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Introdução
de um corpo retalhado que está um pouco acima de uma fogueira. Ao fundo, no mar,
podem ser vistas duas caravelas. A imagem está acompanhada pelo seguinte texto:
Essa imagem nos mostra o povo e a ilha descobertos pelo Rei Cristão
de Portugal ou por seus súditos. Essas pessoas andam nuas, são
bonitas e têm uma cor de pele acastanhada, sendo bem construídas de
corpo. Cabeças, pescoços, braços, vergonhas e pés, tanto de homens
quanto de mulheres, são enfeitados com penas. Os homens têm
também no rosto e no peito muitas pedras preciosas. Ninguém é
possuidor de coisa alguma, pois a propriedade é de todos. Os homens
tomam por mulher a que mais lhes agrade, podendo ser sua mãe,
irmã ou amiga, já fazem distinção. Guerreiam entre si e devoram
uns aos outros, inclusive os que matam em combate, cujos corpos
penduram para assar sobre fogueiras. Vivem 150 anos. E não
possuem governo.1
Esta breve descrição do aspecto ritual da antropofagia revela-nos que ele estava
imerso num complexo sistema de construção de significados culturais. Ele era um dos
pilares estruturais de maior relevância para este tipo de organização indígena. Associado
às atividades bélicas e à vingança2, a antropofagia como ritual socializado, permitia a
negociação e o estabelecimento de relações de aliança e solidariedade entre os grupos
indígenas envolvidos naquele evento.
Ao refletir sobre a “Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá”,
Fernandes (1978), observou que a participação nas atividades guerreiras era um
mecanismo de graduação de status social, baseado nos méritos pessoais que repousavam
no “curriculum guerreiro” de cada indivíduo. A guerra e a antropofagia faziam parte do
universo de atitudes viris dentro da sociedade tupinambá. Essas atividades integravam o
processo de obtenção de status, progresso e até mesmo de escolha de esposas.
De acordo com Fernandes, os Tupinambá viviam em estado crônico de guerra.
As consequências das atividades guerreiras, para o autor, estariam impregnadas em
todas as esferas daquela sociedade. A guerra possuía uma evidente função social, sendo
que todos os membros tinham alguma participação nos conflitos.
Os Tupinambá comiam a carne do prisioneiro buscando a reapropriação das
qualidades dos parentes ancestrais que teriam sido mortos por ele. Apesar de
considerarem a capacidade guerreira do inimigo, era mais importante fazer com que a
energia dos ancestrais completasse seu ciclo, retornando para o seio do grupo, de forma
que a morte material proporcionasse a superação da morte espiritual.
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Para Florestan Fernandes (1978), o massacre ritual da vítima era, a um tempo, condição, princípio e fim
da vingança.
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Tal reapropriação era vista quase como uma exigência feita pelos espíritos dos
parentes mortos, dentro de um sistema fechado em movimento contínuo em que o
inimigo era sacrificado para atender a necessidade do espírito do ancestral. Assim,
criava-se uma “cadeia circular de obrigações impostas imperativamente pela
necessidade de estabelecer a relação sacrificial”. (FERNANDES, 1989, p. 331).
Após o aprisionamento e sacrifício de sua primeira vítima, o jovem índio deveria
observar um complexo conjunto de ritos de passagem. Esses ritos destinavam-se, entre
outros objetivos, “a resguardar o sacrificante e a comunidade das represálias do espírito
da vítima e a atribuir um “novo” nome ao sacrificante (ritos de renomação), englobando
papéis como Avá e Tujuáe”: “homem casado”, “chefe de maloca”, “chefe de grupo
local”, “chefe de bando guerreiro”, “líder guerreiro e pajé”. (FERNANDES, 1978, p.
200-201, grifos do autor).
Em meio ao desenvolvimento dos rituais de renomação, eram praticadas as
incisões, que objetivavam simbolicamente os “nomes” adquiridos através dos sacrifícios
humanos. “Elas funcionavam como símbolos sociais, cada homem trazendo em seu
corpo as marcas de sua bravura, poder e prestígio”. (FERNANDES, 1978, p. 207).
Assim, o livro didático não mostra os índios como povos atrasados que possuíam
uma agressividade inata. Os indígenas são representados por meio de seus interesses,
entendendo-se o desejo de vingar os antepassados mortos em combate, a apropriação
das qualidades guerreiras do inimigo, a participação de mulheres e crianças nos
conflitos, o ritmo e o sentido das hostilidades e o papel da antropofagia na sustentação
dos mecanismos de reprodução social.
Ao final da página do manual, observa-se um boxe que contém um pequeno
texto e uma gravura de Theodore De Bry. O conteúdo do boxe dialoga com o texto
principal ao abordar o valor da valentia entre os Tupi-guarani.
O texto do boxe fala sobre I-Juca-Pirama, poema épico baseado nas fontes
históricas coloniais, que possui uma interpretação plausível sobre a antropofagia. Além
do próprio ritual antropofágico, ressalta-se ainda a questão da valentia, presente desde o
título da obra que em tupi significa: “O que há de ser morto e que é digno de ser morto”.
(FIGUEIRA; VARGAS, 2009, p. 130).
Dentro de um curto espaço, o livro de Figueira e Vargas consegue realizar uma
interpretação baseada em estudos mais atualizados sobre os povos indígenas e a
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Grandes estudiosos sobre esses temas podem ser vistos entre as referências bibliográficas do manual:
John Manuel Monteiro, Leyla Perrone-Moisés, Maria Regina C. de Almeida, John Murra, Tzvetan
Todorov, entre outros.
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Cerimônia realizada pelos povos Tupi-guarani em que o cauim, bebida obtida através da fermentação do
milho ou da mandioca, era preparado e consumido.
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Considerações finais
Referências bibliográficas
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FERNANDES, Florestan. A função social da guerra na sociedade tupinambá. São
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Fonte
FIGUEIRA, Divalte Garcia; VARGAS, João Tristan. Para entender a história, 7º ano.
1. ed. São Paulo Saraiva, 2009.