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A mestiçagem no Brasil:

armadilhas e impasses


JOSILDETH GOMES CONSORTE

Resumo but also seen with reservations in other


spaces, its situation is far from being
Quase quinhentos anos depois de inicia-
resolved.
da, a mestiçagem continua sendo uma ques-
Based on two fundamental premises, the
tão polêmica entre nós quando se trata de
author tries to trace, through some significant
definir a nossa identidade.
moments of our history, evidences of the
Almejada por uns, aclamada por outros
construction process of attitudes and values
como a expressão mais completa do nosso
in relation to miscegenation and what she
ethos, mas também vista com reservas em
calls its traps and deadlocks.
outros espaços, sua situação está longe de se
Key-words: miscegenation; discrimination;
resolver.
prejudice; racism; racial relations.
A partir de duas premissas que considera
fundamentais, a autora busca rastrear, através
de alguns momentos significativos da nossa
história, as evidências do processo de
"Mestiço é que é bom", disse e repe-
construção de atitudes e valores em relação à tiu Darcy Ribeiro, em várias oportunida-
mestiçagem e do que chama suas armadilhas des, ao longo dos seus dois últimos anos
l
e seus impasses de vida , em pronunciamentos sobre a
Palavras chaves: mestiçagem; discrimina- construção da nossa identidade.
ção; preconceito; racismo; relações raciais. Pouco tempo depois, Jorge Amado e
Zélia Gatai, ante as câmeras de um canal
Abstract
de televisão, quando solicitados a
Almost five hundred years after its
beginning, miscegenation continues to be a
1. A expressão tornou-se título de um livro póstumo
polemic issue among us when it comes to (Rio de Janeiro, Renan, 1997). Ver sobre o assunto,
defining our identity. do mesmo autor, O povo brasileiro: a formação e o
Desired by some, acclaimed by others as sentido do Brasil (São Paulo, Companhia das Letras,
the most complete expression of our "ethos", 1995). Darcy Ribeiro faleceu em 17.2.97.
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opinarem em relação à política de cotas2, tíamos à vontade dentro dela, vestindo a


assunto, no momento, em grande evidên- sua roupagem, literalmente, na sua pele.
cia, referiram-se, entusiasticamente, à Que ingrediente é este que pode ser
nossa mestiçagem como atestado da con- ao mesmo tempo tão desejado, tão acla-
vivência harmoniosa que conseguíramos mado e tão rejeitado? Que fenômeno é
estabelecer entre todas as raças que este que, quase quinhentos anos depois
entraram em nossa formação, de conviver conosco, ainda é portador de
confessando-se perplexos diante da tanta ambigüidade?
iniciativa. A mestiçagem de que nos ocupare-
Menos otimista, porém, o professor mos neste texto é, sobretudo, a que resul-
Kabengele Munanga afirmava, à mesma ta do multissecular relacionamento entre
época, na sua tese de livre-docência3, que pretos e brancos em nosso país. Não por-
o Brasil, apesar da mestiçagem, não era que não existam outros mestiços merece-
um país de identidade cultural ou étnica dores de atenção, mas pelo significado
mestiça. que assumiu entre nós essa particular
Se a afirmação de Darcy Ribeiro combinação.
tinha o sabor de uma convicção que ele Duas premissas orientarão a nossa
desejava que se tornasse realidade ao ser reflexão:
compartilhada por todos os brasileiros, 1) que não obstante a facilidade com
um verdadeiro élan que os movesse no que se iniciou desde os idos do século
processo de se constituírem como povo, XVI, a mestiçagem nunca foi expressão
para o ilustre casal de escritores a de ausência de preconceito entre nós, e
mestiçagem aparecia já como um fato com ele convive até hoje;
consumado, uma bela conquista nossa, 2) que o favorecimento dos mestiços,
expressão do nosso ethos, singularizando- sobretudo dos mulatos, em relação aos
nos entre as nações. negros foi forjado num contexto que se
A conclusão de Munanga, no entan- manteve sempre altamente discriminador
to, apontava claramente noutra direção, de atributos físicos e pertenças étnicas.
quando, depois de longamente discutir o Não apenas os indígenas e os africanos,
peso da sua presença em nossa história, mas todos os seus descendentes foram
nos dizia que, não obstante, ela não nos desde os primórdios da colonização sub-
representava porque nem todos nos sen- metidos ao crivo de uma visão eurocên-
trica do mundo e tiveram seus atributos
2. A política de cotas faz parte das ações afirmativas corporais e os seus modos de ser e de
com que se pretende alavancar a situação dos negros existir avaliados a partir de valores e in-
no país, garantindo-lhes o acesso ao ensino superior. teresses ditados por aquela visão.
3. Kabengele Munanga, Rediscutindo a mestiçagem no Em que medida essas duas premissas
Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Tese
nos ajudarão a responder às questões
de livre-docência defendida na USP, em novembro de
1997, que acaba de ser publicada com o mesmo título acima é o que tentaremos ver, a partir do
(Petrópolis, Vozes, 1999). exame da mestiçagem ao longo de alguns
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períodos significativos da nossa história. Desse modo, em lugar de engendrar


um contingente indiscriminado de des-
A mestiçagem como contingência cendentes das matrizes formadoras ini-
ciais, a mestiçagem abriu um leque de
Dos primórdios da colonização até possibilidades novas de identificação
meados do século XIX, a mestiçagem através das quais foi sendo fragmentado
aparece como contingência do modo todo o conjuntos.
como foi colonizado o país por um A cartografia dos cruzamentos envol-
pequeno contingente de homens brancos, veu muita gente e muitas situações, sen-
desacompanhados de suas mulheres, do seus frutos, cuidadosamente, distin-
entrando em contato, inicialmente, com guidos e nomeados à medida que sur-
uma profusão de mulheres, de indígenas giam, corno um atestado da importância
e, mais tarde, de escravas africanas. das distinções na construção do mundo
Mestiçagem através da qual se contribuía colonial. Chegaram até nós, através dos
para a reprodução da mão-de-obra servil registros oficiais (inventários, testamen-
e para a gestação do lastro do que viria a tos, registros de batizados, casamentos,
ser o nosso povo e que não cessou ao sepultamentos, processos judiciais), os
longo dos trezentos e poucos anos de termos já consagrados, acima citados,
tráfico negreiro, mesmo com a chegada mas certamente a inventiva popular terá
crescente de mulheres brancas ao longo sido muito mais rica. Assim, corno os
do período. Consta que as primeiras africanos eram identificados a partir das
mulheres brancas só chegaram entre suas nações ou dos seus lugares de
1540 e 1560, ou seja, em torno de origem, também os mestiços aqui
cinqüenta anos depois de Cabral. nascidos foram sendo distinguidos a
Dessa mestiçagem inicial, que tam- partir dos tipos de cruzamentos que
bém envolveu homens e mulheres negros representavam. Aos filhos de africanos
e indígenas, foram surgindo os mamelu- bastava urna só denominação, a de
cos, os cafuzos, os caboclos, os mulatos, crioulos.
os cabras que, com o passar dos anos, Os sentimentos e os valores engen-
através de múltiplos cruzamentos frutifi- drados ao longo desse período pelas re-
cariam em uma multidão de pardos, de- lações envolvendo brancos, africanos,
signação mais genérica usada já no sécu- crioulos e mestiços, as subjetividades que
lo XVIII pela Igreja Católica em seus re- se construíram, é um campo fascinante
gistros para designar os mestiços, mas ainda pouco pesquisado. Dados de
adotada mais tarde pelos Censos Oficiais uma pesquisa que estamos realizando no
e vigente até hoje4 •

uso corrente até o século XVIII, depois de gozar de


4. O termo "cabra", que designava o tipo de cru- grande popularidade, desapareceu dos registros
zamento do mulato com um africano ou crioulo, de citados ao longo do século XIX.
5. Ver, sobre o assunto, Clóvis Moura, Dialética m ra-
dical & Brasil negro (São Paulo, Anita, 1994).
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Arquivo de Rio de Contas, no estado da Por outro lado, à medida que crescia
Bahia, apontam claramente para o senti- o movimento abolicionista, a recusa do
do dessas distinções 6 . escravo africano ia se tornando cada vez
A manipulação da mestiçagem mais explícita, recusa que já claramente
começou cedo, é o que nos dizem os se expressara antes, quando ao final dos
estudiosos do período colonial. Foi levantes dos nagôs, mas sobretudo dos
notório o favorecimento dos que mais se malês, em Salvador, ao longo das déca-
aproximavam, na tez e nas feições, do das de 20 e 30, adotou-se dentre as penas
pólo mais valorizado, aquele aplicadas aos revoltosos vencidos a sua
representado pelo colonizador, quer entre deportação do país e, com ela, o seu re-
os escravos no interior da casa-grande, torno à África 8 .
quer entre os livres ou libertos, em Com o tempo, o desejo de substitui-
relação às ocupações ou aos cargos ção da mão-de-obra escrava por um tra-
públicos de menor importância que iam balhador livre de origem européia foi
se abrindo à medida que a sociedade ganhando corpo até se transformar numa
crescia e se tornava mais complexa. Já no política imigratória de vulto que, a partir
século XVII, o poeta "maldito" Gregório da segunda metade do século XIX, traria
de Matos era pródigo em citações sobre a para o Brasil milhares de italianos,
predileção dos baianos pelas mulatas. No espanhóis, alemães, poloneses, com os
século XVIII, por sua vez, encontramos quais se esperava, também, branquear o
referências explícitas a irmandades de país, alavancando as suas possibilidades
homens pretos e irmandades de homens de inserir-se, definitivamente, na caudal
pardos. da civilização ocidental.
Às vésperas da libertação dos escra-
A mestiçagem como problema vos e da proclamação da República, a
mestiçagem, que até então pouco preocu-
Com o fim do tráfico negreiro e a
para, começou a despertar interesse como
cessação da entrada de africanos, depois
problema social. Era preciso pensar no
de 1850, a relação entre negros e
lugar que os mestiços ocupariam na for-
mestiços passou a se alterar em favor
mação do povo, de quem passaria a ema-
destes e o número de negros só
nar o poder com o fim da monarquia. Em
diminuiria a partir de então.
pouco tempo, não haveria mais africanos
entre nós, apenas seus descendentes: os
6. Esta pesquisa tem como principal objetivo estu-
dar a construção da diversidade e do significado que
crioulos - negros como seus pais - e os
os diferentes tipos foram adquirindo nos séculos mestiços. A situação social dos mestiços,
XVIII e XIX naquela antiga área de mineração. no entanto, mesmo que melhorada em
7. Ver Gilberto Freyre, sobretudo em Casa-grande &
senzala, Sobrados e mocambos e sua extensa bibliogra- 8. Sobre esse assunto, ver Clóvis Morna, Rebeliões da
fia. Também Thales de Azevedo, Povoamento da ci- senzala (São Paulo, Zumbi, 1959); João José Reis,
dade de Salvador (3a ed., Salvador, Itapuã, 1969); As Rebelião escrava no Brasil (São Paulo, Brasiliense,
elite de cor, um estudo de ascensão social (São Paulo, Cia. 1986).
Editora Nacional, 1955).
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relação à dos negros, estava longe de al- mado e radicado em Salvador, em teorizar a
cançar os níveis atingidos pelos brancos, inferioridade do negro, a partir do que
em seu conjunto, encontrando-se muito julgava ser sua incapacidade intelectual
mais próxima daqueles. Por outro lado, na para alcançar as abstrações do monoteísmo
medida em que a condição de mestiço não cristão e estigmatizar a mestiçagem, nunca
implicava, necessariamente, a ruptura com será suficientemente lembrada.
o universo cultural africano, apesar dos Seus estudos, voltados para a avaliação
favores de que gozava entre os brancos, era do nível cultural dos contigentes africanos
comum que partilhasse dos dois mundos que entraram em nosso país, expressavam a
que aqui se defrontavam, o do escravo sua enorme preocupação em conhecer a
africano e o do senhor português, e que matéria-prima de que fôramos formados, a
freqüentemente se visse dividido entre eles, fim de poder avaliar em que medida o nosso
sem a possibilidade de construir o seu. O futuro estaria comprometido 10.
fim da escravidão não faria desaparecer, Considerações dessa natureza deixam
pura e simplesmente, as matrizes culturais claro que, não obstante o propalado
africanas, não importa quão reelaboradas, favoritismo em relação aos mulatos, ao
sincretizadas ou empobrecidas. longo de todo o período colonial e do
A preocupação com a mestiçagem Império, havia uma firme convicção de que
agravar-se-ia com as assertivas do pensa- o projeto de construção de uma nação
mento evolucionista, segundo o qual a brasileira não poderia alicerçar-se sobre a
mestiçagem degenerava. Em razão disto, mestiçagem. O favorecimento em questão
passaria a ser encarada pelas elites pen- teria servido e poderia continuar a servir a
santes como uma séria ameaça ao nosso outros propósitos, mas não ao de dar corpo
futuro. Que povo seríamos nós com aquele a uma identidade nacional.
imenso contingente de negros e mestiços? O ideal de branqueamento ganhava,
O exemplo que nos vinha dos Estados agora, foros de política não apenas dese-
Unidos da América do Norte - onde, como jável, mas também necessária para o país.
dizia Nina Rodrigues, o negro fora Essa aspiração que deita raízes muito
conservado em sua totalidade a uma dis- profundas na formação da sociedade bra-
tância respeitável e evitada toda a mistura sileira, a partir da extensão que a misci-
de raças9 -, mostrava-nos, claramente, que genação assumiu desde os tempos coloniais
civilização era coisa de branco. e da valorização dos mais claros de pele,
A importância de Nina Rodrigues, responsável pelo fenômeno, já observado
médico de origem maranhense, mas for-
10. Sobre o assunto, ver Josildeth G. Consorte, -_.
questão do negros: velhos e novos desafios",
9. R. Nina Rodrigues, O animismo fetichista - os negros São Paulo em Perspectiva, v. 5, n° 1 (São Paulo, .
bahianos (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, mar. 1991).
1935), p. 9.
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por nós e por outros pesquisadores, de oficiais de 1872 a 1890, dão bem uma
"fuga da cor", recebia assim um novo idéia do que se desejava naquele momen-
alento. to para o nosso futuro: nada mais do que
Ao embarcar na política do branquea- 17% de mestiços e zero de negros para
mento, a elite pensante do final do século 80% de brancosl2.
XIX e do início do século XX laborava
em terreno fértil, valendo-se de algo já Uma ode à mestiçagem
firmemente plantado ao longo de tantos
anos de miscigenação. A preocupação com os males da mes-
A tarefa que lhe coube foi apenas a de tiçagem era de tal monta que, na Introdu-
buscar legitimar cientificamente, apoiada ção de "Casa-Grande & senzala", Gilberto
no discurso teórico sobre a inferioridade Freyre confessava nos seguintes termos a
intelectual do negro e a degenerescência apreensão que o fenômeno lhe causava,
do mestiço, a necessidade, o imperativo na década de 20, quando, estudante da
daquela política e de pensar ou propor as Universidade de Columbia, conheceu o
medidas oficiais que precisariam ser professor Franz Boas:
tomadas para acelerar o processo. Se,
como já vimos, a população africana Creio que nenhum estudante russo, dos
tendia a desaparecer, dentre outros românticos, do século XIX, preocupou-
fatores, pela interrupção do tráfico e pelas se mais intensamente pelos destinos da
Rússia do que eu pelos do Brasil na fase
altas taxas de mortalidade, os mestiços só
em que conheci Boas. Era como se tudo
tendiam a crescer. Cumpria encontrar dependesse de mim e dos de minha gera-
uma solução para os males desse ção; da nossa maneira de resolver ques-
crescimento. "De menos de 20 por cento tões seculares. E dos problemas brasilei-
no começo do século XIX, chegaria a ros, nenhum que me inquietasse tanto
mais de 40 por cento no final do século" o como o da miscigenação".
número de pardos no país, segundo Tha-
les de Azevedo!!. A miscigenação tomar-se-ia a pedra
É claro que uma política oficial fran- de toque da obra citada, um marco da
camente favorável ao branqueamento só reflexão brasileira sobre a nossa formação
poderia resultar em uma negação ainda que até hoje desperta grande polêmica.
maior da negritude e de um acirramento
dos preconceitos contra os mais escuros
12. Ver sobre o assunto o texto do dr. J. B. de La-
de pele. O vaticínio do prof. Roquette cerda, diretor do Museu Nacional, intitulado "O
Pinto quanto ao destino dos negros e Congresso Universal das Raças em Londres (1911).
mestiços na população brasileira em torno Apreciação e Comentários" (Rio de Janeiro, Pape-
do ano 2012, a partir das estatísticas laria Macedo, s.d.), junto ao qual foi nosso delega-
do. Ver ainda, a Introdução do Censo de 1920, de
Antônio Oliveira Viana.
11. Thales Azevedo, Democracia racial: ideologia e 13. Gilberto Freyre, Casa-Grande & senzala (Rio de
realidade (Petrópolis, Vozes, 1975). Janeiro, José Olímpio, 1950 [1933]), p. 17.
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Ao se referir dessa forma às suas resultaria, no entanto, tão nova quanto


preocupações com a miscigenação, parece equivocada. Gilberto Freyre faria, a partir de
óbvio que Gilberto Freyre também par- então, uma verdadeira ode à mestiçagem,
tilhava da crença nos seus males, na ameaça passando à História como o fundador do
que a mesma representava para os nossos mito das três raças, da democracia racial no
destinos como país. Seu modo de encará-la, Brasil.
no entanto, mudaria radicalmente a partir É lapidar, nesse sentido, a afirmação
dos ensinamentos daquele de quem se que encontramos na mesma Introdução:
considerou discípulo. Vale a pena
transcrever o relato que faz documentando a A miscigenação que largamente se prati-
sua conversão. cou aqui corrigiu a distância social que
doutro modo se teria conservado enorme
entre a casa-grande e a mata tropical;
Vi uma vez, depois de mais de três anos
entre a casa-grande e a senzala.
maciços de ausência do Brasil, um ban-
do de marinheiros nacionais - mulatos e
cafuzos - descendo não me lembro se do Se ao usar o vernáculo "corrigir" quis dizer
São Paulo ou do Minas pela neve mole "eliminar, suprimir", sabemos todos quão
de Brooklin. Deram-me a impressão de longe da verdade esteve e está essa
caricaturas de homens. E veio-me à lem- afirmação. Talvez ele quisesse dizer apenas
brança a frase de um livro de viajante que com a mestiçagem evitamos a
americano que acabara de ler sobre o segregação, o apartheíd que ele pôde tes-
Brasil: "the fearfully mongrel aspect of
temunhar vivendo nos Estados Unidos. Mas,
most of the population". A miscigenação
quem sabe os resultados mais irretorquíveis
resultava naquilo14 •
da mestiçagem não seriam mesmo só
Gilberto Freyre aprenderia com Boas a aqueles por ele condensados logo no início
separar do capítulo quatro, o primeiro dedicado ao
negro?
dos traços de raça os efeitos do ambiente
ou da experiência cultural ( ... ) a Todo brasileiro, mesmo o alvo, de
considerar fundamental a diferença entre cabelo louro, traz na alma, quando não
raça e cultura; a discriminar entre os na alma e no corpo ... a sombra ou pelo
efeitos de relações puramente genéticas menos a pinta, do indígena ou do negro.
e os de influências sociais, de herança
cultural e de meio, A crença na degenerescência do mestiço
parece ter sido, definitivamente, sepultada
e tomando por base esses critérios de di- nos anos 30 deste século, e com ela a
ferenciação assentaria todo o seu famoso política deliberada de branqueamento, mas o
ensaio'5. Sua visão nova sobre a mestiçagem universo cultural que aqui se constituíra a
partir das matrizes africanas certamente não
14. Idem, ibid. São Paulo e Minas Gerais eram nomes combina,-a com o projeto de país
de encouraçados brasileiros ancorados no porto de
Nova York.
comprometido
15. Idem, ibid, p. 18.
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com a civilização ocidental que se dese- o debate contemporâneo


java, cada vez mais decididamente, im-
plantar e conheceu ao longo daqueles Na década de 50, os estudos sobre a
anos a repressão mais aguda: o samba, a presença do negro na sociedade brasileira
capoeira e, sobretudo, o candomblé foram mudarão mais uma vez de perspectiva e
alvos de dura perseguição policial naquele são as relações raciais que vão ocupar o
período. lugar da preocupação com a cultura que
O processo de desafricanização da so- dominara as duas décadas anteriores. A
ciedade brasileira deveria se constituir mestiçagem passa a ser percebida, então,
como uma tarefa da educação nacional e é do ângulo do preconceito e da discrimina-
a Arthur Ramos que devemos um dos ção de que os negros e seus descendentes
pronunciamentos mais significativos nes- eram alvo no processo de integração à so-
se particular, quando disse ao se referir às ciedade, a despeito do já então consagrado
"formas elementares do sentimento reli- mito da democracia racial. Inúmeros
gioso de origem negra no Brasil" por ele estudos foram produzidos a partir dessa
investiga das directamente nos "candom- ótica, por todo o país16, e, em todos eles,
blés" da Bahia, nas "macumbas" do Rio através de indicadores sociais de ocupa-
de Janeiro e nos "catimbós" nordestinos: ção, instrução, renda, etc., confirmava-se
o melhor desempenho dos pardos em re-
para a obra de educação e da cultura, é lação aos de pele mais escura e traços
preciso conhecer essas modalidades do mais negróides. A ascensão social era um
pensamento "primitivo", para corrigi-lo, fato mais pronunciado nas regiões Norte e
elevando-o a etapas mais adiantadas, o que Nordeste e nela se concentravam as espe-
só será conseguido por uma revolução ranças de que, com o tempo, as desigual-
educacional que aja profundidade, uma dades de origem racial desaparecessem.
revolução "vertical" e "intersticial" que
Se em São Paulo o processo de exclusão
desça aos degraus remotos do inconsciente
do negro havia sido mais vigoroso,
coletivo e solte as amarras prélógicas a
que se acha acorrentado.
mesmo essa particularidade não deveria
impedir que a mais longo prazo o
A partir da década de 30, com o des- problema se resolvesse.
locamento do enfoque dos estudos para a
dimensão da cultura, negros e mestiços 16. É muito vasta a bibliografia neste particular,
começarão a ser referidos como" afro-bra- enriquecida como foi pelo patrocinio da Unesco.
sileiros", denominação esta que seria ado- Dela fazem parte, dentre outros, os estudos reali-
zados na Bahia por Thales de Azevedo, Charles
tada até os dias que correm para qualificar
Wagley e seus alunos; em Recife, por Renê Ribei-
as manifestações religiosas oriundas da ro; no Rio de Janeiro, por L.A da Costa Pinto e em
matriz africana, mas que vem sendo São Paulo, por Roger Bastide, Florestan
contestada, nos últimos anos, como capaz Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio
Ianni, dentre outros. Cumpre destacar ainda as
de expressar adequadamente a realidade
contribuições de Oracy Nogueira e de Donald
vivida por aqueles. Pierson, esta ainda na década de 40.
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Até a década de 70, os estudos sobre conseguiram destruir até hoje o ideal do
o negro, entre nós, foram realizados, em branqueamento"'? . Será que a destruição
sua esmagadora maioria, por cientistas desse ideal implicaria o fim dos casamen-
sociais brancos, tomando-o como objeto tos mistos? É uma pergunta que me ocor-
de reflexão de fora para dentro, a partir de re, mas cuja resposta só seria afirmativa
uma percepção externa da sua realidade, caso os mesmos fossem movidos apenas
qualquer que fosse a problemática por este ideal. O enfrentamento adequado
focalizada, a cultural ou a social. dessa questão coloca a necessidade
Desde então, com a emergência do imperiosa de uma pesquisa ampla sobre a
movimento negro, sob o impacto das relevância da cor nas escolhas afetivas de
transformações que vinham atingindo o homens e mulheres, investigação que
18
negro no mundo, a tendência acima refe- apenas se inicia.
rida, se já não se inverteu, vem se inver- Não se poderia supor que a dificul-
tendo a passos largos, inversão esta que dade experimentada pelos referidos mo-
está implicando a assunção pelo negro da vimentos em levar os mestiços a se iden-
condição de sujeito da reflexão sobre a tificarem como negros, como acontece no
sua história e o seu destino, colocando ao modelo americano, resultaria de uma
mesmo tempo a necessidade de definição identificação já construída por eles como
do que é ser negro e de quem é negro tais ao longo destes quase quinhentos anos,
neste país. Tal resgate não poderia passar apesar dos pesares?
ao largo da questão da mestiçagem e vem Nem todos os mestiços parecem se
resultando na sua negação como um valor sentir confortáveis com a perda de refe-
a ser cultivado, um ideal a ser buscado. rência à sua cor, ainda que recusando o
Dessa perspectiva, a mestiçagem só rótulo de pardos com o qual a Fundação
representa um valor, em si, quando se IEGE tem buscado enquadrá-las. Uma
toma como referência o mundo dominado pesquisa realizada na cidade de Rio de
pelo eurocentrismo e se considera, como Contas, no estado da Bahia, tornou evi-
a meta a ser atingida pelo negro, tornar-se dente a imensa popularidade de que goza
branco. Logo, na (re)construção de uma a categoria "moreno(a)" oferecida aos
identidade negra, o inverso é que deve ser entrevistados em substituição à categoria
buscado. Tornar-se negro equivale, desse "pardo" usada oficialmente para identi-
modo, a recusar a mestiçagem como fonte ficar os mestiços. Mesmo muitos dos que,
legítima de identidade. em outra situação, haviam se identificado
O professor Kabengele Munanga, to- como "brancos" preferiam juntar-se
davia, constata na sua tese, referida no
17. Kabengele Munanga, op. cit., p. 9.
início, que os movimentos negros têm
18. Acaba de ser apresentada na PUC-SP uma dis-
tido dificuldade "em mobilizar todos os
sertação de mestrado sobre o tema, intitulada: “A
negros e mestiços em torno de uma única sexualidade dos adolescentes negros: o significado
identidade negra", dificuldade que, atribuído na escolha do parceiro afetivo e sexual”,
segundo ele, viria "do fato de que não de autoria de Maria José P. dos Santos.
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ou incluir-se entre "morenos" quando tinham Como se dá o processo de assunção da


essa chance. Essa preferência pode, negritude num país tão fortemente marcado
evidentemente, expressar uma tentativa de pela mestiçagem? Em que circunstâncias os
incorporar a cor sem que seja necessário ter que se percebiam mestiços passam a se
que remetê-Ia explicitamente à raça, o que assumir negros?
não deixa de ser um expediente dissimula Quando se fala em mestiçagem, no
dor ou negador de uma origem negra, ainda Brasil, fica sempre a impressão de que os
que remota'9. mulatos, sendo seus grandes beneficiários,
No entanto, parece crescente o número não são discriminados e se sentem
de mestiços que vão se assumindo como absolutamente à vontade como tais, mas não
negros, segundo dados da revista Raça é isto o que realmente acontece. O
Brasil20, muito embora o espaço ocupado preconceito e a discriminação contra eles
pelos mestiços no interior dos movimentos podem ser ainda mais sutis porque mais
negros ainda pareça pequeno e seja possível disfarçados, menos óbvios. A literatura está
perceber nos círculos negros um sentimento, cheia de exemplos nesse sentido 22• Quando
implícito de um modo geral, mas por vezes se trata da mulata, então, assumem um
explícito, de que legitimamente negros são colorido todo particular, como bem mostra o
os de pele mais escura, aqueles mais artigo de Elaine Rocha, doutoranda em
atingidos pelo preconceito e pela História pela USP, numa das revistas acima
discriminação e que têm se colocado mais à citadas23•
frente da luta anti-racista. Numa entrevista O lugar do mestiço, na sociedade bra-
recente à revista Claudia, Glória Maria, sileira, longe de ser um lugar confortável, é
repórter negra dos quadros da TV Globo e assim, também, um lugar de denúncia do
no momento uma das âncoras do Fantástico, preconceito e da discriminação que não
o programa dominical de maior audiência da atingem só o negro, mas a ele também.
TV brasileira, ao ser perguntada sobre sua O debate sobre a mestiçagem como
participação em entidades que defendem os fonte de identidade, no entanto, não encontra
negros respondeu: muitos adeptos, nem aqui nem lá fora,
continuando a gozar de muito pouca
Não. Não levanto bandeiras. Minha pre- popularidade. A luta pelo reconhecimento da
sença é uma forma de lutar. Não sou mu- diferença, pelo respeito à diversidade,
[atinha, sou negra e a minha cara no vídeo é
característica do multiculturalismo
a minha denúncia".
contemporâneo, tão acesa nos EUA e na
Europa, por exemplo, não tem se ocupado
19. M. Harris, J. C. Consorte et al., "Who are the
whites? Imposed census categories and the racial
demography of Brazil", em Social Corses, v. 72, nº 2, 22. O mulato, romance de Aluísio Azevedo, pode ser
dez. 1993. um deles.
20. Raça Brasil, ano 3, n° 24, ago. 1998. 23. Elaine Rocha, "Profissão mulata", em Raça Brasil,
21. Revista Claudia, ano 30, nº 10, out. 1999. ano 3, n° 27, novo 1998.
DOSSIÊ: 500 ANOS DE BRASILlDADES - A MESTIÇAGEM NO BRASIL: ARMADILHAS E IMPASSES 117

dessa questão, como se a mesma lhe fosse e não há como negar que são particular-
indiferente ou irrelevante. mente os negros e os mestiços os que sentem
Desprovidos de marcas culturais que mais diretamente os seus efeitos.
lhes sejam específicas mas algumas vezes Como corrigir a distância que os separa
rotulados como portadores de características parece-me no momento o grande desafio que
de personalidade pouco lisonjeiras - a nossa história engendrou e colocou no
inzoneiros, pernósticos, presunçosos, os caminho da nossa luta comum por
mestiços brasileiros, espécie de faixa de cor igualdade.
movediça, de contornos cambiantes e
imprecisos, vêm sendo, nos últimos anos,
cada vez mais pressionados em várias
instâncias, velada ou abertamente, a re-
nunciar de vez a qualquer pretensão de se
constituírem como expressão legítima de
diversidade, em favor da assunção de uma
identidade negra, condição considerada
essencial à luta contra o racismo no país.
Desde o final dos anos 70, por exemplo,
vem se cogitando de alterar as categorias
referentes à cor utilizadas pelo IBGE no
Censo Demográfico com a intenção explícita
de suprimir a rubrica "pardo". Uma das
alternativas aventadas tem sido a adoção de
uma classificação da população brasileira em
brancos e não brancos, já empregada aliás
em vários estudos24, com a qual se julga de
uma vez por todas poder resolver as
ambigüidades permitidas pelo sistema atual
desmistificar a nossa democracia racial e
contribuir mais eficazmente para o combate
ao racismo vigente entre nós.
O combate ao racismo na sociedade
brasileira concerne a todos, porque ele fere
direitos essenciais da pessoa humana e nos
impede de crescer como nação,

24. Carlos A. Hasenbalg, A discriminação e desigual- Josildeth Gomes Consorte, professora


dades raciais no Brasil (Rio de Janeiro, Graal, 1979). titular do Depto. de Antropologia da
PUC-SP.
MARGE

500 anos
de brasilidades
DOSSIÊ: John Updike • Claude Lévi-Strauss •
Mariza Werneck • Daniel Dubuisson • Luiz
Eduardo W. Wanderley • Maristela Toma • Maura
Pardini Bicudo Véras • Josildeth Gomes
Consorte • Celia Pedrosa • Carmen Junqueira •
José Oscar Beozzo

Edmilson Felipe • Lucia Helena Rangel • Takumã •


Nekumarú • Akauã • Kuiékuié • Luc de Heusch • Guilherme
Simões Gomes Júnior • Marcos Bernardino de Carvalho •
Lucia M. M. B.ógus • M. Silvia B. Bassanesi • Edson
Passetti • Guga Dorea • Edgard de Assis Carvalho •
Ràberto Adrian Ribaric

Dez. 1999 São Paulo educ FAPESP nº 10

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