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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA &

IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE


O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

REPRESENTAÇÕES SOBRE ANTROPOFAGIA INDÍGENA:


ANÁLISE DO LIVRO DIDÁTICO PARA ENTENDER A HISTÓRIA

Diogo Francisco Cruz Monteiro (Mestre em Antropologia – UFS)


email: diogocruz_21@yahoo.com.br
Kléber Rodrigues Santos (Mestre em Educação – UFS)
email: kleberrsantos2004@ig.com.br

Introdução

As pesquisas recentes sobre as formas de representação dos índios nos livros


didáticos de história têm revelado uma ampla gama de possibilidades de análise para a
temática. Elas se preocupam, entre outros aspectos, com as modalidades de adequação
do conteúdo destes materiais ao que está prescrito na legislação educacional brasileira,
principalmente, em seus artigos que tratam do respeito à diversidade cultural.
Os resultados destas investigações revelam uma mudança de perspectiva dos
autores de livros didáticos na abordagem sobre as populações indígenas. Optando por
metodologias que privilegiam a leitura associada ou isolada de textos escritos e
imagéticos, e apoiando-se em vasta documentação, séries de coleções didáticas
publicadas no Brasil, pesquisadores atestam a passagem gradativa de visões
etnocêntricas para percepções relativistas acerca das culturas indígenas.
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O lugar do índio na escrita didática da história tem sido ampliado. A ele é


reservado cada vez mais espaço nas laudas dos manuais escolares, destacando-se as suas
atuações e capacidade de interferência nos destinos da trajetória histórica nacional.
As temáticas são diversificadas, refletindo-se sobre os primeiros contatos,
denúncias sobre as consequências históricas da colonização, escravidão, genocídio,
etnocídio e resistência, além dos modos de vida indígena, danças, culinária, rituais
religiosos, arte utilitária, entre outras.
Tendo em vista o aumento do espaço dedicado aos povos indígenas no livro
didático, pretendemos analisar as representações, textuais e pictóricas, sobre a
antropofagia indígena presentes no manual Para Entender a História de Divalte Garcia
Figueira e João Tristan Vargas lançado em 2009.
Decidimos escolher o manual de Figueira e Vargas porque temos a intenção de
saber como a questão indígena está sendo vista pelos livros didáticos contemporâneos.
A antropofagia foi, por muito tempo, associada à ideia de atraso e selvageria dos povos
indígenas, algo que ocorria inclusive na historiografia didática. Assim, pretendemos
analisar como a antropofagia tem sido tratada por esses manuais mais recentes.
Também pretendemos entender como a antropofagia era observada pelos
viajantes e cronistas europeus dos séculos XVI e XVII e entender a sua importância
como cerimônia e ritual na dinâmica interna das sociedades indígenas.
A análise do manual de Figueira e Vargas será realizada com vista na ideia de
representação. Representação não se colocaria como reprodução do real, como um
documento deste real, mas apenas como uma evidência material, como um indício para
se compreender como aquele real se constituiria enquanto imagens. Do mesmo modo,
em nenhum momento se apresenta em qualquer dimensão a questão da parecença, da
verossimilhança, qualquer tipo de necessidade de a representação ser parecida com o
que ela retrata (MENEZES, 2004, p. 27).
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Refletir sobre a representação não significa entendê-la como réplica, duplo,


cópia ou clone, como reprodução igual de uma realidade exterior, mas que ao mesmo
tempo lhe seria idêntica, cópia fiel de todos os seus detalhes e atributos (MENEZES,
2004, p. 27).
Portanto, a representação será aqui referenciada, em seu sentido mais amplo,
como tradução mental de uma realidade percebida, que transmite informações válidas
sobre vários pontos de vista vinculados a contextos específicos, pois a construção do
seu significado é orientada pelas convenções sociais que lhes garantem uma
legitimidade interpretativa.

A antropofagia sob o olhar europeu do século XVI e XVII


No período colonial, missionários, religiosos, artistas, cientistas, navegadores e
viajantes produziram uma gama de registros gráficos, pictóricos e literários sobre o
Brasil. Os europeus organizaram-se em expedições e vieram ao Brasil com os mais
diversos motivos: desbravar terras ainda não habitadas, explorar as riquezas naturais dos
trópicos, coletar informações sobre o clima, a fauna e a flora brasileira, dentre outros.
Estes viajantes demostraram curiosidade e espanto diante do mundo novo
descoberto. O olhar desses viajantes europeus se direcionou principalmente para os
habitantes das terras recém-descobertas. Para os europeus era importante identificar e
compreender os indígenas através de seus hábitos, costumes e crenças.
Nessa época, duas representações foram forjadas a partir dos povos indígenas
que habitavam as “terras brasílicas”. A primeira representação se refere à imagem do
bom selvagem, segundo a qual os índios eram vistos como portadores de uma bondade
natural que viviam num paraíso edênico. Essa visão foi esboçada por Montaigne em sua
obra Essais (I, XXXI, “Des Canibales”). (BOSI, 2006, p. 105).
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Utilizando os testemunhos que os viajantes traziam da América (relatos


contraditórios que mostravam tanto a selvageria dos índios, quanto sua docilidade),
Montaigne contrapôs a maldade, malícia e hipocrisia do europeu à simplicidade dos
índios. A ideia do bom selvagem foi, logo após, retomada por Rousseau, que
contrastava a inocência do primitivo à depravação e tirania dos nobres durante o
governo de Luís XV (BOSI, 2006, p. 105).
Dessa forma, os índios foram apresentados como exemplo do homem universal,
o que caracterizaria a visão do bom selvagem, visão de uma terra (do Brasil) associada
ao Éden (paraíso).
Porém, a partir dos contatos mais diretos entre índios e europeus, a ideia do bom
selvagem começou a ser abandonada, tornando-se objeto de reformulação por seus
equívocos. Assim, apresenta-se a segunda representação que os viajantes europeus
constituíram sobre os indígenas. Essa representação está ligada a crueldade e selvageria,
sendo motivada por aquele que era considerado o mais abominável de todos os
costumes dos nativos: o hábito de comer a carne dos guerreiros inimigos.
Aliado à poligamia, a antropofagia causou um forte impacto sobre o olhar
europeu, superando, inclusive, o fato de os nativos andarem nus, não possuírem
propriedade privada, forma de governo ou religião.
A mais remota representação sobre a antropofagia pode ser vista em Novus
Mundus, edição ilustrada de uma carta atribuída a Américo Vespúcio. Na obra, verifica-
se uma xilogravura (cujo autor foi Johann Froschauer) retratando um grupo de canibais.
Na xilogravura, podemos identificar onze índios, dentre eles, cinco homens
adultos, três mulheres, três crianças, todos reunidos em uma espécie de cabana perto da
praia. Aparentemente os índios realizam atividades domésticas: cuidam das crianças,
conversam, comem e se beijam. Cenas comuns se não fosse o caso de estarem
degustando uma perna e um braço humanos. De uma das vigas da cabana pendem partes
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de um corpo retalhado que está um pouco acima de uma fogueira. Ao fundo, no mar,
podem ser vistas duas caravelas. A imagem está acompanhada pelo seguinte texto:

Essa imagem nos mostra o povo e a ilha descobertos pelo Rei Cristão
de Portugal ou por seus súditos. Essas pessoas andam nuas, são
bonitas e têm uma cor de pele acastanhada, sendo bem construídas de
corpo. Cabeças, pescoços, braços, vergonhas e pés, tanto de homens
quanto de mulheres, são enfeitados com penas. Os homens têm
também no rosto e no peito muitas pedras preciosas. Ninguém é
possuidor de coisa alguma, pois a propriedade é de todos. Os homens
tomam por mulher a que mais lhes agrade, podendo ser sua mãe,
irmã ou amiga, já fazem distinção. Guerreiam entre si e devoram
uns aos outros, inclusive os que matam em combate, cujos corpos
penduram para assar sobre fogueiras. Vivem 150 anos. E não
possuem governo.1

Na xilogravura existem duas visões opostas sobre os índios: de um lado observa-


se uma “cena familiar”, que lembra o discurso da bondade natural dos nativos,
especificada no detalhe maternal da índia com seus três filhos; do outro lado, aparecem
restos humanos pendurados sendo cozinhados e os índios devorando um braço e uma
perna, enquanto um homem beija uma mulher que carrega uma perna prestes a ser
devorada (LESTRINGANT, 1997, p. 47-52).
A antropofagia foi extensamente abordada nos relatos dos viajantes europeus.
Muitos livros continham imagens que ilustravam os textos. Em 1592, Theodore De Bry,
ourives, livreiro e gravador, publicou o terceiro volume da coleção As Grandes Viagens
chamado America Tertia Pars: memorabile provinciæ Brasiliæ historiam contines, que
apresentou a narrativa do francês Jean de Léry sobre sua viagem ao Brasil e nas
narrativas de Hans Staden, aventureiro alemão que esteve aprisionado entre os
indígenas.
1
LEITE, José Roberto Teixeira. Viajantes do Imaginário: A América vista da Europa, século XV-XVII.
Revista da USP. Dossiê Brasil dos Viajantes. Número 30. São Paulo: USP, 1995, p. 2.
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Em uma das ilustrações da obra, observa-se no lado esquerdo inferior do


primeiro plano uma criança indígena segurando em suas mãos a cabeça de um indivíduo
sacrificado. Ao centro da ilustração, um índio adulto eleva seu machado sobre os
ombros com o qual desfere golpes no corpo que estava sendo destrinchado por outro
índio, que deposita as vísceras da vítima numa espécie de cesto seguro por uma índia.
Ainda no primeiro plano, na margem direita inferior, dois pequenos índios
auxiliam três jovens índias a aumentar as chamas do caldeirão, de onde retiram a cabeça
e algumas partes dos órgãos de um homem executado. Em segundo plano, percebe-se a
figura de um europeu barbado, o aventureiro Hans Staden, com uma expressão marcada
pelo sofrimento, com braços cruzados sobre o tórax, como se estivesse realizando as
últimas preces pela alma do homem que estava sendo sacrificado. Ao seu lado, vemos
três índias que seguram partes do braço e perna de um indivíduo esquartejado.
A representação da antropofagia nas imagens deste manual ainda transmite uma
percepção enganosa sobre está prática. Os índios envolvidos na efetuação das
“carnificinas” eram observados como canibais, violentos, que consumiam a carne
humana para satisfazer uma de suas necessidades biológicas mais imediatas: saciar a
fome. A dimensão ritual é aqui menosprezada.
Ao representar pedaços de corpos humanos sendo assados, há uma atenção
especial aos detalhes mórbidos do ritual. O europeu aflito ao fundo, a presença de
mulheres, o modo como destrincham a carne e separam minuciosamente as partes que
serão comidas. As crianças retratadas participam intensamente da matança. A intenção
da cena é realmente chocar o observador.
Para o europeu do século XVI e XVII, a antropofagia estava fora dos
paradigmas etnocêntricos centrados em sua própria cultura. Dessa forma, os indígenas
eram os “outros”, seres diferentes que tanto atraiam curiosidade quanto despertavam o
temor. Por não compreender elementos da cultura indígena como a antropofagia, o
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europeu reduzia os nativos em seres inferiores, cujas crenças, organização política,


valores e princípios tinham que se transformar em europeus, mesmo que para isso
fossem dominados, escravizados ou destruídos (GEBRAN, 2014, p.2-3).

Antropofagia: perspectiva ritual e cerimonial

Antropofagia é o ato de alimentar-se de carne humana, praticado através de um


ritual de sacrifício. O costume era característico da sociedade Tupi-guarani.
Falar da prática de antropofagia a partir de sua faceta ritual é possível, levando-
se em consideração as minúcias do fator “guerra” e suas implicações sociais para as
diversas sociedades indígenas no Brasil. Fausto (1992) informou que, entre os
tupinambá as guerras não eram motivadas por ambições materiais, mas sim por um
sentimento de vingança. O principal objetivo das expedições guerreiras era fazer cativos
para serem executados e comidos em praça pública, num processo de vingança
socializada.

A execução ritual [...] poderia demorar vários meses. Após ser


recebido no grupo local de forma hostil, e travar um diálogo com os
homens sobre vinganças passadas e futuras, o cativo passava a viver
na residência do seu captor, que lhe cedia uma irmã ou filha como
esposa. Significativamente, o termo tupinambá para cunhado e
inimigo é o mesmo – tobajara -, mas o inimigo era um cunhado sui
generes, pois em vez de fornecer alimento por intermédio do serviço
da noiva, recebia comida para ser depois, ele mesmo, devorado. [...] O
cativo [...] tinha um papel central nas relações interaldeãs. Ele deveria
ser mostrado aos parentes e amigos, circulava pelas aldeias
circunvizinhas, e quando decidiam, enfim, executá-lo, seus captores
convidavam os membros das aldeias aliadas, mesmo as mais distantes,
para participarem do festim canibal. A execução do prisioneiro
permitia articular [...] os grupos locais em unidades maiores [...]
reafirmando a aliança, ou a inimizade. Tratava-se [...] de socializar ao
máximo a vingança, tornando uma só morte superprodutiva: uma
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espécie de sobretrabalho ritual. (FAUSTO, 1992, p. 390-391, grifos do


autor)

Esta breve descrição do aspecto ritual da antropofagia revela-nos que ele estava
imerso num complexo sistema de construção de significados culturais. Ele era um dos
pilares estruturais de maior relevância para este tipo de organização indígena. Associado
às atividades bélicas e à vingança2, a antropofagia como ritual socializado, permitia a
negociação e o estabelecimento de relações de aliança e solidariedade entre os grupos
indígenas envolvidos naquele evento.
Ao refletir sobre a “Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”,
Fernandes (1978), observou que a participação nas atividades guerreiras era um
mecanismo de graduação de status social, baseado nos méritos pessoais que repousavam
no “curriculum guerreiro” de cada indivíduo. A guerra e a antropofagia faziam parte do
universo de atitudes viris dentro da sociedade tupinambá. Essas atividades integravam o
processo de obtenção de status, progresso e até mesmo de escolha de esposas.
De acordo com Fernandes, os Tupinambá viviam em estado crônico de guerra.
As consequências das atividades guerreiras, para o autor, estariam impregnadas em
todas as esferas daquela sociedade. A guerra possuía uma evidente função social, sendo
que todos os membros tinham alguma participação nos conflitos.
Os Tupinambá comiam a carne do prisioneiro buscando a reapropriação das
qualidades dos parentes ancestrais que teriam sido mortos por ele. Apesar de
considerarem a capacidade guerreira do inimigo, era mais importante fazer com que a
energia dos ancestrais completasse seu ciclo, retornando para o seio do grupo, de forma
que a morte material proporcionasse a superação da morte espiritual.

2
Para Florestan Fernandes (1978), o massacre ritual da vítima era, a um tempo, condição, princípio e fim
da vingança.
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Tal reapropriação era vista quase como uma exigência feita pelos espíritos dos
parentes mortos, dentro de um sistema fechado em movimento contínuo em que o
inimigo era sacrificado para atender a necessidade do espírito do ancestral. Assim,
criava-se uma “cadeia circular de obrigações impostas imperativamente pela
necessidade de estabelecer a relação sacrificial”. (FERNANDES, 1989, p. 331).
Após o aprisionamento e sacrifício de sua primeira vítima, o jovem índio deveria
observar um complexo conjunto de ritos de passagem. Esses ritos destinavam-se, entre
outros objetivos, “a resguardar o sacrificante e a comunidade das represálias do espírito
da vítima e a atribuir um “novo” nome ao sacrificante (ritos de renomação), englobando
papéis como Avá e Tujuáe”: “homem casado”, “chefe de maloca”, “chefe de grupo
local”, “chefe de bando guerreiro”, “líder guerreiro e pajé”. (FERNANDES, 1978, p.
200-201, grifos do autor).
Em meio ao desenvolvimento dos rituais de renomação, eram praticadas as
incisões, que objetivavam simbolicamente os “nomes” adquiridos através dos sacrifícios
humanos. “Elas funcionavam como símbolos sociais, cada homem trazendo em seu
corpo as marcas de sua bravura, poder e prestígio”. (FERNANDES, 1978, p. 207).

As incisões correspondiam ao número de nomes adquiridos pelos


guerreiros e que exprimiam o prestígio social dos seus portadores: “o
número de incisões indica o número de vítimas sacrificadas e lhes
aumenta a consideração dos companheiros”; “... e os que se riscam,
quando tomam nome novo, a cada nome que tomam fazem sua feição
de lavor, para que se veja quantos nomes têm;” “... quando esta
ranhura sara, vêm-se cicatrizes, que valem por ornato honroso;” “... e
na verdade quanto mais estigmatizados mais valentes e corajosos são
reputados...”; “ o riscar é que fazem umas ricas pelo corpo de preto, a
qual lhes fica servindo para diante de insígnia militar...” (LÉRY;
SOARES; STADEN; EVREUX, BRANDÃO apud FERNADES,
1978, p. 207). Evidentemente, os guerreiros que consumavam um
número elevado de sacrifícios, tinham o corpo recoberto de incisões.
(FERNANDES, 1978, p. 207-208)
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Observa-se que a corporalidade torna-se dado fundamental para o universo


simbólico e o modo de vida indígena. Idioma focal nas sociedades indígenas sul-
americanas, o corpo e suas ornamentações são como arquivos de identidades, como
elementos diacríticos.

Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou


devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as
sociedades indígenas têm da natureza do ser humano. Perguntar-se
[...] sobre o lugar do corpo é iniciar uma indagação sobre as formas de
construção da pessoa. (SEEGER et al. 1979 apud PORTO ALEGRE,
1998, p. 108)

Estas observações revelam elementos valiosos para o entendimento dos


significados simbólicos e da importância da corporalidade no processo de atribuição de
papéis constantes dos códigos culturais singulares do povo Tupinambá, em sua conexão
específica de cotidianização diferenciadora do carisma, aliada às atividades guerreiras e
ao sacrifício daí resultante. Nese sentido, vislumbramos na representação imagética da
corporalidade fonte imprescindível para a inserção profunda no universo estrutural de
diversos grupos indígenas.

Analisando o ritual antropofágico nos manuais didáticos

No manual Para entender a História, de Divalte Garcia Figueira e João Tristan


Vargas, publicado em 2009, a antropofagia aparece em somente uma página. Apesar de
destinar um pequeno espaço para tratar da antropofagia, o livro didático dedica dois
grandes capítulos aos povos indígenas.
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A discussão sobre a antropofagia encontra-se num capítulo sobre os povos que


habitavam a costa litorânea do território brasileiro na época da chegada dos portugueses,
mais precisamente, a propósito dos grupos indígenas que estabeleceram as primeiras
relações com os portugueses, os Tupi-guarani.
Para entender a História procura não veicular estereótipos ou preconceitos
historicamente construídos. O manual de Figueira e Vargas, assim como outros manuais
da década de 2000, foi produzido sob a lógica da avaliação, escolha e distribuição de
livros didáticos, representada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Editoras e os autores de manuais didáticos observaram os critérios de exclusão
de uma obra didática no PNLD, ficando mais atentos à veiculação de todo tipo de
estereótipo ou preconceito, a existência de erros de informação, conceituais ou de
desatualizações graves, proselitismo e, por último, a verificação de incoerências entre a
proposta explicitada e o que foi efetivamente realizado ao longo da obra (MIRANDA;
LUCA, 2011, p. 127-128).
Para entender a História se afasta da perspectiva dos cronistas europeus do
século XVI e XVII, não enxergando a antropofagia como prática exótica, selvagem e
bárbara. O texto destaca o viés cerimonial, sendo que a fome não é vista como causa das
execuções:

Em várias nações indígenas no Brasil, realizava-se uma cerimônia em


que, depois de um prisioneiro ser executado, era praticada a
antropofagia, isto é, seu corpo era devorado pelo grupo. Isso não era
feito por fome, já que havia animais para caçar, assim como as frutas e
outros vegetais da mata. (FIGUEIRA; VARGAS, 2009, p. 130)

O livro destaca o caráter da valentia e o sentido assumido pela vingança:


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Por que, então, a antropofagia? Uma das explicações mais aceitas


sobre isso, fundamentada nos testemunhos daquele tempo, leva em
conta a importância que a valentia tinha para os índios. Indígenas de
várias nações acreditavam que, comendo a carne do inimigo, estariam
levando para dentro de si mesmos a bravura dele. Era raro um inimigo
ser devorado sem antes se ter certeza sobre sua coragem. O costume
da antropofagia fornecia motivo para mais combates, porque os
parentes do morto sempre buscavam vingá-lo. (FIGUEIRA;
VARGAS, 2009, p. 130)

Assim, o livro didático não mostra os índios como povos atrasados que possuíam
uma agressividade inata. Os indígenas são representados por meio de seus interesses,
entendendo-se o desejo de vingar os antepassados mortos em combate, a apropriação
das qualidades guerreiras do inimigo, a participação de mulheres e crianças nos
conflitos, o ritmo e o sentido das hostilidades e o papel da antropofagia na sustentação
dos mecanismos de reprodução social.
Ao final da página do manual, observa-se um boxe que contém um pequeno
texto e uma gravura de Theodore De Bry. O conteúdo do boxe dialoga com o texto
principal ao abordar o valor da valentia entre os Tupi-guarani.
O texto do boxe fala sobre I-Juca-Pirama, poema épico baseado nas fontes
históricas coloniais, que possui uma interpretação plausível sobre a antropofagia. Além
do próprio ritual antropofágico, ressalta-se ainda a questão da valentia, presente desde o
título da obra que em tupi significa: “O que há de ser morto e que é digno de ser morto”.
(FIGUEIRA; VARGAS, 2009, p. 130).
Dentro de um curto espaço, o livro de Figueira e Vargas consegue realizar uma
interpretação baseada em estudos mais atualizados sobre os povos indígenas e a
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antropofagia3, utilizando as fontes do século XVI com precisão e dialogar, inclusive,


com textos literários.
O boxe termina exibindo uma das gravuras de Theodore De Bry que ilustra a
obra Americae Tertia Pars. Essa imagem contém três momentos diferentes da
cauinagem4, cerimônia tipicamente associada ao ritual antropofágico.
A gravura é utilizada com sucesso no que se refere à complementação do texto
escrito, subsidiando com representações pictóricas sem causar nojo, repulsa ou
indignação. A ilustração corrobora as informações apresentadas no texto sobre a
antropofagia.
No primeiro plano da imagem, o cauim é preparado. As mulheres aparecem
mastigando (o milho e a mandioca não aparecem) e cuspindo nos jarros para posterior
fermentação em grandes jarros. No segundo plano, o cauim é servido pelas mulheres ao
guerreiro aprisionado e aos demais membros do grupo responsáveis pela captura.
Finalmente, no terceiro plano, observam-se cinco homens dançando em pé, enfeitados
com cocares e usando maracás.
Porque justamente essa imagem foi escolhida? Porque as tradicionais gravuras,
do próprio De Bry, que mostram os detalhes mais grotescos, brutais e selvagens da
antropofagia não foram adotadas nesse caso? Porque não foram utilizadas imagens com
mulheres carregando membros decepados do inimigo, crianças participando da
carnificina ou carne sendo levada a caldeirões ferventes e grelhas?
Provavelmente a escolha da ilustração não tenha sido aleatória. É possível que a
motivação da escolha tenha sido não chocar o observador, ao contrário do que pretendia

3
Grandes estudiosos sobre esses temas podem ser vistos entre as referências bibliográficas do manual:
John Manuel Monteiro, Leyla Perrone-Moisés, Maria Regina C. de Almeida, John Murra, Tzvetan
Todorov, entre outros.
4
Cerimônia realizada pelos povos Tupi-guarani em que o cauim, bebida obtida através da fermentação do
milho ou da mandioca, era preparado e consumido.
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o autor da gravura, Theodore De Bry. A partir de um ponto de vista europeu, De Bry


acentuou a selvageria da cerimônia realizada, na qual as mulheres seriam como bruxas
preparando poções mágicas para um festim demoníaco.
Portanto, ao escolher essa gravura, o livro de Figueira e Vargas acaba
enfatizando a perspectiva ritualística e cerimonial da antropofagia. Em sentido oposto às
intenções de De Bry, o manual confere importância ao ritual antropofágico, vendo-o
como elemento fundamental para a organização social dos Tupi-guarani, já que possuía
um sentido religioso ‒ visto como principal fonte para a realização das vinganças dos
antepassados ‒, não visando simplesmente satisfazer as necessidades fisiológicas.

Considerações finais

O manual Para entender a História, de Divalte Garcia Figueira e João Tristan


Vargas, apresenta a antropofagia como prática ritual ordenadora da estrutura social,
estritamente vinculada aos códigos culturais dos Tupi-guarani. O livro didático
analisado se afasta do tipo de figuração que coloca a antropofagia indígena como
conduta digna de reprovação, associada à animalidade e selvageria.
Temos plena consciência das dificuldades enfrentadas por autores dos manuais
para sintetizar, traduzir e transpor didaticamente os conteúdos históricos, tarefa ainda
mais absorvente quando se trabalha com temas tão amplos e complexos quanto os dos
rituais de antropofagia.
Apesar das dificuldades inerentes ao manejo didático de assuntos como a
antropofagia, os manuais oferecem ao ensino de história vantagens metodológicas e
cognitivas imprescindíveis. Suas imagens e textos podem ser utilizados em diversas
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situações de ensino-aprendizagem, para o desenvolvimento de leituras, interpretações e


comparações entre as visões divergentes acerca da antropofagia.
Livros didáticos, como o de Figueira e Vargas, desde que bem conduzidos por
professores capacitados, possibilitam ao estudante o conhecimento dos meandros e
pormenores que permeavam a antropofagia, as percepções negativas do outro europeu,
além de permitirem a compreensão das dimensões rituais e sociais do sacrifício e
consumação da carne humana, vislumbradas a partir de uma concepção o mais
aproximada possível do universo mental dos povos indígenas.

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Fonte

FIGUEIRA, Divalte Garcia; VARGAS, João Tristan. Para entender a história, 7º ano.
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