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armadilhas e impasses
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JOSILDETH GOMES CONSORTE
Arquivo de Rio de Contas, no estado da Por outro lado, à medida que crescia
Bahia, apontam claramente para o senti- o movimento abolicionista, a recusa do
do dessas distinções 6 . escravo africano ia se tornando cada vez
A manipulação da mestiçagem mais explícita, recusa que já claramente
começou cedo, é o que nos dizem os se expressara antes, quando ao final dos
estudiosos do período colonial. Foi levantes dos nagôs, mas sobretudo dos
notório o favorecimento dos que mais se malês, em Salvador, ao longo das déca-
aproximavam, na tez e nas feições, do das de 20 e 30, adotou-se dentre as penas
pólo mais valorizado, aquele aplicadas aos revoltosos vencidos a sua
representado pelo colonizador, quer entre deportação do país e, com ela, o seu re-
os escravos no interior da casa-grande, torno à África 8 .
quer entre os livres ou libertos, em Com o tempo, o desejo de substitui-
relação às ocupações ou aos cargos ção da mão-de-obra escrava por um tra-
públicos de menor importância que iam balhador livre de origem européia foi
se abrindo à medida que a sociedade ganhando corpo até se transformar numa
crescia e se tornava mais complexa. Já no política imigratória de vulto que, a partir
século XVII, o poeta "maldito" Gregório da segunda metade do século XIX, traria
de Matos era pródigo em citações sobre a para o Brasil milhares de italianos,
predileção dos baianos pelas mulatas. No espanhóis, alemães, poloneses, com os
século XVIII, por sua vez, encontramos quais se esperava, também, branquear o
referências explícitas a irmandades de país, alavancando as suas possibilidades
homens pretos e irmandades de homens de inserir-se, definitivamente, na caudal
pardos. da civilização ocidental.
Às vésperas da libertação dos escra-
A mestiçagem como problema vos e da proclamação da República, a
mestiçagem, que até então pouco preocu-
Com o fim do tráfico negreiro e a
para, começou a despertar interesse como
cessação da entrada de africanos, depois
problema social. Era preciso pensar no
de 1850, a relação entre negros e
lugar que os mestiços ocupariam na for-
mestiços passou a se alterar em favor
mação do povo, de quem passaria a ema-
destes e o número de negros só
nar o poder com o fim da monarquia. Em
diminuiria a partir de então.
pouco tempo, não haveria mais africanos
entre nós, apenas seus descendentes: os
6. Esta pesquisa tem como principal objetivo estu-
dar a construção da diversidade e do significado que
crioulos - negros como seus pais - e os
os diferentes tipos foram adquirindo nos séculos mestiços. A situação social dos mestiços,
XVIII e XIX naquela antiga área de mineração. no entanto, mesmo que melhorada em
7. Ver Gilberto Freyre, sobretudo em Casa-grande &
senzala, Sobrados e mocambos e sua extensa bibliogra- 8. Sobre esse assunto, ver Clóvis Morna, Rebeliões da
fia. Também Thales de Azevedo, Povoamento da ci- senzala (São Paulo, Zumbi, 1959); João José Reis,
dade de Salvador (3a ed., Salvador, Itapuã, 1969); As Rebelião escrava no Brasil (São Paulo, Brasiliense,
elite de cor, um estudo de ascensão social (São Paulo, Cia. 1986).
Editora Nacional, 1955).
DOSSIÊ: 500 ANOS DE BRASILlDADES - A MESTIÇAGEM NO BRASIL: ARMADILHAS E IMPASSES
relação à dos negros, estava longe de al- mado e radicado em Salvador, em teorizar a
cançar os níveis atingidos pelos brancos, inferioridade do negro, a partir do que
em seu conjunto, encontrando-se muito julgava ser sua incapacidade intelectual
mais próxima daqueles. Por outro lado, na para alcançar as abstrações do monoteísmo
medida em que a condição de mestiço não cristão e estigmatizar a mestiçagem, nunca
implicava, necessariamente, a ruptura com será suficientemente lembrada.
o universo cultural africano, apesar dos Seus estudos, voltados para a avaliação
favores de que gozava entre os brancos, era do nível cultural dos contigentes africanos
comum que partilhasse dos dois mundos que entraram em nosso país, expressavam a
que aqui se defrontavam, o do escravo sua enorme preocupação em conhecer a
africano e o do senhor português, e que matéria-prima de que fôramos formados, a
freqüentemente se visse dividido entre eles, fim de poder avaliar em que medida o nosso
sem a possibilidade de construir o seu. O futuro estaria comprometido 10.
fim da escravidão não faria desaparecer, Considerações dessa natureza deixam
pura e simplesmente, as matrizes culturais claro que, não obstante o propalado
africanas, não importa quão reelaboradas, favoritismo em relação aos mulatos, ao
sincretizadas ou empobrecidas. longo de todo o período colonial e do
A preocupação com a mestiçagem Império, havia uma firme convicção de que
agravar-se-ia com as assertivas do pensa- o projeto de construção de uma nação
mento evolucionista, segundo o qual a brasileira não poderia alicerçar-se sobre a
mestiçagem degenerava. Em razão disto, mestiçagem. O favorecimento em questão
passaria a ser encarada pelas elites pen- teria servido e poderia continuar a servir a
santes como uma séria ameaça ao nosso outros propósitos, mas não ao de dar corpo
futuro. Que povo seríamos nós com aquele a uma identidade nacional.
imenso contingente de negros e mestiços? O ideal de branqueamento ganhava,
O exemplo que nos vinha dos Estados agora, foros de política não apenas dese-
Unidos da América do Norte - onde, como jável, mas também necessária para o país.
dizia Nina Rodrigues, o negro fora Essa aspiração que deita raízes muito
conservado em sua totalidade a uma dis- profundas na formação da sociedade bra-
tância respeitável e evitada toda a mistura sileira, a partir da extensão que a misci-
de raças9 -, mostrava-nos, claramente, que genação assumiu desde os tempos coloniais
civilização era coisa de branco. e da valorização dos mais claros de pele,
A importância de Nina Rodrigues, responsável pelo fenômeno, já observado
médico de origem maranhense, mas for-
10. Sobre o assunto, ver Josildeth G. Consorte, -_.
questão do negros: velhos e novos desafios",
9. R. Nina Rodrigues, O animismo fetichista - os negros São Paulo em Perspectiva, v. 5, n° 1 (São Paulo, .
bahianos (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, mar. 1991).
1935), p. 9.
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por nós e por outros pesquisadores, de oficiais de 1872 a 1890, dão bem uma
"fuga da cor", recebia assim um novo idéia do que se desejava naquele momen-
alento. to para o nosso futuro: nada mais do que
Ao embarcar na política do branquea- 17% de mestiços e zero de negros para
mento, a elite pensante do final do século 80% de brancosl2.
XIX e do início do século XX laborava
em terreno fértil, valendo-se de algo já Uma ode à mestiçagem
firmemente plantado ao longo de tantos
anos de miscigenação. A preocupação com os males da mes-
A tarefa que lhe coube foi apenas a de tiçagem era de tal monta que, na Introdu-
buscar legitimar cientificamente, apoiada ção de "Casa-Grande & senzala", Gilberto
no discurso teórico sobre a inferioridade Freyre confessava nos seguintes termos a
intelectual do negro e a degenerescência apreensão que o fenômeno lhe causava,
do mestiço, a necessidade, o imperativo na década de 20, quando, estudante da
daquela política e de pensar ou propor as Universidade de Columbia, conheceu o
medidas oficiais que precisariam ser professor Franz Boas:
tomadas para acelerar o processo. Se,
como já vimos, a população africana Creio que nenhum estudante russo, dos
tendia a desaparecer, dentre outros românticos, do século XIX, preocupou-
fatores, pela interrupção do tráfico e pelas se mais intensamente pelos destinos da
Rússia do que eu pelos do Brasil na fase
altas taxas de mortalidade, os mestiços só
em que conheci Boas. Era como se tudo
tendiam a crescer. Cumpria encontrar dependesse de mim e dos de minha gera-
uma solução para os males desse ção; da nossa maneira de resolver ques-
crescimento. "De menos de 20 por cento tões seculares. E dos problemas brasilei-
no começo do século XIX, chegaria a ros, nenhum que me inquietasse tanto
mais de 40 por cento no final do século" o como o da miscigenação".
número de pardos no país, segundo Tha-
les de Azevedo!!. A miscigenação tomar-se-ia a pedra
É claro que uma política oficial fran- de toque da obra citada, um marco da
camente favorável ao branqueamento só reflexão brasileira sobre a nossa formação
poderia resultar em uma negação ainda que até hoje desperta grande polêmica.
maior da negritude e de um acirramento
dos preconceitos contra os mais escuros
12. Ver sobre o assunto o texto do dr. J. B. de La-
de pele. O vaticínio do prof. Roquette cerda, diretor do Museu Nacional, intitulado "O
Pinto quanto ao destino dos negros e Congresso Universal das Raças em Londres (1911).
mestiços na população brasileira em torno Apreciação e Comentários" (Rio de Janeiro, Pape-
do ano 2012, a partir das estatísticas laria Macedo, s.d.), junto ao qual foi nosso delega-
do. Ver ainda, a Introdução do Censo de 1920, de
Antônio Oliveira Viana.
11. Thales Azevedo, Democracia racial: ideologia e 13. Gilberto Freyre, Casa-Grande & senzala (Rio de
realidade (Petrópolis, Vozes, 1975). Janeiro, José Olímpio, 1950 [1933]), p. 17.
DOSSIÊ: 500 ANOS DE BRASILlDADES - A MESTIÇAGEM NO BRASIL: ARMADILHAS E IMPASSES 1-
Até a década de 70, os estudos sobre conseguiram destruir até hoje o ideal do
o negro, entre nós, foram realizados, em branqueamento"'? . Será que a destruição
sua esmagadora maioria, por cientistas desse ideal implicaria o fim dos casamen-
sociais brancos, tomando-o como objeto tos mistos? É uma pergunta que me ocor-
de reflexão de fora para dentro, a partir de re, mas cuja resposta só seria afirmativa
uma percepção externa da sua realidade, caso os mesmos fossem movidos apenas
qualquer que fosse a problemática por este ideal. O enfrentamento adequado
focalizada, a cultural ou a social. dessa questão coloca a necessidade
Desde então, com a emergência do imperiosa de uma pesquisa ampla sobre a
movimento negro, sob o impacto das relevância da cor nas escolhas afetivas de
transformações que vinham atingindo o homens e mulheres, investigação que
18
negro no mundo, a tendência acima refe- apenas se inicia.
rida, se já não se inverteu, vem se inver- Não se poderia supor que a dificul-
tendo a passos largos, inversão esta que dade experimentada pelos referidos mo-
está implicando a assunção pelo negro da vimentos em levar os mestiços a se iden-
condição de sujeito da reflexão sobre a tificarem como negros, como acontece no
sua história e o seu destino, colocando ao modelo americano, resultaria de uma
mesmo tempo a necessidade de definição identificação já construída por eles como
do que é ser negro e de quem é negro tais ao longo destes quase quinhentos anos,
neste país. Tal resgate não poderia passar apesar dos pesares?
ao largo da questão da mestiçagem e vem Nem todos os mestiços parecem se
resultando na sua negação como um valor sentir confortáveis com a perda de refe-
a ser cultivado, um ideal a ser buscado. rência à sua cor, ainda que recusando o
Dessa perspectiva, a mestiçagem só rótulo de pardos com o qual a Fundação
representa um valor, em si, quando se IEGE tem buscado enquadrá-las. Uma
toma como referência o mundo dominado pesquisa realizada na cidade de Rio de
pelo eurocentrismo e se considera, como Contas, no estado da Bahia, tornou evi-
a meta a ser atingida pelo negro, tornar-se dente a imensa popularidade de que goza
branco. Logo, na (re)construção de uma a categoria "moreno(a)" oferecida aos
identidade negra, o inverso é que deve ser entrevistados em substituição à categoria
buscado. Tornar-se negro equivale, desse "pardo" usada oficialmente para identi-
modo, a recusar a mestiçagem como fonte ficar os mestiços. Mesmo muitos dos que,
legítima de identidade. em outra situação, haviam se identificado
O professor Kabengele Munanga, to- como "brancos" preferiam juntar-se
davia, constata na sua tese, referida no
17. Kabengele Munanga, op. cit., p. 9.
início, que os movimentos negros têm
18. Acaba de ser apresentada na PUC-SP uma dis-
tido dificuldade "em mobilizar todos os
sertação de mestrado sobre o tema, intitulada: “A
negros e mestiços em torno de uma única sexualidade dos adolescentes negros: o significado
identidade negra", dificuldade que, atribuído na escolha do parceiro afetivo e sexual”,
segundo ele, viria "do fato de que não de autoria de Maria José P. dos Santos.
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dessa questão, como se a mesma lhe fosse e não há como negar que são particular-
indiferente ou irrelevante. mente os negros e os mestiços os que sentem
Desprovidos de marcas culturais que mais diretamente os seus efeitos.
lhes sejam específicas mas algumas vezes Como corrigir a distância que os separa
rotulados como portadores de características parece-me no momento o grande desafio que
de personalidade pouco lisonjeiras - a nossa história engendrou e colocou no
inzoneiros, pernósticos, presunçosos, os caminho da nossa luta comum por
mestiços brasileiros, espécie de faixa de cor igualdade.
movediça, de contornos cambiantes e
imprecisos, vêm sendo, nos últimos anos,
cada vez mais pressionados em várias
instâncias, velada ou abertamente, a re-
nunciar de vez a qualquer pretensão de se
constituírem como expressão legítima de
diversidade, em favor da assunção de uma
identidade negra, condição considerada
essencial à luta contra o racismo no país.
Desde o final dos anos 70, por exemplo,
vem se cogitando de alterar as categorias
referentes à cor utilizadas pelo IBGE no
Censo Demográfico com a intenção explícita
de suprimir a rubrica "pardo". Uma das
alternativas aventadas tem sido a adoção de
uma classificação da população brasileira em
brancos e não brancos, já empregada aliás
em vários estudos24, com a qual se julga de
uma vez por todas poder resolver as
ambigüidades permitidas pelo sistema atual
desmistificar a nossa democracia racial e
contribuir mais eficazmente para o combate
ao racismo vigente entre nós.
O combate ao racismo na sociedade
brasileira concerne a todos, porque ele fere
direitos essenciais da pessoa humana e nos
impede de crescer como nação,
500 anos
de brasilidades
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