e


o sexo no registro civil, sem a necessidade de cirurgia: “Não
somos doentes. Não sofro transtorno de identidade sexual. Sofre
a sociedade de preconceitos historicamente arraigados contra
nós”, sustentou, no plenário, a advogada (CARAZZAI, 2017, p.
B4).

Em que pese os textos ressaltarem a realidade de exclusão


e a conquista de um espaço profissional, são registros pontuais
que “isolam” essas experiências da realidade coletiva das
populações LGBT e Queer, no Brasil. O ponto está na posição de
como se olha para a questão, “o lugar de fala” (RIBEIRO, 2017,
p. 84) em que essas narrativas são construídas. Quando a
perspectiva está posicionada no constructo heteronormativo,
branco e de classe média, ou seja, quando se observa de onde se
parte para definir os sujeitos/personagens das narrativas
jornalísticas, podemos considerar situações associadas ao que
Mackinnon (2014, p. 32) chama a atenção enquanto uma
“igualdade abstrata”, universal, marcada pelo masculino
posicionado como “neutro”.

Observar como as sexualidades são construídas a partir


das perspectivas das críticas feministas significa chamar a
atenção para o fato de que tanto as sexualidades como o gênero,
a raça e a classe social não podem estar separadas, pois afetam
profundamente os sujeitos marcados por essas vivências
interseccionais. O fato de uma pessoa ser mulher hétero/cis, gay,
lésbica, trans, branca, negra, pobre ou rica a posicionará em
situações específicas em termos de oportunidades ou de riscos de
sofrer violências (ARARUNA, 2018).

Sob o ponto de vista das subjetividades que rompem com


os sistemas de opressão e dominação introjetados no self,
deslocando o poder que as sujeita para ressignificá-lo enquanto
um poder constitutivo de seu “novo” sujeito (vistos na primeira

88
parte do artigo), os contrapúblicos subalternos são espaços
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

discursivos essenciais para a construção dos lugares de fala, com


voz própria. Eles expressam a diversidade das vivências das
agências, valorizam práticas discursivas divergentes e, ao mesmo
tempo, pressionam estruturas sociais e culturais (como o campo
da mídia, o político, o jurídico) a incorporá-los no debate público,
além de evidenciar posições de privilégios de alguns em
detrimento de silenciamentos e anulações de outros grupos.

No entanto, como dito anteriormente, essa incorporação


ao debate público ocorre em marcos limitados e de baixa
pluralidade em relação aos conflitos sociais. No caso dos meios
de comunicação, a compreensão compartilhada sobre quem são
as fontes legítimas relacionadas às hierarquias políticas,
econômicas e sociais “não exclui conflitos, mas tende
rotineiramente à acomodação”, seja pela sustentação recíproca
da legitimidade (entre as fontes e os jornalistas) produzida pelo
compartilhamento de visões de mundo estruturantes da
sociedade, seja pelo compartilhamento de referenciais
socioeconômicos comuns para o jornalismo (BIROLI, 2017b, p.
105-107). Nesse ponto, também se inclui o interesse de classe das
empresas de comunicação. Esses aspectos “organiza[m] o
noticiário e define[m] o acesso às janelas de visibilidade”
(GOMES apud BIROLI, 2017b, p. 105). Podemos acrescentar:
define a visibilidade e a forma com a qual será retratada.

Outro aspecto que deve ser considerado positivo é, sem


dúvida, a presença do tema da transexualidade na novela das 21h
“A força do querer”, escrita por Glória Perez e exibida pela Rede
Globo, no ano de 2017, o que levou o assunto para dentro das
casas das famílias brasileiras. Porém, essa decisão não foi
aleatória. Em outra reportagem, o jornal Folha de S. Paulo
registra que a personagem Ivana, transexual masculino que fará
seu percurso para a personagem Ivan, foi fruto de uma escolha
estratégica da emissora. Conforme o impresso paulista, “a

89
personagem de Carol Duarte faz parte de uma estratégia da
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

Globo em busca de mobilização social para discutir nas telas


sexualidade e identidade de gênero” (BARGAS, 2017, p. C4). O
texto informa que o departamento de Responsabilidade Social
“identifica temas a partir de encontros com o público,
monitoramento de redes sociais e conversas constantes com
especialistas”, conforme afirma em declaração à reportagem a
diretora do departamento, Beatriz Azeredo (BARGAS, 2017, p.
C4). A matéria mostra como a emissora, principal rede de
televisão do país, está preocupada em observar os assuntos que
envolvem a nova geração de cidadãos brasileiros,
principalmente, o público com menos de 30 anos. Com isso, a
emissora ocupa um espaço estratégico (e de simpatia) na
sociedade, ao levar para o entretenimento questões com as quais
a juventude, as famílias e as escolas estão lidando. E aborda de
forma organizada, na estrutura empresarial, gerando conteúdo
para vários programas, seja no campo do entretenimento ou do
jornalístico (BARGAS, 2017 p. C4).

É claro que o posicionamento progressista da Rede Globo


quanto à temática LGBT é relevante e, sem dúvida, amplia
possibilidades de abordagens em direção a segmentos
tradicionais da sociedade e eventualmente refratários para temas
de direitos humanos e diversidades. A estratégia para construir
“empatia” do público com a personagem trans certamente
envolveu aspectos como a classe social (família rica) e cor
(branca). Isso nos permite refletir sobre os limites estabelecidos
para as controvérsias políticas (entendendo como um conceito
ligado aos conflitos presentes na sociedade civil, não
exclusivamente aos partidos políticos, mas esses também). Em
nossa compreensão, os meios de comunicação estão
posicionados social e economicamente (são grupos empresariais
com interesse de classe).

90
Nesse sentido, compartilhamos de posições que entendem
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

que os conflitos presentes nos meios de comunicação (mesmo


nos espaços de entretenimento) não ultrapassam determinados
limites e pode, muitas vezes, reforçar enquadramentos que não
questionam aspectos estruturais das desigualdades sociais, como
é o caso do racismo e do estigma da pobreza que produz o
aprofundamento de violências e ausência de oportunidades.
Apenas como hipótese, se a personagem Ivana fosse negra e
pobre, talvez os resultados para a abordagem do tema – o que
implicaria em tratar dos problemas da periferia, do racismo e da
pobreza estruturais e as violências vinculadas a essas realidades,
característica da esmagadora maioria da população brasileira –
não atenderiam aos interesses estratégicos (e comerciais) da
emissora.

Assim, os conflitos são retratados a partir de um conjunto


de variáveis definidas dentro de determinadas tensões,
controladas social, econômica e ideologicamente. Os meios de
comunicação, enquanto um sistema de construção discursiva da
linguagem dominante, podem ser posicionados como “esferas de
consenso” e da “controvérsia legítima” (HALLIN apud BIROLI,
2017b, p. 110). O papel da mídia seria de “reguladora da
pluralidade política e social”, ou seja, não deixaria de expor
conflitos, mas teria a função de “excluir da agenda pública
aqueles que violam ou desafiam os consensos políticos
demarcando os limites do conflito político aceitável” (HALLIN
apud BIROLI, 2017b, p. 111). Em outras palavras: ao expor
conflitos reais, os veículos tendem a demarcá-los em
enquadramentos configurados em determinados limites,
excluindo da agenda aspectos que poderiam desafiar as
estruturas dos consensos sociais hegemônicos. Palavras como
objetividade, neutralidade e isenção servem para corroborar um
caráter ideológico e de transcendência para a mídia. Estando
“acima” dos interesses em conflito, é possível construir a ideia de
legitimidade necessária para selecionar e definir os contornos de

91
práticas discursivas vistas como aceitáveis e, ao mesmo tempo,
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

reforçar posições socialmente dominantes, silenciando ou


relativizando realidades e demandas e suas sub-representações
na política. E isso pode ocorrer tanto na prática jornalística como
no entretenimento.

5 Conclusão

Nas discussões sobre as construções discursivas nas


narrativas da mídia, é importante ressaltar alguns aspectos. O
primeiro deles é que o campo jornalístico não é uma esfera
homogênea nos posicionamentos de grupos comunicacionais
internos ao campo. Tais grupos interagem entre si de variadas
formas e com os atores políticos, grupos sociais e de interesses de
outros campos sociais. Disputam valores, concepção de mundo,
demandas sociais, tendo papel relevante no ordenamento
discursivo sobre a realidade social. Valores difundidos pelos
meios de comunicação de massa são compartilhados e suas
narrativas (e os estereótipos produzidos pela prática discursiva)
orientam percepções sobre o mundo, colaboram para legitimar
determinados posicionamentos sociais e estão em interações
múltiplas e permanentes. O segundo aspecto implica em
compreender que as relações de poder cotidianas não são
estáticas. A abordagem crítica sobre as construções discursivas,
produzidas pelo campo jornalístico e seus estereótipos de gênero,
raça, classe social e de sexualidades, são permeadas por tensões
e contradições com os quais os meios se deparam e, em alguns
casos, provenientes da ação política dos grupos sociais contra-
hegemônicos.

Aqui, cabe registrar a importância do ativismo social de


rua, nas mobilizações de grupos LGBT e Queer em mídias sociais
pela internet que colaboram para novas percepções sociais. Em
nosso entendimento, reconhecer os conflitos (e a importância
deles para a existência democrática), a mobilização e as pressões

92
dos grupos mais vulneráveis socialmente como parte constitutiva
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

de produção e reprodução de discursos e de transformações na


política, significa compreender que o caráter central para uma
sociedade plural e democrática está no respeito e
reconhecimento à diversidade política. Nas palavras de Jurema
Werneck (2008, p. 2), “a capacidade de dar nomes às coisas fala
de uma situação de poder (...) de uma possibilidade de ordenar o
mundo segundo bases próprias, singulares, desde pontos de vista
individuais quanto a partir de coletividades, de povos inteiros.
Trata-se de uma posição de privilégio”. Assim, observar a luta
cotidiana pelo controle das formas simbólicas implica considerar
“os modos como opera o poder para formar nossa compreensão
cotidiana das relações sociais e para orquestrar as maneiras que
consentimos (e reproduzimos) essas relações tácitas e
dissimuladas do poder” (BUTLER, 2017a, p. 21).

No entanto, a incorporação dessas demandas não ocorre


de forma desinteressada. Existem disputas e ajustes que levarão
a convergências. No exemplo sobre a inserção da temática
transexual na novela global, há clareza de que determinadas
estratégias são mobilizadas para a seleção de aspectos e atributos
que comporão a narrativa. Por outro lado, grupos sociais
considerados “fora dos limites” dos enquadramentos ou das
interpretações e conexões possíveis podem ser excluídos ou
posicionados de modo a reforçar estigmas ou subvalorizar suas
demandas em relação aos conflitos com os grupos dominantes
(casos como os dos movimentos de trabalhadores sem-terra, sem
teto e indígenas por demarcação de terras). Não se trata de
considerar em termos de veracidade ou falsidade as práticas
discursivas produzidas pela esfera midiática (seja no campo
jornalístico ou do entretenimento). Esses discursos fazem parte
“dos esforços para a legitimação de certos interesses em uma luta
de poder” (EAGLETON apud BIROLI, 2017a, p. 131).

93
Portanto, se, por um lado, a permeabilidade dos meios de
abordagens controladas de contra -discursos
Quando a mídia pauta a transexualidade:

Denise Mantovani e Viviane Gonçalves Freitas

comunicação pode incorporar temáticas que expressem a


realidade da diversidade social brasileira é positiva para dar
visibilidade a temas e representações sociais excluídas, por outro
lado, cabe o questionamento sobre os limites discursivos das
abordagens que, em muitos casos, podem colaborar para a
sustentação de mecanismos estruturantes da própria exclusão e
desigualdade. As hierarquias heteronormativas binárias, de
classe, de raça e de gêneros permanecem. São desigualdades
distintivas (no sentido que distinguem os sujeitos) em corpos
marcados por relações de poder – racializados, generificados.

A cultura masculinista organiza a narrativa e as interações


nas quais o problema da baixa pluralidade na representação
social é naturalizado, perpetuando desigualdades. A difusão da
violência contra grupos sociais (negros, mulheres, grupos
periféricos, minorias étnicas) são práticas reguladoras
autoritárias que buscam uniformizar a vida social e fazem do
Brasil o país que mais mata transexuais no mundo 5 e o que mais
mata jovens negros na periferia6. Tais questões não são isoladas,
mas também não são tratadas como um problema central na
perspectiva midiática, o que pode denotar um grave problema
para compreensões mais amplas sobre o sentido de democracia,
o respeito à diversidade e à pluralidade de existências sociais e
políticas públicas de Direitos Humanos em nosso país.

 Retorne ao sumário

Referências
ALMEIDA, R. Mídia e política: a construção do noticiário
sobre o trabalho doméstico no Brasil. 2017. Trabalho de
conclusão do curso. Universidade de Brasília, Instituto de
Ciência Política, Brasília.

5 De acordo com levantamento realizado em 69 países pela ONG Transgender


Europe (TGEu), de janeiro de 2008 a dezembro de 2016, foram 908
assassinatos de transexuais no Brasil.
6 Ver Mapa da violência 2017, pp. 25-32. Disponível em:
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97
essos

1 O ser negro habitado pelo popular

Trabalhar com temáticas vinculadas a relações raciais


envolve fazer uma intersecção histórica entre estrutura social,
relações de poder e construção de sentidos sobre o corpo negro.
Envolve, também, considerar o que é ser negro. Como uma
categoria de análise, ser negro pode apresentar vários vieses, em
consonância ou com identidades sociais atribuídas externamente
ao corpo negro, ou em relação ao reconhecimento de uma
identidade própria, na condição de pertencimento, de uma auto-
identificação.

As nuances e ambivalências sobre o que é ser negro


marcam os locais de conflito que o popular habita enquanto
experiências conflitantes vividas por cada pessoa. Ser negro,
desse modo, se relaciona à forma de se estar no/com o mundo,
às afetações e estímulos e, sobretudo, às experiências populares.
O popular, também como categoria de análise, está cheio de
sentidos ambivalentes, está em todas as práticas, nas histórias,

1 Trabalho apresentado no Congreso Internacional de Comunicación,


Conflictos y Cambio Social, na Universitat Jaume I de Castellón, em
dezembro de 2017.
no vivido, em todas as partes; está na inter-relação de submissões
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

e resistências, de acordo com Rincón (2016). Nessa perspectiva,


é no popular que está a concepção e, sobretudo, a vivência de ser
negro.

Se para uns, ser negro está ligado somente à


experienciação da cor da pele, ou na negação dessa condição de
forma a se branquear pelo discurso da mestiçagem, para outros,
significa resistência, afirmação de uma identidade em busca de
reivindicação de lugares sociais e novos espaços. É válido
acrescentar que, para esses que buscam uma auto-identificação
afirmativa de resistência, ser negro está relacionado à negritude.
Esta, por sua vez, é a própria consciência de pertencer à raça
negra, segundo Munanga (1988); a consciência sobre os jogos de
poder em relação ao corpo negro; a consciência do popular sobre
ser negro.

Ao falarmos de ser negro, estamos falando de identidades


sendo permeadas por processos culturais. Para Hall,

isto, de todo modo, é o que significa dizer que


devemos pensar as identidades sociais como
construídas no interior da representação, através da
cultura, não fora delas. Elas são o resultado de um
processo de identificação que permite que nos
posicionemos no interior das definições que os
discursos culturais (exteriores) fornecem ou que nos
subjetivemos (dentro deles). Nossas chamadas
subjetividades são, então, produzidas parcialmente
de modo discursivo e dialógico. Portanto, é fácil
perceber porque nossa compreensão de todo este
processo teve que ser completamente reconstruída
pelo nosso interesse na cultura (HALL, 1997, p. 26-
27).

As identidades sendo produzidas e ressignificadas pela


cultura, também nos fala do movimento circular que consiste o
popular. Ao mesmo tempo, o popular permite múltiplas formas
de percepção do mundo, admite transições e mudanças de
estágios de uma coisa a algo completamente oposto. A partir da
esfera do vivido, podemos nos apropriar de novas identificações

99
ao longo da vida, que nos permite, por exemplo, perceber o ser
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

negro de uma forma em determinada fase e de outra forma, por


vezes completamente diferente, em outro momento. Isso, com
base nas nossas experiências bastardas ou híbridas. Mas
deixemos para discutir o bastardo mais à frente.

Voltemos ao ser negro. Negar ou afirmar ser negro são


construções discursivas e assunção de narrativas, a fim de, cada
uma em sua forma, tornar menos tortuoso o peso da experiência
popular relacionada ao racismo. Cada pessoa negra encontra seu
próprio caminho para lidar com o racismo, configurado como
realidade sócio-histórica de dominação e exclusão do corpo de
cor. E os caminhos podem ser vários, delimitados entre os
pontos-limites de se assumir um corpo negro ou negar esse
corpo, de maneira a se branquear, seja discursiva ou
materialmente. De acordo com Rincón (2016, p. 41), “assumir o
racismo, o machismo, a homofobia, o classicismo faz parte da
conflitividade da sociedade, do relato e do agonismo político;
assumir que são mais do que assuntos, são também, formatos,
estéticas e narrativas”. Portanto, reconhecer-se negro é uma
construção política de luta, mas também um processo individual
de auto-reconhecimento com vários vieses.

A partir de experiências pessoais, dos conflitos vividos no


cotidiano relacionados ao corpo negro, dois jovens fizeram
relatos sobre o que significa ser negro para eles e sobre situações
de racismo que passaram, implicadas na experiência corporal. O
contexto da apreensão de tais relatos foi um grupo de conversa
realizado com jovens negros, como um dos procedimentos
metodológicos da minha pesquisa de mestrado realizada em
2016, cuja temática consistiu na discussão da violência policial
contra juventudes negras. Quando foram indagados sobre o que
significa ser negro, os dois interlocutores, um de 25 e outro de 28
anos, desconhecidos entre si e ambos recém-graduados na época,

100
apresentaram significações e momentos processuais de
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

reconhecimento diferentes.

P: O que é ser negro para vocês?


I1: Cor da pele.
I2: Não tô aqui generalizando, mas é uma trajetória
social. É muito mais do que a cor da pele, nesse
aspecto, muito por conta de onde nós viemos e por
conta de nós nos relacionamos e por conta do que
significa principalmente os lugares de poder. [...] A
condição, ao meu ver, de ser negro, ela tá na cor da
pele, mas ela tá no lugar social enquanto você fala,
nos espaços que você está, principalmente nos
embates que você vai ter. Muito por conta do que
você pensa, do que você acha da sua condição.2

Percebemos com a resposta dos interlocutores, diferentes


acepções sobre ser negro, de acordo com o momento vivido por
cada um. Nessa conflitividade da construção de identidades, ou
das formas de se perceber identidade, o popular se mostra como
uma experiência bastarda, como um jogo dialético de culturas
bastardas ou híbridas. De acordo com Rincón (2016), falamos em
bastardo ou em culturas bastardas, quando reconhecemos que
não somos nem essências, nem pureza, e sim constituídos por
experiências, narrativas e discursos coletivos na cena popular. E
essas experiências - ou seja, o popular - influem nas nossas
identidades. O autor considera que nada é mais bastardo do que
o próprio popular. Segundo Rincón,

o bastardizado como marca do popular propõe que


não há pureza comunicativa nem nas identidades
outras (the other, o colonizado), nem nas tecnologias
e narrativas do mesmo (o colonizador hegemônico).
O bastardizado nomeia o que habita o popular, esses
jogos de sentidos impuros que combinam
expressivamente o midiático com o arcaico, as
estéticas do mainstream com os referentes da
identidade (RINCÓN, 2016, p. 45).

2A letra P faz referência à pesquisadora e I1 e I2 fazem referência ao


interlocutor 1 e ao interlocutor 2.

101
É nesse sentido do bastartizado que confrontos e diálogos
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

vivenciados no popular permeiam a noção de Hall (2011) de que


as identidades não são singulares, nem únicas, nem fixas, mas
estão sempre em movimento, em construção. Experimentamos
novas corporeidades, que são formas de experienciação do corpo
no mundo, novas narrativas, incorporando novos discursos e,
assim, mudamos o tempo todo. As nossas transformações e
identificações são a marca de sermos bastardos. Por isso, Hall
(2011, p. 109) evidencia que a identidade é uma“produção não
daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos”. E,
afetados pelo mundo, seguimos sempre nos tornando.

2 Corpo marcado por narrativas e narrativas corporais

Somos constituídos pelas nossas vivências corporais, a


partir das trajetórias individuais que experienciamos nas
cidades. O corpo, portanto, vivencia a cultura e sua condição
corporal bastarda. Vivemos narrativas urbanas construídas sobre
o corpo – e a partir dele - e, ao mesmo tempo, também podemos
construí-las ativamente. Por isso, o corpo é marcado pelas
narrativas e as narrativas versam sobre o corpo. E é essa a nossa
vivência bastarda no popular. O popular faz parte dos processos
comunicativos do cotidiano; faz parte do corpo com suas
vivências. Ele está nas interações, nas trocas e
compartilhamentos de sentidos. Isso porque “o popular habita,
então, as experiências e o relato” (RINCÓN, 2016, p. 29).

Relatos e narrativas podem ser, nessa perspectiva, sobre


experiências individuais – mas nunca solitárias –, narradas
subjetivamente a partir de um lugar de fala próprio e em vínculo
a uma condição corporal própria. Novamente, a referência, aqui,
é sobre o corpo negro no quadro das relações raciais
hierarquizadas, produzindo representações próprias e
emancipadoras sobre si mesmo. Por outro lado, as narrativas
também podem se dar a partir da lógica dominante da

102
branquitude que exclui, impõe estereótipos ao segmento negro
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

da população brasileira e condiciona a pessoa negra a lugares


sociais fixados e intransitáveis.

Assim, de acordo com a perspectiva de Paulo Freire


(1999), podemos estar no mundo e/ou podemos estar com o
mundo. Se pensarmos em narrativas, estamos no mundo quando
narrados pelos que nos veem pelas características fenotípicas e
nos estigmatizam pelo corpo negro, nos submetendo a uma
condição inferior e a um discurso inferiorizante. Assim, estamos
no mundo quando marcados pelo espetáculo. Por essa
perspectiva, podemos pensar que estamos no mundo somente
pelo mainstream com suas representações espetacularizadas,
fixantes e fixadoras sobre o corpo negro e a reprodução, no
cotidiano, dessas mesmas representações. Isso porque Debord
(1997, p. 14) afirma que “o espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por
imagens”.

Um exemplo persistente, no Brasil, de formas de se estar


somente no mundo se trata das narrativas predominantes, que
estabelecem sempre os mesmos papéis ao corpo negro, seja nas
telenovelas, no cinema, ou mesmo nos telejornais. Segundo
Pereira e Gomes (2001, p. 20), “a mídia continua a reforçar
imagens estereotipadas, que, veiculadas pela figura do negro
serviçal, do fora-da-lei, do atleta, ou do objeto erótico, em nada
alteram o quadro de referências” da pessoa negra imobilizada em
imagens. Essa é uma realidade própria do Brasil, que dissemina
o discurso da miscigenação e da democracia racial, pelo qual se
imagina uma convivência igualitária, democrática e sem
conflitos. Por tal discurso referido por Sodré (1999), as elites
nacionais mascaram o racismo pela miscigenação e descartam as
demandas da população negra.

Já se pensarmos pela perspectiva do estar com o mundo,


consideramos a pessoa negra assumindo sua condição de sujeito

103
histórico, que vivencia os conflitos do popular ativamente e que
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

cria narrativas. Como sujeito histórico, a pessoa negra assume


um protagonismo que lhe foi negado ao longo da trajetória de
formação histórica do país. Tal protagonismo pode ser
evidenciado por novas representações sociais sobre o povo negro,
desvinculando da imagem do preto os piores papéis sociais e
midiáticos estabelecidos. Falar de protagonismo negro nas
narrativas tem a ver com representações sociais, mas tem a ver
também com representatividade, com identificação e
reconhecimento de uma luta histórica por igualdade racial.

A relação corpo-sujeito tem, portanto, um vínculo


marcante com a construção de narrativas apropriando-se de
discursos. E no momento em que o cinema ou a comunicação
midiática como um todo são narrativos, assume-se um discurso,
apresenta-se uma história e se rechaça as outras direções
possíveis, de acordo com Deleuze (1990). Podemos falar em
narrativas opressoras ou em narrativas desmistificadoras, ou de
repente em uma mescla das duas, de acordo com os discursos
utilizados no contexto do popular. Todas elas, discursando sobre
corpos. Segundo Foucault (2013, p. 12), tais narrativas podem ser
espécies de “operações pelas quais o corpo é arrancado de seu
espaço próprio e projetado em um espaço outro”.

3 Narrativas sobre o corpo negro

Contextos sócio-históricos que desembocam em situações


sociais de exclusão como o racismo, por exemplo, podem ser
apagados pelas escolhas narrativas que priorizam abordagens
comuns de visão estigmatizada e estereotipada sobre o corpo
negro. A cultura global se apropria e necessita da diferença como
forma de prosperar mercadologicamente, segundo Hall (1997). A
vinculação do corpo negro a um discurso de transigência da
mestiçagem favorece, dessa forma, a aceitação social e comercial
dele, transformando-o em um produto de consumo.

104
É nessa perspectiva que o país exporta midiaticamente a
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

figura da mulata sensual como símbolo consumível da


brasilidade. A cultura pop ou mainstream dissemina essa ideia
de maneira massiva, utilizando-se da diferença para fixar um
lugar social ao corpo negro feminino, que pode até ser vinculado
ao sucesso, mas sempre em uma perspectiva fixada ao erótico
como poder. Entretanto, trata-se de um poder menor, já que não
se desvincula nunca da figura heteronormativa do homem
branco e, por isso, continua a marcar a relação colonizadora de
dependência da mulher negra de pele clara, em relação a ele e à
sua sexualidade. A finalidade do poder feminino depende, assim,
do desejo sexual masculino. Embora poderosa sexualmente, a
mulher só estaria ali para dominá-lo pelo desejo, mas também
para servi-lo.

Hooks (2016) traz uma crítica significativa sobre um dos


ícones da cultura pop ou mainstream. Ela propõe uma análise
sobre o álbum Lemonade, da cantora Beyoncé, lançado em 2016.
O trabalho da cantora impactou o público por se apresentar como
pertencente a uma linha feminista, de empoderamento das
mulheres e luta por igualdade racial. Entretanto, Hooks
apresenta o lado bastardo da questão, sendo o álbum um produto
cultural de venda. A autora nos fala sobre uma extravagância
visual ao se exibir corpos negros femininos, transgredindo
barreiras. Para ela, “é tudo sobre o corpo e o corpo como
mercadoria. Isso certamente não é radical ou revolucionário.
Desde a escravidão aos dias de hoje, corpos de mulheres negras,
vestidos ou desnudos, têm sido vendidos e comprados” (Hooks,
2016, s/p). Para a autora, tal comercialização de produtos
culturais como o álbum de Beyoncé tem como intenção a
proposta de seduzir, celebrar e deliciar, ao mesmo tempo que
desafia a corrente desvalorização e desumanização de corpos
negros femininos.

105
Ainda sobre o corpo negro feminino vendido como
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

produto cultural, um exemplo brasileiro de narrativas


reiteradamente opressoras pode ser ilustrado pela figura da
Globeleza3 , utilizada como vinheta da Rede Globo 4 no período
carnavalesco. Desde 1991 até o ano de 2016, a vinheta repercutiu
anualmente sob o corpo de uma mulata sensual, nua e de corpo
pintado, sambando alegremente. A imagem da Globeleza
reproduz a representação fixa da mulher negra, a mulata sensual,
cuja cor de pele clara é socialmente aceitável. Entretanto,
somente no seu papel sexualizado, de submissão e servidão ao
homem branco colonizador.

Os meios de comunicação e suas narrativas cumprem o


papel de “lugares de ‘re-conhecimento’ para os sujeitos
populares”, segundo Rincón (2016, p. 30). É assim que a
narrativa midiática da Globeleza repercute e dissemina um “re-
conhecimento” único sobre o corpo negro feminino aceitável de
uma forma cruelmente racista. Tal narrativa exemplifica a
“linguagem sem língua” a qual nos fala Deleuze (1990), que
mesmo com a falta da enunciação oral, compreende a linguagem
gestual ou do vestuário – expressa pela sua própria falta neste
caso - e consolida um discurso e um entendimento comum sobre
a representação da mulher negra. De acordo com a perspectiva
foucaultiana, o corpo é um grande ator utópico, e, no caso da
Globeleza, o corpo da mulher negra é revestido de maquiagens,
pinturas e máscaras simbólicas, de forma a entrar em
comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. Segundo
Foucault (2013, p. 12), “máscara, signo tatuado, pintura
depositam no corpo toda uma linguagem: toda uma linguagem
enigmática, toda uma linguagem cifrada”, evocando para este
mesmo corpo a vivacidade do desejo. E, neste caso, evocando
somente a vivacidade do desejo sexual, que sobrevive por

3 Uma das vinhetas da Globeleza está disponível em


https://www.youtube.com/watch?v=b_roZ4OWxOU.
4 A Rede Globo constitui a maior rede de televisão comercial aberta da

América Latina.

106
relações de poder reiteradas midiaticamente e reproduzidas no
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

cotidiano.

Na direção oposta, narrativas desmistificadoras podem


ser construídas em busca de transformação social. O anseio é de
que narrativas sobre a diferença alavanque o protagonismo negro
não a um corpo aceitável sob a condição da pele clara, do corpo
nu, sexualizado. Mas sim a um protagonismo negro associado à
consciência sócio-histórica e política, que proporcione
representatividade à pessoa negra e associe o seu corpo a lugares
de prestígio outrora inabitáveis. Beyoncé, embora ícone do
mainstream, também faz esse caminho. Mas como bastartizada,
suas narrativas são uma mescla de uma tentativa
desmistificadora com narrativas fixadoras, ou opressoras, como
temos chamado nessa análise.

O fato é que as narrativas desmistificadoras contestam


verdades impostas pela lógica dominante da branquitude.
Contestam, por exemplo, as narrativas midiáticas que seguem o
modelo sociológico observado por Bernadet (2003). Por esse
modelo, sugerem-se em filmes, em telejornais e em outros
produtos audiovisuais, teorias sociais atestadas por uma
narrativa hegemônica e ilustrada com a imagem dos indivíduos
ou grupos sociais marginalizados. Respostas a esse modelo
buscam elencar o “sujeito da experiência à posição de sujeito do
discurso”, segundo Lins e Mesquita (2008, p. 23). Para as
autoras, a tentativa é de que o outro se afirme enquanto sujeito
da produção de sentidos a partir de sua própria experiência.

Embora Bernadet e Lins e Mesquita estejam se referindo


à produção de documentários, tanto o modelo sociológico
sugerido pelo autor, quanto as respostas a esse modelo,
referenciado pelas autoras, podem servir também a outras
narrativas midiáticas. Em resposta ao modelo sociológico, um
bom exemplo de narrativa que desmistifica o discurso de
transigência da democracia racial e escancara o discurso racista,

107
é a música Mão da limpeza, de Gilberto Gil, e seu videoclipe5,
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

lançados ambos em 1984.

Em depoimento para seu website sobre a música, Gil


afirma que compôs Mão da limpeza para responder, no mesmo
tom desaforado, o ditado “negro, quando não suja na entrada,
suja na saída”. Para o compositor, os negros são maciçamente
empenhados na função da limpeza da sociedade e acabam sendo
acusados de ser os sujões, embora os grandes sujadores sejam os
que têm mais recursos, privilégios, ou seja, os brancos. Gil afirma
que, “no fundo, o provérbio tem uma conotação nitidamente
moral, além de física; o que se tenta considerar como sujo no
negro é sua existência, sua pessoa, sua condição humana” 6.

O videoclipe da música, interpretado por Gil e Chico


Buarque, complexifica a questão e ratifica a crítica social ao
ditado racista da letra da canção ao se apropriar e ressignificar
uma prática recorrente e muito comum no carnaval brasileiro. A
prática de se fantasiar de pessoa negra de forma exotizada, mais
conhecida como blackface, é utilizada no videoclipe em uma
proposta contra-hegemônica em que o negro se fantasia de
branco por uma whiteface em um tom carnavalesco, marcando,
assim, uma estética subversiva. No videoclipe, Gil se veste de
branco e utiliza de uma whiteface, enquanto Chico Buarque se
veste de preto utilizando uma blackface, ambos caindo em
gargalhadas. De acordo com Stam (2015), Gilberto Gil
ressignifica o que usualmente tem sido utilizado como
performance racista por meio de uma implantação subversiva do
estereótipo. Para o autor, Mão da limpeza reconfigura o domínio
branco da representação do negro a partir do contraponto
subversivo entre blackface e whiteface. Ainda de acordo com
Stam, a música e o videoclipe anulam a relação do negro à

5Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=tzFxd4gxbpQ.
6 Trecho de depoimento de Gilberto Gil, em seu website. Disponível em: <
http://www.gilbertogil.com.br/sec_musica_info.php?id=310&letra>. Acesso
em: 16 ago. 2017.

108
sujidade e ratifica simbolicamente a relação do branco com a
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

sujeira. Por essa relação, podemos perceber a sujeira como as


práticas racistas da vida urbana que marginalizam a pessoa
negra.

Outros tipos de narrativas nem tão massivo-midiáticas


por não serem narradas por ícones da música popular brasileira
também aparecem no barco que navega pelas águas do popular e
das culturas bastardas. Tais narrativas buscam desfixar lugares
sociais marcadamente reiterados pela cultura pop ou
mainstream e também passam a habitar o popular,
principalmente com o advento da internet e do ciberespaço
possibilitando “ciber-identidades” – termo trazido por Hall
(2011) - e novas formas de identificações, a partir de múltiplas
narrativas e discursos. O popular uma vez colonizado, excluído e
subalterno reivindica o sujeito outro “resemantizado para ganhar
sua agência em e desde outros lugares culturais, históricos e
narrativos: suas lógicas, relatos e linguagens próprias”
(RINCÓN, 2016, p. 34).

É nesse sentido que uma explosão de narrativas negras


surge nas redes sociais. Uma série de sites, blogs, páginas no
Facebook, perfis no Instagram, canais de youtubers e de outros
tipos de influencers passam a abrigar narrativas negras
desmistificadoras, a partir da assunção do discurso da negritude.
Portais de divulgação de conteúdos textuais e audiovisuais como
o site Blogueiras Negras e o portal de notícia Geledés
incorporam à sua linha editorial uma luta antirracista e veiculam
somente conteúdo relacionado a relações raciais e seus
desdobramentos.

Entretanto, basta estar conectado às redes sociais,


reconhecer-se negro para estar com o mundo e disseminar
narrativas desmistificadoras sobre o corpo negro. Essas novas
narrativas fazem parte da dinâmica da “cidadania celebrities”,
em que a concepção sobre ser cidadão passa a girar em torno do

109
sujeito como protagonista, reinventando a política e assumindo
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

posicionamento sobre raça, gênero e classe, de acordo com


Rincón (2016). O autor afirma que o sujeito “se converteu em um
ethos, um estilo de vida em democracia; o protagonista móvel,
flexível e criativo que produz a partir de si mesmo novas redes de
solidariedade e formas do coletivo” (RINCÓN, 2016, p. 39). Com
isso, ainda segundo o autor, o sujeito exerce sua cidadania fraca,
aquela que é fluida e efêmera, mas que gera certo poder na vida
cotidiana, sobretudo nos pequenos relatos. Para ele, esse é um
tipo de cidadania vinculada à comunicação e ao direito ao
entretenimento, ao direito de ter e estar nas telas.

4 Considerações finais

A vivência do popular nos permite sermos bastardos, em


tempos de sociedade midiatizada de múltiplos estímulos
discursivos e narrativos. Essa miscelânea possibilita nos
reinventarmos com novas identificações e novas acepções sobre
nós mesmo. Por isso a concepção sobre ser negro é múltipla, tem
vários estágios e segue a trajetória processual de vida de cada
pessoa negra, de acordo com seus vínculos sociais, seu contato
com produtos culturais, suas vivências cotidianas. Reconhecer-
se negro ou ser negro, para além de uma questão identitária,
discursiva, estética, ou de um posicionamento político de
consciência racial, é reconhecer, sobretudo, a conflitividade que
as questões raciais carregam e como o racismo é estrutural e
estruturante. É por meio dele que se propagam representações e
lugares fixados ao corpo negro, tão disseminados pelo
mainstream. Basta ser negro para vivenciar o racismo de alguma
maneira, em algum momento da vida. Entretanto, ser negro é um
processo de cada um.

Ao mesmo tempo em que vivenciamos o popular,


vivenciamos, também, a cultura pop impregnada nas relações
sociais. Degustamos vários tipos de informações, narrativas

110
desmistificadoras e opressoras o tempo todo e funcionamos
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

como filtro, na medida em que nos apropriamos de umas


identificações e não de outras. Essa vivência da sociedade
midiatizada e conectada gera uma expectativa de participação na
rede das informações que não param. Assim, ao mesmo tempo
em que se cobra um posicionamento sobre identidades e
identificações, cobra-se por disseminá-las, afinal o que são as
informações e narrativas se não disseminadas? O direito ao
entretenimento, ou às telas passa a ser um dever do sujeito da
sociedade midiatizada. Caso não se conecte ou não reproduza
narrativas em redes, o sujeito passa a não existir.

Ser negro, nessas circunstâncias, é uma constatação


identitária individual e coletiva que só pode ser legitimada se
alastrada pelas telas. Espera-se que toda pessoa negra reconheça
sua identidade e a reivindique em luta política, sob a
consequência do rótulo ou de alienada, ou de despolitizada. Não
se permite não assumir uma identidade e, mesmo se assumida,
não se permite não a proferir no mundo em rede. Não se permite
que sejamos bastardos e que vivenciemos o nosso próprio corpo
em nosso próprio processo de reconhecimento sobre nós
mesmos. Com tantos discursos, tantas informações e narrativas
frutos das culturas híbridas, é essencial consideramos que nossas
trajetórias são únicas e processuais.

 Retorne ao sumário

Referências
BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do
povo. São Paulo: Companhia da Letras, 2003

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de


Janeiro: Contraponto, 1997

DELEUZE, Gilles. A Imagem-Tempo. São Paulo:


Brasiliense, 1990

111
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade.
Ana Clara Gomes Costa
identidades, narrativas e processos
Conflitos do popular sobre ser negro:

São Paulo: Paz e Terra, 1999

FOUCAULT, Michel. O corpo utópico, as heterotopias.


São Paulo, N-1 Edições, 2013

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre


as revoluções culturais do nosso tempo. Educação &
Realidade, 22: 15-46, 1997

______. Quem precisa da identidade?. In: Silva, Tomaz


Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2011.

HOOKS, Bell. Movimentar-se para além da dor. Trad.


Charô Nunes e Larissa Santiago. Portal Blogueiras Negras,
2016. Disponível em:
<http://blogueirasnegras.org/2016/05/11/movimentar-se-
para-alem-da-dor-bell-hooks/>. Acesso em: 20 ago. 2017

LINS, Consuelo e MESQUITA, Cláudia. Filmar o real:


sobre o documentário brasileiro contemporâneo.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São


Paulo: Ática, 1988

PEREIRA, E. A. e GOMES, N. P. Ardis da imagem:


exclusão étnica e violência nos discursos da cultura
brasileira. Belo Horizonte: Mazza Edições, Editora
PUCMinas, 2001

RINCÓN, Omar. O popular na comunicação: culturas


bastardas + cidadanias celebrities. Trad. Ciro Lubliner.
Revista Eco-Pós. Rio de Janeiro: 19: 27-49, 2016

SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: identidade, povo e


mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999

STAM, Robert. Keywords in Subversive Film/Media


Aesthetics. Nova York: Blackwell/Wiley, 2015

112
1

1 Introdução

A cultura contemporânea concentra na aparência uma


diversidade de significados que adquire grande densidade no que diz
respeito às relações humanas e ao mundo social. É no corpo que se dá
a acomodação das sensações que posteriormente constituirão
representações de si mesmo, as referências identitárias. Considerando
que a imagem corporal possui uma profunda ligação com a identidade,
o padrão estético amplamente divulgado pela mídia, em capas de
revistas e em redes sociais influenciam, de forma direta e indireta, a
necessidade da busca incessante pela aparência perfeita a fim de maior
aceitação pessoal e social.

O panorama sociocultural ocidental de valorização da magreza


e da juventude, com pressão para o emagrecimento e o
rejuvenescimento, interage com fatores biológicos, psicológicos e

1O texto é uma versão ampliada e reformulada de um artigo preliminar publicado


pelas autoras.
familiares, provocando exagerada preocupação com o corpo, podendo
convenções corporais e o medo de envelhecer
Mônica Cristine For | Ivania Skura | Cristina Brahm Cassel Brisolara
Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

até mesmo levar ao pavor patológico de engordar e envelhecer, um


medo de parecer inapropriado no peso ou na aparência. A ênfase da
sociedade contemporânea para um ideal de beleza fornece um
ambiente sociocultural que justifica a perda de peso e
rejuvenescimento a qualquer custo, gerando ansiedades que
alimentam um mercado em franco crescimento de cosméticos,
produtos dietéticos e procedimentos cirúrgicos.

Apesar do processo de envelhecimento ser um aspecto natural


do desenvolvimento humano, o valor pessoal e social parece estar
atrelado à imagem jovem e magra, como menciona Joana Novaes:

Nada mais cruel do que lutar com um inimigo implacável e


inexorável. Contra a ação do tempo as mulheres lutam,
tentando manter-se sempre jovens e belas. Frenéticas e
enlouquecidas, consumindo compulsivamente toda sorte
de produtos que prometam retardar o seu envelhecimento
e manter sua beleza, essas mulheres lutam contra si,
perdendo-se no espelho à procura de si mesmas. Se antes
as roupas as aprisionava, agora se aprisionam no corpo –
na justeza das próprias medidas (NOVAES, 2005, p. 10).

Não são raras as notícias destacando mulheres que acabam de


dar à luz e que são destaque porque estão, segundo palavras da
imprensa, “com o corpo totalmente em forma”, “com a barriga
negativa”, “com o mesmo peso de antes de engravidar”. Também não
são situações incomuns as comparações entre mulheres com a mesma
idade, uma com aparência de jovem, sendo valorizada como se essa
aparência fosse “correta” e a outra, criticada por estar “fora dos
padrões”, aparentando ser mais velha. As capas de revistas femininas
têm um padrão: mulheres magras, jovens, frequentemente brancas de
cabelos compridos. Sempre impecavelmente maquiadas e penteadas.
Esse padrão tem recebido crítica há anos, mas mesmo com exemplos
de grupos que lutam para questionar modelos estéticos, ainda se
observa o predomínio do que é difícil de ser atingido para a maioria
das pessoas. Quem está fora dos chamados padrões de beleza, pode
sentir-se também fora da própria sociedade.

114
O viés da expressão estética que atualmente compõe os corpos
convenções corporais e o medo de envelhecer
Mônica Cristine For | Ivania Skura | Cristina Brahm Cassel Brisolara
Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

femininos coloca em risco o compasso natural do desenvolvimento


humano. A expressão estereotipada da juventude produz estruturas
sociais que alimentam a expectativa de uma imagem corpórea
aparentemente saudável, mas que cobra um alto preço emocional ao
contemplar uma expectativa social ao invés da aceitação de si. O
presente texto intenciona discutir esse panorama a partir de notícias
publicadas em dois sites noticiosos: HuffPost Brasil, mais
especificamente na editoria Mulheres do site, e no Globo.com, por
meio da revista Glamour. O recorte para este artigo compreende um
monitoramento realizado no mês de junho de 2016. Observou-se, em
todos os dias no período, notícias relacionadas a juventude e a
magreza, o que demonstra que as pessoas que fogem aos moldes
impostos pela mídia podem sentir-se diminuídas ou pressionadas a
mudar. Mesmo quando as notícias são relacionadas a exemplos de
quem foge aos padrões e, portanto, defende sua posição social, houve
destaque porque as mulheres reportadas foram vítimas de gordofobia,
ou seja, foram vítimas de manifestações sociais que demonstram não
aceitar quem está fora do imposto.

A temática em questão, que envolve mídia e medo, aborda


pressupostos de Marc Augé (2013), em Les Nouvelles Peurs2; de David
Altheide (2002), em Creating Fear: news and the construction of
crisis3 e de Zygmunt Bauman (2008), em Medo Líquido. Parte-se do
princípio que os veículos de comunicação não inventam o que
reportam diariamente, mas selecionam o que divulgar. Os fatos em
evidência são apresentados de maneira a atrair a atenção dos públicos
aos quais se destinam. Com as tecnologias digitais, há a sensação
de amplificação de fatos que provocam desconforto, indignação e, não
raro, medo a quem recebe as notícias. Isso porque há a possibilidade
de participar, comentar, expor sentimentos e sensações. Trata de
notícias que supervalorizam a beleza e a juventude em contraponto às
críticas em relação a cobranças sociais por uma imagem corporal

2 Os Novos Medos, tradução nossa.


3 Criando Medo: imprensa e construção de crise, tradução nossa.

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difícil de ser alcançada. Também discute campanhas de marcas
convenções corporais e o medo de envelhecer
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famosas que inseriram idosas em peças publicitárias para valorizar a


vida e o bem-estar. Para a reflexão, leva em consideração as
perspectivas de idadismo apontadas por Gisela Castro (2015, 2016) e
o conceito do corpo como capital de Mirian Goldenberg (2006, 2010,
2012). Questiona se realmente são novas tendências ou apenas
resposta momentânea à pressão exercida por consumidores.

2 O medo de envelhecer: mídia e ameaças de ficar à margem


da sociedade

Tudo o que acontece e é reportado pela imprensa, “mesmo que


seja longe”, nos diz respeito e, assim, nos “aterroriza como se fosse
perto” (AUGÉ, 2013a). O sistema de informação, para Marc Augé
(2013), pode criar essa nova forma de medo, mais evasiva e abstrata,
o que não significa que não tenha efeitos concretos que provoquem
pavor nos indivíduos. Zygmunt Bauman (2008, p. 10) se refere à
liquidez do medo, um medo derivado, e comenta que há três tipos de
perigos: os que ameaçam (1) “o corpo e as propriedades”; (2) “a
durabilidade da ordem social e a confiabilidade nela” (exemplos:
renda, emprego, sobrevivência, velhice); e (3) “ameaçam o lugar da
pessoa no mundo” (posição na hierarquia social, identidade – de
classe, gênero, étnica, religiosa –, e “a imunidade à degradação e à
exclusão sociais”). Para David Altheide (2002), o medo não acontece
ou surge de lacunas sociais ou incertezas. Também não é mera
consequência de uma sensação de falta de controle sobre nossas vidas.
Formatos de entretenimento de mídia popular e cultura de massa,
juntamente com a familiaridade e suposições sobre o uso da mídia na
vida cotidiana, têm contribuído para o aumento do medo na sociedade.
O processo de comunicação e o de conteúdo são indissociáveis e um
exerce implicações no outro (ALTHEIDE, 2002, p. 44). Nesse sentido,
novidade e informação estão ligados à bagagem de conhecimento e à
interpretação simbólica.

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Além da publicidade, com seus apelos ao consumo, a imprensa
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também noticia cotidianamente assuntos que impõem padrões de


beleza a seguir. Bruna Lombardi, aos 64 anos, por exemplo, foi tema
de reportagens como modelo de beleza por dar “um baile em muita
mocinha” (DOMINGO ESPETACULAR, 2015). Inclusive em
comparações com outras mulheres (Figura 1): “Bruna Lombardi e
Geralda do BBB têm a mesma idade” (NP, 2016).

Figura 1 – Comparação entre mulheres nascidas em 1952

Foto: Notícias Populares, 7 de março 2016.

O tom, nesse caso, divulgado em dezenas de blogs e repercutido


nas redes sociais – basta uma busca no Google para perceber –, era de
deboche com a mulher que não foi tão favorecida com a generosidade
da natureza quanto Bruna Lombardi. O texto que acompanhava as
fotos comparativas dizia: “Dona Geralda, participante da 16ª edição do
reality show Big Brother Brasil e a atriz Bruna Lombardi, nasceram
em 1952, ou seja, ambas têm 64 anos idade. Não parece, né?” (NP,
2016). O questionamento no final da frase demonstra a indignação (e

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o sarcasmo). Não se comenta a trajetória de vida, a produção para a
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foto, a condição socioeconômica e nem mesmo as características


físicas e genéticas de uma e de outra. Provavelmente na juventude, a
beleza de Bruna Lombardi também teria sido mais valorizada que a de
Geralda, afinal, a atriz foi reconhecida pelos traços considerados
perfeitos. E esse exemplo não é único. Outra atriz, da mesma idade,
que foi tema de reportagens, porém não destacando a preservação de
sua beleza, que no passado também foi invejada, é Vera Fischer. A ex-
miss Brasil parece ser cobrada por não permanecer jovem, magra ou
vaidosa (Figura 2). “Celebridades: Vera Fischer aparece irreconhecível
em aeroporto” (MEDEIROS, 6 nov. 2015) ou “Aos 63 anos, Vera
Fischer anda sem maquiagem no aeroporto do Rio de Janeiro” (TV
FAMA, 6 nov. 2015).

Figura 2 – Ex-miss Brasil, Vera Fischer

Foto: O Dia, Montagem a partir de Foto AgNews, 6 de novembro 2015.

Andar maquiada seria uma condição. Quem diz ser obrigatório


andar impecavelmente maquiada em situações informais? A cobrança
para que Vera Fischer aparecesse produzida, em público, indica uma
necessidade de ser vista bem. Para Goldenberg:

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O que se denomina porte, sofisticação e elegância, por
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exemplo, é a maneira legitimada socialmente de levar o


próprio corpo e de apresentá-lo. Assim, se percebe como
um indício de desleixo ou de falta de higiene o fato de
deixar ao corpo sua aparência “natural”. O mesmo pode ser
pensado sobre o corpo gordo, envelhecido ou “fora de
forma” (GOLDENBERG, 2012, p. 48).

Nesse caso, é necessário comentar que houve manifestações


contrárias a quem reportou as fotos da atriz. Pessoas que se
indignaram com a reação de quem a criticou por estar natural. Mas, se
houve a cobrança por Vera Fischer ter engordado e envelhecido, pelo
raciocínio do medo derivado, isso assusta quem está fora dos padrões.
Se alguém que já foi miss Brasil é chamada de irreconhecível, com
insinuações de desleixo, imagine quem se considera no máximo uma
“pessoa normal” 4 . As situações expostas exemplificam o que Gisela
Castro (2015) aborda quanto ao idadismo (preconceito baseado na
idade) na Comunicação. “Quando todos são instados a querer ser e
parecer jovens, o envelhecimento se torna um problema e seus sinais
passam a ser encarados como erro” (CASTRO, 2015, p. 109).

Em uma sociedade onde a cultura e a mídia influenciam o que


titulam de corpo perfeito, tanto homens quanto, e principalmente,
mulheres estão sujeitos à preocupações estéticas do corpo – peso,
forma, tamanho, aparência da pele, nariz, cabelos, tônus muscular.
Não são raras as informações indicando os avanços de cirurgias
estéticas e o aumento do número de procedimentos. Há não muito
tempo, por exemplo, o Brasil liderou o ranking mundial de cirurgias
plásticas. “Em 2013, o país realizou 1,49 milhão de operações, quase
13% do total mundial – em território americano, foram 1,45 milhão”
(VEJA, 30 julho 2014). Mais de 85% das cirurgias foram realizadas em
mulheres.

No quesito insatisfação com o próprio corpo, as brasileiras


só ficam atrás das japonesas (37% das brasileiras se
disseram insatisfeitas) em uma pesquisa realizada com
3.200 mulheres de dez países. Só 1% das mulheres
brasileiras se acha bonita. O Brasil é o país em que mais se
valoriza as modelos. 54% das brasileiras já consideraram a

4 Aqui, nos referimos às pessoas não ligadas à indústria da fama.

119
possibilidade de fazer plástica e 7% já fizeram, o índice
convenções corporais e o medo de envelhecer
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mais alto entre os países pesquisados. Mas o que torna o


Brasil especial nessa área é o ímpeto com que as pessoas
decidem operar-se e a rapidez com que a decisão é tomada
(GOLDENBERG, 2006, p. 120).

Considerando que a imagem corporal possui profunda ligação


com a identidade do sujeito, o padrão estético amplamente divulgado
pela mídia influencia a necessidade da busca pela aparência perfeita a
fim de maior aceitação.

Quando a imagem do corpo é tomada como capital a ser


investido na busca incessante do êxito social, os sinais de
velhice são interpretados como sinais de deterioração do
patrimônio individual. Ao se envelhecer, é como se fosse
ultrapassado o prazo aceitável de validade e, assim, a
experiência vivida estaria desatualizada, obsoleta,
incompatível. O corpo envelhecido passa a apontar uma
pessoa esvaziada de atributos de qualidade (CASTRO,
2016, p. 88-89).
Assim, “o problema começa quando a velhice passa a ser
encarada como aquilo que deve ser combatido a qualquer custo”
(CASTRO, 2015, p. 112). Explica a autora que evitar o envelhecimento
se apresenta como um imperativo de ordem moral, podendo
comprometer a dignidade pessoal na velhice. A busca pela identidade
pessoal é a encarnação de um complexo sistema de relações sociais e
interação em grupos sociais. Como descreve Tavares (2003, p. 17),
“somos pressionados em numerosas circunstâncias a concretizar em
nosso corpo, o corpo ideal de nossa cultura”. O conflito entre o corpo
real e o corpo ideal estimula pessoas a uma busca de soluções rápidas.
Isso fica evidente quando são observadas dietas sem
acompanhamentos especializados ou em cirurgias plásticas
estritamente estéticas.

Nossa ação no mundo se reflete em nós pelas


consequências de nosso ato de agir que provoca em nós
novas percepções e também pelas transformações que
provocamos no mundo, fazendo-o diferente para nós,
ampliando-o assim como fonte de novos estímulos. [...] O
mundo externo que percebemos é sempre um mundo
nosso, particular. Nosso corpo contém um “mundo externo
particular” [...]. O mundo é tão complexo quanto nós
mesmos (TAVARES, 2003, p. 23).

120
Paul Schilder foi um dos autores que mais contribuiu para os
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

estudos da imagem corporal. Inovou ao atribuir, em 1935, uma nova


dimensão, ampliada e integrada, associando-a a aspectos
neurofisiológicos, sociais e afetivos, e estabelecendo também estreitas
relações entre imagem corporal e psicanálise. A obra A imagem do
Corpo (1994), traz uma abordagem sistêmica do tema, que alinha
neurologia, psicanálise e filosofia. Para o autor, “entende-se por
imagem do corpo humano a figuração de nossos corpos formados em
nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós”
(SCHILDER, 1994, p. 11). E prossegue:

O esquema corporal é a imagem tridimensional que todos


têm de si mesmos. Podemos chamá-lo de imagem corporal.
Esse termo indica que não estamos tratando de uma mera
sensação ou imaginação. Existe uma apercepção do corpo.
Indica também que, embora nos tenha chegado através dos
sentidos, não se trata de uma mera apercepção. Existem
figurações e representações mentais envolvidas, mas não é
uma mera representação (SCHILDER, 1994, p. 11).

A imagem que as revistas oferecem aos leitores a respeito de


seus corpos investe nesse jogo de espelhos produzido entre o corpo e
o olhar do outro, operando na construção da autoestima e da
autoimagem, como se o corpo fosse dissociado do self 5 e precisasse
apenas de uma manutenção orgânica a fim de manter-se funcional,
magro e jovem. O panorama sociocultural ocidental de
supervalorização do emagrecimento e rejuvenescimento6, interagindo
com fatores biológicos, psicológicos e familiares, liga-se diretamente
ao papel social de sucesso pessoal e profissional.

A antropóloga Mirian Goldenberg aponta as pesquisas


endossadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) indicando o
Brasil como país campeão no consumo de remédios para emagrecer.
Os índices são tão altos que, segundo a autora, as “overdoses de
consumo”, comuns no país, “podem ser muito perigosas e levar a

5 Self ou autoconceito é a visão que uma pessoa tem de si própria, baseada em


experiências passadas, estimulações presentes e expectativas futuras (FADIMAN;
FRAGNER, 1986, p. 227).
6 Ao menos para a valorização da juventude e, com isso, os apelos para tratamentos

que prometem rejuvenescimento.

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ataques de pânico ou agressividade, além de alucinações, problemas
convenções corporais e o medo de envelhecer
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respiratórios, convulsões, coma e até morte” (GOLDENBERG, 2010,


p. 49). O quadro serve como um alerta importante sobre medos,
angústias e ansiedades que permeiam o universo feminino.

3 Pressões midiáticas e sociais pela manutenção da


juventude e do corpo magro

Em 3 de julho de 2016, o programa Domingo Espetacular, da


Rede Record, exibiu uma reportagem de cerca de 15 minutos a respeito
de pessoas que passaram a consumir crack para emagrecer. O gancho
jornalístico foi um estudo que a pesquisadora Patrícia Hochgraf, da
Universidade de São Paulo, teria apresentado, ao observar que “a
busca por um corpo perfeito, a busca por um corpo melhor, faz com
que as mulheres façam qualquer coisa, até começar a usar crack”
(DOMINGO ESPETACULAR, 2016). Segundo ela, começaram a
aparecer no consultório mulheres, mais velhas (não especifica a faixa
etária, mas a reportagem deixa claro que não são adolescentes), que
nunca tinham usado outro tipo de drogas ilícitas, mas que passaram a
usar crack para emagrecer. O repórter Romeu Piccoli entrevistou
pessoas que se tornaram viciadas por terem recorrido à droga na
tentativa de ter um corpo esguio. Médicos e terapeutas, especialistas
no assunto, também foram consultados. O teor da reportagem buscou
associar que a mídia mostra corpos bonitos e em forma. Atrizes,
cantoras, celebridades que estampam capas de revistas emagrecem
rapidamente e são valorizados por isso. Então, por que para tantas
outras pessoas é tão difícil perder peso ou parecer mais jovem, por
exemplo? E por que o corpo é tão valorizado?

O corpo humano tem sido objeto de estudos e discussões ao


longo da história. As formas e proporções do corpo servem de
referência principalmente nas artes. Em uma dimensão narcísica de
representação, pesquisas relacionadas ao corpo investigam suas
formas, funções, seus gestos, movimentos, maneiras de vestir entre
tantas outras características. Na questão estética, por exemplo, há o

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corpo grotesco, o idealizado associado a uma ou outra concepção de
convenções corporais e o medo de envelhecer
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beleza, o corpo cubista, o estilizado, o desestruturado (GOLIOT-LÉTÉ


et al, 2006, p. 92-93). Umberto Eco, em sua obra História da beleza,
afirma que a associação entre boa aparência e boa índole
frequentemente é feita, e “nesse sentido, aquilo que é belo é igual a
aquilo que é bom e, de fato, em diversas épocas históricas criou-se um
laço estreito entre o Belo e o Bom” (ECO, 2004, p. 8). Mais
contemporaneamente, David Le Breton (2011, p. 84) aborda que “a
retórica da alma foi substituída pela do corpo sob a égide da moral do
consumo e um imperativo de prazer impõe ao ator, à revelia, práticas
de consumo visando aumentar o hedonismo de acordo com um jogo
de marcas distintivas”.

Para Nestor Canclini (2006, p. 53), mais que exercícios de


gostos, caprichos e compras irrefletidas, o consumo é um “conjunto de
processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos
dos produtos”. O autor afirma que a “universalização das coisas”
provoca alterações não apenas na maneira de se consumir cultura, mas
também no imaginário de cidadãos e na forma como eles se
reconhecem como pertencentes a determinada nação, cultura,
realidade, uma vez que os conteúdos midiáticos influenciam na
construção da identidade. E é no consumo que “se constrói parte da
racionalidade integrativa e comunicativa de uma sociedade”
(CANCLINI, 2006, p. 56).

No que diz respeito ao corpo, observam-se hábitos de consumo


de produtos e serviços que demonstram as preocupações em atender
o que se entende como desejável na sociedade: juventude e boa forma
física, compreendendo neste caso corpos frequentemente estampados
nas revistas, reportados na imprensa, apresentados nas telenovelas e
no cinema. Le Breton (2007), referindo-se a Pierre Bourdieu (1979)
em La distiction: critique sociale du jugement, menciona a lógica
econômica que domina a sociedade aprisionando o corpo na
reprodução de compleições físicas e parecendo desconhecer os
aspectos contemporâneos de uma sociedade “onde o provisório é a

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única permanência e onde o imprevisível leva frequentemente
convenções corporais e o medo de envelhecer
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vantagem sobre o provável. O problema que permanece é o de


mudança, do homem não mais ‘agente’, mas ‘ator’ da existência social”
(LE BRETON, 2007, p. 83). O assunto é ameaçador. Augé (2013)
comenta que ao mesmo tempo que a expectativa de vida tem
aumentado, cresce a obsessão com a manutenção da juventude e da
boa forma física. Há uma angústia com o envelhecimento ao mesmo
tempo em que há uma fragilização das posições mais elevadas
ocupadas por pessoas mais velhas. Há um rejuvenescimento social.

Envelhecer é inevitável, as mudanças ocorrem nos corpos, que


por heranças genéticas possuem características distintas uns dos
outros, e o amadurecimento faz com que haja alterações físicas ao
longo da vida. Mas se observa uma cobrança cada vez maior pela
manutenção da vitalidade e da aparência jovem. Por mais que haja
espaço para se discutir questões sobre a “terceira idade” (ou a “melhor
idade”, como também se registra na mídia) ou da importância da moda
plus size (modelos acima do peso padrão midiático), a frequência de
notícias a respeito de quem fez a cirurgia bariátrica e que está satisfeito
também aumenta, principalmente quando se trata de celebridades em
programas mais populares: “Laura, filha de 17 anos da atriz Fabiana
Karla, chegou a pesar 120 quilos e também optou pela cirurgia. ‘Ela fez
a cirurgia em dezembro. Nesta semana ela se pesou, e está com 87
quilos. Os primeiros 33 quilos eliminados já deixaram a autoestima
dela lá em cima!’, reforçou Ana Maria [Braga, apresentadora do
programa Mais Você, da Rede Globo de Televisão]” (GSHOW, 2016)7.

Os exemplos, tanto da reportagem que apresentou pessoas que


passaram a consumir crack para emagrecer quanto o comentário feito
por Ana Maria Braga sobre a jovem que fez cirurgia de redução de
estômago que, na percepção da apresentadora (grifo nosso), estaria
com a autoestima “lá em cima”, demonstram que pressões sociais
podem levar algumas pessoas a tamanha insatisfação com a própria
imagem que a saída acaba sendo procedimentos de risco. E não são

7 Disponível em: <https://goo.gl/XR5g8X>. Acesso em: 9 jun. 2016.

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casos de obesidade mórbida ou idade avançada os que mais chamam
convenções corporais e o medo de envelhecer
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a atenção e sim as preocupações em manter-se muito magra e muito


jovem, contrariando a ordem natural das coisas. Para Le Breton:

A preocupação com a aparência, a ostentação, o desejo de


bem-estar que leva o ator a correr ou a se desgastar, a velar
pela alimentação ou a saúde, em nada modifica, no
entanto, a ocultação do corpo que reina na sociabilidade. A
ocultação do corpo continua presente e encontra o melhor
ponto de análise no destino dados aos velhos, aos
moribundos, aos deficientes ou no medo que todos temos
de envelhecer (LE BRETON, 2007, p. 87).

Observam-se, também, registros de transtornos alimentares e


corporais. Um exemplo que ganhou repercussão na mídia foi o da
jornalista Daiana Garbin. Ela criou um canal no YouTube (EuVejo)
para discutir o tema. Segundo foi apresentado na imprensa, por
ocasião do lançamento do canal, Garbin foi diagnosticada com
Transtorno Dismórfico Corporal que é “uma preocupação excessiva
com a aparência e, em alguns casos, uma percepção do corpo diferente
do que ele é na realidade” (DIAS, 29 abril 2016). No EuVejo8 de 27 de
abril de 2016, Garbin discutiu o caso com a médica psiquiatra Ana
Clara Floresi. Na pauta da entrevista destacaram-se sofrimentos
cotidianos relacionados ao corpo fundamentados em uma
preocupação obsessiva com pequenos defeitos (até mesmo
imaginados) e que prejudicam as pessoas gerando preocupações
excessivas. Garbin e Floresi comentaram que falar de imagem corporal
revela formas problemáticas de representações de si mesmo, que em
primeiro momento é encarado como estético, mas que na realidade é
psiquiátrico. Os transtornos estão relacionados ao medo de engordar
e de envelhecer e levam à procura por cirurgias ou por dietas
arriscadas, além de abuso de exercícios físicos.

Os apelos para a manutenção da juventude vão além da


preservação da saúde e do bem-estar físico. Há uma espécie de
terrorismo no tom das reportagens dizendo que todos devem ser

8 Disponível em: <https://goo.gl/Q5g2kj>. Acesso em: 9 jun. 2016.

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jovens e atraentes e, caso não se atenda a essas características, está-se
convenções corporais e o medo de envelhecer
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fora do que é aceitável. É o que Patrick Charadeau (2006, p. 49)


denomina como efeito de verdade (grifos do autor), que “está mais
para o lado do ‘acreditar ser verdadeiro’ do que para o do ‘ser
verdadeiro’”. Para o autor, o discurso antes de ser uma representação
do mundo é uma representação de uma relação social. Portanto, se
diariamente a mídia apresenta discursos que ditam padrões –
inclusive de consumo –, os sujeitos que recebem tais informações
desenvolvem uma relação com o mundo subjetivo, criam “uma adesão
ao que pode ser julgado verdadeiro pelo fato de que é compartilhável
com outras pessoas, e se inscreve nas normas de reconhecimento do
mundo” (CHARAUDEAU, 2006, p. 49). Se o valor verdade, ainda
segundo o autor, se baseia em evidência, o efeito verdade se baseia na
convicção. E pelos dados apontados por Goldenberg (2006), os 54%
de mulheres brasileiras consultadas a respeito da intenção de se
submeter a cirurgia plástica estão convictas de que devem ter outra
aparência. “São três as principais motivações para fazer uma plástica:
atenuar os efeitos do envelhecimento; corrigir defeitos físicos e
esculpir um corpo perfeito. No Brasil, esta última motivação é a que
mais cresce: a busca de um corpo perfeito” (GOLDENBERG, 2006, p.
120).

Em função das informações relatadas até o momento,


apresenta-se parte de uma pesquisa em desenvolvimento, de caráter
qualitativo. Por um viés descritivo, elencamos como recorte temático
matérias sobre os temas da beleza e da juventude, especialmente as
que insistem na temática da boa forma física e do prolongamento da
juventude relacionados à imagem corporal feminina, levando à
angústia que pode provocar o medo de engordar e de envelhecer. Para
este texto, o recorte temporal conta com 10 dias corridos de conteúdo
(de 10 a 20 de junho de 2016). O recorte espacial de ponto de partida
envolveu duas mídias digitais: site HuffPost Brasil, com especial
atenção às matérias publicadas na coluna Mulheres; e Globo.com, com
destaque para a seção do portal que contém reportagens da Revista
Glamour. O portal HuffPost Brasil é resultado da associação entre The

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Huffington Post e Grupo Abril. Privilegia conteúdos que trazem temas
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como atualidades e diversidade. Não há menção explícita de visões


sociopolíticas das instituições que compõem sua linha editorial.
Contudo, muitas vezes, posiciona-se utilizando jargões combativos em
suas manchetes e fortalecendo visões de movimentos sociais
emancipatórios na cobertura ou replicação das reportagens. Já a
revista Glamour, da Editora Globo, é hospedada no site Globo.com.
No Brasil, foi lançada em abril de 2012, e costuma tratar de Moda,
Beleza e Celebridades, com uma linha editorial que contempla
especialmente manchetes sobre dicas de beleza e moda e “novidades”
relacionadas a artistas nacionais e internacionais. Os assuntos
relacionados a cabelos, pele, maquiagem, comportamento, fitness,
tendências e novas coleções, assim como detalhes da vida de
personalidades midiáticas.

As páginas iniciais de cada site foram capturadas para a criação


de um acervo de consulta dos registros das publicações (Exemplo na
Figura 3). Foi feito uso do aplicativo de extensão FireShot (Capture
Webpage Screenshot Entirely), software gratuito da Chrome Web
Store desenvolvido por ScreenShot Studio.

Figura 3 – Exemplo de registro das publicações que compõem o


mapeamento

Fonte: HuffPost Brasil, 16 de junho de 2016.

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4 Resultados e discussão
convenções corporais e o medo de envelhecer
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A beleza está, nos discursos midiáticos, intrinsecamente


identificada com a juventude, e mulheres começam a se preocupar
com a velhice cada vez mais cedo. Anne Karpf (2015), ao constatar que
o corpo é socialmente fadado à vigilância durante a vida, lamenta:
“Nunca se é velha demais para melhorar nem jovem demais para
começar” (KARPF, 2015, p. 128). A sociedade modela a forma como
envelhecemos.

Nas publicações da mídia que compuseram o corpus, essa


noção do caráter social que se dá ao envelhecimento é bastante
evidente, pois idades como 30 e 35 anos já são elencadas, nesses
espaços, como contexto para discutir beleza, juventude e feminilidade.
A reportagem da Figura 4, por exemplo, traz no título uma afirmação
que revela o caráter insólito do que apresenta: “Adriana Lima faz 35
anos e impressiona (grifo nosso) pela juventude em foto”. A
mensagem noticia como se a idade da modelo e a aparência jovem
fossem concorrentes, como se 35 anos fosse já uma idade avançada
dentro dos parâmetros de juventude considerados pela linha editorial
da revista Glamour.

Figura 4 – A impressionante Figura 5 – Serena Williams


juventude aos 35 questiona padrões de
envelhecimento

Fonte: Glamour, 12 de junho de Fonte: HuffPost Brasil, 11 de


2016.. junho de 2016

128
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Na reportagem da Figura 5, ao lado, essa noção de que aos 30


anos, comumente, considera-se que a juventude já não é mais aquela,
também se faz presente. No entanto, a matéria traz o depoimento da
esportista Serena Williams que questiona esses padrões de
envelhecimento: “Quem disse que você deveria estar acabada aos 30?”
Há nessa publicação, também, um discurso idadista 9 no sentido de
considerar que a velhice é, para as mulheres, tempo de “estar
acabada”.

Os reflexos dessas considerações, para além das mensagens


midiáticas, atingem também outras esferas. Karpf (2015) revela que
muitas atrizes mais velhas, por exemplo, carregam consigo uma carga
emocional intensa de sofrimento relacionada à busca por parecer mais
jovens. A juventude, para além de uma etapa da vida, é considerada
como uma espécie de capital social.

Na cultura brasileira, além de um capital físico, o corpo é,


também, um capital simbólico, um capital econômico e um
capital social. Meu argumento central é que, no Brasil,
determinado modelo de corpo, que o sociólogo francês
Pierre Bourdieu (2007) chamaria de um corpo distintivo, é
um capital: um corpo jovem, magro, em boa forma, sexy;
um corpo que distingue como superior aquele que o possui;
um corpo conquistado por meio de muito investimento
financeiro, trabalho e sacrifício (GOLDENBERG, 2012, p.
48).

A afirmação da autora pode explicar porque, nas matérias


pesquisadas, o corpo magro, além de jovem, é constantemente
exaltado. Os medos que as mulheres têm de envelhecer ligam-se
diretamente aos “medos de relacionamentos à decadência do corpo, às
rugas, à facilidade de engordar” (GOLDENBERG, 2014, p. 91). A
matéria registrada na Figura 6 demonstra essa percepção quando já

9As situações expostas exemplificam o que Gisela Castro (2015, p. 108) aborda
quanto ao idadismo: “uma das formas insidiosas de preconceito que acarreta a
discriminação por idade. Apesar de disseminado, o idadismo é ainda muito pouco
discutido tanto por estudiosos do meio acadêmico quanto pelos meios de
comunicação”.

129
no título dispara: “Aos 47, Lu Gimenez mostra boa forma e fã aplaude:
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

‘Não é fácil ser magra depois dos 40’”.

Figura 6 – Luciana Figura 7 – Claudia Ohana:


Gimenez: magra aos 47. magra aos 53.

Fonte: Glamour, 13 de Fonte: Glamour, 11 de junho


junho de 2016. de 2016.

A Figura 7, ao lado dessa, também aponta como a silhueta


magra é, segundo a matéria, indício de sucesso, ao trazer o título “Aos
53 anos Claudia Ohana exibe corpo sarado e barriga tanquinho em dia
de academia” ancorado pelo texto da reportagem que diz: “Pasmem,
mas ela tem 53 anos. Estamos falando da atriz Claudia Ohana, que
neste sábado, 11, sambou na cara da sociedade postando essa foto e
exibindo esse corpaço. Nada mal, hein?” (GLAMOUR, 11 de junho de
2016).

Ao mesmo tempo em que o corpo magro é exaltado, noticia-


se a rejeição do corpo gordo na mídia, conforme exemplos das Figuras
8 e 9, a seguir.

130
Figura 8 – Gordofobia no Instagram Figura 9 – Gordofobia ao vivo
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

Fonte: HuffPost Brasil, 10 de junho Fonte: HuffPost Brasil, 11 de junho


de 2016. de 2016.

A primeira reportagem (Figura 8) ilustra o caso de uma mulher


que “[...] foi alvo de gordofobia [...] E soube responder os haters
lindamente”. A matéria trata do caso da enfermeira Mzznaki Tetteh,
residente em Gana, que para celebrar a proximidade de seu casamento
postou imagens do ensaio fotográfico de seu noivado na sua conta da
rede social Instagram e foi alvo de palavras agressivas com
julgamentos de estranhos relacionados ao corpo e ao peso da moça. O
desfecho da matéria conclui que ela não se deixou abalar pelos
comentários, continuou postando fotos da celebração e respondeu
agradecendo os elogios que também recebeu. A segunda notícia
(Figura 9) trata da história da repórter Samanta Vicentini, do jornal
Extra, que fazia uma entrevista ao vivo via Facebook e foi alvo de
ataques pessoais de teor ofensivo como as interjeições “Que leitoa” e
“Odeio gorda”. A profissional, mais tarde, em uma postagem
relacionada ao acontecimento, “deu uma bela lição de empoderamento
e feminismo”, segundo afirma a publicação do HuffPost.

Esses dois exemplos elencados não são raros nem exceções,


pois, as mulheres obesas possuem “desvantagens suplementares para

131
se fazerem aceitas socialmente, porque são prejudicadas na vida
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

profissional, insultadas, ridicularizadas, criticadas por homens e


mulheres” (DEBERT, 2011, p. 70). Essas relações com o corpo
mostram os tipos de identidade que construímos e que são não só
refletidas, mas também criadas na e pela mídia. O corpo feminino,
segundo a autora, é visto como dispositivo social.

A passagem por diferentes fases da vida irá trazer momentos


em que o descompasso emocional fica evidenciado muitas vezes pelo
aumento ou perda de peso ou ainda pela transformação acentuada da
fisionomia. Acerca do descompasso que pode ser experimentado pelas
pessoas mais velhas, muitas das preocupações com a idade e
dificuldades em aceitar o corpo envelhecido se originam nessa
construção de representações de velhice, muito diferentes para nós
mesmos e para os demais (BEAUVOIR, 1990).

5 Reações tímidas: reflexão ou provocação?

A publicidade tem inserido mulheres mais velhas em


campanhas de diversos produtos. Modelos com 90 ou 100 anos, ainda
que raramente, já começam a aparecer nas comunicações. Iris Apfel,
de 94 anos, figura icônica da moda, já estampou capas de revista da
área (Figura 10) e é garota propaganda de diversas marcas – como
Kate Spade e do automóvel New DS3 da DS Automobiles UK.

132
Figura 10 – Compilado de capas de revista recentes ilustradas por Iris
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

Apfel

Fonte: Portfólio da modelo da agência Models.com 10

Figura 11 – Bo Gilbert em edição britânica da Vogue (maio de 2016)

Fonte: Delas (2016).

A britânica Bo Gilbert (Figura 11) também mereceu destaque na


mídia por ter sido a primeira mulher centenária a figurar na capa da

10Na sequência: The Financial Times (Spring-Summer 2016); Le Bon Marché


(Spring-Summer 2016); Stylist Magazine UK (May, 2015). Disponível em:
<http://models.com/people/iris-apfel>. Acesso em 13 maio 2016.

133
renomada revista Vogue, em comemoração aos 100 anos do periódico
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

de moda.

As representações como as de Bo Gilbert e de Iris Apfel, no


entanto, são exceções na mídia e pouco recorrentes no Brasil. No país,
a comunicação mercadológica com o idoso tem sido limitada em se
tratando de representações respeitosas do envelhecimento. Um
exemplo a ser destacado foi a peça para televisão da campanha de
Natal de O Boticário, criada pela AlmapBBDO, Toda vez que eu a vejo
é como se fosse a primeira vez (2015), que mostra um casal de idosos,
mas o homem tem a aparência real de quem já passou 50 natais com a
esposa e a mulher é bela e jovem como ele ainda a vê. Só ao final,
quando eles dançam juntos, com o rosto colado, percebe-se que não se
trata de um senhor com uma mocinha, situação comum retratada na
mídia, mas de idosos casados e, aparentemente, felizes, como também
convém à publicidade impor. Embora se apresentem idosos e se
valorize a terceira idade na peça, também se prioriza a beleza quanto
à juventude. O homem se diz com muita sorte por ser casado com uma
mulher muito linda. E quando percebe as pessoas olhando para ele e
sua mulher, tem a impressão de que é porque o tempo só passou para
ele, dando a entender que ela permanece jovem, portanto por isso
ainda é bonita, já ele não merece admiração, pois envelheceu.

O mercado nutre um encantamento pelo consumidor jovem,


esquecendo-se dos idosos como se esses fossem invisíveis para tantos
segmentos de produtos e serviços (CASOTTI; CAMPOS, 2011).

A segmentação operada por esses mercados de consumo


utiliza os 50 ou 55 anos como idade de corte para classificar
o consumidor como idoso. Parece problemático pretender
englobar em um só estrato a enorme diversidade de perfis
de comportamento entre indivíduos de 50, 60, 70, 80, 90
anos — incluindo-se ainda os centenários, que já não são
tão raros entre nós (CASTRO, 2015, p. 105) 11.

11 E é bom salientar que no Brasil “é instituído o Estatuto do Idoso, destinado a


regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60
(sessenta) anos” (BRASIL, Lei 10.741, 2003, art. 1o), portanto, pessoas até 59 anos
não são consideradas idosas.

134
As figuras públicas também parecem compor um segmento
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

ainda mal interpretado pela sociedade. A cantora Madonna, por


exemplo, é conhecida por valorizar o corpo e, aos 57 anos, demonstra
não medir esforços para se manter jovem. Frequentemente citada
como ícone da moda, no dia 2 de maio deste ano, participou do evento
MET Gala usando um modelo Givenchy que foi considerado por
comentaristas que cobriam a ocasião inapropriado por suas
transparências ousadas. As críticas midiáticas, no entanto, davam
muito mais destaque à idade da cantora do que à vestimenta em si –
revelando que um look polêmico não causaria tanto furor caso fosse
desfilado por uma celebridade mais jovem. A “rainha da pop” reagiu
às críticas12:

Temos lutado e continuamos a lutar pelos direitos civis e


pelos direitos dos gays em todo o mundo. Quando se trata
dos direitos das mulheres, ainda continuamos na ‘era das
trevas’. O meu vestido na Gala MET era uma afirmação
política, assim como uma afirmação de moda. O fato de as
pessoas acreditarem realmente que uma mulher não tem
permissão de expressar a sua sexualidade e ser uma
aventureira depois de determinada idade é uma prova de
que, contudo, vivemos numa sociedade atrasada e
machista13.
Esse exemplo de idadismo mostra, outra vez, que interjeições
negativas ao envelhecimento são comuns na mídia. O pavor de
envelhecer, historicamente, foi muito utilizado como gatilho para
gerar um apelo de consumo, incentivando o envolvimento feminino
com o mercado de produtos de beleza. Até mesmo para as moças
jovens, “o envelhecimento passa a ser visto como um destino que
também as inclui e contra o qual precisam lutar” (CASOTTI; CAMPOS,
2011, p. 117). No Brasil, em especial, o envelhecimento “aterroriza”
tanto as mulheres porque em nossa sociedade o corpo é um capital
social (GOLDENBERG, 2015) e a velhice, assim, é vista como
momento de perdas, principalmente do valor desse capital físico.

12 Postagem no Instagram, disponível em: <https://goo.gl/52wI3j>. Acesso em 13 de


maio de 2016.
13 Tradução do projeto “Cabelos brancos”, disponível em: <https://goo.gl/x1EZV3>.

Acesso em 13 de maio de 2016.

135
6 Considerações finais
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

Cada vez mais, observam-se casos de insatisfação com a


imagem corporal. A não aceitação da idade e da própria aparência tem
sido revelada e discutida com maior frequência na mídia. As
repercussões das notícias sobre Vera Fischer e Bruna Lombardi
denotam o imaginário da beleza ideal. Ambas já tiveram, na juventude,
suas imagens associadas a marcas e já impulsionaram vendas. Hoje,
uma continua sendo apresentada como exemplo a ser seguido e a outra
é criticada por estar fora dos moldes midiáticos. A mídia, apesar das
críticas que recebe, segue impondo padrões. Até mesmo quando
apresenta um assunto tão delicado quanto os casos de pessoas que
passaram a consumir crack para emagrecer, glamouriza o corpo
magro. Seja por razões de consumo ou por meros enquadramentos
temáticos, a lógica do mercado propõe um padrão específico de beleza
que contribui ao fortalecimento de transtornos patológicos tais como
a dismorfia, discutida pela jornalista Daiana Garbin em seu canal
EuVejo no YouTube.

Ainda que as comunicações busquem inserir em suas


mensagens personalidades que envelhecem com saúde e disposição,
como é o exemplo de Iris Apfel e Bo Gilbert, não raro fornece pistas de
que essas representações são momentâneas e exceções. Quando
notícias falam de mulheres mais velhas, muitas vezes não só as
reportagens em si se utilizam de percepções idadistas, mas as seções
de comentários também se enchem de cruéis julgamentos. Algumas
das celebridades, a exemplo de Madonna reagem às críticas tentando
mostrar o outro lado das mensagens. Ainda assim, o social é tão forte
que as rupturas têm sido pouco percebidas. Em um paradoxo
midiático e social, as mulheres famosas parecem não ter o direito de
envelhecer e, ao mesmo tempo, quando se comportam como jovens,
são cobradas por não agir de acordo com a idade. A superexposição de
juventude e beleza provoca desconforto no mundo da fama e no
cotidiano dos anônimos também. Para muitas mulheres que não se
veem tão magras ou tão jovens, apesar dos esforços, apresentam-se

136
inseguranças quanto ao corpo, podendo essas inclusive serem
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

patológicas. Defendemos que quando as representações que


contemplam outros corpos com respeito deixarem de ser pontuais
aparições insólitas, talvez as pessoas olhem para as comunicações e se
identifiquem, sentindo-se dignamente representadas.

A insatisfação das mulheres com o corpo liga-se diretamente a


quantidade de informações e apelos a respeito de como deve ser sua
aparência: jovem e magra. O monitoramento realizado para este texto,
nos sites HuffPost Brasil, editoria Mulheres, e Globo.com, links que
levavam à revista Glamour, comprovou que em apenas um dos dez
dias, em 18 de junho, um sábado, não foram publicadas notícias
valorizando juventude ou magreza. Devemos comentar, no entanto,
que o HuffPost teve um volume bem menor de publicações que a
revista Glamour.

O HuffPost Brasil também abre maior espaço a questões que


não valorizam tanto a juventude, a beleza (publicitária) e a magreza,
no entanto, reportagens publicadas tiveram origem em situações de
intolerância social. As pessoas abordadas, por exemplo, foram vítimas
de gordofobia. Mas cabe ressaltar, por outro lado, que a audiência é do
HuffPost é menor que a da revista Glamour, que tem maior
visibilidade uma vez que está hospedada no site Globo.com, que
“chama” as manchetes da Glamour diariamente na coluna
entretenimento do site.

Imposições midiáticas que colocam o corpo jovem e magro


como modelo ideal podem ser geradoras de pressões sociais e de
angústias porque instauram a busca pela aparência que a mídia
considera “correta” como meio de obter sucesso e realização pessoal,
como promessa de adequação às normas e ao prestígio social. Não é
intenção defender que o cuidado com o corpo, por si só, é um modo de
regular modos de ser e viver e de limitar comportamentos femininos,
o que se argumenta é que apresentar essas exigências como
compulsórias priva possibilidades de escolha que respeitem
idiossincrasias e constrói uma visão limitada de beleza. Esse cenário,

137
inclusive, causa diversos problemas e incentiva comportamentos
convenções corporais e o medo de envelhecer
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Imposições midiáticas, pressões sociais, angústias pessoais:

prejudiciais, como o abuso de drogas, uso de substâncias ilícitas e


realização de procedimentos estéticos que põe em risco a saúde.

O estudo visa acompanhar, ainda em próximas etapas, redes


sociais, blogs, páginas de moda plus size e grupos que não se veem na
mídia. Outros veículos também serão monitorados. Entende-se, por
fim, o corpo como patrimônio do indivíduo que deve, portanto, “ser
cuidado” pelo proprietário – ou por quem ele confiar. Ser objeto
vigiado pela sociedade que tem um padrão midiático gera angústias
que podem levar ao medo e à disfunções patológicas. Especialistas
alertam14: “Nunca use crack para emagrecer”.

 Retorne ao sumário

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138
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141
1 Introdução

As questões que permeiam a sexualidade e a expressão de


gênero são tratadas como tabus em muitas sociedades, sendo os
sujeitos condicionado a adotar os padrões heteronormativos e
cisnormativos para serem aceitos, viverem em sociedade e gozarem
dos direitos civis – considerando que a transgeneridade é entendida
pela medicina como distúrbio mental, assim como até pouco tempo a
homossexualidade também o era.

Ainda que o foco desta pesquisa seja empírico, iniciamos nosso


apanhado teórico a partir das concepções de Foucault (1988) sobre a
sexualidade para compreender como se deu sua domesticação e de que
modo as relações heterossexuais são culturalmente construídas.
Assim, podemos embasar a crítica sobre a divisão binária que
estrutura a sociedade, criada como forma de hierarquizá-la,
apropriando-se de agentes sociais como a escola, a família e a igreja
para controlar qualquer ação que permita a liberdade sexual e possa
subverter o sistema.

Chegamos, assim, aos estudos de Judith Butler (2012), com


bases foucaultianas, acerca da ideologia de gênero, e compreendemos

142
como os discursos moldam as performatividades de gênero desde o
A representação de pessoas trans na publicidade: um estudo de recepção
Renata Barreto Malta| Gardênia Santana de Oliveira | Nilson Dias Bezzera Netto

nascimento e nos impelem a adotar comportamentos que


supostamente condizem com um gênero determinado pelo órgão
sexual. A autora apresenta uma distinção entre sexo e gênero
ressaltando que “se os gêneros são os significados culturais assumidos
pelo corpo sexuado, não se pode dizer que ele decorra de um sexo desta
ou daquela maneira. Levada a seu limite lógico, a distinção entre
sexo/gênero sugere uma descontinuidade radical entre corpos
sexuados e gêneros culturalmente construídos” (BUTLER, 2012,
p.24).

De acordo com a concepção acima, o gênero não pode ser


definido em uma linearidade com o sexo biológico, e não possui
qualquer associação à orientação sexual, pois, além de ser fruto da
cultura, é mutável e transitório à medida que sua vivência está
diretamente relacionada à identificação que o indivíduo possui em ser
homem/mulher ou nenhuma dessas categorias, independentemente
dos seus órgãos sexuais.

Partindo para as concepções de Pierre Bourdieu (1999),


conceituamos a dominação masculina na sociedade fundamentada no
biológico. Ficam evidentes ações da sociedade que contribuem para
movimentar as engrenagens do sistema opressor, aculturando papéis
supostamente justificáveis a partir da ótica essencialista. O autor se
refere à construção simbólica como responsável pelo comportamento
entre os gêneros, um trabalho de aculturação sutil, longo e duradouro,
que reforça a visão de mundo dominante/androcêntrica.

Buscamos, ainda, uma abordagem sobre a construção da


identidade, fundamentada pelo livro Identidade e Diferença (2011), de
Tomaz Tadeu da Silva, com textos de Woodward e Hall, onde
compreendemos que as identidades são formadas por um
compartilhamento de valores e comportamentos comuns de um
grupo, a partir da diferença, gerando um sentimento de pertencimento
de quem o compõe. Nesse contexto, a representatividade atua como
um mecanismo que proporciona visibilidade a estes grupos, e sua

143
aceitação ou exclusão na sociedade depende diretamente do nível de
A representação de pessoas trans na publicidade: um estudo de recepção
Renata Barreto Malta| Gardênia Santana de Oliveira | Nilson Dias Bezzera Netto

representação em voga.

Enfim, chegamos ao objeto do nosso estudo, o qual norteou


toda a pesquisa, as especificidades acerca da transgeneridade.
Atentamo-nos, então, para todo o processo vivido por pessoas
transexuais, com base em Bento (2006). A autora descreve as teorias
de Herry Benjamin (1966) e Robert Stoller (1975), que
respectivamente trataram transexuais como indivíduos
biologicamente defeituosos e portadores de distúrbios mentais. Sendo
assim, seus estudos contribuíram para perpetuar uma visão de
patologização da transexualidade, enquadrado como “transexualismo”
na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados com a Saúde (CID), como Transtornos da Identidade
Sexual.

Ademais, o processo para realização da cirurgia de mudança de


sexo é demorado e penoso para estas pessoas, visto que devem se
submeter a toda análise médica e tratamento psiquiátrico. Mais além,
essa transição é uma decisão pessoal e em nada deveria determinar e
definir sua condição de pessoa transgênero. Não muito diferente disso,
o sistema jurídico também atua como decisor, pois a mudança de
nome ainda é um processo complexo, não havendo uma lei específica
que garanta jurisprudência nacional.

No que concerne aos números, um levantamento da


Organização não governamental Transgender Europe feito entre
janeiro de 2008 e junho de 20161, constatou que o Brasil é o país que
mais mata transexuais no mundo e que mesmo com a mudança de
nome e sexo, a pessoa transexual se depara com a exclusão social, seja
na escola, no trabalho ou na convivência com a família, restando na
maioria dos casos um único caminho para se manter, a prostituição –
90% das mulheres transexuais e travestis se encontram na prostituição
compulsória e sua expectativa de vida é de 35 anos.

1Disponível em: <http://transrespect.org/en/idahot-2016-tmm-update/ > Acesso


em: 15, fev, 2017.

144
Já adentrando no objeto deste estudo, entendemos que a
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publicidade se configura estratégia comunicacional e que os papéis


sociais estão envoltos neste cenário midiático e contam com a
publicidade para reforçá-los ou questioná-los. Historicamente, a
publicidade se concentra no reforço de valores hegemônicos, não
abrindo espaço para identidades que subvertem o sistema, entre elas
o universo LGBT+. Contudo, na contemporaneidade, observamos
também que, diante das novas organizações sociais e espaços de
disputa, principalmente em ambientes virtuais, o cenário começa a
mudar e algumas marcas criam campanhas que promovem
visibilidade a estes grupos, ainda que de forma modesta.

Chegamos, assim, ao objetivo central deste estudo, por meio de


uma pesquisa de recepção observar as percepções de mulheres que se
autointitulam transexuais, travestis ou trangênero acerca de um
corpus formado por quatro vídeos publicitários criteriosamente
selecionados. Entrevistamos um total de onze mulheres e por meio de
suas respostas podemos verificar o nível de representatividade que
estes comerciais proporcionam, além dos significados por elas
aferidos.

Em suma, temos a intenção de abordar por meio deste estudo −


que por si só já significa visibilidade à causa transexual − que a
publicidade, como sistema simbólico, pode influenciar a sociedade por
meio de representações não estereotipadas de grupos minoritários
(hegemonicamente) em anúncios que condizem com a realidade
dessas pessoas ou não, proporcionando sensação de reconhecimento.

2 Trajetória Empírica

Partiremos, aqui, para a etapa empírica proposta por este


estudo: uma pesquisa de recepção por meio de entrevistas em
profundidade com mulheres que se autodeclaram transexuais,
trangênero ou travestis, considerando que o protagonismo do corpus
se constitui por este grupo social.

145
Antes de realizar o estudo de recepção, o significado explícito
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do corpus será aqui exposto, tendo como parâmetro as proposições de


Bordwell (2008). O autor classifica os diferentes tipos de significados,
os quais podem ser identificados e analisados de forma interpretativa.
O significado explícito concerne ao eixo central do filme, que compõe
uma sinopse e é, assim, bastante concreto e objetivo. Pode ser definido
como o conjunto de fatos mais relevantes que define a narrativa.

Para compor o corpus desta pesquisa, delimitamos quatro


peças publicitárias que apresentam como protagonistas personagens
transgênero e travestis, sob diferentes perspectivas. A seleção se deu
de forma deliberada e não aleatória após uma pré-análise realizada em
todas as peças publicitárias identificadas a partir de uma busca na rede
social YouTube, com as seguintes palavras-chave: Comercial;
Publicidade; Travesti e Transexual. Nosso critério foi selecionar um
número de produções que possibilitasse a pesquisa de recepção,
considerando que o material seria exibido às entrevistadas. Ademais,
prezamos pela pluralidade de temáticas e modelos de representação
para garantir resultados mais significativos.

O foco dos estudos de recepção, segundo Ruótulo (1998),

(...) não é a pura composição ou o tamanho da audiência,


mas sim as respostas que os indivíduos dão aos conteúdos
da comunicação. Esta resposta (interna ou externa) é por
natureza difícil de ser observada porque sempre ocorre
individual e isoladamente com cada membro da audiência,
embora possa ter importantes consequências sociais,
econômicas, políticas e culturais (RUÓTULO, 1998,
pp.150-151).

Sendo assim, buscamos entender a percepção dos receptores a


respeito da temática abordada, especificamente de mulheres que se
autodenominam transgênero, transexuais ou travestis. Como objetivo,
pretendemos compreender como as entrevistadas interpretam a
mensagem dos anúncios selecionados, o nível de representatividade
identificado por este grupo e em que medida essas narrativas possuem
congruências com as suas realidades. Tais respostas seriam uma

146
construção subjetiva de significados por parte do público em um
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processo de decodificação.

O interesse maior está na reconstrução dos significados


feita pelos receptores dentro de seu próprio contexto; ou
seja, a interpretação dada pelos receptores aos conteúdos.
A audiência é ativa e atribui significados aos meios de
acordo com sua realidade sócio-cultural (RUÓTULO, 1998,
p. 155).

Essas interpretações, após a exposição do corpus, serão


fundamentais para que compreendamos também a importância destes
anúncios publicitários na quebra de paradigmas e construção de novos
modelos sociais ou reforço de normativas as quais rotulam a
comunidade trans.

A partir dessa abordagem teórico-metodológica, definimos


como técnica a entrevista individual em profundidade semi-
estruturada, em uma perspectiva qualitativa. Aaker (2004) afirma que
“os dados qualitativos são coletados para se conhecer melhor aspectos
que não podem ser observados e medidos diretamente. Sentimentos,
pensamentos, intenções e comportamentos passados são alguns
exemplos de coisas que só podem ser conhecidos por meio dos dados
qualitativos” (AAKER, 2004, p. 206).

Para realização da pesquisa de recepção, escolhemos trabalhar


com mulheres que se autointitulam transexuais, transgênero ou
travestis da cidade de Aracaju, devido a maior concentração de
associações em prol da causa, dentre as outras cidades do estado de
Sergipe – são duas associações ativas na cidade, a AMOSERTRANS e
a Unidas −, o que facilita o contato com as possíveis entrevistadas. A
especificidade da localidade e do grupo que forma a recepção de
interesse para esta pesquisa são as únicas diretrizes fixas, no entanto,
buscamos garantir uma maior pluralidade de respondentes, prezando
pela diversidade etária, racial, grau de escolaridade e engajamento
político.

A quantidade de entrevistadas ficou definida entre 10 e 15, pois


a especificidade e variedade deste conjunto promove uma pesquisa

147
rica em opiniões variadas. Desse modo, os resultados aqui
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apresentados não são generalizáveis, nem representativos, contudo,


seu caráter propicia aprofundamento e a compreensão de um
fenômeno a partir de diferentes perspectivas. Bauer e Gaskell (2002)
afirmam que a entrevista em profundidade é um convite ao
entrevistado para se alongar, para expressar-se de forma coloquial e
com maior liberdade, explorando várias percepções. A variedade de
pontos de vista acerca do mesmo tema é, para os autores, essencial.

Para garantir essa variedade, como já mencionamos, prezamos


por uma pluralidade de respondentes dentro do grupo de interesse que
pode ser observada no quadro abaixo:

Quadro 1: Características das entrevistadas para pesquisa de recepção


Idade Escolaridade Bairro Raça2 Outros
Entrevistada
Militante
01 25
Ensino Superior Médici Parda
anos

Entrevistada 20 Siqueira
Ensino Superior Parda Não é militante.
02 anos Campos
Entrevistada 47
Ensino médio Luzia Branca Militante
03 anos
Entrevistada 22 Militante
Ensino médio Rosa Elze Branca
04 anos Transfeminista
Entrevistada 43 Ensino Médio
Centro Negra Militante.
05 anos Incompleto
Militante
Entrevistada 42 Ensino Superior
Centro Parda
06 anos. Incompleto
Transfeminista
Entrevistada 30 Inácio Militante e ativista
Mestranda Negra
07 anos Barbosa LGBT
Conjunto
Entrevistada 38 Ensino
Albano Parda Militante
08 anos Fundamental
Franco
Entrevistada 25 Ensino superior
América Parda Militante
09 anos incompleto
Entrevistada 40 Ensino médio Castelo
Parda Militante
10 anos incompleto Branco
Entrevistada 26
Ensino Médio Palestina Parda Não é militante
11 anos
Fonte: Elaboração própria.

2Reforçamos que a definição de raça se deu a partir da forma como as respondentes


se autodeclararam durante as entrevistas.

148
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No que se refere ao caráter prático da aplicação da pesquisa,


optamos por realizá-la nos locais e horários determinados pelas
entrevistadas, sendo assim, residências, associações de militância e
universidade foram os espaços de encontro. As entrevistas ocorreram
individualmente onde o corpus foi exibido seguido de perguntas a
respeito dos vídeos e sua correlação com a entrevistada. Diante da
diversidade de interpretações, o roteiro3 de perguntas poderia sofrer
variações, como prevê a entrevista em profundidade semi-estruturada,
priorizando a liberdade que o entrevistado possui em dialogar com o
entrevistador. Nos tópicos seguintes apresentaremos um resumo da
análise fílmica do corpus, priorizando, para este capítulo, a
interpretação do estudo de recepção.

3 Vídeos publicitários apresentados

3.1 Case Magnum

Em maio de 2015, a marca de sorvetes Magnum lançou durante


o festival de Cannes a campanha, “Be true to your pleasure”. O
material audiovisual era composto por quatro vídeos que foram
postados no YouTube. O primeiro deles, de abertura, é responsável por
apresentar de forma imagético-sonora o conceito da campanha. No
YouTube ele ainda continua disponível na conta oficial da marca, e até
o momento são registradas mais de 4 milhões de visualizações para
esse conteúdo, com 3.993 “likes” e 273 “dislikes”4.

Como significado explícito, as protagonistas são apresentadas e


logo observamos algumas singularidades. Todas estão vestidas de
forma elegante a compactuar com os cenários, subentendendo-se que
são bem-sucedidas ou minimamente frequentam esses ambientes,
dominadoras do meio social ao qual pertencem, esbanjando

3 O roteiro das perguntas, assim como a transcrição na íntegra das entrevistas, não
serão disponibilizados neste capítulo por ser um conteúdo bastante extenso.
4 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=SjHRbQ3WWCE> Acesso

em: 15, fev, 2017.

149
sensualidade. Suas feições revelam uma indefinição de gênero,
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algumas apresentam traços que transparecem uma transição de


gênero mais evidente, já em outras não é possível identificar
características definidas de gênero, a partir de uma lógica binária. Isso
deixa clara a intenção da narrativa de desconstruir a divisão binária de
gênero que estrutura a sociedade.

As protagonistas estão cercadas por pessoas que parecem


naturalizar sua presença, com exceção de alguns, o que pode
representar a intolerância como um mal presente. Ainda assim, a
transfobia não é discutida, mas sutilmente entendemos, através de
alguns olhares, que ela existe em alguma medida.

3.2 Case Governo de Minas Gerais - "O amor transforma preconceitos"

Com o intuito de promover o respeito à diversidade de gênero,


foi lançada no mês de julho de 2016, a peça intitulada "O amor
transforma preconceitos" pertencente à campanha “Livres &
Iguais”, da Organização das Nações Unidas (ONU) pela igualdade
LGBT em parceria com o Governo de Minas Gerais5. No YouTube, o
vídeo postado na página do governo de Minas conta 1.020
visualizações, 22 curtidas e 4 “dislikes”6.

Como significado explícito, o vídeo é uma narrativa linear


contada através de elementos visuais e sonoros, que mostra a história
ficcional de uma família oriunda do interior do estado de Minas. No
início da narrativa o espectador é levado à época em que a família se
origina e uma das crianças do casal demonstra identificar-se pelo
gênero oposto à sua origem biológica. Essa situação se explicita a
partir de elementos que estão culturalmente associados ao gênero
feminino, como vestimentas e brinquedos, sempre em uma ótica
binária. Esta suposta não adequação da expressão de gênero ao sexo

5 Disponível em: <


http://identidademandacaru.blogspot.com.br/2016/07/governo-de-minas-gerais-
faz-campanha.html> Acesso em: 19/07/2016
6 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=2Gw5UvivH48 > Acesso

em: 15/fev/2017

150
de nascença não é aceita por seus pais, levando a criança a fugir de
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casa. O vídeo retoma os dias atuais e aquele garoto é reapresentado


como uma mulher transexual adulta, mãe de uma filha e esposa, que
retorna para reencontrar sua família. Uma locução em “off” nos
segundos finais chama atenção para LGBTfobia, explanando o tom de
conscientização almejado pela mensagem. Em seguida, as parcerias
idealizadoras são apresentadas, encerrando a peça.

3.3 Case L’Oréal

Para comemorar o Dia Internacional da Mulher, a marca de


cosméticos L’Oréal Paris lançou a campanha publicitária “Toda
Mulher Vale Muito” com a modelo transgênero7 Valentina Sampaio. O
vídeo publicado na conta oficial da marca no YouTube 8 alcançou
169.370 visualizações, com 957 curtidas favoráveis e 90 contrárias.

A narrativa é composta por elementos visuais e sonoros. Como


significado explícito, a cena inicial retrata uma jovem de cabelos
compridos, branca, alta e magra indo em direção a uma penteadeira.
Com roupas delicadas na cor rosa, a mulher encena um ritual de beleza
ao arrumar os cabelos e maquiar-se. Aqui, é possível perceber a
construção da expressão do gênero feminino através da delicadeza nos
gestos e das cores escolhidas para compor o cenário, além disso, a
modelo apresenta traços bastante femininos que não denunciam a
transexualidade. A locução continua com a personagem exaltando a
importância de ser mulher, rechaçando flores e pedindo respeito neste
dia. Em seguida, a modelo posa para a foto da carteira de identidade
com o novo nome de registro e afirma que este é, oficialmente, o seu
primeiro dia da mulher. É possível perceber que se trata de uma
mulher trans. Apesar dos produtos serem consumidos durante o vídeo,
a marca não é destaque, somente no final aparece sua assinatura. O

7Condição onde a expressão de gênero e/ou identidade de gênero de uma pessoa é


diferente daquelas atribuídas ao sexo designado no nascimento
8 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=3J8CiwL4BCo > Acesso

em: 15/fev/2017

151
texto final evidencia a proposta da marca em associar a sua imagem à
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causa trans.

3.4 Case Avon

Em outubro de 2015, mês dedicado ao combate ao câncer de


mama, a marca de cosméticos Avon lançou a campanha #EuUsoAssim
em que a celebridade transexual Candy Mel aparece em um tutorial
ensinando truques de maquiagem. O comercial lançado na página
oficial da marca no Brasil alcançou 311.540 visualizações no YouTube9,
com 1.749 curtidas favoráveis e 100 contrárias.

Os elementos visuais que compõem a narrativa se iniciam com


a hashtag da campanha e a identificação do “Outubro Rosa”,
juntamente com uma mulher afrodescendente ensinando como fazer
uma maquiagem em tons rosados. Durante todo momento a modelo
utiliza os produtos da marca. No que se refere à locução, a voz da
modelo narra o comercial que se inicia enfatizando o mês de outubro
como período especial em que as mulheres devem se cuidar mais e
continua com um passo-a-passo sobre a maquiagem. Por fim, há uma
associação entre o uso das cores rosa e o apoio à causa do câncer de
mama.

A modelo é apresentada apenas como uma mulher que ensina


outras a cuidarem da beleza e somente as pessoas que a conhecem
podem referenciar-se à transgeneridade.

4 Resultado: Interpretação das Entrevistas

Depois de realizadas e transcritas as entrevistas, tendo as peças


publicitárias anteriormente apresentadas como base, iniciamos a
interpretação dos resultados. Apesar de partirmos de um único grupo
de respondentes, mulheres que se autodeclaram transgênero,
transexuais ou travestis, identificamos o grau de escolaridade das

9Disponível em : < https://www.youtube.com/watch?v=ubYp8Hcl1HQ > Acesso


em: 15/fev/2017

152
entrevistadas, assim como o auto reconhecimento como militante de
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movimentos sociais. O intuito era observar se o maior grau de


instrução e de engajamento na militância significaria um maior senso
crítico. Evidenciamos, ainda, que por se tratar de uma pesquisa
qualitativa, não é a quantidade de aparições de uma determinada
resposta que nos interessa, mas sim compreender as diferentes
percepções acerca do mesmo conteúdo entre as respondentes. Para a
interpretação dos resultados, exporemos os pontos mais relevantes
observados ao longo das entrevistas para cada vídeo exibido.

4.1 Comercial 1: “Magnum: Be true to your Pleasure”

A presença de mulheres trans, ou drag queens (assim


denominado por elas) foi o ponto chave. Logo no início, algumas delas
afirmaram que não se sentiram contempladas porque identificaram
que eram “homens” vestidos de “mulheres”, transformistas. O fato de
não haver uma binaridade definida, com características consideradas
socialmente como femininas, incomodou parte das entrevistadas, com
afirmações de que o espectador não entenderia que tipo de pessoas são
aquelas e as associaria às mulheres trans e travestis, o que para estas
respondentes seria errôneo e constrangedor. Frases como “...porque
ser pessoa trans não é simplesmente botar uma roupa de mulher e uma
peruca. É muito mais do que isso” expressam esse sentimento de não
se sentir representada por não entender que ali estavam presentes
pessoas transgênero.

Duas entrevistadas, as quais se autodeclaram militantes


transfeministas, relativizam essa percepção de forma sutil, ainda que
não se sintam contempladas por tratar-se, segundo elas, de
transformistas e drag queens, entendem que a intenção do comercial
era justamente a não definição binária de gênero. Uma delas brinda a
diversidade em sua fala. Mais além, uma respondente – mestranda,
militante e ativista LGBT+ – problematiza a binaridade de forma
bastante enfática dizendo que em nossa sociedade existem dois
modelos de corpos pré-definidos, o feminino e o masculino. Transitar

153
entre estes dois modelos não é aceito socialmente, nem mesmo para
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pessoas trans. Para ela, o interessante desse vídeo é a sua proposta de


desconstruir o conceito binário de gênero e ser realmente inclusivo.
Ela pergunta: “Por que uma mulher não poderia ter uma barba?”. Este
grau de problematização não foi encontrado em nenhuma outra
entrevista.

Outras questões apresentadas foram: (1) a estranheza de uma


frase em inglês, a qual por vezes fugiu ao entendimento das
respondentes, e, em grande parte das respostas, (2) a exploração da
sensualidade feminina, independente se elas consideraram que se
tratava de personagens travestidas, entenderam que essas mulheres se
transformam em mercadoria. Mesmo aquelas que não se
incomodaram com essa representação, ressaltando a música e a
sutileza das performances, pontuaram a presença de um estereótipo
da mulher sexy e sedutora.

Com relação à associação do conteúdo das narrativas ao


cotidiano das respondentes, parte delas afirmou de forma bastante
direta que nada daquele vídeo se associa a fatos de sua vida. Algumas
entrevistadas relataram que a sensualidade as faz lembrar da vida de
garotas de programa – ou de pessoas próximas ou da própria
experiência na prostituição −, as quais se arrumam para provocar os
homens. A exposição sexualizada de algumas protagonistas foi
ressaltada como motivo de não se sentirem representadas pelo vídeo.
Por outras, exatamente a sensualidade foi relatada como elemento
representativo de algumas situações de suas vidas, assim como a
necessidade de estar maquiada, arrumada e bem vestida.

Uma respondente, que se considera militante e completou


apenas o ensino fundamental, traz a problemática da feminilidade
como padrão a ser desconstruído. Ela afirma que o vídeo a representa
e que ser feminina está na alma. Ela comenta que “(...) tem algumas
que são mais femininas do que outras, lógico que sim, mas é como se
diz, a feminilidade não está na fisionomia e sim dentro de si”.

154
Contudo, identificamos uma problematização de grande
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relevância para uma das respondentes, essa tranquilidade ao


sensualizar à luz do dia, em ambientes de festa e socialização, não é a
realidade das travestis que se prostituem, elas evitam se expor por
serem rejeitadas pela sociedade e, à noite, em espaços específicos,
estão sempre em alerta devido aos perigos que essa profissão
representa.

Outra observação foi associar os olhares de rechaço de alguns


figurantes do vídeo àqueles que elas recebem em seu dia a dia. A fala
de uma entrevistada é marcante quando afirma que se trata de um
olhar que “... tenta arrancar tudo o que tem dentro, que a pessoa chega
a ficar assim, de cabeça baixa”. Desse modo, se no comercial as
protagonistas são seguras de si, segundo a mesma entrevistada, na
vida real a transfobia mina a autoestima e a segurança dessas
mulheres. Aqui identificamos respostas que relatam discrepâncias
entre a representação do vídeo e a realidade das ruas. Algumas falas
são bastante significativas a esse respeito, apontando para a
necessidade das mulheres trans que estão nas ruas se posicionarem de
forma agressiva porque se sentem intimidadas e precisam se defender.

Por fim, uma respondente citou uma situação cotidiana


vivenciada por ela ao mostrar a foto de uma mulher trans com traços
menos femininos a uma amiga e essa a ridicularizar, afirmando que
“com essa cara de macho” não poderia ser uma transexual. Ela
questiona que esse tipo de preconceito não deveria existir,
considerando que a transgeneridade está na alma, no pensamento, e
não em padrões binários de beleza. Em suas palavras, “...infelizmente
a sociedade coloca esses dispositivos de poder e determina como
devem ser esses corpos, (...) é daí que nasce a discriminação”.

O machismo e o sexismo ainda aparecem nas respostas de uma


das entrevistadas, ela se sente representada pelo comercial e afirma
que esse problema social atinge não só as mulheres trans, mas também
as cisgêneras.

155
4.2 Comercial 2: Avon
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O primeiro aspecto observado refere-se ao uso da maquiagem,


especialmente da cor rosa, por fazer parte do universo feminino. Uma
das respondentes definiu este processo como uma libertação, “a
primeira coisa que uma transexual acha que dá pra fazer é sair com a
cara maquiada na rua, (...) uma das minhas primeiras alegrias foi
poder sair na rua com maquiagem”.

O segundo aspecto diz respeito à causa abordada no comercial,


o câncer de mama. Grande parte elogiou ao anúncio por conseguir
abordar a temática de forma leve. Houve por parte de uma
respondente, que é militante e cursou o ensino médio, um maior
aprofundamento sobre os problemas que as transexuais enfrentam
com a doença, enquanto que outras duas, que são militantes e também
possuem o ensino médio, não sabiam da ocorrência desta doença em
transexuais.

Outras se atentaram a uma premissa de importante relevância:


a figura de uma transexual em um anúncio. Ocorreu uma aceitação
quase unânime para o fato da atriz apresentar-se de maneira natural,
sem padrões de beleza estabelecidos, onde não é perceptível tratar-se
de uma transexual. Uma delas afirma que “a mulher trans pode ser
uma pessoa comum, é uma mulher comum cuidando da beleza”.
Entretanto, uma respondente afirma que “você percebe que é uma
trans pelos traços do rosto da menina”. Essa naturalidade significou
representatividade para parte das respondentes. Podemos perceber
esse sentimento em falas como “a AVON acertou na escolha da pessoa
que estaria no comercial por representar diversas mulheres
transexuais que estão aí no seu dia a dia, aí na sua casa, que estão
querendo se sentir bem e que estão querendo levantar sua autoestima,
eu me sinto super bem representada”. Para outra parte, a atriz
protagonista possui traços “passáveis” e, por isso, o nível de
representação seria baixo. “não representa, no geral, as mulheres
trans, no caso, porque a maioria não é passável, a maioria não está
dentro desse padrão de feminilidade que ela exerceu (...)”.

156
Outro ponto observado por duas militantes com ensino
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superior é o fato de a atriz ser uma mulher negra, que foi elogiado por
ser uma maneira de assumir suas raízes em um universo de padrões
opostos, “a mim representa justamente por assumir mesmo o cabelo
crespo, essa questão de ser uma mulher negra, pra mim, acho ela
muito importante”. Algumas problemáticas também foram
levantadas, uma das militantes que não concluiu o ensino médio
questionou o uso da cor rosa como padrão de identificação para as
mulheres, o que não a agradou.

Além disso, uma respondente, também militante que não


concluiu o ensino médio, afirma que o vídeo mostra um espaço que
não lhes cabe, demonstrando uma visão que foge à regra das demais.
“A gente tem que lutar por nós mesmas, pelo nosso ideal e pronto. Não
é querer lutar como o dia da mulher, tem o dia da mulher, tem o dia
da trans entendeu?”. Pela ótica da entrevistada, as transexuais não
devem adotar um comportamento e posicionamento feminino em uma
normativa cisgênero, pois as mesmas estão em outra categoria e
devem lutar em prol apenas da transexualidade.

Com relação à semelhança entre o comercial e a vivência das


entrevistadas, a maioria estabeleceu uma conexão com a presença da
maquiagem em suas vidas em diferentes aspectos. Seja por uma
perspectiva de vaidade, para se sentirem bonitas, com boa aparência,
como forma de reafirmação da sua identidade, ou como um elemento
necessário em sua produção para atrair clientes durante os programas.

Houve também, por parte de uma militante com ensino médio,


analogias ligadas ao consumo, pois as transexuais também adquirem
produtos e o fato de aparecerem em um anúncio é de suma
importância em termos de reconhecimento deste público consumidor.

4.3 Comercial 3: Governo de Minas

As primeiras impressões, no geral, voltaram-se à narrativa que


serve de base à mensagem. Todas as entrevistadas se identificaram de

157
imediato com a história que é contada no comercial, que retrata o
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início da descoberta de uma mulher trans a sua real identidade de


gênero. Uma das entrevistadas descreve: “...eu comecei assim que nem
esse menino, experimentando as roupas, o avental da minha mãe, as
roupas da minha irmã”. Até o ambiente interiorano remeteu a grande
maioria, tendo o meio rural como cenário para o início de suas
histórias, tal como mostrado no vídeo e lembrado em algumas falas:
“...eu sou do interior, então fez lembrar a minha infância…”. Num
outro momento, o que chama a atenção é a intolerância e a rejeição,
um aspecto da narrativa que provoca uma sensação de
reconhecimento. A maioria deixou depoimentos que refletiam e
ilustravam a relação conturbada com seus familiares, mostrando o
rechaço sofrido e as mágoas que toda essa opressão causou.

Já sobre o desfecho da narrativa, uma das entrevistadas não se


sente representada porque, diferentemente da personagem, ela não
conseguiu a reaproximação com a família. Para algumas, a
personagem ter sido aceita pela família no final a torna uma
“privilegiada”, pois são poucas as trans nessa condição. “...a realidade
não é essa também, que não é a maioria, 90% está na prostituição, a
expectativa de vida da gente é 35 anos”, sendo a constituição de família
e filhos um fato incomum para grande parte das transexuais, por isso,
afastando-as da utopia estabelecida pelo comercial. Outra militante
transfeminista completa observando que o preconceito começa em
casa e a marginalização e a exclusão tornam-se presentes a essa pessoa
pelo resto de sua vida.

No que concerne à constituição de uma nova família, algumas


respondentes falam sobre o casamento e filhos, uma delas como uma
coisa a ser almejada, porém outra faz um questionamento mais crítico
e pessimista, afirmando que “...nem todas as meninas trans
conseguem ter um casamento normal, adotar um filho (…)”, pois
considera haver muitas barreiras na sociedade que impossibilitam a
adoção por parte de um casal formado por uma pessoa trans e um
homem heterossexual. Nesse âmbito, apenas uma respondente,

158
mestranda e militante, questiona o modelo de família retratado pelo
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comercial por ser heteronormativo, enquadrando as mulheres trans


no mesmo padrão de família tradicional que as mulheres cisgênero são
impelidas a seguir.

A mensagem da campanha passou despercebida pela maioria


das entrevistadas, sendo destacada apenas por três militantes, uma
delas a define como “importante” e “clara”, já outra vê no comercial
uma forma de apelo à humanidade das pessoas, pois, segundo ela,
“...tem muitas pessoas que não são de fato preconceituosas, elas só
reproduzem o preconceito que é cultural…”, mostrando a importância
da iniciativa do vídeo em tentar tocar as pessoas. Dando continuidade
à sua fala, a mesma militante enxerga a ação como um avanço da
causa, como a própria destaca: “... me emociona por saber que o que
eu luto, o que eu venho lutando esses três anos está surtindo efeito,
que não é em vão, que a gente tá avançando sim”. Numa linha
parecida, outra militante destaca o progresso da ação em utilizar uma
atriz transexual para atuar nesse papel, mostrando mágoa pela forma
como as transexuais são retratadas na mídia, onde, segundo ela: “...
quando se tem uma novela nunca bota uma trans, sempre um ator
imitando aquela trans…”

Duas das entrevistadas mencionaram a época em que se passa


a primeira parte do comercial, lembrando que antigamente a
intolerância era maior pela falta de informação. Uma delas, de 47 anos,
completa dizendo que “...não existia divulgação na mídia como lidar
com uma menina trans...”, porém, hoje, “...os meninos trans, as
meninas trans estão se identificando muito mais precocemente…”,
afirma ela.

4.4 Comercial 4: L’Oréal

Em um primeiro momento, muitas das respondentes gostaram


do comercial por sentirem-se identificadas com a personagem que se
apresenta como uma mulher transgênero e por trazer uma mensagem
de respeito à identidade de gênero, porém, outros aspectos observados

159
pelas respondentes serviram de dissonância entre as respostas e
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muitas opiniões diferentes foram relatadas. Algumas não entraram em


detalhes acerca da transgeneridade ao qual a peça faz referência, mas
apenas sobre a sua condição de mulher. Outra respondente completa
pontuando ser positivo o fato de ser uma transexual “de verdade”
atuando na narrativa.

Uma militante com ensino médio incompleto revela que sua


identificação diz respeito à mudança de nome, uma forma de obter
respeito da sociedade, “... a partir do momento que seu nome num
registro civil não está adequado como você se apresenta socialmente é
o que gera tantas exclusões das pessoas trans…”. Observamos aqui que
o reconhecimento do nome social e, por vezes, a mudança do nome
civil é uma questão de grande importância para as entrevistadas em
geral. Nas palavras de outra respondente, “...eu quero respeito e eu
não me sinto respeitada com esse nome, então eu preciso mudar o meu
nome porque eu preciso ser respeitada, minha identidade de gênero
ser respeitada…”. Outra entrevistada, militante com ensino
fundamental, faz uma crítica àquelas que perseguem um ideal de
gênero e acredita que as pessoas trans deveriam ser mais unidas, pois
lutam pelas mesmas causas.

Por motivos pessoais, uma das entrevistadas militantes achou


relevante e satisfatório a utilização do termo mulher transgênera, pois
se identifica com ele bem mais que como transexual, segundo ela isso
“...tira o foco da sexualidade e dá mais eixo às questões de identidade
de gênero…”, além de que, para ela, o processo de transformação
cirúrgico é uma questão pessoal. Essa mesma entrevistada faz uma
crítica em relação à aparência física da protagonista, pelo fato de ser
modelo e ter traços femininos que lhe garanta “passibilidade”,
segundo a respondente, ela representa uma parcela muito pequena das
pessoas trans, pois a maioria não tem essa condição física.

Dentre as percepções, uma das entrevistadas questiona o termo


transgênero, mostrando que não é uníssono entre o próprio grupo as
formas de autoidentificação. Essa militante se declara travesti e

160
prefere ser reconhecida como tal, para ela o termo mulher transexual
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ou trangênero é um termo “higienizado” que de certa forma gera


confusão por ser importado e não se adequar à cultura brasileira.

Uma respondente militante e ativista LGBT+, que é mestranda,


ateve-se em ponderar duas críticas embasadas no que ela chama de
“dispositivos de poder”, onde a autoridade para definir o que é uma
pessoa está à mercê do julgamento social e jurídico, pois para ela “...as
formas como é colocado esse ser construído, esse ser masculino e
feminino no corpo, são maneiras sociais, a gente tem um corpo e
dentro desse corpo a sociedade vai moldar esse homem e essa
mulher…” dentro dos valores que a própria sociedade estabelece para
representar homens e mulheres. Continuando por essa lógica, o limite
legal está a cargo das autoridades jurídicas que são representantes
sociais instituídos de poder e autonomia para julgar quem é o quê
dentro do meio social.

Uma pequena parcela das entrevistadas afirmou não haver


associação alguma a fatos que remetessem ao seu cotidiano, uma delas
afirmou não se lembrar de nada porque a personagem no vídeo
aparenta estar “...num lugar estável, com a aparência estável…”,
distanciando-se bastante de sua condição. Outra afirmou que apesar
da condição de transexual, a sociedade duvida de sua condição como
mulher, ao contrário do que tenta pregar o vídeo, ela faz questão de
esclarecer que se sente uma mulher.

5 Resultados comparativos e últimas considerações

Pretendemos aqui realizar uma análise comparativa levando


em consideração a percepção das entrevistadas acerca dos comerciais
que compõem o corpus, apresentando resultados mais gerais e nossas
últimas considerações. Percebemos que a presença de uma mulher que
se autodeclara transgênero, transexual ou travesti como protagonista
da narrativa publicitária é bastante valorizada pelas respondentes e,
nesses casos, a autoidentificação é quase que imediata. Aqui,

161
entendemos a relevância da representação social na mídia, garantindo
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a “existência” de grupos sociais não hegemônicos.

A representação inclui as práticas de significação e os


sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são
produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio
dos significados produzidos pelas representações que
damos sentido à nossa experiência e àquilo no qual
podemos nos tornar (SILVA, 2011, pp. 17-18).

Narrativas que contam a história de pessoas trans e seus


processos de reconhecimento com o gênero oposto àquele definido
pelo biológico, desde a infância, são muito bem recebidas e geram alto
grau de identificação por parte das entrevistadas. Nesses casos, as
respondentes se sentem convidadas a narrar suas próprias histórias de
vida, descobertas e rejeição familiar. A reconciliação não é tão comum
em suas vidas e as mágoas perduram em muitas delas.

É evidente a percepção das mazelas ocasionadas pelo


preconceito na vida das entrevistadas, pois suas respostas refletem
suas vivências, denotando relatos que extrapolam o feedback sobre
anúncios publicitários. Há manifestações claras acerca do sistema
opressor que nortearam suas vidas e de como a luta diária por
mudanças resulta, muitas vezes, em diversos tipos de violência. Nesse
contexto, podemos perceber que a iniciativa de algumas marcas, por
mais que estejam a serviço do sistema capitalista, produz uma
publicidade com valor social, ao disseminar novos valores e dar
visibilidade a grupos historicamente excluídos.

A presença de uma mulher trans representada de forma


bastante natural em um dos comerciais foi bastante elogiada. Esta não
se identifica verbalmente como transgênero e desempenhava ali o
papel de apresentar um tutorial de beleza a todas as mulheres. O fato
de ser negra e assumir suas raízes foi percebido especialmente por
respondentes militantes de ensino superior que valorizaram a
representação de pessoas que não possuem padrões de beleza
hegemônicos. Ainda assim, a “passabilidade” – capacidade de passar
despercebida socialmente como mulher cisgênero − foi mencionada

162
como característica da modelo, o que não gerou identificação por
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grande parte das respondentes que se declaram “não passáveis”.

Modelos não binários, o que muitas denominaram “homens


transvestidos de mulheres”, geram desconforto e um baixo grau de
representação. Assim, padrões sociais já aculturados, como a estrutura
binária e o modelo de feminilidade, protagonizaram as respostas e
apenas as entrevistadas militantes e, em geral, as que possuem um
grau maior de instrução problematizaram esses padrões, abordando
as temáticas de cada anúncio com maior aprofundamento. Esse
resultado revela a importância do envolvimento político e formação
propiciada por movimentos sociais, além de demonstrar que o ensino
formal proporciona, em alguma medida, maior grau de criticidade.

Entendemos, assim, que, para a maioria os padrões de


expressão da feminilidade e masculinidade aculturados em grande
medida pela mídia são aceitos como naturais e mantidos dentro do
grupo. Nesse sentido, essas mulheres também fazem parte do grupo
social condicionado por experiências discursivas da binaridade.

Os limites da análise discursiva do gênero pressupõem e


definem por antecipação as possibilidades das
configurações imagináveis e realizáveis do gênero na
cultura. Isso não quer dizer que toda e qualquer
possibilidade de gênero seja facultada, mas que as
fronteiras analíticas sugerem os limites de uma experiência
discursivamente condicionada. Tais limites se estabelecem
sempre nos termos de um discurso cultural hegemônico,
baseado em estruturas binárias que se apresentam como a
linguagem da racionalidade universal. Assim, a coerção é
introduzida naquilo que a linguagem constitui como o
domínio imaginável do gênero (BUTLER, 2012, p.28).

A heterossexualidade compulsória também foi problematizada


apenas por respondentes que se autodeclaram militantes quando a
história contada mostrava o padrão de família com filhos também para
mulheres trans, assim como é naturalizado para mulheres cisgênero.
Para as demais, esse modelo é almejado e até utópico, considerando o
preconceito e a dificuldade de serem aceitas por homens
heterossexuais que queiram constituir família e ter o direito de adotar
uma criança.

163
A prostituição e a baixa expectativa de vida continuam a ser a
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realidade da maior parte das mulheres trans, segundo as próprias


entrevistadas, o que não é problematizado nos anúncios analisados. A
exploração da sensualidade feminina e sua transformação em
mercadoria também foi ponto importante dentre as percepções
observadas. Apesar de rechaçar esse modelo de representação, houve
uma identificação por parte das respondentes, considerando que
muitas estão ou passaram pela prostituição. No entanto, a forma como
esses arquétipos e estereótipos foram trabalhados não se assemelham
à realidade das mesmas, já que na publicidade a exposição de seus
corpos acontece em ambientes de sociabilidade e à luz do dia, e em
seus cotidianos, em espaços restritos, perigosos e noturnos.

A necessidade de estar maquiada e arrumada foi fator que gerou


identificação em todos os vídeos, já que, de diferentes formas, as
personagens apresentavam características estereotipadas da
feminilidade, o que pareceu muito real para as respondentes e parte
de seus cotidianos. Poder usar maquiagem como forma de expressão
de gênero foi narrada por algumas entrevistadas como libertador e
necessário para sua afirmação identitária, novamente reforçando a
binaridade de gênero que estrutura a sociedade.

A preocupação com a mudança de nome de registro, trazida por


um dos vídeos, gerou identificação imediata. Muitas afirmam que o
respeito ao nome social e, mais além, o direito de ter seu nome
retificado, é fundamental para garantir cidadania e aceitação.

Pontuamos a discrepância entre algumas respondentes no que


concerne à sua identificação como mulher. Para algumas não há
distinção entre mulher transgênero e cisgênero e pautas como o dia
internacional da mulher e a luta contra o câncer de mama – temas
expostos nas narrativas publicitárias apresentadas – são bem-vindos
e as representam. Para outras, as bandeiras trans são distintas e
mulheres transgênero, transexuais e travestis não devem buscar o
ideal da feminilidade cisgênero, mas lutar por suas próprias causas.

164
Por fim, pontuamos que este estudo extrapola o olhar do
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analista acadêmico e promove conhecimento acerca das percepções do


grupo social formado por mulheres transgênero, transexuais e
travestis representado em narrativas publicitárias, permitindo que
essas identidades, consideradas transgressoras, tenham voz e opinem
sobre como se sentem ou não representadas ao fazerem parte das
relações de consumo. Reforçamos a necessidade de uma discussão
mais ampla acerca da identidade de gênero, e a relevância de
narrativas midiáticas que tragam para os holofotes essas identidades.
Romper com a suposta inteligibilidade que leva o pensamento
hegemônico a associar sexualidade, expressão de gênero e orientação
sexual é o caminho para a diversidade e a inclusão. “Enquanto a
diferença sexual estiver no centro da invenção do humano moderno, a
transexualidade e outras expressões de gênero que negam essa
precedência estarão relegadas ao limbo existencial” (BENTO, 2006,
p.91).

 Retorne ao sumário

Referências
AAKER, D. A Pesquisa de Marketing. São Paulo: Atlas, 2004.

BAUER, M. W; GASKELL G. Pesquisa Qualitativa com Texto,


Imagem e Som. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

BENTO, Berenice Alves de Melo. A reinvenção do corpo:


sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de
Janeiro: Gramond, 2006.

BORDWELL, D; THOMPSON, K. Film Art: an introduction.


New York: McGraw-Hill, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução de


Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e


subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2012.

165
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade
A representação de pessoas trans na publicidade: um estudo de recepção
Renata Barreto Malta| Gardênia Santana de Oliveira | Nilson Dias Bezzera Netto

de saber. Rio de janeiro, Edições Graal, 1988.

RUÓTOLO, A. C. F. Audiência e recepção: perspectivas.


Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, n. 30, p.
159-170, 1998.

SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a


perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2011.

166
1

1 Introdução

A publicidade enquanto não apenas área de atuação, mas


campo interdisciplinar, está sempre atenta às mais diversas
transformações sociais, apropriando-se e recontextualizando as
múltiplas realidades que se apresentam. Não é nenhuma novidade que
a publicidade se utilize de bandeiras e pautas de movimentos sociais
para construir uma narrativa publicitária e segmentar mercados. As
décadas de 60 e 70 foram um momento de explosão dos movimentos
de contracultura no ocidente, dentre os quais o feminismo despontou
como agenda política, que perduraria até os dias atuais. A publicidade,
desde então, atenta às reivindicações do movimento de liberação

1A pesquisa exposta caracteriza-se como um desenvolvimento da tese de doutorado


da autora ainda em confecção, sob orientação do coautor, intitulada “Mulheres
negras de raiz: identidades racializadas e generificadas”, cujos desdobramentos
foram apresentados em forma de trabalhos em eventos científicos, como o Encontro
Nacional de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda 2017 (PROPESQ-PP 2017).
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

feminina, traduzia suas pautas em demandas mercadológicas,


iniciando uma estreita relação com o feminismo. Os anos 90 foram
marcados pela forte presença de reivindicações femininas que se
transformaram em slogans e taglines publicitários, o que consolidou o
chamado commodity feminism – um feminismo reificado.

Não existe um consenso na academia nem fora dela sobre o


posicionamento a respeito deste tipo de apropriação da publicidade.
Alguns autores sustentam a ideia de que a veiculação deste tipo de
campanha favorece o debate sobre as opressões de gênero,
apresentando-se como uma resposta positiva às reivindicações
femininas, além de introduzirem o feminismo e possibilitarem uma
adesão massiva à causa (SCOTT, 2000; HAINS, 2014; CONDON,
2015). Outros, entretanto, apontam que este tipo de publicidade
apresenta uma limitada ideia de feminismo, produzida
especificamente para atender às demandas mercadológicas, e que
desmobilizam e despolitizam o debate sobre o feminismo (GILLIS;
HOWIE; MUNFORD, 2007; JALAKAS, 2016; LARA et al., 2016;
ZEISLER, 2016).

Dentre os espaços de disputa simbólica propiciados pela


publicidade, reverberam também diferenças existentes dentro do
projeto de emancipação feminina proposto pelo feminismo no que
tange ao debate racial. Dito de outra forma, além de reivindicarem
outras representações do feminino na publicidade e em outras
instâncias midiáticas, existem determinados grupos de mulheres que
se preocupam também em reivindicar outras representações de ordem
étnico-racial: as mulheres negras.

Tornam-se cada vez mais claras, seja na publicidade ou dentro


dos movimentos feministas, as especificidades do ser “mulher negra”.
Histórias de vida, ancestralidades, culturas e códigos simbólicos que
diferenciam a mulher negra da grande e universal categoria “mulher”,
preconizada pelo feminismo (branco europeu), são traduzidos em
produtos para cabelos afro, maquiagens para pele negra e vários
outros artefatos mercadológicos que visam a atender este target

168
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

detentor de uma demanda racial específica e singular, correndo o risco


de serem reduzidos à fetichismos de difícil crítica quanto ao seu uso
ideológico.

Isso porque, o caráter fetichista das mercadorias que passou a


delinear todas as manifestações culturais, arquitetônicas e literárias
que estão ligadas ao cotidiano produz uma fantasmagoria
(BENJAMIN, 1982), uma imagem que se apresenta como portadora
da liberdade, tornando-nos empáticos a ela, mas que é em si
repressora. Essa empatia, por sua vez, supõe uma redução quase total,
frente ao objeto de conhecimento ou de desejo. Não por acaso, a lição
que Benjamin nos ensina é que, para perceber e apresentar o processo
em que os sujeitos se convertem em mercadorias, torna-se necessária
a compreensão da empatia recíproca entre sujeito e objeto. Isso
significa considerar que não apenas a força de trabalho e as diferenças
da “mulher negra” passam a ser capturadas e convertidas em
mercadorias, mas também que, enquanto consumidoras, estas são
convocadas para tornarem-se participantes ativas no processo que
transforma tudo e a todos em mercadorias.

A publicidade, à espreita deste movimento de diferenciação e de


afirmação das identidades negras, não desapercebeu como este grupo
de mulheres (as quais, mesmo insistentemente sendo chamadas de
minoria, constituem um enorme número no país) foi remodelando as
relações de consumo e de mercado sem esquecer, claro, das
construções e reafirmações identitárias imbricadas. O discurso do
“empoderamento”, veiculado através destes produtos culturais e
mercadológicos e de campanhas, tem conquistado um lugar especial
junto à narrativa publicitária, e sobre esta infusão discutiremos a
seguir.

Deste modo, procurando distanciar-se de uma visão


apologética ou apocalíptica, interessa aqui discutir como tem sido
articulado e quais são os efeitos do(s) uso(s) do discurso de
empoderamento, principalmente das mulheres negras, na produção
publicitária brasileira sob uma perspectiva crítica feminista. Em

169
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

outras palavras, interessa: i) tensionar os usos e as apropriações do


“empoderamento” na publicidade voltada para o segmento de
mulheres negras; ii) discutir os modos de ser e de entender-se como
“mulher negra” na relação com o consumo, a partir de uma análise dos
regimes de poder e dos discursos de opressão ao gênero e à etnia/raça.

Para isso, lança-se mão de uma perspectiva feminista crítica, ou


seja, operam-se as categorias de análise discutidas sob luz de uma
bibliografia feminista crítica a fim de não apenas diagnosticar o
fenômeno aqui analisado, mas também de historicizá-lo e refletir
sobre seus efeitos na sociedade.

2 Os feminismos negros e a mulher negra na história

Se não é equivocado pensarmos a apropriação da publicidade


às pautas feministas, os feminismos negros2 também não escaparam
às cooptações mercadológicas e neoliberais, implicando em uma série
de efeitos à sua agenda política e às suas articulações coletivas.

Graças à disseminação midiática da agenda feminista, não são


poucos os grupos e as mulheres que se intitulam feministas, e convém
aqui falar especificamente dos movimentos feministas negros, que por
si trazem duas categorias conceituas próprias que não podem ser
analisadas separadamente: gênero e etnia/raça (DAVIS, 2016). Ao
falar dos movimentos feministas negros, há de se levar em conta as
especificidades que representam a luta dessas mulheres. Desta sorte,
os feminismos negros requerem uma compreensão histórica e política,
uma vez que se faz necessário pensar o papel da mulher negra ao longo
do tempo e de que forma estas mulheres lutaram – e continuam a lutar
– por reconhecimento (FRASER, 2009; VELASCO, 2012; 2013).

Os feminismos negros, ao longo de sua trajetória, incorriam em


distinções ainda mais acentuadas de outros movimentos feministas,

2 Compreendemos que, mesmo partindo dos mesmos pontos, não seja possível falar
apenas de um único feminismo negro ou, talvez, de uma unicidade epistemológica,
teórica ou política do movimento. Neste sentido, Mercedes Velasco (2013), fala de
“feminismos negros” para dar conta das multiplicidades e complexidades de cada
um desses feminismos.

170
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

sendo esta a causa de algumas teóricas e militantes do feminismo


recusarem a ideia de “movimento feminista” (MARIANO, 2005; LARA
et al., 2016; VELASCO, 2012). Enquanto o feminismo branco, iniciado
no movimento das sufragistas, centrava suas reivindicações em torno
da participação política das mulheres, do direito à educação e ao voto,
e da contestação da submissão feminina, os feminismos negros se
preocupavam em, primeiro, reconhecer a “negra” enquanto mulher.
Davis (2016) nos explica que, embora guiado pelo projeto de
emancipação das mulheres, as mulheres negras no contexto
abolicionista americano encontravam-se em uma situação de sequer
terem sua voz reconhecida dentro do sufrágio feminino, sendo
inferiorizadas e subalternizadas.

Surgido em um contexto escravista, as mulheres negras


participantes dos primeiros movimentos de liberação feminina
objetivavam suprimir antes as próprias diferenças entre as mulheres,
segundo as estratificações de gênero, classe e raça (COLLINS, 2002;
VELASCO, 2012; DAVIS, 2016). Além da luta pelo reconhecimento 3, o
movimento feminista negro reivindicava o fim da discriminação racial
presente até mesmo dentro dos feminismos. Neste sentido, reitero que
gênero e raça constituem-se aqui como dois elementos centrais para
aprofundar-se na questão dos feminismos negros.

Situado o percurso histórico dos feminismos negros,


apontamos que sua própria agenda política sofreu modificações desde
sua eclosão até os dias atuais, repercutindo não apenas na massiva
adesão de mulheres negras às bandeiras hasteadas pelo movimento,
mas também na disseminação de estudos acadêmicos e científicos
sobre a mulher negra e sobre os feminismos negros, na produção
midiática e publicitária de produtos culturais que tematizassem suas

3 Na concepção de Fraser (2007), o reconhecimento como diferença, portanto ligado


às teorias da identidade cunhadas pela teoria crítica, está vinculado a uma
identidade cultural específica de um grupo (neste caso, as mulheres negras). Logo,
uma reivindicação por reconhecimento requer que os membros do grupo se unam a
fim de remodelar sua identidade coletiva, por meio da criação de uma cultura própria
autoafirmativas. Destarte, o modelo de reconhecimento da identidade está atrelado
a uma política de reconhecimento, logo a uma “política de identidade”.

171
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

questões, trazendo o protagonismo feminino negro como símbolo dos


movimentos que ganhavam as ruas e o entretenimento.

3 Os feminismos negros e a publicidade: o projeto neoliberal


na agenda feminista negra

Discutiremos em que medida estes novos percursos


atravessaram a relação da mulher negra não apenas com a
publicidade, mas com a própria constituição de uma identidade
étnico-racial, biográfica e ao mesmo tempo política. Sobre estas e
outras questões nos detemos a seguir.

Os movimentos feministas negros têm ganhado grande


visibilidade tanto nas mídias tradicionais quanto na internet, onde
crescem também, concomitantemente, mobilizações de mulheres
negras – as quais à primeira vista não parecem ter conotação política
– que buscam na moda, na cosmética e nos meios de comunicação
reconhecimento, visibilidade e representatividade. Em paralelo às
pautas feministas, interessadas na valorização da mulher e no combate
aos discursos de opressão ao gênero (LARA et al., 2016), emergem
grupos cujas reivindicações giram em torno da mulher negra assumir-
se enquanto tal através de uma recusa ao imperativo estético
caucasiano, e que apontam para dois eixos principais: 1) a
autoaceitação da mulher negra no que tange aos seus traços físicos
afrodescendentes (assumindo seu cabelo natural, por exemplo); 2) o
aumento de produtos – sejam culturais, sejam cosméticos – que
representem a integração da negra como protagonista no circuito de
consumo.

Alguns grupos que advogam pela causa das mulheres negras


alegam não ser possível, por exemplo, enfrentar o racismo quando a
própria mulher negra não se aceita (BATISTA, 2016), argumento que
busca exaltação da beleza da mulher negra e a elevação de sua
autoestima. Por outro lado, este argumento propõe que é possível sim,
e factível, militar pela “valorização da estética negra” sem que se

172
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

precise necessariamente discutir regimes de poder e organização


sistêmica-estrutural da sociedade.

Desta forma, estes grupos apoiam-se na ideia de que a


“valorização da estética negra” vai de encontro à lógica racista e
eurocêntrica, constituindo-se como “fundamental e complementar
para combater o racismo” (BATISTA, 2016, n.p). Alegam, nessa
direção, que “o rebaixamento da negritude no imaginário social ao
longo do tempo foi o que contribuiu de maneira mais significativa para
o domínio branco sobre o povo preto” (ibid, 2016). Assim, procuramos
elaborar algumas articulações que podem ser construídas entre os
feminismos negros, a publicidade, as apropriações do discurso do
empoderamento e as novas formas com que o consumo e políticas de
identidade se correlacionam.

Quando circunscrevo os ativismos de mulheres negras na


relação com a mídia, importa apontar em que medida estes se
distanciam ou se aproximam dos movimentos que se sucediam nas
ruas e em suas articulações políticas. Os ativismos do público feminino
negro, apoiado pela publicidade, têm centrado suas discussões em
“como empoderar as mulheres negras”, apostando no
empoderamento como um meio de efetivação do combate ao racismo
e às opressões de gênero. Uma forma muito comum de manifestar o
(auto)empoderamento na rede se dá por uma recusa ao imperativo de
estética caucasiana através de uma afirmativa de que os traços
afrodescendentes – fios encrespados, pele escura, nariz largo e boca
“carnuda” – não apenas são belos, mas eminentemente compõem a
“real identidade” da mulher negra, que deve ser valorizada (ARRAES,
2016; BATISTA, 2016).

Há de se destacar que a recusa ao parâmetro de beleza


caucasiano/europeu, o qual ao longo da colonização ocidental tratou
de pejorar quaisquer traços físicos que se aproximassem da estética
negra (MERCER, 2000), constitui-se também como um ato político.
De fato, essas pequenas resistências vão de encontro aos dispositivos
normatizadores e prescritivos de que lançam mão a hegemonia,

173
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

desnaturalizando os regimes de verdade sobre a beleza, ou seja, sobre


o que é ter cabelos bonitos, uma cor bonita, traços bonitos. Assim, ao
posicionarem-se contra essa normatização, delineiam mecanismos de
resistência ao racismo e à invisibilidade a que foram acometidas as
mulheres negras durante muito tempo.

Todavia, ainda que inicialmente dotados de força política e de


uma insubordinação à hegemonia branca, os movimentos feministas
negros passaram por grandes transformações em seu dorso. Atingida
pela segunda onda do feminismo surgido nos anos 1960, o qual
consistia num movimento de contracultura cuja maior preocupação
era a desnaturalização do papel feminino, e que acreditava que
questões como a sexualidade feminina, o aborto e a violência
doméstica não pertenciam ao debate político, mas sim ao âmbito
privado (LARA et al., 2016), houve uma inclinação dos feminismos
negros ao projeto neoliberal de produção de subjetividade. Mas o que
isto repercute nas pautas dos movimentos feministas negros? Antes de
adentrar em como o projeto neoliberal atravessa a agenda feminista
negra, é preciso adentrar brevemente em alguns conceitos que
marcam o neoliberalismo não apenas enquanto projeto econômico,
mas principalmente político e subjetivante.

De maneira sintética, este projeto neoliberal que se embasa no


individualismo e no autogoverno revela saídas de autonomia do
sujeito por ele mesmo. O pensamento da subjetividade neoliberal é de
responsabilização do sujeito de todas as contingências que atravessam
sua vida, tornando-o o único capaz de “libertar” a si próprio, como
também o único responsável pelo próprio sucesso. Desta forma,
segundo Lara et al. (2016, n.p), “o sucesso, então, passa a ser a
capacidade de fazer-se a si mesmo, construindo a narrativa de um
passado que se produziu sozinho, ou seja, que estaria livre de heranças
econômicas e sociais, de tradições e de filiações”.

Os movimentos feministas alinhados à segunda onda se


mantiveram alheios a uma discussão de cunho sistêmico-político,
discutindo as questões ligadas à mulher pela via da cultura

174
Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

(desnaturalização dos papéis e da divisão sexual do trabalho) e do


Direito (leis que assegurem às mulheres direitos iguais); sobre a
segunda onda, deteremo-nos para fins de análise a tensionar os
movimentos mais próximos aos modelos americanos. Fraser (2009)
aponta haver uma grande pressão para transformar a segunda onda
feminista em uma variante da “política de identidade” – em outras
palavras, para fazer com que o movimento focasse unicamente nas
questões culturais, distanciando-se da crítica da economia política.

Dentro deste contexto de reformulação, o empoderamento aos


poucos foi despontando como um promissor aliado às causas
feministas, principalmente aos feminismos negros. Esta transição
histórica é de fundamental importância para a história do feminismo,
uma vez que dá relevo aos marcos que o transformaram nos
movimentos como os conhecemos.

Alinhadas a uma lógica individualista neoliberal, crescente a


partir da década de 90, autoras feministas americanas como Gloria
Steinem, Naomi Wolf e Natasha Walter encontraram no
empoderamento a chave para a emancipação das mulheres. Algumas
autoras, em contrapartida, entendem esta passagem do feminismo da
primeira para a segunda onda como pós-feminismo e delineiam que a
mudança de perspectiva epistemológica feminista marcada pelo
empoderamento e pela individualidade seja uma resposta negativa ao
feminismo, no sentido de despolitizar a agenda do movimento ao
tentar construir a questão do ativismo em torno da atuação individual
do sujeito, focando em escolhas e determinações pessoais
(BUDGEON, 2011; GILLIS, 2007; SHOWDEN, 2009).

Ao se empoderarem, as mulheres poderiam vencer as barreiras


remanescentes do ponto de vista material. De acordo com Lara et al.
(2016),

Há uma pressão para retomar o foco nas desigualdades


materiais, sem, no entanto, questionar o sistema.
Enxergando o feminismo como um caminho individual, e
não uma luta coletiva, Wolf defende uma feminilidade que
encare o poder como algo sexy e um feminismo que se
traduza no máximo empenho individual para a superação

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

de barreiras. Seria preciso promover uma revolução


interior, que teria como base a autoestima, para mudar a si
mesma e, assim, mudar o mundo – embora essa não seja
mais uma prioridade. A emancipação feminina se
reduziria, por fim, à liberdade do consumo (LARA et al.,
2016, n.p).

Foi a partir dos anos 2000 que o empoderamento foi cooptado


e muito bem articulado nas campanhas publicitárias segmentadas ao
público feminino, criando um novo e promissor mercado de mulheres
empoderadas e independentes, graças a seu crescente poder aquisitivo
(ZEISLER, 2008). A intensa segmentação mercadológica por gênero e
raça, entendida desde a década de 70 como uma forte estratégia de
marketing, aliou-se à crescente representação feminina na cultura pop
e na publicidade à medida que as mulheres se consolidavam no
mercado de trabalho e passavam a assumir um papel ativo no circuito
comercial, fortalecendo-se cada vez mais pelo poder de compra.

Não muito recente, o termo empowertising (surgido a partir da


junção das palavras empowerment e advertising), cunhado pela
americana Andi Zeisler, tentou dar conta desse fenômeno de designar
tipos específicos de publicidade cuja mensagem é o empoderamento
(WEISSER, 2015). Campanhas estrangeiras (“Inspire a mente dela”,
da Verizon 4 ; “Como uma garota”, da Always 5 ; “Beleza nos seus
próprios termos”, da Dove 6 ) apostaram nessa estratégia criativa e
alcançaram resultados muito positivos em termos de reputação de
marca.

Quais são, então, os efeitos desta apropriação do


empoderamento na publicidade para as mulheres negras brasileiras?
Surgem novas leituras dos movimentos e das lutas sociais que já
ganhavam as ruas em protestos e manifestações e que agora se
mobilizam e materializam-se através da publicidade. Os ativismos
femininos negros ganham novos contornos na sua relação e
construção na narrativa publicitária. Neste enlace, existem algumas

4 Disponível em < https://youtu.be/QZ6XQfthvGY>.


5 Disponível em <https://youtu.be/XjJQBjWYDTs>.
6 Disponível em < https://youtu.be/_XOa7zVqxA4>.

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

categorias conceituais que são por demais importantes para entender


a pergunta anteriormente feita: empoderamento e ativismo. Sobre
estas, discutamos.

4 O empoderamento nos feminismos negros: origens e


agenciamentos

A publicidade não foi a primeira a apropriar-se do discurso do


“empoderamento”. Termo muito popular entre os movimentos
feministas, sobretudo os feminismos negros, o empoderamento tem
sido fortemente utilizado como uma ferramenta na luta contra o
racismo e a opressão de gênero. Cabe-nos, todavia, não denunciar o
único e dado sentido de empoderamento dentro dos feminismos
negros, mas sim evidenciar de que forma seus usos modulam modos
de ser e agir e, sobretudo, como a publicidade também incide sobre
estas modulações.

O empoderamento, conceito polissêmico e amplamente


utilizado em outros campos de conhecimento, não é um termo recente
e, mesmo tendo sua origem na Reforma Protestante, liderada por
Lutero no séc. XVI, num movimento de protagonismo na luta por
justiça social, remete ao marco histórico da eclosão dos movimentos
sociais contra o sistema de opressão em movimentos de libertação e de
contracultura – movimento dos negros, das mulheres, dos
homossexuais, movimentos pelos direitos da pessoa deficiente –, na
década de 1960, nos Estados Unidos (BAQUERO, 2012). Desta forma,
ainda sobre suas origens e apropriações, Baquero (2012) acrescenta
que o empoderamento:

Contemporaneamente, se expressa nas lutas pelos direitos


civis, no movimento feminista e na ideologia da "ação
social", presentes nas sociedades dos países desenvolvidos,
na segunda metade do século XX. Nos anos 70, esse
conceito é influenciado pelos movimentos de auto-ajuda, e,
nos 80, pela psicologia comunitária. Na década de 1990,
recebe o influxo de movimentos que buscam afirmar o
direito da cidadania sobre distintas esferas da vida social,
entre as quais a prática médica, a educação em saúde, a
política, a justiça, a ação comunitária (BAQUERO, 2012, p.
175-176).

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

Porém, é essencialmente nos marcos do neoliberalismo da


década de 90 que o empoderamento vem a ganhar novos usos e
aplicações. Ainda que nos níveis individual, organizacional ou
comunitário, o empoderamento sobre o que trata os feminismos
negros pós-90 aponta para um combate ao racismo e à opressão de
gênero perpassado por um “ativismo de si”. A partir do instante em
que se mudam suas ideias e suas ações, as relações de poder por
consequência serão remodeladas. Em outras palavras, pensando neste
sentido de empoderamento, o combate à opressão contra a mulher
negra que não passe por uma autoconscientização e por uma ação
individual em direção à causa não se efetivará (COLLINS, 2002).

Freire (1979) sinaliza a via do “empoderamento individual”


como uma autoemancipação, fortemente baseada numa compreensão
individualista de empoderamento. Desenvolvida nos Estados Unidos,
cuja estrutura sociocultural tem sido cooptada pelo individualismo e
pelas noções individuais de progresso, guiada para o self made man –
ou seja, o homem que se faz pelo seu próprio esforço pessoal (LEAL,
2015) –, o enfoque se dá no aumento do poder do indivíduo, medido
em termos do aumento no nível de autoestima, de autoafirmação e de
autoconfiança.

O termo, que para Freire (1979) se constituía como uma saída


para a emancipação por meio de uma relação dialética entre sujeito e
sociedade, também pode incorrer no risco de tratar, pura e
simplesmente, da integração dos excluídos. Em outras palavras,
enquanto não se efetiva pela via política, problematizando as
organizações e distribuições históricas de gênero e etnia, o
empoderamento investe o sujeito da responsabilidade de mudar a
cena da opressão à medida que se aceita enquanto diferente e se
valoriza.

Perkins (1995) acrescenta à discussão ao entender o


empoderamento como fortalecimento da esfera privada, discorrendo
assim da necessidade das associações e comunidades resolverem, por

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

si próprias, seus problemas. Dito de outra forma, a passagem das


reivindicações feministas, que concentravam suas críticas no papel do
sistema em manter a opressão, para o empoderamento da mulher, que
não demanda necessariamente uma implicação política, reflete os
processos de interiorização e psicologização de questões relacionadas
à opressão – eminentemente sociais e históricas – por que passamos
na contemporaneidade (autorresponsabilização, autovigilância,
autoempoderamento), desvinculando os sujeitos de uma identidade
política e reafirmando políticas de identidade que, conforme assinalou
Lima (2010, p. 194), quando se tornam regulatórias “criam regras
normativas que muitas vezes aprisionam os indivíduos numa única
representação possível de sua identidade.

Collins (2002) propõe, ao fundamentar o pensamento do


feminismo negro, que tanto uma resistência individual quanto uma
solidariedade de grupo são as duas vias pelas quais se pode alcançar o
empoderamento. Este empoderamento é alcançado quando dos dois
lados, quer seja no nível da resistência individual da mulher negra,
quer seja na solidariedade baseada no grupo de mulheres negras, há
uma consciência “subjetiva” e uma consciência “coletiva”. Em outras
palavras, a autoconsciência dos processos de opressão, aliada a uma
consciência coletiva que se opõe a esta opressão, são as ferramentas de
luta para viabilizar a resistência. A definição da teórica feminista
americana deixa claro, por sua vez, que a resistência à opressão contra
a mulher negra parte e encerra-se no próprio movimento de tomada
de consciência da opressão, sugerindo que, uma vez empoderada, a
mulher negra seja capaz de lutar e resistir.

A noção de empoderamento vinculada à autoaceitação dá a


ideia de que, para ser empoderada, a mulher negra precisa aceitar em
si aquilo que historicamente lhe foi oprimido: sua raça e seu gênero.
Ao tratar desta maneira, fica um pouco mais clara a relação entre a
narrativa neoliberal da autorresponsabilização – ou seja, a mulher
negra, para combater a opressão, necessita aceitar-se enquanto sua
condição de negra.

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

Esta concepção não se distancia muito dos discursos dos


feminismos negros que vemos presentes na publicidade, nas mídias
tradicionais e na internet (LARA et al., 2016). Collins (2002), em sua
obra sobre o pensamento feminista negro, opta pelo uso do termo
“ativismo”, entendo que a luta de resistência da mulher negra é
operada pelo empoderamento, ou seja, pela própria mulher negra em
sua relação com o mundo; a autora não relaciona em sua obra o
pensamento feminista negro com ações de contestação de ordem
sistêmica ou disciplinar. Pelo contrário, anuncia de que forma a revoga
por uma reestruturação jurídica pode agir diretamente na des-
hieraquização das relações de poder, garantindo mais “igualdade”.

Dito isto, faz-se necessário evidenciar a escolha do termo


ativismo em detrimento da militância para entender o movimento das
mulheres negras na sua relação com a publicidade, a fim de delimitar
como ambos são entendidos, quais suas semelhanças e diferenças.

5 Militante ou ativista? As nuances do empoderamento nos


feminismos negros

Malini e Antoun (2013) tomam como militante alguém que


sacrifica a realização da própria vida em nome dos interesses da
revolução, o que tornaria a luta social a causa primeira do seu sentido
de vida, questionando não apenas as efetivas opressões a uma classe
ou a um grupo específico, mas sim as condições de um sistema ou de
um regime de poder que possibilitam a efetivação da opressão.

O ativismo, por sua vez, alinhado a um novo projeto de luta


social, constitui-se, nas palavras de Moura e Ferrari (2015) como um
movimento de duas facetas:

a) enquanto movimentos que se articulam para o fim das


situações de desrespeito moral ou violência, ou ainda que
buscam o reconhecimento a partir da tomada de
consciência de uma situação de subordinação; e b), por
outra parte, é possível pensar no ativismo, principalmente
no novo ativismo, ele próprio funcionando como “exterior
discursivo” ou “ponte semântica” que ajuda a deflagrar

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

situações de subordinação e, assim, motivar aqueles que


vão às ruas protestar (MOURA; FERRARI, 2015, p. 131).

O termo que originalmente detinha grandes semelhanças à


militância foi aos poucos se distanciando deste, visto que os ideais
revolucionários – após a ascensão do projeto neoliberal econômico-
político pós-90 – estavam cada vez mais demodés. Apesar do ativismo
ter sido popularizado no Hemisfério Norte, os termos “revolucionário,
militante e radical, contudo, continuam sendo as palavras de senso
comum na América Latina para fazer referência ao engajamento em
manifestações políticas que visam [a] transformações sociais” (ASSIS,
2006, p. 13).

O ativismo, entretanto, que ganha gradualmente mais terreno


nas lutas sociais de grupos ou pautas específicas nos SRS, afasta-se da
militância com vistas a construir uma vida ativa, ao mesmo tempo
pública e secreta através dos sistemas de hipermídia, criando modos
de viver no embate social que combinem realização individual e
atividade comunitária como expressões de um mesmo combate
político (MALINI; ANTOUN, 2013). A magistral diferença que convém
aqui explicitar entre estes dois tipos de “combatividades” incide sobre
o fato de, no ativismo, suas ações não buscarem “remodelar o sistema
de poder vigente de forma impositiva” (ASSIS, 2006, p. 14).

Logo, entende-se que, já distante dos modelos de militância


originalmente defendidos pelas feministas negras no começo do
movimento, implicados em uma substancial mudança de ordem
distributiva do sistema e hierárquica da disciplina, a bandeira da
mulher negra erguida por campanhas publicitárias e de marketing
parece alinhar-se a uma luta ativista, o que implica um
desacoplamento das pautas de um movimento cuja origem remonta a
ideais militantes, mas que em seu repertório discursivo e em seu
argumento principal apresenta-se desengajado com a transformação
da condição estruturalmente opressiva à mulher negra e de sua efetiva
resistência.

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

6 Consumo, representatividade e empoderamento: uma


análise crítica

Essa perspectiva de empoderamento agenciada pelo próprio


sujeito através de suas ações e, principalmente, de sua conscientização
enquanto agenciador de mudança – operada principalmente pelo
fortalecimento da autoestima – merece algumas reflexões. O
empoderamento enquanto recurso discursivo, utilizado nos
movimentos feministas negros e posteriormente reapropriado pela
publicidade, precisa ser analisado dentro de suas contingências
históricas a fim de compreender em que medida operam-se processos
de ruptura ou reiteração das condições de opressão.

Campanhas publicitárias nacionais como “É o poder!” 7 e “O que


te define” 8 da AvonBR, lançadas no Youtube em 2016 e veiculada
também na TV, estreladas pelas artistas e rappers negras LAY, Karol
Conka e Mc Carol, demarcam a nova narrativa e a representação da
mulher negra na publicidade: uma figura empoderada, autoconfiante
e completamente dona de seu destino. Nas campanhas, o conteúdo
trazido pelas artistas discursa sobre uma autopercepção enquanto
sujeito possibilitador de mudança atrelada a uma autoestima e
autoconfiança inabaláveis, elementos os quais se mostram
imprescindíveis para a efetivação do “empoderar-se”.

Tomar o combate à opressão contra a mulher negra pelo


empoderamento nos termos aqui referidos, o qual se efetiva à medida
que se valoriza e se aumenta a autoestima, pode ser questionável
quando, ao afirmar-se como “negra” e reconhecer-se enquanto tal, seu
reconhecimento passe necessariamente pelo agenciamento do eu no
mundo. Mas o que isto repercute na relação da mulher negra com os
usos do empoderamento? Nas palavras de Leal (2015),

Esses discursos tiram o foco sobre o sofrimento causado


por pressões externas – sejam outros indivíduos ou a
própria sociedade –, valorizando os benefícios decorrentes
da construção de uma autoimagem positiva. Este trabalho
individual seria capaz de provocar emoções capazes de

7 Disponível em < https://youtu.be/9VauevwcpkA>.


8 Disponível em < https://youtu.be/GF5bJ6eafGo>.

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

suplantar quaisquer efeitos causados por outrem. A


promoção de subjetividades conformadas segundo esse
ideal é perfeitamente harmônica com a racionalidade
política neoliberal e com as expressões culturais do
individualismo contemporâneo. Não o contexto social e o
Estado, mas o próprio indivíduo é responsabilizado por seu
sucesso (LEAL, 2015, p. 47)

Quando falamos deste agenciamento do eu no mundo, no que


tange especificamente ao reconhecimento da mulher negra enquanto
tal, é preciso dar relevo às invisibilidades históricas de que foi cercada.
Enquanto o feminismo branco, desde seu princípio, luta por uma
equanimidade entre gêneros, exigindo uma redistribuição social do
trabalho e direitos-cidadão, a mão de obra feminina negra sequer era
reconhecida – graças à herança colonial e escravista a que está
submetida a história das mulheres negras –, e mais: a mulher negra,
na sua condição de negra, ainda tinha de lutar contra a discriminação
racial (VELASCO, 2012; COLLINS, 2002). Desta maneira, tanto
gênero quanto raça, duas instâncias que atravessam a história da
mulher negra de forma indissociável, constituem-se como estruturas
organizadoras das relações econômicas e políticas: “gênero e raça,
portanto, implicam tanto redistribuição quanto reconhecimento”
(FRASER, 2006, p. 233).

A mulher negra, tanto por sua condição de gênero quanto por


sua condição de raça, sofreu ao longo de sua história um duplo
processo de opressão e não-reconhecimento. Os feminismos negros
das décadas de 80-90, ligados à segunda onda feminista, projetaram
seus esforços na articulação de identidades com uma consciência
coletiva que as fortalecesse (VELASCO, 2012) – atravessadas por um
empoderamento. Todavia, estas identidades que se reconheciam umas
nas outras em sua exclusão e opressão parecem perder sua potência
política ao abrir portas a “experiências subjetivas autênticas”. Em
outras palavras, a “liberdade” mirada pelos movimentos feministas
pós-80 cada vez mais tinha a ver com “poder ser você mesma”, e para
isso, era necessário estar empoderada.

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

As identidades, por sua vez, à medida que se reconhecem pela


opressão, corroboram para uma hierarquização das opressões,
enfatizando uma acumulação de identidades oprimidas (VELASCO,
2012); dito de outra forma, em vez de incluir, redistribuir e
reconhecer, o que ocorre é uma integração dos oprimidos. Isso, por
sua vez, produz um tipo de política de identidade que sofre grande
tendência de reduzir suas lutas por reconhecimento a um único
aspecto, a saber, a identidade cultural (HONNETH, 2010). Assim,
parece mais que justificável que, impedida a redistribuição político-
econômica do negro na divisão contemporânea do trabalho e da
mulher enquanto agente político – desvinculada da ideia do
“doméstico-privado” –, o empoderamento emerja como uma saída
para a causa feminista negra. A premissa, segundo a concepção de
empoderamento adotado pelos recentes movimentos feministas
negros, é de que se todas as mulheres negras se empoderarem e se
aceitarem, as relações de poder serão remodeladas.

Esta é a razão pela qual Fraser (2006; 2009) acredita que as


releituras do feminismo, ligadas aos ideais neoliberais e
individualistas, transformaram o movimento numa variante de
política de identidade, ao estender uma crítica à cultura, enquanto
subestimavam as lutas socioeconômicas. Nas palavras da autora, “a
tendência era subordinar as lutas socioeconômicas a lutas para o
reconhecimento, enquanto na academia, a teoria cultural feminista
começou a obscurecer a teoria social feminista” (FRASER, 2009, p.
23). A virada para o reconhecimento no movimento feminista, por sua
vez, também encaixou-se na lógica neoliberal em ascensão e objetivava
coibir toda a memória de igualitarismo social.

7 Conclusões

O ativismo da mulher negra, ao se dar pela via do consumo,


legitima uma forma de combate à opressão que se dá pela lógica da
mercadoria, em que até para se posicionar politicamente, o consumo
se faz presente. Um exemplo disso é o fato de as mulheres de cabelos

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Jéssica de Souza Carneiro e Aluísio Ferreira de Lima
Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

encrespados sentirem-se representadas quando se veem em produtos


específicos para este grupo, ou em comerciais de marcas que
aparentam lutar pela causa da mulher negra. Desta forma, ela se
percebe empoderada ao ver, de forma crescente, produtos disponíveis
no mercado para seu tipo de cabelo ou para seu tipo de pele. A
“representatividade” por que reivindicam reside em produtos que não
mais tentam “embranquecê-las”, como por longo tempo na indústria
cosmética foi feito (JOHNSON, 2016), no sentido de adequá-las a uma
plástica caucasiana, mas produtos que se adequam à sua “real”
aparência.

A questão aqui problematizada é de que forma o


reconhecimento atravessado pelo consumo (visto como
“representatividade”) se constitui como uma tentativa de inclusão no
e pelo próprio consumo, condição esta que foi negada historicamente
à população negra. A disputa identitária, ou a política de identidade
nos termos de Fraser (2009), da mulher negra nos marcos do consumo
ensaia antes uma tentativa de reposição tardia de um grupo excluído
por duas condições que lhe são intrínsecas: ser mulher e ser negra.
Busca-se, assim, um “igualitarismo” pelo consumo.

Assim, apesar da produção cultural estar dominada pelo


princípio da padronização, que poderia manter as diferenças
históricas em constante tensão, a proposta comercial consiste em
apresentar os produtos para a mulher negra como o inverso, como algo
produzido de forma customizada especificamente para cada uma
delas, empoderando-as para a luta pela transformação das condições
de distribuição e reconhecimento. O que muitas vezes não se percebe
é que o consumo dos produtos não produz necessariamente o
empoderamento que levaria a uma guinada emancipatória; pelo via do
consumo desses produtos, elas podem justamente reduzir o
empoderamento à possibilidade de compra de mercadorias.

O percurso do consumo, portanto, não é qualquer coisa. Ele


parece revelar, nestas condições, a aceitabilidade de si em sua própria
condição de oprimido. Desacoplado a uma concepção de identidade

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Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

política, cujo potencial emancipatório reside não apenas no sentido de


uma coalizão de forças, mas também de uma utopia coletiva que
transcende os particularismos daqueles que lutam contra o status quo”
(LIMA, 2010, p. 194), onde os modelos de opressão são questionados
em sua própria estruturação econômica e política, os feminismos
negros “empoderadores”, apoiados na publicidade, apontam para um
movimento de reconhecimento que não passe necessariamente pelo
político, mas que se contenha em seu caráter privado, interior,
individual. Ensaia-se uma relação em que se revoga o reconhecimento
das singularidades dos sujeitos em perfis e percursos de consumo, nos
quais, por meio da relação com o produto e o processo de consumo,
possa-se reconhecer.

Movimentos sociais cujo dorso reivindicativo atém-se à crítica


pura e simplesmente cultural, afastando o debate político-econômico,
e que centram sua bandeira em políticas de identidade, são marcados
por esta relação de consumo em que é preciso reconhecer-se em sua
diferença (seja por etnia, orientação sexual ou gênero), não em termos
de transformação social ou de diminuição da opressão; pelo contrário,
a busca efetiva-se em reconhecer-se naquilo que a sociedade
contemporânea tem como mola propulsora: as relações de consumo
(LARA et al., 2016; LEAL, 2015).

Por fim, busca discutir como o desacoplamento dos feminismos


negros a uma luta militante, ou seja, inclinada ao debate dos regimes
de poder e da estrutura sistêmica da sociedade – ligada às primeiras
ondas feministas –, alinha-se ao projeto neoliberal contemporâneo no
sentido de fortalecer agenciamentos individualistas de saída à
opressão, em vez de possibilitar mobilizações efetivamente coletivas e
políticas, podendo constituir-se como mais um dispositivo reiterativo
das relações de poder vigentes e das opressões relacionadas à
etnia/raça e ao gênero.

É certo que as reflexões aqui apresentadas ainda não são


suficientes para conclusões mais apuradas, porém demonstram-se
como um caminho para o debate urgente sobre os feminismos negros

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Mulheres negras empoderadas: uma análise crítica sobre
representatividade e consumo no recorte de gênero e raça

e a publicidade enquanto novas narrativas contemporâneas, as quais


precisam ser tensionadas e discutidas dentro e fora da academia.

 Retorne ao sumário

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190
No final de maio de 2015, a marca O Boticário lançou uma
campanha divulgando sua linha de perfumes Egeo para o Dia dos
Namorados em TV aberta. Poderia ser apenas mais um comercial
romântico sobre casais trocando presentes, não fosse o fato de que dois
casais homoafetivos também apareciam em cena junto a um casal
heterossexual1. Era o início de um tumultuado debate que tomou conta
do país no decorrer de junho daquele ano – especialmente na internet
–, atraindo a atenção da mídia e causando uma espécie de
“competição” nas mídias sociais entre os que aprovaram e os que
reprovaram a atitude da marca. Ambos os polos, representados por
líderes políticos e religiosos e personalidades da mídia, evocaram para
si ações de apoio ou repúdio à marca – como a guerra entre likes e
dislikes no vídeo da campanha no Youtube, reclamações no Conar,

1Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=p4b8BMnolDI>. Acesso em


14 abr. 2018.
intensas discussões nas redes sociais e até mesmo o boicote a seus
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

produtos.

Dado o pioneirismo desse tipo de ação na publicidade até então


– a inclusão igualitária de uma minoria sexual em uma mídia
tradicional –, este trabalho busca avaliar o que tal iniciativa revela
sobre diferentes segmentos do grande público e de que forma gera
impactos no consumo entre esses sujeitos.

1 Luta por direitos versus moral religiosa: o confronto entre


as reivindicações LGBT e o discurso religioso

Nas últimas décadas, uma nova parcela da sociedade civil


representada pelos movimentos LGBT2 têm trazido à pauta sua luta
por políticas públicas de inclusão política e social. Tal cenário se insere
num processo de politização da sexualidade que começou nos anos 60,
no contexto da contracultura, com a reivindicação das possibilidades
de manifestações das sexualidades e uma afirmação da diferença como
algo positivo dentro da ordem dominante.

Conforme disserta Iribure (2008), as reivindicações desses


grupos se inserem num contexto de tomada de consciência de diversas
outras minorias que têm deflagrado, desde então, revisão do espaço
público e do que se entende por democracia, dada a multiplicação de
uma diversidade que necessita ser constantemente atualizada.

Hoje, as pautas de inclusão do movimento LGBT no Brasil


passam não apenas pela promoção de políticas públicas, mas também
pela luta por visibilidade em diferentes instâncias da sociedade, o que
inclui a mídia (IRIBURE, 2008). No primeiro caso, porém, sua
dificuldade encontra respaldo na atuação de parlamentares ligados a

2Sigla usada para designar Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e


Transgêneros. Embora se encontre derivações como LGBTQ (sendo a letra Q a inicial
do termo queer) ou LGBTQIA+ (onde I sugere a inclusão de pessoas intersexuais, A
os assexuais e o + para representar outras identidades não cobertas pelas letras
anteriores) como forma de representar outras formas de sexualidade e de identidade
de gênero, optei por adotar LGBT neste trabalho por ser a sigla atualmente utilizada
por instituições governamentais. Seu emprego neste trabalho refere-se a qualquer
pessoa não heterossexual e/ou não cisgênero.

192
instituições religiosas na tentativa de impedir a conquista de direitos
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

pelas minorias sexuais.

No país, religião e liberdade individual sempre foram


antagônicas. No que diz respeito à vivência das sexualidades, uma
visão milenar da homossexualidade como “o mais torpe, sujo e
desonesto pecado” (MOTT, 2006, p. 509) pela Igreja Católica fez
perdurar no país, por três séculos, sua criminalização, levando seus
praticantes a serem denunciados, presos e até mesmo queimados na
fogueira, pelo Tribunal do Santo Ofício. Apesar do fim da Inquisição
e da descriminalização das práticas homossexuais no século XIX, parte
da sociedade continuou enxergando esses indivíduos como “doentes”,
“anormais” ou “possuídos”.

Isto posto, iniciativas que prometem a “cura” ou a “libertação”


do “homossexualismo” revelam o tamanho da intolerância admitida a
esses grupos, reproduzindo e multiplicando práticas regulatórias
sobre a diversidade sexual. Tais práticas, contudo, não se limitam ao
espaço físico dessas igrejas. Com uma atuação que ultrapassa o espaço
físico de seus templos, a chamada Frente Parlamentar Evangélica
(FPE)3 representa hoje no Congresso Nacional a forma mais eficaz que
essas instituições religiosas encontraram de tentarem impedir a
promoção de direitos para cidadãos LGBT. Mesmo sendo o Brasil um
Estado laico, sua magnitude comprova a força político-partidária
adquirida pela igreja evangélica no país e sua disposição em atuar em
espaços decisórios do Estado brasileiro (RODRIGUES; SANCHEZ,
2012).

Natividade e Oliveira (2009) defendem que autores de


discursos de rejeição ao “homossexualismo” apresentam-se como
“porta-vozes ou paladinos de instituições, grupos e valores religiosos
que falam em defesa de uma heterossexualidade compulsória” (p. 125,
grifo do autor). Nesse sentido, assume-se o pensamento de Butler
(2003) acerca do conceito de heterossexualidade compulsória,

3 Disponível em <
http://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=53658>.
Acesso em 14 abr. 2018.

193
entendida como uma relação naturalizada entre sexo, gênero e desejo
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

que ignora subordinações culturalmente construídas e desqualifica


orientações sexuais e identidades de gênero desviantes da norma.

Para aqueles autores, a compreensão do que se entende por


homofobia, inclusive no âmbito das práticas e discursos religiosos,
passa necessariamente por uma compreensão das transformações
sociais, culturais e políticas que têm ocorrido recentemente. Tais
mudanças, que partem de um reconhecimento da legitimidade das
diversidades sexuais, incidem sobre a própria noção de “pessoa”,
alterando as sensibilidades acerca das diferentes formas de violência e
constrangimento contra pessoas que fogem dos padrões impostos pela
heterossexualidade compulsória (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009).

2 O lugar das homossexualidades na publicidade

Relacionando a publicidade à lógica do totemismo – sistema


ancestral ligado ao imaginário mítico que relacionava a imagem de
certos animais a determinado grupo –, o trabalho de Rocha (1985)
explica como a narrativa publicitária transforma objetos em produtos
magicamente humanos: é ela que vai nomear, categorizar, classificar e
significar os produtos, dotando-os de pessoalidade e integrando-os a
uma rede de relações.

No entanto, no atual estágio da cultura do consumo, o que se


percebe é uma tentativa por parte das marcas de avançar seu campo
de significações e, sobretudo, de se fazer presente no universo cultural,
seja interagindo constantemente com seus públicos, se engajando em
causas sociais ou promovendo o exercício da cidadania – o chamado
branding. Assim, ao afastar-se de uma linguagem mítica, que envolve
a imagem dos produtos em uma atmosfera onírica, a experiência
publicitária hoje “quer conectar-se ao tempo histórico e ser parceiro
dele ‘nesta luta’” (MACHADO, 2011, p. 143).

Como elabora Machado (2011), valores sociopolíticos têm sido


cada vez mais incorporados por marcas que veem nessa adoção a

194
possibilidade de capitalizar um ativismo político por parte de uma
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

juventude descontente com os clássicos sistemas de representação


política. Além da lógica econômica por trás de discursos
comprometidos socialmente e com selos de sustentabilidade, tal
estratégia é comunicada como proposta de valor. Com isso, o processo
tradicional das relações mercadológicas é extrapolado a um nível onde
as corporações, ao buscar uma “imersão cultural”, se fazem presentes
em todas as dimensões da vida social, política e cultural.

Assim, o respeito à diversidade e a consequente representação


de minorias sexuais nos discursos midiáticos deveria ser algo a ser
levado em conta pelas marcas. Contudo, foi apenas na virada para o
século XXI que se ampliaram os espaços de visibilidade dados aos
indivíduos LGBT pela publicidade. Tal movimento veio acompanhado
do interesse pelo poder de compra dessas minorias e a criação de um
segmento de mercado voltado para esse público que, por meio do
consumo, estabelecem também novas formas de sociabilidade e
identidade.

Tal interesse por parte das empresas tem uma explicação:


segundo a Out Leadership, associação internacional de empresas que
desenvolve iniciativas para o público gay, o potencial financeiro anual
do público LGBT no mundo corresponde a US$ 3 trilhões. No Brasil,
esse número é estimado em US$ 133 bilhões, o que equivale a R$ 418,9
bilhões ou 10% do PIB do país4. Além disso, consomem 30% a mais
que os heterossexuais da mesma faixa de renda e os cerca de 18
milhões de homossexuais do país pertencem em sua ampla maioria –
83% – às classes A e B5.

Entretanto, ao analisarmos o discurso publicitário, fica evidente


que a representação de pessoas LGBT ainda é majoritariamente
restrita à mídia segmentada. Um possível argumento para explicar

4 Disponível em < http://oglobo.globo.com/economia/potencial-de-compras-lgbt-


estimado-em-419-bilhoes-no-brasil-15785227>. Acesso em 14 abr. 2018.
5 Disponível em
<http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2013/06/01/inter
nas_economia,36 9065/publico-gay-consome-em-media-30-mais-que-
consumidor-hetero.shtml>. Acesso em 14 abr. 2018.

195
ainda tão pouca visibilidade, desproporcional à importância
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

demográfica e econômica do público gay, é o medo que empresas de


produtos e serviços não segmentados têm da reação do público “geral”,
evitando a abordagem dessas minorias em mídias de interesse geral
(BAGGIO, 2013).

Nunan (2003) defende que o receio das empresas de


enfrentarem rejeições faz com que, quando não utilizem a mídia
segmentada para as minorias, abordem a temática de forma sutil na
mídia massiva.

Nessa conjuntura, o estágio embrionário em que se encontra a


representação dessas minorias na publicidade de massa no Brasil fica
evidenciado pela repercussão atingida pela campanha de Dia dos
Namorados da marca O Boticário em 2015, que ganhou, em outubro
do mesmo ano, o prêmio máximo no Effie Wards Brasil 6 pela
“coragem do anunciante em tocar em um tema delicado” 7. Assim, ao
veicular o comercial com casais homoafetivos no horário nobre da
emissora de maior audiência do país, a ação da empresa pode ser
considerada ousada, dado o pioneirismo desse tipo de iniciativa no
país.

3 Dos usos sociais à participação política: as dimensões das


escolhas de consumo

Assumindo a publicidade o papel de ponte que liga produção e


consumo, o que caracterizaria esse segundo domínio que integra o
circuito econômico na vida das pessoas?

Para Campbell (2006), o consumo se configura como parte


essencial de um processo de afirmação e construção de identidades.
Nesse processo, o mercado aparece como possibilidade de

6 Premiação internacional presente em 39 países que, segundo o site do evento,


“consagra as grandes ideias que dão origem a estratégias de marketing e
comunicação que alcançam resultados reais e tangíveis”.
7 Disponível em <http://g1.globo.com/economia/midia-e-
marketing/noticia/2015/10/propaganda-da-boticario-com-casais-gays-vence-
premio-publicitario.html>. Acesso em 09 out. 2016.

196
autoconhecimento, uma vez que, ao consumir, o indivíduo descobre-
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

se a si mesmo ao ver refletidos seus gostos pessoais em bens de


consumo, sejam estes materiais ou simbólicos. Assim, é na
combinação única de gostos de cada indivíduo que a identidade é
definida.

[...] a proliferação de escolhas, característica da sociedade


consumidora moderna, é essencial para que venhamos a
descobrir quem somos. Assim, é crucial termos uma ampla
variedade de produtos para “testar a nós mesmos”, uma vez
que continuamos a procurar respostas para perguntas do
tipo “gosto disso ou daquilo?”, “gosto dessa malha ou dessa
cor?”, “essa música ou essa imagem mexe comigo?”, “gosto
dessa experiência ou ela está me incomodando?”
(CAMPBELL, 2006).

Dessa forma, Campbell (2006) defende que o ato de consumir


objetiva estabelecer uma segurança ontológica, transcendendo a busca
do “ter” na busca do “ser”.

Contudo, não é apenas no âmbito da construção de identidades


que o consumo se apresenta. Alguns atos de consumo servem também
de suporte para o exercício da cidadania ou de alguma
intencionalidade política. Funcionam, assim, de acordo com certa
racionalidade que defende um consumo refletido e embasado.
Consumo Verde, Comércio Justo, Consumo Solidário, Consumo
Sustentável e Vegetarianismo são alguns exemplos de movimentos de
consumo ou de não consumo que seguem essa concepção ativista da
forma de consumir (COSTA, 2011)..

Assim, ao escolher consumir – ou não consumir, como é o caso


do vegetarianismo, que recusa o uso de produtos de origem animal na
alimentação – determinados produtos em detrimento de outros por
razões que consideram uma dimensão outra que a individual, tal tipo
de consumo estabelece um elo entre economia e política e pode ser
comparado a um voto, determinando quais produtos são produzidos,
e os fatores políticos, sociais e culturais que são influenciados
indiretamente.

197
Portilho (2009) chama de movimentos sociais econômicos
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

“aqueles em que os atores constroem uma nova cultura de ação política


visando à reapropriação do mercado a partir de valores próprios”
(PORTILHO, 2009, p. 200). Como exemplos, ela cita os movimentos
de economia solidária, comércio justo, indicação geográfica, slow food
e os movimentos de consumidores organizados. Para além destes,
contudo, a autora enfatiza o que tem se chamado de consumo político,
que envolve formas de participação e ação política por meio do
consumo individual.

Sob tal abordagem, os consumidores deixam de serem


indivíduos alienados e passivos, e passam a ser vistos, pelo contrário,
como sujeitos ativos que encontram no ato de compra uma forma de
materializar e tornar públicos valores e relações sociais.

Assim, é possível perceber uma mudança das formas de ação


política convencionais para outras consideradas “mais autônomas,
menos hierárquicas e não institucionalizadas de participação”
(PORTILHO, 2009, p. 210). Exemplos dessas formas são os boicotes e
buycotts.

Enquanto certos atos de compra refletem posicionamentos


políticos, sociais ou culturais, o ato de boicotar produtos, marcas ou
serviços também pode ser encarado nesse sentido. O conceito de
boicote pode ser caracterizado como uma “ação de um cliente ou grupo
de clientes que deixa(m) de comprar um produto, serviço ou marca
pelo fato dos valores ou atuação da empresa estar desconexos ou
distantes dos seus valores pessoais ou coletivos” (KLEIN; SMITH;
JOHN, 2004 apud CRUZ et al., 2012).

Entretanto, como o boicote está exclusivamente relacionado a


uma atitude de não compra por parte do consumidor, vale ressaltar
que a sua efetividade pode ser o efeito de uma ação de backlash, cuja
definição é por vezes confundida com boicote. O termo backlash
caracteriza manifestações de repúdio por parte de um indivíduo
(consumidor ou cidadão) ou grupo(s) de pessoas a uma organização.
Assim, além do boicote, outras ações de repúdio como manifestações,

198
abaixo-assinados ou compartilhamento de informações negativas a
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

respeito de uma empresa são exemplos de backlash. Além disso,


enquanto ações de backlash podem envolver diversos atores e formas
de manifestação, o boicote é uma ação individual, que envolve apenas
o consumidor e a empresa (CRUZ, 2013).

Na campanha realizada por O Boticário para uma de suas linhas


de perfume com casais gays, um exemplo de ação de backlash ficou
por conta da guerra entre likes e dislikes no vídeo “Dia dos Namorados
O Boticário” no YouTube, como forma de ambos os lados (a favor ou
contra o comercial) fazerem valer a sua opinião. Uma mensagem que
circulou em grupos do aplicativo de mensagens WhatsApp convidava
as pessoas a marcarem “não gostei” no vídeo de modo a “mostrar que
os valores bíblicos são mais fortes” e intimando o compartilhamento
da corrente8.

Além disso, o site Reclame Aqui, que recebe críticas de


consumidores a respeito de produtos e serviços de empresas,
contabilizou 90 reclamações, sendo 84 contra a propaganda e seis a
favor, no período de 25 de maio, quando a campanha foi lançada, a 1º
de junho9. Um usuário comentou:

O Boticário perdeu a noção da realidade, empurrando essa


propaganda que desrespeita a família brasileira. Não tenho
preconceito, mas acho que a propaganda é inapropriada
para a TV aberta, a partir de hoje não compro mais nem um
só sabonete lá e eu era cliente.

A empresa respondeu dizendo que o objetivo da campanha foi


“abordar, com respeito e sensibilidade, a ressonância atual sobre as
mais diferentes formas de amor, independentemente de idade, raça,
gênero ou orientação sexual”.

8 Disponível em <http://oglobo.globo.com/sociedade/internautas-tentam-
boicotar-comercial-de-boticario-que-tem-casais-gays-16330773>. Acesso em 25 set.
2016.
9 Disponível em < http://g1.globo.com/economia/midia-e-
marketing/noticia/2015/06/comercial-de-o-boticario-com-casais-gays-gera-
polemica-e-chega-ao-conar.html>. Acesso em 25 set. 2016.

199
Por fim, o Conselho Nacional de Autorregulamentação
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

Publicitária (Conar) chegou a abrir um processo ético para analisar o


comercial, após receber centenas de reclamações de consumidores
insatisfeitos que questionaram a moralidade da propaganda e pediram
sua retirada. Apesar disso, o órgão rejeitou por unanimidade o pedido
de retirada10. Diante de tal cenário, a decisão de boicotar uma marca
pode ser resultado de ações mais amplas de backlash.

Enquanto alguns grupos prometeram um boicote aos produtos


de O Boticário após a veiculação da campanha de O Dia dos
Namorados, outros afirmaram que iriam às lojas comprar produtos da
marca após a iniciativa de inserir casais gays no comercial. Tal atitude
pode ser caracterizada como um ato de buycott, neologismo em inglês
que deriva de uma junção das palavras buy (comprar) e boycott
(boicote), em contraponto a este último.

Friedman (1996) considera o buycott como o outro lado da


moeda de um “ativismo do consumidor” 11 . Assim, opondo-se ao
boicote, caracteriza-se como o ato de consumir produtos ou serviços
de uma empresa como forma de recompensá-la por determinado
comportamento.

No contexto da polêmica que envolveu o comercial “Casais”, o


pastor e líder pentecostal Silas Malafaia, conhecido por compartilhar
opiniões contrárias a gays em suas redes sociais, ganhou destaque ao
divulgar um vídeo de quase três minutos convocando evangélicos,
católicos, espíritas e ateus a boicotarem produtos de empresas que
associam suas marcas ao público gay, especificamente O Boticário12.

No vídeo, Malafaia afirma que faz parte de uma maioria de


“pessoas de bem que não concordam com essa promoção de

10 Disponível em < http://g1.globo.com/economia/midia-e-


marketing/noticia/2015/07/conar-absolve-boticario-por-propaganda-com-casais-
gays.html>. Acesso em 25 set. 2016.
11 Consumer activism.
12 Disponível em < http://economia.ig.com.br/empresas/2015-06-02/em-video-

malafaia-propoe-boicote-ao-boticario-va-vender-perfume-pra-gay.html>. Acesso
em 05 nov. 2016.

200
homossexualismo” e defendeu seu direito de criticar qualquer
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

comportamento:

[...] No Estado Democrático de Direito, eu posso me


expressar, eu posso contraditar, e quero convocar as
pessoas que acreditam em macho e fêmea e nesse estilo de
família – porque o ser humano vive de modelo, de
imitação, e [a campanha] é uma tentativa de querer
ensinar crianças e jovens o homossexualismo – a não
comprarem produtos dessa marca. Vamos dizer não!

Na contramão do posicionamento do pastor, outras


personalidades da mídia, como a cantora Daniela Mercury e o ator
Gregorio Duvivier, utilizaram seus perfis nas redes sociais para
defender O Boticário e compartilhar o buycott aos seus produtos que
a atitude da empresa os inspirou a promover. Ambos postaram fotos
em suas contas no Instagram com produtos da loja. Enquanto Daniela
escreveu que havia ganhado o perfume que inspirou a campanha de O
Boticário de sua namorada como presente de Dia dos Namorados 13,
Gregório foi mais longe e defendeu um “desboicote” à marca 14:

[...] pra quem não tá acompanhando, Malafaia e a bancada


da bíblia estão propondo um boicote ao Boticário por causa
da campanha (foda) de dia dos namorados. nunca tinha
comprado lá antes mas a campanha (e o boicote do
Malafaia) me deram uma simpatia imensa pela marca.
passei lá e comprei presentes pra mim mesmo e pra todos
que eu gosto. proponho um desboicote ao Boticário. uma
campanha como essa merece ser incentivada. o
fundamentalismo não pode intimidar ninguém.

Tal cenário suscita a discussão trazida pelo trabalho de Cruz et


al. (2012), que analisou a influência que pessoas famosas no Brasil
podem exercer sobre usuários de redes sociais no que diz respeito a
atos de boicote.

13 Disponível em < https://www.instagram.com/p/3ckNfXhS3o/>. Acesso em 05


nov. 2016.
14 Disponível em < https://www.instagram.com/p/3e1It-xFje/>. Acesso em 05 nov.

2016.

201
No estudo, elaborado por meio de uma pesquisa quantitativa
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

realizada com usuários de redes sociais, foi criado um ranking com 62


personalidades cujos discursos poderiam levar alguém a deixar de
comprar produtos ou serviços de determinada empresa. Entre os 10
primeiros colocados, apenas duas mulheres apareceram: Fátima
Bernardes (8º lugar) e Dilma Roussef (9º lugar).

Além disso, as 62 personalidades listadas foram classificadas


em oito grupos de acordo com a veiculação de sua imagem na mídia,
como “Religiosos”, “Entretenimento” e “Políticos”. Esse agrupamento
permitiu identificar uma correlação significativa e negativa entre os
“Religiosos” e os outros grupos, o que significa dizer que
provavelmente um consumidor que admite receber influência de
religiosos famosos não recebe de personalidades ligadas ao
entretenimento, música ou esporte, por exemplo.

Os autores atribuem tal constatação à moral religiosa, em que o


mínimo desvio de dogmas ou orientações bíblicas (no caso de uma
sociedade religiosa cristã) é considerado errado por parte daqueles que
têm religiosos famosos como influentes. Assim, as visões de mundo de
outros artistas podem entrar em conflito com aquelas representadas
pelo grupo dos “Religiosos”, o que ajuda a explicar essa correlação.

Também se verificaram outros resultados que demonstram o


impacto da religião no boicote: enquanto 73,1% dos ateus consultados
se consideram indiferentes à influência de uma pessoa famosa numa
decisão de boicote, aqueles que se consideram cristãos (tanto os
católicos, os evangélicos pentecostais ou os evangélicos ortodoxos)
tendem a concordar mais facilmente com essa influência.

4 Os casais de O Boticário e o que o público achou deles:


percepções, atitudes e posicionamentos

Para se analisar as questões levantadas neste trabalho de forma


empírica, relativas à recepção da campanha e aos impactos conferidos
por ela às relações de consumo entre O Boticário e consumidores,

202
optou-se pela realização de uma pesquisa quantitativa pela Internet,
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

em especial através da rede social Facebook. Segundo Naresh


Malhotra (2012, p. 147), “[...] a pesquisa pela Internet pode ser tão
representativa e eficiente quanto outros métodos tradicionais,
especialmente à medida que a população da Internet continua a
crescer”. A opção pela pesquisa on-line, em detrimento da coleta de
dados presencial, deveu-se também a uma expectativa de ampliação
das possibilidades de diversificação na composição da amostra. Além
disso, a entrevista através de meio digital e em redes sociais possibilita
uma facilidade operacional no que tange à distribuição dos
questionários, assim como a potencial obtenção de amostra maior.
Para tanto, foi realizada por meio de um questionário on-line
utilizando a ferramenta Google Forms, um link para a pesquisa foi
distribuído em grupos do Facebook, além de envio direto a pessoas das
redes sociais dos pesquisadores (amostragem por conveniência),
inclusive de outros estados, de forma a propiciar certa abrangência
geográfica. Caracteriza-se, portanto, por uma pesquisa quantitativa
não-probabilística autogerada.

A condição de pesquisa não-probabilística está relacionada ao


não conhecimento de todos os elementos da população amostral, à
impossibilidade de definir a probabilidade de seleção dos elementos /
respondentes da pesquisa com chance de sorteio único na amostra,
assim como de aleatoriedade da mesma. A opção pela quantificação
deveu-se a três questões, a saber: 1) no que se refere, a opção pela
pesquisa quantitativa, em detrimento da pesquisa qualitativa: caso
fosse realizado um estudo qualitativo, a análise dos resultados se
limitaria à identificação de opiniões, percepções, aspectos emocionais
e discursivos acerca da campanha, sem oferecer índices. 2) a adoção
da pesquisa quantitativa possibilitou o estabelecimento das ordens de
grandeza das opiniões, percepções e indicadores de recepção da
campanha em estudo, através de percentuais e médias, produzindo
leituras numéricas dos resultados. 3) o estabelecimento prévio das
variáveis de análise também forneceu cruzamentos por segmentos de
públicos específicos, entre os quais se poderia supor diferenças de

203
percepção quanto à campanha, por princípio de comparação,
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

descobrindo-se a posteriori as intensidades perceptuais entre os


grupos de respondentes.

Para garantir a diversificação dos entrevistados, conforme as


variáveis indicativas do estudo, buscou-se também divulgar o link da
pesquisa entre grupos virtuais com interesse em temas ligados a
cuidados de beleza, cosméticos, sem vinculação direta com a marca O
Boticário. Malhotra (2012, p. 147) adverte que:

[...] no caso dos levantamentos pela Internet que recrutam


respondentes que estão navegando no site ou que usam os
banners de propaganda, há uma tendenciosidade inerente
por causa da auto seleção. [...] É claro, os problemas com
qualquer levantamento pela Internet incluem o fato de que
a tendenciosidade pode ser introduzida se os entrevistados
responderem mais de uma vez; além disso, para as
amostras não validadas, pode não haver
representatividade estatística da sua composição.

Portanto, a despeito do tamanho da amostra apresentada ser


significativo, não se pode garantir que os resultados espelhem de
modo específico o pensamento da população como um todo. Logo, no
caso descrito neste estudo não se pode afirmar que exista
representatividade estatística suficiente para se afirmar que os
resultados reflitam o pensamento e a opinião do público a partir da
amostra em questão. Tendo em vista que não houve a intenção de
recortar uma amostra ou estabelecer um critério de ponderação da
mesma, em conformidade com as variáveis demográficas
consideradas, em números absolutos e em termos de participação
relativa no conjunto da população correlata. Porém, conhecidas as
limitações deste estudo é possível identificar diversas inferências e
constatações, passíveis de serem aprofundadas nesta investigação e
em investigações futuras.

Como critério de cruzamento de dados, optou-se por segmentar


a amostra, prioritariamente, entre Pessoas LGBT e Pessoas não LGBT,
subdividindo o segundo grupo entre Homens não LGBT e Mulheres

204
não LGBT. Como não LGBT, entende-se pessoas heterossexuais e
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

cisgênero 15 . Este é ainda um aspecto limitante da construção


metodológica de estudos acerca da população LGBT. O Censo
Demográfico identifica a população segundo o sexo biológico
(masculino-homem / feminino-mulher), alicerçando ainda os
indicadores com base no levantamento dos dados nacionais dos
cartórios quanto aos números dos registros de nascidos vivos. Logo,
as informações acerca de identidade de gênero e de orientação sexual
não possuem parâmetros mais abrangentes que reflitam a realidade de
tais segmentos da população em termos censitários, que possibilite a
projeção dos resultados de uma pesquisa específica em relação ao
conjunto da população.

Cabe ressaltar que desde o ano de 2010, que o número de


pessoas casadas com parceiro do mesmo sexo, é aferido na Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) e no também no Censo
Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Tal indicador se restringe apenas à parcela da população LGBT que
estabeleceu união formal com pessoa do mesmo sexo. Mantendo-se,
portanto, a grande massa LGBT em situação de invisibilidade
estatística e em termos de expressão demográfica.

Em se tratando do objeto de investigação deste estudo –


publicidade em meio massivo e representatividade LGBT – , tal
adoção encontra justificativa na tentativa de se verificar de que forma
Pessoas LGBT, objeto de representação incomum em comercial de O
Boticário, enxergou tal ação, em contraposição ao segundo grupo. No
que se refere à divisão entre Homens e Mulheres não LGBT, supôs-se
que, devido a papéis de gênero, poderia haver diferenças significativas
na forma de pensar dos dois grupos. Além do mais, não seria coerente
dividir a variável LGBT da mesma forma, visto que: 1) ao longo da
pesquisa, o grupo foi referido segundo os posicionamentos políticos

15Em oposição ao conceito de transgênero, cisgênero é o termo utilizado para se


referir a indivíduos cuja identidade de gênero (homem ou mulher) coincide com o
gênero que lhe foi atribuído no nascimento. Assim, um homem cisgênero, por
exemplo, é aquele que nasceu com o órgão sexual masculino e se expressa
socialmente de acordo com os papéis de gênero masculinos.

205
que o mantém unido; 3) acreditamos que a diferenciação por outras
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

variáveis que não o sexo poderia ser mais significativa nas possíveis
divergências de respostas, tais como gênero e orientação sexual, o que
dificultaria a interpretação dos dados.

Ainda vale ressaltar que, apesar de a amostra total corresponder


a 500 entrevistas, quando se segmenta Pessoas LGBT vs. Pessoas não
LGBT, esse número diminui para 489, uma vez que 11 pessoas não
souberam responder acerca de sua orientação sexual, o que
impossibilita sua inclusão em algum dos dois grupos, que são
excludentes entre si, inclusive para fins de segmentação e análise dos
resultados da pesquisa.

Em algumas questões, os resultados também foram analisados


sob a segmentação pela variável Religião, já que, como visto, grupos
religiosos como os evangélicos respondem por um posicionamento
mais abertamente contrário a práticas homoafetivas. Além disso, a
convocação de boicote à marca de cosméticos após o comercial pelo
líder evangélico Silas Malafaia poderia indicar uma tendência desse
grupo a atitudes mais negativas em relação à campanha / empresa.

Por fim, como as questões abordadas neste trabalho


ultrapassam o âmbito da campanha em si, buscou-se suscitar outros
levantamentos, o que levou à ocorrência do questionário e sua
posterior tabulação em quatro grandes blocos temáticos: Percepções
sobre a campanha, Publicidade inclusiva e impactos no consumo,
Recepção das minorias sexuais na mídia e Comportamento nas redes
sociais.

4.1 Percepções sobre a campanha

Em uma avaliação geral a respeito do comercial exibido por O


Boticário notou-se que, quando comparamos a opinião de Pessoas
LGBT e Pessoas não LGBT, não encontramos grandes divergências
quanto à proporção de classificações como “Ótimo” ou “Bom”. É
interessante notar, porém, que, se entre Pessoas LGBT e Mulheres não

206
LGBT o número de avaliações como “Ótimo” é quase igual (68,98% e
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

69,75%, respectivamente), esse número cai mais de 20% quando


consideramos apenas Homens não LGBT (46,88%). Além disso, foi
este último grupo o que mais o considerou “Regular” (10,94%) ou
“Ruim” (3,13%). Tais resultados indicam por um lado que o público
feminino não LGBT parece ser mais aberto e permeável em termos de
aceitação das representações publicitárias do público LGBT; e por
outro, uma resistência do público não LGBT ao tema. Do que se pode
inferir uma certa atitude masculina (não-LBGT) de preferir a
manutenção de uma relativa política de invisibilidade dos LGBTs, pelo
menos na publicidade em mídia massiva, como TV aberta.

Quando partimos para a análise da variável Religião, verifica-se


que 66% do total da amostra avaliou o comercial como “Ótimo”.
Porém, entre os Evangélicos este índice apresenta-se no patamar dos
50% entre este público pesquisado, o que se apresenta como um índice
abaixo da média total da pesquisa, em termos significativos (-16%). É
interessante observar que a soma dos Evangélicos que consideraram o
filme publicitário como “regular”, “ruim” ou “péssimo” totalizou um
índice de 17%, podendo-se inferir que tais avaliações podem estar
atravessadas por uma percepção negativa da campanha motivada por
uma ideia de que a representação de LGBTs na publicidade é, por si
mesma, ofensiva aos valores cristãos e da família. Pelo menos, para
algumas parcelas das denominações evangélicas, pentecostais ou
neopentecostais. Por outro lado, os Espíritas foram os que mais bem
avaliaram a campanha, entre cuja avaliação como “Ótimo”
correspondeu a 85,96%.

207
Tabela 1 - Avaliação do comercial entre Pessoas LGBT e Pessoas não LGBT
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

Ótimo Bom Regular Ruim Péssimo Total


(%) (%) (%) (%) (%) (respondentes)
Pessoas 68,98 28,34 2,67 0,00 0,00 187
LGBT
Pessoas 64,90 26,49 6,62 1,66 0,33 302
não LGBT
Homens 46,88 39,06 10,94 3,13 0,00 64
não
LGBT
Mulheres 69,75 23,11 5,46 1,26 0,42 238
não
LGBT
TOTAL 66,46 27,20 5,11 1,02 0,20 489

Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

Tabela 2 - Avaliação do comercial entre diferentes religiões

Ótimo Bom Regular Ruim Péssimo Total


(%) (%) (%) (%)
(%) (respondentes)

Católicos 60,58 31,73 4,81 2,88 0,00 104

Evangélicos 50,00 33,33 9,52 4,76 2,38 42

Umbandistas/ 71,43 23,81 4,76 0,00 0,00 21


Candomblecistas
Espíritas 85,96 12,28 1,75 0,00 0,00 57

Sem religião 69,23 27,27 3,50 0,00 0,00 143


específica
Agnósticos 66,67 27,27 6,06 0,00 0,00 66

Ateus 54,55 36,36 9,09 0,00 0,00 55

Outras religiões 83,33 16,67 0,00 0,00 0,00 12

TOTAL 66,20 27,60 5,00 1,00 0,20 500

Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

Outra pergunta indagava se as duplas feminina e masculina que


aparecem no comercial podiam ser facilmente identificadas como

208
casais homoafetivos. A maioria dos respondentes (48,6%) afirmou que
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

“Sim, mas apenas porque era Dia dos Namorados”, seguida de uma
parcela que diz ter percebido assim que viu o anúncio (38,8%). Apesar
disso, 10% afirmaram que “Não, pois não há sinais claros de que
namorem”. Nesse sentido, é interessante observar que a expressão do
amor homoafetivo através do beijo na boca já havia sido tratada pela
telenovela “Amor à Vida” (Tv Globo, 2014). Portanto, parece existir
um hiato entre a representação da diversidade e de suas manifestações
de afeto na tele ficção seriada e na publicidade. Ainda que as
telenovelas globais tenham sido um dos vetores de avanços do debate
sobre temas polêmicos na sociedade nas últimas décadas, tratando
temas como racismo, intolerância religiosa, tráfico de mulheres, entre
outros; a publicidade parece reprimida por um conservadorismo de
mercado. No qual, a encenação do afeto do diverso está tolhida
segundo padrões que não venham a chocar as audiências mais
conservadoras.

Gráfico 1 - "Você acha que as duplas feminina e masculina que aparecem


no comercial de O Boticário são facilmente identificadas por você como
casais homoafetivos?"

Não, pois não há Não, pois não há


beijo na boca sinais claros de
0,40% que namorem
10,00% Sim, mas apenas
após a polêmica
2,20%

Sim, percebi
assim que vi o
anúncio
38,80%
Sim, mas apenas
porque era Dia
dos Namorados
48,60%

Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

209
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

Quando solicitados a expressar seu grau de concordância com a


frase “O Boticário é uma marca que ofende Deus e a família”,
cruzamos os resultados com a variável Religião. Os dados mostram
que, apesar de 90% das pessoas como um todo terem discordado
totalmente, os Evangélicos foram o grupo que mais se distanciou dessa
média (69,05%), apesar de, ao mesmo tempo, também ter sido o que
mais discordou parcialmente (16,67%). Em contrapartida, também os
Evangélicos e os Católicos foram os únicos grupos cuja parte da
amostra concordou totalmente ou parcialmente com a afirmação. Por
fim, os Espíritas foram os que mostraram maior assertividade ao
discordar totalmente da afirmação (96,49%), aproximando-se
daqueles que não possuem um perfil religioso.

Tabela 3 - Graus de concordância com a afirmação "O Boticário é uma marca que
ofende Deus e a família” entre diferentes religiões
Discordo Discordo Não concordo Concordo Concordo Total
totalmente parcialmente nem discordo parcialmente totalmente (respondentes)
(%) (%) (%) (%) (%)
Católicos 85,58 6,73 5,77 0,96 0,96 104
Evangélicos 69,05 16,67 7,14 4,76 2,38 42
Umbandistas/ 0,00 9,52 0,00 0,00 21
90,48
Candomblecistas
Espíritas 96,49 1,75 1,75 0,00 0,00 57
Sem religião 0,00 4,20 0,00 0,00 143
95,80
específica
Agnósticos 93,94 4,55 1,52 0,00 0,00 66
Ateus 87,27 7,27 5,45 0,00 0,00 55
Outras religiões 91,67 0,00 8,33 0,00 0,00 12
TOTAL 90,00 4,40 4,60 0,60 0,40 500

Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

4.2 Publicidade inclusiva e impactos no consumo

Para tentar constatar de que forma a inclusão dos casais


homoafetivos na campanha de perfume lançada por O Boticário trouxe
impactos aos hábitos de consumo do público, perguntamos às pessoas
o que mudou em sua relação com a empresa após a ação. Sob uma
análise geral, a grande maioria das pessoas (92,6%) declarou que nada
mudou na forma com que consomem produtos da marca. Além disso,

210
nenhum dos 500 respondentes disse ter encerrado relações com a loja
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

por causa disso. Vale ressaltar, porém, que 13,1% dos entrevistados
declararam nunca ter comprado em O Boticário antes da campanha.
Logo, ao afirmar que nada mudou nessa relação de consumo, muitos
apenas continuaram assumindo sua posição como não consumidores
da empresa de cosméticos. Paralelamente, o grupo com a maior
proporção de pessoas que disseram ter passado a comprar mais após
a campanha (11,43%) foi aquele que já comprava produtos da marca
frequentemente, seguidos dos que lá consumiam apenas
eventualmente (8,51%). Isso indica um saldo positivo para a empresa,
já que, enquanto o impacto entre clientes frequentes que receberam a
campanha negativamente – 1,43% passaram a evitar comprar seus
produtos – foi relativamente baixo, a ação conseguiu converter alguns
novos consumidores (3,03%) e solidificar a relação com outros.

Tabela 4 - O que mudou na relação com O Boticário após a campanha


entre diferentes perfis de consumidor

Passei a Deixei de
Não mudou nada,
Passei a comprar comprar mais comprar
minha relação
apenas quando em O Boticário, em O
com a marca O Total
não tenho outra por vê-la como Boticário
Boticário (respondentes)
opção, mas evito uma marca após o
continua a mesma
(%) inclusiva (%) comercial
(%)
(%)
Comprava produtos 91,49 0,00 8,51 0 188
da marca
eventualmente,
apenas em ocasiões
especiais

Comprava produtos 87,14 1,43 11,43 0 70


da marca
frequentemente

Comprava produtos 94,32 0,00 5,68 0 176


da marca raramente

Nunca comprava 96,97 0,00 3,03 0 66


produtos da marca

TOTAL 92,60 0,20 7,20 0 500


Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

211
Quando se verifica de que forma a presença de casais
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

homoafetivos na campanha de O Boticário afetou a relação entre


consumidores e a marca de acordo com o gênero/orientação sexual,
constata-se que foi entre as Pessoas LGBT onde se encontrou a maior
proporção de pessoas que disseram ter amplificado seus hábitos de
consumo com a empresa (11,23%), mais do que o dobro da média entre
as não LGBT (4,97%). Curioso, entretanto, é o fato de que a proporção
de Homens não LGBT que afirmaram ter passado a comprar mais da
marca (6,25%) foi maior do que entre as Mulheres não LGBT (4,62%).

Tabela 5 - O que mudou na relação com O Boticário após a


campanha entre Pessoas LGBT e Pessoas não LGBT

Não mudou nada,


Passei a comprar Passei a comprar
minha relação com
apenas quando não mais em O Boticário,
a marca O Boticário
tenho outra opção, por vê-la como uma
continua a mesma
mas evito (%) marca inclusiva (%)
(%)

Pessoas LGBT 88,77 0,00 11,23

Pessoas não 94,70 0,33 4,97


LGBT

Homens não 93,75 0,00 6,25


LGBT

Mulheres não 94,96 0,42 4,62


LGBT

TOTAL 92,43 0,20 7,36

Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

Já quando o recorte é religioso, outra constatação notável: logo


atrás dos membros de Outras Religiões que declararam terem se
tornados consumidores mais frequentes (16,67%) devido à atitude
inclusiva de O Boticário, os Evangélicos aparecem com a segunda
maior proporção de pessoas que mudaram sua atitude de forma

212
positiva para a empresa (9,52%). Tal resultado parece reafirmar a
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

diversidade de atitudes e comportamentos entre os muitos segmentos


e correntes do pensamento evangélico. Ou talvez, o mascaramento de
posições mais conservadoras e reacionárias não declaradas, mesmo
em uma pesquisa na qual o anonimato do respondente é garantido
pela não identificação. Enquanto isso, os
Umbandistas/Candomblecistas foram o único grupo cujo nenhum dos
respondentes se mostrou afetado pela ação.

Tabela 6 - O que mudou na relação com O Boticário após a campanha entre


diferentes religiões
Não mudou Passei a Deixei de
Passei a
nada, minha comprar comprar
comprar mais
relação com apenas em O
em O Boticário, Total
a marca O quando não Boticário
por vê-la como (respondentes)
Boticário tenho outra após o
uma marca
continua a opção, mas comercial
inclusiva (%)
mesma (%) evito (%) (%)
Católicos 95,19 0,00 4,81 0 104
Evangélicos 88,10 2,38 9,52 0 42
Umbandistas/ 100,00 0,00 0,00 0 21
Candomblecistas
Espíritas 92,98 0,00 7,02 0 57
Sem religião 92,31 0,00 7,69 0 143
específica
Agnósticos 92,42 0,00 7,58 0 66
Ateus 90,91 0,00 9,09 0 55
Outras religiões 83,33 0,00 16,67 0 12
TOTAL 92,60 0,20 7,20 0 500

Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

4.3 Recepção das minorias sexuais na mídia

Outro eixo que constituía o questionário de pesquisa on-line diz


respeito ao nível de aceitação da presença de minorias sexuais na
mídia, comparando tal aceitação àquela referente à visibilidade dada a
outras situações também consideradas problemáticas de caráter
comportamental-sexual, ético-legal, violento-criminoso.

Por isso, solicitamos uma avaliação por escala de aceitação de


como as pessoas enxergavam a presença das seguintes situações nos

213
gêneros ficcionais televisivos (novelas, filmes, publicidade etc.):
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

violência/agressão física, estupro, corrupção, consumo de drogas,


beijo entre homem e mulher, beijo gay, sexo entre homem e mulher e
sexo gay. Para facilitar a compreensão dos dados, atribuímos pesos de
1 a 5 a cada nível, em que: Nada aceitável = 1; Pouco aceitável = 2;
Indiferente = 3; Aceitável = 4 e Muito aceitável = 5. Logo, quanto mais
a média for próxima de 5, maior a aceitação e quanto mais próxima de
1, maior a rejeição. Dessa maneira, pudemos encontrar uma média
ponderada 16 que expressasse, dentro dessa gradação, o nível de
aceitação para cada situação, independentemente do gênero.

Sob uma análise geral, a categoria Beijo entre homem e mulher


mostrou ser a mais bem recebida entre os respondentes (4,4), seguida
de Beijo gay (4,33), Sexo entre homem e mulher (3,77), Sexo gay
(3,74), Corrupção (3,37), Consumo de drogas (3,11),
Violência/agressão física (2,69) e, por último, Estupro (2,23).
Indicando que os limiares de aceitação e rejeição dos itens avaliados
no contexto ficcional-publicitário estão na relação direta do que é
comportamento social versus o que se configura como violência e
crime, indicando a manifestação concernente com o que já é pactuado
socialmente como não aceitável ou que já causa repulsa a priori.

Tal padrão foi encontrado tanto entre Homens não LGBT (com
exceção da ordem atribuída a Corrupção e Consumo de drogas, por
uma diferença de 0,05) e Mulheres não LGBT, mas não se repetiu
entre Pessoas LGBT. Dentro desse grupo, a ordem de avaliação da
situação mais aceitável para a menos aceitável ficou: Beijo gay (4,76),
Beijo entre homem e mulher (4,59), Sexo gay (4,23), Sexo entre
homem e mulher (4,13), Corrupção (3,68), Consumo de drogas (3,41),
Violência/agressão física (2,87) e Estupro (2,37).

Cabe destacar que, apesar da aparente maior aceitação a cenas


de sexo gay na televisão frente a outras situações como agressão física

16 Cálculo baseado na relação entre as incidências em números absolutos,


multiplicadas pelos pesos atribuídos aos indicadores, divididos pela base de
respondentes. A base utilizada no cálculo da média foi obtida após a depuração dos
entrevistados que se recusaram a avaliar o quesito para cada item.

214
ou consumo de drogas, esse padrão não se verifica na frequência com
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

que tais situações são exibidas na televisão. Tal afirmação justifica-se


pelo fato de que beijos gays, nas raras vezes em que acontecem, são
alvo de grande polêmica por parte do público e, por isso, evitados pela
grande mídia. Além disso, julho de 2016 marcou a primeira vez em que
uma cena de sexo gay foi exibida na televisão brasileira, na minissérie
“Liberdade, Liberdade”17, da TV Globo.

Outras considerações notáveis envolvem uma aceitação de Sexo


entre homem e mulher (4,13) e Beijo entre homem e mulher (4,59)
maior entre as Pessoas LGBT do que entre as não LGBT (3,55 e 4,28,
respectivamente). Além disso, apesar de Homens não LGBT serem os
menos receptivos a Beijo gay (4,03), eles mostraram aceitar melhor
Sexo gay (3,66) do que Mulheres não LGBT (3,39).

Tabela 7 - Grau de aceitação (de 1 a 5) de diferentes situações nos


gêneros ficcionais televisivos entre Pessoas LGBT e Pessoas não LGBT

VIOLÊNCIA/AGRESSÃO
ESTUPRO
FÍSICA
Média Média
ponderada ponderada
Pessoas
Pessoas LGBT 2,87 2,37
LGBT
Pessoas não Pessoas
2,57 2,14
LGBT não LGBT
Homens não Homens não
3,19 2,56
LGBT LGBT
Mulheres não Mulheres não
2,41 2,03
LGBT LGBT
TOTAL 2,69 TOTAL 2,23

CORRUPÇÃO CONSUMO DE DROGAS


Média Média
ponderada ponderada
Pessoas
Pessoas LGBT 3,68 3,41
LGBT
Pessoas não Pessoas
3,18 2,92
LGBT não LGBT

17 Disponível em <http://www.brasilpost.com.br/2016/07/12/cena-de-sexo-
gay_n_10951554.html>. Acesso em 14 abr. 2018.

215
Homens não Homens não
3,50 3,55
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

LGBT LGBT
Mulheres não Mulheres não
3,09 2,76
LGBT LGBT
TOTAL 3,37 TOTAL 3,11

BEIJO ENTRE HOMEM E


BEIJO GAY
MULHER
Média Média
ponderada ponderada
Pessoas
Pessoas LGBT 4,59 4,76
LGBT
Pessoas não Pessoas
4,28 4,06
LGBT não LGBT
Homens não Homens não
4,28 4,03
LGBT LGBT
Mulheres não Mulheres não
4,29 4,07
LGBT LGBT
TOTAL 4,40 TOTAL 4,33

SEXO HOMEM E MULHER SEXO GAY


Média Média
ponderada ponderada
Pessoas
Pessoas LGBT 4,13 4,23
LGBT
Pessoas não Pessoas
3,55 3,44
LGBT não LGBT
Homens não Homens não
3,91 3,66
LGBT LGBT
Mulheres não Mulheres não
3,45 3,39
LGBT LGBT
TOTAL 3,77 TOTAL 3,74

Fonte: Cruzamento dos dados da pesquisa

5 Considerações finais

Como mostraram os resultados da pesquisa quantitativa


realizada para se chegar aos objetivos deste trabalho, os impactos
recebidos por O Boticário mostraram-se muito mais positivos do que
negativos, ao contrário do que poderia se esperar com o movimento de
boicote iniciado pelo pastor evangélico Silas Malafaia e que gerou
grande repercussão nas redes sociais virtuais, lócus da pesquisa.

216
Assim, apesar das limitações da amostra, é possível aferir
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

algumas contribuições teóricas derivadas desses resultados. Em


primeiro lugar, no campo do consumo, parece existir, ainda que
tímida, uma relação entre atos de compra e ativismo político, já que
7,2% dos respondentes declararam ter passado a comprar mais em O
Boticário por vê-la como uma marca inclusiva.

Também, coloca-se a questão do perfil de consumidor da


maioria daqueles que usam as redes sociais virtuais. Seriam esses
usuários pessoas mais engajadas politicamente em questões de
inclusão social e, portanto, mais dispostas a apoiar ações publicitárias
de visibilidade a segmentos excluídos da sociedade? Conforme a
pesquisa constatou, as avaliações sobre o comercial foram
majoritariamente positivas e, apesar de ninguém ter declarado que
deixou de comprar na loja após sua veiculação, os dados anteriores
confirmam que uma parte passou inclusive a comprar mais. Desse
modo, até que ponto um chamado de boicote de caráter conservador
por meio das redes sociais virtuais poderia ser realmente significativo?
Se verificarmos, por exemplo, o resultado da “guerra” entre likes e
dislikes no vídeo da campanha no Youtube, nos deparamos com o
seguinte resultado: 387.583 likes vs. 194.123 dislikes (dados do dia
25/09/2016).

Um segundo questionamento, que aparece vinculado ao último,


mas que traz uma perspectiva diferente do assunto diz respeito à
recepção dos Evangélicos quanto ao tema abordado. Como verificado,
ainda que seus posicionamentos tenham sido, quase sempre, mais
conservadores do que aqueles verificados em outras religiões, o saldo
quase sempre foi de mais receptividade do que o contrário. Por
exemplo, ao se posicionarem acerca de como a inclusão de
personagens e/ou relações de afeto homossexuais em ações
publicitárias mudariam sua relação com uma marca, apenas 4,76%
disseram que compraria produtos dessa marca apenas se não tivesse
outra opção, enquanto nenhum disse que deixaria de comprar de uma
marca que agisse assim. No caso específico de O Boticário, a tendência

217
anterior se manteve, o que indica que, pelo menos na amostra
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

analisada, o boicote conclamado por um de seus líderes não surtiu


efeito.

Isso leva a crer que deve se tomar cuidado ao tratar os


evangélicos como um grupo homogêneo, cujas crenças seguem à risca
os ensinamentos de seus pastores. A começar pelas próprias divisões
internas do evangelismo, que os separam segundo diferentes
doutrinas – protestantismo histórico, pentecostais e neopentecostais
– e que aponta uma limitação da pesquisa ao não levar em conta essas
diferenciações. Inclusive, por ser uma pesquisa aplicada via Internet,
os evangélicos participantes podem pertencer a segmentos mais
escolarizados, com maior acesso a bens culturais e detentores
dispositivos de acesso às redes sociais, entre outros não contemplados
na pesquisa; a partir dos quais se possa diferenciar as opiniões quanto
aos temas propostos no estudo. De toda forma, pode ser que, talvez, a
representatividade evangélica no Congresso e a insistência com que
seus líderes se recusam a aceitar a promoção de cidadania dos
segmentos LGBT não represente necessariamente a opinião da
maioria de seus fiéis. Por isso, é fundamental analisar a diversidade
de evangélicos, especialmente os periféricos, e compreender seu
modus vivendi e a forma como pensam consumo e política, na base da
pirâmide social e econômica.

Ainda na esfera da religião, quando da avaliação do comercial,


apesar de pesquisas apontarem para uma maior abertura das
homossexualidades nas religiões de matriz africana, aqueles que
melhor receberam o comercial foram os adeptos do Espiritismo,
mesmo que essa receptividade não tenha se refletido numa mudança
de consumo tal como foi para outras religiões. Tal constatação aparece
como possível questão para estudos posteriores.

Outra observação relevante trazida pelos resultados da


pesquisa engloba a divergência de opiniões quando se analisa sob o
recorte de Homens e Mulheres não LGBT, leiam-se homens e
mulheres heterossexuais e cisgênero. Homens não LGBT mostraram-

218
se menos propensos, ainda que por uma diferença pequena, a aceitar
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

a diversidade sexual em diferentes gêneros midiáticos. Além disso,


diferenças significativas foram encontradas na avaliação do comercial,
tendo sido o grupo que menos o considerou “Ótimo”. Um possível
caminho na explicação das diferenças verificadas encontra
sustentação nos papéis de gênero, que associa o machismo à recusa de
padrões desviantes dessa norma. Apesar disso, impactos no consumo
da marca devido a isso não divergiram significativamente em relação
ao outro grupo. Pelo contrário, a proporção de Homens não LGBT que
disseram ter passado a comprar mais em O Boticário após o comercial
foi maior do que entre as Mulheres.

Quanto aos veículos de comunicação, um possível medo que


impediria a superação de representações limitadas não se justificaria
de acordo com os dados obtidos. Eles mostram que imagens de
práticas homossexuais, seja beijo ou até mesmo sexo gay, são mais
aceitáveis do que outras situações encontradas em produtos
televisivos com muito mais frequência, como corrupção e agressão
física. Para a publicidade, o recado é o mesmo: ela aparece inclusive
como um dos gêneros mais aceitáveis para a presença de personagens
homossexuais, na frente de telenovelas, por exemplo.

A heteronormatividade percebida nessas representações


midiáticas, o que inclui o comercial da campanha Casais, é
corroborada quando 48,6% dos respondentes afirmaram ter percebido
que se tratava de casais homoafetivos apenas porque era Dia dos
Namorados.

Pode-se pressupor que a condição masculina heterossexual (ou


não-LGBT) aparece como a premissa mais reveladora do
conservadorismo e da invisibilidade anti LGBT, do que a condição
religiosa em si. Ainda que exista uma ‘zona’ de interseção entre
homens e mulheres hétero com denominações religiosas evangélicas e
não evangélicas (vide os segmentos ultraconservadores católicos e
também espíritas kardecistas) que podem ser resistentes às políticas
de visibilidade LGBT, e que fortalece as bases de reatividade dos

219
grupos mais reacionários. Eis um vasto campo de investigação a ser
Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
sobre como o público percebeu a campanha publicitária ‘casais’, de o boticário
A representatividade LGBT na publicidade tradicional brasileira: um estudo quantitativo

trabalhado. Entre as oportunidades e oportunismos de mercado


engendrados pelas corporações, sob a égide do ‘marketing de causa’, a
disputa pelo pink money apresenta profundas complexidades e uma
arena de luta entre os interesses do capital por esta fatia de mercado e
as bandeiras de cidadania, direitos civis e visibilidade positiva da
população LGBT.

 Retorne ao sumário

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publicidade de massa para público gay e não-gay: conflito
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220
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Cristiano Henrique Ribeiro dos Santos e Leonardo Duarte da Silva
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221
1 Introdução

Desde 17 de maio de 1990, a homossexualidade deixou de


integrar a lista internacional de doenças da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e a condição de “questão de saúde pública” não mais foi
aplicada às pessoas que seguem esta orientação sexual. A mudança,
porém, não garantiu o fim da discriminação histórica sofrida pelo
grupo social denominado como comunidade LGBT (sigla que agrupa
as lésbicas, os gays, os bissexuais e os transexuais e que recentemente
tem sido ampliada para abarcar outros grupos com características
excludentes).

Mundialmente, essa população é alvo de ataques homofóbicos


até os dias atuais e constantemente se vê privada dos direitos civis (no
caso do direito à vida, à liberdade de expressão e à igualdade perante
a lei) e dos direitos sociais (no caso da educação, a saúde, o trabalho, a
segurança, a previdência social e a proteção à infância).

Embora venham ganhando representatividade política ao longo


dos anos (no Brasil, graças à eleição de políticos como os deputados
Clodovil Hernandes e Jean Willys), os LGBT não têm garantias de
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

direitos fundamentais como a vida (foram 338 homicídios registrados


no Brasil em 20121, entre outros milhões na história principalmente
nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial); a liberdade
de expressão (o deputado Jean Willys, por exemplo, costuma expor
séries de agressões verbais sofridas por ele dentro da Câmara 2 ); a
igualdade perante a lei (o casamento homoafetivo ainda não é
permitido em diversos países 3 ); a educação e proteção à infância
(crianças homossexuais e transexuais sofrem bullying nas escolas 4); a
saúde (transexuais têm dificuldade para conseguir atendimento
específico às suas questões através do Sistema Único de Saúde5) e a
segurança (ainda em 2012, foram mais de 9 mil denúncias de casos de
violência6).

A luta por esses direitos ausentes teve um marco inicial. Em 28


de junho de 1969, a população LGBT que frequentava o bar “The
Stonewall In”, em Nova York, nos Estados Unidos, realizaram um ato
de resistência às ações arbitrárias da polícia em relação às batidas que
eram realizadas no espaço com frequência. O levante contra o abuso
de poder durou duas noites e, no ano seguinte, resultou na criação da
primeira Parada do Orgulho LGBT do mundo, em 1º de julho de 1970.

1 DÉCIMO, Tiago. Cresce o número de assassinatos de homossexuais em 2012.


Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,cresce-o-numero-de-
assassinatos-de-homossexuais-em-2012,982836>. Acesso em: 16 abr. 2018.
2 CATRACA LIVRE. Jean Wyllys sofre homofobia na Câmara e dá melhor resposta.

Disponível em: <https://catracalivre.com.br/cidadania/jean-wyllys-sofre-


homofobia-na-camara-e-da-melhor-resposta/>. Acesso em: 18 abr. 2018.
3 RUIC, Gabrila. Os países onde o casamento gay é legalizado em um mapa.

Disponível em: <https://exame.abril.com.br/mundo/os-paises-onde-o-casamento-


gay-e-legalizado-em-um-mapa/>. Acesso em: 18 abr. 2018.
4 TOKARNIA, Mariana. Mais de um terço de alunos LGBT sofreram agressão física

na escola, diz pesquisa. Disponível em:


<http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-11/mais-de-um-terco-
de-estudantes-lgbt-ja-foram-agredidos-fisicamente-diz>. Acesso em: 18 abr. 2018.
5 LEITE, Hellen. Receber cuidados médicos é desafio para transexuais. Disponível

em: <http://especiais.correiobraziliense.com.br/receber-cuidados-medicos-e-
desafio-para-transexuais>. Acesso em: 18 abr. 2018.
6 ONU BRASIL. Conselho de Direitos Humanos da ONU adota resolução pedindo

fim da homofobia. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/conselho-de-


direitos-humanos-da-onu-adota-resolucao-pedindo-fim-da-homofobia/>. Acesso
em: 18 abr. 2018.

223
Desde então, as paradas se tornaram comuns em diversos países, com
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

um número cada vez maior de adeptos.

Porém, as afirmações públicas de autoestima coletiva não são


um ponto final na marginalização histórica da população LGBT.
Segundo o relatório “Making Love a Crime: Criminalization of Same-
Sex Conduct in Sub-Saharan Africa” (2013), divulgado pela ONG
Amnesty International, a homossexualidade é considerada um ato
criminoso em 38 países da África. Em Uganda, por exemplo, a luta dos
ativistas é para que a punição para o crime não seja a pena de morte.
Caso semelhante acontece em países como Sudão do Sul, Burundi,
Nigéria, Libéria, Mauritânia e Somália. Na Rússia, o ativismo LGBT
foi tornado ilegal em 2013 e informações que validem a
homossexualidade como uma conduta aceitável passaram a ser
censuradas. Nesse contexto, uma imagem do presidente Vladimir
Putin maquiado foi incluída na lista de materiais extremistas do
Ministério da Justiça e, por conta disso, o seu compartilhamento
tornou-se ilegal a partir de abril de 20177. Neste ano, a Turquia proibiu
a realização da Parada do Orgulho LGBT e a reprimiu violentamente
através de seu aparato militar.

Como se já não bastasse, uma reportagem da revista


Superinteressante constatou, em novembro de 2016, que o Brasil
desperdiça 18,6 milhões de sangue LGBT por não aceitar doações do
grupo em seus hemocentros. A negativa é embasada por uma portaria
do Ministério da Saúde que proíbe a doação de sangue de homens que
fazem sexo com homens (HSH) e que tenham tido relações sexuais nos
12 meses que antecedem o ato da doação (BRASIL, 2016). A portaria,
apontada na entrevista como inconstitucional pela jurista Adriana
Galvão (presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Combate à
Homofobia da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo) e como
discriminatória por inúmeros grupos de ativistas, é mais um dos

7MARTÍNEZ, Hector. Rússia declara ilegal compartilhar esta imagem de Putin


maquiado. Disponível em:
<http://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/07/internacional/1491565697_732808.
html>. Acesso em: 20 abr. 2018.

224
motivos que provam a necessidade de mais representatividade LGBT
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

nos contextos social, político e midiático.

2 Representatividade na mídia

A mídia sempre teve um papel importante no que diz respeito


ao modo em que impacta na sociedade, seja por ditar padrões
considerados “ideais” e, portanto, devem ser seguidos, seja por exercer
um controle do que deve ser informado e de como deve ser anunciado.
Dessa forma, como destaca Fischer muito mais do que simplesmente
difundir, ela também é responsável na construção de discursos, a fim
de produzir significados, identidades e sujeitos:

[...] a mídia é um lugar privilegiado de criação, reforço e


circulação de sentidos, que operam na formação de
identidades individuais e sociais, bem como na produção
social de inclusões, exclusões e diferenças - temas
fundamentais hoje nos mais diversos campos das ciências
humanas (FISCHER, 2001, p. 586).

É possível perceber que diante das transformações sociais e


tecnológicas ocorridas nas últimas décadas, o foco não é mais para o
que é comunicado, mas sim para a forma em que se comunica e com o
seu respectivo significado para o indivíduo (ALEXANDRE, 2001).
Segundo o autor, a comunicação passa a ser entendida como um
procedimento que possibilita a troca de experiências e age
influenciando no inconsciente das pessoas, que por sua vez podem
afetar umas às outras. É nesse sentido que aquilo que a mídia veicula
traz uma sensação de verdade e, portanto, atua no processo de
construção das identidades dos sujeitos e possibilita a distinção do
“outro” (FELIPE, 2006; GRIJÓ E SOUSA, 2012).

Pode-se notar, contudo, que não é de responsabilidade da mídia


produzir estereótipos, mas sim reforçá-los ou até mesmo colocá-los
em confronto. Por esse viés, a sua atuação influencia diretamente na
reprodução e transformação das práticas, dos valores e, é claro, das

225
instituições (BIROLI, 2010, p. 46). Para isso, conta com o auxílio dos
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

meios de comunicação, que bombardeiam a sociedade com


informações, imagens e sons, cujo principal objetivo é, como constata
Alexandre (2001, p. 113), “criar, mudar ou cristalizar atitudes ou
opiniões nos indivíduos”.

Funcionando como ferramentas de mediação simbólica, os


meios de comunicação conseguem moldar as concepções que os
indivíduos e grupos têm de si mesmos, definindo aquilo que pode ser
considerado como socialmente relevante. Biroli (2010, p. 47) vai
perceber que isso se deve, sobretudo, porque a sociedade
contemporânea, ao trazer um papel centralizador para a mídia,
estimula a sobreposição entre relevância social e visibilidade. É nesse
sentido que as discussões ganham destaque e são repercutidas, em
maior ou menor escala, de acordo com a sua presença no ambiente
midiático e também pela sua integração às narrativas que se voltam
para a experiência social (BIROLI, 2010, p. 52).

A relação entre a indústria do consumo e a mídia tornou-se


essencial nos dias atuais, passando por constantes transformações na
medida em que a sociedade também se modifica. Desse modo, a
produção e disseminação das mensagens são condicionadas às ações
das indústrias midiáticas, onde as empresas de comunicação ganham
destaque por atuarem na formação do indivíduo moderno. Alexandre
(2001, p. 116) também vai notar a existência da correlação entre o
consumo e a publicidade, que acabam por exercer um papel de seduzir
e impor representações sociais, ainda que de modo subliminar.

Por representação, pode-se compreender como um conjunto


que engloba práticas significativas que podem ser desde a linguagem e
a cultura, até mesmo os sistemas simbólicos de modo que os
significados se constroem (FELIPE, 2006, p. 253). Nesse contexto, os
meios de comunicação aparecem como dispositivos essenciais para se
produzir uma nova coesão social, pois, como observa Alexandre (2001,
p. 116), eles são os responsáveis por fabricar, reproduzir e disseminar

226
as representações sociais, influenciando os grupos sociais na
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

compreensão de si mesmos e dos outros.

Uma estratégia que vem sendo utilizada frequentemente nos


espaços midiáticos é procurar definir os “diferentes” - quem e como
são - e, para isso, utiliza-se enunciados para estabelecer o que são e o
que não são (FISCHER, 2001, p. 590). É por isso que se torna relevante
compreender o papel das representações sociais no contexto das
mudanças sociais, uma vez que se origina um pensamento social
coletivo que, por sua vez, incide nos comportamentos e nos modos de
se comunicar.

Essas representações estão em constante mudança e renovação,


pois adequam-se aos interesses do mercado midiático. Assim, as
empresas passam a atentar-se para o comportamento do consumidor
e às tendências atuais, como forma de perceber a maneira em que irão
se posicionar, o que justifica o modo como se faz uso das
representações dos intitulados grupos minoritários na mídia.

No que diz respeito às mulheres, por exemplo, alguns estudos


preocupam-se em investigar a representação do feminino no ambiente
midiático (FISCHER, 2001; BIROLI, 2010) e, de maneira geral,
percebem a inclinação em reproduzir os estereótipos de gênero.
Fischer (2001) procura analisar como o discurso em torno da mulher
é construído na televisão brasileira, descrevendo como as formas de
feminilidade são reforçadas nos produtos televisivos, que parecem
acreditar em um “ideal de gênero”, definindo uma natureza feminina
perpétua e global. A autora constatou que existe um modo de construir
a mulher que permeia entre a sedução e a falta, produzindo, portanto,
formas particulares de subjetivação.

Biroli (2010), por outro lado, vai fazer uma análise sobre a
pequena presença das mulheres nas notícias de grandes revistas
brasileiras, constatando que além da existência dos estereótipos de
gênero, existe também um receio quanto a sua competência de atuação
na vida pública, o que reforça o posicionamento marginal que é
associado às mulheres na política. A visibilidade feminina se restringe

227
na figura de poucas mulheres e quase sempre tende a vinculá-las ao
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

ambiente doméstico e íntimo, à emotividade e ao corpo. Os homens,


por sua vez, possuem uma presença visivelmente maior, sendo
relacionados aos temas de maior destaque e tendo mais notoriedade
nas revistas. A autora percebe que a presença feminina nesses veículos
flutua entre a invisibilidade e uma representatividade marcada por
estereótipos, onde não existe somente uma seletividade temática, mas
também uma visibilidade seletiva.

Também é possível encontrar análises sobre a representação do


negro na mídia, como é feita no estudo de Grijó e Sousa (2012), que
procuram perceber como estes estão sendo representados nas
telenovelas brasileiras nos últimos anos. O formato das novelas
televisivas colabora na construção de identidades, que podem ser
apropriadas ou não pelo público, o que justifica a importância de seu
papel na sociedade. Apesar de ter alguns avanços no que diz respeito à
participação de personagens negros nas narrativas, os autores
verificaram uma representatividade ainda limitada pautada em
estereótipos. De modo geral, o personagem negro aparece muitas
vezes como um ser passivo e submisso da elite branca, além de
continuar exercendo papéis de pequeno destaque, cuja presença da
etnia no elenco é ainda muito baixa. É evidente, então, que ainda existe
um racismo midiático, mas que é velado, embora se tenha tido alguns
avanços.

Este trabalho, por sua vez, traz como objetivo observar a


representação dos LGBTs no meio midiático que, juntamente com
outros movimentos sociais - como o movimento negro e o feminista -
está mudando os discursos e ganhando força, ainda que de forma
gradativa. Isso justifica, por exemplo, o aumento do número de marcas
apoiando as causas, o que, de certa forma, torna o cenário mais
representativo, por mais que os interesses sejam, em sua maioria,
mercadológicos.

3 Posicionamento de marca em prol das minorias

228
A pós-modernidade trouxe consigo o papel fundamental da
campanhas love wins e pride do facebook
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

subjetividade como instrumento para a construção da identidade, o


que significa dizer que o sujeito se constrói por meio das afinidades
que surgem em torno de si. No contexto da sociedade de consumo, esse
processo de construção ocorre na obtenção de bens em decorrência do
seu valor simbólico, não dando importância para sua utilidade
propriamente dita. À vista disso, o marketing utiliza uma de suas
principais ferramentas - a publicidade - para buscar representar e
satisfazer os anseios dos consumidores, mas as mudanças que têm
ocorrido na sociedade nos últimos anos exigem que ocorra uma
reestruturação de suas estratégias.

Em “Marketing 3.0” (2012), Kotler relata sobre essa mudança


da forma como os clientes da atualidade escolhem os produtos e
empresas de acordo com critérios que melhor satisfaçam as suas
necessidades. Segundo o autor, as empresas líderes de mercado, por
sua vez, percebem a importância de atrair esses consumidores mais
conscientes e com fácil acesso à tecnologia, por isso, entendem a
necessidade de abrir mão das antigas regras do marketing, ao passo
que buscam se adaptar a esse novo contexto.

Os intitulados grupos minoritários têm ganhado destaque nos


últimos anos e isso não se deve somente pelo crescimento da
militância, como também por se mostrarem para o mercado como um
nicho em potencial e que ainda não foi amplamente explorado. É claro
que as marcas, inicialmente, possuem certa hesitação em defender um
determinado posicionamento, mas, por outro lado, é uma
oportunidade para adquirir novos clientes através da utilização de um
discurso pautado na representatividade. Isso é o que alguns estudiosos
da área do marketing vêm chamando de “marketing para minorias8”.

As relações de consumo deste atual contexto são intermediadas


pela internet, que se revela como uma importante ferramenta para dar
visibilidade ao que se quer difundir. O mundo virtual tem se mostrado

8 MELO, Aline. Marketing para minorias: entre logo nessa jogada. Disponível em:
<http://www.digai.com.br/2016/08/marketing-para-minorias-entre-logo-nessa-
jogada>. Acesso em: 26 jun. 2017.

229
como um ambiente propício para aumentar a força dos movimentos
campanhas love wins e pride do facebook
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

sociais, uma vez que possibilita a aproximação do público com as


causas e permite que a informação seja disseminada com um amplo
alcance. Por isso, as marcas precisam ser cautelosas com as formas de
representação que procuram adotar, pois o meio midiático, como
demonstra Silva (2016, p. 28), “ao apropriar-se de determinados
significados partilhados, [...] apresenta-se como produção discursiva
que dá sentido a marcas e produtos”, revelando como “a linguagem
persuasiva é o princípio que une anunciante e consumidor sob
determinado valor simbólico atribuído ao produto, e partilhado
socialmente a partir da recepção [...] e do consumo” (IRIBURE, 2008,
p. 137 apud SILVA, 2016, p. 28).

Um grupo minoritário em ascensão nas duas últimas décadas é


o LGBT, seja pelo aumento da presença na mídia, seja pela
representatividade política - ainda que escassa – ou até mesmo pelo
avanço nas conquistas de direitos, que aos poucos têm sido
reconhecidos. O movimento tem se fortalecido e ganhado notoriedade,
fazendo uso de ambientes independentes, como a internet, para
mobilizar e conscientizar a população em prol de suas reivindicações.
Nos dias atuais, por exemplo, já se torna mais comum ouvir termos
como “nome social” ou “heteronormatividade” (SERRA, s.d.),
indicando que a discussão tem repercutido na sociedade, seja para
trazer conhecimento, seja para estimular a reflexão.

O avanço dos movimentos sociais, por sua vez, também causa


impacto no que diz respeito ao comportamento do consumidor,
exigindo que o mercado dedique sua atenção para esses nichos. Ainda
que o interesse econômico seja prioridade das marcas, isso não
descarta a importância que estas exercem ao adotar um
posicionamento favorável às causas, o que possibilita uma maior
aceitação dos grupos de minorias no mercado. Por mais que se tenha
um senso de oportunismo quando as marcas adotam certas posturas,
isso não exclui a importância de valor existente ao abordar essas

230
questões para o grande público, ainda que sua reação não seja
campanhas love wins e pride do facebook
João Paulo Saconi | Leonardo Botelho Dória
Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

totalmente favorável.

Apesar do aparente risco que as empresas estão expostas


quando mudam o seu posicionamento em prol de uma causa, é
improvável que isso represente, de fato, um grande risco no que tange
à reação do público consumidor. É preciso atentar-se que, antes de
tomar uma decisão sobre que postura adotar em relação a um dado
grupo, a marca faz um estudo detalhado a respeito do comportamento
de seu consumidor, encontrando dados precisos e complexos do seu
público-alvo, o que permite prever e se precaver dos potenciais riscos,
já pensando em soluções alternativas em caso de algum imprevisto:

Todas as grandes empresas têm o domínio de suas


variáveis demográficas (como faixa etária e renda) e
psicográficas (como visões de mundo e estilos de vida).
Estas informações são capazes de montar uma análise
muito clara sobre quem são os seus clientes. Se a empresa
é capaz de entender com quem ela fala, ela sabe quais
causas ela deve defender para se manter popular e ganhar
mais mercado (VELLOSO, 2015, online).

Por maior que seja a polêmica em torno das ações das empresas,
na maioria das vezes, o resultado costuma ser positivo, o que se deve
exatamente aos estudos prévios que foram realizados. Além da
conquista da fidelidade do público-alvo, que passa a enxergar a marca
como uma entidade inclusiva - por apoiar a causa - conquista-se
também um novo nicho de mercado. O público LGBT é o que melhor
representa essa situação, pois, além de ser um dos mais rentáveis
nichos de mercado a ser explorado, costuma sempre reagir toda vez
que surge uma polêmica em torno de sua causa. Dentre as ações
recorrentes pode-se destacar as reversões de boicotes, promoções
gratuitas de marcas que apoiam a causa, incentivo ao boicote das que
se posicionam contrárias ao movimento e assim por diante. O
resultado final disso é que, sem precisar agir diretamente, as marcas
ganham destaque midiático e, principalmente, nas redes sociais por
conta de uma polêmica, tornando-se um dos assuntos mais
comentados por certo período de tempo.

231
As mudanças nas relações de consumo são notórias e por isso,
campanhas love wins e pride do facebook
João Paulo Saconi | Leonardo Botelho Dória
Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

atualmente, aquele consumidor que tece críticas ou opiniões possui


voz ativa. Diante da facilidade de acesso à informação e com a forte
presença das redes sociais, os consumidores estabelecem conexões
com inúmeros outros e, portanto, ganham força para serem ouvidos.
Dessa forma, as marcas devem agir com cuidado no que diz respeito
ao modo como lidam com este público, pois um deslize mínimo pode
causar grandes prejuízos, do mesmo modo que um pequeno acerto é
capaz de conquistar o público e, consequentemente, ganhar destaque
na rede.

4 Metodologia

Escolhemos como objeto as campanhas realizadas em junho


pelo Facebook nos anos de 2015 e 2017, ambas em referência ao mês
do orgulho LGBT. Buscamos publicações virtuais que tivessem
noticiado as iniciativas antes e depois delas acontecerem e
procuramos, a partir delas, encontrar o posicionamento da marca ao
divulgar as ações previamente e ao fazer, posteriormente, um balanço
sobre elas.

Destacamos também quais foram as principais repercussões


das campanhas – quais instituições públicas e privadas aderiram a
elas, bem como as principais personalidades com influência midiática
que o fizeram – e, através da revisão de literatura, buscamos
compreender de que maneira estes desdobramentos contribuíram ou
não para a representatividade do grupo minoritário em questão.

Através de mecanismos de pesquisa virtual 9 , buscamos


publicações referentes aos períodos de 26 de junho a 16 de julho de
2015 e de 6 a 26 de junho de 2017, intervalos de vinte dias a partir do
lançamento das duas campanhas. Elencamos os principais resultados
e, entre eles, destacamos os conteúdos mais relevantes para a
discussão sobre a representatividade.

9 Google e ferramenta de busca do Facebook.

232
Especificamente sobre o objeto, analisamos duas campanhas
campanhas love wins e pride do facebook
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

diferentes:

1) Em junho de 2015, o Facebook escolheu a aprovação do


casamento homoafetivo pela Suprema Corte dos Estados Unidos como
razão para lançar a campanha “Love Wins” (“Amor vence”)10. A rede
social disponibilizou uma ferramenta especial para que os usuários
alterassem suas fotos de perfil aplicando sobre ela um filtro com as
cores do arco-íris, em referência à vitória jurídica recém-conquistada
pela comunidade LGBT. Apesar de se tratar de uma decisão referente
aos cidadãos norte-americanos (que até então obedeciam às leis
estaduais quanto ao casamento), a campanha ganhou adeptos no
mundo todo, inclusive no Brasil. Ela foi projetada por dois estagiários
do Facebook e, por ter feito sucesso internamente, foi liberada para
acesso de toda a rede. Para compreender de maneira mais atenta a
dimensão da repercussão através dos perfis de personalidades
notáveis, listamos os números de reações e compartilhamentos que as
fotos em referência à campanha “Love Wins” obtiveram desde o
lançamento, em 2015, até a realização deste artigo.

2) Em junho de 2017, o Facebook anunciou uma nova


campanha voltada ao público LGBT. Desta vez, a empresa criou uma
reação chamada Pride (“Orgulho”) 11 , simbolizada pela bandeira do
arco-íris, e a incluiu temporariamente ao lado das outras já existentes
(como o tradicional curtir; o amor; o riso; a surpresa; a tristeza e a
raiva). Os usuários puderam, então, reagir às publicações das redes
sociais com essa nova ferramenta. O artifício já tinha feito sucesso em
outras ocasiões: a rede social lançou a reação chamada Gratidão em
referência ao Dia das Mães (2016 e 2017) e ainda personalizou todas

10 COSSETI, Melissa. Filtro do Arco-íris: 26 milhões de pessoas 'coloriram fotos' no


Facebook. Disponível em:
<http://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2015/06/filtro-do-arco-iris-26-
milhoes-de-pessoas-coloriram-fotos-no-facebook.html>. Acesso em: 20 abr. 2018.
11 LGBTQ@Facebook. “We believe in building a platform that supports all

communities. So we’re celebrating love and diversity this Pride by giving you a
special reaction to use during Pride Month. To access the Pride reaction, like this
page.”. 9 jun. 2017. Post do Facebook. Disponível em:
<https://www.facebook.com/LGBTQ/photos/a.559035344122874.147187.545385
972154478/1875150119178050/?type=3&theater>. Acesso em: 20 abr. 2018.

233
as já existentes com elementos referentes ao Halloween (2016), ambas
campanhas love wins e pride do facebook
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

foram muito bem recebidas pelo público.

5 Análise da pesquisa

O balanço da campanha de 2015, analisado através da


repercussão no noticiário virtual, é bastante positivo. O Facebook
divulgou naquele ano que 26 milhões de usuários foram mobilizados
através da campanha “Love Wins” e alteraram as fotos de perfil
incluindo o filtro com as cores do arco-íris. A partir disso, foram
geradas cerca de 565 milhões de interações, entre reações,
comentários e compartilhamentos.

Além dos números expressivos, também chamam atenção as


adesões por parte de instituições relevantes. No Brasil, as páginas
institucionais do Palácio do Planalto, Ministério da Educação e dos
Jogos Olímpicos do Rio 2016 adequaram os logotipos para as cores da
campanha. Veículos de comunicação seguiram o mesmo caminho,
entre eles as páginas dos portais iG, Terra, Uol e Catraca Livre; dos
jornais Correio Braziliense, Le Monde Brasil, O Povo, Tribuna do
Ceará; das revistas Época Negócios, Superinteressante, Trip, Galileu,
Você S/A, Billboard Brasil e dos canais de televisão Esporte Interativo,
Sportv, Espn, EBC e TV Brasil. Nos Estados Unidos, a adesão
institucional mais expressiva foi da página oficial da Casa Branca.

Personalidades de expressão nacional e internacional também


aderiram à campanha em 201512. No Brasil, a então presidente Dilma
Rousseff aderiu à campanha. A classe artística também participou em
massa 13 , a exemplo dos cantores Chico Buarque, Caetano Veloso,
Milton Nascimento, Alceu Valença, Daniela Mercury, Maria Rita, Ana

12 CARTA CAPITAL. Empresas, governos e artistas mudam foto no Facebook pelo


casamento gay. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/politica/empresas-governos-e-artistas-mudam-
foto-no-facebook-pelo-casamento-gay-9888.html>. Acesso em: 20 abr. 2018.
13 UOL. Famosos celebram casamento gay nos EUA com bandeira LGBT no

Facebook. Disponível em:


<http://celebridades.uol.com.br/album/2015/06/26/famosos-celebram-
casamento-gay-nos-eua-com-bandeira-lgbt-no-facebook.htm#fotoNav=1>. Acesso
em: 20 abr. 2017.

234
Carolina, Rita Lee, Valesca Popozuda e Wanessa Camargo; dos atores
campanhas love wins e pride do facebook
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

Cauã Reymond, Mateus Solano, Julia Lemmertz, Miguel Falabella,


Fernanda Paes Leme e Leandra Leal e dos apresentadores Xuxa,
Marcelo Tas (que é pai de uma criança transexual) e Sabrina Sato. Nos
Estados Unidos, destacaram-se as adesões dos atores Leonardo
DiCaprio e Arnold Schwarzenneger e da cantora Demi Lovato.

Fundador do Facebook, o programador Mark Zuckerberg


inaugurou a publicação dos filtros transformando a sua própria foto
de perfil numa mensagem de apoio à comunidade LGBT. Na página,
ele incluiu o seguinte texto 14 : “[...] O Facebook é um orgulhoso
apoiador da causa LGBT, e os funcionários de vários países participam
de eventos e decoram os nossos escritórios para mostrar apoio”. A
fotografia 15 angariou cerca de 580 mil reações e foi compartilhada
mais de 20 mil vezes.

Abaixo, seguem os números de reações e compartilhamentos


gerados através dos perfis de algumas das personalidades engajadas
na campanha de 2015:

Quadro 1: Quantidade de reações e compartilhamentos na foto de perfil de alguns


famosos que aderiram à campanha Pride em 2015

Personalidade Reações Compartilhamentos


Leonardo DiCaprio 1,1 milhão 17,1 mil
Mateus Solano 299 mil 2,2 mil
Arnold Schwarzenegger 295 mil 11,8 mil
Dilma Rousseff 265 mil 11,6 mil
Luiz Inácio Lula da Silva 129 mil 4,7 mil
Cauã Reymond 114 mil 1,6 mil
Rita Lee 113 mil 1,3 mil
Alceu Valença 58 mil 609

14 No original: “Facebook is a proud supporter of Pride, and employees in many


countries are taking part in events and decorating our offices to show support.”
15 Disponível em:
<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10102203860243201&set=a.743613
136151.2308566.4&type=3&theater>. Acesso em: 16 abr. 2018.

235
Maria Rita 112 mil 780
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

Wanessa Camargo 77 mil 340


Ana Carolina 60 mil 631
Milton Nascimento 35 mil 681
Valesca Popozuda 30 mil 302
Daniela Mercury 6,2 mil 79
Leandra Leal 6,2 mil 127
Fonte: Elaboração própria com base nos dados encontrados no Facebook
em abr. 2018.

Não foram encontrados dados referentes à campanha de 2017,


mas é fácil perceber que a reação Pride criou um ambiente virtual mais
representativo para a comunidade LGBT ao passo que seus membros
puderam reagir às publicações relativas a eles utilizando uma maneira
de expressão bastante particular. Esse ganho é ainda maior por
acontecer exatamente no mês em que se comemora o orgulho LGBT e
a classe ganha destaque nos principais noticiários através dos eventos
que promove (como as Paradas LGBT de Nova York, São Francisco,
Boston e São Paulo — algumas das mais famosas) e das demonstrações
públicas de satisfação por fazerem parte do grupo minoritário.

As manchetes sobre a Parada LGBT de São Paulo, realizada na


Avenida Paulista, foram agraciadas pelo público com a nova reação
criada pela campanha. Na publicação da página do jornal “O Estado
de São Paulo”, com a manchete “Parada do Orgulho LGBT adota tom
político”, a reação Pride foi utilizada 308 vezes em meio a 1,5 mil
reações. Na “Folha de São Paulo”, com o título “Parada LGBT de São
Paulo terá protesto contra interferência religiosa”, a reação Pride foi
utilizada 1,1 mil vezes em meio a 3,6 mil reações. No “O Globo”, com a
notícia “Com 19 trios elétricos, Parada LGBT reúne multidão na
Avenida Paulista”, a reação Pride foi utilizada 503 vezes em meio a 1,8
mil reações. Nos três casos, a reação Pride foi a mais utilizada pelos
usuários depois da tradicional curtida.

Além disso, a nova ferramenta serviu também para que os


LGBT pudessem responder aos ataques diários de violência que

236
sofrem através da internet. A página oficial do deputado federal Jair
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

Messias Bolsonaro (eleito pelo Partido Social Cristão do Rio de


Janeiro) tem sido, ao longo dos anos, um espaço dedicado pelo seu
autor a publicações que questionam os direitos de tal minoria e
relativizam os episódios de discriminação por ela sofrida. Em resposta
à contínua provocação, a comunidade LGBT organizou reações em
massa à foto de perfil do parlamentar. Entre as 139 mil reações
registradas pelo Facebook em sua foto, 36 mil são da reação Pride com
a bandeira do arco-íris. Fora a tradicional curtida, trata-se da principal
reação registrada, ainda que Bolsonaro seja amparado por uma legião
de mais de 4 milhões de seguidores provavelmente alinhados com sua
forma de pensar.

6 Considerações finais

Com base nos dados reunidos, apresentados e analisados, é


possível traçar três pensamentos acerca das campanhas realizadas
pelo Facebook em prol da comunidade LGBT em 2015 e 2017.

A primeira delas é a de que a contribuição da rede social para o


aumento da representatividade deste grupo social é inegável, uma vez
que se trata de uma notória concessão de espaço em meio a uma rede
social que recentemente passou a integrar o número recordista de 2
bilhões de usuários no mundo todo. Trata-se de um ambiente propício
para fomentar a representatividade de grupos minoritários como o
supracitado.

A segunda é a de que não só o Facebook contribuiu diretamente


para as noções de representatividade como o fez de maneira indireta:
estabeleceu práticas que puderam ser seguidas por perfis e páginas
que exercem grande influência sobre o público e, portanto,
reproduziram multiplamente a ideia de mobilização em prol da causa
LGBT.

A terceira e última é de que o aumento da representatividade


deste grupo na rede social mais utilizada do mundo não

237
necessariamente significa uma mudança aprofundada na conquista de
campanhas love wins e pride do facebook
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

direitos civis, sociais e políticos. Como já demonstrado, a população


LGBT ainda batalha para conquistar direitos fundamentais e, mesmo
que possa ser melhor representada através de iniciativas como as que
elegemos para serem objeto deste artigo, elas não são sinônimo de
completa superação da marginalização e da discriminação
historicamente sofrida pela minoria. Pelo contrário, são pequenas –
ainda que muito significativas – quando comparadas ao caminho que
precisa ser percorrido adiante.

 Retorne ao sumário

Referências

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representações sociais. Comum, v. 6, n° 17, p. 111 - 125, 2001.

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Criminalization of Same-Sex Conduct in Sub-Saharan Africa.
Londres: 2013.

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de gênero e competência política. Revista Crítica de Ciências
Sociais, v. 90, p. 45 - 69, 2010.

BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n°


158, de 4 de fevereiro de 2016. Redefine o regulamento técnico de
procedimentos hemoterápicos. Diário Oficial da União, Brasília,
DF, 5 fev. 2016, Seção 1, p. 37.

FELIPE, Jane. Representações de gênero, sexualidade e


corpo na mídia. Revista Tecnologia e Sociedade, v. 3, n° 2, p. 251
- 263, 2006.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Mídia e educação da mulher:


uma discussão teórica sobre modos de enunciar o feminino na TV.
Estudos Feministas, ano 9, p. 586 - 599, 2001.

GRIJÓ, Wesley Pereira; SOUSA, Adam Henrique Freire. O negro


na telenovela brasileira: a atualidade das representações.
Estudos em Comunicação, n° 11, p. 185 - 204, 2012.

238
KOTLER, Philip. Marketing 3.0: as forças que estão definindo o
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Os ganhos para a representatividade LGBT a partir das

novo marketing centrado no ser humano. Rio de Janeiro: Elsevier,


2012.

SERRA, Ana Bárbara. Efeito Boticário: repercussão


transmidiática e minorias como posicionamento de marca. [s.l.,
s.d.] Disponível em:
<http://cursos.unipampa.edu.br/cursos/cultura/files/2016/09/a
na.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2018.

SILVA, Leonardo Duarte da. Os casais de O Boticário e o que


o público achou deles: publicidade, representação e consumo
como arena de ativismo. 2016. Monografia (Graduação em
Comunicação Social/Publicidade e Propaganda) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Escola de Comunicação – ECO,
Rio de Janeiro, 2016.

VELLOSO, Felipe. Oportunidade ou apoio? As empresas e as


suas relações com minorias. 2015. Disponível em:
<https://www.tudocelular.com/android/noticias/n57673/Facebo
ok-Apple-Gay-LGBT-Google.html>. Acesso em: 16 abr. 2018.

239
1 Contexto sócio-histórico

Setembro de 2017. Por seis votos contra cinco, os


ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram pela
permissão do ensino religioso confessional nas escolas públicas
brasileiras1. De acordo com a Constituição e a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB), o ensino religioso nas escolas
públicas não pode ser obrigatório para os alunos e a instituição
deve assegurar o respeito à diversidade de credos e coibir o
proselitismo, ou seja, a tentativa de impor um dogma ou
converter alguém. O pedido da Procuradoria-Geral da República
(PGR) para o STF consistia em declarar a neutralidade desse
ensino, com base no princípio da laicidade do Estado, ou seja,
que o modelo deste ensino não fosse confessional. O pedido
negado abre a possibilidade de uma determinada fé ser ensinada,
como a católica ou a evangélica, por exemplo, com aulas

1 “STFdecide que escolas públicas podem ter ensino confessional”. Notícia


completa disponível em:
<https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/stf-decide-que-escolas-
publicas-podem-ter-ensino-confessional-21878145> Acesso em 22 out. 2017.
ministradas por representantes destas crenças, e não por
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

professores.

A aprovação do modelo confessional do ensino religioso


nas escolas públicas se insere e reforça o atual contexto de
progressão do conservadorismo na sociedade brasileira. Além da
decisão que fere a laicidade do Estado, pesa o fato de que a
maioria dos ministros se posicionou ponderando que a religião
tem um papel importante na sociedade e evocando, inclusive, seu
papel na “formação cidadã”. Frente a esse quadro, a professora
Amanda Mendonça, coordenadora do Observatório da Laicidade
na Educação (OLE) da UFRJ, atenta sobre um ponto muito
importante que sequer foi mencionado nas falas dos ministros: a
única disciplina hoje cuja oferta é obrigatória pelo Estado
segundo a Constituição brasileira é a de ensino religioso. Nem
mesmo disciplinas como a matemática, a biologia, a física ou a
química são mencionadas, mas o ensino religioso permanece
obrigatório e segue nesta condição sem ser discutido ou
questionado. Para a professora, “O Brasil é um Estado laico no
discurso, mas não na prática”2.

A decisão do STF não está isolada em meio ao contexto de


retrocessos relacionados a diversas pautas, que abriram margem
para o avanço do campo religioso sobre a educação e a política. O
desenvolvimento da agenda conservadora abre espaço para o
surgimento de movimentos como o “Escola sem Partido 3 ”,
discussões sobre “ideologia de gênero”, que culminam em ações
como a retirada do termo “gênero” dos planos nacional, estaduais
e municipais de educação 4 . Envoltas por desinformação e

2 Entrevista disponível em: <http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-


brasil-e-um-estado-laico-no-discurso-mas-nao-na-pratica-diz-pesquisadora-
sobre-o-ensino-religioso/>. Acesso em 22 out. 2017.
3 O movimento da “escola sem partido” nasceu em 2004 e propõe por meio de

projetos de lei apresentados por deputados e vereadores simpatizantes que a


prática de “doutrinação política e ideológica” e a veiculação de conteúdos ou a
realização de atividades que possam estar em “conflito com as convicções
religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes” sejam
proibidas nas escolas.
4 Notícia disponível em:

241
polêmica, as discussões acaloradas no Congresso acabaram
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

suprimindo toda e qualquer menção à palavra “gênero” do texto


dos documentos oficiais de grande parte dos Estados e
municípios. Devido à pressão de grupos religiosos, a inserção de
discussões sobre sexualidade e diversidade de orientação sexual
e identidade de gênero ficou fora do planejamento oficial do
currículo das escolas por, pelo menos, os próximos 10 anos.
Frente a esse quadro, cabe lembrar Foucault (2011, p. 44) quando
afirma que “Todo sistema de educação é uma maneira política de
manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os
saberes e os poderes que eles trazem consigo”.

Na esteira desses acontecimentos, ainda em setembro de


2017, uma polêmica decisão liminar do juiz da 14ª Vara Federal
no Distrito Federal, Waldemar Cláudio de Carvalho, autorizou
que psicólogas e psicólogos promovessem estudos ou
atendimentos de forma reservada no que se refere à reorientação
sexual. Essa decisão abre brechas para a aplicação de terapia de
reversão sexual, conhecida como “cura gay” 5 , tratamento
proibido pelo Conselho Federal de Psicologia desde 1999. A ação
foi proposta por Rozangela Alves Justino, psicóloga evangélica
que teve seu registro profissional cassado em 2009 por oferecer
pseudoterapias para “curar” a homossexualidade.

Esse cenário nos dá pistas acerca dos sentidos


encontrados nos 486 comentários que se alicerçaram em
questões religiosas que serão analisados neste artigo, oriundo do
estudo que realizei em minha tese de doutorado 6. A associação
entre a temática de gênero e a religiosidade foi recorrente na

http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2015/06/1647528-por-pressao-
planos-de-educacao-de-8-estados-excluem-ideologia-de-genero.shtml.
Acesso em setembro de 2016.
5 “Juiz libera cura gay por psicólogos”. Reportagem completa em:

<http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/juiz-concede-liminar-
que-permite-aplicacao-de-cura-gay-por-psicologos/>. Acesso em 22 out
2017.
6 Tese intitulada “Jornalismo e gênero: produção e disputa de sentidos no

discurso dos leitores”, defendida no PPGCOM/UFRGS em março de 2018.

242
argumentação dos leitores, que evocaram sentidos ligados a
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

religião tanto para interditar os novos mapas de significado


apresentados pelo jornalismo, como para argumentar a favor
destas novas verdades colocadas em pauta. A religiosidade foi o
sentido que apareceu de forma mais numerosa em todo o corpus,
no qual também identifiquei sentidos ligados a razões biológicas,
menções ao preconceito, ao papel do jornalismo, a uma
abordagem classificada como ideológica, cientificista e, ainda,
sentidos afeitos a empatia. Os comentários foram coletados de
sete diferentes reportagens no período entre 2015 e 2017,
diretamente das fanpages da revista Galileu, Fantástico, Folha de
S. Paulo e Globo Repórter no site de rede social Facebook. Após
a coleta, o material foi analisado e classificado em núcleos de
sentido. O objetivo deste estudo é compreender e problematizar
os sentidos de religiosidades manifestados pelos leitores em
relação aos novos mapas de significado a respeito de gênero
colocados em circulação pela mídia. Para isso, 486 comentários
de leitores serão analisados com base nos pressupostos da
Análise de Discurso de linha francesa (AD) e uma atitude teórico-
metodológica inspirada na análise enunciativa de Foucault
(1969).

2 Discursos, sujeitos e sentidos

Numa perspectiva foucaultiana, aquilo que se diz numa


sociedade é aquilo que pode e deve ser dito, porque estão dadas
as condições para o seu aparecimento e irrupção. Quando o
enunciado parte do Judiciário, uma das instâncias de poder da
nossa organização social, algumas "verdades" repetidas e
reiteradas sobre religiosidade e gênero foram sedimentadas e
naturalizadas nas decisões tomadas pelo STF e pelo Congresso
nos casos elencados na abertura deste texto. Essas palavras
trouxeram à tona uma série de já ditos em outros tempos, por
outras vozes, em outros enunciados do campo jurídico e também

243
de outros campos de conhecimento. Porém, uma nova
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

positividade não permite que esses enunciados sigam sem causar


desconforto. Parece não haver mais o mesmo espaço para a sua
livre circulação e sedimentação na nova ordem do discurso
(FOUCAULT, 2011).

Nesse prisma, a abordagem de temáticas ligadas à


identidade de gênero em veículos de grande audiência e
circulação e o engajamento dos leitores em relação a essas pautas
acontece nesse momento histórico porque estavam dadas as
possibilidades de aparição e circulação. Há um cenário e um
contexto histórico social que possibilitam que esse e outros
enunciados relacionados encontrem condições para irromper.
Analisando as redes de relações entre o discurso e outros
domínios (acontecimentos políticos, práticas e processos
econômicos, instituições), Foucault assume as brechas e as
descontinuidades históricas, buscando o emaranhado de fatos
discursivos anteriores a um acontecimento, acreditando que
estes o explicam. Assim, “uma época” pode ser entendida como
“um emaranhado de continuidades e descontinuidades, de
formações discursivas que aparecem e desaparecem”
(GREGOLIN, 2004, p. 77). Nessa perspectiva, considero o
momento histórico que vivemos no país desde 2015 como
fundamental para a compreensão dessa nova positividade que
está se construindo em relação à identidade de gênero e aos
papeis históricos ocupados por homens e mulheres na sociedade.

Como instituição social e produtor de relatos do tempo


presente, o jornalismo procura acompanhar as transformações
da sociedade e os debates públicos que se estabelecem sobre
temas controversos (FRANCISCATO, 2005). As questões ligadas
aos papéis de gênero ainda se inserem no campo dos dissensos
sociais, pois envolvem valores, crenças e hábitos naturalizados e
construídos culturalmente. Assim, as discussões que envolvem
essas temáticas chamam a atenção da sociedade e,

244
consequentemente, da agenda do jornalismo. Tendo em vista que
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

o jornalismo como discurso só existe entre sujeitos e que a


interpretação daquilo que é noticiado só ocorre na relação com
os leitores, esse artigo se justifica pela centralidade que a relação
texto-leitor adquire nos novos espaços de interação
proporcionados pelo jornalismo em rede (HEINRICH, 2011) e na
massiva apropriação que os leitores vêm fazendo destes espaços.

A temática da identidade de gênero e da transexualidade


me parece especialmente fértil para observar os sentidos em
disputa, por se tratar de um conjunto de novas verdades ainda
muito distantes do senso comum. Ao narrar sujeitos que rompem
com certezas sedimentadas a respeito da suposta coerência sexo-
gênero-sexualidade, o jornalismo precisa trazer à tona novos
mapas de significado desconhecidos por grande parte da
audiência. É no espaço de interação desprestigiado e temido dos
comentários (somos alertados constantemente a não ler os
comentários das notícias) que nos defrontamos com as
complexas relações que as coisas ditas estabelecem entre os
sujeitos, a verdade e o poder. Me parece que é nesse espaço que
muitos discursos ganham materialidade e podemos observar de
perto algumas verdades sedimentadas, emoções e preconceitos
que encontram um espaço confortável e seguro para irromper. A
tarefa de observar esses micro documentos e esse ambiente
discursivo mais de perto pode fornecer pistas importantes para
que o jornalismo se instrumentalize no sentido de cumprir seu
compromisso na construção da cidadania.

3 Gênero para além dos corpos

Dentre os diversos espaços onde seria possível observar a


instituição e distinção das desigualdades a partir das relações de
gênero, Louro (2003) aponta a linguagem como o campo mais
eficaz e persistente, principalmente devido ao seu caráter de
suposta naturalidade: “a linguagem não apenas expressa

245
relações, poderes, lugares, ela os institui; ela não apenas veicula,
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

mas produz e pretende fixar diferenças” (LOURO, 2003, p. 65).


Para a autora, perceber aquilo que é considerado “normal” ou
“anormal” em uma sociedade é um bom caminho para
compreender como essas relações se estabelecem: “Para que se
compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa
sociedade importa observar não exatamente seus sexos, mas sim
tudo o que socialmente se construiu sobre os sexos” (LOURO,
2003, p.21).

Nessa mesma direção, Veiga da Silva (2014, p. 94)


relembra ainda que é pela linguagem que podemos perceber “a
normatização do masculino como a forma genérica para se referir
a homens e mulheres”, além de ser o primeiro modo de instituir
significados aos gêneros e demarcar os lugares de homens e
mulheres na sociedade, valorando e posicionando os sujeitos nas
hierarquias sociais. Dito de outro modo, pode-se afirmar que a
linguagem usada no cotidiano não serve apenas para transmitir
e expressar relações de poder, mas também auxilia e colabora em
sua produção e instituição. Como já dito, importa compreender
o poder não como uma entidade estável garantida por um polo,
mas sim como uma rede de relações em atividade constante. Ele
é exercido pelos sujeitos e tem efeitos sobre suas ações.

Observar as relações que o jornalismo estabelece com os


seus leitores e a produção de sentidos que daí decorre sob o
prisma de gênero através da crítica feminista à ciência, significa
também perceber que, nessa conformação, “gênero” estrutura-se
como categoria de pensamento e, por isso, também de
construção de conhecimento (FLAX, 1990). As categorias de
gênero estão implícitas na construção das noções de sujeito,
racionalidade, objetividade (SARDENBERG, 2002), são
elemento central na constituição do self e podem ser
compreendidas como princípio classificatório de organização do
universo, sendo cruciais para analisar o impacto das ideologias

246
na estruturação do mundo social e intelectual (HEILBORN,
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

1991).

Dessa forma, os “efeitos de gênero” podem ser percebidos


no e sobre o conhecimento, não estando restritos à relação com
o corpo biológico ou com o sexo. Louro (2003) já alertava para a
instituição e demarcação dos “lugares de gênero” nas coisas do
mundo, e não apenas nos corpos dos indivíduos, afirmando que
as diferentes instituições e práticas sociais têm gênero, classe e
raça. Para ela, essas instituições e práticas fabricam os sujeitos
ao mesmo tempo que são elas próprias produzidas e marcadas
por representações de gênero, sexuais, de classe e etnia. Na
mesma direção, Alinne Bonetti (2011) sublinha que o gênero vai
perpassar e marcar as mais diversas ações sociais, além de
abarcar e dotar de sentido toda a organização da vida em
sociedade. Conforme a antropóloga, o gênero atravessa o
contexto, a agência e as práticas de poder. Sua centralidade
decorre porque gênero “é, ele próprio, um sistema de prestígio –
um sistema de discursos e práticas que constroem
masculinidades e feminilidades não somente em termos de
papéis diferenciais e significados, mas também em termos de
valor diferencial, prestígio diferencial” (ORTNER, 1996, p.143).

Nesse prisma, este estudo apoia-se na perspectiva teórica


dos Estudos Feministas pós-estruturalistas, sendo gênero
compreendido como “um elemento constitutivo das relações
sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” e
“a forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT,
1995, p. 21). Nessa perspectiva, considera-se que a sociedade
como um todo – suas leis, normas, instituições, políticas etc. – é
atravessada e implicada com a produção, manutenção e
ressignificação dos pressupostos de masculino e feminino.
Assim, as hierarquias e desigualdades são produzidas pelas
relações de gênero e os modos como as convenções sociais sobre

247
o masculino e o feminino se estabelecem numa dada sociedade
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

em um determinado momento histórico.

4 Jornalismo, gênero e os sentidos de religiosidades nos


comentários dos leitores

A nova configuração interativa entre jornalismo e leitores


no ambiente de conversação em rede (RECUERO, 2014) da web
redimensiona o contrato de comunicação (CHARAUDEAU,
2006) e amplia as possibilidades de fazer sentido do jornalismo.
Quando nos referimos a uma temática como a transexualidade,
que traz à tona novos “mapas de significado” (HALL et al, 1999),
por exemplo, o jornalismo atua como importante elemento na
construção social da realidade, conferindo legitimidade a essa
“nova verdade” que está sendo relatada. Contudo, os pontos de
vista que são consensuais na sociedade, coerentes com mapas de
significado já traçados no mundo social e que são reproduzidos
pelo jornalismo, coexistem com suas formas opostas ou díspares.
Os discursos que envolvem as noções de consensos estarão
sempre embutidos na narrativa jornalística conectando-se, de
forma conflitiva ou não, com as expectativas e visões de mundo
dos leitores.

A análise dos comentários dos leitores será realizada com


base nos pressupostos da Análise de Discurso de linha francesa
(AD) e adotará uma atitude metodológica inspirada na Análise
Enunciativa de Foucault (1969). Pode-se dizer que a AD é um
gesto de interpretação (ORLANDI, 1998) e está preocupada com
os movimentos de instauração de sentidos (dizer e interpretar),
que são afetados por sistemas de significação e requerem
compreender os modos de funcionamento de um discurso. A
língua, a cultura, a ideologia e o imaginário, em sua
complexidade, além de processos sociais e históricos,
influenciam e afetam os sujeitos, e consequentemente os seus
discursos e seu processo de leitura. Em concordância com esses

248
pressupostos, a análise enunciativa de Foucault atua no nível da
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

existência, tendo como objeto frases que foram realmente


pronunciadas ou escritas, ou seja, coisas efetivamente ditas.
Enquanto na AD a questão central é como o texto significa, a
análise enunciativa perguntará de que modo aquelas coisas ditas
existem, como deixam rastros, como são reutilizadas.

Cabe lembrar que, justamente pelo fato de a linguagem ser


opaca, feita de falhas e equívocos, as possibilidades de leitura de
um texto são múltiplas. Ainda que se apresente como
transparente, como se os sentidos estivessem sempre lá, no
próprio texto, os significados são gerados em um processo de
enunciação e interpretação que se dá entre interlocutores. De
acordo com Benetti (2016), o funcionamento da linguagem é
complexo e enraizado na história, e as significações são
construídas em contextos de conflito, luta, divergência e
dominação. Nessa conformação, o discurso pode ser pensado
como “uma potência que se concretiza quando o interlocutor
recria seus sentidos” (BENETTI, 2016, p. 237). Assim, a
compreensão do jornalismo como lugar de circulação e produção
de sentidos ou “palavra em movimento”, conforme classifica
Orlandi (2000), implica considerar seu discurso como dialógico,
polifônico, opaco, ao mesmo tempo efeito e produtor de sentidos
e elaborado conforme condições e rotinas particulares
(BENETTI, 2008). Podemos dizer que o processo de significação
acontece o tempo todo e ao mesmo tempo, constituindo e não
apenas descrevendo aquilo que está representando.

Os sete cases que deram origem a constituição do corpus


de textos e análise de comentários são: a reportagem de capa da
revista Galileu intitulada “Gênero: tudo que você sabe está
errado”, de outubro de 2015, por ter sido a primeira reportagem
especial sobre a temática a gerar grande engajamento dos leitores
nas redes sociais; o programa Globo Repórter, especial sobre a
mesma temática, intitulado “Transgênero: origem pode ser

249
biológica e começar na gestação”, veiculado em setembro de
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

2016; reportagem especial da Folha de S. Paulo no Caderno


Equilíbrio e Saúde, seção “Minha história”, intitulada “De Olívia
para Oliver: a história de uma criança transgênero”, publicada
em fevereiro de 2017; por fim, os quatro episódios da série
“Quem sou eu?”, veiculada pelo programa Fantástico, da Rede
Globo em março de 2017, que tratam da infância, da
adolescência, dos relacionamentos e do processo de transição de
homens e mulheres transexuais.

Os cases escolhidos têm em comum o mesmo objeto de


poder e saber ocupando a centralidade da pauta jornalística: a
transexualidade. Silenciada por um longo tempo na grande
mídia, são dadas neste momento histórico as condições para o
aparecimento e circulação destes novos mapas de significado,
que passam a existir sob condições “positivas”. Além da temática,
todos os cases têm em comum o fato de terem sido publicados
nas fanpages dos veículos no site de rede social Facebook,
gerando forte engajamento dos leitores, que comentaram e
compartilharam as publicações produzindo expressiva
conversação em rede (RECUERO, 2014).

Procurou-se ainda manter a “unidade arquitetônica” mais


diversa possível, reunindo materiais produzidos para revista,
jornal e programas televisivos destinados a diferentes públicos e
veiculadas em diferentes períodos dentro do recorte temporal já
mencionado. A escolha por não limitar apenas um lócus de
investigação se deu com o intuito de coletar diferentes fatos de
discurso para formar um corpo de enunciados com valor de
amostra (FOUCAULT, 1969). Buscando suspender as formas
mais imediatas de continuidade (que seriam analisar apenas um
veículo, a mesma notícia em diferentes veículos ou período
temporal mais restrito), o material reunido configura uma
“população de acontecimentos discursivos”, horizonte para a
busca de unidades.

250
Os comentários com viés religioso identificados na
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

amostra e que se serão analisados aqui, centram-se


principalmente na validação e invalidação dos novos mapas de
significado a respeito de gênero trazidos à tona pelo jornalismo.
No primeiro contato com o material, identifiquei a repetição de
palavras ligadas à religiosidade, como “bíblia”, “igreja”,
“satanás”, “pecado” e menções a figuras bíblicas como Adão e Eva
e diferentes expressões utilizando a palavra “Deus”. Essas
expressões foram empregadas para reiterar argumentações
baseadas em motivos religiosos e procuraram interditar os novos
mapas de significado apresentados pelas reportagens do corpus,
considerando que abordar a temática da transexualidade seria o
“fim dos tempos”, “falta de Deus”, “obra do diabo”, de “satanás”
ou ainda bom trabalho da “serpente”, como se pode observar nas
sequências discursivas7 a seguir:

A Galileu se auto-intitulando a dona da verdade a


respeito do assunto, pois saiba que eu fico com a
criação de Deus: ADÃO E EVA !!!! [GA SD660]
ignorância, incredulidade, a voz de Deus é calada
por essas idiotices. fim dos tempos.
#Jesusestavoltando [GA SD669]
É o fim da espécie, erva daninha, falta Deus! Se
buscasse Ele, encontraria o caminho. [GR SD347]
Cada um faz o que quiser mas a idéia deles essa opção
se for ver não tem futuro não é de Deus [GR SD383]

Esses comentários a favor dessa mãe só prova que o


mundo está cheio de doentes alienados e mal amados
sem Deus no coração aff! Quando doença. [FSP
SD319]
O satanás falou que ia dominar o mundo e está
acontecendo. [FEP2 SD212]
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de
Deus o criou,macho e fêmea os criou. Gênesis
cap:1/vers:27 Deus criou dois gêneros e não três, ele
jamais criaria um homem no corpo de uma mulher
ou uma mulher no corpo de um homem, isso é obra

7 Os comentários de leitores foram reproduzidos na íntegra e sem


modificações, por isso contêm eventuais erros de digitação e gramaticais. As
passagens em negrito foram destacadas pela autora.

251
do Diabo, precisamos buscar a Deus e orar muito
para termos sabedoria. [FEP1 SD731]
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

Quem sou eu?um menino que precisa de ajuda para


ser o que nasceu,mas será negada ou mitigada em
nome de uma suposta sociedade "evoluída", o que
virá adiante?já li sobre pessoas que dizem que não se
identificam com nenhum gênero, outra disse que
sexo é como roupa, hoje pode ser homem,amanhã
pode ser mulher,é infelizmente a serpente fez um
bom trabalho.. [FEP1 SD831]

Alguns leitores também passaram a argumentar


utilizando sentidos que remetem às mesmas bases, em resposta
aos comentários de viés religioso, porém, utilizando-se de ironia,
desdenhando e interditando os comentários que se posicionaram
de forma a invalidar os novos mapas de significado apresentados
pelo jornalismo:

Pra começar crentes, Adão e Eva é mito e não


história. Parem. [GA SD663]
Desejo a vcs uma situação igual a dela. Amém! 👐
[FSP SD318]
Se a sua religião ensina a odiar alguém, mude de
religião! #ficadica [GR SD114]
Deus não existe. Ninguém é obrigado a seguir sua
religião. A sua religião é só mais uma entre as
milhares que dizem ser verdadeiras. A ciência explica
o que a ignorância não entende. Agora engole teu
vômito e sai daqui [FEP1 SD 735]
Tamanha ignorância desses evangélicos me cansa.
Vivem na igreja, sabem a Bíblia decorada mas
vivenciar os ensinamentos do Cristo é o que nunca
fazem. São julgadores, preconceituosos e se acham
melhores que os outros, são os sepulcros caiados por
fora e cheios de podridão por dentro. [GR SD94]
Qual deus? No mundo existe mais de 1800
deuses...Ou vc acha que so o seu é o certo? [FEP3
SD162]
[...] Se dizem tão cristãos e não segue nem o primeiro
mandamento que é amar o próximo como a si
mesmo, caso contrário não ficariam destilando
veneno na vida dos outros. Respeitem a decisão do
próximo, o jeito, você não pode opinar sobre algo que
não vive, não sente, não tem conhecimento. [FEP3
SD43]
🌸 NINGUÉM É OBRIGADO A ACREDITAR E
SEGUIR A BÍBLIA 🌸 [FEP1 SD 858]

252
Parte destas percepções manifestadas pelos leitores pode
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

ser atribuída à regulação historicamente constituída de um


cenário religioso refratário a manifestações de identidade de
gênero e sexualidades que escapam à heteronormatividade 8 .
Documentos oficiais advindos da Igreja Católica nos últimos
anos, por exemplo, referem-se às identidades de gênero não
normativas e às práticas homossexuais como “sinais de
anomalia” e “fenômenos morais e socialmente preocupantes”,
que a igreja teria o dever social de combater, por afetarem a
família cristã (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2007, p. 263).

A regulação religiosa se mantém de maneira bastante


ilustrativa na contemporaneidade considerando-se a numerosa
bancada conservadora na Câmara dos Deputados e a presença de
religiosos no espaço da política de forma mais ampla. Formada
por bispos, pastores e parlamentares leigos alinhados a dogmas
religiosos, a bancada evangélica no Congresso elegeu um número
recorde de 78 representantes nas últimas eleições. O
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) 9
contabilizou 75 deputados e três senadores evangélicos. Entre as
prioridades do grupo religioso estão a limitação a reivindicações
do movimento LGBT e o combate à flexibilização das leis sobre
drogas e aborto.

Devido à aproximação dos estudos de gênero com as


discussões sobre outras identidades (os chamados estudos
interseccionais, que contemplam raça, classe, geração etc), pode-
se afirmar que a perspectiva de gênero está na base dos novos
direitos humanos e na justificativa das políticas de amparo às

8 “Ordem sexual do presente, na qual todo mundo é criado para ser


heterossexual ou – mesmo que não venha a se relacionar com pessoas do
sexo oposto – para que adote o modelo da heterossexualidade em sua vida”
(MISKOLCI, 2015, p. 15).
9 Dados retirados da notícia “Bancada evangélica ganha força inédita no

congresso, publicada no jornal ZH em 23 de fevereiro de 2015. Disponível em:


<http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/02/bancada-evangelica-
ganha-forca-inedita-no-congresso-4704350.html >. Acesso em julho de 2016.

253
mulheres, por exemplo, estando diretamente relacionada às
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

discussões sobre direitos sexuais e reprodutivos, aborto,


população LGBT e o reconhecimento da diversidade sexual e de
gênero. Nas palavras de Furlani, “não há campo do conhecimento
contemporâneo mais impactante e perturbador para as
instituições conservadoras e tradicionais que os efeitos reflexivos
dos estudos de gênero” (FURLANI apud DIP, 2016, online).

Com a proposição de projetos de lei que impõem


retrocessos ou interditam avanços para as mulheres e LGBTs, a
presença deste grupo conservador no campo político – espaço de
poder capaz de regular as leis que regem a sociedade – faz notar
claramente a ligação do discurso religioso com o desejo e o poder.
As interdições de ordem religiosa traduzem um sistema de
dominação, mas também a luta por esse objeto de desejo que é o
discurso e a verdade religiosa imutável que nele está contida. Os
comentários a seguir reiteram o binarismo homem/mulher,
macho/fêmea como criação de Deus e todas a vivências que não
correspondam a essa verdade como “inversão do certo” ou
“palhaçada”, já que Deus “não erra nunca”:

Ninguém ta julgando nada. mas que me lembre deus


criou o homen e mulher? ? Se fosse do mesmo sexo
não existiria humanidade... [GR SD220]
Porra, daqui a pouco, na hr de fazer o filho, uma
pergunta terá que ser feita: Menino ou menina? Deus
decide ou nós decidimos? Absurdo! [FSP SD314]
não precisa estudar muito pra isso, precisa aceitar as
coisas como elas são. O que vemos é a inversão do
certo. Se uma criança que nasceu homem e se “sente
uma menina” e for nesses psicólogos e dizer que quer
ser homem, eles vão orientar a criança ser
mulher...Outra coisa, quem disse que uma pessoa
“DOUTORADA” tem mais conhecimento que uma
que não tem? Ela pode ter nos livros, mas a vivência
é diferente. Quantos filhos cresceram afeminados e
os pais, percebendo isso, orientou os filhos e
ensinaram o certo. Hoje são homens bem casado e
resolvidos. Vamos parar de SHOW e saber
doutrinar os filhos com a VERDADE. [FEP1 SD 752]

254
Oque Deus pensa dessa palhaçada hein? Pq Deus fez
macho e fêmea pra homem e todos seres vivos. O
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

homem tá pior que os animais pq nunca vi cavalo


gay.vaca sapatão nunca vi entre os animais
irracionais tal prática. Acorda gente!!!!! [FEP3
SD241]
Nascem em corpos errado??me desculpe mais Deus
nao erra nunca.....nunca vi homem gerar filho no
ventre...e muito menos mulher fazer filho em
mulher... [FEP4 SD167]

Na esteira de Heilborn (1991), que propõe pensar o gênero


como instrumento de análise e impacto das ideologias na
estruturação do mundo social e na construção do conhecimento,
percebi neste núcleo de sentidos também uma estruturação
binária em relação a dois diferentes tipos de religiosidades sendo
expressados pelos leitores. A primeira delas trata de comentários
que se referem a um Deus punitivo, que vigia e controla a tudo e
todos, evidenciando uma noção de autoridade religiosa bastante
autoritária e intolerante, que pode ser associada aos valores do
masculino. Estas sequências discursivas fazem menção ao
pecado, ao “preço alto a pagar”, à “mão pesada de Deus”, ao
inferno e ao fogo eterno “mantido com carne humana”, ao “acerto
de contas”, ao o “juízo final” ou ao “grande julgamento”. Na
perspectiva de Foucault (1979), a religião configura-se como um
regime de verdade estruturado nas relações de poder-saber. Essa
noção masculinista compreende a verticalidade do saber-poder
religioso e uma relação que pressupõe a condição de
subalternidade e passividade das pessoas perante o “Criador” e
àquilo que está escrito na bíblia. Tais poder e autoridade
assumidos como incontestáveis por alguns leitores sublinham a
vontade de verdade comprometida com o poder atribuído às
instâncias religiosas ao longo da história:

Oh geração pecaminosa... Até quando Tu não veis


que está contra o teu Criador.... Infelizmente vão
pagar alto. Preço pelo tal pecado.... [FEP3 SD397]
Nao julgo nimguem..cada faz oque quer da vida..so
nao venha quer me convencer do proposito de Deus
para a humanidade.....pois a mao de Deus sera
pesada..Deus criou o Homem e A mulher...nada mais
255
do que isto entre os seres humanos..agora cada faz
suas escolhas...e acerta as contas com o criador....
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

[FEP4 SD114]
uma coisa eu tenho certeza,no inferno não existe
lenha o fogo eterno lá é mantido com carne humana
, com agravante lá não existe morte! [FEP1 SD 807]
No dia do julgamento final vamos ver quem ta certo
quem tá errado. [FEP1 SD 818]
leia a bíblia daí então você vai ficar atualizado quanto
as coisas do mundo material e espiritual. Leia Lucas
Cap:16 versos 19-31 Mateus 10 verso 28 o propio
jesus diese que devemos temer nao ha homens mais
sim há Deus,pois ele pode lançar no inferno tanto a
alma como o corpo. [FEP1 SD 863]
Vergonha nacional esse programa! Vocês são filhos
do diabo! Querendo colocar na cabeça de nossas
crianças que fulano nasce mulher no corpo de
homem e vice versa. Nada nem ninguém vai mudar
o que Deus fez há milhares de anos atrás que foi
apenas homem e mulher. Perderam mais um
telespectador. Um programa que antes era tão
respeitado, fazendo um papelao desse. Filhos do
diabo , o inferno os aguarda. [FEP3 SD12]
Estamos no fim do tempos, cada um vai da conta no
dia do Juízo de Deus. [FEP3 SD324]
Pecado.......Está chegando o dia do ajuste de
contas....Prepara-Te......Deus é amor.....mais
também é justiça.....Um forte abraço... [FEP3
SD346]
Na hora do grande julgamento perante o meu Deus
eu quero ver. [GR SD235]

Em contrapartida, identifiquei também manifestações


afeitas a uma religiosidade aberta à alteridade, em que os leitores
se autodenominaram “evangélicos” e “cristãos” para convocar a
mesma linha argumentativa a fim de mostrar uma perspectiva
religiosa de amor, respeito e tolerância, posicionando-se a favor
dos novos mapas de significado apresentados. Enfatizando a
necessidade de “amar e respeitar a todos”, “não julgar”, deixar de
lado o preconceito, questionando a existência de um Deus que
propaga “ódio e intolerância” e relembrando uma imagem de
Deus amoroso e disposto ao perdão. Um dos leitores faz o
exercício de se colocar no lugar das personagens da reportagem
e sentencia: “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”,

256
fazendo referência a uma visão religiosa mais afeita aos valores
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

socialmente associados ao feminino:

Sou evangélico ; achei interessante a matéria ;


devemos amar e respeitar a todos. [GR SD99]
Muito interessante o assunto ; sou evangélico e
devemos deixar de preconceito. [GR SD238]
Deus odeia o pecado ne mais o que vc esta fazendo ta
errado Deus ama seus filho não importa o que são o
serto é ganhar eles para cristo não condenalos quem
somos nós quem nunca pecou que atire a primeira
pedra [GR SD316]
"E conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará"
(João, 8:32). O conhecimento é libertador. Muito
legal publicarem essa matéria. (ao menos aprender,
pra criticar, não custa nada) [GA SD672]
Aos que não entenderam a reportagem, meu sinto
muito. A burrice de vocês não têm mais conserto.
Nasceram...viverão e morrerão burros. Falam tanto
em Deus e destilam discurso de ódio. Que Deus é
esse, que propaga ódio e intolerância?? Burros.
[FEP1 SD 734]
Isso que vc acaba de falar é que ta errado, onde já d
viu, Deus ama seus filhos Independiente do que ele
seja, homem, mulher, gay, lesbica ou trans... enfim,
o que importa pra Deus é o que tem dentro do
coração de cada um e não a forma como se
relaciona. Mas uma coisa eu digo com a certeza
absoluta, eles são assim pq nasceram assim e nao por
gosto, pq gostam de ser discriminados, julgados,
espancados e até mortos a Bel prazer, e devem ser
vistos por nós como uma forma de evolução, não de
atraso, tragédia ou falta de Deus.. por favor né, até pq
eles já existiam bem antes de nos nascermos, desde
que mundo é mundo eles existem, só que agora eles
criaram coragem pra ser o que são, e não viver
oprimido, ora mais ta, eles pagam impostos como
nós, trabalham e tem o direito de ser feliz como
quiser. [GR SD281]
Viva diversidade ❤ E pra quem não gosta por ser
cristão, ser cristão é ser cópia de Cristo, Cristo era
amo, seja amor! Respeite! [GR SD75]
Que linda essa mãe que aceitou e amou seu filho
desde sempre, cumprindo de verdade os
ensinamentos de Deus! Por mais pessoas assim no
mundo ♥ [FEP2 SD148]

257
Jesus então criou pessoas bem diversas pra testar
seu julgamento e seu amor ao próximo. ;) [FEP1
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

SD775]
Como disse o Papa Francisco, quem somos nós para
julgarmos as pessoas? A reportagem relata uma
história verídica que acontece todos os dias! E vamos
fazer o que se acontecer com nossos filhos? Eu vou
amar da mesma forma mesmo sendo contra meus
princípios! Não podemos jogar pedras! [FEP2
SD149]

Ao abordar a questão da religião, particularmente a


discussão sobre o cristianismo e o poder pastoral, Foucault trata
de seus efeitos disciplinadores, dos modos específicos de poder
exercidos pela Igreja e dos sujeitos ou subjetividades constituídas
por esse exercício. O poder de ordem religiosa não se exerce sobre
um território, mas sobre uma multiplicidade de indivíduos,
regulando cada um deles em particular, se exercendo por meio
da produção de uma verdade subjetiva produzida através de
técnicas como o exame de consciência e a direção espiritual. O
poder pastoral se caracteriza justamente pela intenção de dirigir
os sujeitos nos detalhes de sua vida, induzindo-os a
determinados comportamentos capazes de levá-los à salvação.

A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de


enunciação e lhes proíbe, consequentemente, todos
os outros; mas se serve, em contrapartida, de certos
tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si e
diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros. A
doutrina realiza uma dupla sujeição: dos sujeitos que
falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao
menos virtual, dos indivíduos que falam
(FOUCAULT, 2011, p.43).

Os discursos religiosos, como lembra Foucault, seguem


sendo ditos indefinidamente, para além de sua formulação.
Permanecem ditos e estão ainda por dizer porque estão
enquadrados no rol das coisas ditas que se conservam na
sociedade “porque nelas se imagina haver algo como um segredo
ou uma riqueza” (2011, p. 22). Existe uma espécie de pertença
prévia que liga os indivíduos às enunciações de caráter religioso

258
e uma vontade de verdade compartilhada, que faz com que esses
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

leitores percebam a temática com base em crenças dominantes e


enunciações que vêm sendo repetidas e reeditadas ao longo da
história. Vale sublinhar que os comentários pertencentes à
amostra se valem das marcas de uma religiosidade bem
específica, que remetem às crenças de matriz ocidental,
principalmente o cristianismo e diferentes denominações
evangélicas neopentecostais.

5 Considerações finais

As reportagens sobre identidade de gênero e


transexualidade, uma temática social controversa, pouco
problematizada e quase sempre tangenciada pelo jornalismo
apesar de sua importância, resultaram em expressivas
manifestações de leitores, que mobilizaram sentidos conectados
ao cenário e ao contexto social que lhe deram condições e
possibilidade de irromper. Esses mínimos documentos de nosso
tempo me possibilitaram acessar sentidos que estão na
superfície, coisas que podem e devem ser ditas, como diz
Foucault, nesse determinado lugar e contexto histórico. Capturar
esses documentos “não-oficiais” e observá-los como
monumentos me permitiu extrair alguns enunciados com valor
de verdade daquilo que foi dito, observar o inconsciente positivo
destes saberes, o jogo, as disputas e batalhas que se travam
discursivamente, e vislumbrar o perigo incontrolável presente
em tudo aquilo que se diz, como já alertava Foucault (1969).

Disse Gramsci que é preciso atrair violentamente a


atenção para o presente do modo como ele é, se se quer
transformá-lo. Nesse prisma, olhar para os comentários dos
leitores na internet e trazer esses sentidos à tona é uma forma de
olhar de frente para algumas verdades sedimentadas em nossa
sociedade, por mais impactantes e absurdas que possam parecer.
O grande número de comentários que associa percepções sobre a

259
transexualidade com a religiosidade está em consonância com o
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

crescimento exponencial das igrejas de denominação pentecostal


no Brasil. De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010 10, entre os
anos 2000 e 2010, a população evangélica cresceu 61% no Brasil.
Nos últimos 20 anos, mais que triplicou o número de fiéis: de 7,8
milhões de pessoas em 1980 para 26,4 milhões em 2001, um pulo
de 6,6% para 15,6% da população brasileira. Ou seja, um a cada
seis brasileiros é evangélico e está em contato com a doutrina que
se coloca visivelmente em oposição às políticas de gênero.

Mais uma vez, é preciso fazer menção à votação sobre os


planos Nacional, Estaduais e Municipais de Educação, em 2015.
Na ocasião, pastores televisivos como Silas Malafaia, o deputado
Marco Feliciano (PSC), o deputado Jair Bolsonaro (PP) e o
senador Magno Malta (PR) bradavam contra a “ideologia de
gênero”, que traria a destruição da família e a doutrinação de
crianças. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) 11,
na época, também divulgou nota afirmando que a ideologia de
gênero “desconstrói o conceito de família, que tem seu
fundamento na união estável entre homem e mulher”. Nas
missas e cultos, cartilhas foram distribuídas alertando pais e
mães sobre o perigo de seus filhos serem doutrinados a virar
“outra coisa” que contrariasse o sexo biológico.

Por mais que durante muito tempo tenhamos preferido


ignorar essas verdades, acredito que só conseguiremos

10 Censo Demográfico 2010. Disponível em:


<http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao
_deficiencia.pdf >. Acesso em out. 2016.
11 De acordo com o site da CNBB, “A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

(CNBB) é a instituição permanente que congrega os Bispos da Igreja católica


no País, na qual (...) eles exercem algumas funções pastorais em favor de seus
fiéis e procuram dinamizar a própria missão evangelizadora, para melhor
promover a vida eclesial, responder mais eficazmente aos desafios
contemporâneos, por formas de apostolado adequadas às circunstâncias, e
realizar evangelicamente seu serviço de amor, na edificação de uma sociedade
justa, fraterna e solidária, a caminho do Reino definitivo”. Disponível em:
<http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id
=902&Itemid=110>. Acesso em out. 2016.

260
estabelecer estratégias de combate ao preconceito e às diversas
Pâmela Stocker
sentidos no discurso dos leitores
Jornalismo, gênero e religiosidades: produção e disputa de

formas de opressão conhecendo e compreendendo aquilo que


está sendo dito. No caso do jornalismo, que por muito tempo
manteve a hegemonia ideológica do seu material discursivo
(AZEVEDO, 2006) e muitas vezes enfatizou visões
estereotipadas e preconceituosas no âmbito das relações de
gênero e sexualidade (BUENO, 2010; GROTZ, 2014), mais do
que narrar a diferença com empatia e ética, me parece essencial
o movimento de mediação e responsabilização pelos sentidos que
estão sendo produzidos pelos leitores e pelo diálogo que se
desdobra na caixa de comentários das notícias e reportagens -
independentemente da plataforma em que tenham sido
publicadas. Trata-se de o jornalismo não mais assumir as
diferenças como contradições que podem ser apaziguadas pela
via da tolerância, mas sim de enfatizar e explicar como esses
marcadores sociais podem e são transformados em
desigualdades. Pedir tolerância ainda significa manter intactas as
hierarquias do que é considerado hegemônico. Me parece cada
vez mais urgente que o jornalismo passe a mobilizar estas
categorias de modo político, incorporando o reconhecimento das
diferenças a fim de informar os cidadãos por meio de um diálogo
ético e aberto à multiplicação de sentidos, à transgressão e à
subversão de todas as formas de opressão e violência.

 Retorne ao sumário

Referências

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heterogeneidades e negociações de sentidos. O jornalismo
político e os sujeitos leitores das revistas semanais.
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263
1 Introdução

Segundo o Censo de 2010 1 do Instituto Brasileiro de


Geografia e Estatística (IBGE), há 35.167 mil muçulmanos em
todo o país. No entanto, devido a migrações e conversões, estima-
se atualmente que o número dos muçulmanos esteja em torno de
1,5 milhão 2 . As instituições religiosas não fazem contagens
oficiais de conversões (ou reversões, termo usado pelos
religiosos), no entanto os dados do IBGE mostram que 21.042
dos muçulmanos que vivem no Brasil são homens, enquanto
14.124 são mulheres. Além disso, a maioria dos religiosos se
considera branco.

1 Censo demográfico: 2010: características gerais da população, religião e


pessoas com deficiência.
2 Fonte: http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-
news/videos/v/em-dez-anos-numero-de- muculmanos-no-brasil-dobra-
e-chega-a-15-milhao/5402942/> . Acesso em: 13/10/2017.
O Islã surgiu no século IV, na cidade de Meca, atual Arábia
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

Saudita. A doutrina foi revelada para um homem de meia-idade,


comerciante da Rota da Seda, chamado Mohammed (Maomé em
português). Para a religião, o Alcorão, livro sagrado dos
muçulmanos, foi revelado a Mohammed pelo anjo Gabriel (em
árabe Jibrail) (ALCORÃO, 2017). Hourani (2006) explica que
quanto mais Mohammed difundia seus ensinamentos, mais era
notável a diferença da nova religião com as aceitas localmente. O
Islã ordenava novos cultos e atacava os deuses locais. De acordo
com o CEDI – Centro de Estudos e Divulgação do Islã no Brasil 3,
atualmente, o número de muçulmanos no mundo é de 1.378.357.
Na América Latina, os seguidores de Mohammed representam
4.73% da população.

Neste cenário, vários veículos de comunicação brasileiros


produzem e divulgam narrativas sobre os seguidores dessa
crença. Gomes (2012) analisou 62 reportagens dos jornais Folha
de S. Paulo e Estado de S. Paulo4 e avaliou o tratamento que a
comunidade islâmica recebe pelas publicações e constatou que,
além da unificação dos muçulmanos por meio de estereótipos, as
pautas relacionadas ao tema geralmente representam os
religiosos como fundamentalistas, extremistas e terroristas.

Montenegro (2002), em sua pesquisa feita logo após um


estudo de campo em comunidades muçulmanas sunitas do Rio
de Janeiro, concluiu que os textos analisados eram focados na
presença de possíveis grupos terroristas no Brasil de forma
alarmista e na apresentação da religião como algo desunido, com
várias frentes e de certa forma imprevisível. Ela também trata da
reportagem “Dois Mundos Muçulmanos” do Jornal do Brasil,
publicada em fevereiro de 1998, a matéria sobre mulheres
muçulmanas mostra a religião como misógina e retrógrada.

3<http://www.islam.org.br/o_islam_hoje.htm> Acesso em 06/06/2017.


4Textos publicados nos 15 dias anteriores e posteriores ao aniversário de
10 anos do atentado terrorista às Torres Gêmeas em Nova York

265
Por situações como essa, Ferreira (2009) afirma que a
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

comunidade muçulmana que estuda possui uma relação


conflituosa com a imprensa, visto que comumente são publicadas
informações erradas sobre as fontes e sobre a religião. “O conflito
com a imprensa é tamanho, que alguns muçulmanos chegaram a
me dizer que, ao darem uma entrevista, no dia seguinte se
lamentavam pelo que havia saído no jornal, em geral
informações distorcidas e preconceituosas“ (FERREIRA, 2009,
p. 11).

Desta forma, é possível perceber que os estudos citados


falam mais da representação da religião como um todo pela
imprensa, fazendo a ligação entre Islã e terrorismo. No entanto,
outro tema que podemos considerar comum na mídia quando
analisamos superficialmente é a representação da mulher
muçulmana como vítima, encurralada em seu véu e sem direitos
garantidos. Diante disso, surge a proposta desta pesquisa de
verificar como as mulheres muçulmanas são representadas, a
quais temas são associadas pela imprensa brasileira e verificar se
a percepção inicial se confirma.

No Ocidente, é bastante debatida a violência que a mulher


muçulmana sofre, tanto pelos seus esposos e homens da família,
como pelos governos dos países onde vivem. O assunto também
é bastante destacado quando se aborda o espaço que a religião
reserva para essas mulheres ou a presença/ausência de direitos
femininos. No entanto, um âmbito que também precisa ser
explorado é o da violência contra elas praticada pela sociedade
ocidental, desde a proibição do uso do véu em determinados
locais até a forma como são representadas pela imprensa. As
muçulmanas são facilmente identificadas devido ao uso do hijab,
que é um símbolo do Islã no ocidente, tornando-se assim, alvos
fáceis de agressões, sejam físicas ou verbais 5 . Mesmo com

5 Verificar: <https://oglobo.globo.com/mundo/brasileira-muculmana-
atacada-com-pedrada-em-sao- paulo-15071301> Acesso em 13/10/2017;
< http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-02-

266
indícios de que as agressões sejam fomentadas pela imprensa
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

pela forma como apresentam a religião e os que a seguem, é difícil


encontrar pesquisas acadêmicas 6 que foquem na relação das
mulheres muçulmanas com os veículos de comunicação. Análises
de reportagens focando na representação dos muçulmanos,
independente do sexo, são mais comuns.

De acordo com Filho e Porto (2011), o jornalismo


brasileiro sofre grande influência dos estereótipos estrangeiros
sobre o Islã, visto que uma grande parte das informações sobre o
assunto vem de agências de notícias de outros países, como a
Reuters e a France Presse. Segundo os autores, a religião tornou-
se assunto no mundo todo após a Revolução Iraniana. “No
entanto, após os eventos do dia 11 de setembro de 2001, o mundo
islâmico tornou-se o centro dos noticiários internacionais”
(FILHO; PORTO, 2011, p. 241).

Diante desse contexto, o questionamento que norteia essa


pesquisa e constitui sua problemática é: Como as mulheres
muçulmanas são representadas nas reportagens e notícias nos
principais veículos jornalísticos online brasileiros? Para
responder a esse questionamento, estabelecemos como objetivo
geral: analisar a representação das mulheres muçulmanas em
reportagens produzidas pelo portal G1 e pela versão online do
jornal Folha de S. Paulo. E como objetivos específicos: Verificar
como as mulheres seguidoras do Islã são mostradas nos textos;
Identificar possíveis estereótipos sobre as seguidoras da religião;
Mapear os temas/assuntos mais frequentemente associados às
mulheres muçulmanas.

01/muculmanas-sao-vitimas-de-agressoes-nas-ruas-do-rio.html> Acesso
em 13/10/2017; < https://noticias.r7.com/balanco-
geral/videos/intolerancia-religiosa-muculmana-e-hostilizada-e-
agredida-por-vizinhos-em-mogi-das-cruzes-sp-31032016> Acesso em
13/10/2017.
6 De acordo com uma pesquisa realizada no mês de agosto de 2017 nos

portais Google Acadêmico, Banco de Teses e Dissertações – CAPES e na


Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. Na busca foram
usados os termos “mulher muçulmana”, “mulher” e “muçulmana”.

267
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

2 Procedimentos metodológicos

O procedimento adotado para a coleta e análise dos dados


desta pesquisa é a Análise do Conteúdo (AC) conforme proposto
por Bardin (1977). A pesquisa analisa 51 matérias publicadas no
portal online G1 e 19 textos da versão online da Folha de S. Paulo.
Estes veículos foram escolhidos por serem, respectivamente, um
dos maiores portais jornalísticos brasileiros e aquele com o maior
número de seguidores em sua fanpage (importante espaço de
compartilhamento/circulação do material produzido) e o site do
jornal de circulação nacional com maior tiragem.

A coleta foi realizada entre os dias 15 de Agosto e 12 de


setembro de 2017. Os textos foram coletados por meio dos
mecanismos de busca dos veículos. Para isso, foi buscado o termo
“mulher muçulmana” e definido o intervalo de tempo entre 11 de
Setembro de 2015 e 11 de Setembro de 2017. O intervalo de dois
anos foi escolhido por permitir a coleta de uma quantidade de
material suficiente para a análise de como as muçulmanas são
representadas pela imprensa brasileira.

Segundo Filho e Porto (2011), a religião tornou-se assunto


no mundo todo após a Revolução Iraniana. “No entanto, após os
eventos do dia 11 de setembro de 2001, o mundo islâmico tornou-
se o centro dos noticiários internacionais” (FILHO e PORTO,
2011, p. 241). A importância da data quando nos referimos à
relação entre imprensa e Islã fez com que ela se tornasse o marco
para início e fim do tempo de análise.

No G1 foram encontrados 224 resultados para a busca,


sendo que somente 67 eram de notícias e reportagens sobre
mulheres muçulmanas. Dentre as 67 matérias, havia oito vídeos
e oito notas que não foram analisados nesta pesquisa porque
optamos somente pelos textos informativos, resultando então em
51 textos para a análise. Já na Folha de S. Paulo a busca pelo
mesmo termo no mesmo intervalo de tempo resultou em 98
268
links, sendo que apenas 21 se enquadram no tema proposto pela
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

pesquisa. Dos 21 textos, dois deles foram categorizados como


jornalismo opinativo e não entraram na análise.

O uso de aspas não modifica os resultados apresentados


nos dois buscadores, o que justifica o grande número de material
que não fala sobre as mulheres muçulmanas, no qual é possível
encontrar matérias onde os termos “mulher” e “muçulmana”
aparecem separados e em diversos contextos.

Na etapa da pré-análise (BARDIN, 1977) foi feita a coleta


de todos os textos que se enquadram no pré-requisito de falar
sobre mulheres muçulmanas. Os materiais foram separados por
veículo e quantificados, em seguida, foram descartadas todas as
matérias em vídeo. Todos os vídeos foram coletados do portal G1.
Na etapa de análise quantitativa, o material foi categorizado a
partir da perspectiva de frequência/ausência (BARDIN, 1977)
sendo as categorias estabelecidas à priori. As categorias
norteadoras foram, inicialmente, a divisão entre jornalismo
informativo e opinativo, seguindo a classificação de Marques de
Melo (1985). Na divisão do autor, fazem parte do Jornalismo
Informativo a nota, a notícia, a reportagem e a entrevista. Já o
Jornalismo Opinativo pode se apresentar no formato de
editorial, comentário, artigo, resenha, coluna, crônica, caricatura
e carta. Nesta pesquisa, os materiais coletados que se
enquadraram como opinativos foram descartados.

Dentre os tipos de texto, a nota, que de acordo com


Marque de Melo (1985) e Costa (2010), é um texto curto referente
a um fato que ainda está acontecendo e que pode virar uma
notícia, não foi incluída na análise por não ter nenhum
aprofundamento e não possuir fontes. A Entrevista, que os
autores classificam como texto que privilegia e dá protagonismo
a um agente, tornando o repórter um mediador, também não foi
utilizada. Consequentemente, todos os textos analisados são
notícias e reportagens.

269
Na etapa seguinte, centrada somente nos textos
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

informativos, o processo de categorização relacionou-se à


tipologia das fontes adotadas nos textos. Schmtiz (2011) define
fontes como pessoas que são entrevistadas ou observadas pelos
jornalistas e que repassam informações úteis que serão
repassadas em um veículo de comunicação, sendo “pessoas,
organizações, grupos sociais ou referências; envolvidas direta ou
indiretamente a fatos e eventos” (SCHMTIZ, 2011, p. 9).

Há diversos autores que trabalham a classificação de


fontes jornalísticas, cada um com suas tipificações específicas.
Neste trabalho, foi usada a classificação feita por Schmtiz, que
analisou diversos estudos sobre o tema e reagrupou categorias. O
autor destaca que classificar as fontes ouvidas nas matérias é
essencial, pois “a notícia polifônica converge da diversidade de
opiniões, relatos, testemunhos e mídias” (SCHMTIZ, 2011, p.
23).

Schmtiz (2011) classifica as fontes em cinco tipos:


categoria, grupo, ação, crédito e qualificação, cada um deles com
subdivisões. Nesta pesquisa, trabalharemos com as tipologias
categoria, grupo e crédito, para que seja possível o
reconhecimento das situações em que as mulheres muçulmanas
são usadas como fontes nos veículos estudados.

Na tipologia Categoria, as fontes são divididas em


Primárias e Secundárias. Como fontes primárias entendemos
aquelas que estão diretamente ligadas ao acontecimento do fato
e são a origem da informação. Já a fonte secundária é aquela que
“Contextualiza, interpreta, analisa, comenta ou complementa a
matéria jornalística, produzida a partir de uma fonte primária”
(SCHMTIZ, 2011, p. 24).

As fontes da tipologia Grupo são divididas em: Oficial,


Empresarial, Institucional, Popular, Notável, Testemunhal,
Especializada e Referencial. Fonte oficial é aquela que se
manifesta em nome de órgãos públicos mantidos pelo Estado e

270
organizações agregadas. Já uma fonte empresarial traz a versão
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

dos fatos de uma corporação, independente do setor onde atua.


Institucional é toda a fonte que fale em nome de uma organização
não lucrativa ou grupo social, enquanto a fonte Popular fala por
si própria. O autor destaca que os populares geralmente são
apresentados como “vítima, cidadão reivindicador ou
testemunha” (SCHMTIZ, 2011, p. 26).

As fontes Notáveis são pessoas que estão constantemente


na mídia, como políticos, atletas, atores e cantores. Elas se
diferenciam das fontes especialistas, visto que as últimas
possuem notório saber em determinada área. Há também as
fontes testemunhais, que relatam o que viram, ouviram ou
participaram, geralmente são tratadas como as mais verdadeiras.
Por fim, existem as fontes de Referência. Estas geralmente não
são pessoas, mas sim, documentos, livros, artigos, publicações de
outros veículos de comunicação e dossiês. O autor faz questão de
destacar que assessoria de imprensa e porta-voz não são fontes,
mas sim pessoas autorizadas a transmitir informações sobre
quem representa.

Quanto ao Crédito de uma fonte, ela pode ser anônima ou


identificada. Isto é, se seu nome e informações sobre seu trabalho
ou formação, por exemplo serão citados na matéria. No Brasil, o
jornalista tem direito a manter o sigilo sobre a identidade de sua
fonte, caso ela deseje. Nas reportagens analisadas algumas das
fontes são anônimas, por temerem pela própria segurança.

A terceira etapa de categorização do material foi


relacionada aos assuntos abordados nos textos. Ou seja, os temas
aos quais as mulheres muçulmanas foram relacionadas nos
materiais coletados também foram mapeados. Cada matéria
recebeu apenas uma categorização, referente ao tema principal
do texto. As categorias criadas foram: Vestimenta, Preconceito,
Empoderamento, Corpo, Direitos Humanos, Família,

271
Terrorismo, Esporte e Violência, estabelecidas após a coleta do
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

material, com base na leitura flutuante (BARDIN, 1977).

3 Hijab e a falta de protagonismo

A partir dos critérios apontados quanto à coleta e seleção


do material, o corpus final de análise foi de 51 textos do G1 e 19
da Folha de S.Paulo, totalizando 78 textos (entre notícias e
reportagens) analisados. De modo a discutir como as mulheres
muçulmanas foram representadas nesse conjunto de materiais,
discutimos, como dito, as temáticas a que elas foram associadas
e o tratamento dados a elas nesses textos, ou seja, o modo como
foram qualificadas pelos próprios veículos e a atribuição de
status a partir da tipologia das fontes em que elas se enquadram.
A análise das fontes é necessária para que seja possível
identificarmos a presença ou ausência do protagonismo da
mulher muçulmanas nas matérias em que elas são o tema
principal. Neste tópico, consideramos importante fazer a
discussão separada por veículo de modo a melhor visualizar o
tratamento dado por cada um deles.

3.1 Fontes no G1

O ano em que publicou mais textos sobre as mulheres


muçulmanas foi 2016, com 33 matérias. Nos primeiros nove
meses de 2017 foram veiculados 17 textos e de 11 de setembro de
2015 até 31 de dezembro do mesmo ano, apenas um texto sobre
o tema foi encontrado. Se dividirmos o material por gêneros do
jornalismo informativo, teremos 27 notícias e 24 reportagens.

Dentre as matérias coletadas para a análise, 37 deles não


foram escritos pela equipe do G1, sendo feitos por agências de
notícias. A maioria dos textos reproduzidos são da Agence
France-Presse (AFP) e da BBC. Aguiar (2009), define como
principal função de uma agência de notícias “a importação e

272
exportação de conteúdo jornalístico, especificamente aquele de
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

origem internacional, além-fronteiras” (AGUIAR, 2009, p.2).


Essa informação reitera o pensamento de Filho e Porto (2011),
quando afirmam que a imprensa brasileira mostra os
muçulmanos de acordo com o que pautam as agências
internacionais de notícias.

Quanto às fontes utilizadas na construção dos 51 textos


publicados pelo G1 ao longo do período coletado, o espaço
destinado às mulheres muçulmanas pode ser conferido na tabela
a seguir:

Tabela 1: Fontes apresentadas no G1

Fontes/Veículo G1
Mulheres Muçulmanas 45
Geral 134
TOTAL 179
Fonte: Pesquisa das autoras

O primeiro ponto a ser observado quando analisamos as


fontes que são mulheres muçulmanas é a quantidade delas, em
comparação ao número de matérias coletadas. No portal G1, são
51 textos, entre reportagens e notícias, tendo como assunto
principal a mulher muçulmana, porém, são apenas 45 mulheres
muçulmanas com voz no material analisado. Isso significa que,
no mínimo, seis matérias não deram qualquer espaço de fala
àquelas que são o foco do texto, embora o número seja maior,
visto que algumas reportagens possuem mais de uma
muçulmana falando.

É importante destacar que não são apenas as mulheres


muçulmanas que aparecem poucas vezes como fontes. O
levantamento ¿Quién figura en las noticias?, um monitoramento
global de meios, realizado pela WACC em 20157 mostra que as

7 Disponível em: < http://cdn.agilitycms.com/who-makes-the-


news/Imported/reports_2015/global/gmmp_global_report_es.pdf>

273
mulheres correspondem a apenas 24% das fontes apresentadas
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

em jornais impressos, rádios e televisão no mundo. Em veículos


digitais, elas correspondem a 26% dos entrevistados 8 ,
evidenciando que na narrativa jornalística a desigualdade de
gênero ainda é bastante significativa.

Entre os textos analisados no G1 onde há presença de


várias muçulmanas, pode-se destacar a reportagem “Mulheres
muçulmanas lutam contra preconceito no mercado de trabalho”
(G1 - 23/09/2015), na qual, das quatro fontes apresentadas, duas
são mulheres praticantes da religião.

Já dentre os textos sem nenhuma representante, se


destacam os que falam sobre a proibição do burkini em praias da
França. Ou seja, embora elas “protagonizem” as notícias, não são
ouvidas. Vale destacar que é justamente nesses textos que se
destaca o material proveniente de agências de notícias. Nessas
matérias, a maioria das falas pertencem a políticos ou
representantes de comunidades islâmicas. É pertinente também
o fato de que os representantes do governo entrevistados são
geralmente homens. O GMPP também constatou que isso é
comum no jornalismo mundial. Segundo o levantamento, 10%
das fontes masculinas ouvidas nos noticiários são políticos.

Tabela 2: Tipificação de fontes

Folha de S.
Tipificação/Veículo G1
Paulo
Fontes Primárias 22 (48, 9%) 15 (80%)

Fontes Secundárias 23 (51,1%) 3 (20%)

TOTAL: 45 18
Fonte: Pesquisa das autoras

Acesso em 18/11/2017. Versão resumida disponível em:


<http://cdn.agilitycms.com/who-makes-the-
news/Imported/reports_2015/highlights/highlights_es.pdf> Acesso em:
18/11/2017.
8 O Brasil não participou do levantamento neste ano.

274
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

No portal G1, 51,1% das mulheres entrevistadas são fontes


secundárias, como na reportagem “Neto de libaneses vai ao
Líbano ajudar mulheres jovens com câncer” (15/08/2017), onde
as pacientes do médico Aref Muhedinne comentam a ação e o que
as levou a buscar o atendimento. Nesta reportagem é
interessante ressaltar que dentre as fontes, apenas o
radioterapeuta, um professor da UFRJ que foi usado como fonte
especializada e Lu Braga, a primeira mulher atendida pelo
programa, brasileira e esposa de Muhedinne, aparecem com
nome e sobrenome. As outras sete mulheres têm apenas o
primeiro nome divulgado, embora o indicado por Schmitz (2011)
seja apresentar a fonte com o nome completo e escrito de forma
correta.

Sendo as fontes primárias quem o jornalista usa para


colher as informações básicas sobre o fato ocorrido e as fontes
secundárias aquelas usadas para contextualizar o fato ou auxiliar
na preparação de uma fonte (LAGE, 2006), podemos perceber
que na amostra analisada a maioria das muçulmanas que
aparecem nos textos não são as quem traz a informação essencial
da matéria. Embora a diferença entre fontes primárias e
secundárias seja de apenas 2%, a predominância de fontes
secundárias poderia ser vista como algo positivo, sendo que
indicaria uma maior quantidade dessas mulheres ouvidas como
especialistas ou representantes de instituições, empresas e
governos. No entanto, veremos na tabela a seguir que esse não
foi o caso.

Tabela 3: Classificação das fontes dentro da tipificação Grupo

Fontes dentro da Quantidade de vezes em que


tipificação Grupo apareceram

Popular 31 (68,9%)

275
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

Institucional 8 (17,8%)

Notável 3 (6,7%)

Especializada 2 (4,4%)

Testemunhal 1 (2,2%)

TOTAL: 45

Fonte: Pesquisa das autoras

Na tipificação Grupo, 68,9% das muçulmanas são


apresentadas como fontes populares, aparecendo 31 vezes. Já
como fontes institucionais, elas aparecem 8 vezes (17,8%),
representando ONGs de apoio a refugiados ou membros do
Comitê da Lei Pessoal Muçulmana da Índia. Como fontes
especializadas, foram encontradas duas muçulmanas (4,4%),
sendo uma advogada especialista em Direitos Humanos e uma
Assistente Social. O G1 apresentou 1 (2,2%) mulher muçulmana
como fonte testemunhal, 3 (6,7%) como fontes notáveis e
nenhuma como fonte oficial ou empresarial.

A presença maciça de fontes populares, como


participantes de protestos e cursos, vítimas ou parentes de
alguém, mostra que a voz delas serve apenas como complemento
para a história que outra pessoa está contando, partindo apenas
da visão de uma cidadã comum, sem embasamento em
conhecimentos prévios ou autorização por uma instituição
pública ou privada.

Nas oito vezes em que aparecem como representantes de


uma instituição não lucrativa, três são apresentadas como
presidentes ou fundadoras da organização. Já nas três aparições
como fonte notável, temos uma deputada dinamarquesa, a
vencedora do prêmio Nobel, Malala Yousafzai, e a modelo afegã

276
Zohre Esmaeli que é garota propaganda da Alemanha. Já a fonte
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

testemunhal é Hannan, uma mulher síria vítima de diversos


estupros por membros do Estado Islâmico. Hannan não teve seu
sobrenome divulgado, entretanto o veículo não informa se é por
motivos de segurança ou não.

Dentre as 45 mulheres, três delas são anônimas. Todas


elas aparecem na reportagem “‘Cortei meus pulsos porque não
tinha opção': o drama das meninas obrigadas a se casar”
(27/01/2017) e pediram para que seus nomes não fossem
divulgados por medo de sofrerem represálias. Uma das jovens
que conta sua história de casamento forçado ainda ganhou o
nome fictício de Shafa.

3.2 Fontes na Folha de S. Paulo Online

Dentre 19 matérias analisadas, 12 textos foram publicados


no ano de 2016, 6 em 2017 e 1 em 2015. Delas, 10 vieram de
agências de notícias, sendo que algumas vezes, reportagens que
foram publicadas pela Folha de S. Paulo também foram
publicadas na íntegra pelo G1. Divididos nos formatos do
jornalismo Informativo, temos 9 notícias e 10 reportagens. Nesse
conjunto de texto, a presença das mulheres muçulmanas como
fontes citadas nos textos está destacada na tabela a seguir:

Tabela 4: Fontes apresentadas na Folha

Fontes/Veículo Folha de S. Paulo

Mulheres 18
Muçulmanas
Geral 29

TOTAL 47

Fonte: Pesquisa das autoras

A Folha de S. Paulo também possui mais textos sobre


mulheres muçulmanas do que fontes femininas que professam a

277
religião. São 18 fontes encontradas em 19 reportagens. Assim
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

como no G1, isso não significa que apenas um texto não deu o
espaço de fala para elas, visto que algumas reportagens contam
com mais de uma integrante da religião entrevistada. Porém,
quando elas aparecem na Folha de S. Paulo, 80% das vezes são
fontes primárias, ou seja, são elas que trazem a informação
principal do texto. Apesar do protagonismo, mais uma vez
podemos perceber que as muçulmanas são ignoradas quando se
trata de contatar fontes especializadas para falar de assuntos
diretamente ligados a elas, como pode ser melhor visualizado nas
tabelas a seguir.

Tabela 5: Classificação das fontes dentro da tipificação Grupo

Fontes dentro da Quantidade de vezes


tipificação Grupo em que
apareceram
Popular 12 (66,7%)
Institucional 0
Notável 4 (22,2%)
Especializada 2 (11,1%)
Testemunhal 0
Empresarial 0
TOTAL: 18
Fonte: Pesquisa das autoras

Quando classificamos as 18 fontes dentro da tipificação


Grupo, a primeira coisa que é possível perceber é a total ausência
muçulmanas como representantes de empresas e instituições,
diferente do G1, que trouxe membros de ONGs e órgãos sem fins
lucrativos. Na Folha, nenhuma delas também é trazida como
testemunha de um acontecimento.

Já como fontes populares, podemos encontrá-las 12 vezes


(66,7%). Nesta categoria, as mulheres muçulmanas aparecem
das mais diversas formas para expressar sua opinião pessoal,
como por exemplo uma jovem fotógrafa que tenta levar uma vida
normal entre os conflitos na Nigéria. Pode-se usar como exemplo
a reportagem “Fotógrafa nigeriana mostra cotidiano do país,

278
dominado pelo Boko Haram” (Folha de S. Paulo – 25/09/2016).
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

Elas também aparecem em situações como a da jornalista


muçulmana que posou de véu para a Revista Playboy e da
criadora do burkini, que deu sua opinião sobre a vestimenta que
criou para poder ir a praia sem se sentir constrangida.

Imagem 1: Exemplo de texto com fonte popular

Fonte: Folha de S.Paulo online 9

Como fontes Notáveis, elas aparecem quatro vezes


(22,2%), sendo todas elas atletas que participaram da Olimpíada
Rio-2016. Doaa Elghobashy aparece em duas reportagens, sua
companheira de quadra Nada Meawad uma vez e a esgrimista
americana Ibtihaj Muhammad também uma vez. Schmtiz (2011)
explica que atletas se enquadram como fontes notáveis e que esse

9 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/serafina/2016/10/1815996-


fotografa-nigeriana-mostra-o-cotidiano-do-pais-dominado-pelo-boko-
haram.shtml

279
tipo de fonte geralmente fala sobre o seu ofício ou sobre si
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

mesma, embora no caso das esportistas suas roupas tenham tido


muito mais destaque do que o rendimento na competição. Por
fim, mulheres muçulmanas aparecem duas vezes como
especialistas na Folha de S. Paulo (11,1%). Elas aparecem na
reportagem sobre a expressão Talaq, que também foi publicada
pelo G1 e foi originalmente escrita pela BBC.

A classificação das fontes permite perceber já algumas das


representações dessas mulheres, especialmente, que suas
identidades são reduzidas quase que exclusivamente a sua
prática religiosa. Entendemos que na maior parte das vezes a
motivação para a notícia e/ou reportagem foi justamente algum
aspecto relacionado à própria religião, entretanto, ao não dar elas
a voz da autoridade (atribuída às fontes expert e oficiais, por
exemplo) significa reduzi-las à uma única condição. Isso reforça
não apenas a perspectiva do estereótipo (LIPMANN, 2008;
HALL, 2016) mas também a possibilidade do que a escritora
nigeriana Chimamana Adichie (2009) chamou de “o risco de
história única”, ou seja, de consolidar uma representação que
reduz essas mulheres a vítimas ou fugitivas da opressão de sua
fé, aspecto que é evidenciado no modo como os próprios veículos
fazem suas qualificações como fontes e nas temáticas
enfatizadas, como se verá nos tópicos a seguir.

4 Representação pelos veículos

Neste tópico é analisada a forma como o G1 e a Folha


mostram as fontes que são mulheres muçulmanas,
independentemente de sua classificação anterior. Foram criadas
sete categorias e cada fonte pode ser classificada em mais de uma
delas. As categorias são: Religião; Nacionalidade, Profissão e
Escolaridade; Sem Classificação pelo Veículo; Familiar;
Militante, e Vítima. Nessa subdivisão foi possível registrar que
dentre as entrevistadas das matérias do G1, quase metade delas

280
(21) foram apresentadas pela profissão que possuem ou pelo grau
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

de escolaridade que possuem. Já na Folha de S. Paulo, nove delas


tiveram seus nomes associados ao cargo que exercem ou ao curso
em que estudam. Essa é a forma como a as fontes devem ser
mostradas, de acordo com Schmitz (2011).

No G1, 11 delas foram trazidas para o texto destacando o


seu local de origem e nove tratadas pela religião que exercem.
Nesses textos, é comum ver a expressão “a muçulmana” se
referindo à fonte. Por três vezes o termo foi a única identificação
da entrevistada no veículo. A Folha de S. Paulo identificou suas
fontes apenas duas vezes pela religião professada. Os dois casos
foram referentes às atletas muçulmanas que usaram hijab para
competir nos Jogos Olímpicos de 2016. Quanto à nacionalidade
das mulheres, o país de origem é destacado sete vezes.

Silva (2000) explica que afirmações sobre a identidade de


alguém, na verdade escondem várias negações sobre ela, em uma
simplificação permitida pela linguagem. No entanto, o autor
afirma que dizer “ela é síria” ou “ela é muçulmana”, neste caso,
marca o fato de que existe uma diferença entre essa pessoa e o
leitor. Também foi comum a aparição das fontes como apenas
parente de alguém. Por seis vezes, mulheres muçulmanas foram
reduzidas a mãe, irmã ou familiar próxima pelo G1, como no caso
da reportagem “Luta para derrubar tabus no Paquistão leva mãe
e filha ao ringue” (G1 – 31/10/2016), onde Haleema Abdul Aziz,
apesar de ser uma atleta é apresentada como mãe e viúva. Na
Folha isso acontece apenas uma vez, na reportagem citada acima
que também foi publicada pelo veículo.

281
Imagem 2: Exemplo de texto com fontes qualificadas como
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

familiares

Fonte: Portal G110

Segundo Fidelis e Mosmann (2013), a sociedade tende a


vincular a figura feminina à maternidade mesmo que nos últimos
séculos, os papéis designados às mulheres tenham sofrido
diversas mudanças. Porém, sabemos também que o cuidado dos
filhos é obrigação feminina no Islã. Nas situações citadas acima
é possível identificar que as mulheres apresentadas tiveram suas
identidades resumidas ao fato de terem filhos ou irmãos,
ignorando assim suas profissões e outros fatores importantes
para a identificação de uma fonte. Como Vítimas e Militantes elas
aparecem duas vezes cada no G1 e uma vez como militante da
Folha de S. Paulo. Três fontes do veículo ficaram sem nenhuma
classificação, assim como quatro entrevistadas do G1.

4.1 Temáticas abordadas

Os temas aos quais as mulheres muçulmanas foram


relacionadas nos materiais coletados foram mapeados para que

10Disponívem em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/10/luta-para-


derrubar-tabus-no-paquistao-leva-mae-e-filha-ao-ringue.html

282
pudéssemos verificar a que tipos de assuntos elas são associadas,
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

o que já possibilita verificar as representações a elas atribuídas.


Neste tópico a análise foi feita em conjunto, sem a separação por
veículo a não ser nos exemplos destacados. Cada matéria recebeu
apenas uma categorização, referente ao tema principal do texto.
As categorias eleboradas após a leitura flutuante (BARDIN, 1977)
do material foram: Vestimenta, Preconceito, Empoderamento,
Corpo, Direitos Humanos, Família, Terrorismo, Esporte e
Violência. Os resultados de ambos os veículos estão apresentados
na tabela a seguir.

Tabela 6: Quantidade de matérias por categoria e veículo

Categorias/Veículos G1 Folha de S. Paulo Totais


Vestimenta 28 9 37
Preconceito 6 2 8
Empoderamento 6 4 10
Corpo 2 0 2
Direitos Humanos 2 0 2
Família 2 1 3
Terrorismo 2 1 3
Esporte 2 2 4
Violência 1 0 1
TOTAL: 51 19 70
Fonte: Pesquisa das autoras

A categoria com mais resultados é “Vestimenta”, num total


de 37 textos em 70 analisados. A grande quantidade de textos
classificados nessa categoria pode ser explicada pela repercussão
da proibição do burkini 11 em praias da França. Ao dar tanto
espaço para materiais com foco nas roupas das muçulmanas, é
possível perceber um processo de estereotipização, onde uma
característica é adotada e o grupo fica reduzido a ela (HALL,

11O burkini é um traje que combina biquíni e burca, ou seja, um traje de


banho que cobre todo o corpo da mulher respeitando as tradições
muçulmanas. Um evento realizado num parque aquático na França com
uso do traje foi o desencadeador de várias reportagens em diversos
veículos internacionais e apareceu com destaque na coleta. Uma das várias
reportagens de outros veículos pode ser conferida na BBC Brasil em:
http://www.bbc.com/portuguese/internacional-36981927

283
2016). No entanto, antes de discutir esse grupo e suas
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

subdivisões, iremos analisar as outras categorias.

Em “Preconceito”, os textos coletados, um total de oito,


falam sobre casos de discriminação da mulher muçulmana por
causa de sua fé. Os casos são retratados tanto de forma mais
genérica como na reportagem do G1 “Mulheres muçulmanas
lutam contra preconceito no mercado de trabalho” (PORTAL G1,
2015)12, onde são apresentadas as dificuldades que as religiosas
têm para conseguirem empregos e também para se manterem
neles, como em casos isolados. Um exemplo de material em que
o preconceito que ocorre de forma pontual é abordado pode ser
encontrado nas notícias sobre a cabeleireira norueguesa que foi
levada a julgamento por insultar uma cliente muçulmana,
destacada a seguir.

Imagem 3: Exemplo de texto da categoria Preconceito

Fonte: Portal G113

A categoria Empoderamento é marcada pelas dez notícias


e reportagens sobre mulheres muçulmanas com ações que se

12 Disponível em:
http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2015/07/mulheres-muculmanas-
lutam-contra-preconceito-no-mercado-de-trabalho.html
13 Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/09/cabeleireira-

vai-julgamento-por-discriminacao-religiosa-na-noruega.html

284
destacam em suas comunidades, como a imigrante palestina que
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

ajuda refugiados no estado de São Paulo e a senhora que


revolucionou a forma como o lixo era descartado em sua cidade,
ou na sociedade, como a vencedora do prêmio Nobel Malala
Yousafzai e a ex-refugiada que agora é garota propaganda da
Alemanha. A notícia sobre o curso de inglês oferecido a
imigrantes muçulmanas no Reino Unido, publicada pelo G1,
também está incluída nessa categoria.

Os dois textos ligados ao Corpo falam sobre circuncisão


feminina, amamentação em público e tratamento para o câncer
de mama. Nas duas reportagens, o repórter deixa bem claro que
conversando com as fontes é possível perceber que os dois temas
são tabu nos locais onde os textos foram produzidos (Quirguistão
e Líbano).

Em Direitos Humanos, com dois textos, estes falam sobre


a entrada da Arábia Saudita no grupo de direitos da mulher na
ONU e sobre o drama das meninas que são obrigadas a se casar
na infância, geralmente com homens mais velhos.

A categoria Família conta com duas reportagens


diferentes, embora uma delas tenha sido publicada por ambos os
veículos analisados. Essa reportagem fala sobre o divórcio de
muçulmanos da Índia, onde o marido pode consumar a
separação apenas repetindo a palavra Talaq três vezes. O outro
texto diz respeito a um curso para mães muçulmanas
identificarem se seus filhos estão se juntando a grupos radicais,
destacado na imagem abaixo.

285
Imagem 4: Exemplo de texto da categoria Família
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

Fonte: Portal G114

Em Terrorismo, as reportagens (03) falam da violência


sofrida por mulheres muçulmanas nos território dominado pelo
ISIS, onde seus maridos são assassinados e elas sofrem todo tipo
de violência física e sexual, além do caso de uma universitária
paraense que desapareceu, gerando suspeitas de que tivesse ido
para a Síria se juntar a grupos terroristas.

Por fim, em Esporte as matérias (04) falam em sua


maioria sobre as atletas muçulmanas que competiram na
Olimpíada de 2016. No G1 também foi publicada uma
reportagem que apresenta uma jovem paquistanesa que, junto
com sua mãe, decidiu se dedicar ao Boxe e à quebra preconceitos
no país.

Ao analisarmos essas categorias, podemos perceber que


existem, basicamente, dois temas referentes às muçulmanas: o

14 Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/04/talaq-a-


palavra-que-dita-tres-vezes-da-o-divorcio-a-homens-muculmanos-na-
india.html

286
da mulher que sofre pela falta de respeito aos seus direitos, tanto
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

pela cultura ocidental quanto pelas comunidades muçulmanas


além das ligações com terrorismo, e as religiosas que não
aceitaram o papel de inferioridade imposto e ousaram
revolucionar os meios onde vivem.

Nos dois casos, os materiais reforçam estereótipos para


abordar os assuntos. Os estereótipos são ferramentas que
usamos para darmos sentido ao desconhecido, usando como base
o conhecimento prévio (HALL, 2016).

Na maior parte dos casos nós não vemos em


primeiro lugar, para então definir, nós definimos
primeiro e então vemos. Na confusão brilhante,
ruidosa do mundo exterior, pegamos o que a nossa
cultura já definiu para nós, e tentamos perceber
aquilo que captamos na forma estereotipada para
nós por nossa cultura (LIPPMANN, 2008, p. 85).

Hall (2016), analisando filmes norte-americanos com


protagonistas negros, identificou um processo de reversão do
estereótipo, no qual o grupo que até então era representado como
subalterno e inferior, passa a ser apresentado com “durão” e
heróico, embora ainda mantendo traços marcantes da
estereotipagem, como virilidade e agressividade. Nesse processo,
foi usada a estratégia de substituir imagens negativas por
positivas. Nos textos analisados é possível notar o mesmo
processo. Quando a imagem negativa de vítima sofredora não
está sendo apresentada, temos a versão positiva muçulmana que
se destaca com ações louváveis, mas deixando implícito que para
isso foi necessário quebrar barreiras. De todo modo, em ambos
os casos, ocorre o reforço à uma narrativa bastante simplificada
das identidades e práticas dessas mulheres, aspecto que, como
apontam os autores, é a lógica dos estereótipos que não são
necessariamente negativos, mas que ao associarem as
identidades a aspectos únicos e simplificados, contribuem para
um processo de formação de representações sobre essas
culturas/identidades altamente fragmentado e, deste modo,

287
limitado. É justamente nesse sentido que os estereótipos podem
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

reforçar preconceitos e visões de “senso comum” sobre outras


culturas e outros sujeitos, como é o caso dessas mulheres, que
passam a ser representadas, unicamente, por essas duas
perspectivas.

4.2 As muçulmanas e suas vestes

A categoria Vestimenta, citada acima, recebeu um


tratamento diferente das demais por ser a que possui mais
reportagens (37) e também pela variedade de temas noticiados.
Por este motivo, ela ganhou cinco subdivisões:
Constrangimentos, Proibição, Liberação, Liberdade e Moda.
Dentre essas separações, Proibição ficou com o maior número de
material, contando com 18 textos. Os dois veículos
acompanharam a polêmica das proibições do burkini nas praias
francesas e postaram diversas notícias e reportagens a respeito
do tema. Aqui também foram categorizadas as matérias sobre a
proibição da burca em países como a Holanda e a Austrália. As
imagens a seguir destacam exemplo de textos de ambos os
veículos sobre a proibição do burkini, curiosamente inclusive as
têm praticamente o mesmo título ainda que uma seja
proveniente de agência internacional de notícias (texto do G1) e
a outra produzida pelo próprio veículo (Folha)

288
Imagem 5 – Exemplo de texto de proibição do burkini G1
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

Fonte: Portal G115

Imagem 6 – Exemplo de texto de proibição do burkini


Folha de S.Paulo

Fonte: Folha de S.Paulo online16

15 Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/08/veto-ao-


burquini-na-franca-se-estende-12-municipios.html
16 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/08/1804675-

289
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

Em Liberação, com três textos, ficaram as reportagens


sobre locais onde o uso do véu islâmico ou outras vestimentas
muçulmanas foram liberadas. É o caso das notícias sobre a
autorização dada às policiais canadenses e belgas para usar o
hijab quando estiverem fardadas, assim como a declaração da
Chanceler alemã Angela Merkel sobre a liberdade religiosa e de
uso da burca.

A categoria Liberdade inclui os oito textos sobre


campanhas feitas por mulheres muçulmanas para poderem tirar
o hijab em países como o Irã e a Argélia. As notícias sobre a jovem
que usou mini-saia em um local histórico da Arábia Saudita e
estava respondendo na justiça também foram incluídas aqui,
bem como a cobertura de manifestações na França pela liberação
do uso do burkini. As preocupações de estilistas europeus sobre
o crescimento da moda islâmica e matérias com quem produz
essas roupas, assim como reportagens sobre a boneca Hijarbie
(Barbie de hijab) que faz sucesso no Instagram, são categorizadas
como moda, num total de quatro textos.

Por fim, temos a categoria Constrangimento, com apenas


três textos. Eles falam sobre situações como as abordadas por
uma reportagem publicada no G1, na qual, uma matéria fala
sobre a senhora de véu que foi obrigada a se despir em uma praia
francesa e, a outra, também do G1, das brasileiras que relatavam
problemas por não poderem usar o hijab em seus documentos de
identificação.

5 Considerações finais

Ao concluir esta pesquisa, é possível perceber que a


impressão inicial causada pela leitura flutuante durante a pré-
análise (BARDIN, 1977) é confirmada, o que significa que

veto-ao-uso-do-burquini-nas-praias-chega-a-12-cidades-da-franca.shtml

290
presença de temas como o uso do véu e a violação de direitos são
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

realmente frequentes nos veículos estudados.

Os temas mais relacionados às mulheres muçulmanas são


o uso do véu, com destaque ao burkini, e o preconceito que
sofrem, causado principalmente pela visão que o ocidente tem da
religião. Apesar de denunciar o tratamento preconceituoso da
sociedade, os veículos tendem a apresentar as religiosas com
termos como “a muçulmana” ou pela nacionalidade, quando não
são brasileiras, criando assim uma diferenciação entre elas e o
leitor e, em alguma medida, reduzindo as identidades dessas
mulheres exclusivamente a essa condição.

Ao analisarmos as fontes, ficou claro que os textos, na


maioria das vezes, mostram as muçulmanas sob o estereótipo de
vítima ou de quem superou barreiras para conseguir se destacar
em uma comunidade onde as mulheres não costumam ter voz.
Embora pareça contraditório, os mesmos veículos que
indiretamente denunciam a ausência de espaço de fala das
religiosas também não abrem espaço para elas. Notícias e
reportagens sobre a proibição do burkini na França não
apresentam sequer uma mulher que veste o traje para comentar
as decisões da justiça. Quando elas aparecem, são maciçamente
fontes populares. Ou seja, é uma cidadã comum falando sobre
temas que a afetam, mas sem a autoridade de uma fonte
especializada, institucional ou oficial.

 Retorne ao sumário

Referências
ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma única
história. 2009. Disponível em:
http://www.osurbanitas.org/osurbanitas9/Chimamanda
_Adichie.pdf
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edição 70,
1977.

291
FERREIRA, Francirosy Campos Barbosa. Redes islâmicas
Kerolaine Rinaldi Batista e Valquiria Michela John
Representações de mulheres muçulmanas no
jornalismo brasileiro

em São Paulo: nascidos muçulmanos e revertidos. Revista


Litteris, n. 3, p. 1-27, nov. 2009.

FIDELIS, Daiana Quadros; MOSMANN, Clarisse Pereira.


A não maternidade na contemporaneidade: um
estudo com mulheres sem filhos acima dos 45 anos.
Aletheia, Canoas , n. 42, p. 122-135, dez. 2013 .
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292
1 (A)normalização da pessoa com deficiência

Vivemos um tempo em que a inclusão de pessoas com


deficiência se tornou um imperativo. Falamos desse tema nas
escolas, nos telejornais e nas telenovelas. No entanto, o que
temos na prática são discursos que pendem ora para o
assistencialismo, ora para a pena, desses sujeitos a quem
chamamos de pessoas com deficiência.

Em toda nossa história as pessoas com deficiência vêm


sendo tratadas como diferentes e, na maioria das vezes, como
anormais. Por carregarem em seus corpos os sinais dessa
diferença, pessoas com deficiência já receberam os mais diversos
nomes e rótulos: aleijado, monstro, retardado, deformado,
incompleto, incapaz. Em suma, a pessoa com deficiência tem
sido, historicamente, esquadrinhada pela medicina e rechaçada
pela sociedade.

Não podemos falar em uma evolução de como as pessoas


com deficiência eram vistas outrora e como são hoje. Isso
porque, de fato, esse caminho não foi linear e ainda hoje temos
circulando no imaginário coletivo, ideias como se tinha na Grécia
antiga, quando os “aleijados” eram considerados impuros e
exemplos da ira divina; ou na Idade Média, quando esses
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

mesmos aleijados foram levados a lugares de reclusão para


pessoas com mazelas físicas e/ou mentais. As pessoas com
deficiência eram - e continuam sendo - vítimas de olhares de
pena e de um pensamento ocidental cristão que vê na deficiência
do corpo uma deficiência “do espírito”. Ainda hoje vemos pessoas
com deficiência sendo afastadas do convívio social e, ainda que a
educação inclusiva seja uma lei e as vagas para pessoa com
deficiência no mercado de trabalho uma obrigação, não vemos
isso sair do papel de forma satisfatória.

Se no século XIX as pessoas com deficiência eram atrações


de circos, principalmente nos EUA e na Europa, como nos freak
shows de Barnum e Bailey (circo norteamericano que, entre
1880-1890, teve mais de mil pessoas com deficiência contratadas
tendo suas “anomalias” e a ridicularização de suas diferenças
como maior atração), ainda as vemos assim em muitos
programas de TV. Até o final do século XIX, pouco antes de se
tornar inaceitável expor pessoas como objeto do riso e do nojo,
esses circos eram muito comuns, bem como a exposição de
pessoas com deficiência para fins comerciais. As pessoas com
deficiência não eram vistas como pessoas. Assim como muitas
ainda vivem nos dias de hoje, eram segregadas e exploradas. Por
conta de uma cobrança social, atualmente não vemos essa
segregação e exploração acontecer nos picadeiros, mas não
faltam exemplos de pessoas com deficiências pedindo esmolas
nas esquinas de nossas cidades.

Também vem do século XIX a utilização das palavras


normal, normalidade e normalização para designar aquilo que
segue um padrão, que é regular. No seu curso Os Anormais
Michel Foucault disseca os elementos que passam a constituir a
anormalidade e as instituições e jogos de poder envolvidos nesse
processo. Segundo o filósofo, nesse curso ministrado em 1975,
um conjunto de instituições de controle criaram elaborações

294
teóricas para a categoria “degeneração”. Para o autor,essas
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

teorias “ridículas” tiveram e continuam tendo um efeito real


muito importante para nossa sociedade. Sem dúvida, aque mais
reverberou foi a do homem médio (l’homme moyen), do
estatístico Adolphe Quetelet. Para ele existiria um ser humano
médio que serviria de baliza para o que poderia ser considerado
normal. Qualquer variação para mais (superdotações, por
exemplo) ou para menos (deficiências), seria considerado
anormal. A criação desse homem médio dá origem ao movimento
eugenista, que ainda hoje atua com a prática da eliminação dos
“defeitos” humanos, considerando as deficiências como algo a ser
eliminado e não valorizado como uma diferença ou uma
identidade.

A normalização do ser humano acaba por ver as pessoas


com deficiência como seres de segunda classe e suas deficiências
como algo a ser consertado e eliminado. O poder dos discursos
cria divisões sobre o que é aceitável e o que não é, operando
exclusões. Nessa perspectiva, pessoas com deficiências
irreversíveis seriam erros na sociedade e algo a ser escondido dos
olhos dos “normais”. A sociedade parece se conceber enquanto
“grupo homogêneo, constituído de pessoas normais, cujo
conceito de normalidade se faz a partir de padrões estéticos e
produtivos que desconsideram a existência singular dos seres. As
pessoas com deficiência, por não se enquadrarem nesses
padrões, acabam ocupando um lugar de diferenciação social”
(DE CARLI, 2010).

Apenas após a segunda metade do século XX é que a


pessoa com deficiência é vista como um sujeito de direito. É
também nesse período que instituições de caridade passam a
ajudar as pessoas com deficiência no âmbito da educação, porém
de forma paternalista e não inclusiva. Apenas em 1975 é
proclamada, pela Assembleia Geral da ONU, a Declaração sobre

295
os Direitos das Pessoas com Deficiência. É, portanto, no século
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

XXI que as pessoas com deficiência se tornam sujeitos de direito.

Por ser um movimento relativamente recente, a luta das


pessoas com deficiência para serem reconhecidas em nossa
sociedade ainda caminha devagar. Aos poucos, com o aumento
das pessoas com deficiência nas escolas, universidades, postos de
trabalho e nas ruas, é que elas têm se reunido como grupo
politicamente e eticamente ativo, que luta por si e por melhores
condições sociais. Ainda que boa parte da sociedade continue
olhando para as pessoas com deficiência com pena ou temor, com
o lema “nada sobre nós sem nós” temos conseguido uma
participação social maior, mostrando que existem outras formas
de se ver, tratar e conviver com a deficiência sem que seja pelo
medo, pela pena ou pela ótica biomédica da cura e conserto.

2 A representação midiática da pessoa com deficiência

Se a nossa sociedade sempre viu a pessoa com deficiência


como um anormal, na mídia e nas artes não foi/é diferente. Num
estudo bastante completo sobre a representação das pessoas com
deficiência na televisão nos EUA e na Inglaterra, Barnes e Mercer
(2001) constataram que as deficiências costumam ser
apresentadas a partir da tragédia pessoal e do sensacionalismo,
bem como curas milagrosas, trazendo a pessoa com deficiência
como objeto de pena e caridade. Muitas vezes é o freak show
transposto para as telas atuais. Barnes ainda identifica alguns
estereótipos culturais mais frequentemente mostrados pela
mídia para as pessoas com deficiência: lamentável, patético,
objeto de violência, sinistro, do mal, “curioso”, aleijado, objeto do
ridículo, como seu próprio mal ou próprio inimigo, sexualmente
anormal e incapaz de participar da vida em comunidade.

O corpo deficiente chama a atenção do olhar, no


entanto, as pessoas com deficiência sentem-se invisíveis pela
sociedade. Essa invisibilidade se dá, principalmente, na falta de

296
acessibilidade e no capacitismo, que é o preconceito dirigido às
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

pessoas com deficiência. Pessoas com deficiência física


dificilmente têm acesso pleno aos mais diversos lugares, pessoas
com deficiências sensoriais não têm acesso a uma comunicação
adequada, pessoas com os mais diversos tipos de deficiência não
recebem da sociedade atitudes que demonstrem que elas são bem
vindas. Em uma sociedade que valoriza o corpo magro como
perfeito, muitas vezes inatingível para a maioria das pessoas, o
corpo que tem uma diferença considerada como uma
deformidade não tem lugar nas telas para algo bom. Assim, a
pessoa com deficiência aparece na mídia como alvo de chacota,
de alguém que precisa ser normalizado ou do vilão, que recebe a
deficiência como castigo.

Assim, vejo a deficiência dentro de um contexto sócio-


político-econômico-histórico, um modelo social proposto pelos
Estudos da Deficiência (Disability Studies – tradição que se
desenvolveu no seio dos Estudos Culturais), os quais veem os
impedimentos do corpo como parte da condição humana.
Enquanto o modelo biomédico vê apenas a falta, o desvio
corporal e a necessidade de cura, o modelo social vê as limitações,
fragilidades e faltas do corpo como parte do que é ser humano.
Além disso, o modelo social olha para esse ser que tem um corpo
diferente dentro do seu contexto social e de tudo o que ter
deficiência acarreta no seu cotidiano e sua forma de viver o
mundo. O corpo é relacional, é contextual e interage com o
mundo conforme suas condições próprias e individuais.

Se a mídia, que é a cultura dominante na


contemporaneidade, continua apresentando as pessoas com
deficiências como seres anormais, continuaremos alimentando
essa ideia da pessoa que está fora de seu lugar. Vendo a
representação midiática a partir do paradigma da inclusão,
podemos concluir que, quanto mais as pessoas conviverem com
pessoas com deficiências e suas histórias reais, sem o filtro do

297
sensacionalismo e da hiper dramatização, a sociedade como um
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

tudo ganhará com isso, uma vez que essas pessoas serão vistas
primeiramente como pessoas e suas deficiências como uma
característica de suas existências. Segundo Hall (1997), é no
compartilhamento de significados comuns à sociedade que os
diálogos se tornam possíveis. Assim, a inclusão, que não é um
processo que diz respeito apenas às pessoas com deficiência, mas
sim à toda a sociedade, passa por esse processo de
compartilhamento que pode ser intensificado e elevado a uma
potência maior com a ajuda da mídia. Considerando a mídia
como um importante dispositivo de normalização na sociedade
em que vivemos, podemos vislumbrar também esse dispositivo
de poder sendo utilizado para criar novos significados às
deficiências.

3 A representação da deficiência nas telenovelas


brasileiras

Pensando na representação de pessoas com deficiência na


mídia e trazendo essa reflexão para o contexto brasileiro, escolho
as telenovelas como importante meio de problematização da
nação. Em nosso país, mesmo em tempos de conteúdo por
demanda e internet de alta velocidade, as telenovelas continuam
agendando assuntos da vida cotidiana. Basta uma olhada nas
redes sociais no horário em que está passando a novela das 21h
para constatar que mesmo nas redes sociais o brasileiro continua
falando daquilo que vê na TV. Certamente não posso generalizar
tal afirmação. Mas sabemos que, quando uma questão como a
deficiência é tratada em uma telenovela, acaba virando assunto
no telejornal, no programa de variedades da manhã, e nas capas
de revista do Brasil inteiro.

Trazendo alguns dos grandes teóricos desse produto


cultural para a discussão, p Martín-Barbero (2008) nos lembra
que a televisão e a ficção televisiva são decisivas para a

298
construção da identidade coletiva da nação. Para ele a telenovela
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

é o formato que cruza as lógicas da globalização e das culturas


populares regionais, ao representar aspectos da vida cotidiana do
espectador, misturando fatos da “vida real” do telespectador e
assuntos que estão em voga na sociedade, junto à história
contada através da ficção.

A telenovela no Brasil não é apenas um entretenimento ou


um grande produto da indústria cultural, mas é também um
importante dispositivo de pedagogia cultural. A sociedade se vê e
se aprende nesse processo de ficção e verossimilhança ofertado
pela telenovela. E é assim que alimenta “um repertório comum
por meio do qual pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça
e regiões diferentes se posicionam e se reconhecem umas às
outras” (LOPES, 1999).

Foi pensando nas telenovelas como um meio de ensinar


sobre normalização, sobre o que é um ser humano aceitável e
sobre quem são as pessoas com deficiência que busquei quais
foram as representações de pessoas com deficiência nas
telenovelas brasileiras, mais especificamente da Rede Globo, que
apresentou, em 45 anos de telenovela (1965-2010), 17
personagens com deficiência num universo de 248 telenovelas.
Vejamos então esse mapeamento pormenorizado e
exemplificado.

4 Vítimas, heróis ou vilões: a pessoa com deficiência nas


telenovelas da Rede Globo

Para entendermos melhor o panorama da representação


da pessoa com deficiência em telenovelas brasileiras, realizei um
levantamento sobre os personagens com deficiência que já
apareceram nas novelas da Rede Globo, de 1965 a 2010. Escolhi
as telenovelas da Rede Globo de Televisão por ser, atualmente, a
emissora com maior cobertura no território brasileiro, atingindo
5.564 municípios e 99,50% da população nacional (REDE

299
GLOBO, 2010). O levantamento desses dados foi feito a partir de
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

consulta ao site Memória Globo (2010), que traz a sinopse e


algumas curiosidades sobre cada telenovela e, a partir dos sites
criados para as telenovelas, no caso das novelas mais atuais. Por
esse motivo, tivemos acesso a maior quantidade de dados de
algumas novelas que de outras.

Também é importante esclarecer que não considerei nesse


mapeamento os personagens que, por algum motivo, como
acidente, tenham ficado com dificuldades físicas temporárias em
curto período da trama. Considerei apenas os personagens com
deficiência física permanente (mesmo adquirindo a deficiência
no final da novela), ou personagens que passaram a maior parte
da novela com a deficiência.

A primeira novela a apresentar um personagem com


deficiência física pela Rede Globo é também uma das primeiras
novelas da emissora. Rosinha do Sobrado (19h), novela escrita
por Moysés Weltman, apresentou, em 50 capítulos, em 1965, a
história de amor entre a jovem Rosinha e seu médico. Rosinha,
interpretada por Marília Pêra, era uma moça paraplégica que
passava os dias dentro de sua casa, olhando o movimento da
cidade pela janela. O médico passava pela casa da moça todos os
dias e se apaixonou, apesar de não poder se aproximar, até o dia
em que foi chamado pela família da jovem para fazer uma
consulta. Os dois apaixonaram-se e começaram a namorar.
Rosinha foi a primeira personagem com deficiência física
protagonista de novela. Podemos ver a personagem como a
Vítima, nas quatro categorias de personagem do melodrama,
citadas por Martín-Barbero (2008). No enredo se vê o
estereótipo da mulher com deficiência a ser salva por um
“homem capaz”. Rosinha era ao mesmo tempo vitimizada e
divinizada. Vitimizada, porque era uma pessoa sofredora, a ser
salva. E divinizada, porque representava pureza e bondade,
sentimentos atribuídos à maioria das pessoas com deficiência.

300
Rosinha do Sobrado retratou como viviam as pessoas com
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

deficiência à época, que eram pessoas incapacitadas não apenas


de caminhar, mas de viver em sociedade, tendo uma vida quase
de clausura em seus lares ou casas de repouso.

Mais de 10 anos depois, em 1978, Cassiano Gabus Mendes


levou ao ar a novela Te Contei? (19h), apresentando um
personagem cego. O ator Luis Gustavo interpretava Léo,
personagem de núcleo secundário da novela, que ficou cego
ainda adolescente, aos 14 anos. Léo morava na pensão de Lola,
local do subúrbio carioca onde Sabrina, protagonista da novela,
de família de classe média alta, se envolve com Léo. Léo se divide
entre o amor de Sabrina e Shana, personagem do subúrbio, que
lutava para vencer na vida. O personagem foi apresentado como
uma pessoa animada e que aproveitava a vida. O triângulo
amoroso formado por Léo, Sabrina e Shana era uma das
principais histórias da novela. Em Te Contei?, o personagem com
deficiência visual leva uma vida normal, como todos os outros
personagens. A deficiência do personagem não é discutida na
trama, mas é mostrada de forma positiva, uma vez que o
personagem é uma pessoa independente e feliz. Em entrevista ao
site Memória Globo, Luis Gustavo disse que no início não estava
feliz com a caracterização de seu personagem, até que se lembrou
de um antigo amigo, que possuía deficiência visual, no qual ele se
inspirou para montar o personagem. Léo foi apresentado como
um vencedor, alguém a ser admirado, divinizado.

O autor Manoel Carlos escreveu seu primeiro personagem


com deficiência física em 1982, quando vai ao ar a novela Sol de
Verão (20h), na qual Tony Ramos interpretava Abel,
personagem surdo. Abel era apresentado como uma pessoa
divertida, sensível e inteligente. Abel, personagem de núcleo
secundário da novela, ficou surdo após ter meningite aos oito
anos de idade. Abel não conhece sua mãe e é abandonado pelo
pai, fato que fez do personagem uma pessoa reclusa. Durante a

301
trama, as pessoas que conviviam com Abel desconfiavam de sua
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

deficiência, achando que podia ser apenas uma fuga do


personagem. O homem que o criou acreditava que ao encontrar
seus pais, Abel voltaria a ouvir. Mesmo com a deficiência, Abel
tinha uma vida social ativa, conseguiu empregar-se e casou-se até
o final da trama. Antes disso, Abel conseguiu a oportunidade de
dar aulas para uma turma de deficientes auditivos no colégio
onde ele estudava, e fez terapia com uma fonoaudióloga, para que
desenvolvesse a fala, apesar de sua deficiência auditiva. O
personagem Abel teve grande repercussão entre o público. Esta
foi a primeira novela a discutir, em alguns momentos da trama,
aspectos do cotidiano do deficiente auditivo, como a necessidade
de educação formal das pessoas com deficiência e o
desenvolvimento da fala em deficientes auditivos. Durante a
novela, o alfabeto dos sinais começou a ser distribuído em
panfletos nas ruas das grandes cidades do país e o jornal O Globo
chegou a publicar o alfabeto em suas edições (MEMÓRIA
GLOBO, 2010). Detalhes sobre a trama de Sol de Verão podem
ser encontrados em A Leitura Social da Novela das Oito, onde
Ondina Fachel Leal estuda a recepção dessa telenovela. Assim
como Léo, de Te Contei, Abel era um vencedor, que lutou contra
as adversidades da deficiência e do abandono para ser feliz e era
um exemplo a ser seguido.

Em 1988, Walther Negrão levou ao ar a novela Fera


Radical (18h), na qual Altino Flores (interpretado por Paulo
Goulart), homem poderoso e patriarca da família principal do
enredo, ficou em cadeira de rodas, após um grande incêndio no
qual morreu a família da protagonista da história. Fera Radical
conta a história de Cláudia (Malu Mader), que perdeu toda a sua
família no incêndio e volta anos mais tarde, para destruir os
envolvidos na morte de sua família, dentre eles Altino Flores.
Mesmo sendo uma pessoa influente na sociedade, por ser um
grande fazendeiro, Altino é apresentado como um incapaz, por
conta de sua deficiência. Antes do incidente, Altino era um

302
personagem rígido e ambicioso, que se tornou doce e amigável
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

depois de ficar dependente em uma cadeira de rodas. Cláudia,


que pretendia acabar com Altino, surpreende-se com a amizade
e carinho do personagem. Ainda na metade da trama, o
personagem decide voltar a fazer fisioterapia e faz novos exames,
descobrindo que pode voltar a andar. Até o final da trama Altino
consegue andar normalmente. Em Fera Radical é mostrada a
deficiência como redenção moral do personagem, que, após
conseguir ser um “homem bom”, se recupera também da
deficiência. Altino, que inicialmente era visto como o vilão da
novela passa a ser um herói vencedor.

A novela O Sexo dos Anjos (18h), em 1989, de Ivani


Ribeiro, trazia o ator Marcos Frota como Tomás, personagem
surdo e mudo, que fazia parte do núcleo central da novela. Tomás
era rejeitado por uma de suas irmãs, Ruth (protagonista da
novela) que achava que o irmão era o culpado por todos os seus
problemas, pelo fato de ter deficiência auditiva. Mais uma vez o
alfabeto dos sinais foi divulgado via telenovela. Tomás era um
personagem carinhoso e bom com todas as pessoas, até mesmo
com a irmã Ruth, que o humilhou durante toda a novela. No final
da novela, a mãe de Tomás revela que o filho ficou surdo-mudo
após o marido, Teófilo, empurrá-lo com força e Tomás ter rolado
pela escada, batendo a cabeça nos degraus. Nessa cena, Ruth,
sensibilizada pela história pede desculpas ao irmão. A bondade
de Tomás tem sua maior expressão quando ele se oferece para
morrer no lugar da irmã Isabela, para que ela pudesse viver seu
grande amor. Tomás representa o estereótipo do “bom
deficiente”, divinizado, sempre solícito a todos e tendo a sua vida
atrelada à dos outros.

No primeiro ano da década de 1990, na novela Meu Bem


Meu Mal (20h), de Cassiano Gabus Mendes, um dos personagens
do núcleo principal, Dom Lázaro Venturini, interpretado por
Lima Duarte, sofreu um Acidente Vascular Cerebral. Por conta

303
disso, perdeu a fala e os movimentos do corpo. Dom Lázaro era o
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

sócio majoritário da Venturini Designers, empresa onde


acontecem as principais tramas da novela. Apesar de não ser
problematizado o cotidiano da pessoa com deficiência de forma
explícita, foi mostrada, na trama, a evolução da reabilitação de
Dom Lázaro, feita por fisioterapeutas, e os cuidados especiais que
ele recebia de seus cuidadores e enfermeiras particulares.
Durante a novela, o Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia
Ocupacional enviou nota à imprensa desaconselhando o uso de
bolas de borracha em tratamentos fisioterápicos, como o que era
feito com Dom Lázaro (MEMÓRIA GLOBO, 2010), após sofrer
um derrame. Uma das cenas marcantes da trama foi a
recuperação da fala do personagem. A exemplo de Fera Radical,
o personagem com deficiência era um homem poderoso que
acaba dependente dos outros. A pessoa com deficiência é
apresentada como incapaz até mesmo de fazer suas escolhas.
Sendo vitimizado, a deficiência do personagem é sinônimo de
grande sofrimento.

Em Felicidade (18h) novela de Manoel Carlos, de 1991, a


personagem do núcleo central da novela Débora (Vivianne
Pasmanter), moça rica e problemática, ficou paraplégica nas
últimas semanas da trama quando fugia após tentar matar sua
rival na trama. Débora era explicitamente a vilã da novela, e seu
acidente trágico pode ser visto como um “castigo” pelas maldades
que ela fez durante a história da novela. No final da trama há uma
espécie de esperança para que Débora volte a andar. Ao contrário
de Altino, em Fera Radical, que teve na deficiência sua redenção
moral, Débora continua sendo má após o acidente. A
personagem, mesmo sendo apresentada como má, é vitimizada,
uma vez que a deficiência lhe trouxe apenas dor e sofrimento.
Além de não discutir o cotidiano do paraplégico, foi criada uma
cura milagrosa para a personagem, dando a entender que a
pessoa cadeirante só é cadeirante por não procurar um
tratamento melhor ou mais caro.

304
O autor Manoel Carlos volta a falar de deficiência física,
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

dessa vez com maior atenção, em História de Amor (18h), em


1995. Na metade da novela, o esportista Assunção (Nuno Leal
Maia), personagem do núcleo secundário da trama, sofreu um
acidente de carro e ficou paraplégico. Através da história do
personagem, foi discutida a depressão, comum à pessoa com
deficiência, principalmente antes do seu processo de aceitação. A
novela mostrou o esporte como ferramenta de reabilitação física
e emocional e de inclusão social da pessoa com deficiência. O
personagem Assunção tem no esporte o incentivo para viver em
sociedade. Através do esporte Assunção vê que ainda é um
homem capaz de produzir e fazer parte da sociedade. Assunção é
retratado como um herói, que venceu as adversidades da
deficiência, mais um personagem divinizado. Além da
deficiência, o autor trata de outro tema de saúde: o câncer de
mama. Durante a novela foi criada uma campanha de
conscientização e prevenção do câncer de mama.

Na novela Vira Lata (19h), de Carlos Lombardi, em 1996,


a personagem Pietra (Vanessa Lóes), de núcleo secundário da
novela, fica paraplégica após ser baleada em uma fuga policial
junto de Fidel (filho de uma das protagonistas da novela). Fidel e
Pietra têm uma relação de amor de muito tempo, entretanto,
Renata aparece no meio da trama, formando o triângulo
amoroso. Pietra ficou paraplégica ao ser baleada para salvar a
vida de Fidel. Penalizado com a situação de Pietra, Fidel fica com
ela, e seu filho Toquinho, que se descobre no final, ser filho de
Fidel também. Após 15 anos juntos, sentindo-se incapaz como
mulher e responsável pela infelicidade de Fidel, Pietra promoveu
o reencontro de Fidel com Renata, amor de sua vida, e que tinha
um filho com ele. Nessa trama, o protagonista é apresentado
como um mártir, por ter ficado com uma mulher com deficiência
física. A deficiência, nesse caso, é um empecilho para a felicidade,
tanto da pessoa com deficiência quanto do seu companheiro, que
permanece com ela por sentimento de pena, não de amor. A

305
personagem sente-se um peso na vida de seu companheiro e só
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

vê felicidade longe da cadeira de rodas. Pietra é um personagem


como Rosinha, de Rosinha do Sobrado, no sentido de que há
vitimização, pois sua deficiência é motivo de grande sofrimento,
e divinização, no momento que Pietra abre mão de seu “grande
amor” para que ele seja feliz.

Em 1998, a novela Torre de Babel (20h), de Silvio de


Abreu, mostrava Shirley (Karina Barum), personagem com
deficiência motora, que apresentava marcha claudicante. Shirley
era uma jovem muito tímida em decorrência da sua deficiência e
pertencia a um núcleo secundário da novela. Durante a trama,
Shirley passou por um processo cirúrgico e, até o final da novela,
voltou a andar normalmente. Na trama, Shirley cuida do
personagem Jamanta, que tem deficiência mental. Suas únicas
relações são com o pai e os irmãos, no ferro-velho onde vivem. É
lá também que se passam as cenas cômicas da novela. Shirley é
apresentada como o “bom deficiente”, assim como Tomás de
Sexo dos Anjos, que ajuda a todos e é resignado a um destino de
dependência (divinização). E novamente a deficiência é
mostrada como um empecilho para se relacionar em sociedade e
motivo de reclusão e vergonha (vitimização). Ao conseguir andar,
sua vida mudou e ela pôde realizar seus sonhos de trabalho e
família.

Em 2000, na novela Esplendor (18h), de Ana Maria


Moretzsohn, que se passava na década de 1950, a personagem
Olga (Joana Fomm) era cadeirante. Personagem do núcleo
central da trama, Olga era uma mulher agressiva e rancorosa. Na
trama, o rancor de Olga é ligado à sua deficiência. Olga era casada
com Norman, médico da cidade, que continuou com ela mesmo
amando outra mulher, por sentir-se responsável pela esposa com
deficiência, que ficou em cadeira de rodas após complicações no
parto de sua filha. Mais uma vez, a pessoa com deficiência física
tem um companheiro apenas por pena, e não por amor. A pessoa

306
com deficiência é mostrada como alguém incapaz de viver em
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

sociedade, amar e ser feliz. A deficiência não foi discutida de


forma explícita na trama, mas era claramente o motivo da
infelicidade do casal Olga e Norman e da personalidade
rancorosa de Olga. Como a vilã Débora, de Felicidade, Olga é
vítima de sua deficiência.

Ainda no ano de 2000, Manoel Carlos escreveu a novela


Laços de Família (20h), na qual trazia o personagem Paulo,
jovem com sequelas neurológicas de um desastre de carro. Paulo
era um personagem do núcleo secundário da telenovela, filho de
um dos protagonistas. Paulo era interpretado por Flávio Silvino,
ator que havia sofrido um acidente de carro e que tem sequelas
neurológicas na vida real. No site criado para Laços de Família1,
pode-se ler toda a história do ator Flávio Silvino, incluindo uma
entrevista do autor Manoel Carlos, na qual ele explica a criação
do personagem:

“Flávio era um dos campeões de cartas na Globo. Ele


é um ator talentoso, bonito e inteligente, que quer
voltar a ser útil", disse na época em uma entrevista o
autor Manoel Carlos. "Eu pensava em criar um
personagem que fosse cabível ao Flávio”, completou
o autor, continuando: “Na novela, tive essa
oportunidade. O Paulo tem semelhanças com o
Flávio, mas sua história é diferente porque não estou
contando a história do ator e sim de um personagem
que tem problemas iguais. Assim, pudemos falar de
preconceitos, de como lidar com pessoas que são
portadores de deficiência, de tratamentos
terapêuticos, enfim, abordar o tema de uma forma
muito digna (LAÇOS DE FAMÍLIA, 2011).

O personagem foi escrito de forma a inserir o ator na


novela, apresentando as dificuldades de um politraumatizado e
seu tratamento fisioterapeutico. Além de problematizar a
deficiência, pode-se dizer que o autor promoveu a inclusão de um
ator com deficiência no mercado de trabalho. O personagem
Paulo não teve grande destaque na trama, entretanto, foi muito

1 www.lacosdefamilia.globo.com

307
comentado por se tratar do retorno de um ator conhecido e
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

querido pelos telespectadores, que pensavam que nunca mais o


veriam atuando em telenovelas. Paulo pode ser considerado um
personagem vencedor, uma vez que lutava para melhorar sua
qualidade de vida. O autor ainda trouxe outra questão social na
novela, que teve maior destaque: a leucemia e a doação de
medula óssea, com a personagem Camila (Carolina Dieckmann).
Os personagens com doenças e deficiência de Manoel Carlos
costumam ser divinizados, e têm nas adversidades um meio de
aprendizado e construção de felicidade.

Além das novelas Vira Lata e Esplendor, nas quais as


personagens com deficiência tinham um parceiro por pena, a
novela Desejos de Mulher (19h), de Euclydes Marinho, trazia, em
2002, essa mesma visão. Uma das protagonistas, Júlia (Glória
Pires), ficava com o marido Renato (Cássio Gabus), após ele ficar
paraplégico, depois de levar um tiro. Júlia, que não o amava mais
e tinha uma história de amor com seu colega de trabalho, Chico,
permanece casada com Renato por sentir-se na obrigação de
cuidar do marido. No final da trama, Júlia separou-se de Renato
e ficou com Chico, com quem já tinha um relacionamento
amoroso. Entretanto, durante toda a trama, é mostrada uma
relação entre Renato e Júlia que tem como base os sentimentos
de pena e a amizade, e não o amor entre um homem e uma
mulher. Mais uma vez, a deficiência é tratada como um castigo
(vitimização), não só para a pessoa com deficiência como para
quem vive com ela.

Em 2005, na novela América (20h), de Glória Perez, uma


trama paralela à história principal problematizou a deficiência,
com ênfase na deficiência visual. A personagem Flor (Bruna
Marquezine), criança cega que foi superprotegida por conta da
deficiência, não tinha nenhuma interação com o mundo até
conhecer Jatobá (Marcos Frota), um deficiente visual que, apesar
das limitações, praticava esportes, dançava e trabalhava como

308
produtor de eventos. Aos dois personagens, juntaram-se as
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

crianças Eduarda Emerick, a Duda, e Gabrielzinho do Irajá, que


são cegas na vida real e apareceram em situações que vivem no
seu dia a dia. A novela destacou as dificuldades encontradas pelas
pessoas com deficiência visual no seu dia a dia e apresentou
alternativas de inclusão social para o deficiente visual. Foi criado,
ainda na novela, um programa fictício de TV, o É preciso saber
viver, apresentado por Dudu Braga, filho do cantor Roberto
Carlos, que tem apenas 5% da visão. Neste programa foram
entrevistadas pessoas com as mais diversas deficiências e
apresentados projetos de inclusão social para o sujeito com
deficiência. Pode-se dizer que América é a primeira novela a
problematizar, de forma responsável, as dificuldades da pessoa
com deficiência durante toda a sua trama. Durante a telenovela
foram discutidas, pelos personagens, boa parte das categorias
que identificamos para analisar em Viver a Vida, como a
acessibilidade, formas de enfretamento da deficiência, a
deficiência em si, a reabilitação e a visão do outro sobre a pessoa
com deficiência. Essas discussões, durante a telenovela, tiveram
grande repercussão no cenário midiático nacional, aparecendo
nos mais diversos jornais (impressos e televisivos) e sendo
discutido pela população. No site criado para divulgação da
novela2, ainda disponível na rede, foi criado um hotsite3 no qual
há informações como o que é a deficiência visual, como lidar com
ela, o mercado de trabalho para a pessoa com deficiência visual,
as adaptações necessárias, o uso de cão-guia, o sistema Braille, as
pesquisas médicas sobre deficiência visual e serviços disponíveis
no Brasil às pessoas com deficiência visual. Definitivamente, os
personagens com deficiência de América, são todos vencedores
(divinizados).

2www.america.globo.com
3Micro-site ou mini-site é um pequeno site planejado para apresentar e
destacar uma ação de comunicação, dentro de um site principal.

309
O ano de 2009 foi o mais significativo no quesito
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

representação de pessoas com deficiência física na


teledramaturgia. Três novelas apresentaram personagens com
deficiências físicas e sua vida cotidiana. A primeira, Caras e
Bocas (19h), de Walcyr Carrasco, trazia em núcleo secundário da
novela a personagem Anita, deficiente visual interpretada pela
atriz Danieli Haloten, atriz que é deficiente visual na vida real. Na
trama, Anita era superprotegida, mas tinha na tia a figura de
apoio para que ela tivesse uma vida como a maioria dos jovens de
sua idade e pudesse trabalhar, namorar, etc. No decorrer da
trama, Anita trabalhou, casou-se e no final da novela teve um
filho, mostrando que deficientes visuais podem fazer as mesmas
coisas que uma pessoa que enxerga, inclusive, criar um filho. A
deficiência passa a aparecer como mais um aspecto na vida da
pessoa com deficiência, e não sua característica principal. Ainda,
a deficiência não aparece como empecilho para felicidade e uma
vida comum. A personagem é mostrada como uma vencedora,
que luta contra o preconceito e faz as adaptações necessárias para
que tenha uma vida feliz. Além disso, Anita também é
apresentada como uma menina inocente e com a pureza de um
anjo, reiterando a divinização da personagem. O fato da
personagem ser interpretada por uma pessoa com deficiência
visual provocou grande repercussão nos jornais e revistas, como
reportagem da revista Veja (2011).

O personagem adolescente Tarcísio, de Cama de Gato


(19h), novela de Duca Rachid, teve menor representatividade na
trama geral da novela. Filho da protagonista da novela, o menino
com deficiência auditiva, passou por uma cirurgia de implante
coclear4 e voltou a ouvir. O personagem tocava piano e sonhava
em ser músico, sonho que era incentivado pelos familiares e
amigos, mesmo com a deficiência auditiva. Além do sucesso do

4O implante coclear é um dispositivo eletrônico de alta tecnologia, também


conhecido como ouvido biônico, que estimula eletricamente as fibras nervosas
remanescentes, permitindo a transmissão do sinal elétrico para o nervo
auditivo, a fim de ser decodificado pelo córtex cerebral.

310
seu implante coclear, no último capítulo da novela, Tarcísio faz
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

seu primeiro recital de piano. Apesar do pouco destaque na


trama, mostrar um personagem com implante coclear foi
importante, por ser um processo que está sendo feito no Brasil
pelo Sistema Único de Saúde, e que tem apresentado bons
resultados no mundo todo. Além disso, o personagem, que é
mostrado como um vencedor, representou a esperança e a
possibilidade da pessoa com deficiência conquistar seus sonhos.

Esse é o cenário que temos antes de Viver a Vida. Foram


16 novelas que retrataram a pessoa com deficiência, sem muita
diversidade. Em sua maioria foram personagens de núcleos
secundários das novelas, entretanto, todos tinham alguma
ligação com o protagonista da história. Além do olhar de
vitimização e/ou divinização, podemos dizer que os personagens
se dividem em três tipos: vítima, vencedor e vilão5.

Os personagens retratados como vítimas, são aqueles nos


quais a deficiência era motivo de infelicidade e pesar. São as
pessoas com deficiência que, de alguma forma, precisam ser
salvas pela sociedade. Nessa categoria, estão os personagens que
tem na deficiência sua redenção moral, ou seja, pessoas que se
tornaram melhores depois da deficiência. Vemos esse tipo de
personagem nas novelas Rosinha do Sobrado, Fera Radical,
Sexo dos Anjos, Meu Bem Meu Mal, Vira Lata, Torre de Babel, e
Desejos de Mulher.

Ao contrário das vítimas, vemos os personagens


vencedores, que são aqueles que apesar da deficiência, lutam por
qualidade de vida, trabalham, têm vida social e buscam a
felicidade, independentemente de sua condição física. Nessa
categoria estão os personagens das novelas Te Contei, Sol de

5Amaral (1998) cita o herói, a vítima e o vilão como os três estereótipos mais
generalistas das pessoas com deficiência, caracterizando os personagens como
bom, mau e “coitadinho”.

311
Verão, História de Amor, Laços de Família, América, Caras e
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

Bocas e Cama de Gato.

Tanto os personagens vítimas como os vencedores, são


também aqueles que representam o “bom deficiente”, que são
dotados apenas de bons sentimentos, ajudam a todos e fizeram
de suas deficiências uma vantagem e um motivo a mais para lutar
para vencer e ser feliz.

E por último, temos o personagem vilão, que se caracteriza


por ter a maldade e o rancor como principais características
emocionais, e essas características estão intimamente ligadas à
deficiência. Ou seja, a deficiência é motivo de rancor ou “castigo”
pelas maldades do personagem. Nessa categoria estão as
personagens das novelas Felicidade e Esplendor.

Tendo esse cenário, em 2009 foi ao ar a novela Viver a


Vida (20h), escrita por Manoel Carlos, foi apresentada no horário
nobre da TV Globo. Apesar de trazer sua “Helena”, a personagem
principal da trama acabou sendo Luciana (vivida por Alinne
Moraes), jovem de classe alta, moradora do Leblon (Rio de
Janeiro), bonita, modelo profissional em início de carreira que,
em viagem profissional, sofreu um acidente de carro e ficou
tetraplégica. Comparando Viver a Vida com as outras
representações apresentadas pelas telenovelas que a
precederam, podemos tomá-la como um marco de transição.
Essa foi a primeira novela em que uma protagonista é
apresentada com uma deficiência e se torna uma heroína, uma
vencedora. Apesar de reiterar o estereótipo do “bom deficiente”,
e de Luciana ter sido “salva” por um homem capaz, Viver a Vida
conseguiu se aproximar da vida cotidiana das pessoas com
deficiência ao mostrar suas dificuldades diárias, como pegar um
ônibus, passear num shopping ou na praia, ter uma vida sexual
ativa, engravidar, ter filhos, enfim, uma vida.

5 Aguardando o próximo capítulo


312
Em 45 anos de telenovelas da maior emissora de televisão
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

do Brasil, contamos apenas 17 personagens com deficiência dos


incontáveis personagens das 248 novelas apresentadas nesse
período. Se formos enumerar os que estão no núcleo principal,
esse número pode ser contado nos dedos das mãos. E se formos
contar o número de protagonistas, ficamos apenas com duas
personagens: duas mulheres, uma na primeira novela da
emissora e outra no último ano do período histórico selecionado
para esse mapeamento. Duas mulheres tão diferentes, em
momentos tão distintos, no entanto, tão parecidas. A primeira,
Rosinha do Sobrado, um mulher que vivia a exclusão social e a
segregação por sua deficiência. A última, Luciana de Viver a Vida,
uma mulher que só não viveu essa exclusão de forma tão
marcante por conta de sua posição social e econômica.
Atualmente, ainda, temos na sociedade muito mais Rosinhas do
que Lucianas.

A televisão e, mais especificamente, as telenovelas, com


suas estratégias de verossimilhança, tentam produzir efeitos de
realidade. Logo, as representações de pessoas com deficiência
acabam sendo, para a maioria das pessoas, um retrato da
realidade das pessoas com deficiência. Sabemos que as
representações serão sempre recortes, no entanto, podem ser
tomadas pela sua audiência como uma generalização.

Se antigamente era aceitável que, em um personagem com


deficiência, a deformidade do seu corpo representasse também
uma “deformidade moral”, hoje não é mais. Com a difusão dos
direitos das pessoas com deficiência e a tomada do poder das
pessoas com deficiência para falar de suas realidades, a
deficiência deixa de ser apenas apontada e comentada por quem
não convive com ela e passa a ser apresentada por quem a vive e
sente todos os dias. É preciso acabar com o capacitismo e
denunciar narrativas que preconizem esse tipo de preconceito.

313
Superar-se pode significar vencer ou exceder ao que se
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

pensa que se pode fazer. Pensando assim, o que as pessoas com


deficiência desejam não é serem consideradas exemplos de
superação, desejam simplesmente viver como todas as outras
pessoas. Ir à escola ou trabalhar deveria ser considerado algo tão
comum como é considerado para as pessoas sem deficiência.
Entretanto, o que faz desses exemplos serem exemplos de
superação, é a falta de acesso e as barreiras impostas pela
sociedade para que essas pessoas consigam ir à escola.

Ainda que existam órgãos federais para a criação de


políticas públicas que promovam a inclusão da pessoa com
deficiência (CORDE – Coordenadoria Nacional para a Integração
da Pessoa Portadora de Deficiência e CONADE – Conselho
Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência), o que vemos
são barreiras atitudinais que impedem que essas ações sejam
propagadas na sociedade. A sociedade costuma olhar a
deficiência e não a pessoa que a tem, criando barreiras pelo medo
daquele corpo diferente. A falta de informações sobre o que são
as deficiências e como agir com pessoas com deficiência, acabam
por tornar a deficiência uma condição de incapacidade e
desvantagem social. Assim, quando as representações midiáticas
mostram a pessoa com deficiência a partir de uma visão não
paternalista e de empoderamento desse grupo, abre um espaço
de discussão nacional sobre o assunto e ajuda a promover
mudanças significativas na sociedade. Ao comentar a telenovela
Viver a Vida na revista Sentidos (fev. mar – 2010), Flávia Cintra
(mulher tetraplégica que serviu como inspiração para a
personagem Luciana) diz: “Avançamos uns dez anos em poucos
meses. Essa visibilidade leva o assunto para o cotidiano das
pessoas e fortalece o trabalho de quem luta há anos pela
inclusão”. Segundo Flávia, a telenovela despertou a curiosidade
da sociedade em geral sobre o que é uma deficiência. E despertou
esse interesse não de forma piedosa, mas de forma a denunciar a
falta de condições de acessibilidade das pessoas com deficiência

314
na sociedade. A partir de tal exposição, espera-se que as barreiras
Bruna Rocha Silveira
pessoa com deficiência
Telenovela, representação e

atitudinais diminuam e se tornem ações efetivas de inclusão


social.

A partir desse mapeamento, podemos chegar a conclusão


de que ainda faltam muitos passos na caminhada por uma
sociedade que respeite e veja as pessoas com deficiência como
pessoas. Penso que olhar para esses números, nomes e
personagens pode ser útil para propormos aos produtores de
obras ficcionais televisivas um outro olhar para as vidas de quem
convive com uma deficiência. Espero que possamos, dentro de
dez ou vinte anos, fazer um novo mapeamento e nos depararmos
com personagens não vitimizados nem divinizados, mas
descritos dentro de sua complexidade humana e não apenas a
partir de sua deficiência. E mais, que as deficiências sejam
representadas a partir de sua diferença, identidade e como
característica do humano e não como algo a ser consertado,
curado ou segregado.

 Retorne ao sumário

Referências

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SEELMAN, K. D., BURY, M. Handbook of Disability Studies.
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disability. In: ALBRECHT, G. L., SEELMAN, K. D., BURY, M.
Handbook of Disability Studies. Oaks: Sage Publications, 2001.

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novel, and the inventation of the disabled body in the
nineteenth century. In: DAVIS, L. The Disability Studies
reader. Nova York: Routledge, 2006.

DE CARLI, R. Deficiente versus Pessoa Portadora de


Deficiência: uma análise discursiva dos jornais Zero Hora e
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315
Comunicação e Informação). Universidade Federal do Rio
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Grande do Sul. Porto Alegre, 2003.

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(1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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99900100003&lng=pt&nr m=iso>.

MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações:


comunicação, cultura e hegemonia. 5 ed. Rio de Janeiro: UFRJ,
2008.

SILVEIRA, B. R. Entre a vitimização e a divinização: a


pessoa com deficiência em Viver a Vida. Dissertação (Faculdade
de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul). Porto Alegre, 2012.

316
1 Introdução

Em 1998, Torre de Babel, telenovela das 21h de Sílvio de


Abreu, tentou inovar ao apresentar o casal Leila e Rafaela, duas
mulheres adultas e maduras, que viviam uma relação duradoura
e estável, similar a um casamento. À época, a recepção
extremamente negativa do grande público fez com que o autor
precisasse propor mudanças na narrativa. De última hora, optou
por incluir as duas personagens na lista de vítimas da misteriosa
explosão de um centro comercial, evento que marcaria todo o
restante da telenovela. Essa emblemática vitória de grupos
religiosos e conservadores marcou a memória da representação
LGBTQ na televisão brasileira mais recente.

Vinte anos se passaram e é inegável que muita coisa


mudou: aos poucos, personagens LGBTQ saíram do lugar-
comum dos estereótipos cômicos e a mesma Rede Globo exibiu
cenas de beijo, sexo e casamento entre casais homoafetivos;
tratou de temas como adoção, homofobia e transição de
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

identidade de gênero. Mas, sempre que ocorre, a representação


de personagens LGBTQ continua levantando discussões sociais
mais amplas, que extrapolam as próprias narrativas. No
movimento desses debates, grupos conservadores e religiosos
continuam tentando invisibilizar midiaticamente as pessoas não-
hétero e trans - e, muitas vezes, ainda têm sucesso.

Para os grupos LGBTQ, as representações são parte de


uma luta contínua por mais visibilidade e pela igualdade de
direitos civis. A internet e as plataformas de mídias sociais
favoreceram o empoderamento dessas minorias, que
encontraram uma maneira de se expressar e ter maior alcance,
muitas vezes de maneira organizada e pró-ativa. Essa militância
também utiliza os ambientes digitais como maneira de
pressionar os conglomerados midiáticos e as empresas.

Na medida em que se incrementaram as representações de


gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais na televisão brasileira,
outro aspecto tornou-se evidente: a formação de redes e
comunidades de fãs ao redor desses personagens, em princípio
apenas porque eles materializam uma necessidade por
representação midiática. Frequentemente, fãs estão dispostos a
consumir qualquer narrativa que apresenta um personagem
LGBTQ, ao menos para dar suporte e acompanhar criticamente
os tipos de representatividade que estão tendo na televisão
brasileira.

Essas audiências também se engajam em diversas práticas


de fã, como a produção de fan fictions1 e mutirões de publicação,
ativamente buscando mostrar à emissora que a representação

1 História criada por fãs que usa os personagens do texto de referência, podendo
seguir na mesma direção do conteúdo canônico ou propor um sentido desviante
(universo alternativo) (LIMA, 2018).

318
lhes importa, que eles são uma parcela considerável da audiência
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

e que não serão silenciados. Desse modo, a representação tem o


poder de criar um forte vínculo afetivo entre as audiências
representadas e o personagem. Quando se trata de um casal, esse
processo é ainda mais intenso, devido à prática de shipping,
nome dado ao ato de torcer, se envolver emocionalmente, pelo
romance de um casal proposto na narrativa.

Neste capítulo, analisaremos este fenômeno a partir da


representação de um casal de lésbicas em Viva a Diferença, a
25a. temporada de Malhação, mistura entre seriado e telenovela
que visa a audiência adolescente. O par “Limantha” (junção dos
nomes das personagens, Lica e Samantha) atraiu uma forte
atividade de shippers, em sua grande maioria mulheres lésbicas,
que valorizaram o fato de se verem representadas nas telas.

As próximas seções discutem os dispositivos midiáticos de


representação de identidades de gênero e orientação sexual,
recuperando a importância da telenovela brasileira para a
produção de sentido no imaginário do país. Em seguida, aborda
como as audiências de fãs receberam as personagens, se sentiram
representadas e se engajaram em práticas de ativismo que se
assemelham à ação política (VAN ZOONEN, 2004), na tentativa
de defender suas personagens da constante ameaça de grupos
conservadores.

2 Narrativas midiáticas e representações

Não se pode negar que a mídia exerce uma influência no


processo de construção de imagens e identidades que circulam
essa nossa sociedade, bem como no estabelecimento de debates
em torno de determinadas questões político-sociais. Essa
influência exercida pelos meios se dá, pois, como afirma Hall
(2016) – ao apresentar a abordagem discursiva da representação
– os significados culturais não existem apenas em nossas
cabeças, eles nos ajudam a pensar o modo como determinadas
319
práticas sociais serão organizadas, eles regulam nossas condutas
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

e, como consequência disso, possuem efeitos práticos.

Sendo assim, existe, como afirma Cuklanz (1997), um


historicamente relevante, e complexo, relacionamento entre
televisão e mudança social. E por ser um dos meios que mais nos
entregam imagens e discursos em bases diárias, a televisão faz
parte do processo de como concedemos sentido às coisas,
ajudando a “urdir o tecido da vida cotidiana [...] modelando
opiniões políticas e comportamentos sociais, bem como
fornecendo material com que as pessoas forjam sua identidade”
(KELLNER, 2001, p.9).

Ainda de acordo com Kellner (2001) imagens veiculadas pela


mídia nos ajudam a formar nossa visão de mundo e os valores nos
quais acreditamos. Elas ajudam a definir o que é considerado bom,
mau, positivo, negativo, moral ou imoral. “As narrativas e as
imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os
recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a
maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje”
(KELLNER, 2001, p.9). Dessa forma, as imagens que recebemos
todos os dias fazem parte do processo de construção de nossas
identidades, tanto em um nível individual quanto coletivo.

Conforme Litchie and Rotherman (1994) os produtos de


entretenimento televisivo, estão cada vez mais abertos para a
discussão de questões política e socialmente controversas. No
entanto, isso não acontece sem uma disputa discursiva, que diz
respeito tanto ao conteúdo quanto às implicações do tratamento
dessas temáticas. Já que não se pode esquecer que a televisão
comercial depende de sua audiência, e que a programação é
construída visando não ofender potenciais membros dessa
audiência e anunciantes. (CUKLANZ, 1997). No Brasil, são
principalmente as telenovelas, como melhor veremos a seguir,
que ocupam esse espaço de negociação e debate de questões
socialmente controversas.

320
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

3 Telenovela brasileira: um dispositivo narrativo e


representacional

Considerada como um dos mais importantes produtos


culturais do Brasil, a telenovela possui um reconhecido papel no
processo de construção de identidades e determinação de
representações. Por se configurarem como um produto diário
que há mais de cinquenta anos entra nos lares brasileiros no
momento de lazer, as telenovelas são capazes de determinar
tendências, propor temáticas sociais, dar visibilidade ou mesmo
silenciar questões. Tudo isso ganha ainda mais importância no
cenário de integração do conteúdo televisivo com as estratégias
interacionais propiciadas pela internet.

A telenovela brasileira tem sido estudada por muitos


autores como um gênero voltado para a discussão de questões
socialmente relevantes e que facilita a negociação de identidades,
dentro do contexto nacional. Lopes (2003) e Balogh (1998), entre
outros autores, consideram que a telenovela propõe uma mistura
de realidade com ficção, abordando a família e questões
domésticas, mas também escolhendo assuntos que possuem um
maior potencial de iniciar debates sociais mais amplos. Temas
como adultério, corrupção, desigualdade social, abuso sexual,
estupro, uso de drogas, costumam ser tratados pelo prisma de
narrativas familiares e de foco romântico.

A Rede Globo explicitamente incorpora essas temáticas


em suas narrativas de ficção, assumindo que essas produções
possuem também um papel socioeducativo. A emissora utiliza
determinados personagens e enredos como uma forma de
apresentar temas importantes, em uma perspectiva
informacional e pedagógica, “dentro de uma espécie de twilight
zone entre o real e o ficcional, entre o informativo e o ficcional”
(BALOGH, 1998). Ainda segundo Balogh (1998),

321
Este fenômeno faz com que, no Brasil, a novela deixe
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

de ter um estatuto meramente fictício para chegar a


exercer, ainda que precariamente, uma função
simbólica de espaço público onde problemas sociais
e elementos do imaginário da população brasileira
são representados (BALOGH, 1998, p. 11).

Olhando para o cenário representacional da televisão


brasileira, é fácil perceber que há a predominância de
personagens brancos, de classe média e heterossexuais, o que
causa uma grande lacuna de diversidade. Apesar disso, questões
de gênero e sexualidade se estabeleceram como um dos favoritos
temas sócio-educacionais da Rede Globo nos últimos anos.

3.1 Representação LGBT na telenovela brasileira

O Brasil tem um infeliz histórico de violência contra


pessoas homossexuais e transsexuais. De acordo com uma
pesquisa realizada pelo Grupo Gay da Bahia, uma pessoa LGBT
morreu vítima de violência a cada 25 horas no ano de 2016. Ainda
de acordo com a pesquisa, uma mulher trans está 14 vezes mais
propensa a ser assassinada do que um homem gay 2. A legislação
do país não prevê nenhuma punição específica para esse tipo de
crime, e as poucas propostas de leis voltadas à criminalização da
homofobia acabaram engavetadas pelo Congresso. Considerando
esse contexto – bem como o impacto social e capacidade de
iniciar conversações desses produtos de ficção – é necessário
reconhecer o esforço da teledramaturgia da Globo, que vem
tentando discutir essas questões de forma sistemática por pelo
menos quatro anos.

Nesse período, cada vez mais as telenovelas e séries, em


diferentes faixas de horário, têm buscado representar
personagens que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais,

2 Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/a-cada-25-horas-uma-pessoa-


lgbt-morreu-vitima-de-violencia-no-brasil-em-2016/>. Acesso em: 27 mar 2018.

322
travestis e/ou transsexuais. (CAVALCANTI; FERREIRA;
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

SIGILIANO, 2017). No entanto, a inserção desses personagens


ocorre, muitas vez, de forma unidimensional, e esses
personagens ganham espaço na narrativa exclusivamente por
sua sexualidade (ou identidade de gênero, no caso das pessoas
trans). Ou seja, o próprio enredo desses personagens está
relacionado à descoberta de sua identidade, ou serve como pano
de fundo para abordar questões sociais como direitos LGBT,
homofobia ou transfobia.

Essa abordagem unidimensional dos personagens LGBT,


que vai de encontro com a panóplia de opções oferecida pelos
personagens héteros - é algo que pode ser facilmente percebido
em uma rápida revisão histórica de como pessoas gays e trans são
representadas nessas produções. Um dos primeiros personagens
homossexuais nas telenovelas nacionais foi o costureiro Rodolfo
Augusto de Assim na Terra como no Céu, exibida pela Rede
Globo entre 1970 e 1971. Rodolfo atendia a um determinado
padrão representacional, já que na época gays costumavam ser
“apresentados como mordomos, cabeleireiros, bailarinos e
assassinos passionais” (CABRAL, 2007 p.18).

A primeira relação afetivo-sexual entre duas pessoas do


mesmo sexo na teledramaturgia veio alguns anos depois com O
Rebu (1974-1975) e os personagens Conrad e Cauê. Na trama,
Conrad era o anfitrião de uma festa que acabou no assassinato de
uma mulher, a história se desenvolve com a investigação do
crime, e todos os 132 capítulos aconteceram durante a noite da
festa. Toda a relação dos personagens é baseada na troca de
olhares e conversas, e só no fim descobre-se que o anfitrião era o
assassino, e que havia cometido o crime por ciúmes de Cauê.

Essa representação de personagens homossexuais como


criminosos é algo que marca as novelas nos anos 1970, como
destaca Colling (2007). Quando não são criminosos, esses
personagens auxiliam os vilões das produções. Nessa época, a

323
representação oscila principalmente entre dois estereótipos
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

opostos, o gay afeminado e o gay criminoso, violento. Segundo


Nunan (2003), ambas essas construções são preconceituosas por
reforçarem a ideia da pessoa LGBT como exótica, bizarra,
anormal.

Já nos anos 80 as tentativas de abordar a temática


homossexual e de representar personagens não-heteros foram
quase todas cortadas pela censura da Ditadura Militar. Em 1985,
a telenovela Um Sonho a Mais exibiu o primeiro beijo entre dois
homens, mas numa cena de teor cômico e, na situação, um dos
personagens estava disfarçado de mulher. Assim, nenhum dos
dois personagens representados era, de fato, homossexual
(MEMÓRIA GLOBO, 2017, informação eletrônica).

A censura afetou a primeira novela a representar um casal


lésbico, Vale Tudo (1988-1989). Muitos dos diálogos entre as
personagens Cecília e Laís foram cortados, inclusive um no qual
o casal contava a uma amiga sobre os preconceitos de que eram
vítimas por seu relacionamento. A pressão da censura e também
da audiência, conforme afirma Drummond (2015), fez com que a
personagem Cecília fosse morta na trama. No fim da novela, Laís
conhece Marília, com que inicia um novo relacionamento.

Já nos anos 90, a representação de personagens


LGBTs é marcada pelo que Colling (2007) chama de “narrativa
de revelação”, que tem como foco a descoberta da orientação
sexual, o processo de auto-aceitação dos personagens e ainda de
convivência social e relacionamentos, embora todo o aspecto
afetivo-amoroso tenha sido quase sempre excluído das
representações dessa época. Exceção a essa regra foi o casal
Sandrinho e Jefferson, de A Próxima Vítima, que não só
formavam um casal homossexual, mas também interracial. O
casal foi bem aceito pelo público, mas o mesmo não aconteceu
três anos depois, quando a relação estável das personagens
Rafaela e Leila, já citada na introdução deste trabalho, causou

324
polêmica com a Igreja e grupos conservadores. Entre as razões
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

para a rejeição de Leila e Rafaela, estão questões como a idade


das personagens, o fato de que elas não estavam em conflito com
suas identidades e eram bem-sucedidas.

Só em 2003, com Mulheres Apaixonadas, um casal


formado por duas mulheres - jovens, bonitas, magras e de classe
média - conseguiu cair nas graças do público. Elas são também
um marco por serem o primeiro casal lésbico a se beijar em uma
novela, embora caiba mencionar que o beijo tenha acontecido
enquanto as duas faziam uma releitura de Romeu e Julieta nunca
peça escolar. Senhora do Destino (2004-2005) apresentou uma
relação lésbica debatida de forma mais aberta, com o casal
Eleonora e Jennifer. Borges e Spink (2009) afirmam que esta foi
a primeira produção a apresentar um relacionamento entre
mulheres de forma continuada – elas não desaparecem no meio
da trama como em novelas anteriores – e explícita - a relação é
nomeada e discutida ao longo da novela.

Quando representadas, muitas vezes, as histórias desses


personagens LGBTQ apenas envolvem sua identidade, excluindo
o aspecto sexual e afetivo de suas vidas. Isso acontece porque,
segundo Jenkins e Campbell (2006), a heterossexualidade é vista
como universal e abstrata, enquanto a homossexualidade seria
muito particular e concreta para suportar o peso de uma questão
tão global como “a natureza do amor”. Assim, heterossexuais, por
muito tempo, representaram todos aqueles que amam.

Além da escassez de representações, personagens gays ou


transexuais recebem um tratamento qualitativamente diferente
dos personagens heterossexuais, principalmente no que diz
respeito à demonstração de afeto e atividade sexual. Como
Jenkins e Campbell (2006) pontuam, a homossexualidade
muitas vezes sobrevive nas telinhas por meio sorrisos, de uma
troca de olhares sugestiva, toques nas mãos ou gestos ambíguos.

325
Além disso, a representação de casais homossexuais é
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

também profundamente influenciada por padrões


heteronormativos. Isso significa que gays, lésbicas e bissexuais
costumam ser representados como se sua sexualidade estivesse
subordinada à supremacia hegemônica da heteronormatividade
(DHAENENS, 2011). Desse modo, embora personagens LGBTQ
estejam sendo incluídos, nota-se que ainda existem diferenças
significativas na maneira como casais heterossexuais e
homossexuais.

Nas telenovelas brasileiras, enquanto casais formados


entre homens e mulheres recebem inúmeras cenas de beijo e
sexo, com um apelo forte à sensualidade; casais homossexuais
terão bem menos contato físico, mesmo quando estão em
ambientes privados, longe dos olhos da sociedade. Beijos, toques,
insinuações sexuais e conteúdo erótico explícito ainda são um
tabu para esses casais. No entanto, essas mesmas práticas de
afeto são lugar-comum para os casais heterossexuais,
especialmente nas telenovelas exibidas após o horário das 21h.

Nesse sentido, o beijo entre casais homoafetivos ainda é


um grande tabu. O primeiro beijo entre duas mulheres -
equiparável a um beijo heterossexual - se deu em 2011, em Amor
e Revolução, exibida pelo SBT. Já a vez dos homens chegaria
apenas em 2014, no último capítulo de Amor à Vida (2014), com
o beijo trocado por Félix e Niko.

Babilônia (2015) mostrou logo nas suas primeiras


semanas o beijo entre duas mulheres idosas e de relacionamento
estável, causando uma forte reação por parte de setores mais
conservadores, o que levou à modificação da narrativa. Em
Liberdade, Liberdade (2016), houve a representação da primeira
cena de sexo entre dois homens, mas apenas na faixa de horário
das 23h.

Finalmente, após um período em que as temáticas LGBTQ


foram bastante suavizadas nas novelas da grade regular, a

326
questão retornou fortemente entre 2017 e 2018, em produções
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

como A Força do Querer, que mostrou o processo de transição


de gênero, e na 25a. temporada de Malhação, quando pela
primeira vez um beijo entre duas mulheres foi exibido no horário
das 17h.

3.2 Telespectadores conectados, disputas representacionais e


construções de identidades

Como afirmam Pullen e Cooper (2010), as redes sociais


digitais favoreceram o potencial de cidadania da identidade
LGBT, já que num mundo midiatizado os processos de
construção e negociação de nossas identidades passam a ser
também realizados através das comunidades e ambientes online.
Além das garantias asseguradas pelos avanços legislativos (que
embora limitados garantem, por exemplo, a possibilidade de
casamento entre pessoas do mesmo sexo, o nome social para
pessoas trans etc), as pessoas LGBT também estão se “engajando
em novas oportunidades para afirmação e investigação de suas
identidades no ambiente online” (PULLEN; COOPER, 2010, p.
xi). O autor pontua ainda que essas oportunidades vão desde os
processos de mobilizações políticas, até auto-reflexividade sobre
suas identidades. O campo representacional é um desses muitos
espaços de batalhas, por meio dos quais pessoas LGBTQ podem
lutar por suas identidades.

O caso que analisamos neste estudo nos mostra como


pode ser ambivalente a relação dos fãs com a representação de
casais lésbicos – enquanto as fãs endossam a existência desses
casais, elas também demandam mais igualdade, se apropriando
dessas personagens e de suas histórias para se posicionar numa
disputa representacional. Além disso, essas narrativas são um
espaço de negociação de suas identidades, o que ganha ainda
mais relevância quando falamos de um produto voltado para o
público jovem, como Malhação.

327
Como vimos, a representação de personagens não-héteros
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

pode despertar o ódio de setores mais conservadores da


sociedade. Esses grupos podem se engajar na mesma intensidade
que os fãs, porém movidos por sentimentos negativos em relação
ao texto, aproximando-se do conceito de anti-fãs
(THEODOROPOULOU, 1999). Segundo Theodoropoulou
(1999), anti-fãs podem ser indivíduos que se opõem a um
determinado texto por serem defensores de um texto rival –
neste caso, um discurso rival, geralmente baseado em
pressupostos religiosos. Entre outras coisas, esses anti-fãs
acusam a Globo de possuir uma agenda comunista, de ser uma
influência negativa para as crianças e de estar tramando para
destruir a “Família Tradicional Brasileira”.

No entanto, os fãs estão mais do que dispostos para sair


em defesa dos seus personagens e confrontar diretamente esses
grupos, fazendo de tudo para proteger a representação LGBTQ
das críticas e evitar outro incidente semelhante à morte trágica
do casal de Torre de Babel. Esses fãs se engajam na produção de
conteúdos como memes, vídeos e fan-fictions, apropriando-se da
narrativa de maneira criativa e lúdica (JENKINS, 1992; BOOTH,
2010).

Além da dimensão criativa, também existe uma outra,


mais relacionada ao ativismo político (VAN ZOONEN, 2004;
BENNET, 2012) – entre essas atividades, podemos citar a
organização de mutirões de publicação, com o objetivo de
posicionar frases em defesa/celebração desses casais na lista de
assuntos mais comentados do Twitter, os Trending Topics. Essa
tática também pode ser utilizada como maneira de pressionar a
emissora ou combater grupos conservadores. Por meio de
mutirões, fãs pedem que os casais se beijem, que tenham mais
cenas juntas e explicam as razões da importância de
representatividade LGBTQ na mídia, deslegitimando
argumentos rivais.

328
Plataformas de redes sociais como o Twitter se tornam
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

então os ambientes em que esses movimentos têm visibilidade e


alcance, sendo parte das táticas dos fãs num contexto de disputa
discursiva (LIMA, 2018). As próprias emissoras também estão
presentes nesses ambientes também faz parte do posicionamento
estratégico da emissora para se ajustar ao cenário de
convergência e estimular o consumo dos fãs. Emissoras como a
Globo usam estratégias como a de TV Social para encorajar a
conversação e engajamento das audiências, procurando se
beneficiar das práticas de fãs, principalmente quando uma
telenovela se torna um Trend Topic no Twitter ou causa uma
discussão controversa no Facebook.

4 Limantha: representatividade para um público jovem

Para demonstrar como a questão representacional pode


ser um potente elemento de criação para o fandom 3 em
audiências LGBTQ, este estudo selecionou como objeto um
importante caso de representação lésbica na teledramaturgia
brasileira. Ao redor dessa representação, formou-se um forte e
criativo fandom, principalmente formado por mulheres-cis que
se identificam como lésbicas e bissexuais. Antes da análise, é
importante apresentar um pouco sobre as personagens e o
contexto qual elas foram desenvolvidas.

A produção escolhida para análise é a 25ª temporada de


Malhação, intitulada Viva a Diferença, que foi exibida entre 8 de
maio de 2017 e 5 de março de 2018. Esta foi a primeira vez, em
22 anos de Malhação, que um casal lésbico foi representado no
seriado adolescente. O par em questão foi formado por Samantha
e Lica (que receberam o nome shipper Limantha). Embora essa
temporada tivesse cinco protagonistas, a relação entre Lica e
Samantha rapidamente se tornou o foco da temporada,

3 Junção dos termos fan e kingdom. Em tradução literal, reino dos fãs.

329
principalmente no que diz respeito à audiência participativa
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

online.

Depois de se separarem e voltarem algumas vezes no


decorrer da trama, as personagens terminaram a novela em um
relacionamento comprometido e assumido, selado com um beijo.
A produção foi tão bem sucedida que, após 13 anos sendo exibida
exclusivamente no Brasil, Malhação voltou a ser exportada para
o exterior. Um dos fatores que contribuiu para esse sucesso foi
justamente a atuação dos fãs, que foi capaz de romper fronteiras
geográficas e chamar a atenção de potenciais espectadores em
outros países.

Figura 1 - Cenas de Limantha em justaposição (montagem feita


por fãs)

Fonte: Twitter, 2018

4.1 Base de dados e métodos de análise

Este estudo, de natureza qualitativa, pode ser


considerado uma pesquisa descritiva, pois permite a descrição de
um certo fenômeno e de suas características. Para a coleta de
dados, foi utilizado o método observacional. De acordo com
Malhotra (2012), este método envolve o registro sistemático de
padrões de comportamento. Entre os procedimentos de
330
observação, consideramos que o mais alinhado com os objetivos
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

deste estudo é a observação mecânica. Além disso, o estudo se


beneficia dos métodos de Análise de Redes Sociais (ARS)
(RECUERO ET AL, 2015) e também da Netnografia (KOZINETS,
2010) – apesar de a análise ter sido realizada a partir da
observação passiva do conteúdo disponível em perfis públicos,
coletado por meio de palavras-chave.

O Twitter é um dos principais ambientes para o


desenvolvimento de estratégias de integração entre televisão e
redes sociais digitais. Devido ao rápido seu fluxo de informações,
a plataforma permite a criação de redes de ocasião, formadas por
usuários que discutem um mesmo tema ou evento ao mesmo
tempo. Além disso, é uma das plataformas mais utilizadas por
grupos de fãs de produtos televisivos, quando têm o objetivo de
ganhar maior visibilidade e chamar a atenção da emissora. Por
todos esses motivos, o Twitter foi escolhido como ambiente de
análise.

O estudo foi concentrado na tag


“LimanthaMeRepresenta”, que chegou ao primeiro lugar dos
Trending Topics no dia 04 de janeiro de 2018. Por meio desta
frase, fãs fizeram comentários sobre o capítulo de Malhação que
estavam assistindo, reagiram aos eventos narrativos,
expressaram os motivos de sua relação de afeto com o casal e
falaram sobre a importância da representatividade LGBTQ na
mídia.

Utilizando a ferramenta Data Miner, foram coletados


3.660 tweets, publicados por 621 perfis únicos, entre 2 e 6 de
janeiro de 2018. A partir dessa base de dados, analisamos os
principais conteúdos e as práticas presentes na relação entre fãs
e personagens. Embora o conteúdo seja público e disponível on-
line, todos os nomes de perfis foram omitidos de modo a proteger
a privacidade de seus autores, já que não houve meios de
contactar esses usuários diretamente.

331
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

5 “Representatividade importa”: práticas afetivas e


ativismo de fãs

LimanthaMeRepresenta é muito boa. Reforça o


quanto é importante pra gente ser representado, ser
visto. Vamos mostrar para os Lgbtfóbicos que a gente
não abaixa a cabeça diante do preconceito e vamo pra
cima quebrar a internet de novo! (Tweet #2,
informação eletrônica)

Em média, cada perfil publicou 6 vezes, sendo que


26% dos perfis tiveram uma atuação acima dessa média e
publicaram com maior frequência. Os top 10 perfis mais ativos
na rede publicaram em média 42 tweets. Em sua grande maioria,
a base dessas fãs é formada por jovens mulheres que se
identificam como lésbicas. Grande parte dessas jovens ainda
reside com seus pais, enfrentando conflitos com a família devido
à orientação sexual.

Uma grande parte delas criam perfis exclusivos para a


prática de shipping do casal, que atuam como disseminadores de
notícias, muitas vezes antecipando cenas que ainda irão ao ar
(spoiler). Esses perfis dedicados a Limantha podem conquistar
um número maior de seguidores em relação aos perfis pessoais.
Assim, alguns deles, como o @TagsLimantha, alcançam um
maior índice de reputação e influência dentro da rede.

Esses perfis também propõem práticas como enquetes,


divulgam fan fictions e fan vídeos, além de realizar a curadoria
das frases que terão os esforços conjuntos do grupo naquele dia.
Trata-se de uma prática de ativismo de mutirão de publicação.
Todos os dias, qualquer membro do fandom pode sugerir uma
tag - uma frase ou uma hashtag - que será avaliada e votada pelos
demais. Essa frase deve ter sentido junto ao fandom e ao
momento da narrativa.

O tweet a seguir, lançado por uma fã por meio de seu perfil


pessoal, ilustra o início do processo de escolha da “tag”

332
LimanthaMeRepresenta, escolhida para a análise de dados neste
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

estudo:

como eu tinha falado ontem, acho que hoje temos que


subir uma tag representativa, que responda todo o
ódio lgbtfóbico de ontem. PRECISAMOS responder
aquelas pessoas! minhas sugestões:
VivaDiferençaVivaLimantha
LimanthaMeRepresenta
VaiTerLimanthaSim
etc
(Tweet #9, informação eletrônica)

Feita a seleção, o termo deverá constar em todos os tweets


publicados pelos fãs, com o objetivo de chegar aos Trending
Topics. Além da escolha da frase, os perfis também auxiliam a
disseminar uma série de instruções para a escrita dos tweets, no
intuito de acelerar o algoritmo do Twitter. Por exemplo, orientam
os twitteiros a não repetir “tags” diferentes no mesmo tweet;
escrever a “tag” sempre ao final do tweet; não usar o caractere
“#”; não publicar tweets idênticos num curto espaço de tempo
etc.

Isso demonstra o conhecimento do grupo sobre as


plataformas em que atuam, além de reforçar a suposição de que
o fandom age organizadamente, com objetivos muito bem
definidos, para alcançar visibilidade e mostrar para a Rede Globo
que merecem ser ouvidos. O tweet a seguir confirma
textualmente essa hipótese: “4º dia seguido que Limantha entra
nos trends antes mesmo do episódio ir ao ar. Só espero que isso
sirva pra convencer a @RedeGlobo que ESTA É A MELHOR
TEMPORADA e que merece SER ESTENDIDA!” (Tweet #2605).

Esse processo de escolha, realizada em grupo, que tem o


objetivo de mover o fandom em uma ação conjunta organizada,
se assemelha à própria democracia. Van Zoonen (2004) já havia
assinalado essa relação entre comunidades de fãs midiáticos e os
eleitorados políticos em torno de candidatos, partidos ou
ideologias. Assim, produtos midiáticos acionam competências

333
que, se fossem desempenhadas no domínio da política, seriam
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

classificadas como cívicas – votação, julgamento, participação,


criatividade, intervenção etc.

Assim, em linhas gerais, a autora afirma que

Fãs possuem um intenso investimento individual


com o texto, participam em discussões comunais
fortes e deliberações sobre a qualidade do texto,
propõem e discutem alternativas que poderiam ser
implementadas se os fãs conseguissem ter as coisas
de seu modo. Esses são, em termos abstratos, os
costumes que foram dispostos como os essenciais
para a política democrática: informação, discussão e
ativismo (VAN ZOONEN, 2004, p. 46, tradução das
autoras)4

Reparamos que essa característica se acentua ainda mais


no caso de Limantha e de outros casais não-hétero, já que as
próprias personagens e seu enredo estão associados a uma
questão ideológica mais ampla, com conotações políticas
evidentes: a luta pela maior representação LGBTQ na televisão.
“Representatividade importa! E vamos levantar a bandeira por
Limantha SIM!!” (Tweet #1699)

Desse modo, o ativismo dessas fãs não é acionado somente


nos termos de avaliar o texto e propor alternativas criativas a ele,
embora isso também ocorra. Mas, como observamos, as práticas
ativistas das fãs Limantha ganham contornos literalmente
políticos, relacionados à esfera dos direitos civis, na tentativa de
combater e deslegitimar um discurso conservador rival, também
bastante atuante e presente na política brasileira. Nas palavras
de uma fã: “limantha não é apenas um casal, é a voz de muitos
jovens sendo representados p mudar o pensamento de quem n
aceita e n acredita, p revelar o quanto é normal, elas estão aqui

4 Tradução livre do original: “Fans have an intense individual investment in the text,
they participate in strong communal discussions and deliberations about the qualities
of the text, they propose and discuss alternatives which would be implemented as well
if only the fans could have their way. These are, in abstract terms, the customs that
have been laid out as essential for democratic politics: information, discussion and
activism”

334
para mostrar q o amor é lindo e q não há rótulos” (Tweet #86). A
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

luta por representatividade assumida por essas fãs é, em si


mesma, uma luta por direitos iguais.

limantha me representa mesmo. sabe por que?


porque malhação está no ar há 22 anos e nunca teve
casal de mulheres
porque quase nunca posso assistir e shippar um casal
que me identifico
porque mereço ter minha sexualidade representada
porque eu existo!
LimanthaMeRepresenta
(Tweet #3361)

Em seus depoimentos, muitas fãs afirmam que essa luta


começa dentro de suas próprias casas. Muitas dessas moças
relatam que ainda estão “no armário” ou que convivem com o
preconceito no próprio seio familiar, vindo dos pais ou familiares
mais próximos. “Minha mãe e meu pai assistindo malhação:
‘Esse país tá perdido mesmo, 2 meninas se beijando’” (Tweet
#446). Assim, participar do fandom é também uma forma de ser
acolhida por uma comunidade onde podem expressar e construir
sua própria identidade, no que diz respeito à orientação sexual.

Nas plataformas de redes sociais digitais, com a produção


de fan fictions e de vídeos, sentem-se mais confortáveis para
expressar seus desejos. Em seus tweets e mensagens, elas
frequentemente escrevem sobre a mágoa que sentem por não se
sentirem aceitas pela família: “Minha mãe não que [sic] Que eu
assista malhação só pq tem lésbicas, isso doeu muito” (Tweet
#765). Também comentam que precisam disfarçar suas emoções
quando os pais estão no mesmo cômodo, enquanto assistem à
Malhação.

Desse modo, a relação dessas fãs com as personagens é


fortemente permeada pela personalização, identificada por
autores como Henry Jenkins (1992) e Nancy Baym (2000) em
seus estudos sobre séries e soap operas estadunidenses como
uma das práticas mais frequentes na ação comunitária dos
fandoms. Como o vínculo de um fã com o texto midiático é

335
sempre atravessado por fortes identificações afetivas, fãs
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

processam as narrativas estabelecendo relações com suas


próprias vidas (BAYM, 2000). Desse modo, a interpretação das
fãs sobre as atitudes das personagens torna-se um ambiente que
lhes permite compartilhar narrativas pessoais, falar sobre suas
próprias vidas e experiências.

Meu pai disse q era pra eu orar pra Deus tirar esses
desejos de mim, que isso era do diabo, q n era pra eu
contar nca pra minha mãe, eu seria a maior dcepção
[sic] da vida dela.
M proibia de sair, me afastou da menina q eu era
apxnada, isso td por eu ser lésbica
LimanthaMeRepresenta
(Tweet #2596, informação eletrônica)

Os laços formados na comunidade online funcionam


assim como uma espécie de substituto para acomodar a
necessidade de suporte e de vínculos familiares, principalmente
para adolescentes e jovens-adultas que estão no processo de
aceitação de suas orientações sexuais e de construção de suas
identidades. Nesse sentido, a telenovela surge como um ponto de
encontro, que permite a formação de redes e a reunião dessas
pessoas em comunidades. “a familia limantha eh mt unida, a
gente fica puto junto, grita junto, chora junto e surta junto
LimanthaMeRepresenta” (Tweet #53).

Além disso, essas fãs também se mostram profundamente


emocionadas e gratas quando percebem que seus familiares
estão sendo positivamente educados pelos personagens e
desenvolvimentos narrativos. Destacamos alguns desses
depoimentos que expressam gratidão na tabela abaixo:

336
Tabela 1 - Fãs celebram a representação LGBTQ em
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

Limantha

Tweet #64 todo o publico lgbt sabe o quao dificil é encontrar uma
representação decente, limantha veio pra mostrar pra todo mundo
que a gente existe sim!!! LimanthaMeRepresenta

Tweet #618 Feliz por viver numa época diferente, com alguns problemas se
repetindo (é verdade) mas, numa escala bem menor.
Representatividade faz diferença sim e é apenas um dos primeiros
passos para um mundo com mais respeito.
LimanthaMeRepresenta

Tweet #1697 Graças a esse casal lindo, minha mãe tá aceitando minha opção
sexual. Obrigada malhação, Manu e @gigi_grigio

Como se nota em alguns dos exemplos, as atrizes Manoela


Aliperti, que interpreta Lica, e Giovanna Grigio, a Samantha,
costumam ser diretamente mencionadas, pois as fãs entendem
que as duas artistas materializam a representação e são
diretamente responsáveis pelos seus efeitos. Desse modo, seus
investimentos afetivos não se dão apenas na relação com as
personagens, em um nível narrativo, mas com toda a produção -
atrizes, roteiristas e com a emissora. Nesse sentido, existe
também a construção de uma relação de intimidade entre fãs e
produção, marcada pela presença das plataformas sociais
digitais. O uso de apelidos (Manu e “gi”) ilustra textualmente esse
sentimento de proximidade, de intimidade, desencadeado pela
telenovela.

a representatividade que a gi e a manu tão trazendo


com o relacionamento limantha é algo incrível
demais. me sinto extremamente feliz vendo o quanto
elas tão alcançando em questão de reconhecimento e
de amor e carinho transmitido cada vez mais
LimanthaMeRepresenta
(Tweet #2592)

Considerando a característica processual da telenovela


brasileira, a boa ou má recepção da audiência pode influenciar no
rumo das narrativas. Fãs estão conscientes disso e usam as redes

337
sociais digitais para mostrar suas opiniões e tentar chamar
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

atenção dos produtores. Como vimos, fãs são consumidores


extremamente envolvidos com a narrativa e, por conta disso, são
também profundos conhecedores do texto. Desse modo, são
consumidores mais exigentes, pois têm maiores condições de
identificar eventuais incoerências narrativas. No que diz respeito
à representação de personagens LGBTQs, reparamos que esse
aspecto tem um agravante em relação às expectativas dos fãs
sobre o que seria uma “boa” representação. Estão
constantemente avaliando o texto nesse sentido, falando de um
ponto de vista extremamente qualificado – porque são fãs e
porque são pessoas LGBTQ, podendo falar sobre o assunto pela
própria experiência.

Nem sempre as fãs concordam com o direcionamento


dado pelos autores, utilizando as redes sociais digitais para
expressar seu descontentamento e exigir mudanças. Recursos
como caixa alta, memes, imagens animadas costumam fazer
parte desses conteúdos, que variam entre a ironia bem humorada
e o ataque verbal explícito “EU NÃO ACREDITO QUE NAO
TEVE QUASE NENHUMA INTERAÇÃO DE LIMANTHA HOJE,
PORRA GLOBO, PORRA MALHAÇÃO” (Tweet #658).

Como vimos, o constante medo da censura é um fator que


pode contribuir ainda mais para essa ansiedade. Assim, fãs
utilizam os mutirões de publicação também como uma forma de
pedir maior número de cenas com o casal, mais cenas com
demonstrações de afeto e contato físico (principalmente beijos)
e, principalmente, a recompensa do final feliz.

Além de serem uma expressão da influência que a


representação do casal teve para o processo de auto-aceitação e
identificação dos fãs, tags como LimanhaMeRepresenta também
são uma forma de confrontar ou deslegitimar argumentos de
grupos conservadores que se opõem à representação de
personagens LGBTQ na televisão. “[...] e se a ‘família brasileira’

338
reclamar? Dane-se, eles amaram ver a Angel que era menor de
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

idade, tranzar [sic] com o padrasto que tinha o dobro da idade


dela, então pq um bj entre duas pessoas que se gostam vai choca-
los né!?” (Tweet #653).

Finalmente, cada olhar, cada toque, cada beijo, cada cena


é celebrada como uma conquista do fandom. Fãs entendem que
suas práticas são valiosas e que sua contribuição possui
significado dentro do grupo. Assim, sentem-se validados junto à
comunidade e junto à própria narrativa, reconhecendo no
próprio fandom um ambiente poderoso, criativo e de construção
de vínculos afetivos.

6 Considerações finais

Entendendo a representação como um campo de batalha


e o modo como as imagens midiáticas possuem efeitos
individuais e coletivos no processo de construção de imagens em
nossa sociedade, as práticas dos fãs mostram que a representação
pode ser uma ferramenta de empoderamento e construção dos
fandoms. Essas práticas online ganham ainda mais relevância
dentro de comunidades minoritárias que são carentes de
representações e que encontram um espaço para se articularem
na luta por imagens que podem contribuir para o
estabelecimento de compreensões mais profundas de suas
identidades.

Nesse sentido, este estudo nos proporcionou uma visão do


modo como os fãs fazem uso das redes sociais e conteúdos
midiáticos para negociar suas identidades sexuais. Em muitos
dos comentários, foi possível identificar a relação entre as
personagens e o desejo de aceitação dessas fãs, tanto numa
perspectiva individual quanto coletiva. Isso inclui o desejo por
auto-aceitação, por aceitação no ambiente familiar e na
sociedade. Os fandoms LGBTQ podem se tornar ambientes nos

339
quais eles encontram o suporte que não recebem em casa ou na
representatividade lésbica na teleno vela malhação
Cecília Almeida Rodrigues Lima e Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Limanthamerepresenta: cultura de fãs e

sociedade.

Em plataformas abertas como o Twitter, essa atuação dos


fãs frequentemente se confronta com a atuação de grupos rivais
– a “Família Tradicional Brasileira”, neste caso. O entendimento
dessa possibilidade é também algo que faz parte do processo de
articulação das fãs. Elas querem mostrar que podem falar mais
alto do que os grupos conservadores, principalmente por
entenderem que a censura pode arruinar o desenvolvimento de
personagens LGBTQ, como já ocorreu no passado. Essa atuação
também pode ser entendida como parte do processo de
construção de suas identidades em um nível coletivo.

Considerando que alguns grupos são mais visíveis que


outros na mídia (homens gays são mais frequentemente
representados que mulheres lésbicas que, por sua vez, são mais
comuns que pessoas trans), mesmo com suas limitações a
visibilidade da representação lésbica privilegia majoritariamente
a disseminação de imagens positivas e ajuda, como nos dá
testemunho a tag LimanhaMeRepresenta, a possibilitar a criação
de um sentimento de comunidade e acolhimento para pessoas
LGBTS. Também se tornam, para esses fãs, parte ativa do modo
como eles processam e negociam a construção de suas
identidades.

 Retorne ao sumário

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342
1

1 Introdução

As reflexões acerca dos sentidos produzidos pelas


narrativas midiáticas sobre a população LGBT buscam
compreender, mais do que as representações em si, como estes
textos contribuem na construção de identidades e nas percepções
sociais sobre sujeitos historicamente marginalizados. Neste
artigo, apresento reflexões sobre as características destas
representações ao longo de 43 anos, nas telenovelas da Rede
Globo, emissora de maior audiência do País.

Alinhada aos Estudos Culturais, compreendo que a mídia


integra a construção social da realidade e atua como mediadora

1Os dados deste artigo se originam do livro “Bicha (nem tão) má – LGBTs em
telenovelas” (NASCIMENTO, 2015), fruto da dissertação de mestrado “Bicha
(nem tão) má – Representações da homossexualidade na telenovela Amor à
Vida”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 2013. Uma versão
preliminar desta discussão foi apresentada no 13º Mundos de Mulheres e
Fazendo Gênero 11, na Universidade Federal de Santa Catarina, em
Florianópolis, 2016.
Fernanda Nascimento
entre sujeitos e culturas, em um processo contínuo de
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

ressignificação (KELLNER, 2001). Como esfera de mediação, a


mídia “conforma a visão de mundo, a opinião pública, valores e
comportamentos” e, como tal, é um espaço onde se “travam
batalhas pelo controle da sociedade” (KELLNER, 2001, p. 54).
Estas disputas são associadas ao poder histórico, exercido por
grupos dominantes, o que faz com que setores marginais
pressionem por maior visibilidade dentro deste espaço de poder.
Neste jogo de tensionamentos, a mídia serve tanto para
promover a dominação, quanto para a resistência (KELLNER,
2001, p. 64).

Neste sentido, compreendo que as representações de


LGBTs das telenovelas não são simples reproduções das lógicas
de dominação e opressão históricas contra os sujeitos que
integram essas minorias. Tampouco acredito que os espaços
conquistados por LGBTs nos últimos anos tenham sido capazes
de modificar sobremaneira as representações midiáticas. Há na
mídia, assim como na cultura, um permanente jogo de
tensionamentos entre grupos hegemônicos e subalternos.

Como demonstrou Michel Foucault (2014), nos últimos


três séculos, a relação das sociedades ocidentais com a esfera da
sexualidade não tem como pilares as esferas do silêncio e da
interdição, mas o âmbito da proliferação de discursos. Neste
sentido, mesmo quando as vivências de LGBTs não se façam
presentes de forma evidente nas representações midiáticas –
com a inserção de personagens em enredos de ficção ou de
sujeitos em reportagens jornalísticas, por exemplo – suas
vivências estão sendo discutidas o tempo todo, através da
reafirmação das normas de sexualidade que regulam as
sociedades.

Trata-se assim, “menos de um discurso sobre o sexo do


que de uma multiplicidade de discursos, produzidos por toda
uma série de mecanismos que funcionam em diferentes

344
Fernanda Nascimento
instituições” (FOUCAULT, 2014, p.37 – grifo da autora), e da
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

percepção de que “não existe um só, mas muitos silêncios que são
parte integrante das estratégias que apoiam e atravessam os
discursos” (FOUCAULT, 2014, p.31). A proliferação de discursos
e multiplicidades de silêncios se modificaram ao longo do tempo.
Se as formas de regulação e controle da sexualidade foram
deslocadas deste o século XVIII, do poder da pastoral cristã para
a medicina, contemporaneamente é necessário compreender
como as relações com a mídia se inserem neste regime de
manutenção das normas e, especialmente, as relações de sujeitos
LGBTs com a mesma.

No que tange os estudos de gênero, destaco que


compreendo o gênero como uma construção social, que perpassa
não somente corpos, como instituições, regulando as atividades
humanas (SCOTT, 1990; LOURO, 2001; BUTLER, 2013). Como
afirma Joan Scott, o gênero deve ser entendido como “elemento
constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças
percebidas entre os sexos” ou seja, “uma forma primeira de
significar as relações de poder” (SCOTT, 1990, p.21). E, de acordo
com Tereza de Lauretis: o gênero não é “uma propriedade de
corpos nem algo existente a priori nos seres humanos” (DE
LAURETIS, 1994, p.208).

Realizo a análise estabelecendo um diálogo com os


estudos queer, por entender a necessidade de subversão da lógica
binária, que regula as fronteiras sexuais e de contestação,
submetendo sujeitos e enquadrando comportamentos em um
regime heteronormativo. O engendramento da matriz
regulatória de sexo/gênero, em diálogo com o controle da
sexualidade é basilar para a criação e reprodução da
heternormatividade. Neste regime de regulação, não apenas
heterossexualidade é “coerente”, mas também “privilegiada”.
“Sua coerência é sempre provisional e seu privilégio pode adotar
várias formas (que às vezes são contraditórias): passa

345
Fernanda Nascimento
desapercebida como linguagem básica sobre aspectos sociais e
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

pessoais; é percebida como um estado natural; também se


projeta como um objetivo ideal ou moral” (BERLANT;
WARNER, 2002, p. 548). Entendo, portanto, que as formas de
regulação não estão apenas na não possibilidade de vivência de
um gênero/sexualidade fora da matriz cisheteronormativa, mas
também nas experiências permitidas (desde que sob
determinadas formas normativas).

Compreendendo também que as identidades são


complexas, múltiplas e atravessadas por diversos marcadores
(HALL, 2013), sendo necessário pensar sobre LGBTs para além
da esfera de gênero e sexualidade. Neste sentido, realizo uma
análise interseccional. Como afirma Avtar Brah, “a questão não é
privilegiar o nível macro ou micro de análise, mas como articular
discursos e práticas inscreve relações sociais, posições de sujeito
e subjetividades” (BRAH, 2006, p. 359).

2 Metodologia

Para mapear e analisar as personagens foi necessário,


inicialmente, percorrer os caminhos das pesquisas anteriores
sobre LGBTs e telenovelas2. Um primeiro movimento foi realizar
o cruzamento dos dados oriundos das pesquisas que
apresentavam listas de personagens LGBTs. Os dados foram
confrontados com o site de memória da Rede Globo e periódicos
do momento de exibição das narrativas. Às informações
genéricas sobre LGBTs foram incluídos dados sobre as
características de cada personagem, utilizando conceitos como a
classe social (SOUZA, 2012), geração, raça, performatividade de
gênero (BUTLER, 2013), além da análise da forma como
vivenciam sua sexualidade (RUBIN, 2003). Também foram
acrescentadas informações sobre as temáticas abordadas nas

2 Ver descrições e análises das pesquisas em NASCIMENTO, 2015.

346
Fernanda Nascimento
telenovelas, como os direitos sexuais e o preconceito e/ou
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

discriminação.

3 LGBTs em telenovelas: quem são?

O mapeamento identificou 126 personagens, em 62


novelas, entre 1970 e 2013 3 . Em uma análise por décadas, é
possível analisar que os anos 1970 foram marcados pela presença
de homens homossexuais, de classes populares e
performatividade de gênero que poderíamos identificar como
“bicha” 4 . A maioria integrava núcleos cômicos e posições
subalternas. Há exceções, como as lésbicas de O Rebu (1974),
pioneira também na apresentação de um vilão LGBT. Outro
destaque são as tematizações sobre o preconceito e/ou
discriminação, ainda que de forma mais sutil que as atuais. De
forma geral, a década tem uma presença restrita de LGBTs, que
se resume aos homossexuais, em sua maioria com pouca
participação nas tramas.

Nos anos 1980, segue a predominância das características


da década anterior. No período, acontece a primeira discussão
sobre as relações familiares e a discriminação, em Brilhante
(1981) e a exibição de Roda de Fogo (1986) – apresentando
sexualidades diversas das estabelecidas pela norma e mais abaixo
na hierarquia das sexualidades, como uma relação com o uso de
objetos manufaturados. A década também marca a primeira
participação de um homossexual negro nas telenovelas, em
Sassaricando (1987).

3 O levantamento inclui novelas exibidas até maio de 2013.


4 Originalmente utilizo o termo camp. De forma geral, está relacionado a um
posicionamento que privilegia o exagero e a extravagância e tem duas
dimensões: a da sensibilidade e a do comportamento, sendo associado à
performatividade de gênero de homens homossexuais com características
identificadas como “femininas”, mulheres transexuais e travestis. Neste
artigo, como forma de descolonizar o conhecimento e adotando uma postura
teórica queer, utilizo o termo “bicha”, para me referir às personagens que
apresentam esta performatividade de gênero.

347
Fernanda Nascimento
As lésbicas têm representações ampliadas, mas ainda com
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

a sexualidade regulada: as homossexuais com direito a


vivenciarem a sexualidade são as enquadradas no modelo
heteronormativo. As vivências trans começam a adquirir
visibilidade, em tom de comicidade em Um Sonho A Mais (1985)
e com uma discussão sobre discriminação em Tieta (1989).

Os anos 1990 demonstraram que a tendência de maior


visibilidade de LGBTs se confirma e os padrões de
representações se mantêm. Há a ampliação de debates e o
primeiro casal inter-racial de homossexuais, discutindo duas
opressões: a de sexualidade e a de raça. O destaque foi a narrativa
de Torre de Babel (1998), com a exclusão de um casal lésbico –
sob alegada rejeição do público – que se tornou emblemático nos
estudos do tema. Padrões foram desestabilizados em Explode
Coração (1995), com uma personagem que não definiu seu
gênero e sexualidade. Destaca-se ainda a tematização da
bissexualidade, em Por Amor (1998), através de uma relação
intergeracional.

Nos anos 2000, são 22 narrativas com a participação de


LGBTs. Há uma mudança do comportamento majoritariamente
bicha para padrões heteronormativos, no que se refere às
personagens gays. Casais de Páginas da Vida (2006) e Paraíso
Tropical (2006) são emblemáticos neste sentido, por serem
formados por homens brancos, em relações monogâmicas e de
classe média. Alguns pesquisadores criticam a higienização das
sexualidades ao se retratarem personagens com
performatividade de gênero mais adequada à norma (COLLING,
2007). Acredito que, a priori, a diversidade da sexualidade não
pode ser taxada como negativa. De forma que gays com
comportamento bicha não são superiores ou inferiores aos
demais pela transgressão da norma.

As críticas de silenciamento de identidades se tornam


pertinentes quando se observa que as discussões sobre LGBTs

348
Fernanda Nascimento
são realizadas, preferencialmente, por sujeitos com a sexualidade
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

mais regulada. Mas se mostram parciais quando acusam uma


tendência de heteronormatização da sexualidade das
personagens. Ainda que se tenha um crescimento de
personagens mais normativos, as bichas não deixaram de
participar das tramas e de, por outro lado, tematizar aspectos,
inclusive, mais marginais do que os heteronormativos. É o caso
de Duas Caras (2007), e da tematização da não-monogamia.

As lésbicas continuam com representações


hegemonicamente normativas e foram responsáveis por trazer à
tona debates nas tramas de Mulheres Apaixonadas (2003) e
Senhora do Destino (2004). As novelas abordaram a descoberta
da sexualidade de mulheres jovens, os conflitos familiares, e a
consolidação dos relacionamentos – monogâmicos. As
personagens transexuais aparecem em quatro novelas e o
destaque é a discussão de As Filhas da Mãe (2001). Os bissexuais
estão em apenas quatro narrativas.

Entre 2010 e 2013, são 12 as narrativas com LGBTs. As


principais discutições da temática acontecem em Ti-Ti-Ti (2010)
e Insensato Coração (2011) – novela com um núcleo LGBT
específico. No que se refere aos deslocamentos da norma, Viver
a Vida (2010) é uma exceção, ao apresentar uma relação com
homens bissexuais não monogâmicos e em grupo. Outro desvio
acontece está em Fina Estampa (2011), com um relacionamento
intergeracional. A transexualidade é discutida com destaque em
Salve Jorge (2012), com os debates sobre a realização de
procedimentos cirúrgicos e a discriminação, que podem levar a
prostituição como forma de obter recursos financeiros.

Analisando a categoria geração, destaco que somente em


Mulheres Apaixonadas (2003) e Insensato Coração (2011), há a
presença de personagens LGBTs com menos de 20 anos.
Personagens de 21 e 30 anos, tiveram acentuado crescimento ao
longo das décadas, especialmente nos anos 2000. Já a faixa

349
Fernanda Nascimento
etária dos 31 aos 40 anos é predominante desde os anos 70,
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

apesar de ter perdido espaço. As personagens acima de 41 anos


são poucas e ainda mais raras as que ultrapassam os 61 anos. Em
62 narrativas, apenas seis apresentam LGBTs com idade acima
dos 60 anos.

No que se refere à raça, das 126 personagens, apenas


quatro são negras. Destas, destaca-se que três personagens eram
oriundas das classes populares – a exceção aconteceu em A
Próxima Vítima (1995) – e a maioria foi coadjuvante nas tramas.
Cabe ressaltar que o pequeno número de negros nas telenovelas
não é observado apenas no que se refere às personagens LGBTs,
mas que, de forma geral, esta parcela da população é pouco
representada. Há neste sentido, uma invisibilidade destas
representações de LGBTs negras.

No atravessamento da classe social, é possível analisar


que, ao longo das décadas, o número de personagens em classes
populares foi levemente superior em relação à média, mas após
os anos 2000 houve uma ampliação destas últimas. Personagens
de classe alta aparecem em menor número. O crescimento do
número de personagens de classe média se relaciona à regulação
das sexualidades: são estas as personagens responsáveis pela
tematização de problemáticas sobre os direitos sexuais, ou seja,
aquelas cujas vozes são legitimadas socialmente.

Ao refletir sobre a performatividade de gênero, destaca-se


que as bichas estão presentes ao longo de várias décadas. São 35
narrativas com 43 homens homossexuais dentro desta
performatividade de gênero. Os gays dentro de um padrão
heteronormativo são 27 e aparecem em 16 novelas, outras quatro
personagens transitam entre os dois padrões. Há, neste sentido,
uma diversidade de representações de homens homossexuais –
ainda que seja crescente a normatização de suas vivências.

Enquanto os gays totalizam 76 personagens, o número de


lésbicas é bastante inferior e chega apenas a 24 personagens. Ao

350
Fernanda Nascimento
observar sua performatividade, verifica-se a participação de 20
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

personagens dentro do padrão heteronormativo, e somente


quatro com performatividade de gênero que pode-se denominar
como sapatão5. Destaca-se que, enquanto diversas personagens
bichas ou homens homossexuais normativos estabelecem
relacionamentos afetivos/sexuais, entre as lésbicas as relações
estão ligadas somente ao comportamento heteronormativo.

Os dados explicitam ainda a menor visibilidade da


sexualidade feminina em relação à masculina, fator apontado
como uma das formas de demarcação de gênero utilizada pela
heteronormatividade: o apagamento das identidades. Menos
visíveis, as lésbicas têm também suas sexualidades mais
reguladas, enquadrando-se dentro de um padrão de gênero com
características atribuídas ao feminino, na qual a única diferença
é a orientação sexual.

As informações apontam para o fato de que, ainda que os


LGBTs tenham tido sua sexualidade tematizada de forma mais
acentuada nas últimas décadas, outras formas de opressão
continuam sendo reproduzidas nestas representações. Ao
apresentar lésbicas dentro de um modelo heteronormativo, as
novelas reproduzem uma regulação da sexualidade feminina,
questionada desde as primeiras conceituações sobre a temática
de gênero. Ao silenciar outras identidades, como sapatão, que
questiona a ordem social de forma mais explícita, as telenovelas
mantêm um padrão de representação no qual, mesmo dentro de
um grupo estigmatizado como o de LGBTs, o sexismo, o racismo
e a misoginia, por exemplo, operam de forma praticamente
invisível.

5 Originalmente, o estudo utilizava o termo “butch”, que pode ser definido


como uma lésbica que adota códigos diferentes daqueles que geralmente são
atribuídos à identidade de gênero feminino. Frequentemente designadas
como masculinizadas, adotam roupas, gestuais, posturas e atitudes atribuídos
ao gênero masculino. De acordo com Brandão (2010), um termo similar à
butch, em português, seria ‘caminhoneira’. Definimos neste artigo utilizar
como sinônimo de butch, a categoria “sapatão”, pensando dentro de uma
lógica descolonial e queer.

351
Fernanda Nascimento
A diferença de gênero também aparece entre os
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

bissexuais. Os homens aparecem em 11 novelas: seis dentro de


um padrão heteronormativo; cinco bichas e dois transitam entre
os dois padrões. Há apenas três mulheres bissexuais, duas em um
padrão heteronormativo e uma que transita entre sapatão e
heteronormativa.

Ressalta-se a presença de uma travesti e oito mulheres


transexuais, sem registro de homens transexuais representados
nas novelas. Houve ainda a participação de uma personagem, em
Explode Coração (1995), que não tinha a identidade de gênero e
orientação sexual definidas. E em Renascer (1993) uma
intersexual e confundida com transexual pelas demais
personagens. Rogéria interpreta três das oito personagens
transexuais. Em mais de uma oportunidade, a atriz afirmou que
era a “travesti da família brasileira” (MARINHO, 2013, s/p) e a
declaração parece verossímil. Rogéria parece ser a transexual
preferida dos autores por não transgredir diversas normas de
gênero e sexualidade. As personagens que ela vive geralmente
não têm relações afetivas ou sexuais. Elas debatem a
transexualidade, mas não vivem sua própria sexualidade, algo
bem distinto das demais personagens heterossexuais ou mesmo
homossexuais. Outro fator importante parece ser o geracional.
Há poucas personagens LGBTs idosas e estas são as que menos
expressam sua sexualidade, como é o caso de Sabor da Paixão,
onde o primeiro casal homossexual de terceira idade.

No que se refere à hierarquia das sexualidades, as


personagens LGBTs pouco diferem das personagens
heterossexuais em relação à constituição de seus
relacionamentos: a maioria tem relações monogâmicas, casadas,
não-comerciais, em dupla, com pessoas da mesma geração,
privadas, sem pornografia e utilizando apenas corpos – pelos
indícios dados pelas narrativas. Algumas exceções aparecem
como em Roda de Fogo (1986) com o sadomasoquismo, em Viver

352
Fernanda Nascimento
a Vida (2009) com uma relação não-monogâmica e em grupo, ou
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

ainda em Insensato Coração (2011) com o cruzamento


geracional. Mas de fato, se tratam de exceções. Em uma análise
minuciosa percebe-se que além de não se diferir dos
relacionamentos heterossexuais, muitas das personagens nem
chegam a ter sua sexualidade explorada, ficando claro apenas que
se tratam de LGBTs, mas sem acesso a uma vivência sexual
dentro das tramas.

Importante destacar que outra linha abaixo da hierarquia


são as relações procriativas. É provável que o grande preconceito
com relação à socialização de crianças em famílias formadas por
LGBTs (MELLO, 2005) tenha contribuído para que demorasse
mais de 30 anos para que a temática fosse abordada nas
telenovelas. Somente em 2004, na trama de Senhora do Destino,
um casal lésbico adotou uma criança. E, ao contrário do que se
possa supor, a prática não se tornou comum nas novelas, sendo
repetida apenas em 2006, em Páginas da Vida. As
considerações apontam para uma ampla gama de possibilidades
de discussões suscitadas a partir das representações de LGBTs
em telenovelas.

4 Considerações finais

O panorama permite destacar que as personagens LGBTs


em telenovelas da Rede Globo tiveram sua participação ampliada
nas últimas décadas. No leque das identidades LGBTs, a
presença majoritária das narrativas é de gays. Os dados
explicitam ainda a menor visibilidade da sexualidade das
mulheres em relação aos homens, fator apontado como uma das
formas de demarcação de gênero utilizada pela
heteronormatividade: o apagamento das identidades. Menos
visíveis, as lésbicas têm também suas sexualidades mais
reguladas, enquadrando-se dentro de um padrão de gênero com

353
Fernanda Nascimento
características atribuídas ao feminino, na qual a única diferença
telenovelas da rede globo, entre 1970 e 2013
Homens, brancos e jovens: um panorama das (in)
visibilidades nas representações de LGBTS em

é a sexualidade.

As análises apontam para o fato de que, ainda que os


LGBTs tenham tido suas vivências tematizadas de forma mais
acentuada nos últimos anos, outras formas de opressão
continuam sendo reproduzidas nestas representações.

O silenciamento de identidades se estende à presença


pequena de personagens bissexuais e se acentua ainda mais com
a pouca participação de transexuais. O panorama indica que,
ainda que a visibilidade tenha se acentuado, mantém-se sob
determinados padrões, nos termos de Stuart Hall, uma
“visibilidade regulada” (HALL, 2013). O panorama aponta a
necessidade de ampliação da diversidade destas representações.

 Retorne ao sumário

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média ou nova classe trabalhadora? 2ª Ed. rev. e amp. Belo
SOUZA, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe
1 Introdução

Quando, nos anos 1940, Theodor Adorno e Max


Horkheimer cunharam o termo “indústria cultural” em Dialética
do Esclarecimento (1997), acabaram criando uma forte corrente
de pensamento filosófico e crítico em torno da arte e dos meios
de comunicação em massa. Esse conceito trata, em linhas gerais,
acerca do avanço do capitalismo sobre a cultura. Para os autores,
o processo de industrialização da cultura seria sua derrocada,
visto que suas produções perderiam a autenticidade e,
entendendo o público como indivíduos passivos, acabariam
funcionando como um meio de dominação do ideário social.

A abordagem totalizante de uma lógica una, explicativa de


todo o sistema industrial e mercadológico, e o entendimento do
público como uma massa amorfa acrítica que seria levada pelos
dispositivos midiáticos, acabou gerando uma série de reações e
polarizações epistemológicas, sobretudo com o viés mais
funcionalista adotado por sociólogos da comunicação nos
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

Estados Unidos. Em cima dessa disputa, Umberto Eco (1985),


posteriormente, categorizou os intelectuais em dois grandes
grupos: de um lado os ‘apocalípticos’, que viam acultura de massa
como um sinal de decadência social; e de outro os ‘integrados’,
que rejeitavam a perspectiva levantada pela teoria crítica,
entendendo esse fenômeno de forma positiva, sob a prerrogativa
de que a cultura poderia ser consumida por todas as camadas
sociais.

Em uma perspectiva similar, alguns pensadores das


mídias contemporâneas traçam estudos e conceitos que tentam
visualizar objetos midiáticos também de maneira antagônica, a
fim de compreender se objetos midiáticos estariam atrelados a
um poder hegemônico ou atuando como uma espécie de
contrapoder. Para discutir tais dualidades, neste trabalho,
analisaremos um produto cultural-midiático que vem ganhando
cada vez mais relevância midiática e social, o programa RuPaul’s
Drag Race. A partir do pensamento de John D. H. Downing
(2004), buscaremos responder se o programa se enquadraria ou
não como uma mídia radical, ou seja, se sua produção estaria
inserida no processo cultural-industrial hegemônico ou se
atuaria sob um ponto de vista contra-hegemônico de resistência.

Para tanto, a fim de compreender as esferas produtivas,


foram analisadas as 12 primeiras temporadas exibidas do
programa (nove convencionais e três temporadas All Stars)
mesclando potencialidades da análise do discurso e do conteúdo.
Por ser o pensamento de Downing abrangente na perspectiva de
também considerar os efeitos sociais dos produtos midiáticos em
suas análises, realizamos também uma netnografia
observacional nas páginas do Facebook “Draglicious” (com 270

358
mil seguidores)1 e no grupo “This i snot a RuPaul’s best friends
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

race group” (com 95 mil membros)2.

É importante ressaltar que entendemos hegemonia sob a


perspectiva gramsciana, ou seja, como um conjunto de
significados, sentidos e valores que materialmente se
estabelecem na sociedade por meio dos aparelhos privados de
hegemonia. Para Gramsci (2007), esses aparelhos seriam
instituições que teriam a capacidade de difundir, bem como criar,
uma determinada moral na sociedade, sendo cada um desses
aparelhos, um lugar que pode ser disputado.

Compreendendo a mídia como um desses aparelhos


privados de hegemonia, o ambiente comunicacional também
estaria em disputa, se manifestando, muitas vezes, na forma de
mídias radicais que, em diálogo com os movimentos sociais, se
proporiam a desestabilizar o status quo, fomentando
transformações sociais, políticas e culturais (DOWNING, 2004).

No que tange RuPaul’s Drag Race, observa-se que sendo


realizado por intermédio de um conglomerado de mídia, o
programa encontra-se imerso na lógica capitalista. Dessa
maneira, estaria produzindo seu conteúdo com base no valor de
troca, pautado pelo mercado, o que automaticamente o colocaria
em uma perspectiva integrada e hegemônica. No entanto, como
o próprio Downing coloca:

Não existe nenhuma alquimia instantânea, nenhum


procedimento socioquímico inconteste, capaz de
distinguir, num relance ou com resultados
definitivos, a mídia verdadeiramente radical da
mídia aparentemente radical ou mesmo não radical
(DOWNING, 2004, p.24).
Da mesma forma, o entendimento do programacomo uma
mídia radical,usando como base o fato de ser protagonizado por
drag queens, também seria infundado. Como fala Jesús Martín-
Barbero (1993), a capacidade de adaptação do capitalismo para

1 Disponível em: [ http://bit.ly/2DmcvOB ] Acesso em 18/11/17.


2 Disponível em: [ http://bit.ly/2C8qw5B ] Acesso em 14/11/17.

359
sua sobrevivência é uma de suas maiores características e, com
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

isso, as indústrias da cultura abrem espaços, inclusive, para


protagonismos minoritários e de expressão popular que acabam
fomentando públicos de nicho dentro de uma grade ainda
hegemônica. Pode-se afirmar, então, que a hegemonia, quando
desafiada, intenta realocar esse desafio dentro da sua gramática,
ressignificando a disputa dentro de seu próprio escopo, tornando
o processo de identificação de mídias contra-hegemônicas mais
difuso.

No caso específico do programa RuPaul’s Drag Race, o


fato da história drag ser baseada em embates constantes e
determinantes na construção do movimento LGBT,
especialmente por conta de seu protagonismo nas rebeliões de
Stonewall, ocorridas em junho de 1969 em Nova York, um dos
marcos da luta pelos direitos civis3, levanta certa desconfiança
sobre um simples mutualismo com as estruturas de poder.

Isso acaba suscitando investigações mais profundas na


compreensão do protagonismo galgado pelo programa RuPaul’s
Drag Race, a fim de perceber se esses novos espaços são
utilizados como plataforma para o movimento LGBT ou se o
programa foi cooptado pelo mercado, se encontrando apenas
como um produto midiático baseado no lucro.

2 Mídia, mercado e discursos em RuPaul’s Drag Race

Há uma compreensão difundida de que a virada do


milênio trouxe à tona diversas lutas políticas e movimentos
sociais adormecidos, latentes ou sem projeção até a década
anterior, e que nesses caldeirões culturais emergiram mudanças
sociais em muitas direções (DOWNING, 2004, p. 25). É possível

3O protagonismo drag se mistura, nesse período, às vivências trans e travestis,


visto que não haviam distinções nítidas entre as identidades de gênero neste
período. Mais sobre essas personalidades históricas pode ser visto em A
revolta de Stonewall (Kate Davis; David Heilbroner, 2010) e em A Morte e a
Vida de Marsha P. Johnson (David France, 2017).

360
afirmar que, reflexo disso, foi o nascimento em 2009, do
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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primeiro programa apresentado e protagonizado por drag


queens, RuPaul’s Drag Race. O programa possui uma estrutura
semelhante a muitos reality shows de competição: uma dúzia de
drag queens em um espaço de trabalho abastecido com tecidos,
maquiagem, acessórios, perucas; realizando desafios de costura,
dança, canto e atuação. As participantes são julgadas por
personalidades do entretenimento com ligação à comunidade
LGBT. Os episódios culminam em uma batalha de dublagem e
eliminação de uma das competidoras. Entre troca de farpas e
pinceladas de suas histórias pessoais, as participantes disputam
um prêmio em dinheiro e uma coroa representando o título de
“Próxima Drag Superstar dos Estados Unidos da América”
(BRAGANÇA, 2018, p.47).

É possível dizer que o programa, mesmo fazendo uso de


um formato já convencional na cultura televisiva, é sem
precedentes, visto que, mesmo com aparições pontuais na
cultura de massa 4 , as drag queens eram uma subcultura gay
quase invisibilizada. Essa invisibilidade se dava, inclusive, dentro
da própria comunidade LGBT forjada aos moldes
heteronormativos que enaltecem o masculino e rejeitam as
características femininas.

Exibido primeiramente na Logo TV, um canal voltado ao


público LGBT e parte do conglomerado midiático Viacom, um
dos maiores grupos de mídia dos Estados Unidos, o programa é
veiculado atualmente na VH1 5 , um canal de entretenimento
consideravelmente maior. No Brasil, algumas temporadas estão

4 Exemplo disso são os filmes Gaiola das Loucas (Mike Nichols, 1996),
Priscila, Rainha do Deserto (Stephan Elliott, 1994) e Para Wong Foo,
Obrigado Por Tudo! Julie Newmar (BeebanKidron, 1995), bem como, no
Brasil, do show das transformistas periodicamente no SBT e de personagens
de comédia como Vera Verão, de Jorge Lafond.
5VH1 é a marca de cultura pop dominante para adultos de 18-34 anos nos

Estados Unidos. O serviço está disponível em 93 milhões de residências. É,


também, parte do conglomerado de mídia Viacom. Mais informações podem
ser encontradas em: [ www.vh1press.com ] Acesso em 20/12/17.

361
disponíveis na Netflix, mas também já foram exibidas em canais
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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como Multishow e Comedy Central. Não obstante, como visto


nas páginas de Facebook pesquisadas, a maior parte dos fãs
brasileiros, em geral, utiliza ferramentas online (como torrents)
para acompanhar o programa. O reality é também exibido
gratuitamente online simultaneamente à exibição nos Estados
Unidos no próprio site da emissora. O apresentador e criador do
programa é RuPaul Andre Charles6, nome de nascença da drag
queen RuPaul, a primeira drag a alcançar notoriedade
internacional com seu hit “Supermodel (YouBetterWork)”. Foi
também vocalista da banda WeeWee Pole, ator em mais de 50
filmes e seriados, como em Crooklyn (Spike Lee, 1994), além de
jurado e apresentador em diversos programas televisivos.
Gravou também a música “Don’t go breaking my heart”, com
Elton John, que alcançou 7º lugar nas paradas musicais do Reino
Unido e foi um dos rostos da MAC Cosmetics por 7 anos. Em sua
carreira, RuPaul já gravou mais de 14 álbuns, escreveu dois
livros, ganhou dois Emmys como melhor apresentador de reality
show e possui, inclusive, uma estrela na calçada da fama
(BRAGANÇA, 2017, p.59-60).

RuPaul é um espetacular ato de autorreinvenção e


reivindicação drag. Ele criou uma personagem –
atrevida, forte, linda e negra – mas argumenta que
sua performance é de um personificador feminino,
alegando que ele não se parece com uma mulher, e
sim com uma drag queen (BAKER, 1994, p. 258).
Como mostra Foucault (2017), quando se visualiza a
história da representação da homossexualidade, é possível
afirmar que a visão social de sua corporeidade sempre oscilou
entre o corpo abjeto e a personificação da ilegalidade, por meio
da histórica supressão de base religiosa e, mais recente, dos
discursos médico-legais que patologizaram comportamentos
considerados desviantes. Na contemporaneidade essa situação
avançou em certos aspectos, entretanto, ainda parece ser preciso

6Mais informações em: [ http://www.rupaul.com/biography/ ] Acesso em


26/12/17.

362
alguma estrutura interessada para que culturas minoritárias,
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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como a LGBT, ganhem espaço e visibilidade na grande mídia. A


explicação pode estar no que Chris Anderson conceitua como
mercado de nichos:

[...] a economia emergente do entretenimento digital


será radicalmente diferente da que caracterizava o
mercado de massa. Se a indústria do entretenimento
do século XX baseava-se em hits, a do século XXI se
concentrará com a mesma intensidade em nichos
(ANDERSON, 2009, p.15).
Essa configuração da economia é fruto de uma sociedade
de consumo que tem como objetivo a conquista de mercados
plurais e menores através da abertura de espaços variados para
que esses indivíduos possam ser representados. Dessa forma, o
consumo dos homossexuais acabou sendo visto com atenção por
diversas áreas comerciais e industriais que aspiram se aproveitar
do pink money 7 . A partir dessa ótica, cria-se um mercado
interessado, em que o homossexual vai, não só deixando de ser
indesejado, mas tornando-se um grupo social para o qual devem
ser criadas táticas de exploração mercadológica. Dentro do
marketing, por exemplo, os homossexuais viram uma categoria
própria, os DINKs8, que criam uma imagem homossexual sob o
olhar da economia, enaltecendo suas práticas de consumo em
detrimento das suas características sociais.

Fica evidente, portanto, que a abertura de espaços


midiáticos para as drag queens possui uma intencionalidade
comercial. Da mesma maneira, a escolha de se estruturar o
programa dentro do escopo do reality show não foi aleatória, ela
vem apoiada em uma estratégia midiática de uma sociedade
espetacularizada que “sob todas as suas formas particulares –
informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de

7 O pink money (dinheiro rosa) descreve o poder de compra da comunidade


LGBT que passou de uma franja de mercado para uma próspera indústria em
diversos setores, em especial bens de consumo, viagem e entretenimento.
8 Double income no kids em tradução livre: renda dupla sem filhos.

363
divertimentos –, o espetáculo constitui o modelo atual da vida
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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dominante” (DEBORD, 1997, p. 14).

Como coloca Muniz Sodré (2002), a presença de um grupo


social na mídia isoladamente não é capaz de provocar
engajamento. É preciso gerar reconhecimento narcísico para que
a audiência se reconheça de alguma maneira no conteúdo
exibido, sendo, então, o formato reality show estratégico, pois
gera mais empatia com seus personagens reais que programas
roteirizados (MATEUS, 2012). A princípio, pode-se observar que
o próprio título do programa, a Corrida das Drags de RuPaul,
coloca a própria RuPaul como peça central do programa. Nesse
contexto, RuPaul demarca a si como ponto de referência para
toda uma subcultura e cria uma posição de proeminência em
relação a toda comunidade drag. Assim, um dos principais
objetivos de RuPaul’s Drag Race é vender a imagem de RuPaul
como um ícone para os espectadores-consumidores. Isso se dá
não apenas nas entradas triunfais (especialmente no episódio
final de cada temporada), mas durante toda a edição do
programa. Em cada um dos episódios, RuPaul faz uso de suas
próprias músicas como trilha para o desfile final, um dos
momentos centrais do programa, bem como são elas também que
compõem o encerramento dos episódios. Em várias temporadas,
as finalistas têm como tarefa a gravação de participação no
videoclipe de RuPaul que é geralmente lançado no último
episódio do programa. Além disso, RuPaul sempre demonstra ser
uma figura com status quando, em meio as discussões sobre o
desempenho das participantes, ele grita “Silêncio! Eu tomei
minha decisão”, bem como é ele, sem consulta dos outros
jurados, que decide, a partir da dublagem, qual participante vai
continuar e qual vai deixar o programa. A partir da quinta
temporada, a drag vencedora dos desafios propostos nos
episódios passou a ganhar algum tipo de premiação oferecida por

364
empresas geralmente do universo gay-friendly9, de campos de
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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consumo das drag queens ou que estivessem de olho em uma


fatia mercadológica do pink money. Mais de 30 empresas de
segmentos diferenciados já utilizaram esse espaço como
plataforma publicitária. Mesmo a maior concentração de
empresas anunciantes sendo das indústrias do vestuário
(SequinQueen; Marco Marco; American Apparel), do turismo
(Al and Chuck Travel; My Gay Getaway) e de cosméticos
(Anastasya Beverly Hills; D-Koye), outros segmentos
comerciais também se mostram presentes, como empresas de
tecidos, óculos, perucas, bolsas, joias e de áreas que não se ligam
diretamente ao universo drag, como as grandes marcas
internacionais Hello Kitty e Absolut Vodka (BRAGANÇA, 2017,
p.67). A dinâmica do programa também permite que as próprias
participantes criem uma marca própria de seus alteregos. Assim,
elas vão se diferenciando de acordo com suas qualidades, se
tornando célebres fora do programa e criando seus nichos
próprios. Dessa forma, Adore Delano (6ª temporada) alcançou o
topo da mais famosa parada musical do mundo, a Billboard 10,
enquanto Violet Chachki (7ª temporada) realiza apresentações
burlescas mundo a fora; Miss Fame (7ª temporada) possui um
famoso canal de maquiagem no YouTube11; Bianca Del Rio (6ª
temporada) produziu o próprio filme12 e percorre países fazendo
apresentações de comédia stand-up; Willam (4ª temporada)
ganhou notoriedade por conta de suas paródias musicais13; Kelly
Mantle (6ª temporada) adentrou o mundo da atuação, sendo a
primeira pessoa a ser aceita para avaliação do Oscar tanto como
melhor ator coadjuvante, quanto melhor atriz coadjuvante
(BRAGANÇA, 2017, p.67). O programa, percebendo uma

9 Gay-friendly é um termo usado para referir-se a lugares, políticas, pessoas


ou instituições que procuram ativamente a criação de um ambiente
confortável para as pessoas LGBT.
10 Fonte: [ https://bit.ly/2r57yoV ] Acesso em 22/04/18.
11 Disponível em: [ https://bit.ly/1IOZklq ] Acesso em 22/04/18.
12 Hurricane Bianca (MATT KUGELMAN, 2016).
13 Disponível em: [ https://bit.ly/1jNlsBI ] Acesso em 18/02/18.

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audiência cada vez mais ávida por conteúdos, criou também uma
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
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gama de spin-offs14, como Drag U; WhatchaPackin'; Untucked;


AllStars; The Pit Stop, além de variadas séries de YouTube
contendo também drags de temporadas anteriores, como M.U.G,
UNHhhh, Fashion Photo Review e Drag Makeup Tutorial. Além
disso, RuPaul ainda organiza o DragCon, uma convenção onde
os fãs do programa podem conhecer as drag queen participantes,
além de ir a painéis sobre temas que circundam o universo LGBT
e drag queen. Hoje, o DragCon está presente em Los Angeles e
Nova York e triplicou o número de participantes desde sua
estreia em 201515 (BRAGANÇA, 2017, p.68). Percebe-se, então,
que a dimensão mercadológica e comercial do programa é
extensa e atravessa todo o seu conteúdo. Porém, ela não é a única.
RuPaul finaliza todos os episódios de todas as temporadas com a
seguinte frase: “If you can't love yourself, how in the hell you
gonna love somebody else?” 16 demarcando um momento de
diálogo direto com os membros da comunidade LGBT que
sofrem problemas em abraçar quem são.

Em grande parte dos episódios, durante o processo


demontação 17 , há a discussão de pautas importantes para a
comunidade LGBT. Essas conversas são iniciadas a partir da
própria experiência de vida das drag queens que acabam
entrando em diálogos sobre diversas temáticas, como o HIV, a
aceitação própria, a saída do armário, como foi o começo da vida
como drag, relações amorosas e familiares etc. Além disso, é
notória a questão da representatividade na escolha dos
participantes do programa. Etnias, backgrounds culturais e estilo

14 Spin-off é uma plataforma comunicacional derivada de outra. Possui uma


ligação com a obra da qual derivou, mas cria alguma outra narrativa para
abordar o mesmo conteúdo.
15 Fonte: [ http://bit.ly/2Cad0fi ] Acesso em 26/12/17.
16 “Se você não pode amar a si mesma, como diabos você vai amar alguém?”

(Tradução nossa).
17 A montação é o momento em que as drag queens estão em frente ao espelho

se maquiando. Estar montada é estar em drag. A montação é, em qualquer


instancia social, um desafio político que pretende demonstrar a artificialidade
dos universos definidos para o masculino e feminino.

366
estético são algumas características constantemente perceptíveis
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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no casting do programa. RuPaul também cria desafios que


utilizam o programa como plataforma para representatividade,
por exemplo, nos episódios em que as drag queens tinham que
transformar mulheres anãs em suas irmãs drag (6º episódio da
8ª temporada) ou quando as participantes tinham como tarefa
transformar ex-militares gays em drag queens (10º episódio da
5ª temporada).

RuPaul’s Drag Race é, então, um território misto ao


pautar questões LGBT dentro de suas dinâmicas, ao mesmo
tempo em que se encontra imerso em questões de mercado e
mídia. Sobre isso, Downing (2004) aponta para o fato de que,
contraditoriamente, mídias radicais podem habitar o
mainstream, desde que estejam disputando seu espaço na mídia
massiva, tentando alterar comportamentos e visões de mundo ou
que fomentem mudanças sociais.

3 Mídia radical alternativa

Em seu prefácio da edição brasileira do livro de John


Downing(2004), Arlindo Machado é categórico ao dizer que
“perdemos boa parte de nosso tempo útil discutindo bobagens
como os reality shows” e que isso levaria a um “desperdício de
energia e certo bitolamento da discussão” (apud DOWNING,
2004, p. 11). Mas e quando esse reality show é realizado e
protagonizado por indivíduos socialmente marginalizados como
as drag queens?

Quando Downing (2004, p. 21) conceitua seu


entendimento sobre o termo “mídia radical”, ele está se referindo
“à mídia – em geral de pequena escala e sob muitas formas
diferentes – que expressa uma visão alternativa às políticas,
prioridades e perspectivas hegemônicas”. Ele vê essas mídias
como atreladas aos objetivos dos movimentos sociais de
transformação da realidade social.
367
Em RuPaul’s Drag Race nem sempre essa questão é
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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aparente. Como o próprio RuPaul, em entrevista ao Los Angeles


Times18, afirma: “Nosso objetivo é apenas divertir e celebrar o
drag, [...]O que acontece depois disso, não é da minha conta”. No
entanto, mesmo que afirmemos que a intenção do programa seja
puramente mercadológica, o que poderia desestruturar uma
análise que visse o programa RuPaul’s Drag Race como uma
mídia radical, Downing afirma que:

Na verdade, as reais intenções dos próprios


comunicadores podem revelar-se inúteis como guias
nesse labirinto ou, no mínimo, guias notavelmente
insuficientes. A história está repleta de casos de
indivíduos e grupos que não faziam ideia, e que não
poderiam ter ideia, da cadeira de acontecimentos
disruptivos que estariam deflagrando (DOWNING,
2004, p.28).
Poderíamos, em tese, descaracterizar RuPaul’s Drag Race
como uma mídia radical pelo fato de estar completamente
intrincado aos ditames da mídia televisiva tradicional. Porém,
como bem coloca Downing (2004, p. 7) não se pode minimizar “a
importância dos usos que os movimentos e grupos de oposição
podem às vezes fazer da mídia convencional”.

Certeau (1984, p.41) também alerta sobre o fato de ser


preciso analisar os “inteligentes truques utilizados pelos fracos
dentro da ordem estabelecida pelos fortes, a arte de levar a
melhor sobre o adversário no seu próprio terreno”, assim como
Scott descreve o fato de haver um vasto continente que se estende
entre a rebelião e a passividade (SCOTT, 1990, apud DOWNING,
2004, p.496). Essas visões, dialógicas com o conceito de ‘língua
menor’ proposto por Deleuze e Guatarri (2014), defendem a ideia
de que atos de resistência podem ocorrer dentro da lógica
hegemônica, se apropriando e as torcendo de dentro para fora.
Exemplo disso é que:

Em drag ou "desmontadas", as participantes de


RuPaul’s Drag Race são referidas sempre por meio
de pronomes femininos. O gesto, que parece apenas

18 Fonte: [ http://lat.ms/2Cb2btf ] Acesso em 25/12/17.

368
divertido quando se começa a assistir, nada mais é do
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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que uma verdadeira afirmação política: em RuPaul’s


Drag Race as barreiras de gênero como você
conhecia serão quebradas não apenas visualmente
(com homens andando em saltos plataforma e
usando batom), mas também semanticamente. Eles
aqui são elas, e sem aspas (Dênis Pacheco, Huffpost
Brasil, 2014).
A realidade é que quase toda tecnologia utilizada por
ativistas da mídia radical foi pensada para ser empregada para
propósitos convencionais. Sendo assim, o fato de RuPaul’s Drag
Race ser um programa televisivo pautado no formato de reality
show em uma mídia de grande alcance não é suficiente para
descaracterizá-lo como mídia radical. Os principais guias na
busca por entender se uma mídia seria ou não radical estariam,
então, em seu contexto e consequências (DOWINING, 2004, p.
28).

Essa visão, atributiva da recepção da mensagem e seus


desdobramentos sociais acabam tornando a visualização dos
produtos midiáticos ainda mais complexos de serem estudados
em relação a se fossem fechados apenas às esferas produtivas e
de conteúdo. O olhar sobre as dinâmicas geradas pelo público a
partir do programa pode suscitar questões completamente
opostas à intencionalidade dos criadores do programa, visto que,
na visão de Downing:

Se as audiências são redefinidas como usuários da


mídia em vez de consumidores, como ativas em vez
de acríticas, como variadas em vez de homogêneas,
então o termo (audiências) pode libertar grande
parte de sua bagagem mercadológica (DOWINING,
2004, p. 40).
Assim, os espectadores muitas vezes tomam o que é
oferecido pelos produtos culturais de massa e constroem
situações que podem encontrar ressonâncias num potencial de
libertação (DOWNING, 2004, p. 37). Com isso em mente,
quando visualizamos as significativas transformações
socioculturais da cultura drag no território nacional, através, por
exemplo, da rápida ascensão de PablloVittar na indústria

369
fonográfica (e de outras cantoras drag com menos expressão,
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

como Aretuza Lovi e Gloria Groove), da proliferação de festas de


temática drag em casas noturnas LGBT (como a festa Priscilla
que exibe, inclusive, expoentes internacionais e participantes de
RuPaul’s Drag Race) e de um programa brasileiro
completamente protagonizado por drag queens como o Drag-me
as a queen, exibido no canal por assinatura E!, pode-se afirmar
que o público consumidor da performance e estética drag vem
crescendo.

É importante ressaltar que, pelo programa ser


apresentado e protagonizado por drag queens, a dimensão corpo-
mídia não pode ser ignorada. Downing, inclusive, é categórico ao
afirmar em entrevista à Patrícia Wittenberg Cavalli (2009) que
possui uma visão antropológica da mídia, entendendo outros
processos e dispositivos como plataformas midiáticas.

Nesse âmbito, como coloca Butler (2017), as drag queens


possuem um duplo poder, tanto podem contestar os binômios
masculinos-femininos, quanto de reafirmá-los a partir de uma
tentativa de representação da mulher. No caso de RuPaul’s Drag
Race, a ampla representatividade cultural e étnica acaba por
trazer participantes com os mais diversos estilos, que muitas
vezes não se propõem a criar alteregos femininos fidedignos, mas
personagens que extrapolam os limites do gênero.

Se o corpo for pensado como uma mídia radical, RuPaul’s


Drag Race pode ser visto, à priori, como um programa de cunho
radical. Todavia, para uma verdadeira compreensão sobre o
programa é preciso ir além. Como método de análise Downing
(2004) propõe seis pontos chave que podem guiar uma pesquisa
a enquadrar um objeto como mídia radical.

4 O hexágono conceitual

Como adverte Arlindo Machado (apud DOWNING 2004,


p. 15), a conceituação desenhada por Downing não procura
370
sínteses totalizantes para explicar objetos complexos como os
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

vistos na contemporaneidade. Isso acaba por gerar séries de


questionamentos acerca do enquadramento e da percepção de
um objeto, dado ao fato de sua abordagem, sempre ponderada de
forma a não se tornar inflexível, acaba criando um terreno amplo
e de difícil aplicação conceitual. Além disso, o pensamento de
Downing (2004, p. 27) possui a perspectiva de que a observação
de um objeto com intenção de classifica-lo como mídia
alternativa depende do olhar do observador ou mesmo do
ativista.

Dessa forma, com o intuito de evitar pender para um olhar


particular sobre o objeto, optou-se por realizar esta investigação
a partir da proposição metodológica presente na conclusão de
seu livro Mídia radical – rebeldia nas comunicações e
movimentos sociais (2004), em que o autor determina um
hexágono conceitual que ajudaria na leitura dessas mídias. Esse
hexágono é composto pelos tópicos: 1) talento artístico; 2) níveis
de memória; 3) realidades pragmáticas; 4) movimentos sociais;
5) duração; 6) estrutura de poder.

Em seu primeiro ponto, talento artístico, Downing (2004,


p. 489) fala que “o talento e o vigor artísticos são as centelhas da
oposição na cultural popular e até mesmo na cultura de massa,
na prática religiosa resistente, na sátira política e social”. Nesse
quesito, as drag queens se encontram completamente imersas,
visto que sua história está atrelada à história do teatro e sua
aproximação com a cultura homossexual, ocorrida no
aparecimento das drag pantomímicas no período anterior à
primeira guerra mundial (BAKER, 1994), as colocou como
indivíduos políticos, fato ainda mais visível quando nas rebeliões
de Stonewall já citadas.

Aqui também Downing (2004) coloca a dimensão


dialógica entre audiência e produto, falando do importante
caráter interativo que as mídias radicais, em geral,

371
proporcionam. Por ser um produto mercadológico dentro de um
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

grande grupo de comunicação, a dimensão dialógica direta é


suprimida. No entanto, as próprias audiências criaram, a partir
do programa, utilizando elementos do ambiente digital, lugares
para discussão não apenas do programa, mas de temática
pertinentes ao universo LGBT19. Percebe-se pelas incursões nas
comunidades de Facebook que as discussões levantadas pelo
programa (principalmente nos momentos em que participantes
revelam algum problema pessoal) reverberam, muitas vezes, de
maneira ainda mais profunda por parte da audiência dentro
desses ambientes.

Em “níveis de memória” Downing (2004, p. 490) coloca


que as mídias radicais, muitas vezes, recobram uma memória
esquecida ou mesmo banida da história. Segundo o autor (2004,
p. 493), “o ativismo da mídia, ainda que por muitas vezes possa
fracassar em seus objetivos imediatos, acende uma chama que, a
exemplo das velinhas mágicas de bolo de aniversário, se recusa
obstinadamente a se apagar”. Além disso,

na prática, essa mídia radical geralmente oferece, por


seu conteúdo, sua produção, sua interação com os
movimentos sociais, ou os três juntos, uma visão que,
como o salgueiro durante a tormenta, se curva, mas
não desprende de suas raízes (DOWNING, 2004, p.
494).
Por esse entendimento, pode-se dizer que RuPaul’s Drag
Race é um desses produtos que, curvando-se aos imperativos do
mercado de mídia, adaptou-se e desenvolveu um programa
baseado no entretenimento, mas que encontra pontos de
resistência dentro desse ambiente para discutir assuntos
pertinentes à comunidade, bem como da própria utilização das
drag queens como protagonistas já denota, até certo ponto, um
ativismo político que permeia os corpos híbridos drag.

19O estudo de Mayka Castellano e Heitor Leal Machado (2017) é bem


explicativo desse contexto de organização no ambiente digital dos fãs do
programa. Disponível em: [ http://bit.ly/2zyZ6Ao]

372
RuPaul também usa constantemente referências da
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

cultura drag, gay e queer nas dinâmicas do programa. Desde a


seleção das músicas para a dublagem final, passando pela escolha
dos jurados serem baseadas em ícones da cultura LGBT, até o
fato de colocar algumas questões históricas, como no desafio de
reading 20 , presente em todas as temporadas, em que o
apresentador cita o documentário Paris is Burning (Jennie
Livingston, 1990), que mostra a cena da ball culture21 do final
dos anos 1980 nas periferias de Nova York.

Em seu terceiro tópico, “realidades pragmáticas”,


Downing (2004, p. 490) trata da dificuldade das mídias radicais
manterem seus níveis de energia e de democracia direta, de
distribuição e alcance, bem como questões relativas a problemas
contábeis e mercadológicos que essas mídias costumeiramente
possuem. Nesse âmbito, o programa é enquadrado inteiramente
como um produto da mídia convencional, já que está dentro de
uma lógica de mercado que facilita e expande seu alcance
propositadamente. Da mesma maneira, por fazer parte da lógica
dos grandes conglomerados midiáticos, não há, em grau algum,
qualquer forma de democracia direta ou autogestão.

Como o próprio nome aponta, o quesito “movimentos


sociais” vai tratar sobre o envolvimento da mídia com essas
mobilizações. Estaria RuPaul’s Drag Race comprometido com o
movimento social LGBT? A resposta lógica seria não, pois o
programa se propõe como um produto do entretenimento, tendo
como foco a venda da imagem de RuPaul, dos produtos nele
veiculados, bem como do fortalecimento de um mercado drag, a
questão social parece ficar em segundo plano. No entanto, como
já falado, o momento do processo demontação das participantes,

20 Reading (ler, em tradução direta) é a prática de falar mal de outra pessoa,


de gongar, no linguajar LGBT brasileiro, o pajubá.
21 Em linhas gerais, a ball culture (cultura dos bailes) descreve uma subcultura

LGBT underground em que as pessoas desfilavam competindo por troféus e


prêmios em eventos conhecidos como bailes. A cultura drag, assim com a
dança Vogue são algumas das características desses bailes.

373
assuntos estruturalmente invisibilizados são mostrados na grade
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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de programação televisiva e pouco discutidos pela mídia


tradicional, explicitando certa preocupação com pautas do
movimento LGBT. Assim, é dúbio, nesse aspecto, a relação entre
o programa e os movimentos sociais, visto que eles estão
constantemente presentes nos diálogos, mas não são a peça
central do programa.

No que tange sua duração, outro critério proposto por


Downing (2004, p. 492), em que ele coloca o fato das mídias
radicais terem, em geral, curtas temporalidades, RuPaul não é
efêmera como a maior parte das mídias radicais. Entretanto,
como todo o pensamento de Downing, isso não é colocado como
uma regra. Há exceções - especialmente quando elas estão
institucionalizadas ou quando estão amarradas a movimentos
sociais de longa duração.

No caso de RuPaul’s Drag Race, o programa vem em uma


ascensão constante, em uma perspectiva de estar cada vez mais
próximo ao que poderia se considerar mainstream. Contando
atualmente com nove temporadas exibidas e com possibilidades
de expansão 22 , o programa se encontra nitidamente em voga.
Prova disso é que em 2017 o programa teve oito indicações ao
Emmy, principal premiação da televisão americana, vencendo
três categorias: Melhor Figurino de Não Ficção, Melhor
Apresentador de Programa de Competição e Melhor Edição de
Programa de Competição.

Em seu último ponto, Downing (2004, p. 495) fala sobre


“a estrutura de poder”, listando o Estado, a religião oficial, os
partidos políticos, o patriarcado e o capitalismo global como os
obstáculos e alvos da mídia radical. Aqui, percebe-se que
RuPaul’s Drag Race não é um local de obviedade oposicionista
hegemônica, mas para muito além disso, o de demarcação de um

22Há, inclusive, rumores de que o Brasil será o primeiro país a realizar uma
versão do programa.
Fonte: [ http://bit.ly/2xT2tWz ] Acesso 18/11/17.

374
espaço próprio, rompendo com as limitações de espaço que se
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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permite às drag queens. Para tanto, RuPaul’s Drag Race se


alinha às linguagens dominantes (reality show, entretenimento,
conglomerados midiáticos) para que, em momentos oportunos
dentro de sua dinâmica, possa se colocar de maneira política, por
vezes de maneira sutil e, outras, de maneira frontal e até
conflituosa. Um momento sintomático dessa questão é quando,
em meio a um desafio de dança e comédia (2º episódio da 8ª
temporada), uma das drag queens faz um death drop23 e RuPaul
fala diretamente para a câmera: “Take that, Donald Trump”24.
Como coloca Dênis Pacheco:

Entre desafios fotográficos que mesclam diversão


com constrangimento e musicais que testam a
paciência das competidoras, Ru não hesita em inserir
pequenas doses de sua própria agenda política,
resultado de anos de militância não somente a frente
de um movimento por direitos dos homossexuais,
mas pelo próprio reconhecimento enquanto artista
cuja orientação sexual permeia todo o seu trabalho
(Dênis Pacheco, Huffpost Brasil, 2014).
A repercussão geralmente positiva de RuPaul (inclusive,
ganhando o Emmy de melhor apresentador de reality show por
dois anos seguidos 25 ) e a pouca relutância dos setores sociais
sobre o programa, faz crer que ele não chega a atingir o status
quo. Em uma primeira análise parece que o programa prefere
habitar o espaço midiático de forma “docilizada” para em
momentos pontuais promover a humanização do olhar sobre as
drag queens e a comunidade LGBT, como também para inserir
temáticas pertinentes a essa comunidade por meio dos
depoimentos dos próprios participantes, dentro das dinâmicas
do programa.

Mesmo utilizando o hexágono analítico proposto por


Downing, a conclusão da leitura de RuPaul’s Drag Race não é

23 Death drop é uma técnica de dança utilizada por drag queens que consiste
em se jogarem para trás geralmente fazendo espacate.
24 Disponível em: [ http://bit.ly/2DfCMOv ] Acesso em 27/11/17.
25 Fonte: [ https://bit.ly/2HRH8Bp ] Acesso em 27/04/18.

375
simples, dado ao fato de se encaixar em alguns critérios de mídia
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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radical (talento artístico; níveis de memória), estar


completamente afastado em outros (duração; realidades
pragmáticas) e em um terreno de complexa definição
(movimentos sociais; estrutura de poder).

5 Conclusão: engajada ou pasteurizada?

Como coloca Butler (2017), a performance drag não


necessariamente serve como denunciativa do caráter arbitrário e
artificial do gênero, podendo, de certa forma, reafirmar esses
valores. Da mesma maneira, não é possível compreender o
programa sob uma ótica maniqueísta.

Se nos concentrarmos nas esferas produtivas, é evidente


um caráter completamente integrado aos meios tradicionais de
mídia, ou seja, um dispositivo completamente regido pelas
lógicas do mercado que vêm incorporando causas minoritárias
como forma de ampliar seus mercados dentro da lógica de nicho
(ANDERSON, 2006). Se a análise se focar no conteúdo, haverá
uma dificuldade de compreensão do objeto em qualquer uma das
totalidades, visto que o programa está atrelado às lógicas de
mercado, ao mesmo tempo em que traz constantemente as
pautas da comunidade LGBT dentro das dinâmicas realizadas.

Quando é focado o impacto gerado da audiência, observa-


se um crescimento de um mercado drag, da formação de
comunidades e redes de apoio, principalmente pautadas em
comunidades de redes sociais, além do constante discurso de
aceitação própria tão importante para uma comunidade que vive
sob os estigmas sociais e culturais tradicionalistas que muitas
vezes não entendem a população LGBT como parte integrada da
sociedade.

A visualização da totalidade do programa é complexa, não


apenas pelo seu caráter que mistura o movimento LGBT e o
mercado, mas também pela própria dúbia visão que o
376
apresentador e produtor RuPaul tem sobre o programa. Mesmo
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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as entrevistas de RuPaul se contradizem. Enquanto, por


exemplo, em reportagem do UOL, RuPaul afirma amar ser um
modelo para os jovens, em uma entrevista ao Papel Pop ele diz:

Eu sou responsável por ser eu mesma. Vivendo a vida


como eu vivo, isso pode ajudar outras pessoas a se
acharem e encontrarem o seu propósito na vida
também. Mas por anos as pessoas têm me
perguntado sobre eu ser um exemplo. Mas eu nunca
pensei que eu sou um exemplo [...]. Nunca me sinto
responsável por ser um exemplo (RuPaul: Entrevista
a Phelipe Cruz. 2017).
Da mesma forma, na mesma entrevista fornecida para o
UOL, RuPaul afirma que:

Nosso programa permite que histórias sejam


contadas e quando uma drag queen conta a sua
história para uma audiência de televisão, jovens do
mundo inteiro sabem que há uma tribo, que há
pessoas no mundo esperando por eles. Jovens que
estão nos lugares mais remotos do Brasil podem ver
o programa e entender que há um lugar para eles.
Essa é uma grande revolução. Quando eu era mais
novo, eu achei que estava sozinho. Esse programa
criou uma comunidade global (RuPaul: Entrevista a
Natália Guaratto. 2017).
Assim, mesmo RuPaul afirmando (como para a NBC
News 26 ), que “Drag Race nunca tentou efetuar mudanças ou
gerar impacto” e que o objetivo do programa é “fazer um show
que celebre o drag”, RuPaul’s Drag Race acaba tendo função de
mídia radical de várias maneiras. Primeiro pelo fato de colocar
em constância a questão das pessoas se aceitarem; segundo, pelo
fato de fomentar a criação de redes de discussões digitais sobre
temáticas pertinentes à comunidade LGBT; terceiro por ser
responsável por retirar o caráter marginal da cultura drag,
colocando-a em uma perspectiva artística e humanizada. Se o
papel dessa mídia radical é de chacoalhar determinada
perspectiva hegemônica posta e modificar determinados valores

26 Disponível em: [ http://nbcnews.to/2BIlvgg ] Acesso em 27/12/17.

377
e incidir nessa visão de mundo com uma nova ótica, não há como
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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não considerar o programa uma mídia radical.

Além disso, o programa vem colocando indivíduos que


não se enquadram nos binômios de gênero masculino-feminino
com protagonistas; ou seja, pessoas que não se encaixam nas
expectativas sociais estão sendo dispostas na televisão,
fomentando discussões sobre questões identitárias e de gênero e,
como consequência, inspirando espectadores a se engajarem nos
questionamentos acerca da rigidez desses universos27.

RuPaul’s Drag Race pode ser encarado como contra-


hegemônico em uma perspectiva social, mas dentro da lógica
dominante no que tange seu sentido econômico. Mesmo que a
intenção de RuPaul seja o lucro, Downing (2004) nos fala que é
importante colocarmos em discussão até que ponto a intenção
dos realizadores é definidora de seus discursos e alcance. Assim,
se há transformação social propiciada ou suscitada pelo
programa, mesmo que haja inclinações mercadológicas, não
seria essa uma mídia radical?

Quando Downing (2004) retira o entendimento de mídia


radical como baseada nas esferas produtivas, ele propõe que, por
mais que o conteúdo de determinado produto possa ser ligado
diretamente ao lucro, a transformação social é o principal
resultado da mídia radical. Nessa perspectiva torna-se inegável o
fato de RuPaul’s Drag Race, mesmo inundada de interesses
mercadológicos, ser uma plataforma capaz reavivar toda uma
cultura, antes marginalizada, possibilitando seu entendimento
como radical. Para Downing (2004), o papel da mídia radical não
é simplesmente de negar na forma e no conteúdo um
alinhamento hegemônico, mas formar sujeitos históricos capazes

27Como mostra a matéria “Reality show americano inspira nova geração de


drag queens no Brasil” do G1. Disponível em: [ https://glo.bo/2DhFX8o ]
Acesso em 27/12/17.

378
de transformar seus contextos de vida, já que a hegemonia não é
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

só um conjunto de ideias, mas uma prática de vida.

Observando matérias como a do portal IG 28, vemos que o


programa fomentou, em primeira instância, que indivíduos
começassem a questionar a rigidez do gênero, como também
estimulou os espectadores a questionarem as normas a partir da
performance drag. RuPaul’s Drag Race, então, disputando um
espaço na grande mídia na forma de uma trincheira, acaba
fomentando ideias e valores que permitem que as pessoas
expandam sua luta. Como nos fala Dênis Pacheco:

Foi assistindo a essa corrida insana de drags que


aprendi a valorizar tardiamente meu colega da escola
que, gay como eu, mas muito mais corajoso, "jogava
como menina" tentando não ceder à pressão do
julgamento alheio. E por fim, passei a reconhecer a
atitude do garoto que, aos 14 anos, já entendia que
jogamos todos juntos com o objetivo individual e
coletivo de marcar o maior número de pontos
possível (Dênis Pacheco, Huffpost Brasil, 2014).
Seria possível definirmos, então, que RuPaul’s Drag Race
pode ser entendida como uma mídia radical presa a um contexto
e uma cadeira produtiva hegemônica. Tal argumento pode
parecer contraditório, visto que uma mídia radical estaria em
uma perspectiva mais libertária que integrada. Porém, como já
falado, as transformações sociais ocorridas após o início da
veiculação do programa fazem com que essa mídia, mesmo
integrada às lógicas econômicas, mercadológicas e midiáticas,
funcione como uma mídia radical.

Essa leitura, inclusive, não seria exclusiva de RuPaul’s


Drag Race. Se estamos em uma sociedade capitalista, na qual o
valor de troca se coloca como um ideal a ser alcançado, é crível o
pensamento de se criarem produtos que vendam e sejam
economicamente rentáveis ao mesmo tempo que combatam
pautas sociais, especialmente as que se distanciam, em algumas
perspectivas, das pautas econômicas. Vários produtos de mídia

28 Disponível em: [ http://bit.ly/2DZbhtD ] Acesso em 03/12/17.

379
radical se encontram, dessa maneira, dentro de uma lógica de
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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consumo: livros extremamente radicais estão dentro da lógica da


indústria editorial; músicas radicais estão dentro da lógica de
consumo da indústria fonográfica e assim por diante.

Se antes a presença das drag queens na mídia ocorria


como meio de atender a uma “cota de diversidade” ou de
“excêntrismo”, hoje, as drag queens são protagonistas. Os corpos
midiatizados em Drag Race e a representação desestabilizadora
do feminino por meio de corpos lidos como masculinos institui
uma quebra do ideal hegemônico não só heterossexual, mas da
homossexualidade moldada pelos ditames heteronormativos.

A questão do aparente não incômodo por parte do poder


hegemônico pode ser explicado no fato de RuPaul’s Drag Race
se comunicar prioritariamente com seus pares, ou seja, a
comunidade LGBT. Não há, portanto, necessariamente um
confronto social frontal, mas um fomento das lutas LGBT e o
fomento de uma rede afetiva que tenta valorizar as diferenças da
população LGBT.

É importante frisar que a performance drag é tanto


entretenimento, quanto política. Por se tratar de uma
performance de gênero, a partir do uso de elementos
compreendidos como femininos na criação de um outro
indivíduo que, em grande parte, tem intenções mercadológicas
(apresentações em boates, shows de stand up comedy etc.) tanto
quanto intenções políticas de demonstrar a artificialidade dos
gêneros, é compreensível que o programa também siga a mesma
lógica e use dos mesmos artifícios. Ou seja, se a base da
performance drag, mesmo fora do programa, é uma crítica social,
cultural e política feita entre risadas e dublagens, não estaria o
programa, então, apenas reificando essa abordagem através da
mídia?

Do ponto de vista estratégico, pode-se considerar o


alinhamento à grande mídia como uma trincheira que cria,

380
dentro do aparelho hegemônico, um ambiente de exposição de
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
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ideias. Esses artifícios fariam o programa ter menos resistência a


entrar em mais grupos sociais e sua dinâmica se aproximaria, em
certa perspectiva, do edutainment, ou seja, um entretenimento
que também possui um caráter educacional e pedagógico.

Num mundo em que mulheres ainda sofrem


preconceitos ignorantes, assistir homens adultos
distribuírem lições de humanidade e tirarem força do
fato de se vestirem como mulheres representa uma
excelente alegoria de empoderamento. Sem ser
óbvio, RuPaul's Drag Race prova todos os anos que
existe para extrapolar as barreiras que o classificam
apenas como um reality-show divertido num canal
segmentado (Dênis Pacheco, Huffpost Brasil, 2014).
Talvez RuPaul’s Drag Race esteja posicionado onde Scott
(1990, apud DOWNING, 2004, p. 51) compreende como um
“terreno intermediário no qual a conformidade, com frequência,
é uma estratégia acanhada, e a resistência, algo cuidadosamente
equilibrado, que evita confrontos do tipo tudo ou nada,
conseguindo evitar o imenso terreno político que se encontra
entre a concórdia e a revolta” ou mesmo absorto no ideário de
Raymond Williams (1979), que compreende que toda cultura
possui elementos dominantes, residuais e emergentes. O caráter
de entretenimento, nesse sentido, pode ser assimilado como uma
inteligente estratégia de diluir o caráter político para que o
programa seja abraçado pela população e, dessa forma,
esgueirando-se pelas aberturas encontradas, promover discursos
de tolerância, igualdade e mesmo celebrar a cultura drag.

RuPaul’s Drag Race, portanto, quebra expectativas


simplistas de classificação. O humor e o entretenimento se
tornam a moeda de troca de uma relação em que se apresentam
e se normalizam vivências-outras dentro das dinâmicas do
programa. E no que tange o posicionamento político do
programa, parafraseando RuPaul, “toda vez que uma drag bate
seus cílios é um posicionamento político”.

381
Engajamentos e hegemonias midiáticas: percepções
acerca de Rupaul’s Drag Race
Lucas Bragança| Edgard Rebouças| Rafael Bellan

 Retorne ao sumário

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383
1 Introdução

Apesar de iniciativas no sentido de abarcar o público


infanto-juvenil e masculino, as telenovelas da Rede Globo
interpelam principalmente a audiência feminina adulta ao
apresentar enredos baseados em desenlaces amorosos e questões
familiares, temas que remetem a uma ideia tradicional de
mulher. Na tentativa de manter a sua produção ficcional
relevante no cenário midiático contemporâneo, a emissora tem
buscado diversificar a representação do feminino, acrescentando
às problemáticas convencionais às heroínas melodramáticas
temas que passaram a fazer parte da vida da mulher na
contemporaneidade.

Um exemplo disso tem sido a inclusão de questões


referentes ao mundo do trabalho nas telenovelas, o que torna a
saga da heroína mais complexa, pois, além de buscar pela
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

realização amorosa, ela agora precisa também lidar com dilemas


que surgem a partir da ocupação laboral que desempenha. Outra
representação do feminino que tem sido recorrente em textos do
gênero refere-se à posição de destaque ocupada por personagens
negras, decisão criativa que remete à visibilidade que os debates
acerca das minorias sociais têm ganhado ao longo dos anos, algo
que se intensificou com a migração dessas discussões para as
redes sociais.

Porém, nota-se que essas propostas alternativas de


representação do feminino mostram-se tímidas quando se toma,
como base, a representação da mulher gorda. Quando se fala em
personagens em situação de protagonismo, vê-se que iniciativas
desse tipo são praticamente inexistentes, tendo em vista que, nas
telenovelas, a mulher gorda figura em núcleos periféricos à linha
narrativa central, influenciando muito pouco no
desenvolvimento da história.

Do ponto de vista da caracterização, esse tipo de


personagem geralmente apresenta um viés cômico e, em algumas
narrativas, é utilizada como elemento temático na abordagem de
assuntos relacionados à luta contra gordofobia, ou à quebra de
padrões estéticos vinculados ao corpo magro. Nota-se que a
personagem é sempre vinculada a temáticas que debatem a
percepção social estética de seu corpo, com histórias
fragmentadas e desconexas da trama principal, tornando a
proposta de diversidade reduzida a um debate secundário.

A partir desse breve panorama, esse trabalho tem como


objetivo promover reflexões acerca da representação da mulher
gorda no cenário midiático nacional. Para tal, como recorte
metodológico, propõe-se a análise da personagem Abigail,
interpretada pela atriz Mariana Xavier, na telenovela A Força do
Querer (2017). Primeiramente, apresentou-se alguns
apontamentos acerca do desenvolvimento da telenovela

385
enquanto gênero narrativo para que se pudesse compreender o
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

tipo de representação do feminino proposto por esse tipo de


audiovisual de ficção.

Explorou-se também a questão do feminino,


principalmente no que concerne ao ideal tradicional de mulher e
as rachaduras que esse tipo de representação vem sofrendo na
contemporaneidade. Por fim, realizou-se algumas ponderações
acerca dos padrões de beleza associados ao corpo magro,
principalmente no que concerne à abordagem midiática do tema.
Com base nas reflexões geradas pelo referencial teórico,
analisou-se a caracterização (TOMACHEVSKI, 1976) da
personagem Abigail, uma mulher gorda que trabalha como
secretária em um escritório de advocacia no Rio de Janeiro.

2 Representação em telenovela: as convenções do


gênero

Tendo em vista que esse trabalho se propõe a tratar sobre


representação no âmbito da telenovela, considera-se conveniente
realizar algumas ponderações acerca dos aspectos
representacionais que são caros ao gênero. As obras
telenovelísticas são narrativas protagonizadas por personagens
que interpelam, principalmente, a audiência feminina,
característica que remete às radionovelas e às soap operas,
gêneros que podem ser considerados precursores da teleficção
contemporânea.

Tanto a radionovela como a soap opera surgem como uma


estratégia mercadológica arquitetada por empresas de bens de
consumo doméstico, como a Gessy-Lever e a Colgate-Palmolive,
que optam em investir em ficção radiofônica na tentativa de
incentivar a aquisição de seus produtos no contexto da Grande
Depressão. Como as iniciativas de marketing relacionadas a esse
tipo de mercadoria geralmente visavam a dona de casa, figura
tida como a principal responsável pela aquisição de produtos de
386
uso doméstico, as empresas passaram a mirar no público
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

feminino na produção de ficção radiofônica (ORTIZ, 1991).

No tocante aos aspectos narrativos dessas produções, elas


consistiam em adaptações de folhetins, textos de caráter
melodramático voltados ao jornalismo de cunho literário
presentes nos periódicos franceses do século XIX. É importante
destacar que não era qualquer tipo de folhetim que servia de base
para a produção de ficção radiofônica, mas principalmente
aqueles voltados aos relacionamentos amorosos, característica
que fazia alusão ao público almejado pelas empresas de bens de
consumo doméstico, explica o autor

Assim como vários outros gêneros e formatos


radiofônicos, a radionovela migra para a TV na década de 1950,
período que marca o surgimento do meio no cenário midiático
nacional. A primeira telenovela brasileira chamada Sua vida me
pertence foi ao ar em 1951, sendo transmitida ao vivo duas vezes
por semana. Em 1960, incorporou-se o videotape às produções
televisivas, o que permitiu mais flexibilidade e controle por parte
das emissoras na confecção e distribuição de seus programas,
facilitando a massificação das mensagens (FOGOLARI, 2002).

Nesse período, em que se observa a ascensão da telenovela


enquanto um dos produtos midiáticos mais consumidos pelos
brasileiros, ocorre dois movimentos importantes para a
estruturação do gênero: a introdução de temas de interesse social
nas narrativas e a presença substancial de recursos
representacionais provenientes do melodrama clássico, afirma
Ortiz (1991).

Sobre o primeiro movimento, ele remete ao Golpe Militar


de 1964. Com a ascensão dos militares ao governo, houve a
implementação de diretrizes voltadas à produção cultural e
midiática no sentido de estimular a abordagem de temas de
relevância social (RAMOS; BORELLI, 1991). Com isso, buscava-
se gerar subsídios para a construção de uma identidade nacional

387
ou, ao menos, para gerar uma ideia de cultura brasileira que fosse
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

partilhada por todos.

No que tange às telenovelas propriamente, essas diretrizes


manifestaram-se em diversos aspectos como, por exemplo, na
ambientação das narrativas. Até então, as histórias eram
ambientadas em locais imaginários ou em cenários que faziam
alusão à realidade europeia, característica relacionada à herança
folhetinesca da telenovela. Na tentativa de “abrasileirar” as
tramas, os acontecimentos narrativos passaram a ser encenados
em ambientes que se aproximavam mais do imaginário e da
vivência do telespectador brasileiro.

Essa forma de caracterizar as histórias expressou-se na


composição dos personagens também. Em vez de figuras que
faziam alusão ao contexto monárquico da Europa, como
príncipes e princesas, eles passaram a ser representados como
advogados, empresários, médicos ou alguma outra
representação mais próxima à realidade nacional. É nesse
contexto que a telenovela brasileira vai adquirindo uma
configuração própria, distanciando-se das teleficções produzidas
em outros países da América Latina ao inserir problemáticas
referentes ao cotidiano do telespectador (MARTÍN-BARBERO,
2004).

Ainda que a telenovela, assim como vários outros gêneros


presentes no cenário midiático brasileiro, seja um formato
importado de indústrias culturais de outros países, houve uma
espécie de amálgama entre esses produtos de entretenimento e
as especificidades sociais e demandas culturais nacionais, aponta
Lopes (2004).

Caso se leve em consideração que a TV se desenvolveu em


um cenário de intensificação do processo de globalização, é
possível atribuir à teledramaturgia um papel estratégico no que
tange à projeção de novas identidades culturais por meio da
proposição de narrativas populares acerca da nação.

388
Não é por acaso que a telenovela causa tanto burburinho
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

junto ao telespectador brasileiro. Longe de ser apenas um


produto de entretenimento destinado à consumação imediata,
esse gênero narrativo se consolidou no imaginário social como
um espaço de promoção de diálogos acerca de assuntos
contemporâneos, ainda que, muitas vezes, o tipo de
representação presente nesse tipo de audiovisual seja bastante
conservador e atrelado às tradições, principalmente no que se
refere à representação do feminino.

Embora as telenovelas insistam em propor uma imagem


de mulher atrelada ao matrimônio e aos valores familiares
tradicionais, tem-se notado, desde a década de 1990, a
incorporação de outros elementos à representação do feminino
na tentativa de compor personagens mais plurais. Um exemplo
disso é a inserção de temáticas relacionadas ao mundo do
trabalho, que levam as protagonistas a perseguirem outros
objetivos que não apenas a realização amorosa.

Esse tipo de iniciativa, além de fazer menção aos avanços


sociais conquistados pela mulher contemporânea, também diz
respeito à função desempenhada pela telenovela em propor
narrativas acerca da nação. No entanto, como mencionado, essa
função nem sempre é desenvolvida em sua totalidade, tendo em
vista o caráter regulador e limitante que os aspectos
representacionais exercem.

A telenovela, enquanto um gênero narrativo, tem suas


particularidades no tocante à produção discursiva, característica
que, muitas vezes, acaba entrando em choque com a sua função
de promover debates sociais. Para que se compreenda como se
expressam essas limitações impostas pelas questões narrativas,
propõe-se, no subtópico seguinte, realizar alguns apontamentos
sobre a herança melodramática da telenovela, que tanto
influenciou na estruturação do gênero.

389
2.1 Os limites da representação: reflexões acerca do melodrama
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

Como mencionado no tópico anterior, com a


popularização da telenovela, na década de 1960, os profissionais
da TV passaram a explorar cada vez mais para os mecanismos
representacionais do melodrama na produção de ficção
televisiva. Essa influência melodramática já existia, tendo em
vista que as primeiras telenovelas se basearam nos folhetins
europeus, que, por sua vez, eram herdeiros diretos do melodrama
teatral. Assim sendo, considerou-se produtivo recuperar a
história do referido gênero na tentativa de elucidar pontos que se
fazem necessários à execução da proposta desse trabalho.

As performances melodramáticas surgiram na França e na


Inglaterra no final do século XVIII e consistiam em
apresentações teatrais voltadas às pessoas de baixo estrato social.
As peças assemelhavam-se às performances realizadas em feiras
por trupes ambulantes e com as histórias orais, sendo, por isso,
consideradas como uma manifestação cultural de menos
prestígio (MARTÍN-BARBERO, 2004).

As apresentações passaram por algumas reconfigurações


a partir de uma normativa do governo francês que proibia o uso
da linguagem oral nos diálogos, iniciativa que tinha, como
objetivo, inviabilizar o teatro popular e, assim, evitar a
aglomeração de pessoas em espaços públicos, pondera o autor.
Uma das soluções encontradas pelos artistas foi a utilização da
mímica: por meio da articulação exagerada e do uso de gestos
simples, pretendia-se passar a mensagem ao público da forma
mais direta possível.

Outra reconfiguração do gênero teatral atrelada a essa


normativa do governo refere-se à caracterização dos personagens
e, consequentemente, à proposta das narrativas. Na tentativa de
simplificar o enredo, os dramaturgos buscaram apresentar
personagens altamente tipificados para que o público não se
confundisse com a mensagem que a história pretendia

390
transmitir. Para tal, passou-se a associar as características físicas
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

dos personagens aos traços de personalidade e aos aspectos


morais que eles representavam.

Assim sendo, se o personagem era um vilão, ele deveria


não apenas praticar atos moralmente reprováveis, como também
parecer, do ponto de vista estético, com alguém insidioso. O
mesmo se via na caracterização do herói ou, mais comumente, da
heroína, tendo em vista que as narrativas do gênero costumavam
ser protagonizadas por personagens femininos na tentativa de
suscitar compaixão junto ao público (BROOKS, 1976), recurso
estilístico que foi incorporado pelas telenovelas.

Além da intervenção governamental no sentido de


desestimular as apresentações teatrais populares, nota-se que
essas reconfigurações sofridas pelo melodrama fazem alusão
também ao tipo de público ao qual o gênero se destinava: a classe
trabalhadora. Dada à baixa experiência dessa plateia com a
dramaturgia, tendo em vista que as performances teatrais eram
voltadas principalmente às elites, especula-se que a proposição
de narrativas mais complexas poderia torná-las inviáveis ao
público a quem se destinavam.

Não é por acaso que os personagens melodramáticos se


apresentavam tão claramente tipificados: almejava-se passar
uma mensagem de modo simples para uma plateia com pouco
repertório simbólico no que tange à dramaturgia. Talvez seja por
esse motivo que o modo melodramático tenha sido
recorrentemente utilizado como gênero narrativo balizador na
estruturação da teleficção: dada a amplitude e o alcance da
mensagem televisiva, faz-se necessária a produção de programas
que possam ser assimilados facilmente pela audiência.

De acordo com Brooks (1976), um dos principais


elementos das narrativas melodramáticas refere-se à luta entre
forças bipolares, recurso que gera uma ideia de mundo
maniqueísta em que o bem vence o mal. A busca da heroína por

391
inserção social, que costuma estar atrelada a uma mudança de
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

vida positiva obtida por meio da incrementação de algum aspecto


de sua vida, geralmente é dificultada pela ação do vilão. Ao
ultrapassar os obstáculos, a protagonista consegue provar o seu
valor junto à sociedade e, assim, tornar-se digna de obter o tão
almejado final feliz.

Assim sendo, pondera-se que a resignação da heroína e


dos demais personagens tidos como bondosos é a garantia do
desfecho positivo. É por essa razão que a personagem Abigail
alcança o reconhecimento social tornando-se uma modelo plus
size ao final da narrativa, ainda que, durante o desenvolvimento
da história, não tivesse sido apresentado qualquer argumento
que justificasse tal desfecho. A recompensa da personagem está
mais atrelada à sua moralidade do que, propriamente, à
aquisição de habilidades para exercer a ocupação laboral de
modelo.

Essas reflexões mostram-se oportunas no âmbito desse


trabalho, pois os presentes autores acreditam que as
representações midiáticas não são influenciadas apenas pelo
senso comum ou pelas imagens de mundo presentes na
enciclopédia da audiência, mas também pela maneira como os
produtos do entretenimento estruturam os seus discursos. No
caso da telenovela, conhecer os mecanismos expressivos que
configuram a linguagem do gênero permite reconhecer as suas
possibilidades e limites representacionais.

3. Notas sobre a identidade feminina

Comumente associadas aos sistemas sociais de


parentesco, as categorias de gênero e sexo não se reduzem mais
à esfera familiar, passando a abarcar outros espaços, como o
mundo do trabalho, a política, o sistema educacional, entre
outros, aponta Scott (1995). Assim, mesmo que a mulher tenha
passado a ocupar novas posições na sociedade contemporânea

392
que possibilitaram a ela se tornar sujeito nas relações de troca,
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

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Silva
telenovela A Força do Querer

ela não deixou de ser objetificada: ainda se espera que ela se


encaixe nas diretrizes de uma ideia totalizante de feminilidade.

A constituição do feminino relaciona-se de modo


referencial com o ideal de masculino por oposição, tendo em vista
que, à mulher, não é dado o direito de colocar-se simbolicamente
da mesma forma que o homem, tido com o único portador de
determinadas características. Assim, a identidade feminina
caracteriza-se pela falta, pela incompletude, valores que são
inculcados nas meninas desde muito cedo por meio da
socialização, processo em que elas aprendem os limites que são
impostos ao corpo feminino.

Essa aprendizagem ocorre de maneira tácita, por meio de


uma disciplina incessante, em que a mulher é constantemente
coagida, aponta Bourdieu (2010). Desse modo, naturaliza-se
uma ética de gênero, que propõe à identidade feminina
normativas acerca do seu corpo. Essa espécie de pedagogia se
expressa de várias formas: na maneira recatada associada ao
comportamento das mulheres, em sua postura, na maneira como
gesticulam, como posicionam os pés, piscam os olhos, etc. É uma
ética que está diretamente relacionada a uma estética, em um
contexto em que ser é parecer.

Dado que a identidade feminina se constitui a partir da


masculina, ela impõe à mulher que esta se diminua, se encolha,
para que, desse modo, o homem se sinta valorizado. Esse
apagamento tem como consequência a restrição do espaço de
ação da mulher, que tem os seus movimentos limitados,
encontrando poucas chances de se deslocar, questão que se
manifesta até mesmo em elementos aparentemente irrelevantes,
como no vestuário. Historicamente, nota-se que as roupas
destinadas ao corpo da mulher objetivavam dificultar a
locomoção feminina, como, por exemplo, os vestidos longos e os
espartilhos.

393
Apesar de algumas dessas peças terem entrado em desuso
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

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telenovela A Força do Querer

ou terem sido adaptadas, esse confinamento simbólico não se


mostra muito diferente na atualidade: o vestuário utilizado pela
mulher contemporânea, como as minissaias e os sapatos de salto
alto, continua a limitar a realização de movimentos simples,
aponta o autor. Assim, a identidade feminina é recorrentemente
chamada à ordem ao ser estimulada a utilizar roupas e acessórios
que são verdadeiras ferramentas de contenção, dinâmica que põe
em questão os discursos supostamente engajados proferidos pela
indústria da moda tendo em vista que os produtos destinados às
mulheres estão mais alinhados às expectativas masculinas do que
às reais necessidades de quem as utiliza.

Essa ideia de contenção se expressa na própria


caracterização do corpo feminino, espaço em que se realiza essa
luta simbólica concernentes às questões de gênero. Em um
contexto em que se fazer pequena é ser aceita socialmente, tendo
em vista que a virilidade física é um atributo que diz respeito
apenas à identidade masculina, a magreza torna-se um elemento
de valoração da imagem corporal feminina, tendo em vista que,
por comparação, o corpo magro da mulher contribui para
acentuar a robustez do corpo masculino.

Longe de serem características naturais ou biológicas,


posicionamento que se mostra recursivo em discussões acerca
das diferenças sexuais e de gênero, a magreza, atribuída ao corpo
feminino, e a robustez, tida como característica intrínseca à
existência corporal do homem, são construções simbólicas
naturalizadas que escondem as relações de dominação existentes
e que, por serem imperceptíveis, são tão eficientes.

Ao propor a mulher como um objeto simbólico, o


masculino produz a sensação de insegurança corporal vivenciada
pelas mulheres, pois elas dependem da anuência do entorno
social para se sentirem validadas, aponta Bourdieu (2010). Desse
modo, o olhar do outro é central na constituição identitária

394
feminina: a mulher age em função da percepção social,
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
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telenovela A Força do Querer

colocando-se como um objeto a ser avaliado pelas pessoas.

Nesse contexto, o amor torna-se um elemento


fundamental para a constituição do feminino, configurando-se
como uma espécie de recompensa pelo tempo e esforço
dedicados pela a mulher em função do seu próprio apagamento
enquanto sujeito. No tocante à mulher heterossexual, nota-se
que ela tende a se associar a um homem que, entre as alternativas
possíveis, atenda aos requisitos impostos pelo projeto de
masculino, pois a performance do sujeito a quem ela se vincula
amorosamente repercute na sua imagem social.

Como a busca pela admiração social é tida como algo


relevante na constituição do ser feminino, a aparência corporal
configura-se como uma preocupação constante para as
mulheres, pois, como foi mencionado anteriormente, a ética de
gênero vem associada a uma estética. Diferentemente dos
homens, que costumam utilizar trajes que apagam os signos
corporais, a mulher tende a realçar as suas características
corporais que se alinham ao ideal de sedução atrelado ao
feminino, questão que se relaciona ao maior investimento feito
por elas em sua apresentação pessoal.

O inverso também é válido: há uma preocupação em


desviar o olhar daquilo que é visto como esteticamente
incoerente com a imagem que se tem sobre o feminino. Nesse
sentido, as reflexões de Goffman (2008) acerca do conceito de
estigma se mostra oportuno para a produção de algumas
elucidações acerca do ideal de imagem corporal da mulher
contemporânea atrelado à magreza.

Quando uma pessoa apresenta atributos tidos como


indesejáveis ou que não condizem ao estereótipo associados a ela,
essa pessoa passa a ser considerada como alguém socialmente
reprovável por ser portadora de um estigma. Esse conceito trata
não apenas sobre características que um sujeito possa vir a

395
apresentar, como também sobre a maneira como esses atributos
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

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telenovela A Força do Querer

relacionam-se aos estereótipos, posto que os predicados


geralmente apresentam algum tipo de valoração, seja ela positiva
ou negativa.

Com base no significado atribuído aos estigmas, tende-se


a discriminar determinada pessoa em uma atitude reducionista
que toma como pressuposto ser possível julgar o todo pela parte.
Assim, imputa-se ao estigmatizado uma série de propriedades
negativas a partir da imagem suscitada pela característica
negativa original. Aquele, na tentativa de se adaptar ao sistema
de crenças social, busca extirpar a característica estigmatizada
ou, ao menos, atenuá-la.

Ele pode ainda tentar subverter a sua identidade social ao


propor uma interpretação não-convencional acerca de seus
atributos, algo que tem sido recorrente não apenas nos debates
propostos pelos segmentos minoritários – que costumam falar
sobre a redefinição de termos associados a estigmas, como as
palavras negro, gay, etc. –, figurando também no discurso
midiático, como as campanhas recentemente veiculadas pela
Rede Globo em prol do respeito à diversidade sexual e de gênero 1.

Há também iniciativas impetradas por parte da pessoa


estigmatizada no sentido de remediar a sua situação de maneira
indireta na tentativa de provar que os seus atributos não a
impedem de alcançar suas metas. Como exemplo, Goffman
(2008) cita o ingresso em áreas de atuação que geralmente são
de difícil acesso a pessoas que portam determinado estigma, à
semelhança da personagem Abigail, que encontra, na carreira de
modelo, uma maneira de atingir o reconhecimento social, ainda
que essa ocupação profissional seja exercida
predominantemente por mulheres consideradas magras.

1Tudo Começa Pelo Respeito: Globo lança filme que fala sobre homofobia.
Disponível em: <https://redeglobo.globo.com/Responsabilidade-
Social/respeito/noticia/tudo-comeca-pelo-respeito-globo-lanca-filme-que-
fala-sobre-homofobia.ghtml>. Acesso em: 15.mar.2018.

396
É importante realçar que a atribuição de sentido a uma
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

característica corporal é uma construção social e, por isso, faz


alusão a discussões contextuais, sociais, antropológicas,
econômicas, entre outras. Desse modo, viu-se que seria viável
tratar também sobre o binômio magreza/gordura atrelados aos
padrões de beleza contemporâneos, questão que será abordada
no próximo tópico.

3.1 Os padrões de beleza e imagem corporal

A discussão sobre padrões de beleza remete a questões de


caráter cultural, tendo em vista que aquilo que certo grupo social
convencionou chamar de belo pode não ter o mesmo significado
para outro grupo. Dentro dessa fluidez na significação do que é,
ou não, considerado bonito, entra a concepção estética do gordo
e do magro. Os padrões estéticos existentes em cada contexto
social determinam a quantidade de gordura corporal que fará de
alguém magro ou gordo, bonito ou feio, ou seja, eles estabelecem
certo grau de normatividade que permitem balizar o que é
aceitável ou não em relação a determinada realidade.

Para além da percepção de beleza atrelada à quantidade


de gordura corpórea do indivíduo, está, também, a representação
positiva da pessoa magra enquanto alguém saudável e,
consequentemente, o estigma da pessoa gorda enquanto alguém
doente. Ora, se a noção de magro e gordo ultrapassa o senso
biológico, configurando-se também como uma construção social
de significado e, por isso, suscitando uma gama de
representações, sejam elas positivas ou negativas, reduzir a
percepção do que é ou não saudável a partir de padrões culturais
estéticos é um erro rude e reducionista que desconsidera os
aspectos plurais da saúde.

Mostra-se relevante salientar o caráter reducionista de


tais terminologias, tendo em vista que os discursos acerca da
temática do corpo e, mais especificamente, da gordura corporal
397
suscitam reflexões não apenas da área da saúde, mas também
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

posicionamentos sociológicos e culturais. Nessa sobreposição de


discursos, falar de saúde é também falar de cultura, assim como
de outras esferas da vida humana que ultrapassam a visão
estigmatizada e errônea do magro considerado saudável e do
gordo considerado doente.

Para exemplificar de forma prática os padrões


estéticos vinculados à quantidade corpórea de gordura, o
sociólogo Jean-Pierre Poulain em seu livro “Sociologia da
obesidade” (2014) relata a história do alemão Hans Staden, que,
após ter sido encontrado no sul da costa brasileira por uma tribo
indígena de hábitos alimentares, tornou-se prisioneiro. O
alemão teve a sua vida poupada pelos indígenas por ser
considerado muito magro e, assim, não se mostrando adequado
para alimentar o grupo, que buscava por pessoas com mais
gordura corpórea, indivíduos tidos como mais pertinentes para
tal finalidade.

Apesar do caráter pitoresco do evento, Poulain (2014)


utiliza-se dessa história para evidenciar que a noção de magro ou
de gordo não está descolada do contexto cultural em que o
indivíduo está inserido. É a partir de sua visão de mundo e de seu
repertório simbólico que as pessoas determinam o que é
considerado um corpo com deficiência ou com excesso de
gordura, assim como a valorização positiva ou negativa dessas
imagens corporais.

Atualmente, essas discussões acerca do corpo ocorrem


atreladas aos padrões de beleza, assuntos amplamente debatidos
e debatíveis, aponta o autor. Mesmo que um indivíduo esteja
dentro de um padrão aceitável de peso-saúde 2 , ele pode ser
considerado magro ou gordo a depender do compartilhamento

2Peso-saúde é terminologia médica que compreende a quantidade de gordura


corporal ideal e não excedente que é considerada saudável ao organismo
humano. Quando extrapolado o peso-saúde adentra-se à concepção de
sobrepeso e seguidamente de obesidade em seus níveis sequenciais.

398
de sentido, pois as concepções biologicistas não são as únicas que
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

possuem normativas acerca do que é magro/gordo ou do que é


belo/feio.

As valorizações do gordo e do magro são variáveis de


uma cultura para outra. É preciso lembrar que Hans
Staden (um arcabuzeiro alemão alistado em um
galeão português na época da exploração do Brasil)
teve a vida salva porque os tupinambás, canibais da
costa sul do Brasil, dos quais ele foi prisioneiro, só
comiam homens bem rechonchudos (POULAIN,
2014, p. 123).

Em certas culturas, o corpo considerado gordo é a


normativa do padrão estético daquilo que é considerado belo,
estando atrelados a valores como boa saúde e vitalidade. Em
alguns casos, o corpo gordo correlaciona-se à ideia de poder
aquisitivo e de prestígio social, pondera o autor. Quando se traz
esse debate para o cenário midiático nacional, vê-se que é
empírica a disseminação da beleza conectada à magreza,
especialmente quando essa imagem corporal está relacionada à
identidade feminina.

A indústria corporal através dos meios de


comunicação encarrega-se de criar desejos e reforçar
imagens, padronizando corpos. Corpos que se vêem
fora de medidas, sentem-se cobrados e insatisfeitos.
O reforço dado pela mídia em mostrar corpos
atraentes, faz com que uma parte de nossa sociedade
se lance na busca de uma aparência física idealizada
(RUSSO, 2005, p. 81).

Desse modo, esse trabalho parte do princípio de que,


dentro de um senso comum3, o magro, o belo, a saúde e as demais
representações suscitadas por essa temática são todas
concepções que se aproximam e se complementam. Mas como,

3 Entende-se, aqui, senso comum no sentido de sentidos de significados


compartilhadas socialmente (GEERTZ, 2007).

399
efetivamente, essa estereotipia acerca da questão corporal
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
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Silva
telenovela A Força do Querer

atrelada à gordura se constrói?

Um caminho possível para se entender esse tema seria o


contexto histórico, aponta Poulain (2014). Ele afirma que o ideal
de beleza vinculado à magreza e a estigmatização do corpo gordo,
comum em sociedades ocidentais, tem vínculo com o cenário
político e econômico da década de 1960.

A valorização de uma estética corporal de magreza é


concomitante à conscientização terceiro-mundista e
à crítica ao capitalismo. Como o capitalista acumula
o capital, o gordo acumula energia sob a forma de
gordura em seu próprio corpo [...] O imaginário
tradicional do anticapitalismo dos anos 1960
representava o patrão barrigudo, com um charuto na
mão, notas bancárias saindo da cartola, devorando
vorazmente seus operários [...] (POULAIN, 2014, p.
127-128).

Atualmente, dizer que alguém emagreceu ou engordou


pode significar um elogio ou uma crítica, respectivamente, dado
o contexto vigente de busca pela magreza, padrão estético
compartilhada culturalmente como positivo. Assim sendo,
mostra-se relevante para esse trabalho levantar esse debate para
que se possa compreender as prováveis causas da atribuição de
sentido negativo aos adjetivos gordo/a, assim como da concepção
valorativa que se tem acerca dos termos magro/a.

Como as pessoas costumam se apropriar das


representações que já se encontram definidas culturalmente, as
percepções individuais são, na verdade, moduladas a partir dos
estereótipos sociais vigentes, aponta Lippmann (2010). Quando
sobrepostas às questões da estigmatização do gordo levantadas
por Poulain (2014), os estudos de Lipmmann (2010) sobre
estereótipos indicam um caminho viável para a compreensão do
modelo estético-corporal associado à magreza.

400
Quando midiatizado, o corpo da mulher tida como gorda
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

comumente é apresentado a partir de uma busca pelo status quo


na tentativa de participar de maneira positiva do imaginário
coletivo de beleza. Personagens como Abigail, da obra a A Força
do Querer, ganham visibilidade quando servem para a
tematização da mulher-gorda. Atualmente, esse tipo de tema tem
buscado enveredar pelo discurso da reproposição dos padrões
estéticos normativos, ou seja, contra a estigmatização do corpo
gordo feminino.

Porém, nem sempre essas iniciativas são bem-sucedidas,


pois, ao se utilizar da figura de uma mulher gorda para
representar apenas assuntos relacionados ao tema da imagem
corporal, desconsidera-se outras possibilidades de
representação. Realça-se que a mulher gorda é colocada no
centro desse debate estético para tratar de assuntos relacionados
à percepção social de seu corpo, seja como uma personagem na
busca pelo pertencimento aos padrões ou pela quebra dos
mesmos, mas nunca apenas enquanto mulher comum,
representação que, por si só, já é bastante complexa.

As temáticas sobre a gordura corporal do corpo feminino


e as normativas estéticas de cada sociedade sobre a mulher
gorda, sobre a mulher magra e sobre qual a medida exata para se
enquadrar no senso de beleza tem inserção midiática constante e
garantida nos mais diversos veículos e formatos. O que se deve
avaliar é: até que ponto a tematização fragmentada sobre a
estigmatização da mulher gorda, dentro das telenovelas, não
acaba por reforçar outros estigmas igualmente negativos?

4 Conhecendo Abigail: apontamentos sobre a


representação midiática da mulher gorda

Após perpassar debates sobre as convenções de gênero


narrativo, representações midiáticas, identidade feminina e os

401
padrões de beleza vinculados à magreza, é relevante que se faça
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

a correlação entre todas essas esferas de significado e a proposta


de estudo presente nesse trabalho.

Inicialmente, pondera-se que a escolha da atriz Mariana


Xavier para interpretar Abigail atrela a vivência da personagem
à da intérprete, tendo em vista que a questão do sobrepeso é
comum às duas. Fora da ficção, a atriz Mariana Xavier
recorrentemente é chamada a falar sobre assuntos relacionados
ao seu corpo em entrevistas.

No Carnaval de São Paulo 2018, ela foi empossada como


madrinha da Ala Plus Size da Escola de Samba Acadêmicos do
Tucuruvi4, circunstância que demonstra a relação entre o corpo
e as atividades profissionais desempenhadas pela atriz, algo que
também concerne ao seu papel enquanto intérprete da
personagem Abigail.

A decisão de selecionar uma atriz que já lida


cotidianamente com estigmas relacionados ao seu corpo faz
alusão aos objetivos da emissora em relação à personagem
Abigail, que integrou a obra A Força do Querer (2017) para tratar
especificamente sobre sobrepeso e imagem corporal.

Essa assertiva é confirmada pela caracterização oficial da


personagem, disponível no site da Rede Globo, que descreve
Abigail da seguinte forma: “Secretária na empresa C. Garcia. É
uma representante do orgulho plus size, muito bem resolvida
com sua aparência [...]” 5 . A descrição, apesar de sucinta, traz
elementos passíveis de reflexão, como é o caso da expressão
“representante do orgulho plus size”.

4 Mariana Xavier é empossada como Madrinha da Ala Plus Size da


Acadêmicos do Tucuruvi. Disponível em: <http://sasp.com.br/mariana-
xavier-e-empossada-como-madrinha-da-ala-plus-size-da-academicos-do-
tucuruvi/>. Acesso em: 28 mar. 2018.
5 A Força do Querer – Personagens. Disponível em:
<http://gshow.globo.com/novelas/a-forca-do-
querer/personagem/abigail/>. Acesso em: 28 mar. 2018.

402
Por si só, a palavra representante demonstra que Abigail
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

entra na trama enquanto um exemplo estereotipado da


representação da mulher gorda que supostamente não tem
problemas em lidar com as normativas culturais que impõem a
magreza enquanto padrão de beleza, já que Abigail é “muito bem
resolvida com sua aparência”, como consta na descrição de sua
caracterização.

O fato de ela ser apresentada como alguém bem resolvida


implica dizer que ela passa por algum tipo de problema, tendo
em vista que o termo deriva do verbo “resolver”, que, nesse
sentido, tem o significado de aceitação ou de superação,
reforçando as conotações negativas atreladas ao corpo gordo.
Soma-se a isso o uso da terminologia plus size em vez da palavra
gorda/o, que é evitada por ter um sentido pejorativo.

Ao se propor Abigail como representante da diversidade,


circunstância que coloca a gordura corporal da personagem
como elemento temático, reduz-se as representações a conceitos
estereotipados, como é o caso da ideia de mulher gorda que
apesar de afirmar não se importar com os padrões de beleza,
acaba os reafirmando tendo em vista que a ideia de aceitação está
vinculada à ideia de corpo gordo enquanto fator negativo. Ao
tentar incluir a diversidade nas discussões midiáticas, a obra
fragmenta o debate, alocando o tema em outro espaço de fala.

Quando se toma como referência o papel e a função


desempenhados pela personagem Abigail na narrativa
propriamente, nota-se que a intenção da Rede Globo em tratar
sobre diversidade apresenta lacunas. Primeiramente, a
personagem não possui uma trama própria ou um processo de
busca pessoal, tendo a sua trajetória atrelada ao enredo de outras
figuras, como os seus patrões, Enrico e Rui, donos do escritório
de advocacia em que Abigail trabalha.

Enrico é casado com Silvana, uma mulher viciada em


jogos de azar, situação que a coloca em diversas situações

403
conflituosas com o seu marido. Abigail acaba se envolvendo nos
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

problemas enfrentados pelos patrões devido à atividade laboral


que desempenha, servindo como uma mensageira, que repassa a
Eurico os recados deixados pela esposa dele e vice-versa.

A secretária também figura no drama vivenciando por


Eugênio, que possui um caso extraconjugal, e Ruy, esposo de
Ritinha, uma das protagonistas da novela. Assim, nota-se que,
além de não possuir uma trama própria, o que enfraquece a
personagem e, consequentemente, a temática acerca da
valorização do corpo gordo que ela representa, Abigail está
inserida no enredo de personagens secundários, o que a torna
ainda mais periférica no contexto da narrativa. A supressão da
personagem na obra não faria diferença alguma para o
desenvolvimento da história.

Dado ao seu interesse por cosméticos, Abigail decide se


tornar revendedora de produtos da marca Natura, figurando em
cenas de merchandising em que ela fala sobre as vantagens de
trabalhar para a marca. Em uma iniciativa transmídia, a
personagem passa a veicular dicas de moda e beleza em um perfil
no Instagram e em um blog criados para a personagem,
iniciativas atreladas à parceria estabelecida entre a Natura e a
Rede Globo.

Com o desenrolar da narrativa, Abigail envolve-se no


drama de Nonato, uma travesti que esconde a sua condição por
medo de ser demitida da empresa de Eurico e Eugênio. Tendo em
vista que a questão LGBT é uma das principais temáticas da obra,
infere-se que a centralidade do assunto na história acabou
contribuindo para dar ainda mais invisibilidade à questão da
mulher gorda.

Ao descobrir esse aspecto da identidade de Nonato, a


secretária passa a frequentar locais voltados ao público LGBT,
como bares e casas de show. Nos capítulos finais da narrativa,
Abigail conhece João, um produtor de moda por quem ela se

404
apaixona. Ele convida a moça para participar como modelo de
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

uma campanha de lingerie para mulheres gordas, que se torna


famosa midiaticamente.

Nas cenas do ensaio fotográfico, predominam


enquadramentos do rosto e de partes do corpo da personagem,
nunca mostrando-a de corpo inteiro, ainda que se trate de uma
campanha de lingerie, o que põe em questionamento a temática
da valorização do corpo fora dos padrões estéticos, tendo em
vista que não há uma vinculação entre o discurso e o que
realmente se mostra nas cenas.

Em cenas do mesmo tipo, em que figuram personagens


magras, geralmente a câmera capta, em zoom, partes erotizadas
do corpo feminino, como seios, coxas e bunda, algo que não se
viu no ensaio de Abigail. Nesse sentido, a narrativa mostra a
dificuldade do meio televisivo em propor novas representações
acerca da estética feminina, tendo em vista que iniciativas desse
tipo, em que se busca objetificar a mulher, geralmente são
protagonizadas por atrizes tidas como magras.

É importante mencionar também que o ensaio fotográfico


foi embalado pela canção “Perigosa”, que ficou conhecida
nacionalmente pela interpretação da cantora Rita Lee e do grupo
musical As Frenéticas. “Eu sei que eu sou bonita e gostosa. E sei
que você me olha e me quer”, diz um dos trechos da canção, o que
busca reforçar a representação da mulher gorda a partir de um
viés de valorização estética.

Todas estas constatações demonstram o reforço de


estigmas em Abigail. Nota-se que a tentativa da utilização da
personagem enquanto representante da mulher gorda na
telenovela apresenta-se segmentada e simplificada, configuração
que desconsidera a complexidade da temática, fazendo alusão a
todas as esferas de representação aqui abordadas.

5 Considerações finais
405
No tocante aos aspectos expressivos da telenovela, nota-se
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

que a obra em análise procurou abarcar temáticas diversificadas,


como a questão LGBT e a representação da mulher gorda,
característica que remete ao papel atribuído à teledramaturgia
nacional em proporcionar espaços dialógicos no sentido de
propor assuntos tidos como socialmente relevantes. Porém, na
tentativa de discutir temáticas múltiplas, observa-se uma
sobreposição de assuntos distintos, o que dificulta uma
abordagem aprofundada sobre os mesmos.

Por mais que a intenção da Rede Globo fosse trazer uma


representação diversificada acerca do feminino ao promover
uma personagem fora dos padrões estéticos vigentes, a
representação de Abigail mostra-se conservadora, ao atrelar a
ideia de felicidade da mulher à valorização do corpo, à estética e
aos relacionamentos amorosos, tendo em vista que o desfecho da
personagem acontece quando ela ingressa na carreira de modelo
plus size, incentivada por João, com quem ela passa a namorar.

Sobre a linguagem melodramática, realça-se a


caracterização tipificada da secretária, que, desde o início da
história, é apresentada como alguém que, apesar de não atender
aos padrões estéticos corporais, sente-se bem com a sua imagem,
representação que reduz a temática do corpo gordo a uma
questão de mera aceitação pessoal, apagando outros elementos
que fazem parte dessa problemática, como os estereótipos e os
estigmas sociais.

Pontua-se que essa proposta de tematização está


diretamente relacionada ao público com quem a telenovela
estabelece interlocuções: dado o alcance da programação
televisiva e a diversidade do público atingido, as mensagens
beneficiam-se de construções de mundo simplificadas, ainda
mais quando se fala na abordagem de temáticas específicas no
âmbito da telenovela, produto que geralmente apresenta um viés

406
pedagógico no sentido de promover o assunto de maneira a
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

provocar a adesão e o engajamento do telespectador.

Nesse sentido, um personagem temático raramente possui


uma caracterização multifacetada pois ele não pode provocar
dúvidas ou leituras divergentes acerca da sua proposta. Caso isso
acontecesse, o personagem teria dificuldades em tornar a
audiência simpática à sua história. Não é à toa que Abigail
conseguiu atingir o final feliz de maneira providencial: como ela
se mostrou uma pessoa bem quista por todos ao seu redor,
sempre disposta a ajudar os seus amigos e livre de preconceitos
morais, tornou-se merecedora, a partir do ponto de vista do
melodrama, a alcançar o desfecho positivo.

Sobre a discussão acerca do feminino propriamente,


pondera-se que a personagem procura maneiras alternativas de
se dedicar à construção da sua identidade enquanto mulher
tendo em vista que, do ponto de vista corporal, ela não atende às
expectativas de gênero. Desse modo, ela mostra-se uma pessoa
bastante vaidosa. Em dado momento da trama, ela passa a
trabalhar como vendedora de produtos de beleza, o que remete à
ideia tradicional de feminino em que a estética ocupa uma
posição de centralidade.

Conjectura-se também que, objetivando compensar os


estigmas associados ao corpo gordo, Abigail dedica bastante
energia no que se refere ao seu apagamento enquanto sujeito,
algo que estaria relacionado à constituição da identidade
feminina. Assim, ela apresenta-se como alguém simpática, alegre
e sempre disposta a ajudar as pessoas do seu entorno, proposta
que destoa da caracterização de outras personagens femininas
presentes na narrativa, que se mostram menos homogêneas ao
se colocarem como sujeito nas relações interpessoais que
estabelecem.

Desse modo, Abigail apresenta-se altamente objetificada


ao se comportar como uma mulher servil e resignada. Nas raras

407
cenas em que a personagem aparece, são apresentadas poucas
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

pistas acerca da sua caracterização, o que dificulta qualquer


tentativa de definir a sua personalidade ou seus objetivos de vida,
circunstância que destoa da proposta inicial apresentada pela
Rede Globo no site oficial da novela.

Ainda que a emissora tenha intencionado atribuir


protagonismo a Abigail a partir da temática da mulher gorda, isso
não se verificou no desenvolvimento da narrativa. Nessa
circunstância, a personagem e, consequentemente, o tema
levantado por ela perderam relevância ao longo dos capítulos.
Esse afastamento da intencionalidade primária faz com que a
inserção da diversidade na narrativa se torne superficial e acabe
desconsiderando debates basais sobre os padrões estéticos
normativos.

Retoma-se, ainda, o desenrolar histórico e cultural do


corpo gordo associado a significações negativas. Sendo a
telenovela uma forma simplificada de representação da vida
cotidiana, naturalizar a mulher gorda e dar a ela voz ativa na
trama enquanto sujeito seria uma forma de introjetá-la nos
debates sociais. Porém, ao afastar o tema da trama principal faz
com que Abigail, considerada pela própria emissora como
representante da mulher gorda empoderada, esteja à margem do
enredo, o que alude à posição da mulher gorda na sociedade,
sempre à margem nas esferas sociais, descolada do status quo.

Além das estigmatizações sobre a mulher-gorda, o


contexto da temática da saúde associado à gordura corporal foi
completamente ignorado na história de Abigail. Para além das
noções estéticas culturalmente determinadas sobre o corpo
magro ou gordo, há que se considerar que o debate sobre padrões
corporais não pode ser descolado de um debate sobre saúde.

Considerando haver a necessidade de simplificar


determinados assuntos para que eles sejam aplicáveis à
narrativa, pode-se concluir que a obra em análise reuniu

408
elementos temáticos que contribuíram para a produção de
A falta de visibilidade da mulher gorda na tv brasileira:
um estudo de caso sobre abigail, personagem da

Ethiene Ribeiro Fonseca e Mayara Martins da Quinta Alves da


Silva
telenovela A Força do Querer

representações que além de não entrarem em atrito com as


normativas sociais, serviram como uma espécie de reforço àquilo
que supostamente se pretendia questionar. Assim, vê-se que a
utilização da noção de diversidade ocorre de forma rasa e
mercadológica para atrair a atenção do público-alvo.

 Retorne ao sumário

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Editora Globo, 1976.

410
1 Introdução

Em meados do século XX, minorias representativas


tiveram seus discursos amplificados pelos Estudos Culturais. A
partir de autores como Stuart Hall (2004) e Gramsci (2001)
houve a denúncia de estruturas que renegavam a existência de
camadas inteiras da sociedade e a reivindicação de voz e espaço
através da tratativa de questões identitárias.
Concomitantemente, houve o avanço das demandas em torno de
aspectos ligados à representação. Pautas sociais e agendas de
raça e gênero ganharam corpo através do pleito de diferentes

411
frentes, que reivindicavam questões ligadas ao registro de suas
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

formas de existência e, principalmente, seu protagonismo

histórico. A construção destes processos identitários não passou


despercebida e este discurso foi cooptado pela grande indústria,
que há alguns anos tenta nortear as falas em torno da
representatividade e agendas sociais.

Tendo em vista a crescente representação negra em


diferentes produtos midiáticos, há uma série de conceitos que
merecem suspensão e análise. O pleito da visibilidade esbarra
diretamente em noções de fluxos de poder e nos limites do
representável, já que a tratativa hegemônica se imbui de criar
metonímias sociais que sintetizem a complexidade dos discursos
destes grupos minoritários. A relação entre os fluxos de poder
instituídos no plano da representação pode ser resgatada a partir,
por exemplo, da obra de Foucault e, ainda, de teóricos que
utilizaram seus escritos como base, a exemplo de Deleuze,
Guatarri e Bruno Latour (2004). Estas reflexões podem dialogar
com outras correntes de pensamento propostas por Agnes Heller
(2011), Muniz Sodré (1999), Lilia Moritz (2012), Gilberto Freyre
(1997) e Angela Davis (2016), para que seja possível o
cruzamento entre as agendas de representação, infância e raça.

Nesse sentido, este trabalho propõe uma leitura


introdutória sobre a questão racial tendo como base a função
dúbia apresentada pela imagem, a partir de conceitos
relacionados a memória e historicidade na narrativa ficcional
audiovisual, em produtos direcionados ao público infantil. A
proposta é entender de que forma a questão da raça se inscreve
nas animações de potencial hegemônico e seu diálogo com o
debate racial brasileiro. Para isso, devem ser levadas em
consideração as reivindicações do movimento negro no que tange
à questão da representatividade. Antes, porém, faremos um
breve panorama entre as formas de representação destacadas
pelos autores e a tradução da negritude feita em diferentes

412
desenhos, como Tom & Jerry, Dumbo, Canção do Sul e até
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

mesmo em títulos mais recentes, como A Princesa e o Sapo.

2 Breve histórico do debate racial

O debate de raças antecede a consolidação do Brasil como


grande país escravocrata, já que desde a época do descobrimento
há apresentação das “pessoas de cor” enquanto diferença e seres
dados aos vícios da carne, em contraposição à hipotética virtude
europeia. Os relatos feitos pelos navegantes acerca dos indígenas,
por exemplo, destacavam a abordagem racial através de uma
hierarquia, que resultava numa leitura dicotômica entre
selvageria/civilidade, e atendia, em grande parte das cartas, ao
anseio por leituras aventurescas sobre terras inexploradas.
Muitas dessas descrições foram resgatadas séculos mais tarde e
tornaram-se o discurso científico que legitimava uma hierarquia
racial.

Cabe-nos entender o conceito de raça que será utilizado


neste texto; algo que pode ser explicado como “uma construção
histórica e social, matéria prima para o discurso das
nacionalidades. Raça, como diz Thomas Sowell, ‘antes de um
conceito biológico, é uma realidade social, uma das formas de
identificar as pessoas em nossa própria mente’” (SCHWARCZ,
2012, p33). A partir desse pensamento, vamos nos ater à
perspectiva de raça e às relações de poder implicadas neste
processo através do prisma da representação.

Os negros foram renegados à escravidão, tendo sua


história, identidade e cultura extirpadas. Nos Estados Unidos,
parte da violência foi denunciada através de relatos de ex-
escravos, que formataram um insumo fundamental para a
reconstituição histórica desses indivíduos, a exemplo dos livros
escritos por Angela Davis10. No Brasil, diferentemente, a
memória e a história dos negros foram condicionadas ao olhar
elitista da época, o que trouxe uma mítica de pacifismo na

413
tratativa racial, frente a outras nações. Tal fato levanta questões
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

que põem em xeque a própria noção de imaginário social,


definida por Bronislaw Baczko . (1985, p. 309) como meio no
qual “uma coletividade designa a sua identidade; elabora uma
certa representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e
das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns”.

Essa leitura pode ser complementada com a reflexão feita


por Bruno Latour (2004) sobre as relações em torno dos
componentes que constituem uma dada obra, seja ela artística ou
científica, tendo como base os elementos constitutivos. O autor
exemplifica as relações que impactam o discurso através da ideia
de “centro de cálculo”, que de uma forma resumida, pode ser
entendida como o nó onde há o encontro temporário entre
saberes e transportes. Tal conhecimento se revela como uma
forte possibilidade metodológica para analisar a construção do
debate racial brasileiro. A correlação entre elementos
constitutivos da arte ou de um saber científico pode ser percebida
nos próprios exemplos apresentados no texto. Num deles, há a
questão da relação entre índios na pintura de um retrato, por
exemplo, em que a representação dos índios se dá a partir da
observação de um pintor, numa camada superficial e, mais
profundamente, pelos itens de afetação que atravessam a
constituição da pintura, numa tentativa de transporte daquilo
que está condicionado ao ambiente natural a outros espaços,
olhares e experiências. Outro conceito importante é o
pensamento acerca da ideia de inscrição:

A informação não é um signo, e sim uma relação


estabelecida entre dois lugares, o primeiro, que se
torna uma periferia, e o segundo, que se torna um
centro, sob a condição de que entre os dois circule um
veículo que dominamos muitas vezes forma, mas
que, para insistirem seu aspecto material, eu chamo
de inscrição (LATOUR, 2004, p.2).

O termo “inscrição” é bastante amplo e perpassa


problemas de representação, linguagem, estética, cálculo e

414
montagem. Pode ser entendido como o lugar onde há a
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

cristalização da passagem daquilo que é apresentado enquanto


enunciado e estabelecido na relação. Com essa base, um novo
problema que se impõe sobre o conceito de representação, no que
tange à estabilidade do representado, é que se desconsidera a
afetação provocada pelas relações que atravessam a constituição
e delimitação do representável. No debate racial, esta questão se
dá a partir da confluência de uma série de fatores, incluindo o
lugar do qual os autores falam sobre negritude.

Nesse bojo, Nina Rodrigues surge como primeiro nome a


abordar o debate racial brasileiro pós-abolicionista. O autor
apresenta um olhar sobre o tema no livro Os Africanos no Brasil,
em que faz uma leitura determinista sobre a questão racial no
país:

Destruiu-as a preocupação, tão sentimental quanto


improfícua, da atual geração brasileira, de apagar da
nossa história os vestígios da escravidão, fazendo
consumir pelo fogo documentos em que se continha
aquela verdade histórica a que, a mais de um
respeito, nenhum povo se pode furtar, nem é lícito
procurar iludir. Se o fogo a que se mandou entregar o
arquivo da escravidão não é capaz de cancelar a
história impressa dessa instituição, mais impotente
há de ser para esgotar o sangue africano que, nas
veias do nosso povo, estará a atestar de contínuo, na
sua emigração da terra natal, a instituição que a
promoveu (NINA RODRIGUES, 1977, p.29).

Num primeiro momento, o autor denuncia o esforço para


apagar os rastros do período escravocrata, mas na sequência do
texto há a construção de argumentos a partir da formulação em
que a mistura das raças é vista como “sinônimo de degeneração”
(SCHWARCZ, 2012, p. 21). Em sua obra, Nina Rodrigues
apresenta relatos e notícias que cruzam o aumento da
criminalidade com a mistura das raças.

De fato, não é a realidade da inferioridade social dos


negros que está em discussão. Ninguém se lembrou

415
ainda de contestá-la. E tanto importaria contestar a
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

própria evidência. Contendem, porém, os que a


reputam inerente à constituição orgânica da raça e,
por isso, definitiva e irreparável, com aqueles que a
consideram transitória e remediável. Para os
primeiros, a constituição orgânica do negro
modelada pelo habitat físico e moral em que se
desenvolveu, não comporta uma adaptação à
civilização das raças superiores, produtos de meio
físico e cultural diferente. Tratar-se-ia mesmo de
uma incapacidade orgânica ou morfológica (NINA
RODRIGUES, 1977, p. 289).
Esses argumentos, atrelados às políticas de
embranquecimento, criam terreno para a compreensão da
recepção dos negros após a abolição da escravatura no convívio
social. Grande parte destes argumentos encontraram o
contraponto necessário décadas mais tarde, após a publicação de
Casa Grande Senzala, de Gilberto Freyre, em 1933, autor que se
tornou referência e uma das vozes a celebrar a diversidade racial
brasileira. Sua obra é pautada pela relação servil nordestina e
apresenta a constituição identitária negra a partir da mistura
decorrente do seu contato com a casa grande.

Considerada de modo geral, a formação brasileira


tem sido, na verdade, [...] um processo de equilíbrio
de antagonismos. Antagonismos de economia e de
cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e
a africana. A africana e a indígena. A economia
agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico
e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e
o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O
pernambucano e o mascate. O grande proprietário e
o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas
predominando sobre todos os antagonismos, o mais
geral e o mais profundo: o senhor e o escravo
(FREYRE, 1997, p. 125).

A mítica em torno do conceito de democracia racial é


refutada por Lilian Schwartz (2012, p. 28), que descreve a relação
pacífica presente no convívio social e as violências decorrentes da
vida privada e cotidiana. “(...) a partir dos anos 1930, quando foi
propalada a ideia de ‘democracia racial’, formulada de modo
exemplar na obra de Gilberto Freyre, foi exaltada de maneira a
menosprezar as diferenças diante de um cruzamento racial

416
singular”. No panorama apresentado por Schwartz, apenas Lima
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

Barreto apresenta uma relação direta com o processo de


escravidão. Consequentemente, os relatos sobre a inserção do
negro na sociedade acabam por revelar tensões não consideradas
por aqueles que o antecederam nesse debate, revelando que,
mesmo após a abolição, os negros ainda eram vistos como uma
raça inferior. O contexto de celebração da pluralidade e da
diversidade brasileira silenciava a violência por meio do discurso
da democracia racial em que todos são miscigenados em certa
medida. Há que se destacar que mesmo tentando sistematizar e
criar uma estrutura dada à linearidade, todas as fases e formas
de manifestação da tratativa racial deixaram profundas marcas
na sociedade, resultando em percepções que coexistem e,
principalmente, se entrecruzam, apesar de Schwartz tentar
estabelecer uma sequencialidade histórica. Há, ainda, uma série
de pensamentos relacionados ao determinismo nos dias de hoje,
principalmente na constituição narrativa do cotidiano.

Uma outra linha de pensamento em torno da questão das


raças no decorrer da história pode ser traçada a partir da
alteração dos parâmetros formais dos mecanismos de controle, a
exemplo da classificação de cor e raça no questionário utilizado
pelo CENSO Demográfico, nos anos de 1940:

A instrução para o preenchimento do quesito, em


1940, foi de que se considerassem apenas as três
respostas mencionadas, lançando um traço (–) no
espaço correspondente do questionário em qualquer
outro caso. Posteriormente, o traço foi codificado
como categoria residual, parda, e foi destinada tanto
para classificar os que utilizaram outros termos de
cor ou raça, quanto para os indígenas, para quem não
se proporciona termo de identificação. ‘Há aí
mudança radical de perspectiva, pois o que se
valoriza não são mais os tipos raciais originários, mas
a ‘cor’, isto é, as tonalidades de pele, sem a antiga
referência à continuidade sanguínea (IBGE, 2010, p.
15).
No amplo grupo designado como traço ou pardo, há uma
série de subdivisões relacionadas à destituição dos espaços de
poder numa sociedade que se pauta pela nomeação para a

417
condição de existência. Nesse sentido, a ideia de pluralidade e
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

celebração da miscigenação cai por terra, já que de acordo


novamente com Schwartz, a utilização do termo pardo tornou-se
um verdadeiro “saco de gatos”.

Em 2010, último censo realizado, repetiram-se as


mesmas categorias de classificação da pergunta, que
voltou ao questionário básico aplicado à totalidade
da população, sendo que, pela primeira vez, as
pessoas identificadas como indígenas foram
indagadas a respeito de sua etnia e língua falada. A
investigação de cor ou raça também passou a integrar
outras pesquisas domiciliares, tais como a Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, em
1987, a Pesquisa de Orçamentos Familiares - POF,
em 2002-2003, e a Pesquisa Mensal de Emprego -
PME, em 2003 (IBGE, 2010, p.15).

Com isso, nos últimos anos, houve uma demanda


crescente pela reivindicação de espaços representativos e da
manifestação de um dado protagonismo, principalmente na
esfera midiática, incluindo as produções infantis. Este debate se
relaciona diretamente com a posição da mídia como esfera de
visibilidade, legitimação e autoridade, estabelecendo contato
direto com espaços de poder. Cabe reforçar ainda que as questões
envolvidas no pensamento racial também dialogam com as
tensões relacionadas ao debate sobre representação.

3 Representação da negritude

Antes de pensar no conceito desse subtítulo, deve-se levar


em conta a grande gama de relações estabelecidas na constituição
do sujeito na sociedade. Com base no pensamento proposto por
Agnes Heller (2011, p. 13), há a definição das esferas
heterogêneas, que atravessam “produção, relações de
propriedade, estrutura política, vida cotidiana, moral, ciência,
arte etc.”. Esse pano de fundo permite o entendimento da
negritude a partir de uma confluência de esferas que são
atravessadas tanto por questões histórico-culturais quanto por

418
fatores espaciais que dialogam ou digladiam entre si. Uma série
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

de problemas se põem na relação e, principalmente, na


delimitação entre representante / representado, entre eles: que
componentes norteiam a visão daquele que é representado? Que
tipo de relação essa dada representação tem com a memória e a
historicidade, tendo como base sua sujeição às estruturas de
poder? De antemão, há que se pensar que a representação atende
ao estático, já que as composições partem de visões idealizadas
do item a ser representado. Assim, ao elaborar a imagem e as
delimitações daquilo que se pretende representar, há a
destituição da rede vinculativa que imprime sentido àquela dada
existência, a exemplo da proposta de Latour (2004). Tanto o
conceito de “centro de cálculo” quanto de “inscrição” podem ser
entendidos por meio da análise do cotidiano, principalmente no
que tange à memória e à historicidade.

No caso da representação negra, há o esforço de sintetizar


a complexidade e pluralidade de uma raça, como se fosse possível
resumir a heterogeneidade desse grupo social. Isso é visto em
produtos infantis como A Princesa e o Sapo (2009), por exemplo,
um filme da Walt Disney dirigido e roteirizado por Ron Clements
e John Musker. O filme, que apresenta uma protagonista negra,
apoia o argumento narrativo em uma série de fatores
relacionados aos ideais meritocráticos, silenciando diretamente
os motivos que corroboraram na condição negra estabelecida.
Assim, em vez de apresentar fatores relacionados à raça, a
narrativa se ocupa da propagação das ideias em torno do esforço
individual que corroboram com a responsabilização do negro
pela sua condição social. Criticamente, tendo o conceito de
esferas heterogêneas, cabe pensar na grande carga representativa
cristalizada nas práticas do dia-a-dia que são norteadas pela
mídia.

Considerando as agendas dos movimentos raciais, há a


crítica a um modelo em que traços físicos, tipos de cabelo,

419
tonalidade da pele, sobrenome, acesso a dadas manifestações
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

culturais, entre várias condicionantes, se entrecruzam de forma


tal que antecedem e resumem o indivíduo dentro da estrutura. A
partir de certo pragmatismo, pode-se pensar pelo aspecto
midiático, em que as grandes empresas de comunicação são, em
grande parte, produto de famílias tradicionais e estabelecem suas
visões de mundo, cristalizando-as acerca de uma série de
elementos constituintes da realidade, dentro da centralidade dos
seus discursos. Não é muito difícil que o negro, por exemplo (o
bem-sucedido, na perspectiva do poder econômico), seja
retratado como resultado de esforço, numa construção narrativa
que valorize o discurso meritocrático neoliberal. Pouco se diz, no
entanto, sobre a constituição dos espaços de poder e os fatores
que resultaram em camadas historicamente marginalizadas.

4 Longa-metragem de animação e mercado de


distribuição cinematográfica

A apropriação da narrativa infantil e da agenda racial


pelos grandes meios de comunicação de massa reformulou a
forma de absorver a cultura e de disseminar princípios na
sociedade. Ao pensar na estrutura das narrativas audiovisuais
infantis, o discurso retórico dominante é normativo e objetiva
moldar os pequenos à sociedade. Há avanços inegáveis que
podem ser percebidos ainda no cinema “comercial”, já que visões
construídas em filmes como A Canção do Sul (1946) ou numa das
sequências da primeira versão de Fantasia (1940)1, por exemplo,
já não têm entrada com o grande público justamente pela política
de combate aos estereótipos raciais. Por outro lado, ainda existe

1 Entre vários outros problemas, Canção do Sul é um filme amplamente


criticado pela atenuação das tensões decorrentes das relações entre escravos
e senhores no Sul dos Estados Unidos. Já Fantasia, teve o curta Sunflower
alterado para as edições em vídeo doméstico pelas acusações de racismo. Parte
das diferenças podem ser vistas num vídeo comparativo disponibilizado no
YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=7Nx4ekJ0i_w (Acessado em
04/04/2018)

420
uma enorme dificuldade em garantir a equidade de raças nessas
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

narrativas pela arquitetura mercadológica de distribuição,


principalmente no caso dos longa-metragem infantis.

De acordo com números da ANCINE, apenas dois filmes


brasileiros figuraram na lista de mais vistos nos cinemas entre
2006-20162: Tropa de Elite 2 (2010) e Os Dez Mandamentos
(2016), ambos voltados para o mercado adulto. Entre as
restantes, há seis animações e nenhuma delas brasileira 3 . Em
grande parte, isso se deve ao fato de que os principais complexos
de cinema brasileiros são internacionais, o que garante a exibição
de títulos com potencial hegemônico a um grande universo.
Procurando Dory (2016), por exemplo, estreou em 1276 salas,
número muito superior ao de filmes nacionais. Para fins de
comparação, apenas dois filmes brasileiros tiveram sua estreia
superior a mil salas: Os Dez Mandamentos, que ocupou 1127, e
Minha Mãe é uma Peça 2 (2016), com 1055. O maior grupo é o
CINEMARK, proprietário de 588 salas divididas em 78
complexos, o que representa 10,1% do total de salas de projeção.
A partir dessas questões, o mercado brasileiro de animação
precisou apostar em outras investidas; grande parte delas
voltadas ao vídeo doméstico e a plataformas de streaming como
o YouTube, a exemplo de sucessos como Galinha Pintadinha
(2006-) e títulos que trabalham com a tratativa racial, como
Nana e Nilo (2012).

Como uma sociedade pós-escravocrata, não há surpresa


ao se observar que a fenotipia, ainda hoje, marque as relações de
poder no Brasil. Ainda assim, as militâncias reivindicam espaços
e trazem à tona aspectos relacionados a ancestralidade,
religiosidade e resistência. A apresentação de personagens
negros em narrativas infantis adquire um novo significado

2 Informações disponíveis no Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro


através do link: https://goo.gl/5c3KYV. Acessado em 3/10/2017
3 Os títulos são: Minions, Procurando Dory, Shrek Para Sempre, Meu Malvado

Favorito 2, Era do gelo 3 e 4

421
relacionado às disputas implicadas no campo da
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Representação negra nos desenhos

representatividade. No fim, o destaque de um personagem de


origem negra esbarra na conversão de um componente narrativo
em ideologia que, muito além da potencialidade mercadológica,
move o sentimento de pertencimento de uma comunidade antes
excluída.

5 A infância

Antes de qualquer desdobramento teórico, é importante


detalhar o conceito de infância e seus contornos. Pensando por
um viés corporativista, o fundador da DreamWorks Animation
apresentou a visão da empresa sobre esse conceito: “Eles [a
Disney] dizem que fazem desenhos para a criança que existe em
cada um de nós. E nós fazemos desenhos para o adulto que existe
em cada um - inclusive nas crianças.”, afirmou Jeffrey
Katzenberg, em entrevista para a revista Época durante o
lançamento de Shrek 2 (2004)4.

A partir do paradoxo apresentado por Katzenberg, há a


possibilidade de problematizar as diretrizes mercadológicas que
norteiam a visão corporativa da infância por parte das empresas
voltadas ao entretenimento infantil, bem como suas implicações
no processo de representação racial. Para isso, é necessário
compreender quais são os fatores e como determinadas visões
dialogam em produtos de empresas hegemônicas para traduzir o
mundo e tensões sociais para as crianças.

Inicialmente, torna-se necessário analisar a própria ideia


de infância. A proteção à criança, por exemplo, é algo recente,
fruto da Revolução Industrial (STEINBERG; KINCHELOE,
2001). Como resultado da Modernidade, a infância foi
amplamente problematizada no início do século XX, a partir de

4Trecho da matéria “O Ogro ri por último”, publicada no portal da revista


época. Link: http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT741688-1661-
2,00.html acessado em 12/12/2017

422
uma ideia linear do que seria esse estágio da vida. Segundo
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Representação negra nos desenhos

Steinberg e Kincheloe, essa perspectiva confundia privilégio


econômico e social com capacidade, a partir de uma educação
que estrutura a leitura da sociedade, gerando, inclusive, um
efeito de causalidade no cenário social atual.

Assim como outros fatores culturais e sociais, a questão da


raça tem ligações diretas com a origem da obra narrativa e o
público consumidor pretendido. A partir dessa ótica:

Considerando-se que toda posição política abraçada


no presente é o reflexo de formas particulares de se
ver o passado, o poder de reescrever a história não é
insignificante [...] Meninos e meninas que se saciam
na Fundação Disney de Conhecimento Eurocêntrico
tem tomado parte num currículo político com sérias
implicações para a formação da sua consciência
ideológica (STEINBERG; KINCHELOE, 2001, p.12).

Trata-se, pois, da tentativa de controle da infância como


ferramenta fundamental para manutenção do status quo. Nesse
sentido, podemos pensar na forma que novas culturas são
apresentadas nas animações, já que etnias que se distanciem dos
ideais estadunidenses e europeus são tratadas através da lente da
diferença e vistas a partir de seu caráter exótico, numa
representação calcada em estereótipos, algo denunciado ainda
nos anos de 1960 por Dorfman e Mattelart:

Omitem-se com este passaporte as nacionalidades, e


os personagens passam a construir uma ponte
supranacional por meio da qual se comunicam entre
si os seres humanos. E entre tanto entusiasmo e
doçura, escondem-nos sua marca de seus motivos,
estrutura e estilo em virtude do que eles pensam que
deve ser uma criança (DORFMAN; MATTELART,
2002, p.15).
Os autores fazem uma leitura a partir da Escola de
Frankfurt sobre alienação territorial, domínio ideológico e
mercantilização da infância, tendo como base os quadrinhos.
Esses conceitos são importantes, mas ao abordar desenhos
animados, precisamos pensar em outros instrumentos que
viabilizam a construção de sentido e, ainda, questões atreladas

423
ao perfil normatizador das produções. Voz, movimentos e uso de
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Representação negra nos desenhos

paletas de cores específicas, por exemplo, são importantes para a


constituição de um personagem. Nessa perspectiva, não é de se
admirar que o tipo textual mais utilizado em narrativas de longa-
metragem infantis seja a fábula, que se constitui a partir de
condições de produção e instâncias de poder. “Governa-se a
infância com o objetivo de conduzi-la para determinados
‘lugares’ numa cultura, para determinadas posições numa
sociedade e para determinadas formas de vida já partilhada por
aqueles que já estavam ali” (RESENDE, 2015, p. 56). O cenário
de formação identitária e construção de um mapa de
navegabilidade histórico/social para os pequenos tem como base
estruturas hegemônicas as quais, numa perspectiva gramsciana,
atuam na esfera de dominação através do direcionamento das
leituras do mundo. Paradoxalmente, há formas de
enfrentamento que ressignificam tanto os discursos quanto os
silêncios. No que concerne à realidade brasileira, um país com
alto índice de miscigenação, essa discrepância reflete, ainda nos
dias de hoje, uma cultura com marcas da escravidão e do
eurocentrismo. Pelo prisma da constituição do valor no entorno
da constituição racial, não é de se admirar que mesmo tendo
baixa representação, ainda haja um grande consumo das
narrativas audiovisuais estadunidenses. Entretanto, o fato de
pouco haver negros em papéis de destaque nessas narrativas
implica outras questões, incluindo toda a cadeia de produtos
licenciados resultantes desses desenhos e num retrato de
sociedade idealizado por aqueles que detêm o poder em
instâncias políticas e empresariais.

Pode-se pensar, ainda, no conceito de identidade,


presente na obra de Stuart Hall, para entender a composição da
estrutura comunicacional hegemônica e seu poder normatizador.
O autor é reconhecido por aprofundar os estudos e pensar o
multiculturalismo, a questão racial e de gênero (subculturas), o
discurso comunicativo das mídias televisivas e a hegemonia

424
cultural (HALL, 2004) a partir de uma postura gramsciana.
animados infantis no brasil pós -colonial
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Representação negra nos desenhos

Segundo Antonio Gramsci, o exercício da hegemonia é pautado


numa dominação ideológica, não inteiramente coercitiva, mas
que se perpetua pela aceitação por parte do dominado
(GRAMSCI, 2001). Ou seja, baseia-se num movimento de criação
de consenso. Essa reflexão é aprofundada por Martín-Barbero
(2004), que destaca o mercado de comunicação e seu potencial
hegemônico de supressão das demandas locais. Assim, o que se
vê é o uso de fatores relacionados a grupos específicos, como as
demandas da comunidade negra, por exemplo, através da ótica
mercadológica na qual a estrutura pós-colonial de hierarquização
das raças cria cenários para o consumo, mesmo quando não há a
constituição narrativa das relações raciais que fazem parte do
cotidiano dos grupos que consomem esses produtos.

6 Panorama da Negritude na animação mainstream

As narrativas infantis costumam apresentar um universo


que pretende destacar-se do mundo adulto através da
transformação de argumentos e visões subjetivas em fábulas. No
que diz respeito especificamente aos desenhos animados, as
visões de mundo são apresentadas metaforicamente, com
propósitos morais, e comumente sublimadas pelo discurso
fantástico. Tendo esses fatores como base, torna-se pertinente
pensar as representações coletivas realizadas nessas produções.

Seguindo a diretriz dos estúdios Hanna Barbera, antes da


investida na televisão, durante os anos 1960, a animação Tom &
Jerry (1940) apresentava uma série de formas de representação
de raça e recortes sociais. Além do uso abundante do Black Face5

5“Os atores brancos utilizavam carvão de cortiça e outras tintas para pintar os
seus rostos de preto, com exceção dos olhos e lábios (estes eram realçados com
uma coloração vermelha intensa). A intenção era representar personagens
afro-americanos, satirizando e ridicularizando de modo extravagante os
negros que, normalmente, eram apresentados com personalidades pejorativas
(como ignorantes, bêbados, vadios etc.). As apresentações tinham como
público-alvo ex-escravistas e pessoas majoritariamente brancas”. Informação

425
como degrau para o humor, havia a apresentação de uma série de
animados infantis no brasil pós -colonial
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Representação negra nos desenhos

estereótipos de raça, principalmente ao estabelecer a relação


servil, que tratava como óbvio o lugar ocupado por um negro
numa casa ou associar as ideias de raça negra e primitividade,
atrelando a fenotipia negra às ideias de subserviência, vícios e
selvageria.

No filme Dumbo (1941), grande sucesso de época e um dos


legitimadores da força empresarial dos estúdios Disney, o que se
percebe é o espectro do colonizador e a reprodução de
estereótipos de raça. Na história do elefantinho que passa por
grandes desafios ao tentar encontrar a mãe, os corvos aparecem
como personagens caricatos que têm como objetivo expor
comportamentos considerados desviantes, como vício e má
índole, por exemplo. Cria-se, desta forma, a necessidade da
figura do colonizador, que é representada pelo camundongo
Timothy e apresenta os valores de uma sociedade Eurocêntrica.
Em termos básicos, assim como ocorre em Tom e Jerry, estes
personagens eram apresentados inicialmente por uma visão
muito próxima da proposta por Nina Rodrigues (1977) acerca
daquilo que, para o autor, seriam as características fundamentais
da raça negra.

A relação estabelecida entre os corvos e o rato se


assemelha ao descrito por Dorfman e Mattelart (2002) ao
reforçar a figura do colonizador e os fatores atrelados ao domínio
ideológico. Os dubladores originais dos corvos, inclusive, eram
quase todos negros e destituídos de identidade, já que dos seis
corvos, apenas um possui nome nos créditos finais 6 . Um dos
atores que emprestou a voz para um dos personagens foi o
protagonista de A Canção do Sul, James Baskett. Ambos os
filmes apresentam uma série de controvérsias no debate racial.

disponível no portal Significados, link:


https://www.significados.com.br/blackface/ Acessado em 02/11/2017
6 Curiosamente, o único corvo com nome era “Jim”, que foi dublado por Cliff

Edwards, ator branco, que também foi responsável por dar a voz ao Grilo
Falante em Pinocchio (1940).

426
Se o primeiro se faz valer do prisma determinista, através de uma
animados infantis no brasil pós -colonial
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Representação negra nos desenhos

transformação baseada em fatores relacionado à perspectiva


entre colonizadores e colonizados, o segundo estabelece a
tratativa racial através da atenuação das tensões decorrentes da
relação entre escravos e senhores. Algo próximo da obra de
Gilberto Freyre (1997), que em prol do discurso da democracia
racial brasileira, acaba por minimizar as tensões e violências
decorrentes desta dada relação de poder, conforme denunciado
por Angela Davis (2016).

Décadas mais tarde, John Musker e Ron Clements 7

fizeram novas investidas esbarrando na questão da raça através


da introdução de personagens negros nos longas que dirigiam. O
primeiro deles foi Hércules (1997). A animação representou os
negros a partir da forma mais comum: pelo prisma do apelo
cultural, utilizando a música Gospel como elemento narrativo.
Diferentemente dos corvos em Dumbo, as Musas apresentadas
no filme são personagens mais problematizadas, embora não
menos problemáticas. Na história, elas têm o papel de narradoras
dos feitos heroicos do protagonista. Para tal, têm nome, mas em
nenhum momento interagem com os demais personagens ou são
referenciadas na trama. A função delas é simples: narrar a
jornada do herói.

Outro filme dos mesmos diretores é A Princesa e o Sapo


(2009). Diferentemente do que acontece com as outras
“Princesas Disney”, que têm sua nobreza assegurada pela
linhagem, a protagonista Tiana, é trabalhadora e se esforça em
vários turnos para conseguir ser dona do seu próprio restaurante.
O longa-metragem silencia conflitos históricos que culminaram
na posição social negra e baseia o argumento narrativo nas ideias
de meritocracia e esforço. Outro dado no mínimo curioso é que

7 Ambos os diretores são apontados como os nomes responsáveis pela


“guinada” dos Estúdios Walt Disney, nos anos 1990. Musker e Clements são
diretores dos filmes O Ratinho Detetive (1986), A Pequena Sereia (1989),
Aladdin (1992), Hércules (1997), O Planeta do Tesouro (2001), A Princesa e o
Sapo (2009) eos principais nomes responsáveis por Moana (2016).

427
num filme de cerca de 90 minutos, a personagem se mantém
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Representação negra nos desenhos

como humana apenas por 35 minutos. No restante, a


apresentação se dá na forma de uma rã falante. A transformação
em “princesa” dura menos de cinco minutos e logo é suprimida
pela realização do desejo da protagonista de ser dona de um
restaurante como recompensa construída por toda a narrativa.
Cabe destacar que mesmo num contexto em que há a
representação fenotípica negra, toda a ideologia que circunda e
movimenta a narrativa é essencialmente embranquecida, já que
ao destacar que os objetivos serão atingidos a partir do esforço e
da determinação, o que se defende é o discurso meritocrático
neoliberal numa responsabilização dos negros pela própria
condição de vulnerabilidade social, algo muito comum em
narrativas que trabalham a questão racial pela perspectiva de
empresas hegemônicas.

Nesse caso, fazendo um novo paralelo com Dorfman e


Matellart (2002) sobre a infância, assim como a criança, o negro
também participa da constituição das narrativas através do
empréstimo de sua representação e imagem. Diretores e equipes
criativas que, em boa parte dos casos, são compostas
majoritariamente pelas raças ocupantes dos espaços de poder,
utilizam a negritude na criação da ambiência das narrativas.
Tanto em trilhas sonoras quanto em dublagens.

7 Considerações Finais

Os desenhos animados aqui destacados deixam evidente o


confronto existente entre os fatores que classificam uma
realidade enquanto posta e aquela historicamente constituída,
bem como os desdobramentos do que transforma a imagem em
algo irrefutável. O audiovisual é mais uma forma de inscrição a
um dado enunciado posto e terreno fértil de disputas. Algo que
se desdobra, inclusive, na constituição de narrativas ficcionais
infantis, que traduzem tensões do universo adulto em fábulas.

428
Nesta transposição, hierarquias e, principalmente, formas de
animados infantis no brasil pós -colonial
Wagner dos Santos Dornelles e Ariane Diniz Holzbach
Representação negra nos desenhos

subordinação são expostas para indivíduos ainda em formação.

Tudo isso se apresenta como uma espécie de mapa de


navegabilidade social, em que as relações são dadas como entes
inatos desconsiderando a constituição histórica que resulta em
toda a violência imprimida ao povo negro. Buscar a
representação, neste cenário, torna-se algo urgente, já que
mesmo a constituição da narrativa ficcional também diz respeito
à constituição de uma memória coletiva. Mais importante ainda
é a compreensão histórica das relações e seus desdobramentos
nos dias de hoje. Assim, a disputa pela constituição da própria
imagem torna-se elemento central para a constituição desta
memória, História e identidade.

 Retorne ao sumário

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430
1 Introdução

As novas tecnologias de informação e comunicação (TICs)


vêm transformando de forma surpreendente a vida humana, seja
na otimização de processos laborais, tendo aqui uma perspectiva
mais utilitarista e monetária de seus usos, seja nas relações
sociais, aproximando sujeitos e subjetividades. Refletir sobre
nossos corpos e mentes em um mundo mediado por dispositivos
tecnológicos se faz imprescindível para compreender o nosso
“outro” lugar neste novo tempo-espaço que se constrói e se vive.
Tais vivências contemporâneas estão se (re)fazendo a partir de
mecanismos mediados, que não devem ser entendidos
meramente como equipamentos maquínicos, mas sim como
ferramentas de acesso a novos espaços de sociabilidade. Desta
maneira, o ciberespaço tem se instaurado como um lugar por
excelência de construção de identidades e produção de
subjetividades (RECUERO, 2009), calcado nas infinitas
conexões entre os usuários da rede e nas representações que eles
fazem de si próprios.
As performatividades desses usuários nas redes têm sido
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

objetos de estudos para pesquisadores da área da Comunicação.


Os sujeitos constroem suas autorrepresentações de inúmeras
maneiras; seus corpos-imagem, discursos e narrativas de si vão
dando o tom, reiteradamente, do que querem apresentar ao
público imaginado, numa grande espetacularização do eu
(SIBILIA, 2016). Muitas das vezes, esses mesmos sujeitos se
valem da hiperexteriorização de suas intimidades para causarem
reações em quem os lê, observa, flerta, interage etc.; pondo de vez
em xeque os limites do público e do privado.

Ainda nesta linha de raciocínio, é importante ter como


pano de fundo a indissociabilidade dos dispositivos tecnológicos
e suas especificidades no que tange às interações dos sujeitos nas
redes. A busca por parceiros sexuais por homens gays a partir de
dispositivos móveis ou a criação de espaços de sociabilidade gay
através da convergência de conteúdos constituintes de uma
cultura homoerótica possuem modos e agenciamentos
específicos quando ocorridos no ambiente virtual. É por meio do
dispositivo tecnológico - tendo este locus como de suma
importância para esta reflexão -, seja por um app com
geolocalizador ou através de um site de rede social (SRS), que as
identidades construídas e as subjetividades produzidas serão
postas à interação, revelando um outro modus operandi de
relação dos afetos. Como os dispositivos móveis constantemente
são ressignificados pelos usuários da rede, através da perene
produção de subjetividades, tenho observado que os discursos
discriminatórios que assolam uma sociedade calcada em valores
patriarcais, falocêntricos, heteronormativos e misóginos também
imprimem o tom das descrições e narrativas de participantes de
aplicativos de relacionamentos.

Como exemplos do deslocamento e fluxo das convicções


heteronormativas da vida cotidiana offline para a rede social
online, e até mesmo para aplicativos móveis de sociabilidade gay,

432
temos as inúmeras descrições de perfis de usuários do Grindr,
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

compondo as performatividades de seus usuários, que replicam


discursos homofóbicos e misóginos àqueles que fogem da norma.
Expus e debati, juntamente com Renata Rezende, a reprodução
do discurso homofóbico e misógino nas descrições dos perfis dos
integrantes do Grindr. Em nosso artigo “‘Não curto afeminado’:
homofobia e misoginia em redes geossociais homoafetivas e os
novos usos da cidade” (COTTA & REZENDE, 2015), analisamos
os conflitos existentes em tais avatares, que replicavam o repúdio
ao homossexual dito “afeminado”, cujo comportamento e
trejeitos, encarados como femininos, geravam discursos de ódio
dirigidos a um segmento que, a priori, seria identificado como
parceiro em potencial. Como bem nos lembra Polivanov,

não se trata de fazer uma distinção entre


subjetividades online e offline, uma vez que esses
dois mundos não estão separados, não só pelo fato de
os sujeitos compartilharem os mesmos vínculos
sociais dentro e fora da net, mas principalmente
porque entendemos que o mundo “virtual” é parte do
mundo “real”, não podendo, portanto, ser visto como
algo dicotômico a ele (POLIVANOV, 2011, p.36).

No entanto, a hegemonia carrega junto de si a resistência.


Se para existir, um grupo precisa anular as subjetividades do
outro, a História tem registrado que são nesses momentos de
asfixia existencial e aniquilação dos sujeitos de direitos que há a
proliferação de novas formas de existir, resistindo. Foi assim no
período ditatorial do Brasil (1964-1985), onde tivemos uma vasta
e criativa produção artística-cultural contra o regime e também
na década de 1990, quando o Movimento LGBT se reinventou a
partir dos cacos oriundos do boom da Aids, ocorrida na década
de 19801. Esta reconstrução foi denominada por Regina Facchini
como “reflorescimento” deste movimento social, que “não

1Ver MARQUES, M. A emergência política da Aids/HIV no Brasil. São Paulo:


USP, 2001. E também SOUSA, P. Aids, mídia impressa e sexualidade: práticas
e comportamentos sexuais em tempos de HIV nos discursos de Veja e IstoÉ.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

433
somente aumentou o número de grupos/organizações do
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

movimento, como houve uma diversificação de formatos


institucionais e propostas de atuação” (FACCHINI, 2005, p. 149).

Neste sentido, o Flsh Mag, coletivo de pessoas imbuídas


em produzir conteúdos midiáticos que desmoralizem o sexo,
parece emergir como um espaço virtual de sociabilidade gay de
resistência contra-hegemônica, ao celebrar e engajar
corporalidades dissidentes, que fogem à norma instaurada do
corpo masculino, branco e viril, cultuado, ou melhor, tido como
hegemônico pela comunidade gay. O historiador Daniel dos
Santos é cirúrgico quando relata sobre esta primazia:

Existe uma estética hegemônica que impera no


imaginário coletivo ocidental e que influencia de
forma incisiva o imaginário individual: a estética
branca eurocêntrica. Desse modo, a estética bela que
deve ser almejada e desejada é a estética do homem
branco europeu, que acaba marginalizando e
inferiorizando outras estéticas possíveis, como a do
homem negro (SANTOS, 2013, p. 90).

Nas palavras dos próprios criadores João Maciel e Rafael


Medina, o “Flsh Mag é um coletivo que aborda questões sobre
corpo e sexo com foco na pluralidade de nus masculinos,
visibilidade de corpos dissidentes e (des)moralização do sexo,
através de artigos, ensaios fotográficos e festas, entre outras
ações”2.

Para além da plataforma de blog, onde há convergência de


conteúdos de interesse gay, a presença digital do Flsh Mag,
criado em maio de 2015, contempla SRS como Instagram (com
4.931 seguidores), página frequentemente suspensa por
denúncias no Facebook (com 6.370 fãs), Twitter (com 505
seguidores), rede esta com menos denúncias para difusão dos
conteúdos e grupo secreto (com 5.047 membros) no Facebook 3.

2 Disponível em <http://flsh.com.br/about/> Acesso em 28 de agosto de


2017.
3 Em 1º de março de 2018.

434
Os ensaios fotográficos, base conteudística de toda a teia
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

digital de Flsh Mag, capilarizado em suas multiplataformas,


priorizam corpos dissidentes que fomentam o debate acalorado
dos gostos e das performances fotografadas, estimulando os
usuários a fazerem o mesmo. Nas palavras de Maciel e Medina, o
grupo secreto de Flsh Mag no Facebook, por exemplo, “é um
espaço também para que [eles] possam experimentar a liberdade
corporal que a gente apresenta nas fotos” 4. Ou seja, são corpos-
imagem contra-hegemônicos, que provavelmente não seriam
desejados pela maioria dos usuários do Grindr, por exemplo, que
acionam desejos e estimulam (auto)representações outras.

São corpos obesos, peludos, negros, afeminados, drags,


soropositivos, sadomasoquistas, escatológicos 5 , enfim, corpos
em performance; políticos por excelência ao contrariar o
interditado. Ao resistir à opressão, que estigmatiza
corporalidades outras que não aquelas naturalizadas por um
devir gay branco, musculoso, viril etc; o Flsh Mag atrai usuários
da rede para que eles também exercitem seus lados outsiders, já
que a plataforma se propõe à afirmação do não-normativo. Nas
palavras de Judith Butler,

os corpos não se conformam, nunca, completamente,


às normas pelas quais sua materialização é imposta.
Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades
de rematerialização, abertas por esse processo, que
marcam um domínio no qual a força da lei
regulatória pode se voltar contra ela mesma para
gerar rearticulações que colocam em questão a força
hegemônica daquela mesma lei regulatória.
(BUTLER, 1999, p. 154).

Sendo assim, a partir de dispositivos tecnológicos e


locados em ambientes virtuais, gays experimentam de forma
coletiva e mediada a libertação de (seus) corpos, através da
observação, interação e até mesmo “materialização” de suas

4Descrição do grupo secreto no Facebook. Acesso em 27 de abril de 2018.


5Ler “Drugs, Sex and Vomit: um ensaio sobre nojo e sexualidade”. Disponível
em <flsh.com.br> Acesso em 27 de março de 2018

435
sexualidades ditas desviantes. Imbuído desse movimento
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

transmídia, o Flsh Mag esgarça de vez os limites do público e do


privado. A multiplataforma dribla o biopoder e suas técnicas de
dominação e enquadramento, provando que outras
corporalidades e sexualidades são possíveis. E celebradas.

Ao pensar o Flsh Mag enquanto coletivo, calcado naquela


definição supracitada de seus idealizadores, acredito que ele se
situa dentro dos debates de produção de subjetividades e
construção identitária em ambientes midiáticos, levando-se em
consideração os dispositivos tecnológicos e suas especificidades
como partes constituintes desses processos. A partir da
compreensão dos agenciamentos e performances engendrados
no cotidiano de usuários de SRS e aplicativos de relacionamento
gay, meu interesse é evidenciar e entender os conflitos narrativos
das performatividades gays, expondo as interseccionalidades
como fatores influenciadores desta dinâmica dentro de espaços
virtuais. Ou seja, a questão é: de que forma e a partir de quais
interferências homens gays performam em SRS, a fim de
produzirem subjetividades outras e/ou materializarem práticas
sexuais dissidentes?

Como objeto de observação, optei pelo Flsh Mag pois o


vejo como um ambiente digital profícuo para uma análise, cujos
objetivos sejam (1) compreender os agenciamentos que
produzem corpos hegemônicos e contra-hegemônicos em
espaços virtuais de sociabilidade gay; (2) discutir o papel das
interseccionalidades de gênero, raça e classe que porventura
influenciam nas representações de corpos ditos (in)desejáveis; e
(3) complexificar a leitura da construção dos desejos, a partir da
análise das autorrepresentações e interações dos participantes do
Flsh Mag.

2 Parlamento dos corpos

436
No mês de setembro de 2017, duas notícias publicadas n’O
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

GLOBO e replicadas à exaustão em SRS revelavam o


monitoramento social de corpos e comportamentos que fogem à
norma. A primeira delas foi na coluna do jornalista Ancelmo
Gois, conhecido por seus furos jornalísticos, sobre o adiamento
da Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro para 19 de
novembro daquele ano. A nota destacava a antipatia do prefeito-
bispo Marcelo Crivella (PRB) ao evento e o não pagamento da
dívida, por parte da Prefeitura do Rio e do Governo do Estado, do
patrocínio firmado em edições anteriores – R$ 68 mil e R$ 696
mil, respectivamente6.

O desmonte das políticas públicas para LGBT perpassa


pela mídia. Como evidenciado e debatido em minha dissertação
de mestrado (COTTA, 2016), grande parte da inserção das
reivindicações do Movimento LGBT nas pautas governamentais
tomam força, visibilidade e concretude por meio da mídia. No
artigo “Parada do Orgulho LGBT: uma estratégia midiática de
visibilidade cultural” (2015), Adilson Vaz Cabral Filho e eu
expomos a importância do evento, que é o terceiro maior da
cidade, na evidenciação da ocupação do espaço público como
promoção de visibilidade e empoderamento desta população.

O movimento escolhe a Parada, dentre outras


estratégias e instrumentos, para ser o carro-chefe da
busca por visibilidade de suas reivindicações. O
evento-mídia se configuraria como um grito de
reconhecimento e sobrevivência, diante da
marginalização propiciada pela cultura
heteronormativa, muita vezes legitimada e
reproduzida pela própria mídia. Seus valores,
discursos e narrativas, que homogeneizam
alteridades, a partir de representações tácitas e
naturalizadas ratificam ideologias opressivas de
classe, raça, sexo e (homo)sexualidades. (COTTA &
CABRAL FILHO, 2015, p. 39)

6 Ler “Sem apoio da prefeitura, Parada LGBT é adiada” em


https://glo.bo/2I5NBq7. Acesso em 27 de abril de 2018.

437
Por isso, fazer uso do poder de Estado para criar
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

obstáculos para a realização da Parada do Orgulho LGBT é


silenciar o movimento social e arrancar dele sua capacidade de
expressão, sua principal estratégia de ganho de visibilidade em
meio à heteronormatividade que oprime e promove asfixias
existenciais. É o conceito de biopoder em sua exemplificação
atualizada, onde vidas e corpos são oprimidos e apagados
também pela força do Estado.

A segunda notícia do jornal, que também se configura


como mais um episódio de caça a corpos dissidentes e
sexualidades diversas, foi o cancelamento da exposição
"Queermuseu — cartografias das diferenças na arte brasileira"
pelo Santander Cultural, que aconteceu na cidade de Porto Alegre
(RS) 7 . A mostra contava com cerca de 270 obras de arte 8 que
debatiam questões de gênero, diversidade, queer e temáticas
LGBT. Os questionamentos vieram de simpatizantes do MBL
(Movimento Brasil Livre) e de movimentos religiosos, que
replicaram em suas páginas de SRS matérias, textos e vídeos
estimulando a violência, acusando o curador Gaudêncio Fidelis
de perversão, ameaçando e agredindo verbalmente os visitantes
e artistas em nome da moral e dos bons costumes.

Como bem alerta Ivana Bentes, em seu artigo “A arte que


virou pornografia aos olhos dos neofundamentalistas” 9 ,
publicado na Revista Cult, os movimentos fundamentalistas e os
ditos “liberais” brasileiros usam da mesma estratégia nas redes
que os nazistas usaram em 1937 para depreciar obras
vanguardistas de Picasso, Matisse, Mondrian etc. na exposição
“Arte Degenerada”. Baluartes do campo das artes foram

7Ler “Não há limites para o que o Santander infringiu, diz curador da mostra
Queermuseu” em https://glo.bo/2r4MSOF. Acesso em 27 de abril de 2018.
8 A exposição “Queermuseu” contava com obras de Volpi, Portinari, Flávio de

Carvalho, Lígia Clark, Alair Gomes, Adriana Varejão etc; e uma série de
fotografias, esculturas, pinturas, filmes, vídeos, colagens e gravuras de artistas
contemporâneos e de todos os tempos.
9 Disponível em <http://bit.ly/2xw5R9o> Acesso em 12 de setembro de 2017.

438
ridicularizados diante da opinião pública a mando de Hitler,
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

como acontece hoje no Brasil, onde ações conservadoras


reiteradamente alimentam um “exército de zumbis” que vê
“pornografia” e “depravação” em qualquer iniciativa que aborde
diversidade, gênero, questões de comportamento e temáticas
LGBT.

A máquina de retrocessos que está operando no


Brasil é primária e boçal. Esse ato de ódio e
intolerância contra artistas, contra obras, contra
sujeitos que lutam para se expressar é o signo não de
uma “arte degenerada”, mas de uma sociedade
doente que não suporta a democracia, que não
suporta a existência dos outros! Mas estão mexendo
com o mais potente e poderoso: o “parlamento dos
corpos”, a lei do desejo. E essa é difícil de censurar ou
calar (BENTES, 2017, s.p.).

Trouxe esses dois exemplos atuais com o intuito de


evidenciar a disputa de narrativas sobre os corpos e seus prazeres
que atravessa a vida cotidiana. São exemplos que nos fazem
pensar sobre o que pode ou não pode ser exposto; é uma reflexão
sobre essa regulação das potências dos corpos e de suas
sexualidades disruptivas. Entendo que ações como essa do MBL
e de fundamentalistas nas redes sociais online de replicação do
ódio a existências que fogem à norma podem ser caracterizadas
como performatividades que sustentam o status quo da
heteronormatividade e do conservadorismo. Aqui, recorro à
Butler para delimitar o que entendo sobre performatividade para
esses exemplos:

A performatividade deve ser compreendida não


como um “ato” singular ou deliberado, mas, ao invés
disso, como a prática reiterativa e citacional pela qual
o discurso produz os efeitos que ele nomeia. O que,
eu espero, se tornará claro no que vem a seguir é que
as normas regulatórias do “sexo” trabalham de uma
forma performativa para constituir a materialidade
dos corpos e, mais especificamente, para materializar
o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual
a serviço da consolidação do imperativo
heterossexual (BUTLER, 1999, p.154).

439
Este imperativo que Butler menciona é vigorado de
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

inúmeras maneiras no âmbito da vida cotidiana. Seja na tentativa


de invisibilizar a população LGBT pelo prefeito-bispo Marcelo
Crivella (PRB), seja pelo cancelamento da exposição
“Queermuseu” pelo Santander Cultural. Há muitos exemplos de
como a heteronormatividade atravessa e enquadra corpos e
existências, inclusive dentro de espaços constituídos por sujeitos
homossexuais. No caso de Flsh Mag, as performatividades são de
suma importância para que possamos compreender de que
maneira as identidades gays estão sendo (des)construídas de
modo a reafirmar ou refutar subjetividades em ambientes
midiáticos.

Como afirmei acima, não há um descolamento de


comportamento da vida offline e online. No Grindr, como em
outros espaços, o macho hiperbólico, valorizado socialmente,
vigora como um potente e poderoso ator hegemônico, que
atropela seres “abjetos”, como diria Butler, e os faz existir em
uma zona de sufocamento existencial.

Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são


formados exige, pois, a produção simultânea de um
domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são
“sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo
relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto
designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas”
e “inabitáveis” da vida social, que são, não obstante,
densamente povoadas por aqueles que não gozam do
status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do
“inabitável” é necessário para que o domínio do
sujeito seja circunscrito. Essa zona de inabitabilidade
constitui o limite definidor do domínio do sujeito; ela
constitui aquele local de temida identificação contra
o qual - e em virtude do qual - o domínio do sujeito
circunscreverá sua própria reivindicação de direito à
autonomia e à vida. Nesse sentido, pois, o sujeito é
constituído através da força da exclusão e da abjeção
(BUTLER, 1999, p. 155).

Contudo, como dito na introdução deste artigo, são nessas


“zonas inóspitas” descritas por Butler que veremos emergir vozes
dissonantes, contestando a hegemonia desses corpos que se

440
fazem imperativos. Observando brevemente o funcionamento do
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

Flsh Mag, sem ir a campo, percebo um fluxo de conteúdos


produzidos por tais seres “abjetos” que neste novo lugar virtual
ganham voz, força e prática. Nas multiplataformas do Flsh Mag
temos a oportunidade de acessar representações outras, corpos
contra-hegemônicos empoderados e performatizados, em um
esforço reiterativo de desconstrução da norma e celebração da
dissidência. Ou seja, dentro dessa atmosfera que chamo de
asfixia existencial, podemos identificar brechas capazes de
desestabilizar tal normalidade excludente. Nas palavras de
Butler:

Como um efeito sedimentado de uma prática


reiterativa ou ritual, o sexo adquire seu efeito
naturalizado e contudo, é também, em virtude dessa
reiteração, que fossos e fissuras são abertos, fossos e
fissuras que podem ser vistos como as instabilidades
constitutivas dessas construções, como aquilo que
escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode
ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho
repetitivo daquela norma. Esta instabilidade é a
possibilidade desconstitutiva no próprio processo de
repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos
pelos quais o “sexo” é estabilizado, a possibilidade de
colocar a consolidação das normas do “sexo” em uma
crise potencialmente produtiva (BUTLER, 1999, p.
163 e 164).

É nesse contexto que os sujeitos irão experimentar a


transitoriedade de seus corpos, desatando os nós que amarram
as multiplicidades de suas sexualidades. O “sexo”, e não somente
ele, será posto em xeque, revelando novas possibilidades de
gênero que, inclusive, muitas das vezes questionarão o binarismo
que vem a reboque da heteronormatividade. A relevância de uma
iminente pesquisa se encontra exatamente na problematização e
na investigação desses conflitos performativos no espaço virtual,
que disputam, a partir da autorrepresentação de si e da interação
entre os participantes de tais SRS e apps de relacionamento gay,
narrativas hegemônicas sobre corpos (in)desejáveis. A produção
de subjetividades gays contra-hegemônicas está sendo mediada

441
por dispositivos tecnológicos na contemporaneidade; e refletir
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

sobre de que maneira corpos e mentes constituem tais processos


comunicacionais é de suma importância para compreender
outras vivências que muito vêm sendo apagadas e silenciadas
pelo status quo.

3 Afinal, Flsh Mag é putaria?

“Não”, me respondeu Charles Pereira, um dos integrantes


de Flsh Mag em conversa informal na casa de Ton Dutra,
também participante do coletivo10. Charles é fotógrafo, tem 30
anos, se identificou como negro, morador do bairro das
Laranjeiras (RJ) e disse que teve contato com o Flsh Mag através
de Ton, que já era seu amigo anteriormente. Afirmou que
mantinha um relacionamento “fechado” e “moralista” antes de
entrar para o coletivo.

Fui convidado para ser modelo de um ensaio


fotográfico do Flsh Mag no Morro do Vidigal. Me
lembro que tudo foi muito rápido porque quando
tirei a roupa para fazer as fotos, os vizinhos
começaram a aparecer e ficaram me olhando torto.
Estavam incomodados com um ensaio de nu artístico
na comunidade. As fotos foram realizadas, porém
pela falta de tempo, o ensaio não pode ser trabalhado,
pois fomos recriminados pelos vizinhos e tornou-se
apenas um corpo negro sem significado! (PEREIRA,
2018, informação oral)

Há duas questões que gostaria de destacar na fala de


Charles. A primeira delas é que o modelo/fotógrafo deixa
transparecer seu incômodo com a hiperssexualização do corpo
negro. Para ele, o ensaio fotográfico deveria transmitir algo a
mais do que a ratificação do senso comum do “negro de pauzão”.
A foto precisava causar um sentido diferente do que a maioria
dos espectadores esperam de um corpo negro nu, sedimentado
no fetiche eurocêntrico de subserviência sexual, exótica e

10 Encontro ocorrido no dia 17 de janeiro de 2018.

442
escravocrata. Novamente, Santos nos ajuda a ter uma perspectiva
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

teórica sobre o assunto:

Diante da hegemonia da estética branca


eurodescendente, o homem negro se transfigura em
uma antítese em relação ao homem branco, sendo
renegado e rejeitado simbolicamente como sinônimo
de feiura. O fenômeno da glamourização dos corpos
negros pós-modernos através da indústria cultural e
das plataformas midiáticas ressignificou a estética
negra, evidenciando sua beleza não no sentido de
emancipá-la, mas no sentido de exploração simbólica
daquilo que sempre foi considerado através dos
tempos como exótico, por ser diferente do padrão
estabelecido pela tradição herdada do colonialismo
europeu. O corpo do homem negro por apresentar
uma anatomia diferenciada, que compreende níveis
de melanina, formatos faciais, crespitude, cabelos
(como tranças, dreads, black powers), robustez, etc.,
acaba despertando a curiosidade e fascínio no
exercício de erotização de seu corpo, simplesmente
por ser análogo ao homem branco. Porém, a prática
da exposição e exploração simbólica do corpo negro
pelas plataformas midiáticas é uma consequência dos
movimentos ativistas negros, presentes na segunda
metade do século XX até os nossos dias, que através
do combate aos mitos e estereótipos racistas
procurava viabilizar a afirmação e inclusão das
populações negras nos sistemas de representações
midiáticas, proporcionando ao homem negro se
tornar mais uma possibilidade de escolha nos jogos
afetivo-sexuais (SANTOS, 2013, p. 91 e 92).

Com as críticas sobre seu ensaio, denominado “FLESH


ROOTS” (imagem 1) e realizado pelos próprios idealizadores de
Flsh Mag, João Maciel e Rafael Medina, Charles acaba sendo
convidado para compor o coletivo. Assume um dos postos de
fotografia do grupo, com preferência para realização de ensaios
de corpos negros, como fez com o modelo Jackson Gomes no
trabalho “AFRO PINK” (imagem 2) e com Ale Wyller e Pablo
Bastos em “BIXA PRETA” (imagem 3)11.

11 Ensaios disponíveis em http://flsh.com.br/. Acesso em 21 de março de 2018.

443
Imagem 1 - Ensaio FLESH ROOTS
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

Créditos: João Maciel e Rafael Medina.

Imagem 2 - Ensaio “AFRO PINK”

Créditos: Charles Pereira.

444
Imagem 3 - Ensaio “BIXA PRETA”
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
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“O mais profundo é a pele”: perspectivas

Créditos: Charles Pereira.

Ainda que o Flsh Mag tenha a preocupação de retratar


corpos dissidentes e veicular conteúdos disruptivos em suas
mídias, percebo pela narrativa de Charles que ainda há o que se
debater sobre questões de representatividade dentro do coletivo.
E esta é exatamente a segunda questão que gostaria de destacar.
Observo que um “lugar de fala” é reivindicado, a fim de
contemplar uma proposta interseccional do grupo. Aqui, trago
para este debate a obra de Djamila Ribeiro para nos auxiliar nesta
perspectiva evocada por Charles nos ensaios fotográficos.

Com todos os limites, o espaço virtual tem sido um


espaço de disputas de narrativas, pessoas de grupos
historicamente discriminados encontraram aí um
lugar de existir. Seja na criação de páginas, sites,
canais de vídeos, blogs. Existe nesse espaço uma
disputa de narrativa, mas ainda aquém do ideal por
conta das barreiras institucionais que impedem o
acesso de vozes dissonantes (RIBEIRO, 2017, p. 86 e
87).

Acredito que por ser um coletivo gay genuinamente


disruptivo, o grupo incorporou o modelo/fotógrafo por entender
que seu conhecimento de causa, pertinência e técnica

445
fortaleceriam o Flsh Mag enquanto um coletivo plural e diverso,
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

como já podemos observar nas imagens 2 e 3. Charles reivindicou


seu “lugar de fala” e foi atendido pelo coletivo, exemplificando no
âmbito das micropolíticas o que Djamila Ribeiro prova em seu
livro: “mesmo diante dos limites impostos, vozes dissonantes
têm conseguido produzir ruídos e rachaduras na narrativa
hegemônica” (2017, p. 87).

A incorporação de Charles pelo coletivo é uma ponte para


outra questão que gostaria de destacar nesse breve encontro com
dois dos integrantes do Flsh Mag: o autoconhecimento. Ton
Dutra se apresentou como um dos editores de conteúdo do
coletivo; é ele quem organiza as postagens de artigos no site (toda
semana), a periodicidade dos ensaios fotográficos (geralmente
acontecendo de quinze em quize dias, intercalando com
fotógrafos convidados) e auxilia na produção da festa,
programada para acontecer uma vez por mês. As postagens no
Facebook, Twitter e Instagram, juntamente com a interação dos
participantes, segundo ele, ficam a cargo de João Maciel.

Quando conheci a Flsh Mag fiquei fascinado com um


ensaio fotográfico que vi na revista, era o amigo de
faculdade de um namorado. Eram fotos de um
modelo com corpo gordo, já haviam alguns poucos
ensaios com fotos completamente diferentes dos
trabalhos que a gente está acostumado a ver
publicados com corpos cheios de padrões estéticos.
Procurei saber de quem era a ideia daquele site e vi
que era do Rafael Medina e João Maciel, e que
tocavam esse projeto aqui no Rio. Eu sempre me
perguntei onde estavam representados os corpos do
dia a dia, que encontramos nas festas. Os corpos que
não vão à The Week e nem à Smart Fit. Os corpos que
a gente transa e se relaciona, que nos representa...
logo fiz amizade com os meninos, depois entrei no
grupo do facebook, me convidei para ir numa
reunião, quando vi já era da FLSH! (DUTRA, 2018,
informação oral)

Na conversa com Ton, pude perceber certa preocupação


do coletivo em desmantelar preconceitos, em transmitir
informações que circulam internacionalmente para o público
brasileiro que interage com o Flsh Mag nas redes. Segundo ele, a
446
grande maioria da população, e mesmo a parcela gay, é
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

“hipócrita” no que diz respeito a realização de seus fetiches. O


conservadorismo é tamanho, que mesmo quando o assunto é a
libertação dos corpos e práticas sexuais, ele ainda observa traços
de puritanismo: “outro dia o assunto nas redes era ser pig12 ou
não. Tinha gente que se considerava pig porque fazia xixi na
perna do namorado no box enquanto tomavam banho. Aí a gente
vai lá e cata uma matéria que informa melhor o que é isso ou
aquilo, fomentando o debate”.

Percebo aqui que o coletivo cumpre ou pelo menos se


entende como um mediador de transmissão de conhecimento. Ao
“fomentar o debate” e estimular para que os participantes da rede
comentem sobre seus fetiches e suas práticas sexuais, o coletivo
Flsh Mag pretende promover um “letramento” sobre as
potencialidades dos corpos e as multiplicidades sexuais. Ou seja,
busca promover “um conjunto de práticas sociais, cujos modos
específicos de funcionamento têm implicações importantes para
as formas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas práticas
constroem relações de identidade e de poder” (KLEIMAN apud
SOUZA, 2011, p.35).

Este conceito veio de Ana Lúcia Silva e Souza, que


empreendeu uma pesquisa com a intenção de “evidenciar que o
movimento hip hop emerge como uma agência de letramento”
(idem, ibidem). A autora relaciona o hip hop como agência de
letramento a diversas experiências educativas de grupos do
movimento social negro que antecederam o movimento hip hop,
e defende que tais ativistas desempenham papel histórico ao
incorporar, criar, ressignificar e inventar os usos sociais da

12Pig é a pessoa considerada “sem frescura” não somente no ato sexual como
também no seu estilo de vida. Segundo o site Woof Brasil, dedicado a tribo dos
“ursos”, isto é, homens gays, gordos, peludos e barbudos, a pessoa pig também
“curte uma cuspida na boca e uma bela cheirada no suvaco”. Para saber mais,
ler “Tudo sobre ser um pig”. Disponível em https://bit.ly/2uurKp0 Acesso em
27 de março de 2018.

447
linguagem, os valores e intenções do que ela chama de
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

letramentos de reexistência.

É desta maneira que vejo a fala de Ton ao se referir aos


temas e assuntos que o Flsh Mag acaba trazendo à baila das
discussões virtuais. O que seriam as rodas de conversa de outrora
se transformam em “textões” e comentários em postagens que
propiciam o autoconhecimento e o “letramento” do grupo em
questão.

4 Considerações finais

Ao observar o coletivo Flsh Mag, tentando compreender


os agenciamentos que produzem corpos hegemônicos e contra-
hegemônicos em espaços virtuais de sociabilidade gay, percebo
que ainda há uma longa jornada pela frente. Entendo este artigo
como uma convergência de possíveis perspectivas teóricas de
entendimento sobre este instigante objeto. Algumas hipóteses
emergiram ao decorrer desta escrita e devem ser verificadas em
um trabalho de pesquisa mais aprofundado e robusto.

Algumas afirmações compartilhadas aqui, apesar de


respaldadas teoricamente, se aproximam do campo das
hipóteses. Por exemplo, quando afirmo que as performatividades
de gays em SRS e apps de relacionamento, que inauguram novas
configurações do espaço social, estão sob a influência de
interseccionalidades de gênero, raça e classe. Ou, que o Flsh Mag
é uma celebração de corpos dissidentes, configurando-se como
uma multiplataforma de valorização de sexualidades contra-
hegemônicas — caracterizo tais registros como textos-hipóteses.

Além disso, analisar a construção de identidades e a


produção de subjetividades a partir do Flsh Mag pressupõe
imersão no coletivo, a partir de entrevistas estruturadas com
todos os seus participantes e não apenas com dois deles; de
análise de todas as outras atividades, como a festa, onde
acontecem práticas sexuais durante a pista de dança, as relações
448
institucionais, o entendimento conceitual dos ensaios
teóricas sobre um coletivo chamado Flsh Mag
Diego Cotta
“O mais profundo é a pele”: perspectivas

fotográficos; e tantos outros ângulos e perspectivas de análises


possíveis.

Acredito que a pesquisa etnográfica que vislumbro


lançará luz sobre um objeto que se quer resistência. Um coletivo
que a partir de dispositivos tecnológicos e capilarizado em
ambientes virtuais, experimenta de forma coletiva e mediada a
libertação de (seus) corpos, através da observação, interação,
“letramento” e até mesmo “materialização” de suas sexualidades
ditas desviantes. O Flsh Mag proporciona diversidade e fomenta
espaços de “respiro” para existências outras. Isso deve ser
estudado a fundo.

 Retorne ao sumário

Referências
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neofundamentalistas. Revista Cult. Disponível em
<http://bit.ly/2xw5R9o> Acesso em 12 de setembro de 2017.

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Homofobia e misoginia em redes geossociais
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449
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“O mais profundo é a pele”: perspectivas

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de Janeiro: Contraponto, 2016.

SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência:


poesia, grafite, música, dança: hip hop. São Paulo: Parábola
Editorial, 2011.

450
1 Introdução

A fotografia contemporânea vem se mostrando como


terreno fértil para criar trabalhos que repensem a representação
do sujeito em relação com a Modernidade. Fotógrafos que
trabalham com retratos irão trazer à tona o que antes era invisível
ou privado e problematizar as questões de identidade de forma
fluída e plural como fazem Nikki S. Lee, Rineke Dijkstra, Melanie
Manchot, Shizuka Yokomizo, Nan Goldin, Amalia Ulman, Zanele
Muholi, entre outros.

Estes fotógrafos são influenciados por diversas questões


que concernem à raça, gênero, pós-colonialismo, teoria literária,
marxismo, história da arte e da sociologia e antropologia,
provocando uma fissura no que era tido como garantido na
fotografia. O rosto de alguém que na Modernidade era visto como
um certo tipo de janela da alma, algo capaz de apontar uma
verdade sobre o sujeito, começa a ser desmantelado na passagem
Thiago Costa
do século XX para o XXI. Muitos retratos irão ser realizados com
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

a finalidade de contar uma história e não mais apontar uma


identidade moderna e, para isso, serão produzidos na forma de
tableau, uma técnica que remonta de uma época pré-fotográfica,
no contexto da pintura figurativa ocidental do século XVIII e
XIX, como destaca a escritora Charlotte Cotton (2010).

O uso do tableau não deve ser considerado como


saudosismo ou nostalgia do passado, mas como uma forma de
narrar algo através da composição de uma cena com adereços e
gestos. Além disto, uma fotografia que se vale do tableau pode
ser chamada de ““construída” ou “encenada”, porque os
elementos reproduzidos e até o ângulo preciso da câmera são
montados antecipadamente e reunidos para expressar uma ideia
já elaborada para criar a imagem” (COTTON, 2010, p.8).

Dos diversos trabalhos de fotógrafos contemporâneos,


abordo a série Massa and Mina(h) da fotógrafa e ativista visual
sul africana Zanele Muholi. As quatro fotografias do trabalho,
assim como o resto da produção de Muholi carregam um cunho
político e social que é sensível à diversas sociedades. No caso
deste em particular, a fotógrafa se coloca em situações do
cotidiano de uma empregada doméstica sul-africana como uma
forma de homenagear sua falecida mãe que teve tal profissão.

Todavia, suas obras constituem uma produção do


imaginário queer em contexto local e mundial. Assim, ao encenar
uma empregada, ela não cria uma cena em que é submissa das
ordens dos patrões, mas em um contexto relacional-afetivo que
pode ser localizado dentro das práticas de sadomasoquismo,
como aponta Irene Bronner (2016), na relação empregada e
patroa. Ao se colocar no local de empregada dentro de uma
perspectiva queer, Muholi possibilita a apreensão de fatores
atravessados pela cor da pele, questão de gênero, lesbianidade e
aspectos sociopolíticos africanos.

452
Thiago Costa
2 Mulheres, negras e lésbicas na África
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

O continente africano passou por diversos processos que


deixaram marcas sensíveis até os dias atuais em sua sociedade,
como colonialismo, conflitos internos e o apartheid que forçaram
o distanciamento entre negros e brancos e a subjugação da
mulher. Com o período colonial, houve uma tentativa de
domesticação do negro “selvagem”, tratado como algo não-
humano; nos conflitos internos, guerrilhas e atentados
reforçaram o abismo entre ricos e pobres; e o apartheid deixou
evidente como o racismo, no século XX, ainda era forte, criando
espaços “de brancos” e “de negros”. Pensar formas de
empoderamento identitário no contemporâneo, irá confrontar os
séculos de abusos e de construção de um imaginário tido como
ideal. Mulheres e a comunidade queer, por exemplo, terão que,
respectivamente, trabalhar meios de representação que fujam da
sexualização do corpo por parte dos homens héteros cisgêneros 1
e da criação de uma representação que consiga promover uma
articulação entre sexualidade, identidade de gênero e cotidiano
africano.

Para nos atermos à complexidade da cultura africana,


proponho um recorte focado nas relações domiciliares entre
trabalhadoras domésticas e patrões. Assim como na língua
portuguesa, no inglês sul-africano, a palavra “doméstico(a)”
serve tanto como adjetivo, quanto substantivo. Devido grande
porcentagem de mulheres negras terem tal profissão, o termo
“doméstica” também pode ser usado como um sinônimo
degradante para “mulher negra”. A pesquisadora Gabeba
Baderoon (2014), por exemplo, explica que esta degradação parte
do fato de que “Meid, a versão africânder da palavra intensifica
sua ofensividade quando usada em inglês, e o termo brutal
Kaffermeid permite violência sexual” (BADEROON, 2014, p. 175,

1Termo referente ao indivíduo que se identifica, em todos os sentidos, com a


identidade de gênero com o qual nasceu;

453
Thiago Costa
tradução do autor). Desta forma, a confluência de “doméstica” e
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

“mulher negra” denota que a circulação nos espaços públicos se


atrela do imaginário longamente construído através dos usos e
abusos do trabalho doméstico.

A partir de 1950, carteiras de identidade eram obrigatórias


para todas as etnias africanas. Para o grupo dos negros, a
identificação deveria conter “fotografia e listar raça, sexo,
número de identidade, endereço, idade, estado civil, etc” (ANTI-
APARTHEID MOVEMENT, 1974, p. 67, tradução do autor).
Assim, para circular perto de seus trabalhos na época do
apartheid (1948-1994), neste caso, empregadas domésticas
deveriam possuir um documento de identificação chamado
passbook ou popularmente conhecido como dompas, um “passe
idiota” em africânder, que todo africano, independente de gênero
e maior do que 16 anos, deveria usar. O dompas deveria conter

grupo étnico ou tribo, nome e endereço do


empregador, duração do emprego e recibos de
impostos. Cada mês, o empregador de um africano
tem que assinar o livro de referência e inserir a data
quando o emprego é terminado. No caso das
mulheres africanas, o livro contém o nome, o
endereço e o número do livro de referência de seu
marido, do pai ou tutor (ANTI-APARTHEID
MOVEMENT, 1974, p. 67, tradução do autor).

Este sistema de identificação permitiu que o governo


controlasse o fluxo de pessoas negras nas “áreas de branco”. Para
permanecer em uma área urbana por mais de três dias, um

africano precisa de uma autorização da agência de


trabalho [...], a menos que: (a) ele nasceu lá, e tem
trabalhado lá continuamente; ou (b) tenha
trabalhado continuamente para um empregador
durante pelo menos dez anos; ou (c) trabalhou para
mais de um empregador por um total de quinze anos
(ANTI-APARTHEID MOVEMENT, 1974, p. 67,
tradução do autor).

Todavia, havendo uma grande concentração de negros em


uma região urbana, eles poderiam ser remanejados para outras

454
Thiago Costa
áreas que demandassem mão-de-obra. Além disto, pelo simples
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

desejo de alguém incomodado, poderiam ser expulsos ou


“endossados”. O dompas, por ser obrigatório, vira um objeto que
deveria estar sempre em posse, pois, se não estivesse, o negro era
preso.

Antes mesmo do apartheid, os negros foram subjugados


com relação ao trabalho durante o período colonial, no qual o
processo de domesticidade era utilizado como meio de torná-los
“civilizados” e cristãos. Desta forma, “a domesticidade também
serviu como uma forma de “tradução” colonial dos africanos em
sujeitos coloniais ideais, e a servidão era parte integrante da
tradução das mulheres africanas em exemplares figuras
coloniais” (BADEROON, 2014, p. 177, tradução do autor).

Atualmente, o trabalho doméstico, para muitas mulheres


negras, tem sido a principal ou única fonte de renda. Entretanto,
é o que se apresenta como mais defasado no âmbito dos direitos
trabalhistas e o mais passível de ser usado como meio de
exploração humana. Todo esse contexto de abuso de poder
poderá fazer a casa se tornar “um local de estranhas intimidades,
desejo, loucura, dissimulação, inveja, desprezo e fofoca”
(BADEROON, 2014, p. 180, tradução do autor). Mesmo com
todas essas condições, as trabalhadoras domésticas se tornam
agregadas da família, focando na limpeza, alimentação e
cuidados dos filhos dos patrões. Muitas vezes, esta condição faz
com estas mulheres fiquem afastadas de casa, sem conseguir
cuidar adequadamente de seus próprios filhos.

Inseridas em um cotidiano que demanda bastante de seus


dias, mulheres negras, por muitas vezes, acabam esquecendo de
olharem para si e de como os outros as olham. No
contemporâneo, surge o momento em que as mulheres irão olhar
para si mesmas e refletir como os processos históricos as fizeram
se tornar objeto de observação dos homens.

455
Thiago Costa Sem minar a forma como o corpo feminino negro foi
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

posicionado e visto como um local de numerosas


lutas no discurso africano pós-colonial, existem
outras formas pelas quais o corpo negro pode ser
visto além de suas restrições e construções coloniais.
As formas violentas em que o corpo feminino negro
foi alvo de “pornografia científica colonial” [...] no
passado não podem ser esquecidas. O horrível
tratamento e exibição do corpo de Sara Baartman 2
para investigações “científicas” é um constante
lembrete da tortura e violação de corpos femininos
negros. Sara Baartman foi desnudada, examinada e
dissecada por causa de seu corpo “curioso” e
feminino negro e órgãos genitais. Quando os homens
brancos acabaram com o corpo dela, ela foi costurada
e preparada de modo a permitir que se veja a
natureza dos lábios vaginais dela” (MATEBENI,
2013, p. 405, tradução do autor).

Segundo a pesquisadora Zethu Matebeni (2013), devido


aos diversos abusos ocorridos durante o decorrer da história, a
mulher negra foi privada de uma subjetividade, conferindo-lhe
um caráter de objeto, por muitas vezes, sexual devido ao seu
corpo e “exoticidade”. Assim, “dado detalhes tão horríveis da
objetificação do corpo feminino negro, não é nenhuma surpresa
que as narrativas pós-coloniais da feminilidade africana tendem
a cobrir o corpo da mulher negra e assim “dessexualizar e
descorporealizar a feminilidade africana”” (MATEBENI, 2013, p.
405, tradução do autor).

Enquanto a mulher negra heterossexual teve, de certa


forma, um destaque dentro do imaginário social, as lésbicas
foram marginalizadas e tornaram-se invisíveis, principalmente
dentro do contexto africano. Do período colonial até os dias
atuais, muitas pessoas creem que a homossexualidade é uma
característica não-africana e que foi trazida pelo homem branco
colonizador. Desta forma, ser “negro e gay é trair a raça e ser
menos autenticamente negro e compactuar com a branquitude”
(MATEBENI, 2013, p. 410, tradução do autor). Dentro deste

2
Sara foi conhecida como “Hotentot Vênus” pelos europeus. “Hotentot” é maneira
pela qual eles se referiam aos Khoikhoi e, atualmente, é considerado um termo
ofensivo;

456
Thiago Costa
contexto, muitos políticos se apropriam dessa premissa para
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

combater as demandas da população queer em prol da tida


“família tradicional africana”. Por queer, podemos entender
como uma apropriação por parte das pessoas que ouviam o termo
com a finalidade de serem insultadas 3 . De acordo com a
pesquisadora Guacira Louro, o termo remete ao que

é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o


sujeito da sexualidade desviante - homossexuais,
bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o
excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito
menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser
que não aspira o centro nem o quer como referência:
um jeito de pensar e de ser que desafia as normas
regulatórias da sociedade, que assume o desconforto
da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível.
Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba,
provoca e fascina (LOURO, 2013, p. 7).

Dentro deste cenário sociopolítico na África, de toda a


comunidade LGBT, as mulheres lésbicas, provavelmente são as
que mais sofrem abusos físicos. Ora vistas como abominações
por serem “masculinas” demais, ora por não terem desejo sexual
por homens, no contexto sul-africano acabam demonstrando
“manifestação altamente visíveis do indesejável” (GQOLA apud
MATEBENI, 2013, p. 408, tradução do autor). Desta forma, é
comum a prática do estupro corretivo contra as lésbicas, um
crime que se recontextualiza a partir da crença de uma possível
cura da mulher lésbica que a torna heterossexual. Por ser uma
“prática corretiva”, pressupõe-se que a mulher fez algo errado
que a desvirtuou de seu processo “natural”, “[o]s estupros
curativos, como são chamados, são perpetrados contra nós, para
nos tornarmos "mulheres africanas “reais” e “verdadeiras” -

3
Segundo Louro (2013), queer fora um termo usado para indicar, pejorativamente,
homens e mulheres não-heterossexuais e transgêneros. Ela cita a teórica Judith Butler
(1999), ao apontar que a repetição constante do insulto “ecoa e reitera os gritos de
muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquire força,
conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é dirigido” (LOURO,
2013, p. 39). O termo reapropriado pela comunidade LGBT, assume um sentido de
oposição e contestação, colocando-se contra a normalização heteronormativa
compulsória pregada pela sociedade;

457
Thiago Costa
devidamente femininas, mães, propriedades masculinas”
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

(THOMAS, 2010, p. 429, tradução do autor). Muitas mulheres


ficam com sequelas físicas e psicológicas depois destes atos de
violência, sendo que algumas são até mesmo assassinadas em
seguida pelo agressor.

Além disto, mesmo em áreas da África do Sul que se


consideram a favor da diversidade sexual, o relacionamento
inter-racial ainda é um tabu. Nestes locais, pós-apartheid, as

representações da sexualidade inter-racial de mesmo


sexo são raras, a menos que representem o desejo
masculino gay (branco). É quase como se o perfil
racial do apartheid da África do Sul racial e o
planejamento cuidadoso não pudessem ser
eliminados. O estado moderno do apartheid
assegurou que a negritude permanecesse tão distante
da branquitude quanto possível (MATEBENI, 2013,
p. 409, tradução do autor).

A política do apartheid, para criar o distanciamento


afetivo entre brancos e negros, promoveu diversos mecanismos
jurídicos, tais como o “Ato de Imoralidade de 1927, Ato de
proibição de casamentos mistos de 1949, o Ato de Imoralidade
de 1957 e o alterado Ato de Imoralidade de 1969 que proibia a
mistura sexual entre diferentes grupos de raça, bem como atos
homossexuais” (MATEBENI, 2013, p. 409, tradução do autor).
Deste penoso contexto para as mulheres lésbicas negras sul-
africanas, surge a fotógrafa e ativista visual Zanele Muholi.
Possuindo todas essas características, além de se relacionar há
anos com uma mulher branca, Muholi se viu com necessidade de
trabalhar em prol da construção de um imaginário queer
africano. Seus trabalhos consistem em retratar a intimidade
dessa comunidade, dando um rosto para essas pessoas e
atestando sua existência através da fotografia, pois, segundo ela,
“fotografias são evidências da existência. Eles são parte do
processo de como eu sou capaz de entender a vida. Tirar
fotografias e olhar a vida na semelhança é cura” (MUHOLI apud
BADEROON, 2014, p. 183, tradução do autor).

458
Thiago Costa
Podemos perceber que na contemporaneidade estão
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

surgindo diversos discursos queer que se constituem a partir de


críticas à psicanálise e à linguagem que se baseiam a partir de
uma identidade fixa. Existe uma preocupação, dentro de um
sentido pós-colonial,

de falar com e partir de subjetividades que são


marginalizadas por posições de normativa social, de
gênero, economicamente e geograficamente
privilegiadas. A superação de metas é uma das
razões, sem dúvida, porque os criadores de arte que
utilizam estratégias Queer empregam técnicas e
estratégias pós-coloniais, como performance, peça,
mascarada, mimetismo e paródia (BRONNER, 2016,
p. 20, tradução do autor).

Em um dos seus primeiros trabalhos, Massa and Mina(h),


Zanele em 2008 divulga quatro fotografias em que encena uma
empregada doméstica. O trabalho é, de certa forma, uma
homenagem à sua falecida mãe que trabalhou por anos na casa
de uma família branca. Muholi foi uma das crianças que não
tinham a atenção que esperava da mãe que cuidava de outra
criança. O sentimento de abandono foi forte e potente ao fazer a
série, incapacitando-a de produzir mais fotografias. O trabalho
evocava que

[t]rabalhadoras domésticas são muitas vezes


envolvidas centralmente em criar os filhos dos
privilegiados, aproximando-se do poder em seus
estágios formativos e “na essência elas criaram as
crianças dessas famílias à custa de seus próprios”.
Como filha de uma trabalhadora doméstica, Muholi
lembra que ela “não tinha uma mãe realmente”. A sua
infância era esvaziada pelas necessidades de outras
crianças. As crianças brancas, como aquelas que a
mãe cuidava, são assombrados pelos filhos ausentes
das mulheres que cuidam deles (BADEROON, 2014,
p. 182, tradução do autor).

Ao realizar a série, a fotógrafa cria uma perspectiva queer


ao usar seu próprio corpo na cena fotográfica. Ela afirma que
“transformo meu próprio corpo negro em um assunto de arte.

459
Thiago Costa
Uso a performatividade para lidar com as questões ainda
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

racializadas da domesticidade feminina - mulheres negras que


trabalham na casa das famílias brancas” (MUHOLI apud
MATEBENI, 2013, p. 410, tradução do autor). Tendo consciência
da objetificação sexual da mulher negra pelo patrão, podendo ser
até estuprada, Zanele se põe a criar outras narrativas que
subvertam o machismo e o olhar desejante masculino. Ela aponta
que:

ouvimos as histórias da trabalhadora doméstica


negra feminina sendo estuprada ou tendo um
relacionamento íntimo com o macho branco
“massa”. Vamos torna-lo queer, no entanto, e
imaginar que essas madames brancas tenham amado
suas empregadas negras, tenham sido íntimas com
elas. Talvez porque compartilharam algo
simplesmente como duas mulheres apaixonadas, ou
talvez fosse uma relação puramente carnal, baseada
ou no desejo erótico mútuo, ou no poder desigual e
nas relações trabalhistas existentes entre mulheres
negras e mulheres brancas, que as patroas brancas,
como o massa branco, tirou aproveitou a situação
(MUHOLI apud BADEROON, 2014, p. 184, tradução
do autor).
Ao usar o uniforme doméstico e representar cenas do
cotidiano de uma trabalhadora negra que está sempre em um
tipo de relação com a figura da patroa, seja dentro ou fora do
campo fotográfico, ela proporciona um cenário de intimidade e
desejo sexual atrelado à servidão de práticas sadomasoquistas.
Analisando o título da série, podemos observar uma relação com
as práticas de servidão (sexual ou não), visto que temos a figura
do(a) “Mestre/Mestra” (“Massa”) e de “Mina(h)”, termo que a
fotógrafa traduz como “eu(s)” e que também pode ser um nome
próprio (Minah) de descrição de trabalho4.

3 A empregada e a patroa repensadas

4
Em muitos casos, empregadas recebem um nome próprio específico que seja fácil
para os patrões pronunciarem, como “Sheila”, por exemplo. Desta maneira, um nome
se apresenta como uma descrição de trabalho.

460
Thiago Costa
Massa and Mina(h) é composta de quatro fotografia – I,
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

II, III e IV – nas quais Zanele se coloca como uma tradicional


trabalhadora doméstica em um contexto queer que se dá na
forma de tableau, no qual a ““criada” negra fantasia sobre sua
"senhora" branca - não sobre ser ela, nem estar em sua posição,
mas sobre possuí-la sexualmente” (BRONNER, 2016, p. 16,
tradução do autor) está presente. Ao criar uma narrativa queer
sobre seu trabalho, Zanele proporciona uma subversão das
questões de poder em gênero e nas relações trabalhistas. Ao fazer
isto, ela

encena no vocabulário de uma narrativa sexual, as


tensões constantes e ambivalentes que o trabalho
doméstico pode gerar em termos de fronteiras
liminares, explorando como o trabalho doméstico
“cria valor social, segregando a sujeira da higiene, a
ordem da desordem, o significado da confusão”
(BRONNER, 2016, p. 18, tradução do autor).

Segundo a pesquisadora Irene Bronner, tal subversão


“implementa uma narrativa sadomasoquista queer para
ressignificar tropos e reformular os personagens que podem
habitar um drama doméstico que se desenvolve com os legados
traumáticos da cultura sul-africana” (BRONNER, 2016, p. 16,
tradução do autor). Desta forma, há uma ressignificação dos
imaginários pré-estabelecidos e os clichês que os permeiam
criando novos tropos visuais, como se propõe a fotógrafa. A
pesquisadora destaca que analisando o trabalho de Muholi,
podemos notar que, em muitos momentos da história, mulheres
negras foram usadas como mecanismos de suporte para o
sucesso feminino branco.

Colocando uma atmosfera sexual queer e negra em um


contexto heterossexual e branco, ela proporciona uma
representatividade dos sujeitos excluídos e marginalizados,
mostrando-os como pessoas desejantes em uma relação de poder
não abusiva. Zanele proporciona um olhar queer (queer gaze),
uma leitura ativa e deliberada do grupo que intencionalmente

461
Thiago Costa
desafia a visão normativa e a representação hegemônica da
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

sociedade. Este olhar se atrela aos estudos queer, criando uma


“mudança no foco e nas estratégias de análise; trata-se de outra
perspectiva epistemológica que está voltada [...] para as
“estruturas linguísticas ou discursivas” e para seus “contextos
institucionais” (LOURO, 2013, p. 47). Massa and Mina(h)
proporciona “mostrar o queer naquilo que é pensado como
normal e o normal no queer” (TIERNEY; DILLEY, 1998, p. 60
apud LOURO, 2013, p. 51).

Ademais, ao fazer uma leitura subversiva, criamos uma


abertura “para as formas de ver que perturbam a hegemonia
patriarcal heteronormativa que limita e estrutura o nosso olhar”
(THOMAS, 2010, p. 427, tradução do autor). Se as mulheres
negras que trabalham em casas de famílias brancas já estão
sujeitas a todo tipo de violência contra elas, como devem passar
as que são lésbicas? Zanele cria um espaço de resistência
subversiva frente aos imaginários dominantes, anunciando uma
identidade marginalizada queer e desafiando o normativo. A
anunciação de uma comunidade que deseja integrar o imaginário
da cultura africana, apontando onde estão os conflitos que a
segrega e que as demais pessoas tomam como “eventos normais”.

Na primeira fotografia da série (Figura 1), Massa and


Mina(h) I, Zanele, enquanto “Mina”, está cobrindo os olhos de
sua senhora, “massa”. Não parece ser uma típica relação patroa-
empregada, pois o gestual das duas – as mãos posadas
suavemente e o rosto tranquilo de Zanele somados a surpresa
e/ou prazer da patroa – denota uma certa intimidade que pode
ser entendida como um tabu dentro do contexto sul-africano.
Além disto, “suas mãos sobre os olhos da outra mulher sugerem
uma breve igualdade de desejo e fantasia em meio a sua relação
mais geral” (BADEROON, 2014, p. 183, tradução do autor).

462
Thiago Costa
Figura 1 - Massa and Mina(h) I, Zanele Muholi, 2008
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

Fonte: Stevenson (http://stevenson.info/)

Neste primeiro registro é possível notar ao que se propõe


Zanele e como ela pretende subverter o olhar do “homem
dominador” frente às mulheres. O trabalho ganha força a partir
dos contrastes que ocorrem do contato entre a patroa e
empregada: branca-negra (na África do Sul), diferença
socioeconômicas, o uso do uniforme, uma empregada que é
desejante e não uma figura de fundo, entre outros elementos.

O uso do uniforme somado ao trabalho doméstico


realizado na segunda fotografia (Figura 2), Massa and Mina(h)
II, começa a oferecer elementos que possam indicar um olhar
queer por parte da fotógrafa dentro do campo do fetiche do
sadomasoquismo (S/M). O uniforme é um elemento de
oportunidades e de certa vergonha para a mulher negra, pois
enquanto o uniforme a faz ser notada pela sociedade, ele também
proporciona que ela tenha “status legal subordinado com acesso
limitado a recursos produtivos como educação, treinamento,

463
Thiago Costa
crédito e emprego formal” (BRONNER, 2016, p. 21, tradução do
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

autor). Todavia, o uniforme possui uma carga negativa em si por


apontar que quem o usa é uma empregada, alguém entendida
como pertencente a um nível social desprezado.

O uniforme para uma trabalhadora doméstica pode


ser interpretado como funcionando de alguma forma
em um lugar da incapacidade do empregador de
controlar a “alteridade” e o potencial
“imprevisibilidade” do corpo e da psique deste
chamado interlocutor (que muitas vezes é de uma
diferente “raça”, classe, idioma e origem geográfica)
no círculo familiar fechado (BRONNER, 2016, p. 22,
tradução do autor).

Figura 2 - Massa and Mina(h) II, Zanele Muholi, 2008

Fonte: Stevenson (http://stevenson.info/)

Ao focarmos no uniforme enquanto elemento de


fetiche, podemos nos lembrar que existem os tidos adoradores de
uniformes, aqueles que têm um desejo de servir ou ser servido
por alguém uniformizado. Estas pessoas obterão algum tipo de
prazer ao se relacionarem com os signos atribuídos ao poder e à
autoridade. Assim, notamos esses elementos dentro do trabalho

464
Thiago Costa
de Muholi e seu caráter catártico quando lembramos do contexto
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

do apartheid e das figuras da patroa branca e da empregada


negra. Bronner cita a escritora Anne McClintock (1993) para
demonstrar o quanto uma ótica sadomasoquista pode ser
potencialmente subversiva e criar um espaço teatral e liminal 5
que descontrói a naturalidade de alguns signos que apreendemos
enquanto normalidade:

Com sua ênfase exagerada em traje e cena, S/M


performa o poder social como script e, portanto,
permanentemente sujeito a mudanças [...], em
consequência, visivelmente encenando hierarquia,
diferença e poder. [...] S/M manipula os sinais de
poder para recusar sua legitimidade como natureza
(McCLINTOCK, 1993 apud BRONNER, 2016, p. 22,
tradução do autor).

Na fotografia II vemos a figura da empregada de uniforme,


ajoelhada, limpando ou encerando o chão e olhando com certa
atenção para a patroa que atravessa o quadro em primeiro plano.
As ações de Zanele podem ser entendidas dentro da prática S/M,
pois conta com acessórios e roupas atreladas a signos ligados a
relações de poder.

Em Massa and Mina(h) III, terceira fotografia da


série (Figura 3), temos o oposto do registro anterior: ausência de
roupa/uniforme e da figura da patroa. Mesmo ausente, a figura
da patroa pode ser interpretada através da figura do cachorro
branco ou como a possível pessoa que está fora do quadro
demandando sua atenção. Por que a empregada estaria nua? Por
que o cachorro está com ela, possivelmente, na cama?
Independentemente de onde está a figura da patroa, a terceira
foto pode ser entendida enquanto subversiva em contraposição à

5 Entendo liminaridade a partir do antropologista Victor Turner (1974).


Apropriando-se do modelo de “rito de passagem” de Arnold Van-Gennep,
Turner apresenta o liminal enquanto um processo de mudança de um status
social para outro. A liminaridade nos proporciona entrar em um estado de
“communitas”, um tipo de espaço social sem estrutura, baseando-se em
relações igualitárias e solidárias e que contrapõe a estrutura social normativa.
Tanto a liminaridade, quanto a “communitas” são geralmente temporárias.

465
Thiago Costa
idealização da imagem feminina negra nua há séculos no
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

Ocidente, pois Zanele se apresenta com dreadlocks, sem


maquiagem, sem as sobrancelhas feitas e com uma tatuagem
indo contra os padrões de beleza estabelecidos. O cachorro no
contexto da trabalhadora doméstica pode ser entendido como
uma crítica representacional de um ser que se encontra acima
dela, uma vez que é mimado e, em muitos casos, recebe uma
alimentação melhor que a trabalhadora.

Figura 3 - Massa and Mina(h) III, Zanele Muholi, 2008

Fonte: Stevenson (http://stevenson.info/)

A quarta e última foto (Figura 4), Massa and Mina(h) IV,


é a única que apresenta a figura masculina do patrão. Entretanto,
ele parece ser mais um objeto cênico do que um personagem do
registro. O patrão está cercado por três trabalhadoras domésticas
que não apresentam uma atitude submissa, mas um certo
confrontamento com quem as observa: a patroa, possivelmente.
Existe uma atmosfera sexual que aparenta caminhar para o seu
ápice e, ao mesmo tempo, um certo desafio entre as empregadas

466
Thiago Costa
e a patroa afim de causar ciúmes. Quem merecerá as
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

empregadas? Mesmo uniformizadas, elas assumem um poder


dentro deste espaço liminal em que elas são livres para fazer o
que quiserem tendo seus patrões como submissos às suas
vontades.

Figura 4 - Massa and Mina(h) IV, Zanele Muholi, 2008

Fonte: Südafrica – Land der Kontraste


(https://2010sdafrika.wordpress.com)

Além do olhar, as mãos de Zanele são índices de uma


sexualidade cuja sua ocorrência depende somente de sua
vontade. É possível perceber no registro certos traços clássicos
nesta ao notarmos alguns elementos que remetem à Vênus
Pudica: “Sua inclusão na cena fornece o contraponto figurativo
oferecido pelas serviçais encenadas, que desafiam o privilégio
convencional aderindo ao gênero, classe e raça, bem como arte

467
Thiago Costa
clássica e idealizada” (BRONNER, 2016, p. 19, tradução do
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

autor). Tal obra clássica é uma estátua de mulher idealizada que


cobre seus seios e região pubiana com as mãos em certo recato
que “que não deseja ser vista, uma vez que ser vista equivale com
ser violada. Pudica, derivou de pudenda, simultaneamente
significa tanto “vergonha”, quanto “genitália”” (BRONNER,
2016, p. 19, tradução do autor).

Mesmo com a atmosfera sexual dentro da cena, sua


subversão parte da atitude das personagens que adquirem o
poder para si, repensando a estrutura hierárquica do espaço
familiar branco. Desta forma,

elas não internalizaram vergonha ou “modéstia” ou


deferência; elas não “acessorizam” ou trabalham
para defender o privilégio de seus empregadores [...]
Isso dá a oportunidade de trazer para o primeiro
plano o aspecto central de um olhar Queer, sua
ruptura de sistemas normativos de classificação,
geralmente focada na heteronormatividade padrão
da cultura contemporânea (BRONNER, 2016, p. 20,
tradução do autor).
Através das quatro fotografias é possível compreender
como Zanele apresenta o espaço de trabalho de uma
trabalhadora doméstica a partir de uma narrativa queer inter-
racial, algo que tangencia o inimaginável dentro do cenário da
África do Sul. O exercício de pensar formas de narrativas
possíveis que possam acontecer no cotidiano pode ser uma
ferramenta que provoque dissenso e proporcione novas
“partilhas do sensível”, como é entendido dentro dos estudos do
filósofo francês Jacques Rancière (1996). De acordo com ele, o
dissenso é um conflito estruturado em torno do que é
compreendido como “falar” da “partilha do sensível” que
circunscreve o horizonte do que pode ser dito e estabelece o que
pode ser visto, pensado ou feito. O dissenso pode ser
compreendido ao revisitarmos a Grécia Antiga, na qual
“Aristóteles nos diz que os escravos entendem a linguagem, mas
não a possuem. Isto é o que dissenso significa” (RANCIÈRE, 2011
p. 2, tradução do autor). É menos um atrito entre distintos

468
Thiago Costa
discursos e mais um conflito entre uma distribuição do sensível
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

e o que fica de fora dela, chocando-se com a percepção que é


estabelecida.

4 Considerações finais

O trabalho de Muholi não apresenta respostas objetivas


sobre os problemas dos quais ele foi produzido, mas seu mérito
se encontra na transformação lúdica de eventos do cotidiano que
podem fomentar políticas afirmativas e criar imaginários através
de narrativas que fujam dos padrões normativos.

Há uma certa carga traumática dentro de Massa and


Mina(h) seja por parte da vida pessoal da fotógrafa, seja por parte
da cultura negra e feminina. O traumático é trabalhando através
de afetos prazerosos e libertadores que foram ofuscados por anos
de normas proibitivas. O trabalho em si é catártico para Muholi
quando a vemos como empregada, fotógrafa e produtora da obra.

Muholi não simplesmente inverte os papéis


hierárquicos, apresentando-se como a “madame”,
com a “empregada doméstica”, realizando tarefas
que podem ser íntimas e potencialmente "sensíveis”
[...] e potencialmente abjeta e “humilhante” [...]. Ela
assume o papel de “empregada doméstica”, mesmo
que ela controle a cena em sua configuração e em sua
pós-produção e distribuição como fotografias
(BRONNER, 2016, p. 23, tradução do autor).

O uso do fetichismo S/M e de adoradores de uniformes


dentro de um olhar queer potencializa a catarse dentro dos
grupos que se veem, então, representados. Para os
sadomasoquistas, tal prática cria uma cena na qual um dos
participantes detém um poder sobre o sofrimento em potencial
de uma segunda pessoa, tendo em vista sua compreensão de dor.
Desta forma, pode ser entendido como uma prática de catarse
frente a um trauma em um espaço no qual

refaz sua identidade não como a vítima imutável de


trauma e nem como um herói que transcende seu

469
Thiago Costa passado, mas como um processo que só pode ser
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

reconhecido retrospectivamente da postura de um


futuro imaginado no qual ela é libertada do
tormento, mas ainda é capaz de mudar (FREEMAN
apud BRONNER, 2016, p. 25, tradução do autor).

Apesar da mulher negra estar representada dentro de um


contexto S/M, Zanele produz cenas que a normatização
heterossexual é dessexualizada e surgem novos espaços e leituras
possíveis para afetos tidos como desvirtuantes. Partindo da
comunidade queer, seu trabalho pode ir além, em termos de
política, fazendo-nos refletir acerca das identidades políticas que
nos rodeiam. Logo, seu trabalho possui um potencial de nos
posicionarmos em relação aos outros e como atuantes de
transformações políticas, algo que ela se propõe a fazer mais
explicitamente em outros trabalhos como Faces and Phases.

 Retorne ao sumário

Referências
ANTI-APARTHEID MOVEMENT. Racism and Apartheid
in Southern Africa: South Africa and Namibia. Paris: The
Unesco Press, 1974.

BADEROON, Gabeba. The ghost in the house: Women,


race, and domesticity in South Africa. The Cambridge Journal
of Postcolonial Literary Inquiry, v. 1, n. 2, p. 173-188, 2014.

BRONNER, Irene. Queering portraits of “maids” and


“madams” in Zanele Muholi’s “Massa” and Mina(h).
de arte, n. 51, v. 2, p. 16-31, 2016.

COTTON, Charlotte. A fotografia como arte


contemporânea. NETTO, Maria Silvia Mourão (trad.). São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre


sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2013.

MATEBENI, Zethu. Intimacy, queerness, race. Cultural


Studies, n. 27, v. 3, p. 404-417, 2013.

470
Thiago Costa
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (Org.).
doméstica através da fotografia
O olhar queer de Zanele Muholi:
repensando o imaginário da trabalhadora

A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

__________________. The thinking of dissensus:


Politics and aesthetics. In: BOWMAN, Paul; STAMP, Richard
(Ed.). Reading Rancière: Critical Dissensus. London, New York:
Continuum International Publishing Group, 2011.

THOMAS, Kylie. Zanele Muholi’s Intimate Archive:


Photography and Post-Apartheid Lesbian Lives. Safundi, n. 11,
v. 4, p. 421-436, 2010.
TURNER, Victor. O processo ritual. Estrutura e
Antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.

471
1 Introdução

As grafiteiras vêm conquistando o espaço antes ocupado


apenas por homens. Entre os coletivos de grafiteiros e grafiteiras
que atuam em Belém do Pará, observamos que muitos deles são
formados exclusivamente por mulheres, a exemplo do Freedas
Crew e Ratinhas Crew. Neste artigo, selecionamos os trabalhos
da grafiteira Cely Feliz, para analisarmos os discursos sobre
mulheres existentes nas grafitagens da capital paraense.

Para subsidiar teoricamente esta análise, recorremos aos


estudos da Análise do Discurso de vertente francesa, por meio do
filósofo Michel Foucault, com seus conceitos sobre discurso e
enunciado. Aliamos a este referencial os estudos sobre cidades e
comunicação, abordados pelo antropólogo Massimo Canevacci e
pela professora doutora Lucrécia D’Aléssio Ferrara. Tomaremos
o método arqueogeneaológico de Michel Foucault, a partir de seu
entendimento sobre a história descontínua para compreender a
movimentação histórica das memórias indígenas que emergem
nos grafites.
Marcely Gomes Feliz, conhecida como Cely Feliz, é
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

paraense, integrante dos coletivos Ratinhas Crew e Flores do


Brasil, ambos têm o objetivo de viabilizar a produção feminina e
feminista de artistas urbanas atuantes fora do eixo Sul-Sudeste,
aliada ao traço indígena. Em entrevista realizada com a grafiteira,
ela nos contou como começou a grafitar, como vê este cenário em
Belém e quais as diferenças entre os muros masculinos e os
femininos.

Para a artista, a prática do grafite não tem objetivo de


deixar um muro bonito, mas sim se configurar em um meio em
que se possa comunicar os seus conflitos, seus questionamentos
e tensões diante da sociedade. Segundo a grafiteira, ela começou
a grafitar o sujeito indígena porque sente falta desta exaltação
nos muros ao seu redor, o que ela sempre via era os muros sendo
grafitados com traços que vinham do eixo Sul-Sudeste do Brasil
ou mesmo do exterior, “eu sempre senti falta da figura indígena
e da figura negra nas paredes de Belém” (CELY, 2017). 1 Os
grafites de Cely Feliz reivindicam a igualdade de gênero, são
contra qualquer tipo de violência contra a mulher, tanto física,
como também verbal. Na entrevista, a grafiteira conta sobre a
necessidade que sentiu de criar um dos coletivos:

O Ratinhas Crew nasceu em 2007, fruto de uma


brincadeira, na Cidade Nova. Nós criamos o grupo
por conta do preconceito dos homens. Todos me
perguntavam “com quem tu aprendeste a grafitar?
Qual foi dos meninos que te ensinou?” E nenhum
deles me ensinou, eu aprendi na rua mesmo. A
primeira sugestão de nome era ‘Latinhas Crew’,
depois escolhemos o termo “ratinha” porque lembra
o que é da rua, marginalizado. (CELY, 2017)

Cely Feliz nasceu no bairro do Bengui, bairro periférico de


Belém, a sua produção é voltada às ruas de bairro como este,
embora esteja ciente do perigo pela falta de segurança. Em sua
fala, observamos a reivindicação do papel da mulher em um meio
que ainda é bastante dominado pelo sexo masculino.

1
Informação verbal. Entrevista obtida em março de 2017.

473
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

2 Um breve entendimento sobre o grafite

No Brasil, o grafite foi descriminalizado pela lei 12.408, de


25 de maio de 2011. Para alguns autores, este marco jurídico
possibilitou um deslocamento de status, o que antes era
considerado como poluição visual passa a ser visto como
atividade artística (SOUZA, 2013, p. 19). Porém, para o corpus de
pesquisa aqui estudado, torna-se necessário entender que a
prática do grafite surge nas ruas, como um movimento contra
cultural, uma prática típica dos movimentos políticos dos 1960.

Nas grandes metrópoles mundiais, o grafite, hoje, ocupa


um significativo espaço de produção de sentidos, portanto,
envolve processos de interação, relações de poder, administração
dos gestos de leitura, silenciamentos, interdições. A palavra
grafite vem da expressão italiana graffti 2, plural de grafito, do
grego graphis, “carvão natural”, a matéria com a qual se fabrica o
grafite usado em lápis e lapiseiras. Há também as variações do
vocábulo em língua espanhola, “em países como Venezuela e
Colômbia, houve a tendência de denominar a expressão grafite
como pintas ou pintadas, sobretudo em ambientes
universitários, enquanto no Brasil se fala também em pichações”
(SILVA, 2014, p. 24).

A opinião de autores e realizadores desta prática urbana,


assim como de sujeitos que veem os grafites no cotidiano é que
ele se tornou emblemático por representar uma escrita e
representação social do proibido, por mais que atualmente ele
esteja em galerias, tenha adquirido conotação diferente daquela
que existia nos anos 1960, ainda se configura em uma estratégia
conta-hegemônica. No caso dos grafites de Cely Feliz,

2
Optamos por utilizar a grafia “grafite” no decorrer do trabalho, devido ser
considerada por nossa referência bibliográfica o termo mais apropriado para a língua
portuguesa.

474
observamos discursos cuja circulação é proibida, ou pelo menos
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

silenciada: sobre o sujeito indígena e sobre o sujeito feminino.

3 O grafite como materialidade discursiva: discursos


em dois grafites de Cely

Tomaremos o método arqueogenealógico de Michel


Foucault, a partir de seu entendimento sobre a história
descontínua para compreender a movimentação histórica das
memórias indígenas que emergem nos grafites. Entendemos que
o grafite como se apresenta hoje, pode estar relacionado aos
grafismos de sociedades africanas e indígenas, não limitando esta
arte urbana à origem que geralmente é divulgada: o movimento
Hip-Hop do final dos anos 1960/1970, nos Estados Unidos.

Michel Foucault considera que o sujeito é constituído por


discursos, envolvido em relações de poder que atravessam seu
corpo, suas relações mais próximas, dentro de uma perspectiva
de verdade construída historicamente. Em sua arqueogenealogia
do saber, Foucault (2008) propõe superar a forma tradicional de
fazer história, a qual é organizada em forma de narrativas
sequenciais de acontecimentos, em uma continuidade que elide
os acidentes e descontinuidades que marcam as lutas dos sujeitos
no interior da sociedade. Também deve ser abandonada a noção
de uma ruptura radical com uma determinada forma de saber, de
sujeito e de pensamento, como a história tradicional apresenta os
fatos.

A arqueogenealogia não tenta descobrir o que está oculto


nos discursos, mas os próprios discursos enquanto práticas que
obedecem a regras de construção, as quais são históricas e
controladas por relações de poder. Em vez da busca pela origem
e pela ruptura, nos ocuparemos aqui dos acontecimentos que
provocaram, ao longo da história, transformações nas
concepções que temos sobre o objeto de discurso em análise. No
centro dessas questões está a constituição da história do sujeito
475
na sociedade ocidental (FOUCAULT, 2009), ou seja, uma
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

história das práticas de subjetivação. A questão que Foucault


(2008b, p. 351) se coloca é saber quem somos nós hoje, o que nos
ajuda a entender as identidades em circulação em nossa
sociedade. Para tanto, ele analisa os discursos que se
entrecruzam na constituição dos sujeitos de forma heterogênea,
por meio de lutas e batalhas, em que saber e poder se
interrelacionam.

Assim, vamos analisar o grafite como uma materialidade


discursiva, um enunciado que é produzido por sujeitos
historicamente construídos. Pela cidade, existem muitas
imagens que retomam a pluralidade étnica da região, sobretudo
com negros e indígenas. Esta insistente memória, que se espraia
pelos muros, viadutos, palafitas e ruas de Belém, acaba por nos
fazer pensar sobre quem são estes sujeitos da cidade, hoje. Por
que estas memórias, historicamente silenciadas, neste momento
histórico passaram a ser visibilizadas?

Figura 01 - Vai vestir roupa piquenuzinho!

Foto: Camille Nascimento

476
Desde a colonização brasileira, as sociedades indígenas
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

foram retratadas oralmente, verbalmente ou visualmente. O


grafite acima, produzido por Cely Feliz no bairro da Cidade
Velha, centro histórico de Belém, nos mostra um discurso sobre
as sociedades muito recorrente: a nudez. Há uma retomada da
nudez indígena, um dos principais aspectos do sujeito indígena
generalizado, seja nos discursos dos colonizadores, seja em livros
didáticos ou na mídia, porém em outras condições de
possibilidades históricas.

No grafite de Cely Feliz, ela retoma a imagem do indígena


nu, mas brinca com a nudez e com a memória indígena dos
moradores da cidade de Belém. Ela introduz um enunciado
verbal com uma marca do português falado nas cidades
paraenses mais antigas e usa a palavra “piquenuzinho”, uma
forma linguística associada ao Nheengatu, a Língua Geral
Amazônica. Para quem conhece bem as formas de falar da região,
a leitura deste enunciado verbal tem um ritmo bem singular, que
remete às matrizes culturais indígenas. Neste grafite, ela fala,
reconhece a memória indígena dos moradores da região, e
apresenta um sujeito indígena que anda nu e fala a língua
portuguesa com sotaques Nheengatu. A imagem atualiza a
memória, pois traz semelhanças com a iconografia clássica, mas
produz novos sentidos sobre este indígena ou este paraense
descendente de indígena.

A partir dos grafites de Cely Feliz, em Belém, abordamos


um dos primeiros postulados de Foucault, a saber, todo discurso
produz o que chamamos de “efeitos de sentido”, o qual pode ser
materializado em linguagem verbal, como o texto, mas também
em linguagem não-verbal, a saber, imagens, cores, luz e
perspectiva. Para o autor, os sentidos são históricos e sociais,
assim como a sociedade e os discursos também são responsáveis
por produzir verdades, as quais formam os consensos e os
preconceitos. Além disso, os discursos vivem em

477
tensionamentos, são controlados em determinada sociedade,
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

assim como a memória, para que um exista, é necessário a


invisibilidade do outro.

Suponho que em toda sociedade a produção do


discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua
pesada e terminável materialidade (FOUCAULT, 2014, p.
8).

Foucault entende que os discursos produzidos em uma


sociedade, tais como o da sexualidade, da loucura ou da política,
passam por algumas fases, as quais ele denomina de
“interdições” e “procedimentos de exclusão”, “sabe-se que não se
tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em
qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar
de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2014, p. 9).

Figura 02: Pq nem todo risco no muro é masculino!

Fonte: http://celyfeliz.yolasite.com/say-hello.php. Acesso em


28 de abril de 2015
478
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

Na figura 01 observamos também como o discurso


feminista está presente a partir da assinatura no muro: “1º
Encontro das Minas no Muro”, “Cely Feliz” e “Flores do Brasil”.
O enunciado verbal feminista também está presente na figura 02,
com a frase “Nem todo risco no muro é masculino!”. Observamos,
então, um novo acontecimento na história do grafite, haja vista
que por um longo período, esta prática era exclusiva de homens.
Como podemos perceber, o grafite possui uma aquarela de
intenções, produzidas através da memória das grafiteiras e dos
grafiteiros. As condições de possibilidades históricas destas
grafitagens que emergem em Belém estão associadas à posição
da mulher em nossa sociedade.

O grafite da figura 02 causou vários debates a respeito da


imagem da mulher deitada à rede. Durante nossas comunicações
em sala de aula ou em eventos na Universidade Federal do Pará
não era pacífico identifica-la como indígena. Para alguns
interlocutores moradores de Belém, ela não seria uma indígena,
mas sim uma mulher “comum”, cujo corpo remeteria a uma
moradora de Belém ou de outra cidade da região. E nem a rede
justificaria esta identidade, já que também está inserida nas
práticas cotidianas da cidade. Esta mesma análise, propondo
uma identidade indígena para a mulher grafitada, quando
apresentada em eventos no estado de São Paulo, não produziu
nenhuma contestação. Para quem não convive constantemente
com os traços indígenas, não resta dúvida de que a imagem
remete à figura indígena. Este enunciado grafitado e as diferentes
perspectivas de interpretação nos colocam diante de um
paradoxo: se por um lado as grafiteiras e os grafiteiros
reivindicam uma memória indígena da cidade e tem orgulho de
assumir esta descendência, por outro, alinhados com a mídia
massiva, na reação de grande parte dos moradores prevalece o
estranhamento, a vergonha.

479
Para Foucault (2006a, p. 253), analisar discurso é
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

examinar “as diferentes maneiras pelas quais o discurso


desempenha um papel no interior de um sistema estratégico em
que o poder está implicado, e para o qual o poder funciona”. O
poder não é origem do discurso, e sim opera através deste, pois o
discurso é um elemento de um dispositivo estratégico de relações
de poder.

Analisar a circulação dos enunciados, as posições de


sujeito aí assinaladas, as materialidades que dão
corpo aos sentidos e as articulações que esses
enunciados estabelecem com a história e a memória.
Trata-se, portanto, de procurar acompanhar trajetos
históricos de sentidos materializados nas formas
discursivas da mídia (GREGOLIN, 2007, p. 13).

A forma de organização do saber acerca da história em


cada época obedece a um conjunto de procedimentos que
regulam a produção e a circulação dos enunciados, ao qual
Foucault (2013, p. 55) denomina “regimes de verdade”. Por essa
natureza histórica, o discurso deve ser cotejado em sua irrupção
de acontecimento, em uma dispersão temporal que lhe permite
ser repetido, esquecido, transformado, apagado. A análise de
acontecimentos em sua dispersão é, para Foucault (2008a), uma
forma de abandonar os recortes e agrupamentos que colocam em
pauta as continuidades na organização dos discursos, fazendo
com que se busquem as origens secretas da sua irrupção. A
análise dessa dispersão de discursos se dá na instância própria
de cada um. Essa é a análise arqueológica proposta por Foucault.

O discurso é uma prática que procede a partir da formação


dos saberes, é nele que os saberes de um momento histórico se
constituem, não de qualquer forma, mas de maneira regrada, é
nele que saber e poder se articulam. Nesse sentido, propõe uma
análise que se preocupe com as condições em que certos
enunciados podem aparecer e em outros são proibidos; não mais
um estudo das continuidades que questiona segundo quais
regras deu-se a construção de um enunciado, mas uma descrição

480
dos acontecimentos discursivos que questiona “como apareceu
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

determinado enunciado, e não outro em seu lugar?”


(FOUCAULT, 2008, p.30).

Os saberes, os poderes e os discursos atravessam os


sujeitos fazendo com que, historicamente, se constituam em
certas identidades que estão de acordo com o verdadeiro da
época (processo de subjetivação). Os sujeitos se constituem
socialmente e os sentidos são produzidos historicamente e, por
conta disso, os discursos estão em constante movimento,
confrontam-se. Nesse movimento, micropoderes procuram
promover verdades a serem seguidas, verdades que, por serem
históricas, são relativas. O trabalho discursivo de produção de
identidades procura integrar os indivíduos, direcionando-os aos
mesmos modelos que obedecem às verdades de determinada
época e sociedade.

Assim, entendemos o grafite como enunciado, uma


materialidade produtora de sentidos, que atualmente em Belém,
retoma discursos antes silenciados: a memória das sociedades
indígenas. Observa-se que neste trabalho há “duas vozes” que em
certos períodos foram silenciadas, mas agora estão evidência: o
grafite e a presença indígena no grafite.

O grafite é uma materialidade discursiva que se realiza nas


grandes cidades, entendemos como necessidade para este artigo,
um suporte teórico com estudos que relacionam a cidade, o
espaço urbano e a comunicação na cidade. Assim, agora,
partiremos de duas formulações teóricas que nos ajudaram a
compreender os grafites na cidade de Belém, a metrópole
comunicacional do antropólogo italiano Massimo Canevacci e a
cidade interativa da pesquisadora e professora Lucrécia
D’Alessio Ferrara.

4 O grafite na cidade interativa e polifônica

481
Falamos do grafite com uma materialidade discursiva,
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

atravessada por sujeitos historicamente construídos. Agora,


vamos cotejar duas formulações teóricas que nos ajudaram a
compreender os grafites na cidade de Belém, a metrópole
comunicacional do antropólogo italiano Massimo Canevacci e a
cidade interativa da pesquisadora e professora Lucrécia
D’Alessio Ferrara. Para estes dois pesquisadores a cidade em
transformação dá um indicativo inseparável de tempo e espaço,
o que nos faz entender que não podemos entender as cidades
ignorando suas movências históricas. Ambos os autores realizam
as suas discussões sobre cidades, cidades comunicativas, cidades
cultura, cidades polifônicas, entre outros conceitos, a partir de
suas experiências com a cidade de São Paulo.

A pesquisadora Lucrécia Ferrara (2015) aponta como seu


objeto de estudo a cidade, para desenvolver suas análises, ela
propõe os conceitos de cidade mediativa e cidade interativa. À
primeira, se conectam “personagens, ações e valores que
estabelecem e consolidam imagens construídas por uma
visualidade publicitária de caráter persuasivo-comercial, é
modelada pela hiperindustrialização”. A cidade interativa, ao
contrário, “é interativa é desestruturante e sem ambições
midiáticas, mas é o único lugar capaz de sobreviver de modo
democrático”. Para nós, é nesta cidade, a interativa, que o grafite
se materializa, trazendo para todos que o veem os discursos e
memórias antes silenciados.

Nessa cidade interativa, observa-se a semiose de uma


dimensão política da comunicação que ultrapassa
sua simples dimensão fenomênica e simplesmente
enunciativa, para aderir a uma formação discursiva
que se deixa perceber em vozes que, no tempo, gritam
ou se calam. Observa-se que a simples descrição
fenomênica é insuficiente para perceber a densidade
daquelas formações discursivas que exigem outras
estratégias metodológicas. (FERRARA, 2015, p. 160).
Em sua perspectiva do “perder-se pela cidade”, Massimo
Canevacci (2004) propõe a metodologia da comunicação urbana:
a de querer perder-se, de ter prazer nisso, de aceitar ser

482
estrangeiro, desenraizado e isolado, antes de se poder reconstruir
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

uma nova identidade metropolitana. Neste seu caminhar pela


cidade de São Paulo, o autor observa como “a cidade se comunica
com os seus edifícios, ruas, insígnias, lojas, e com o fluxo de um
tráfego insaciável” (CANEVACCI, 2004, p.14). Ele aponta como
a comunicação visual da cidade está envolta pelas relações de
poder, assim como pelas relações sociais.

Mais do que simulacros vazios, a comunicação


urbana, bem como a da mass media, me pareceu
sempre ser uma forte concentração das relações de
poder entre quem detém o controle das
comunicações e quem é reduzido apenas à
passividade de espectador. As classes sociais, os
grupos étnicos, as identidades de gênero ou de
geração, os muitos norte-sul do mundo, constituem
conflitos presentes na comunicação e por ela
reciclados. E a cidade permanece como o seu coração
visível (CANEVACCI, 2004, p. 16).

O seu método “polifônico” se refere ao fato de que a cidade


é feita de muitas vozes, que se cruzam, se sobrepõem umas às
outras, isolam-se ou contrastam-se. Belém se assume como
cidade polifônica quando, por exemplo, dentro das
comemorações oficiais de seus quatro séculos de fundação,
destacava-se a voz do colonizador. As peças publicitárias, os
programas televisivos, as reportagens ignoram a periferia e as
sociedades que já existiam aqui antes mesmo do europeu chegar.
Em contrapartida, surgiram outras vozes que enfatizavam esta
memória indígena tão silenciada, as mazelas da cidade
escondidas, a diversidade étnica, entre outros.

Uma cidade é também, simultaneamente, a presença


mutável de uma série de eventos dos quais
participamos como atores ou como espectadores, e
que nos fizeram vivenciar aquele determinado
fragmento urbano de uma determinada maneira que,
quando reatravessamos esse espaço, reativa aquele
fragmento de memória. (CANEVACCI, 2004, p. 22).

483
Este pensamento do antropólogo vai ao encontro das
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

definições propostas por Ferrara (2015), na medida em que, para


ambos a cidade e, portanto, a comunicação urbana é de caráter
dialógico, excluindo a comunicação unidirecional. Na
comunicação que observamos na cidade, é urgente perceber que
se constitui um terreno de conflito: de classe, de pontos de vista,
de etnia, de sexo, de ideações e inovações, de produção e de
consumo, de atores e de espectadores. A cidade é um grande
sistema comunicativo, onde o sujeito a habita, mas este sujeito
também a constrói, a organiza, a modifica, a transforma e como
pesquisador, perde-se em suas paisagens.

A cidade é agida dentro do sujeito, quando a ela se


aplica o princípio da retroatividade dinâmica. Eu
‘sou’ a cidade na qual vivo. Não somente ‘eu’ penso
com a cidade na qual vivo, mas também a cidade
‘pensa’ com o antropólogo que vive nela. Ela pensa o
antropólogo. A cidade ‘mora’ em mim. Todos os
circuitos informacionais da metrópole constituem
parte integrante da minha ‘mente’, sem solução de
continuidade. A comunicação urbana me possui
antes mesmo que eu a possua teoricamente
(CANEVACCI, 2004, p. 81).
Por meio da leitura destes dois autores, estudamos
comparativamente as relações sociais que se estabelecem entre
espaço urbano e cidade, entendidos como fenômenos
distintos. Analisamos as narrativas que assinalam apropriações
da cidade como espaço vivido, procuramos estabelecer as
categorias epistemológicas que interferem no conhecimento que
se produz sobre aquele espaço e suas consequências ontológicas
que encontram na multidão, entendida como categoria de
análise, sua dimensão radical. Entre essas categorias
epistemológicas e ontológicas apresentam-se densos processos
comunicativos de base interativa que permitem produzir
distintas inferências cognitivas e metodológicas.

Nos grafites de Cely Feliz emergem enunciados visuais de


indígenas e negros, que fogem ao padrão de como eles aparecem
na televisão, nos jornais impressos, nos livros didáticos,

484
geralmente estereotipados. Muitos grafites trazem a referência
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

indígena menos explícita, por meio de alguns grafismos em torno


do “desenho” principal ou por enunciados verbais como “La piel
del índio te enseñara”, como no grafite a seguir.

Figura 03 - Grafite “La piel del índio te ensenãra”

Foto: Camille Nascimento

Os corpos pintados nos grafites de Cely Feliz produzem


um estranhamento nas pessoas que acreditam em identidades
fixas, pois em muitos de seus enunciados não identificamos
claramente o indígena, o negro, o branco e o morador da região.
Será possível identificar estas diferenças apenas observando os
fenótipos dos corpos, numa região como a Amazônia? Estes
grafites, como já falamos, quando apresentados em eventos
acadêmicos na cidade de Belém, causam uma certa polêmica,
pois, como as pessoas se reconhecem neles, rejeitam que sejam
indígenas e alegam que são apenas moradores da região que
estão desenhados.

485
Figura 04 - Indígena grafiteiro de Cely Feliz
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

Fonte: http://celyfeliz.yolasite.com/. Acesso em 28 de abril de 2015

Figura 05 - Mulher indígena amordaçada

Foto: Camille Nascimento

486
O grafite acima traduz esta memória silenciada e está
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

justamente pintado na Universidade Federal do Pará. Houve,


inclusive uma certa resistência por parte de algumas pessoas,
quando ele foi grafitado. O próximo grafite instaura com mais
intensidade esta questão étnica, pois existem neste rosto
diferentes tonalidades de pele, uma espécie de sobreposição
étnica.

Figura 06 - “Quem somos nós?”

Foto: Cristiane Oliveira

487
A partir dos estudos de Foucault, compreendemos que a
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

história é descontínua. Isso significa que estes discursos sobre a


pluralidade étnica da cidade de Belém são nós em uma rede de
memória, que se movem, se complementam, se refutam, se
transformam. É muito difícil determinar quem é o outro do
indígena em cidades como Manaus em Belém, tão intensamente
constituídas pelas matrizes culturais indígenas.

Cely Feliz, em entrevista, também nos acrescentou a


informação de que apesar de as mulheres estarem em maior
quantidade no grafite atualmente, elas ainda enfrentam o grande
preconceito machista. Apesar desta realidade, a presença das
mulheres no cenário do grafite é uma das provas de que o grafite,
como afirma alguns autores é uma prática urbana passível a
mudanças. Observamos que não apenas em Belém, mas em
outras capitais, muitas grafiteiras e grafiteiros trazem como seu
principal tema a mulher indígena. Vejamos, a seguir, dois
exemplos:

Figura 07 - “Indiazinha com Flor de Figura 08: Raiz Campos


Lótus”, Manaus (AM)
de Keka Florêncio - Vitória (ES)

Disponível em: Disponível em:


https://www.facebook.com/kekaflorenci https://www.facebook.com/raiz.campos/
o?fref=ts. Acesso em 03 de setembro de ?fref=ts. Acesso em 18/06/2015
2015

488
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

Quando olhamos para estas duas imagens, não podemos


ignorar que estão dentro de um processo historicamente
construído. Se a insistente presença de grafites com matrizes
indígenas em Belém sugere a reivindicação de uma memória
mais plural da cidade, a presença de mulheres indígenas
espalhadas pelos muros de cidades de todas as regiões nos
convidam a pensar neste processo de uma forma mais ampla,
talvez as metrópoles brasileiras, bem a exemplo do que acontece
em outras regiões da América Latina, também comecem a pintar
em seus muros a pluralidade cultural.

5 Considerações finais

Apresentamos neste trabalho um apanhado sobre o grafite


como fenômeno da cidade, como prática urbana. Nas condições
de possibilidades históricas em que vivemos, percebemos ser
impossível entender esta prática urbana como uma
materialidade discursiva fixa, imóvel. Definimos como corpus de
pesquisa a produção da grafiteira Cely Feliz. Nos grafites de Cely,
observamos a presença indígena e feminina como principais
elementos.

Entendemos, a partir das formulações foucaultianas que


estas grafitagens são produzidas por sujeitos historicamente
construídos, que fazem emergir os discursos sobre sociedades
indígenas e sobre o movimento feminista. Ela produz enunciados
como “Nem todo risco no muro é masculino” ou “Vai vestir roupa
piquenuzinho!”, os quais retomam memórias submersas do
sujeito indígena e do sujeito feminino.

Silva (2014), referencial teórico em nosso trabalho sobre


os estudos dos grafites, considerou em suas pesquisas em cidades
latino-americanas, que o grafite possui características próprias,
que possam ser identificadas como exclusivas do grafite. Nosso
trabalho não deu prioridade a este paradigma do grafite e nosso
489
olhar foi sensível ao caráter contestatório desta prática urbana,
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

ao caráter flexível para sua materialidade: o grafite hoje, está nas


ruas, nos postes, nas fachadas de casas, em prédios, em escolas.
Em Belém, o grafite faz parte da nossa paisagem urbana,
passando por bairros periféricos e não periféricos.

A partir do nosso olhar sobre os grafites com a presença


indígena em Belém, este nosso objeto de pesquisa nos convidou
a pesquisar também sobre o processo comunicacional na cidade,
como a cidade de Belém pode comunicar por meio destes grafites
com a presença indígena. Neste olhar para um possível objeto de
pesquisa da comunicação, a cidade, entendemos que o processo
comunicacional típico da cidade ocorre sob o que Foucault
(2009) denominou de heterotopia. Pois este processo, segundo
Ferrara (2015), ocorre na transformação, no entre-lugar entre a
mediação e a interação, entre o espaço urbano e a cidade, entre a
cidade mediativa e a cidade comunicativa.

Nossa pesquisa mostrou como os grafites com a presença


indígena configuram uma rede de memória que reivindica
discursos antes silenciados sobre estas sociedades. Os grafites
que analisamos configuram uma reivindicação de vozes
silenciadas: a do próprio grafite, pois, é uma prática urbana que,
apesar de estar em determinados momentos em circuitos oficiais,
como instituições e mídia, não dialoga como um discurso
hegemônico; e dos sujeitos indígenas, que como vimos, tem seus
discursos interditados e modificados, gerando o estereótipo e
preconceito presente nos não-indígenas.

Nas entrevistas realizadas com a grafiteira Cely Feliz, ela


falou sobre suas influências para grafitarem sujeitos indígenas,
sobre o porquê de grafitar figuras indígenas, sobre o espaço que
ela tem no cenário do grafite. A família de Cely é natural do
Arquipélago do Marajó; ela nasceu e cresceu no bairro do Bengui,
uma das periferias mais abandonadas de Belém. Cely é
integrante de coletivos de grafiteiras feministas, prefere as ruas

490
dos bairros periféricos de Belém como cenário do seu grafite,
grafites de Cely Feliz
Mulheres nos muros de Belém do Pará: os

Camille Nascimento da Silva e Ivânia dos Santos Neves

embora esteja ciente do perigo pela falta de segurança.

Nossa pesquisa nos mostrou também as relações de poder


existentes e as diversas vozes que se cruzam na cidade
comunicativa. Esta cidade polifônica (CANEVACCI, 2004) que se
mostra Belém, apareceu em nossa pesquisa como um grande
muro de grafitagens indígenas que estavam o tempo todo ao lado
de discursos completamente hegemônicos, apenas não
apareciam. Este tipo de grafitagem, que retoma discursos e
enunciados que são subalternizados pela memória oficial e que
não aparecem com frequência na estrutura física da cidade, nos
faz pensar que o grafite é uma materialidade incluída na
produção simbólica de uma cidade, que (des)ordena e interpreta
a estrutura física da mesma.

Eu grafito as etnias indígena e negra porque sinto


falta delas nos muros de Belém. Acho que a gente tem
que pintar essa cidade inteira com aquilo que nós
somos, com a nossa aparência mesmo, e não com o
que vem de fora (FELIZ, 2017)

Cercear ou proibir as expressões de rua retoma com muita


força os discursos da colonialidade do poder, que se por um lado
impõe o moderno como superior culturalmente, por outro, na
América Latina, sempre encontrou estratégias para silenciar os
saberes populares.

 Retorne ao sumário

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dezembro/2016.

493
1 Introdução

O que significa “família” no Brasil hoje? Qual tipo de


família é considerado legítimo socialmente? Existe em nossa
sociedade uma ideia normativa de concepção de família que
aponta o modelo nuclear heterossexual – aquele formado por
homem e mulher – como a entidade mais natural das instituições
sociais e por meio da qual valores culturais fundamentais para a
formação do indivíduo são estabelecidos (ZAMBRANO, 2006;
BIROLI, 2014). A perpetuação de tal modelo de família
cristalizou no imaginário social brasileiro uma falsa ideia de
universalidade, em que apenas tal formato é legítimo,
desconsiderando a família como entidade fruto do tempo e do
espaço ao qual está inserida (ZAMBRANO, 2006). Por outro
lado, entidades e grupos homoafetivos reivindicam o
reconhecimento de famílias formadas por casais do mesmo sexo
com ou sem filhos (SANTOS, 2017; CAL; SANTOS, 2017).

A ideia de família é, portanto, uma construção social


reforçada por diferentes instituições, inclusive pelos media.
Considerando-os como ambientes de ampla visibilidade nos
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

quais se processam lutas simbólicas (GOMES, 2008; MAIA,


2014), buscamos neste trabalho analisar as construções
discursivas sobre famílias homoafetivas em matérias publicadas
em um portal jornalístico na Internet.

A construção da legitimidade da família considerada


padrão está centrada, sobretudo, em questões biológicas, como
sexo e reprodução. Nessa perspectiva, amplamente defendida
por segmentos contrários aos avanços conquistados pelos
movimentos sociais que defendem a pluralidade e a diversidade
de famílias, a entidade só poderia existir onde há um homem e
uma mulher, que por sua vez devem conceber filhos.
(ZAMBRANO, 2006). Entretanto, sabemos que família nuclear é
apenas um dos modelos possíveis. Entre tantos formatos,
destacamos neste capítulo um específico: a família homoafetiva.
Em virtude das condições de desrespeitos, violências e estigmas
direcionadas aos sujeitos que vivenciam práticas afetivas
consideradas divergentes, tal modalidade enfrenta resistência ao
reconhecimento da legitimidade de seus núcleos familiares.

De acordo com Dias (2001), é necessário pensarmos a


união entre homossexuais a partir das afetividades que lhes
atravessam e, portanto, transbordar o conceito de
homossexualidade – que aponta para quem o sujeito direciona o
desejo sexual – para a afetividade entre iguais, tendo em vista
que essa relação pode, ou não, incluir outros sujeitos, como os
filhos e cuja base é o afeto.

Se família é de fato a união de pessoas por meio do afeto,


como defende Dias (2001), por que algumas famílias são
desrespeitadas por possuírem um núcleo formado por dois
homens ou duas mulheres? Partimos do pressuposto que, para
uma camada conservadora da sociedade, esta família é abjeta,
irreal, não-existente, pois estariam em “desacordo” com a norma
tradicional, patriarcal e binária, o que implica dizer que, ao

495
contrário do que pensa autora, para esses não seria o afeto o fator
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

primordial de concepção de uma família e sim fatores biológicos


e/ou posicionamentos religiosos.

É por meio da história que podemos acompanhar as


modificações ocorridas no cerne da família e como se tornaram
cada vez mais plurais as concepções referentes aos laços de
solidariedade, afeto e interdependência estabelecidos entre os
indivíduos que compõem o grupo familiar (PRADO, 1982). Por
estarmos inseridos em um contexto sócio-histórico, em que a
família emerge como primeiro e principal núcleo de acesso a
padrões de regulação de comportamento, suporte emotivo e
tantos outros modos de se relacionar em sociedade, ela
compreende microcosmo social que pode assumir diversos
modelos. Por isso, tendemos a tomar a família a partir do
conhecimento que temos sobre nossas próprias famílias.

A partir de tais reflexões, e entendendo que os media


possuem papel fundamental na forma como são debatidos
determinados assuntos na esfera pública e que a construção dos
sentidos que desenvolvem, por meio da inserção de temas na
esfera midiática, podem contribuir com a transformação social
ou com a manutenção das desigualdades, nos questionamos
sobre como os media reverberam discursos sobre famílias
homoafetivas. Queremos entender como são construídos os
sentidos sobre famílias homoafetivas no webjornalismo
praticado no Brasil.

Focamos nossa análise no portal de O Globo. Por meio da


análise de discurso na perspectiva dos estudos dos media, vamos
analisar 17 textos jornalísticos publicados entre os anos de 2013
e 2017 que tratam da temática família homoafetiva e buscar
compreender como são construídos os sentidos a respeito dessas
famílias. Queremos, também, compreender quais discursos estão
sendo postos na agenda pública, a partir do media estudado, para
que a sociedade discuta a temática.

496
Justificamos a escolha de materiais jornalísticos no
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

ambiente online por considerarmos que a) por meio das


narrativas jornalísticas é possível fomentar uma semântica
coletiva sobre determinados grupos e b) por serem veiculados em
ambientes digitais são pulverizados por meio de redes sociais e
ganham visibilidade para além da plataforma em que foram
inicialmente publicados.

É importante destacar que o casamento civil entre pessoas


do mesmo sexo é uma pauta da agenda de lutas dos movimentos
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) de
todo o mundo. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou
no dia 15 de maio de 2013 a Resolução nº 175, de 14 de maio de
2013, aprovada durante a 169ª sessão plenária do Conselho que
determina que todos os cartórios do Brasil não poderão recusar
a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou
deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva.
O recorte do nosso corpus analítico se dá justamente no período
que compreende entre a publicação da resolução do CNJ, 16 de
maio de 2016 e segue até o dia 16 de maio de 2017.

A metodologia construída para auxiliar a investigação


observa a sistematização operacional da análise de discurso de
linha francesa desenvolvida por três pesquisadoras brasileiras:
Orlandi (2009); Benetti (2007) e Gregolim (2007). O
entrelaçamento entre os trabalhos desenvolvidos por elas nos
proporcionou dialogar com o objeto e encontrar caminhos que
nos levaram a alcançar resultados contundentes sobre o que e
como os media abordam as famílias homoafetivas.

Dividimos esse capítulo em três seções. A primeira discute


o papel dos media na inserção de pautas na esfera de visibilidade
midiática proporcionando subsídios para debates cotidianos.
Ainda na primeira seção apresentamos o referencial teórico
sobre análise de discurso na perspectiva dos estudos de mídia,
que embase a metodologia da investigação e finalizamos com

497
discutindo conceitos sobre jornalismo praticado em ambiente
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

web. A segunda seção desvela os percursos metodológicos


percorridos para obter os resultados e no terceiro capítulo
apresentamos a discussão analítica e os resultados da pesquisa.

2 Media e disputas de sentidos

Para compreender como os media mobilizam e articulam


discursos sobre a família homoafetiva, partimos da premissa de
que os sistemas dos media inserem temáticas nas agendas de
discussão e atuam de forma “relevante no processo de produção
e disputa de sentidos compartilháveis” (MENDONÇA, 2006, p.
13). Para Maia (2012), os media ao disseminarem informações e
agendar determinados assuntos fornecem subsídios para
discussões e processos interativos dialógicos de diversos
formatos, de conversações informais a arenas institucionais de
discussão.

As informações disponibilizadas pelos media configuram,


conforme apontamentos de Mendonça (2006, p. 13), “espaços de
disputas simbólicas, dada sua força na constituição de
visibilidade e de inteligibilidade”. As produções midiáticas
possibilitam a construção de uma teia de relações entre
diferentes aspectos da vida social capazes de proporcionar
reflexão e posicionamento. A disseminação de informações pelos
media não se trata de mera transmissão, paradigma superado a
partir da ruptura com a proposta equivocada da passividade do
sujeito, e sim de “uma ‘atividade organizante’ conjugada dos
atores sociais, pela qual um mundo comum, um ‘espaço público’,
um campo prático, um sentido compartilhado de uma realidade
comum são continuamente modelados e mantidos como
condição e resultado da ação” (QUÉRÉ,1991 apud MENDONÇA,
2006, p. 13). Os media participam da construção de um terreno
simbólico comum que alimenta práticas e percepções sociais e é
alimentado por elas (CAL, 2016).

498
Nesse sentido, podemos compreender os media como “um
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

subsistema social, operando a partir de uma lógica e uma


gramática próprias, mas sendo perpassado por uma série de
outros sistemas” (MENDONÇA, 2006, p. 13). Trata-se de um
espaço permeado por tensões, disputas e ideologias:

Ainda que a mídia seja um sistema com regras e


códigos próprios, recortando e ressignificando o
mundo a partir de seu modus operandi ela é algo
essencialmente social, político, cultural e econômico.
[..] Ela tece seus textos no bojo das relações sociais e
de contextos políticos, ao mesmo tempo em que
permite novas configurações de tais relações e
contextos (MENDONÇA, 2006, p. 13-14).

São essas configurações e relações que proporcionam a


ampliação de horizontes no campo do entendimento sobre outras
formas de viver diferentes daquelas consideradas socialmente
como “normais”. A normalidade aqui entendida como um
processo de construção apoiado na segregação do diferente e
estigmatização de corpos e comportamentos considerados
destoantes e, logo, sem possibilidades de se estabelecer no
espectro social.

E para entender de que forma a temática das famílias


homoafetivas são apresentadas na arena de visibilidade
midiática, recorremos ao corpus textual das produções
jornalísticas produzidas por um portal jornalístico na Internet.
Benetti (2007, p. 107) compreende o “jornalismo como um lugar
de circulação e produção de sentidos”. Em Análise do Discurso,
na perspectiva dos estudos dos media, é preciso levar em
consideração as especificidades do campo jornalístico. Carvalho
(2013) afirma que notícia não é qualquer texto. A notícia deve
obedecer a padrões técnicos determinados e interesses que
perpassam a comercialização do texto, a construção histórica e
social do sujeito que narra o enunciado e até a linha editorial do
veículo em que é disseminada a informação (CARVALHO, 2013).

499
Portanto, o autor sustenta que a aplicabilidade da AD ao
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

jornalismo deve adequar os métodos para os processos de


construção da notícia. Entre os principais fatores que marcam a
especificidade do texto jornalístico para a AD está a aura
aparente da objetividade, que na prática reúne múltiplas
ideologias fruto de um sistema de produção que, entre outros
fatores, tem se preocupado com a manutenção das relações
capitalistas, sobretudo se levarmos em consideração a imprensa
tradicional (CARVALHO, 2013).

O jornalismo seria um lugar e/ou atividade de circulação


da produção de sentidos, ou seja, um discurso que se pretende:
“dialógico; polifônico; opaco; ao mesmo tempo efeito e produtor
de sentidos; elaborado segundo condições de produção e rotinas
particulares; com um contrato de leitura específico, amparado na
credibilidade de jornalistas e fontes” (BENETTI, 2006, p. 2-3).
Sendo assim, estamos o tempo todo nos rendendo ao movimento
de interpretação/reinterpretação, conforme aponta Gregolim
(2007). Para a autora, os percursos de sentidos dos textos que
circulam em uma sociedade não podem ser compreendidos em
sua totalidade, tendo em vista que o sujeito não é a origem dos
sentidos e nem o interdiscurso transparente. Desta forma, a
organização das ideias e compreensão de cada discurso
particular é “efeito da construção discursiva: o sujeito pode
interpretar apenas alguns dos fios que se destacam das teias de
sentidos que invadem o campo do real social” (GREGOLIM,
2007, p. 16).

Entre as principais diretrizes que guiaram este trabalho


está a seguinte colocação: “é preciso visualizar a estrutura do
texto, compreendendo que esta estrutura vem ‘de fora’: o texto é
decorrência de um movimento de forças que lhe é exterior e
anterior” (BENETTI, 2006, p. 111). De acordo com a autora, em
jornalismo, a materialidade linguística é o resultado de um
complexo processo que tem início fora da textualidade, e

500
podemos tomar como este espaço anterior a própria sociedade,
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

assim como a cultura, a própria ideologia, mas também o


imaginário. Essa exterioridade e anterioridade que constituem o
texto não podem dele ser apartadas (BENETTI, 2007).

O discurso, como elemento central da construção social, é


atravessado por intenções, ideologias e códigos (ORLANDI,
2009). Em AD, o analista procura compreender como o homem,
em sua capacidade de significar e significar-se, relaciona-se com
a palavra em movimento, com a prática da linguagem
(ORLANDI, 2009). Gregolim (2007) nos apresenta os media
como “o principal dispositivo discursivo por meio do qual é
construída uma ‘história do presente’ como um acontecimento
que tensiona a memória e o esquecimento” (GREGOLIM, 2007,
p.16). Para ela, a media pode nos ligar ao passado e ao presente
por meio de uma historicidade formatada.

É nesta perspectiva que Gregolim (2007) afirma que no


texto jornalístico pelo menos três sujeitos estão se relacionando,
a saber: o jornalista (autor), o leitor virtual e o leitor real. Nas
reflexões de Gregolim (2007), leitor virtual é o sujeito para quem
o jornalista escreve, ou seja, trata-se do leitor para o qual a pauta
é pensada e produzida, é o leitor que o jornalista imagina ao
produzir o discurso. O leitor real é o que lê efetivamente o texto
e também aquele que se expressa tentando retornar ao jornalista
suas impressões (carta, e-mail, mensagens). Tal como a autora
no trabalho citado, neste texto interessa-se apenas a relação
jornalista (autor) versus leitor virtual (os sujeitos discursivos),
pois o leitor real não é de nosso conhecimento.

Abordamos ainda, neste capítulo, uma ambiência


jornalística específica, que é o jornalismo produzido na web, ou
conforme conceitua Canavilhas (2014): o webjornalismo. Para o
autor, o webjornalismo remonta ao suporte técnico utilizado pela
prática jornalística, ou seja, a web. Contudo, o conceito excede a
nomenclatura, e refere-se, também, ao ciberespaço como

501
ambiente de múltiplas possibilidades interativas, logo refere-se
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famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

ao hipertexto, ou linguagem HTML, que permite uma interface


intuitiva, dinâmica e convergente. Nesta perspectiva, as
ferramentas tecnológicas não são mais apenas suporte técnico,
mas parte constituinte do fazer jornalístico: o uso de textos,
imagens, infográficos, audiovisual, fazem parte do processo de
produção do conteúdo (CANAVILHAS, 2014).

Para Canavilhas, “o texto é o conteúdo mais usado no


webjornalismo, uma realidade explicada por fatores de ordem
histórica, técnica e econômica” (2014, p. 03). Considerando o
texto jornalístico em formato digital e o potencial de
disseminação na web, partimos do pressuposto de que notícias
em ambiente online circulam com mais agilidade, podendo
atingir o maior número de pessoas do que jornais impressos
(CANAVILHAS, 2014) e, com isso, gerar repercussões
significativas na construção do liame social e na disponibilização
de temáticas e perspectivas para o debate público.

3 Percurso Metodológico

Para analisar a construção discursiva sobre famílias


homoafetivas em portal jornalístico, selecionamos o portal de
notícias do jornal O Globo. O site de notícia, além de possuir uma
interface interconectada com outros produtos da rede de
televisão Globo, o que permite fluidez na navegabilidade do
usuário, possui impacto de alcance graças à marca do jornal
impresso O Globo. O portal, assim como a equipe que produz o
conteúdo, está sediado no Rio de Janeiro, palco de movimentos
de luta pelos direitos das famílias. É na capital fluminense, por
exemplo, que está sediada a Associação Brasileira de Famílias
Homotransafetivas (Abrafh), entidade representativa que atua
no campo das lutas políticas e simbólicas.

Em pesquisa exploratória, observamos que o número de


matérias jornalísticas no site de O Globo sobre a temática

502
Famílias Homoafetivas aumentou significativamente 1 , de maio
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famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

de 2015 a maio de 2016 localizamos apenas 8 matérias, após a


autorização do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo esse
número saltou para 17. Apesar de o número não parecer, a
princípio, tão expressivo, é preciso entender que representa um
espaço significativo para quem antes não ocupava a agenda
midiática. É como se a partir da autorização do casamento civil
as famílias também tivessem autorizadas a sair do armário 2 .
Consideramos importante destacar tal informação pois ela
aponta para a relevância de analisar as matérias no momento
posterior a decisão do CNJ que autorizou o casamento civil nos
cartórios brasileiros.

O primeiro passo para o levantamento e delimitação do


corpus foi a coleta das matérias do portal O Globo 3 por meio da
busca pelas palavras-chave: “família”, “casal” e “homoafetivo”. O
período escolhido para coleta foi o dia 16 de maio de 2013 (data
em que entrou em vigor a resolução do CNJ) até o dia 16 de maio
de 2017. Localizamos 26 matérias jornalísticas, sendo 14 notícias,
3 reportagens, 6 notas, 3 artigos de opinião.

O segundo passo foi o estabelecimento de critérios para


definição dos textos jornalísticos que seriam analisados.
Observamos dois critérios gerais: os 1) textos jornalísticos
precisavam ser notícia ou reportagem e 2) apresentar a temática
das famílias homoafetivas como pauta central. Ao olharmos para
o texto jornalístico produzido em formato notícia e reportagem
entendemos que poderíamos acessar discursos plurais, com
fontes se posicionando sobre o tema e uma voz (o

1 De um modo geral, as matérias versavam sobre possibilidade de adoção.


2 O armário constitui a experiência vivenciada por todo homossexual. É a
configuração de um regime excludente que sustenta na “anormalidade” da
homossexualidade um sistema de opressões sexistas. Portanto, ser
homossexual deveria ser motivo de vergonha, de permanecer escondido, de
nunca se revelar sob a possibilidade de ser rechaçado como indivíduo. Sair do
armário seria romper com esse sistema e se firmar enquanto sujeito.
3 Disponível em:
<http://oglobo.globo.com/busca/?q=fam%C3%ADlia+casal+homoafetivo>.
Acesso em: 09 jun 2017.

503
jornalista/repórter) discorrendo sobre a pauta fornecendo dados
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famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

e outros subsídios para construção de sentidos sem que,


necessariamente, fossem texto de opinião.

Os textos foram analisados a partir da primeira etapa da


Análise do Discurso (ORLANDI, 2009). Buscou-se nos textos do
site encontrar pistas e rastros discursivos que nos apontassem
para as intenções, as ideologias e os atravessamentos que os
textos jornalísticos apresentavam sobre a temática das famílias
homoafetivas.

Como movimentos analíticos, tomamos as indicações de


Benetti (2007, p. 111) segundo a qual “o primeiro passo é
enxergar a existência (apenas operacional e pragmática) de duas
camadas: a primeira, mais visível, é a camada discursiva; a
segunda, só evidente quando aplicamos o método, é a camada
ideológica”. Em seguida, iniciamos o movimento de identificação
discursiva que nos apontou categorias analíticas gerais capazes
de fornecer subsídios para responder nossa pergunta. Gregolim
(2007) argumenta que os textos da mídia não nos oferecem
realidade, contudo, trata-se de uma construção que possibilita ao
leitor produzir outras formas simbólicas que representam a
relação que possui com a realidade dita concreta.

Realizamos, então, a análise dos sentidos do discurso


jornalístico, baseados em Benetti (2007). A partir desse
movimento, foi possível identificar as Formações Discursivas
(FDs), ou categorias analíticas, que subsidiaram a análise:

Há muitos modos de organizar FDs, e cada


pesquisador deve encontrar seu modo particular de
trabalho. [...] evidentemente, a análise sempre será
feita em torno de um problema de pesquisa, e são os
sentidos nucleares referentes a este problema de
pesquisa que o analista irá mapear. O que fazemos é
localizar as marcas discursivas do sentido rastreado,
ressaltando as que o presentam de modo mais
significativo. Depois de identificar os principais
sentidos e reuni-los em torno de formações
discursivas mínimas, o pesquisador deve buscar fora
do âmbito do texto analisado, a constituição dos

504
discursos ‘outros’ que atravessam o discurso
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

jornalístico (BENETTI, 2007, p. 112-113).

Tomando as reflexões acima como pressuposto, e na


perspectiva do texto jornalístico publicado em ambiente digital,
foi elaborada uma ficha de levantamento de informações
aplicada às matérias. Esta, auxiliou na operacionalização da
análise dos textos e nos deu elementos para identificar as FDs.
Utilizamos técnicas de análise de conteúdo, inspirados em Cal
(2016), para realizar uma pesquisa inicial a respeito da cobertura
sobre famílias homoafetivas. Classificamos todas as matérias a
partir das seguintes categorias: gênero jornalístico; editoria;
caracterização das fontes; o posicionamento sobre o
reconhecimento das famílias homoafetivas; de que forma a
família homoafetiva é abordada na matéria; como esses discursos
são apresentados no texto; e o posicionamento da família
homoafetiva na matéria.

Após desvelar a camada mais visível, passamos para outro


momento da análise que é o de entender os sentidos que os textos
jornalísticos reverberam sobre as famílias homoafetivas e para
isso fomos em busca das Formações Discursivas: “a formação
discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica
dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura
sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”
(ORLANDI, 2009, p. 43). Na perspectiva da AD, as palavras
possuem múltiplos sentidos e não apenas um que emana delas
mesmas, por isso, Orlandi (2009) afirma que os sentidos de uma
palavra derivam das formações discursivas em que elas estão
inscritas.

Os sentidos de determinado texto (leia-se como texto toda


materialidade dotada de significados, sejam imagens, textos
escritos, sons) são uns e não outros justamente em virtude da
formação discursiva em que está inserida. Orlandi (2009) afirma

505
que as FD representam no discurso as formações ideológicas e o
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

sentido será determinado ideologicamente.

O segundo movimento analítico foi o olhar meticuloso


para os textos e para as informações obtidas a partir do primeiro
movimento, com o intuito de responder nossa pergunta. A
aplicação da ficha abaixo em cada uma das matérias nos permitiu
olhar para o conjunto dos textos e estabelecer nossa análise e as
reflexões que apresentamos neste trabalho e que podem ser
acompanhadas no tópico abaixo.

Quadro 1: Elementos para análise de discurso


Análise de discurso em matérias jornalísticas
O que observar nas matérias? O que encontramos?
Eixos O que as matérias
argumentativos falam sobre as A partir de que
norteadores da famílias Como falam? formações
análise homoafetivas? discursivas?

1) Famílias
homoafetivas são
retratadas como um
núcleo não-natural; 1) Diferenças
1) Reprodução de 2) Reforça (hetero versus
Buscamos
preconceitos estereótipos sobre homo);
tematizar as
homossexuais 2) Privilégios.
formas de
(promíscuos;
abordagem das
irresponsáveis;
famílias
anormais);
homoafetivas nas
1) Igualdade de
matérias. Nesse
direitos perante o
movimento
2) Esforço no sentido estado democrático 1) Resistência/
analítico
de provocar reflexão brasileiro; Luta por direitos;
elencamos as
sobre os direitos das 2) Recorre a lutas 2) Igualdade.
principais
famílias homoafetivas individuais para
sequências
destacar conquistas
discursivas
coletivas.
(trechos do texto
1) Casais (famílias) são
que aponte a
3) Apresentação das retratados a partir da
origem da FD).
famílias com foco nas relação de amor que
relações amorosas e nutrem entre si; 1) Amor/afeto.
afetivas (narrativas 2) Foca no amor para
românticas) retratar lutas
individuais.
Fonte: elaboração dos autores

506
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

Neste segundo momento, nosso recorte reuniu as


matérias em grupos nomeados de acordo com os eixos analíticos
apresentados na primeira coluna do quadro acima. Com a
inserção dos materiais nos eixos, observamos que Formações
Discursivas cada uma delas apresentava. É essa discussão que
abordaremos na próxima seção.

4 Famílias homoafetivas no portal O Globo

Nossa busca por elucidar os sentidos nos discursos


reverberados pelo portal O Globo sobre as famílias homoafetivas
apresentou alguns desafios. O primeiro deles era compreender a
sistemática da notícia jornalística e as tessituras textuais que nos
eram apresentadas. Analisamos 17 materiais, dos quais 14 eram
notícias e três reportagens.

A notícia traz à tona um acontecimento que ganha espaço


na mídia e é publicado. Esses acontecimentos atraem o olhar do
jornalismo por serem situações que rompem com o cotidiano.
Por outro lado, as reportagens exigem maior espaço para
publicação, esforço do jornalista na busca por fontes plurais,
dados contextualizados, ampliação da temática principal para
além de um fato e um texto mais elaborado. Se levarmos isso em
consideração, e avaliarmos que temos apenas 3 reportagens,
temos um indicador da relevância da temática para o site. Os
dados apontam que, para abordar o tema, o site se preocupa mais
em cumprir a demanda noticiosa, ou seja, está mais preocupado
em apresentar o inusitado dos fatos (notícias) do que em
aprofundar o debate por meio de reportagens mais densas.

Em relação à divisão por editoria, as matérias analisadas


foram publicadas, sobretudo, em Comportamento (7
ocorrências) e Cidades/Gerais (7): a primeira é onde aparecem as
únicas três reportagens e a segunda editoria é onde comumente
encontramos notícias do cotidiano. Apenas três matérias foram

507
publicadas fora das editorias citadas acima. Duas foram
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Media e produção de sentidos: as

publicadas na editoria de política: matéria “Casamento coletivo


reúne 130 casais homoafetivos no Rio” discorre sobre evento
realizado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio que celebrou
casamento coletivo logo após decisão do CNJ; e a matéria “’Jesus
também tinha 2 pais’, diz cartaz em defesa da adoção por casais
gays” discorre sobre polêmico cartaz afixado nas ruas de Portugal
como parte de campanha para regulamentação de lei sobre
adoção por casais homossexuais. E uma matéria foi publicada na
editoria de cultura, intitulada “Pela primeira vez, Nickelodeon
apresenta desenho com casal gay”, que noticiou a inserção de um
casal gay em trama infantil.

Quanto às fontes consultadas, encontramos 37 menções.


Dessas, localizamos representantes da política institucional (8) e
atores da sociedade civil organizada (4). Além desses, 19 foram
identificadas como LGBT e integrantes de famílias homoafetivas.
Apesar deste último número ser maior que o de matérias
analisadas, não significa afirmar que há presença de
representantes LGBT em todos os textos, pelo contrário, há o
silenciamento das vozes da comunidade em matérias com temas
delicados, como decisões jurídicas que impactam diretamente a
vida das famílias homoafetivas. Apenas 9 matérias apresentam
as 19 vozes de LGBT.

A partir dessas categorizações iniciais, localizamos as


seguintes Formações discursivas: 1) Diferenças (heteroXhomo),
em que os sentidos reverberados pelo portal reforçam a ideia de
diferenciação entre sujeitos heterossexuais e homossexuais em
que a norma é a heterossexualidade; 2) Privilégios, reúne
sentidos que dizem respeito aos direitos conquistados pelas
populações LGBT como busca por “mais direitos” do que
heterossexuais; 3) Resistência/Luta por direitos, que apresenta
a luta política por reconhecimento de suas práticas como
legítimas, além de reforçar que há resistência diante dos ataques

508
conservadores; 4) Igualdade, que reúne discursos que colocam
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famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

no mesmo lugar de humanos, logo detentores de todos os direitos


e deveres, sujeitos homossexuais; 5) Amor/Afeto, reúne sentidos
com forte apelo ao caráter emotivo das relações homoafetivas,
em que o afeto aparece como sólido elemento de afirmação das
identidades homossexuais. A análise que aprofundaremos nos
próximos tópicos está centrada nos eixos argumentativos que
abordamos no Quadro 2.

4.1 Reprodução de preconceitos

Neste eixo norteador reunimos matérias que apresentam


discursos preconceituosos, discriminatórios. Nenhuma delas foi
explicitamente homofóbica, ou utilizou léxicos que visibilizem
tais sentidos, contudo, ao olharmos para a dimensão ideológica e
para as formações discursivas encontradas nelas, percebemos
que esses discursos se manifestam. Neste eixo temos duas
matérias. Evidenciamos que nestes dois textos nenhum
homossexual é ouvido e a construção do texto se dá a partir de
outras fontes.

As matérias possuem os seguintes títulos: 1) “Jesus


também tinha 2 pais”, diz cartaz em defesa da adoção por casais
gays (O GLOBO, 2016a); e 2) Justiça Federal julgará, no Rio, ação
de casal homoafetivo; uma das mulheres morreu em 2008 (O
GLOBO, 2015a). Ambas são notícias. Percebemos a
predominância de duas formações discursivas: Diferenças
(hetero versus homo); Privilégios.

A FD da diferença aparece na forma como são reforçadas


as lutas dos homossexuais para terem seus direitos garantidos,
porém sempre optando por discursos que apontam para a
normalidade da heterossexualidade: não são como todos as
outras pessoas normais, são diferentes, nos dizem nas
entrelinhas as matérias. O que é reforçado a partir de
comparações sutis com direitos heterossexuais: gays não são
509
iguais e devem ser tratados como diferentes nos mais diversos
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famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

âmbitos.

A FD privilégios dialoga com a anterior, e se refere ao que


está no nível mais profundo do texto e pretendem fazer acreditar
que os homossexuais buscam “mais direitos”. Ora, não seriam os
mesmos direitos? Porém, enquanto uns (héteros) usufruem
livremente, outros (homos) precisam em alguns casos lutar na
justiça para serem amparados.

Na matéria “Justiça Federal julgará, no Rio, ação de casal


homoafetivo; uma das mulheres morreu em 2008” (O GLOBO,
2015a), em um trecho, aparece: “Ela, que foi casada por 30 anos
e teve três filhos, alega ter vivido duas décadas com Sônia, que
morreu em 2008. Desde 2009, Laís luta na Justiça para receber
a pensão da analista” (O GLOBO, 2015a). O uso da expressão
“alega” promove a dúvida e, por ser uma palavra muito comum
no ambiente jurídico, aponta para a judicialização da questão,
logo reforça a questão da diferenciação de direitos: elas não são
como todos os demais e precisa recorrer à meios legais para
garantir direitos. Mesmo que o jornalismo trabalhe com as
possibilidades de verdade nas falas de todos os lados envolvidos,
percebemos que nesse trecho há intenção de promover dúvidas.
O término da segunda oração, inclusive, nos diz muito sobre
como a matéria foi escrita, pois ao utilizar “receber a pensão da
analista” e não da “companheira” mostra que há desinteresse em
compreender a realidade das lésbicas. Pensemos nas
possibilidades de dizer a mesma coisa e veremos que há como
não expor a mulher de forma menos constrangedora. Como foi
dito, aponta para uma necessidade estritamente financeira.

No caso da “’Jesus também tinha 2 pais’, diz cartaz em


defesa da adoção por casais gays sobre o cartaz que envolve
religião e a causa gay” (O GLOBO, 2016a), percebemos que há
um discurso sobre os privilégios que os homossexuais estariam
pleiteando ao terem a pretensão de adotar uma criança. Aqui,

510
aparece a FD privilégios, pois, ainda que no primeiro movimento
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

encontremos um texto aparentemente alinhado com o debate dos


direitos humanos, há marcas que mostram a ideologia
dominante heterossexista: “Um cartaz em defesa da adoção por
casais homoafetivos está provocando polêmica em Portugal” (O
GLOBO, 2016a), inicia o texto. A polêmica se dá pelo apelo
religioso no cartaz, mas também por despertar a ira de quem
considera homossexuais seres abjetos que estão em busca de
privilégios legais para regulamentar suas práticas. “Sandra
reconhece que o pôster deve causar polêmica no país, mas,
segundo ela, todo o debate é bem-vindo, pois fomenta a discussão
e reflexão sobre o tema” (O GLOBO, 2016a), neste trecho não há
aprofundamento da matéria sobre o que significaria esse debate
para a sociedade. E a exclusão de qualquer voz de homossexuais,
ou instituições representativas reiteram a falta de compromisso
com esse debate.

4.2 Esforço no sentido de provocar reflexão sobre os direitos das


famílias homoafetivas

Nesse eixo argumentativo, foram reunidos 11 materiais


jornalísticos, dos quais 2 eram reportagens e 9 notícias, que
abordavam a temática das famílias homoafetivas a partir de uma
perspectiva humanista, com atenção aos direitos individuais e
coletivos e sob forte apelo da igualdade. Em quatro matérias as
famílias homoafetivas se posicionam como sujeitos políticos,
dotados de direitos e utilizando argumentos ancorados em
conhecimentos prévios sobre a causa LGBT; outras quatro
matérias não apresentam posicionamento famílias
homoafetivas; em uma matéria a família se posiciona como
diferente; em uma mesma matéria temos uma família se
posicionando ao mesmo tempo como vítima e resistente.
Considerando a centralidade do eixo argumentativo
(posicionamento voltado para garantia de direitos, incluindo

511
aqui o direito à vida) é natural que aparecesse o posicionamento
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

sujeito político como o mais recorrente, ainda que o número de


ocorrências seja o mesmo das matérias em que as famílias não
são ouvidas.

A FD resistência/luta por direitos reúne discursos que


emergem sentidos sobre a luta protagonizada por sujeitos LGBT.
As sequências discursivas reunidas em torno dessa FD
apresentam indivíduos empoderados, cientes de seus direitos
como cidadãos e que lutam para garanti-los diante de uma
parcela conservadora da sociedade que insiste em demonizar
suas práticas. Além das falas dos personagens das matérias
apontarem para essa resistência, percebemos esforço dos
jornalistas em reforçar esse discurso. Vejamos no trecho da fala
de Raquel Castro, presidente da Comissão de Direito
Homoafetivo da OAB-RJ, personagem da matéria “Comissão do
Senado aprova união estável entre pessoas do mesmo sexo” (O
GLOBO, 2017a), como essa FD aparece: “A lacuna legal foi
preenchida. E vemos como as pessoas já não entendem mais a
família pelo tripé formado por pai, mãe e filho. Família é
construída por afeto” (O GLOBO, 2017a). Neste mesmo texto o
repórter diz:

Hoje, o Código Civil considera como entidade


familiar “a união estável entre o homem e a mulher”.
Pelo projeto, esta definição muda para “união estável
entre duas pessoas”. Já o conceito de casamento
como a vontade de estabelecer um vínculo conjugal
“entre homem e mulher” muda para “entre duas
pessoas” (O GLOBO, 2017a).

Ao dar espaço para a explicação sobre como será ampliada


a noção de família no Código Civil a partir de comparações entre
“como é” e “como fica” levanta a reflexão: porque eu deveria ser
contra essa modificação se a minha família não será afetada?
Além disso, percebemos que a estrutura deste trecho esclarece
dúvidas sobre o como ficam os casamentos após a mudança.

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Seguindo a estrutura narrativa jornalística, o texto marca
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

a presença dos dois lados: direitos humanos X fundamentalistas


conservadores. Que fica claro no intertítulo “Deputados
conservadores protestam”. É inegável o esforço da notícia em
retratar os avanços que a aprovação desse projeto de lei
representa, sobretudo se olharmos para o espaço concedido às
vozes de representantes dos direitos da população LGBT. Não
encontramos rastros de preconceito velado ou uso de expressões
homofóbicas.

A defesa desse posicionamento aparece nas vozes de


personagens que pertencem a diversas esferas do espectro social.
Na matéria (O GLOBO, 2017a) a família é apresentada como um
núcleo unido pelo afeto digno de ter seus direitos garantidos. Os
homossexuais têm o direito ao casamento por serem agentes
políticos, cidadãos que o estado deve proteger. Como sujeitos
políticos que são, eles inserem no mesmo debate outras
bandeiras que querem ver avançar no legislativo brasileiro, como
a criminalização da homofobia, evidente na fala de Carlos
Tufvesson, um dos personagens, identificado como estilista e
militante.

A solução do casamento já foi resolvida pelo


Judiciário, mas a homofobia ainda é ignorada pelo
Congresso — critica. — Um homossexual é morto a
cada 23 horas. Este número cresce continuadamente
há dez anos, mas é tratado como uma banalidade,
como se estas vítimas estivessem à margem da
cidadania. São crimes hediondos, embora não sejam
tratados desta maneira (O GLOBO, 2017a).

Levantar esse debate na matéria mostra que o casamento


é apenas uma das pautas da luta por direitos iguais travada pelos
homossexuais. Seguindo a estrutura narrativa jornalística, o
texto marca a presença dos dois lados: direitos humanos X
fundamentalistas conservadores. O que fica claro no intertítulo
“Deputados conservadores protestam”. É inegável o esforço da
notícia em retratar os avanços que a aprovação desse projeto de

513
lei representa, sobretudo se olharmos para o espaço concedido às
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

vozes de representantes dos direitos da população LGBT, temos


quatro fontes desse tipo. Não encontramos rastros de
preconceito velado ou uso de expressões homofóbicas.

Outras sequências discursivas para a FD resistência/Luta


por direitos aparecem nos textos deste eixo argumentativo, como
na matéria “Casal gay poderá pedir pensão em caso de separação,
decide STJ” (O GLOBO, 2015b):

A 4.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ)


reconheceu, ontem, por unanimidade, o direito de
um dos parceiros de uma união gay pedir pensão
alimentícia após a separação. O ministro Luis Felipe
Salomão, relator da decisão, afirmou que “não há
como excluir o casal homossexual da lei” e “não se
pode analisar esse caso sob a ótica do preconceito (O
GLOBO, 2015b).

Destacar a decisão do relator logo no lead já aponta para


a postura da matéria de evocar a resistência da comunidade
LGBT que luta. O uso da expressão “excluir” e “pensão
alimentícia”, denotam o compromisso da matéria em apresentar
o caso sob a ótica dos direitos humanos.

Sabe parir? Aquele ato natural realizado sem grandes


turbulências por milhares de mulheres diariamente? Algumas
delas, como as lésbicas casadas, precisam se preocupar com
questões que outras não precisam, como a certidão de
nascimento do filho, algo simples e natural do pós-parto. Para
Joana, personagem da matéria “Maternidade da Zona Sul se
recusa a registrar nome das mães em declaração de nascimento”
(O GLOBO, 2016b) foi um calvário encontrar maternidades que
aceitassem registrar o filho em nome dela e da “mulher”,
expressão aqui usada para apresentar a esposa dela.

Grávida de seis meses por meio de inseminação


artificial, a designer Joanna Chigres e sua mulher
planejavam ter o bebê na Casa de Saúde São José, no
Humaitá — mas foram surpreendidas com a notícia
de que o hospital não registra o nome das duas mães
na “Declaração de Nascido Vivo”. “Estamos
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impossibilitados de emitir o documento com o nome
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Media e produção de sentidos: as

das duas mães sem que haja uma determinação


judicial”, informou a maternidade, por e-mail (O
GLOBO, 2016b).

Apesar do discurso da família ser categorizado como


“vítima”, já que o uso de expressões como: “impossibilitado”,
“falta de boa vontade”, entre outras utilizadas pela mãe em sua
fala na matéria apontarem que ela está relatando um caso em que
foi vítima de um desrespeito, de uma sanção moral pelas
instituições de saúde, há um esforço da matéria em apresentar os
direitos civis das duas mulheres de uma forma positiva.

Em outra matéria, intitulada “Igrejas inclusivas acolhem


gays, religião e homossexualidade” (O GLOBO, 2013) aparecem
não como uma dicotomia, mas uma complementaridade. É clara
a proposta da matéria em naturalizar a relação entre
homossexuais e o Deus cristão. Para isso apresenta três
denominações de igrejas evangélicas comandadas por
homossexuais que são inclusivas. Para isso, se apoia na história
de vida dos fundadores e no acolhimento de homossexuais que
chegam para se reencontrar com a fé. A resistência aparece no
fato de permanecerem fiéis às suas crenças mesmo quando todos
dizem que a bíblia condena a homossexualidade.

Outra matéria, intitulada “Casal gay consegue guarda de


filha gerada por barriga de aluguel” (O GLOBO, 2016c),
apresenta a saga de uma família homoafetiva em busca de firmar
descendência por meio da barriga de aluguel fora do Brasil. Na
tentativa de garantir um filho, dois homens recorrem à um país
de tradição conservadora, mas com uma legislação permissiva
quanto à possibilidade de mulheres gerarem bebês, a partir da
fertilização in vitro, para casais homossexuais. O texto é taxativo
ao apontar a genitora como a causadora de todo o transtorno. O
uso da sentença “Após longa batalha judicial”, na abertura do
texto o veículo dá o tom de toda a notícia. Por desenrolar a
história do casal tecendo a narrativa que mostra a luta para

515
chegar ao final feliz, a notícia enaltece a esperança dos pais que
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

mesmo distantes lutam para unirem suas famílias novamente, já


que um dos pais estava em outro país com um dos filhos
aguardando o companheiro que permanecia na Tailândia
enquanto a justiça julgava o caso.

Ao mesmo tempo que apresenta a trajetória de resistência


e luta para garantir a união da família, com foco na resistência do
casal, a notícia mostra, também, que o casal é vítima de um
sistema jurídico que os impele para situações extremas para
garantirem a gestação de um filho. Talvez, com leis mais sensíveis
aos casais homoafetivos e as formas de reprodução, não fosse
necessário realizar esse tipo de procedimento tão longe.

Na matéria “Caminhada domingo pede alteração do


Estatuto da Família” (O GLOBO, 2015c), o foco da notícia é o
direito à adoção. A matéria aborda a família como um organismo
vivo da sociedade e as homoafetivas, pelos constantes
desrespeitos, se unem para lutar por seus direitos e proclamar
publicamente que querem ter o direito de adotar e constituir uma
família.

A FD igualdade reúne sequências discursivas com teor de


afirmação das igualdades entre todos os seres humanos. A
reportagem “IBGE: Casamentos homoafetivos dobram em um
ano em Niterói” (O GLOBO, 2015d), por meio de estatísticas do
IBGE, apresenta a história de amor e casamento de dois casais de
gays e lésbicas. A história é para contextualizar o aumento do
número de uniões desse tipo ocorridas em Niterói (RJ). “A
igualdade no direito ao casamento empolgou desde aqueles que
já dividem a rotina há décadas a jovens casais” (O GLOBO,
2015d), a sentença retirada do texto dá o tom à matéria que se
preocupa em mostrar que cada vez mais os homossexuais estão
contraindo o matrimônio, apontando que, se antes isso não
ocorria, é de fato porque não era possível e não que eles não
quisessem. As famílias são apresentadas como a união entre duas

516
pessoas que se amam. A explicação de um dos personagens sobre
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
Media e produção de sentidos: as

o uso da palavra marido aparece como gatilho para reafirmar o


status matrimonial dos rapazes e aparece apenas nessa matéria
entre todas as analisadas.

Morador de Icaraí, o casal se conheceu ainda na


década de 1980, quando era vizinho na rua da praia.
O casamento foi em junho, para cerca de 150 pessoas,
no Iate Clube Brasileiro. Para Laffayete, a decisão
também teve cunho político. - Somos pessoas
conhecidas no meio em que convivemos. Pertenço a
uma comunidade acadêmica e tinha uma obrigação
política e social a cumprir — considera Laffayete, que
antes era tratado por Ricardo, em conversas com
terceiros, como “companheiro”. Hoje, Ricardo diz
que o casamento mudou isso: - Agora só o chamo de
marido (O GLOBO, 2015d).

Dotados de informações e cientes de seu papel perante à


sociedade e sobre a comunidade a qual pertencem, os casais que
aparecem na matéria reproduzem discursos políticos de
engajamento e combate à discriminação.

Na matéria “Defina família, inocente” (O GLOBO, 2015e),


cujo subtítulo é enfático “Sínodo dos Bispos abre caminho para
tolerância a modelos de união consagrados no século XX. Um
deles é o casamento gay”, versa sobre uma possível abertura da
Igreja Católica ao acolhimento das diversas modalidades de
família que não apenas a tradicional. Esse indicativo aparece
como um sopro de esperança para os que creem na Igreja
Católica como propulsora de mudanças sociais. As famílias
homoafetivas aparecem no discurso como uma das modalidades
que deveriam ser abraçadas pela igreja e assim terem mais uma
entidade lutando contra a discriminação, pois seus fiéis
passariam a identifica-los como iguais. O texto é ingênuo e
desconsidera a campanha homofóbica secular que as igrejas
cristãs desenvolveram, sobretudo quando afirma que “Em vez da
condenação, o texto propõe conciliação e acolhimento”.

Em outro texto, com o título “Assegurado a criança o


direito de ter duas mães e um pai no registro civil” (O GLOBO,

517
2015f), a FD igualdade também aparece. O uso da palavra
Elias Santos Serejo e Danila Gentil Rodriguez Cal
famílias homoafetivas no portal o globo
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“assegurado” remete ao direito que existe, mas não é cumprido.


Logo, reconhece a igualdade de todos perante à lei. O foco da
matéria é na decisão da juíza. Uma decisão embasada, conforme
frisa constantemente a matéria, para dar credibilidade e
sustentar o tom de direito à igualdade entre todos. A matéria
cumpre seu papel de apresentar com responsabilidade e rigor,
apesar de não ouvir famílias homoafetivas para repercutir o caso.

4.3 Apresentação das famílias com foco nas relações amorosas e


afetivas (narrativas românticas)

Temos quatro matérias reunidas neste eixo


argumentativo. Tratam-se de textos cujo a narrativa jornalística
busca contextualizar a família homoafetiva a partir de suas
relações de afetividades. É interessante notar que neste eixo,
apenas um material não apresenta fala de representantes de
famílias homoafetivas. Afinal, para contar a história de um casal
com verossimilhança é fundamental ouvir as partes.

As narrativas em que identificamos a FD amor/afeto


possuem um texto mais fluido, elaborado com mais cuidado.
Como na matéria “O filho que será neto” (O GLOBO, 2016d):
para garantir descendência (filho) dois homens recorrem à
fertilização in vitro. O mote para a matéria, ou seja, o que foge da
“normalidade”, é a dona da barriga escolhida para gestar o bebê,
a mãe de um deles. O título já chama atenção e sugere o caráter
sensacionalista, porém, apesar da manchete, a matéria aborda o
tema com muita cautela e cuidado. O texto se preocupa em
apresentar a história do casal, trazendo elementos narrativos
como uso de flashback, para só então introduzir a notícia.

A estranheza com que a matéria trata a paternidade não se


dá pelo fato de serem homossexuais, mas pela barriga de aluguel
ser a mãe de um deles, inclusive isso é ratificado com a seguinte
colocação: “A bela história com final feliz poderia ser só mais
518
uma, de um casal homoafetivo, não fosse... a barriga onde Ezra
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foi gestado: a da mãe de Jefferson” (O GLOBO, 2016d).


Percebemos que há uma naturalidade no trato com o casal. A
homossexualidade só aparece no lead do texto, quando apresenta
a história dos dois e depois em uma contextualização sobre o fato
de morarem fora do Brasil, quando entra em cena a homofobia
como fator da mudança.

Encontramos os discursos sobre amor em dois momentos


no texto, na trajetória de vida do casal e no formato da gestação
do bebê pela mãe de um deles. Logo, são reforçados dois
marcadores nessa relação entre o casal, a homossexualidade,
pela qual inclusive foram alvo de violência no Brasil, e o formato
da família:

Mãe de outros dois filhos, ela já havia conversado


com a filha que emprestaria a barriga para ela, caso
fosse necessário. - Quem poderia amar mais um bebê
do que os avós? Eu tinha medo da prima se apegar ao
neném e, depois, não querer entregá-lo. Meu filho
casou e estava à procura de alguém. Eu disse que
carregaria o filho deles. Quando o Ezra nascer, vou
tratá-lo como meu neto. A responsabilidade é toda
dos dois, que são pais da criança - diz Quitéria (O
GLOBO, 2016d).

O amor, como formação discursiva, ressalta a importância


do afeto nas trocas entre a família homoafetiva e os demais
sujeitos que os cercam, mas também reúne sentidos sobre a
normalidade das relações com base no amor. Como o que vemos
na matéria intitulada “Pela primeira vez, Nickelodeon apresenta
desenho com casal gay” (O GLOBO, 2016e). A notícia veiculada
aponta a inserção de famílias homoafetivas em desenhos
animados como uma mudança dos novos tempos com foco no
ineditismo do fato. Não são ouvidos personagens e o texto
funciona como chamada para o vídeo indexado. O texto mostra
que apesar do alarde midiático em cima do 1º casal gay da
Nickelodeon, na trama não houve essa efusividade toda,

519
remetendo ao caráter “normal” com o qual a família foi
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apresentada no desenho que é baseado no amor.

Em outra matéria, dessa vez sobre o primeiro prefeito


abertamente gay a casar no Brasil intitulada “Prefeito de Lins, em
SP, se casa com companheiro com quem vive há 13 anos” (O
GLOBO, 2017), o foco também é no amor do casal, a matéria
apresenta a família formada a partir do matrimônio dos dois e a
resistência em se afirmar como um casal, sendo que um deles é
prefeito em uma cidade do interior de São Paulo. O amor aparece
nos discursos que apontam como eles venceram vários
obstáculos para ficarem juntos.

O pedido de casamento aconteceu no meio de uma


boate, após as eleições do ano passado. - Como toda
relação a gente vive de altos e baixos. Havia picos de
paixão intensa e às vezes pensávamos que tudo ia
acabar. Depois das eleições do ano passado, tivemos
uma espécie de reencontro e, no meio da balada,
perguntei: “Quer casar comigo?” – conta Souza, que
ouviu “sim” de imediato (O GLOBO, 2017).

A escolha do repórter em contar como foi o pedido de


casamento enaltece a prática amorosa e envolve o leitor na
perspectiva da história de amor do casal. É essa mesma áurea que
reveste o texto intitulado “Mulheres são maioria entre os 3,7 mil
casamentos gay no Brasil, diz IBGE” (O GLOBO, 2014). Tendo
como pano de fundo dados estatísticos, são apresentadas a
história de amor de um casal lésbico. Os dados são entremeados
pela fala de uma especialista, que explica como foram coletados
e o que representa essa amostragem. As famílias homoafetivas
aparecem como parte significativa da sociedade brasileira que
precisa receber atenção do governo e colocada ao lado de outros
formatos para mostrar a pluralidade das formações familiares no
Brasil.

5 Considerações finais

520
Sobre sentidos reverberados pela mídia acerca de famílias
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homoefetivas, com foco no portal O Globo, nossa análise aponta


que o portal tende a desenvolver narrativas que valorizem a
conquista de direitos da população LGBT, inclusive
apresentando histórias de amor entre pessoas do mesmo sexo. A
construção dos textos jornalísticos, em sua maioria, passa por
uma tentativa de elucidar, esclarecer o público sobre a
necessidade de garantir igualdade e justiça social para todos. Há
um claro esforço em mostrar que assegurar direitos para os
casais homoafetivos não é dar mais direitos a eles, e sim garantir
que tenham plenitude cidadã perante o estado democrático
brasileiro.

Embora percebamos que esses discursos surgem, na


maioria das vezes, da construção jornalística ao invés das falas
das famílias – lembremos que observamos que há certo
silenciamento das famílias nas matérias já que muitas delas não
são ouvidas – isso aponta que os próprios profissionais que
desenvolvem essas narrativas se preocupam com os sentidos que
vão reverberar na sociedade.

No site O Globo, o sentido geral construído pelas matérias


é o de que família é uma construção de afeto, de amor. Há ainda
a ideia de que a luta por igualdade e direitos individuais e
coletivos deve passar pela judicialização de questões que para as
pessoas heterossexuais já estão consolidadas, mas que para os
sujeitos homoafetivos ainda são motivos de lutas políticas. Esses
sentidos fazem emergir a resistência e tornam a luta por
igualdade um importante valor-notícia, que gera visibilidade às
famílias homoafetivas.

 Retorne ao sumário

521
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reconhecimento das famílias homoafetivas. 2018. 175 f.
Dissertação (Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura)
– Universidade da Amazônia, Belém, Pará.

ZAMBRANO, Elizabeth. Parentalidades “impensáveis”:


Pais/mães homossexuais, travestis e transexuais. Horizontes
Antropológicos, jul/dez, ano 12, n. 26, 123-147, dez. 2006.
Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
71832006000200006> Acesso em: 03 jun. 2017.

525
Chalini Torquato Gonçalves Fernanda Ariane Silva
de Barros Carrera
Professora Adjunta da Escola de Professora da Escola de
Comunicação/UFRJ. Doutora e Comunicação/UFRJ. Professora
mestre pelo PosCom/UFBA. permanente do Programa de Pós-
Graduada em Rádio e TV pela graduação em Estudos da
UFS. Baiana de nascimento e Mídia/UFRN. Doutora em
sergipana de coração. Integrante Comunicação pelo PPgCom/UFF
do Grupo de Pesquisa em e mestre pelo PosCom/UFBA.
Políticas e Economia Política da Graduada em Publicidade e
Informação e da Comunicação e Propaganda pela UCSal. Pesquisa
do Grupo de Pesquisas "Formas ciberpublicidade, diversidade e
de Habitar o Presente" sociabilidades digitais. E-
(ECO/EBA/UFRJ). Pesquisa mail: fernanda.carrera@eco.ufrj.br
Mídia, diversidade e cidadania. e-
mail:chalini.torquato@eco.ufrj.br

Aluízio Ferreira de Lima Ana Clara Gomes Costa


Professor Associado I do Doutoranda em Comunicação e
Departamento de Psicologia da Cultura pela Escola de
Universidade Federal do Ceará Comunicação da Universidade
(UFC), credenciado como Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Professor Permanente (M/D) do é mestre em Comunicação pela
Programa de Pós-Graduação em Universidade Federal de Goiás
Psicologia e do Mestrado (UFG), especialista em
Profissional em Saúde da Família Patrimônio, Direitos Culturais e
UFC/FIOCRUZ/RENASF). Cidadania e graduada em
Doutor em Psicologia Social pela Jornalismo pela mesma
Pontifícia Universidade Católica universidade. E-mail:
de São Paulo (PUC-SP). E-mail: anaclagc@hotmail.com.
aluisiolima@hotmail.com.

526
Ariane Diniz Holzbach área de ficção seriada, narrativas
transmídias, mídias digitais,
Doutora em Comunicação (UFF)
monitoramento e controvérsias.
com pós-doutorado em História
(UERJ). Professora de Estudos de
Cristiano Henrique Ribeiro
Mídia e do Programa de Pós-
graduação em Comunicação da dos Santos
UFF. E-mail: arianeh@id.uff.br Graduado em História, mestre e
doutor em Comunicação e Cultura
Bruna Rocha Silveira pela ECO / UFRJ. Professor
adjunto da Escola de
Pós doutoranda em Educação na
Comunicação da UFRJ, chefiando
linha de Estudos Culturais em
o Departamento de Métodos e
Educação (UFRGS). Doutora em
Áreas Conexas (DMAC).
Educação (UFRGS). Mestre em
Pesquisador do Laboratório de
Comunicação Social (PUCRS).
Estudos da Comunicação
Possui graduação em
Comunicação Social com Comunitária (LECC-CNPq / ECO
UFRJ). Atua nas áreas de
Habilitação em Publicidade e
pesquisa qualitativa e
Propaganda. Realiza pesquisas na
quantitativa, estudos de consumo,
área de Estudos Culturais, com
opinião pública, avaliação de
ênfase nos Estudos sobre
Deficiência e narrativas peças publicitárias, veículos de
comunicação e campanhas
autobiográficas, com interesse nos
políticas, desde 1992.
discursos e representações
midiáticas das diferenças. E-mail:
Cristina Brahm Cassel
bruna.rochasilveira@gmail.com.
Brisolara
Camille Nascimento da Silva Mestranda em Comunicação e
Linguagens no PPGCom/UTP.
Mestra em Ciências da
Membro do GP Interações
Comunicação, pelo Programa de
Comunicacionais, Imagens e
Pós-Graduação em Comunicação,
Culturas Digitais (Incom UTP).
Cultura e Amazônia, da
Possui graduação em Psicologia
Universidade Federal do Pará
pela Universidade Católica de
(PPGCOM/UFPA). PARÁ, Brasil.
Pelotas (UCPEL-RS, 1995). Tem
millenascimento@yahoo.com.br
Cecília Almeida Rodrigues Lima experiência em RH e Psicologia
Clínica, com ênfase em
Doutora pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Tratamento e Prevenção
Universidade Federal de Psicológica.
Pernambuco (PPGCOM-UFPE), é
Danila Gentil Rodriguez Cal
docente do Centro Universitário
Lage
UniFBV | Wyden Educacional, nos
cursos de Jornalismo e Doutora em Comunicação e
Publicidade. Integra o grupo da Sociabilidades Contemporâneas
UFPE da Rede brasileira de pela Universidade Federal de
pesquisadores de ficção televisiva Minas Gerais (UFMG), com pós-
(Obitel), sob a coordenação da doutorado em Comunicação e
Prof. Dra. Yvana Fechine, onde Esfera Pública (CNPq-UFMG). É
estuda estratégias transmídias na professora adjunta da Faculdade
ficção seriada da Rede Globo. de Comunicação e do Programa de
Realiza pesquisas voltadas para a Pós-Graduação em Comunicação,
527
Cultura e Amazônia da Escola de Comunicação
Universidade Federal do Pará ECO/UFRJ. Foi integrante do
(UFPA). É líder do Grupo de EMERGE - Centro de Pesquisa e
Pesquisa Comunicação, Política e Produção em Comunicação e
Amazônia (Compoa - Emergência (UFF). Tem
UFPA/CNPq) e vice-presidente da experiência na área de
Associação Brasileira de Comunicação, com ênfase em
Pesquisadores em Comunicação e Comunicação Comunitária e
Política (Compolítica). Autora do Direitos Humanos, atuando
livro “Comunicação e Trabalho principalmente nos seguintes
Infantil Doméstico: política, temas: mídia, política,
poder, resistências”, editado pela diversidade, internet, direitos
Compós e Edufba (2016). humanos e cidadania LGBT.

Denise Mantovani Edgard Rebouças


Doutora em Ciência Política pela Professor no Programa de Pós-
Universidade de Brasília (UnB), Graduação em Comunicação e
com pós-doutorado em Estudos Territorialidades da Universidade
Interseccionais (gênero, raça e Federal do Espírito Santo e
classe) pela mesma instituição. integrante do Observatório da
Graduada em Jornalismo Mídia: direitos humanos,
(PUCRS). Pesquisa sobre políticas, sistemas e
democracia e desigualdades; transparência.
mídia e política; gêneros e
sexualidades; feminismos e teoria Elias Santos Serejo
política. Participa do Grupo de Graduado em Comunicação Social
Pesquisa sobre Democracia e pela Universidade da Amazônia
Desigualdades (Unama). Especialista MBA em
(Demodê/IPOL/UnB) e da Rede jornalismo empresarial e
de Pesquisas em Feminismos e Assessoria de Imprensa (UGF).
Política. Autora do livro “Mídia e Mestre em Comunicação
eleições no Brasil: disputas e Linguagens e Cultura (Unama).
convergências na construção do Integrante do Grupo de Pesquisa
discurso político” (Paco, 2017). Comunicação, Política e Amazônia
Leciona, na UnB, as disciplinas (Compoa - UFPA/CNPq) e do
“Teoria Política e Sexualidades” e Grupo de Pesquisa Comunicação,
“Política Moderna”, já tendo
Estética e Política (Cepolis –
ofertado “Direitos e LGBT” Unama/CNPq), onde participa do
(Faculdade de Direito). Contato: projeto de pesquisa “Figurações
denisemantovani@yahoo.com.br da vulnerabilidade: linguagens do
sofrimento, políticas do comum”.
Diego de Souza Cotta
Mestre em Mídia e Cotidiano pela Ethiene Ribeiro Fonseca
Universidade Federal Fluminense Mestre em Comunicação pela
- UFF e graduado em Universidade Federal do Mato
Comunicação Social - Habilitação Grosso do Sul (UFMS), jornalista
Jornalismo pela Universidade pela Universidade Federal de
Federal do Rio de Janeiro (2009), Sergipe (UFS) e publicitário pela
onde foi bolsista do Programa de Universidade Tiradentes.
Educação Tutorial (PET) da

528
Fernanda Nascimento da Ivânia Skura
Silva Doutoranda em Comunicação e
Doutoranda no Programa de Pós- Linguagens - PPGCom/UTP
Graduação Interdisciplinar em (Linha de pesquisa: Processos
Ciências Humanas (PPGICH) da mediáticos e práticas
Universidade Federal de Santa comunicacionais), Universidade
Catarina (UFSC), na área de Tuiuti do Paraná, Curitiba/PR.
Estudos de Gênero. Mestra em Mestra pelo Programa de Pós-
Comunicação Social, pela graduação Interdisciplinar
Pontifícia Universidade Católica Sociedade e Desenvolvimento -
do Rio Grande do Sul (PUCRS) e PPGSeD/UNESPAR (Linha de
bacharel em Comunicação Social, pesquisa: Formação humana,
com habilitação em Jornalismo, processos socioculturais e
na mesma instituição. Autora do instituições), Universidade
livro “Bicha (nem tão) má – Estadual do Paraná, Campo
LGBTs em telenovelas”. Bolsista Mourão/PR. Bacharela em
Capes. Comunicação Social com
habilitação em Publicidade e
Gardênia Santana de Propaganda pelo Centro
Oliveira Universitário Cesumar,
Graduada em Publicidade e Maringá/PR. Integrante dos
Grupos de Pesquisa Interações
Propaganda pela Universidade
Comunicacionais, Imagens e
Federal de Sergipe. E-mail:
Culturas Digitais - INCOM (UTP),
deniaaoliveira@gmail.com
Cultura e Relações de Poder
(UNESPAR).
Gêsa Karla Maia Cavalcanti
Doutoranda em Comunicação Jéssica de Souza Carneiro
pelo programa de Pós-Graduação
Doutoranda do Programa de Pós-
da Universidade Federal de
Graduação em Psicologia pela
Pernambuco (PPGCOM-UFPE).
Universidade Federal do Ceará
Integra o grupo da UFPE da Rede
(UFC). Mestre em Psicologia
brasileira de pesquisadores de
(UFC). Graduada em
ficção televisiva (Obitel), sob a
Comunicação Social com
coordenação da Prof. Dra. Yvana
Fechine. habilitação em Publicidade e
Propaganda (UFC). Membro do
Grupo Interdisciplinar de
Ivânia dos Santos Neves Estudos, Pesquisas e Intervenções
em Psicologia Social Crítica
Doutora em Linguística, pela (Paralaxe-UFC) e do Laboratório
UNICAMP. Professora do de Psicologia em Subjetividade e
Instituto de Letras e Comunicação Sociedade (LAPSUS-UFC). E-
(ILC) e docente permanente do mail: jessiscarneiro@gmail.com.
Programa de Pós-Graduação em
Letras e do Programa de Pós- João Paulo Saconi
Graduação de Comunicação,
Graduado em Jornalismo pela
Cultura e Amazônia, ambos da
Escola de Comunicação da UFRJ
UFPA. ivanian@uol.com.br
(ECO/UFRJ). E-mail:
joaosaconi@outlook.com

529
Kerolaine Rinaldi Batista Mônica Cristine Fort
Bacharel em Jornalismo pela Professora do Programa de Pós-
Universidade do Vale do Itajaí. E- Graduação em Comunicação e
mail: kerolaine.r@hotmail.com. Linguagens da Universidade
Tuiuti do Paraná. Graduação em
Leonardo Botelho Dória Comunicação Social Jornalismo
pela Universidade Federal do
Graduado em Publicidade e
Paraná (1988), Mestrado em
Propaganda pela Escola de
Educação pela Pontifícia
Comunicação da UFRJ
Universidade Católica do Paraná
(ECO/UFRJ). E-mail:
(1999) e doutorado em
leobotelho95@gmail.com
Engenharia de Produção pela
Universidade Federal de Santa
Leonardo Duarte da Silva
Catarina (2004), com pesquisa em
Graduado em Comunicação Social Mídia e Conhecimento. Pós-
– Publicidade e Propaganda pela doutorado em Comunicação pela
ECO-UFRJ. Atuou como Bolsista Universidade do Estado do Rio de
de Iniciação Científica pela Janeiro (2015). Vice-líder do
FAPERJ no Núcleo de Estudos e Grupo de Pesquisa Interações
Pesquisas Audiovisuais em Comunicacionais, Imagens e
Geografia (NEPAG) do Colégio Culturas Digitais - Incom.
Pedro II. Já atuou Professora de graduação em
profissionalmente na área de Comunicação Social no Centro
assessoria de imprensa e hoje atua Universitário Internacional -
na área de mídias sociais e direção Uninter.
criativa.
Nilson Dias Bezerra Netto
Lucas Bragança da Fonseca
Graduado em Publicidade e
Pesquisador no Programa de Pós- Propaganda pela Universidade
Graduação em Comunicação e Federal de Sergipe. E-mail:
Territorialidades da Universidade nylsondias@gmail.com.
Federal do Espírito Santo,
integrante do Grupo de estudos Nizia Villaça
em Comunicação, Imagem e Afeto
Professora Titular Emérita da
(CIA) e bolsista pela Capes
ECO/UFRJ; pós-doutorado em
Antropologia Cultural –
Sorbonne, Paris V; pesquisadora I
Mayara Martins da Quinta
do CNPq; coordenadora do Grupo
Alves da Silva
ETHOS: Comunicação,
Jornalista; Mestra em Comportamento e Estratégias
Comunicação pela Universidade Corporais; autora de livros e
Federal de Mato Grosso do Sul ensaios, entre os quais: A Edição
(UFMS) e professora do curso de do corpo: tecnociência, artes e
Jornalismo da Universidade do moda, 2ª edição (Estação das
Estado de Mato Grosso (Unemat) Letras e Cores, 2011); Mixologias:
– Campus de Alto Araguaia. comunicação e o consumo da
cultura (Estação das Letras e
Cores, 2010); Org. c/Kathia
Castilho de: Plugados na moda e O
novo luxo (ambos pela Anhembi
530
Morumbi, 2006); Impresso ou integrante do Observatório da
eletrônico? – um trajeto de leitura Mídia: direitos humanos,
(Mauad, 2002); Nas fronteiras do políticas, sistemas e
contemporâneo: território, transparência.
identidade, arte, moda, corpo e
mídia (Mauad FUJB, 2001), Renata Barreto Malta
c/Fred Góes; Em pauta: corpo,
Professora efetiva do
globalização e novas tecnologias Departamento de Comunicação
(Mauad, 1999); Em nome do Social - Universidade Federal de
corpo (Rocco, 1998), c/Fred Góes; Sergipe. Professora permanente
Paradoxos do pós-moderno do PPGCOM/UFS. Doutora em
(UFRJ, 1996). Comunicação social pela
Universidade Metodista de São
Pâmela Caroline Stocker Paulo. Coordenadora no Brasil do
Jornalista, mestra e doutora em Grupo de Pesquisa CHISGAP
Comunicação e Informação pela (Critical, Historical and
Universidade Federal do Rio International Studies on Gender
Grande do Sul and Press). E-mail:
(PPGCOM/UFRGS). Integrante renatamaltarm@gmail.com
do Coletivo Gemis – gênero, mídia
e sexualidade e do Aquenda - Thiago Rufino da Costa
Núcleo de Estudos em Mestre em Artes da Cena (PPGAC-
Comunicação, Gêneros e
ECO/UFRJ), bacharel em
Sexualidades Comunicação Social - Radialismo
(ECO/UFRJ) e em Psicologia
Paulo Victor Mello (IP/UFRJ). Artista visual e
Doutorando em Comunicação e pesquisador de assuntos
Cultura Contemporâneas na referentes ao retrato fotográfico,
Universidade Federal da Bahia imaginário, tecnologia e arte.
(UFBA), com pesquisa sobre
Políticas de Comunicação na Valquíria Michela John
América Latina. Mestre em Doutora em Comunicação e
Comunicação e Sociedade pela Informação pelo
Universidade Federal de Sergipe PPGCOM/UFRGS. Professora
(UFS). Jornalista. Pesquisador do permanente do PPGCOM/UFPR e
Centro de Comunicação, dos cursos de graduação do
Democracia e Cidadania (CCDC, Decom/UFPR. Pesquisadora do
da UFBA) e do Grupo de Pesquisa grupo Nefics (UFPR). E-mail:
Comunicação, Economia Política e
vmichela@gmail.com
Sociedade (CEPOS), vinculado ao
Observatório de Economia e Viviane Freitas
Comunicação da UFS. E-mail:
paulovictorufs@gmail.com Residente pós-doutoral
(PDJ/CNPq) em Ciência Política
Rafael Bellan Rodrigues de na Universidade Federal de Minas
Souza Gerais (DCP/UFMG). Doutora em
Ciência Política pela Universidade
Professor no Programa de Pós-
de Brasília (UnB). Graduada em
Graduação em Comunicação e Jornalismo (PUC Minas).
Territorialidades da Universidade Integrante do Grupo de Pesquisa
Federal do Espírito Santo e
531
sobre Democracia e com Cristiano Rodrigues) e
Desigualdades “Gênero, raça e classe:
(Demodê/IPOL/UnB), do desconstruindo estereótipos”
Margem – Grupo de Pesquisa em (PUC Minas). Contato:
Democracia e Justiça vivianegoncalvesfreitas@gmail.co
(DCP/UFMG) e da Rede de m
Pesquisas em Feminismos e
Política. Seus trabalhos abordam
movimentos feministas, imprensa Wagner dos Santos
feminista, mulheres negras, Dornelles
gênero, mídia e política. Mestrando do Programa de Pós-
Atualmente, leciona as disciplinas graduação em Comunicação na
“Direitos e cidadania: raça, gênero UFF. E-mail:
e sexualidade na política wsdornelles@gmail.com
brasileira” (UFMG, em parceria

532
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533

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