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28982019 57
Artigo Article
a desqualificação do Ensino Médio Flexível
Abstract This article analyzes high school educa- Resumo Este artigo propõe-se a analisar a re-
tion reform and its impact on the education pro- forma do Ensino Médio e seus impactos para o
ject on those who work for a living. By analyzing projeto de educação dos que vivem do trabalho. A
Law 13.415/2017, recent statistics and the new partir da análise da Lei 13.415/2017, das estatís-
proposal for curricular organization, arguments ticas recentes e da nova proposta de organização
will be identified that point to the flexibilization curricular, vai levantar argumentos que apontam
of high school education as an expression of the a flexibilização do Ensino Médio como uma das
pedagogical project of the flexible accumulation expressões do projeto pedagógico do regime de
system, whose logic continues to be the unequal acumulação flexível, cuja lógica continua sendo a
distribution of knowledge, but in a differentiated distribuição desigual do conhecimento, porém com
way. The aim is the formation of flexible subjecti- uma forma diferenciada. Seu objetivo é a forma-
vities submitted to the precarity of work, naturali- ção de subjetividades flexíveis que se submetam à
zing instability, insecurity and deregulation for an precarização do trabalho, naturalizando a insta-
alleged autonomy of choice. From the ontological bilidade, a insegurança e a desregulamentação em
viewpoint, the article shows that the high school nome da suposta autonomia de escolha. Do ponto
education reform responds to the alignment of the de vista ontológico, o artigo aponta que a reforma
flexible accumulation system formation. In epis- do Ensino Médio responde ao alinhamento da for-
temological terms, it compares the conception of mação ao regime de acumulação flexível. Do pon-
praxis that guided the drafting of the curricular to de vista epistemológico, confronta a concepção
guidelines in 2012 with the dimensions of indivi- de práxis que orientou a elaboração das diretrizes
dualism, fragmentation, presentism and pragma- curriculares em 2012, com as dimensões de indi-
tism present in the new guidelines. Based on the vidualismo, fragmentação, presentismo e pragma-
analysis, the author emphasizes the need to create tismo presentes nas novas diretrizes. A partir da
other forms of curricular organization in the exer- análise, a autora reforça a necessidade de criar ou-
cise of autonomy by the school as an alternative tras formas de organização curricular no exercício
for the integral formation of young individuals. da autonomia pela escola como uma alternativa
Key words High school education reform, Flexi- para a formação integral dos jovens.
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Universidade Federal do bilization of high school education, Pedagogy in Palavras-chave Reforma do ensino médio, Flexi-
Paraná. R. XV de Novembro the flexible accumulation system bilização do ensino médio, Pedagogia da acumu-
1299, Centro. 80060- lação flexível
000 Curitiba PR Brasil.
acaciak4@gmail.com
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Kuenzer AZ et al.
se distanciam das possibilidades de acesso à edu- jovens pobres, mesmo escolarizados, os que têm
cação, enquanto direito fundamental. mais dificuldade de acesso a trabalho5.
Essa tendência se reforça com a redução, em A hipótese com a qual venho trabalhando nos
2017, de 1,3 milhões de matrículas na educação últimos anos, provocada pelas pesquisas de Zibas6
básica em comparação com o ano de 2014 (2,6) e e por minhas próprias investigações7, é a da inver-
a taxa de distorção idade-série alcança 24,7% das são da proposta dual que, até os primeiros anos
matrículas dos anos finais do ensino fundamen- da década de 1990, apresentava a escola média de
tal e 28,2% das matrículas do ensino médio. educação geral para a burguesia e a escola profis-
Segundo o mesmo relatório, a proporção de sional para os trabalhadores. E, dadas as condições
alunos do sexo masculino com defasagem de de precarização que as escolas médias públicas que
idade em relação à etapa que cursam é maior do atendem os que vivem do trabalho têm apresenta-
que a do sexo feminino em todas as etapas de en- do, a educação geral, antes reservada à elite, quan-
sino. Com relação à cor/raça, percebe-se que as do disponibilizada aos trabalhadores, banalizou-
maiores proporções de alunos de cor/raça branca se e desqualificou-se. Ou seja, a burguesia, quando
são identificadas na creche (54,7%) e na educa- disponibiliza a versão geral para os trabalhadores,
ção profissional concomitante ou subsequente o faz de forma desqualificada; e o ensino médio
(50,1%), representando mais da metade dos alu- de educação geral passou a ser escola para os filhos
nos dessas etapas; pretos e pardos são maioria nas dos outros, enquanto a educação em ciência e tec-
demais etapas de ensino, em especial na educa- nologia passou a ser a opção dos filhos da burgue-
ção de jovens e adultos (EJA), onde representam sia, mesmo que no ensino superior; para esses, o
72,3% dos alunos. Esses percentuais podem ser ensino médio é apenas um degrau necessário para
maiores, uma vez que a ausência da informação o acesso aos cursos valorizados pelo mercado, no
de cor/raça ainda alcança 23,0% em cada uma regime de acumulação flexível8.
das etapas da educação básica. Os dados apresentados até aqui, portanto,
Especificamente no ensino médio, em 2018, mostram que a perspectiva é a redução dos in-
foram registradas 7,7 milhões de matrículas, se- dicadores de acesso e sucesso no ensino médio
guindo a tendência de queda nos últimos anos; para a classe trabalhadora, a par da redução das
nesse período, o número total de matrículas no oportunidades de emprego, por muitos justifica-
ensino médio reduziu 7,1%. No sentido contrá- da pela falta de escolaridade e pela baixa quali-
rio, a matrícula integrada à educação profissio- dade da escola pública. Como afirma a OCDE, o
nal cresceu 24,9% no último ano, passando de menor nível de escolaridade tende a ser associado
468.212, em 2014, para 584.564 matrículas, em com a maior desigualdade de renda; menos empre-
20184. go e salários mais baixos3.
Com relação à localização, o número de ma-
trículas do ensino médio concentra-se (95,3%) A flexibilização da proposta curricular do
em escolas urbanas. Além disso, 96,1% das ma- ensino médio é a expressão pedagógica da
trículas da zona rural são atendidas pela rede flexibilização do regime de acumulação
pública. A rede federal é a que apresenta, pro-
porcionalmente, o maior número de matrículas Como já tenho afirmado em outros artigos9,
localizadas na zona rural. a flexibilização do Ensino Médio é uma das ex-
Os números aqui apresentados permitem pressões do projeto pedagógico do regime de
algumas conclusões acerca da ampliação dos di- acumulação flexível, cuja lógica continua sendo
reitos à educação da classe trabalhadora. Inicial- a distribuição desigual do conhecimento, porém
mente, há que considerar que a oferta de Ensino com uma forma diferenciada. Esse regime se fun-
Médio, integrado ou não à EP, nível mais crítico damenta, entre outras características, na flexibi-
com relação à inclusão, é predominantemente lidade dos processos de trabalho, dos mercados
para os jovens brancos, masculinos e urbanos. de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Em seguida, estudos têm mostrado que a taxa Essa flexibilização vem acompanhada pela com-
de desocupação dos jovens mais pobres que têm binação entre integração produtiva, investimento
entre 11 a 14 anos de estudos, o que correspon- em tecnologia intensiva de capital e de gestão e
deria ao ensino médio, pelo menos incompleto, consumo precarizado da força de trabalho, acen-
não se reduziu com a ampliação da escolaridade; tuando o desenvolvimento desigual, tanto entre
ao contrário, se elevou, mostrando que o esfor- setores como entre regiões geográficas.
ço educacional deste segmento não diminui suas Como esse processo, por natureza é preca-
dificuldades de obtenção de ocupação. São os rizador e intensificador do trabalho, para que o
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rede que integra diferentes formas de subcontra- ganização curricular aprovada, ao flexibilizar os
tação e trabalho temporário e que, ao combinar percursos, institucionaliza o acesso desigual e di-
diferentes estratégias de extração de mais-valia, ferenciado ao conhecimento.
asseguram a realização da lógica mercantil. Em resumo, o Ensino Médio, na atual versão,
Se há combinação entre trabalhos desiguais integrando a pedagogia da acumulação flexível,
e diferenciados ao longo das cadeias produtivas, tem como finalidade a formação de trabalha-
há também demandas diferenciadas, e desiguais, dores com subjetividades flexíveis, por meio de
de qualificação dos trabalhadores, que podem uma base de educação geral complementada por
ser rapidamente atendidas pelas estratégias da itinerários formativos por área de conhecimen-
aprendizagem flexível, o que permite que as con- to, incluindo a educação técnica e profissional; a
tratações sejam definidas a partir de um perfil de formação profissional é disponibilizada de forma
trabalhador com aportes de educação geral e ca- diferenciada por origem de classe, de modo a le-
pacidade para aprender novos processos, e não a var os que vivem do trabalho a exercer, e aceitar,
partir da qualificação7. de forma natural, as múltiplas tarefas no mercado
Daí o caráter “flexível” da força de trabalho; flexibilizado. Ser multitarefa, neste caso, implica
importa menos a qualificação prévia do que a exercer trabalhos disponibilizados pelo mercado,
adaptabilidade, que inclui tanto as competências para os quais seja suficiente um rápido treina-
anteriormente desenvolvidas, cognitivas, práticas mento, a partir de algum aporte de educação ge-
ou comportamentais, quanto a competência para ral, seja no nível básico, técnico ou superior.
aprender e para submeter-se ao novo, o que su- Para alguns, significará exercer trabalhos
põe subjetividades disciplinadas que lidem ade- qualificados e criativos; esses não serão atingidos
quadamente com a dinamicidade, com a instabi- pela reforma do Ensino Médio porque dispõem,
lidade, com a fluidez. em face de sua origem de classe, de outros espa-
O discurso da necessidade de elevação dos ços e itinerários de formação, que não o ensino
níveis de conhecimento e da capacidade de tra- médio em escola pública. Para a maioria dos tra-
balhar intelectualmente, quando adequadamente balhadores, contudo, ser multitarefa significará
analisado a partir da lógica da acumulação fle- exercer trabalhos temporários simplificados, re-
xível, mostra seu caráter concreto: a necessida- petitivos e fragmentados, que não necessitam de
de de ter disponível para consumo, nas cadeias formação qualificada, mas talvez de certificados
produtivas, força de trabalho com qualificações ou reconhecimento de competências, o que o
desiguais e diferenciadas que, combinadas em atual Ensino Médio talvez atenda.
células, equipes, ou mesmo linhas, atendendo a A análise levada a efeito vai ao encontro dos
diferentes formas de contratação, subcontratação dados apresentados no item 2.1; a tendência
e outros acordos precários, assegurem os níveis decrescente da matrícula no nível médio aliada
desejados de produtividade, por meio de proces- ao fato de que as taxas de abandono e insucesso
sos de extração de mais-valia que combinam as atingem predominante os filhos dos estratos mais
dimensões relativa e absoluta. baixos da classe trabalhadora e negros e pardos,
Esta forma de consumo da força de traba- reforçam o caráter excludente do Ensino Médio,
lho ao longo das cadeias produtivas aprofunda que disponibiliza para o mundo do trabalho um
a distribuição desigual do conhecimento, onde, grande contingente de trabalhadores desqualifi-
para alguns, dependendo de onde e por quanto cados, que terão como alternativa trabalhos pre-
tempo estejam integrados nas cadeias produtivas, carizados. Fecha-se o ciclo da exclusão includente
se reserva o direito de exercer o trabalho intelec- na ponta da escola, mostrando a reforma do en-
tual integrado às atividades práticas, a partir de sino médio seu caráter reprodutor no regime de
extensa e qualificada trajetória de escolarização; acumulação flexível.
o mesmo não ocorre com a maioria dos traba-
lhadores, que desenvolvem conhecimentos táci- A organização curricular flexível completa
tos pouco sofisticados, em atividades laborais de o quadro da formação precarizada
natureza simples e desqualificada e são precaria-
mente qualificados por processos rápidos de trei- A flexibilização da organização curricular e
namento, com apoio nas novas tecnologias e com da metodologia é uma das formas de atender à
os princípios da aprendizagem flexível. finalidade de formação de profissionais, cuja for-
Nesse contexto de distribuição desigual, se ça de trabalho poderá ser consumida de forma
insere o novo Ensino Médio; diferentemente da mais ou menos predatória, ao longo das cadeias
proposta que integrava as DCEM/20121, a or- produtivas.
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lização dos processos educativos sistematizados: a sociedade à interação entre indivíduos e as re-
acesso restrito à teoria por trabalho intelectual lações sociais são reduzidas ao plano individual,
pouco complexo. das escolhas pessoais. Consequentemente, não
Por outro lado, a afirmação do conhecimen- há teorias sociais, pois estas são ilusões que dis-
to como resultante do confronto de discursos, farçam interesses particulares; a totalidade passa
ao não o reconhecer como resultante da relação a ser um recurso metodológico impossível, pois
entre teoria e prática, entre trabalho intelectual e não há como estabelecer relações causais entre
atividade, põe por terra a concepção de práxis, o fenômenos sociais. A totalidade é substituída
que conduz a duas dimensões que caracterizam o pela fragmentação.
pós-modernismo: o presentismo e o pragmatis- A organização curricular proposta pela re-
mo, que, não por coincidência, alimentam o con- forma do Ensino Médio, portanto, pela flexibi-
sumo e, portanto, sustentam a lógica mercantil. lização que resulta na sua precarização episte-
Se não é possível conhecer a realidade, também mológica, integra-se perfeitamente ao regime
não é possível transformá-la! de acumulação flexível, pelas novas formas de
Com relação ao recuo da teoria, afirmou- disciplinamento que fragilizam a relação com o
se em outro texto, que a Lei 13.415/2017 abre conhecimento, reduzem a relação entre teoria e
a possibilidade de substituir parte da formação prática ao pragmatismo, matam a crença na pos-
que seria dada nas escolas de Ensino Médio por sibilidade de construção de uma nova sociedade
cursos a distância, módulos ou cursos ofertados referendando o presentismo e substituem os pro-
por outras instituições, em um nítido processo cessos coletivos na vida social e produtiva pelo
de flexibilização curricular que relativiza a orga- individualismo.
nização curricular sistematizada, notadamente
na formação técnica e profissional. Nesse caso
específico, o recuo à teoria é de tal monta que se Perspectivas
admite a certificação de competências compro-
vadas por exercício profissional supervisionado, A análise levada a efeito nesse texto aponta o peso
sempre lembrando que se está falando de um jo- das dimensões materiais – no caso, o regime de
vem adolescente, e não de um trabalhador adulto acumulação flexível, na rearticulação das alianças
e experiente; certifica-se o conhecimento tácito7. que permitam o seu crescente desenvolvimento;
A negação da práxis enquanto possibilidade constitui-se um novo bloco hegemônico que,
de transformação anula os projetos, as possibili- inexoravelmente, e sem resistência efetiva, vai
dades, e a historicidade: o que vale é o presente. processando o ajuste a favor do capital: a reforma
A experiência histórica é substituída pela expe- da previdência, o ajuste dos gastos públicos que
riência do momento; as organizações históricas penalizam a educação e a saúde, além de outros
e suas experiências acumuladas são substituídas investimentos, a reforma da CLT, a aprovação do
pelo ativismo, onde a sensação do ineditismo nas projeto de lei que regulamenta a terceirização in-
ações voluntaristas torna-se a referência maior discriminada, e, na área da educação, o ajuste no
das escolhas das posturas e das posições políti- Ensino Médio.
cas15. Contudo, no bojo das contradições, abre-se
A História é compreendida como uma forma uma pequena brecha no art. 7o. da Res.03/2018/
específica de discurso, a forma narrativa, que, se- CNE/CEB, parágrafos 1o. e 2o, que permitem or-
gundo um roteiro previamente definido, atribui ganizações curriculares alternativas pelas escolas,
um efeito de verdade aos fatos e dados históri- no exercício de sua autonomia:
cos, revestindo-os de uma racionalidade que não § 1º Atendidos todos os direitos e objetivos de
existe na realidade; portanto, a História não exis- aprendizagem instituídos na Base Nacional Co-
te. Em consequência, também não existe o uni- mum Curricular (BNCC), as instituições e redes
versalismo e nem o coletivo, pois os fenômenos de ensino podem adotar formas de organização e
sociais não podem ser explicados por referências propostas de progressão que julgarem pertinentes
externas a eles, uma vez que essas referências são ao seu contexto, no exercício de sua autonomia, na
atravessadas por leituras particularistas, diversas construção de suas propostas curriculares e de suas
culturalmente. identidades.
Se não há história, não há valores, nem § 2º O currículo deve contemplar tratamento
princípios ou fundamentos e não há futuro; só metodológico que evidencie a contextualização, a
o presente, que deve ser vivido em sua comple- diversificação e a transdisciplinaridade ou outras
tude. Reforça-se o individualismo, reduzindo-se formas de interação e articulação entre diferentes
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