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Revista Redbioética/UNESCO, Año 4, 1 (7): 45-56, Enero - Junio 2013

ISSN 2077-9445
Guimarães - Bioética e intersexualidade...

Bioética e intersexualidade: algumas reflexões


Bioethics and intersexuality: some remarks

Anibal Guimarães*

Resumo
Propõe-se, à luz da bioética, uma reflexão quanto à legitimidade das intervenções médico-cirúrgicas em recém-
nascidos e crianças portadoras da chamada “genitália ambígua” - também conhecidos como “intersex” -, em face
de seu questionamento e condenação por parte de alguns estudiosos e entidades profissionais representativas
das mais variadas áreas do conhecimento e, também, dos movimentos de ativistas em direitos humanos. A pro-
posta da Resolução CFM nº 1664, de 2003, de que a equipe multidisciplinar proceda à “definição racional sobre
o sexo de criação mais recomendável”,contrasta frontalmente com os relatos de sofrimento de adultos que sofre-
ram intervenções, sendo corroborados pela pouca consistência (ou inexistência) de estudos longitudinais. Alguns
autores questionam a compulsoriedade com que se dá a promoção e o ajuste ao sistema binário sexo-gênero
heteronormativo em que se fundam estas terapêuticas. Mantido o modelo interventivo vigente, conclui-se que não
são respeitados os princípios bioéticos da maleficência, não-maleficência, autonomia e justiça.

Palavras-chave: intersex,anomalias do desenvolvimento sexual,genitália ambígua,bioética, direitos humanos

Abstract
This article aims to offer some concerns, under the perspective of Bioethics, on the legitimacy of medical and chiru-
rgical procedures in newly-born and infants diagnosed with ambiguous genitalia – also known as intersex. These
very procedures have been the target not only of some researchers and professional associations but of human
rights activists as well. In Brazil, the Federal Medicine Council, regulates the issue through its Resolução CFM
1664 (year 2003). Nevertheless its recommendation that a multiprofessional team “shall rationally define the most
recommendable sex of raising ”the intersex child, there are no consistent long-term follow-up studies that ensure
its positive results. The narratives of intersex people whom have undergone several medical and chirurgical pro-
cedures, for their suffering, seem to offer unequivocal refutation to that same directive. Some authors argue how
compulsory it is the promotion and adjustment to the heteronormative sex-gender binary system on which those
same therapeutics are funded.

Keywords: intersex, disorders of sexual development, ambiguous genitalia, bioethics, human rights

Resumen
Desde la perspectiva bioética se propone en este artículo reflexionar acerca de la supuesta legitimidad que tie-
nen las intervenciones médico-quirúrgicas en reciénnacidos y niños diagnosticados como portadores de genitales
ambíguos – también conocidos como intersex. Estos mismos procedimentos son objeto de cuestionamiento por
parte no sólamente de investigadores y asociaciones profesionales como, también, por activistas internacionales
de derechos humanos. En Brasil, el Consejo Federal de Medicina ha regulado el tema (Resolução CFM 1664, del
2003). No obstante su recomendación de que al equipo multiprofesional procederá, “de manera racional, a definir
el sexo más aconsejable para la crianza del niño”, no hayestudios de seguimiento a largo plazo que demuestren
que los resultados pretendidos son positivos. Las narrativas de sufrimiento de las personas intersex sometidas a
estos procedimentos refutan la Directiva. Algunos autores discuten la compulsoriedad que caracteriza la promoción
y el ajuste al sistema binario sexo-género heteronormativo sobre el cual se apoyan estas terapéuticas.

Palabras Clave: intersex, trastornos del desarollo sexual, genitales ambíguos, bioética, derechos humanos

* Doutorando no Programa de Pós-graduação em Saúde Pública (Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/
Fiocruz), Mestre em Ciências (Escola Nacional de Saúde Pública, ENSP/Fiocruz) e especialista em Ética
Aplicada e Bioética (Instituto Fernandes Figueira, IFF/Fiocruz). nblguimaraes@yahoo.com

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1. Introdução natural entre os sexos e os gêneros. Afirmam os
médicos que participam do processo de tomada
No campo da intersexualidade, muitas vozes bus- de decisões que, contrariamente às afirmações
cam se fazer ouvir: há aquelas que se posicionam populares de que “a criança que nasceu sem
em favor da manutenção das intervenções mé- sexo” (Machado, 2006:15), existe, sim, naquele
dico-cirúrgicas na vida de recém-nascidos e de corpo um sexo, o qual, embora oculto à primeira
crianças diagnosticadas como intersex, há vozes vista – e, dentro dessa mesma lógica, algumas
que clamam pela postergação destas mesmas in- outras tantas vistas -, ao final, será por eles en-
tervenções até que a própria pessoa intersex pos- contrado.
sa oferecer seu consentimento esclarecido, e há,
também, aquelas que expressam absoluta conde-
nação quanto à qualquer intervenção, de caráter Por outro lado, Kessler (1998) aponta que, a des-
irreversível, que não tenha o risco à própria vida peito do imperativo médico-interventor que se
como justificativa para sua realização. Como se apresenta nos casos de genitália ambígua, ao
procurará demonstrar, a intersexualidade repre- final, o alegado equilíbrio que justificaria a realiza-
senta um tema bastante delicado para expressiva ção de intervenções médico-cirúrgicas tampouco
parcela do corpo médico, suas corporações e as- é alcançado, uma vez que a sua manutenção é
sociações – como é o caso da American Medical precária e somente se dá às custas de recorren-
Association e da American Academy of Pediatri- tes e artificiais intervenções, não se apagando as
cs, considerada por Elizabeth Reis (2010) como marcas em seus corpos. Em resumo, a existência
a “suprema autoridade na saúde de crianças” – de possibilidades genitais outras que não apenas
para diferentes instituições governamentais com aquelas referendadas pelo poder médico, ame-
poder normatizador e disciplinador – é o caso, por aça e afasta a ditadura heteronormativa. Daí, a
exemplo, nos Estados Unidos, do National Ins- urgência em se corrigi-las.
titutes of Health (NIH) e, no Brasil, do Conselho
Federal de Medicina (CFM) - e, também, para es- Para que o leitor melhor compreenda a problemá-
tudiosos e pesquisadores, sejam eles e elas pes- tica em torno da existência de outras possibilida-
soas intersex ou não. des genitais, faz-se necessário que se aponte que
nem mesmo existe consenso quanto à adoção de
Com a pressa que caracteriza as emergências no uma nomenclatura única para o seu diagnóstico.
ambiente hospitalar, médicos de diferentes espe- Como se procurará demonstrar, a intersexuali-
cialidades são urgentemente convocados para dade – ou “anomalias do desenvolvimento se-
tentar elucidar a “verdade” sobre aquele sexo xual” (ADS) - tem sido alvo de disputas quanto
que - por apresentar uma nova possibilidade de às propostas para seu gerenciamento (Machado,
variação para o padrão homem-pênis e mulher- 2008a). Com frequência, têm sido contestadas as
vagina - não é inteligível. Diagnosticada, enfim, a alegadas evidências científicas quanto à eficácia
situação de intersexualidade, a intervenção mé- das recomendadas intervenções médico-cirúrgi-
dico-cirúrgica é considerada primordial. Neste cas em corpos de recém-nascidos e de crianças
sentido, Fausto Sterling (2000) afirma que existe diagnosticadas como portadores de genitália am-
uma crença, sustentada pelo dogma científico, de bígua (Hurwitz, 2011).
que, sem cuidados médicos adequados, crian-
ças intersex estão fadadas a uma vida miserável. A favor de uma espécie de moratória quanto à
urgência com que se dão estas intervenções, ou
Contudo, avança a bióloga norte-americana, são
mesmo a sua completa proscrição, encontra-se,
poucos os estudos empíricos que sustentam esta
de um lado, expressiva parcela do movimento
ideia.
internacional de ativistas em direitos humanos
De acordo com a percepção médica, existe algo – pessoas intersex, inclusive - bem como nume-
errado no corpo intersex, o qual deve ser urgen- rosos estudiosos (Diamond & Beh, 2006), médi-
temente reparado, porque “anormal”. A não inter- cos, entidades privadas (Intersex Society of North
venção representaria uma ameaça ao equilíbrio America, Accord Alliance) e governamentais da

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área da saúde pública (National Institutes of Heal- ocorrência? Se se decide por revelar a verdade,
th, 2006), dentre outros. Do outro lado, apontando a quem e quando se deve/pode fazê-lo? O que
para eventuais riscos que uma eventual poster- se pode socialmente esperar a partir da revelação
gação – ou moratória – desses mesmos proce- da verdade sobre um corpo “ininteligível” em sua
dimentos significaria, tem-se diferentes entidades morfologia genital? Como classificar o desejo da
associativas de categorias profissionais das áreas pessoa intersex em relação a alguém que tenha
das ciências biomédicas (American Academy of a sua mesma expressão de gênero, assim como
Pediatrics, American Medical Association, CFM os eventuais desdobramentos erótico-sexuais e
-
através de sua Resolução nº 1664, de 2003) e afetivos decorrentes deste mesmo desejo? Como
pesquisadores (Damiani & Guerra-Júnior, 2007), enfrentar judicialmente o problema da indefinição
dentre outros. e/ou da eventual necessidade/vontade de ajuste
da subjetividade e da anatomia da pessoa inter-
2. A metamorfose da terminologia sex? Qual a natureza dos eventuais empecilhos à
autonomia da vontade e ao consentimento livre e
Para o senso comum, é ainda bastante frequente
esclarecido da pessoa intersex para as diferentes
que se chame de “hermafrodita” a pessoa que –
intervenções em seu corpo que lhes são propos-
acreditam - reúna igualmente em seu corpo uma
tas? Quais questões de ordem moral são efetiva-
genitália que seja, ao mesmo tempo, masculina e
mente trazidas à tona com este caso?
feminina, e também completamente funcional. A
mitologia exerceu papel importante neste sentido: O diário de Herculine Barbin aponta para a ab-
Hermes e Afrodite, por exemplo, teriam dado ori- soluta necessidade que tem o regime hetero-
gem a um ser – o hermafrodita - que reuniria as normativo de assegurar a diferenciação entre os
características genitais de ambos, sendo metade gêneros masculino e feminino. De maneira bas-
homem e metade mulher. Na área médica, a con- tante simplificada, pode-se dizer que é assim que
cepção de uma genitália que não seja amplamen- aquele regime funciona: homens são homens,
te inteligível quanto a seu gênero exclusivamente mulheres são mulheres. Homens têm pênis, e
masculino ou feminino fez crer, para muitos, que mulheres têm vagina; homens são masculinos
a esta ambiguidade se poderia denominar de her- e mulheres são femininas. Homens são ativos e
mafroditismo, ainda que a sua existência – e, so-
devem penetrar mulheres, de modo a demons-
bretudo, a sua dupla funcionalidade - represente
trar sua força física e poder; mulheres devem ser
uma impossibilidade médica.
passivas e submissas aos homens, todos os ho-
O caso de Herculine Barbin –“hermafrodita” fran- mens, não importam quem sejam esses homens.
cês do século XIX -, revelado por Michel Foucault Pênis devem ser longos e, para fins de prazer e
(1980) através da publicação de seu diário, não reprodução, devem ter preservada sua capaci-
apenas trouxe à tona todo seu sofrimento psíqui- dade penetrativa em uma vagina; clitóris devem
co, físico e social como, também, chamou a aten- ter dimensões mínimas, de modo a não interferir
ção para as dificuldades do Judiciário no enfren- com o ato penetrativo masculino, nem representar
tamento das questões ligadas a gênero. O caso uma possibilidade de servir como instrumento de
de Herculine acabou por expor toda a complexi- penetração – o “pênis feminino” - em homens e
dade da questão biológica, ainda que, à época, mulheres. O phallus feminino não deve jamais ser
os avanços da biotecnociência fossem modestos comparado ao phallus masculino. Da mulher e do
e bastante limitados os resultados estéticos e fun- homem se espera exclusivamente o sexo de na-
cionais possíveis de serem alcançados por meio tureza heterossexual. Mais do que qualquer outra
de uma intervenção médico-cirúrgica. coisa, mulheres devem ter preservada sua função
reprodutiva e sua vagina deve estar pronta para
Dada a importância do pensador francês, a divul-
receber em seu interior o pênis masculino. Enfim,
gação do caso de Herculine contribuiu significati-
“ser homem” é “não ser mulher”.
vamente para expor as mazelas e os dilemas em
torno da intersexualidade, os quais não perde- Em relação à questão da intersexualidade, o es-
ram sua atualidade: deve-se, ou não, revelar sua pectro da homossexualidade – como o prova o

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caso de Herculine Barbin que, interna em um con- masculino (PHM - genitália ambígua com testícu-
vento no interior da França, teve relações de na- los), pseudo-hermafroditismo feminino (PHF - ge-
tureza erótica, sexual e afetiva com outra interna, nitália ambígua com ovários) e hermafroditismo
do gênero feminino - perpassa toda a discussão. verdadeiro (HV - testículo e ovário com ou sem
Para Fausto-Sterling (2000), o temor que provoca genitália ambígua). A partir da descoberta dos
a mera ideia, ou imagem, de relações entre pes- cromossomos, prosseguem os autores, os casos
soas do mesmo sexo pode contribuir, de maneira de PHM foram definidos como “ambiguidade ge-
bastante vigorosa, não apenas para a imposição nital em presença de um cariótipo 46, XY”, os de
da crença em somente dois sexos, mas que es- PHF como “ambiguidade genital em presença de
ses dois sexos devem ser complementares. Den- um cariótipo 46, XX”, e para os diagnósticos de
tro dessa lógica, a união voluntária – sobretudo, HV foi mantida a “anatomia gonadal”.
nos planos afetivo e sexual - entre iguais resulta-
Em relação à terminologia “genitália ambígua”,
ria, portanto, em uma impossibilidade da nature-
Damiani & Guerra-Júnior ensinam que esta não
za. Por extensão, a ocorrência involuntária em um
ocorre em todos os casos de ADS. De maneira
único elemento – o corpo humano - de elementos
bastante simples, os autores informam que
que deveriam estar dimorficamente apresentados
– isto é, o homem e a mulher, o masculino e o fe- “a ADS é uma situação em que não há acordo
minino – representa uma anomalia que deve ser entre os vários sexos do indivíduo, ou seja, o sexo
corrigida o quanto antes. genético – constituição cariotípica 46, XX ou 46,
XY -, o sexo gonadal/hormonal, e o sexo fenotípi-
Ante a imposição de um sistema sexo-gênero
co. Desta forma, podemos ter casos com e sem
binário assim ordenado – homem/mulher, pênis/ ambiguidade genital” (Damiani & Guerra-Júnior,
vagina, macho/fêmea, masculino/feminino, ativo/ 2007:1014).
passivo -, a constatação de diferentes formas de
genitália em pessoas intersex – e a inicial impos- Assim, por exemplo, nos casos de criança com
sibilidade de sua inteligibilidade – representa um síndrome de Turner, verifica-se a existência de
verdadeiro desafio ao poder estabelecido. Para “um cariótipo com perda total ou parcial de um dos
Fausto-Sterling (1993:21), a sua ocorrência serve cromossomos sexuais, em mosaico ou não, com
para demonstrar que é artificial a rigidez de com- gônadas em fita, e, no entanto, o seu sexo feno-
portamentos de gênero, tal como nos é imposta: típico é feminino, sem ambiguidade” (Damiani &
“em termos biológicos, existem muitas gradações Guerra-Júnior, 2007:1014). Já nos casos em que
entre o ‘masculino’ e o ‘feminino’”. Assim, parece uma criança é diagnosticada com insensibilida-
razoável supor que o corte cirúrgico que se pro- de androgênica parcial, prosseguem os autores,
cura impor às pessoas intersex nos casos de “ge- seu cariótipo é 46, XY, verifica-se a existência de
nitália ambígua” tenha o efeito de dissipar amea- testículos, e seu fenótipo é ambíguo. “Ambas as
ças à hegemonia do sistema binário sexo-gênero. situações configuram uma ADS, porém uma apre-
Dito de outra forma, isso significa que vincular o senta genitália externa feminina normal, enquanto
gênero ao biológico é uma importante forma de que na outra [a genitália] é ambígua”, concluem
opressão, e não a possibilidade de divisão do po- (Damiani & Guerra-Júnior, 2007:1014). Para os
der (Fausto-Sterling, 1993). autores, a terminologia até então empregada –
“pseudo-hermafroditismo” - poderia significar a
Em 1876, as chamadas “anomalias genitais” fo- estigmatização dos pacientes e de seus familia-
ram objeto da especial atenção de Theodor Al- res, resultando em “constrangimento” por conta
brecht Edwin Klebs quando, através de seu Han- de sua “conotação um tanto pejorativa da situa-
dbuch der Pathologischen Anatomie, buscou lhes ção clínica apresentada”, dado que, nem sempre,
atribuir uma nomenclatura própria. Ensinam Da- a complementação do termo pseudo-hermafrodi-
miani & Guerra-Júnior (2007:1014) que, para isso, tismo traz uma especificação de sexo (masculino
Klebs limitou-se inicialmente a investigar a nature- ou feminino) consonante com o “gênero assumido
za das gônadas presentes, e classificou os casos para aquele paciente” (Damiani & Guerra-Júnior,
em três grupos básicos: pseudo-hermafroditismo 2007:1014).

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A adoção de uma nova nomenclatura – ADS -, propõem a descrever determinadas característi-


em detrimento ao termo “intersexualidade”, foi cas corporais”, dado que considera “a nomencla-
decidida durante a reunião de um grupo interna- tura como um lócus privilegiado de análise acerca
cional de especialistas e de membros da Lawson de uma discussão específica que entrelaça as ca-
Wilkins Pediatric Endocrine Society (LWPES) e tegorias de ciência, intervenção, movimento po-
da European Society for Paediatric Endocrinology lítico e cotidiano das relações médico-paciente”
(ESPE), realizada na cidade de Chicago, no final (2008a:111).
do ano de 2005 (Lee, Houk, Ahmed et al., 2006).
O documento que sintetiza suas deliberações se A análise do “Consenso de Chicago”, segundo
chama “Consenso de Chicago”. Ensinam Damiani Machado (2008a:112), não apenas aponta para
& Guerra-Jr. que, neste encontro de especialistas, “o importante papel desempenhado pela genética
se buscou e pelos conhecimentos em biologia molecular nas
tomadas de decisões, nas discussões e nas pro-
“elaborar um consenso a respeito [da intersexua- duções científicas em torno da intersexualidade”
lidade], eliminando termos que pudessem causar como, também, representa “o esforço no sentido
dúvidas e/ou dar a conotação de o indivíduo ser de uma classificação calcada em termos cada vez
ou estar sendo criado em um sexo incompatível mais ‘técnicos’ e com códigos muito complexos
com o seu diagnóstico, enfocando também as- e específicos”. Em sua compreensão, tal decisão
pectos relacionados ao manuseio, evolução ao por um grupo de especialistas acabaria por afas-
longo prazo e propondo estratégias para futuros tar do senso comum a interpretação da intersexu-
estudos” (2007:1014). alidade, reservando, portanto, aos “atores sociais
Em sua tese de doutorado, Paula Sandrine Ma- considerados mais legítimos”(2008a:110) o direito
chado (2008b:4) analisou os elementos que es- a seu gerenciamento.
tariam em jogo nas decisões envolvendo a “de- No tocante à participação de ativistas intersex na
terminação” do sexo em crianças intersex e o reunião que culminou no “Consenso de Chicago”,
“gerenciamento sociomédico e cotidiano da inter- é bastante significativa a análise de Machado.
sexualidade”. Para a autora, era necessário, de Sugere a autora que o seu reconhecimento, no
um lado, compreender “as perspectivas, as prá- documento final, como “grupos de apoio” (support
ticas e os discursos de profissionais de saúde e, groups, no original), implica que “a legitimidade do
de outro, aqueles das famílias e jovens intersex”
ativismo intersex não passou pelo caráter político
(2008b:4).
nem pela discussão ética que os diferentes grupos
Em artigo que trata do “Consenso de Chicago”, suscitam em relação à prática médica voltada ao
a análise de Machadocontribui significativamente gerenciamento da intersexualidade” (2008a:117).
para que melhor se compreenda o contexto aca- Barbara Thomas (2005), intersex alemã, em seu
dêmico e político que o orienta. Para a autora, relatório sobre o encontro de Chicago, aponta que
ao lado de uma possível “motivação mais formal, apenas ela e Cheryl Chase - fundadora e então
comum à elaboração de qualquer consenso na diretora da ISNA (Intersex Society of North Ameri-
área médica” (2008a:110), pode-se pensar que o ca) – representaram o segmento internacional de
mesmo revela “a necessidade de se criar termos pessoas intersex no evento. A análise retrospec-
supostamente mais técnicos, a fim de serem par- tiva dos desdobramentos daquele encontro para
tilhados por um público ‘iniciado’ e, portanto, mais o movimento internacional de ativistas intersex
‘restrito’” (2008a:111). Para Machado, o encontro faz supor que, ante o incômodo que para o es-
também significou “uma reação à visibilidade do tablishment passou a representar a articulação
movimento político intersex, sobretudo norte-a- e legitimidade de sua militância anti-intervenção,
mericano, e às questões que este vem colocando a máxima divide et impere orientou a seleção de
às intervenções médicas sobre os corpos intersex seus representantes. A participação de Barbara
desde os anos de 1990” (2008a:111). Neste arti- Thomas se deu por convite, e ela diz desconhecer
go, a autora propõe “apontar para algumas impli- os critérios de sua elegibilidade. No total, foram
cações relacionadas aos usos de termos que se convidados 50 experts, representando 10 países.

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A única brasileira presente ao evento foi Berenice (2008a:116) se vale das palavras de Emi Koyama
Bilharinho Mendonça, endocrinologista da Facul- para analisar a divisão dentro do movimento ati-
dade de Medicina da Universidade de São Paulo. vista de intersex: a defesa e utilização do termo
ADS – com todos os significados políticos que o
Cabe também salientar que, com vistas à re-
mesmo encerra – seria “um reflexo do fato de que
alização da reunião que originou o “Consenso
o termo ‘intersex’ não se estabeleceu como ca-
de Chicago”, as indústrias farmacêuticas Pfizer
tegoria identitária eficaz, capaz de reunir muitos
(Endocrine Care), Novo Nordisk, Ferring e Orga- adeptos para o movimento, ao contrário do que
non, sob a rubrica unrestricted educational grant ocorreu no contexto das comunidades LGBTT”
support - no original –nela injetaram recursos fi- (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexu-
nanceiros “irrestritos” (Lee, Houk, Ahmed et al., ais).
2006:497). Esta informação relativa ao financia-
mento do referido evento, per se, conclama que
se investigue, com a profundidade necessária, as
suas repercussões para a própria medicalização 3. O caso David Reimer
da intersexualidade, uma vez que é crônico o tra-
É possível sugerir que a gênese do movimento
tamento de todas as pessoas assim diagnostica-
contemporâneo de ativistas intersex encontre sua
das e parece inequívoca a existência aqui de um
raiz no exato momento em que, no ano de 1967,
conflito de interesses. Lamentavelmente, dado o
o bebê Bruce Reimer – então com oito meses de
escopo deste trabalho, não é possível aqui apro-
idade - teve seu pênis carbonizado depois de ser
fundar esta análise.
submetido à circuncisão em um hospital público
Por último, sugere Machado que o “Consenso de na cidade de Winnipeg (Canadá). De maneira
Chicago” funciona como bastante resumida, a família do bebê Bruce foi
aconselhada a acatar a sugestão de John Money,
“um marcador que torna visível uma sé- psicólogo do Hospital Universitário Johns Hopkins
rie de tensões e conflitos no contexto da (Baltimore, EUA) e, então, um dos principais es-
própria militância: a intersexualidade está tudiosos para a questão da definição de papéis
na ordem da biologia? É uma categoria sexuais e de gênero. Money recomendava que
identitária? É uma má formação? Quais Bruce fosse submetido a uma cirurgia de troca de
as consequências éticas e políticas de se sexo, de modo a se “fixar” seu novo gênero. A re-
passar a utilizar um termo como [ADS]?” ceita de êxito desse tratamento, dizem Diamond&
(2008a:118) Sigmundson (1997), exigia o segredo quanto aos
procedimentos médico-cirúrgicos realizados em
Não deixa de ser curioso que, quando em 1993
Bruce - agora registrado como Brenda Reimer - e
Cheryl Chase fundou a ISNA, sua “missão” era a
também a mudança de cidade, onde ninguém co-
“mudança sistêmica para se pôr fim à vergonha,
nhecesse a verdade e pudesse ameaçar aquela
ao segredo, e às cirurgias genitais indesejadas
estratégia médica.
para as pessoas nascidas com uma anatomia
que, decidiu-se, não corresponderia ao padrão Para poder comprovar sua teoria de que o gêne-
masculino ou feminino” (ISNA). Em março de ro de Brenda havia sido ajustado aos esforços
2008, Chase fundou a Accord Alliance e a ISNA empreendidos no tratamento por ele prescrito,
teve encerrada suas atividades. Como desdobra- John Money contava com a existência de Brian,
mento da participação da própria Cheryl Chase o irmão gêmeo idêntico de Bruce, o qual não ha-
no encontro de especialistas em Chicago, tem-se via sido submetido à circuncisão e estava sendo
agora que a missão desta nova entidade - Accord criado como menino. Brian era o caso controle
Alliance - é “promover uma abordagem ampla e ideal para seu experimento. Como diz John Cola-
integrada de cuidados para o incremento da saú- pinto (2001:13), “se os gêmeos crescessem como
de e bem-estar das pessoas e famílias afetadas crianças ajustadas e felizes de sexos opostos, se-
pelas ADS, através da colaboração de todas as ria a inegável prova de domínio do meio-ambiente
pessoas interessadas”. Neste sentido, Machado sobre a biologia na diferenciação dos sexos”. O

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caso foi inicialmente relatado nos anais da moder- do encontro de David Reimer e Milton Diamond,
na Medicina como um sucesso estrondoso. Mas, confirmaram-se as desconfianças deste quanto
contrariando as expectativas médicas e os esfor- ao propalado “sucesso” das intervenções pro-
ços de Money, não foi exatamente assim que as postas por Money, e um artigo, relatando o caso,
coisas aconteceram. Brenda jamais se conformou foi finalmente escrito. Não sem grande resistên-
com o papel de gênero que lhe foi imposto. Aos 14 cia por parte dos principais periódicos científicos
anos de idade, após tomar conhecimento de seu para aquela “bomba” que lhes era apresentada,
histórico clínico – o qual, reitere-se, lhe havia sido Diamond & Sigmundson (1997) acabaram publi-
insistentemente negado pelos demais médicos e, cando esse artigo, o qual, finalmente, revelava a
também, pela própria família – Brenda resolveu verdade sobre o histórico clínico de David Reimer
“voltar” a ser um menino. e tornava pública a farsa de John Money.

Tinha início então seu périplo médico para tentar, A relevância do caso de David Reimer para a
de todas as formas, reverter seu gênero: Bren- questão da intersexualidade se deve à sua utili-
da - agora não mais Bruce, mas David Reimer, zação como a principal referência para justificar a
seu novo nome – se submeteu a inúmeras outras realização de inúmeros outras intervenções médi-
cirurgias genitais, bem como à hormonioterapia. co-cirúrgicas não apenas em crianças que haviam
Seus esforços não conseguiram atender à sua sofrido diferentes traumatismos genitais mas,
vontade e necessidade fundamental: restituir- também, em crianças e recém-nascidos diag-
lhe a condição masculina anterior à circuncisão. nosticados como intersex, especialmente quan-
O sofrimento de David ante sua impotência para do portadores da chamada “genitália ambígua”.
solucionar aquele problema acabou por levá-lo Afinal, como pretendia John Money, se a fixação
ao suicídio, em 2004, aos 37 anos de idade. Em do gênero seria o resultado da cultura/ambiente
2002, Brian, seu irmão e caso-controle do experi- a que a criança fosse submetida e do absoluto
mento de Money, já havia se suicidado. segredo que se mantivesse a esse respeito, to-
das as intervenções médico-cirúrgicas haveriam
Apesar de todas as evidências contrárias, Money
de ser instrumentais à sua tese.
jamais admitiu haver forjado os dados apresenta-
dos à comunidade científica durante os trinta anos Um pênis que, pelos padrões médicos, fosse con-
que se seguiram à chegada do bebê Bruce em siderado demasiadamente diminuto, ou um clitó-
seu consultório de Johns Hopkins. Ainda que sua ris excessivamente grande, deveriam ser “corrigi-
teoria estivesse repleta de furos evidentes e ques- dos”, isto é, transformado, o primeiro, em uma va-
tões inconclusivas, Money jamais foi objeto de gina – porque, como pênis de dimensão “inferior”
questionamento por seus pares, sendo frequen- ao “padrão mínimo aceitável” para um homem,
temente saudado como um vitorioso, um pioneiro, sua capacidade penetradora em uma vagina,
alguém que havia contribuído decisivamente para com finalidade procriativa, seria “impossível” – e
estabelecer “verdades” sobre a formação dos pa- em um pênis, o segundo, depois de ser subme-
péis de gênero. Contudo, desde o início da divul- tido à maciça ingestão de hormônios masculinos
gação de seus experimentos – e por mais quase para afastar sua tendência feminilizante original e
30 anos -, apenas o médico Milton Diamond fora
enfático ao apresentar, em público, suas descon- seus argumentos contrários à tese de Money. Contudo,
ao longo do desenvolvimento daquele projeto da BBC,
fianças para aquilo que era amplamente alardea- surgiram algumas evidências de que,contrariamente ao
do e jamais havia sido objeto de refutação por par- que alardeava Money, havia uma considerável dificuldade
de Brenda em se ajustar à identidade de gênero feminina
te da comunidade científica internacional1. A partir que lhe havia sido imposta. Procurado pelos jornalistas
da BBC para ser informado sobre o que estava aconte-
1 No final da década de 1970, a rede britânica BBC de- cendo, Money recusou o encontro e, também, anunciou a
monstrou interesse no tão famoso “caso dos gêmeos” e retirada de seu apoio àquele projeto. Por fim, o programa
procurou John Money e Milton Diamond para participarem com a transcrição literal de diferentes entrevistas com al-
de um programa a esse respeito. O convite foi por eles guns psiquiatras familiarizados com o caso foi exibido na
aceito. Dado o seu anterior e frequente questionamen- Grã-Bretanha em 19/03/1980.(DIAMOND M. 1982. Sexual
to quanto à cientificidade dos argumentos e resultados Identity, Monozygotic Twins Reared in Discordant Sex
sustentados por Money, coube a Diamond não apenas Roles and a BBC Follow-Up.Archives of Sexual Behavior,
atuar como consultor do projeto mas, também, apresentar 11(2), 181-185)

51
fazê-lo se aproximar, da melhor maneira possível, tão que se começou a formalmente exigir uma ex-
de um pênis “de verdade”. Foi assim que Money plicação para a alegada insensibilidade genital, o
fez escola ao longo das três décadas seguintes intenso sofrimento psíquico e físico, o desajuste
e, de maneira inquestionável, consolidou a teoria social e a baixa auto-estima, a incoerência entre
de formação dos papéis de gênero. São incontá- o gênero medicamente fixado e a sua subjetivi-
veis as cirurgias que foram realizadas com base dade, o silêncio e a dissimulação às perguntas
em sua concepção. Para Money, o gênero seria que eram feitas aos familiares e aos médicos que
o resultado da educação recebida e do contexto acompanhavam as pessoas intersex ao longo de
social, e não da biologia. suas vidas.

Não obstante todo o mal-estar provocado pela re- No enfrentamento da questão da intersexualida-
velação da verdade sobre o experimento de John de, como visto até agora, não apenas o corpo
Money, aponta Suzanne J. Kessler (1998) que médico não é unânime quanto à sua abordagem
os médicos que tratam de crianças intersex con- como tampouco as próprias pessoas intersex,
tinuam a se basear nos escritos de Money para pelos mais diferentes motivos, o são (Machado,
delas tratar, e permanecem intocados/insensíveis 2008a). Dentre as inúmeras questões que per-
pela farsa do psicólogo. Para esta autora, é me- manecem controversas e - por serem centrais ao
recedora de extensa análise a razão que fez com bem-estar físico e psíquico das pessoas intersex -
que os pares de Money não tenham apresentado representam uma fonte aparentemente insolucio-
nável de conflito, pode-se citar, por exemplo, se se
qualquer questionamento quanto a seu método.
deve, ou não, intervir no âmbito médico-cirúrgico;
Segundo Kessler, tal atitude revela a qualidade e
em caso afirmativo, quando e em que idade; se se
a natureza do debate científico, da forma como se
deve revelar à própria pessoa o seu diagnóstico e
encontra estabelecido. Kipnis &Diamond (1998)
os procedimentos a que se submeterá ou a que
fazem coro a Kessler. As famílias dessas crian-
já foi submetida; se se deve aguardar, ou não, a
ças, impotentes diante do poder médico, não sa-
sua capacidade de consentir ou se é suficiente o
bem como oferecer resistência à pressão por seu
consentimento de seus pais ou responsáveis.
consentimento às intervenções médico-cirúrgicas
que se anunciam como uma “urgência biológica No tocante ao gerenciamento da intersexualidade,
e social”. as mais altas instâncias representativas de inte-
resses corporativos e institucionais de diferentes
países tampouco oferecem consenso. É o caso,
4. As diferentes posições quanto aos por exemplo, das diretrizes da American Pedia-
trics Association, da American Medical Associa-
procedimentos
tion e do National Institutes of Health. Se, para
Quando o caso de David Reimer foi tornado públi- as duas primeiras instituições, a intervenção é a
co, não apenas começava a ruir a teoria sobre o recomendação, para a última, existe uma “crise”
quanto ao consenso sobre seu gerenciamento:
desenvolvimento do gênero que, até então, John
“primeiramente, inexistem dados suficientes para
Money sustentava e alardeava junto à comunida-
orientar a família e os médicos quanto à atribuição
de científica internacional. Para um número impre-
de gênero; em segundo lugar, a recomendação
ciso de pessoas em diferentes partes do planeta,
quanto à sua realização permanece pouco cla-
começava a fazer sentido a estranheza quanto a
ra quanto às intervenções e à idade da criança”
seus diagnósticos imprecisos, repletos de lacunas
(NIH,2006:53).
e incongruências, e também a necessidade de se
manter uma rotina de exames e medicamentos, No caso brasileiro, o CFM, através da Resolução
até então, injustificáveis. Com a revelação da far- nº 1664, de 2003, expressamente recomenda,em
sa de Money, levantava-se a cortina de silêncio seu artigo 4º, que se deve proceder à “definição
que pairava sobre as intervenções médico-cirúr- final” e “adoção do sexo dos pacientes com ano-
gicas nos corpos de recém-nascidos e crianças malias de diferenciação”. Como ressalta Machado
diagnosticadas como intersex. Foi a partir de en- (2008a), ante o questionamento de suas “verda-

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des”, algumas instituições têm, cada vez mais, se “Art. 2º- Pacientes com anomalia de di-
organizado para manter o controle sobre a patolo- ferenciação sexual devem ter assegura-
gização da intersexualidade e demais identidades da uma conduta de investigação precoce
heterodiscordantes. Para a autora, este é um bom com vistas a uma definição adequada do
exemplo da reação do poder médico. De qualquer gênero e tratamento em tempo hábil”. Co-
forma, a análise quanto à atuação destas três ver- mentário: o exame da literatura aponta que
tentes – academia, militância e institucional - é não existe consenso quanto à necessida-
fundamental para que melhor se compreenda a de de se proceder à definição adequada
de gênero, nem tampouco se, para isso,
problemática da intersexualidade.
existe tempo hábil.“
Para Machado (2008a:118), a inexistência de um
“Art. 4º - Para a definição final e adoção do
protocolo de avaliação único para o “manejo mé-
sexo dos pacientes com anomalias de di-
dico” das ADS que possa ser aplicado a todas as
ferenciação faz-se obrigatória a existência
circunstâncias se deve “ao ‘amplo espectro de
de uma equipe multidisciplinar que asse-
achados e diagnósticos’ envolvidos”. Contraria-
gure conhecimentos nas seguintes áreas:
mente ao paradigma da “teoria das doenças” – a clínica geral e/ou pediátrica, endocrino-
qual produz as “doenças como categorias diag- logia, endocrinologia-pediátrica, cirurgia,
nósticas cujos protocolos de avaliação e ação genética, psiquiatria, psiquiatria infantil”.
possam ser estabelecidos de forma estável e Comentário: tampouco existe consenso
homogênea” -, a intersexualidade e o domínio quanto ao fato de que as eventuais me-
quanto ao que se considera “desenvolvimento se- didas adotadas por uma equipe multidis-
xual” representam imensos desafios à medicina. ciplinar sejam efetivamente capazes de
Assim, complementa Machado, “qualquer tentati- assegurar uma definição final e adoção do
va de estabelecer um protocolo padrão torna-se sexo daquelas crianças.”
insuficiente”.
A leitura atenta da própria “exposição de motivos”
que fundamenta a criação da Resolução CFM
nº 1664, de 2003, nos faz concluir que a mesma
5. A Resolução CFM nº 1664, de 2003 pode servir como instrumento de pressão para a
equipe multidisciplinar, na medida em que sugere
Contrariamente ao que busca afirmar, a Resolu- uma situação de “drama” que seria vivido pelos
ção CFM nº 1664, de 2003, traz em seu texto al- familiares e, também, afirma a existência de uma
gumas inconsistências. É isso o que, a seguir, se “urgência biológica e social” que requer interven-
procura demonstrar: ção, de modo a se evitar “graves transtornos”.

“Art.1º -São consideradas anomalias da Curiosamente, não obstante a “urgência biológica


diferenciação sexual as situações clínicas e social” que caracterizaria o “drama” da interse-
conhecidas no meio médico como genitá- xualidade e os “graves transtornos” que se deve
lia ambígua, ambigüidade genital, interse- buscar evitar através das inúmeras intervenções
xo, hermafroditismo verdadeiro, pseudo recomendadas, a “exposição de motivos” deste
-hermafroditismo (masculino ou feminino), mesmo documento reconhece que “um erro na
disgenesia gonadal, sexo reverso, entre definição sexual pode determinar caracteres se-
outras”. Comentário: parece razoável que xuais secundários opostos aos do sexo previa-
mente definido, bem como a degeneração malig-
se diga que a proposta de numerus aper-
na das gônadas disgenéticas”.
tus aponta para a tentativa crescente de
medicalização/patologização de confor- E mais: embora o referido documento admita que
mações físicas (sobretudo, em genitália), “a conduta diante dos recém-nascidos com ge-
de acordo com critérios pouco claros, ain- nitais ambíguos é um dos problemas mais con-
da não definidos.” troversos” e propugne pela realização das mais

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diversas intervenções médico-cirúrgicas, também à avaliação dos resultados anatômicos e
reconhece que: funcionais alegados. O mesmo se pode
dizer quanto à necessidade de validação
“Ninguém pode garantir que, apesar dos mais cri-
dos questionários utilizados para a avalia-
teriosos conceitos, a definição sexual tardia des-
ção da auto-imagem e do status psicosso-
sa pessoa acompanhará o que foi determinado
cial da pessoa intersex. É essencial que
no início de sua vida. Também não se pode ge-
seja feita em adultos a avaliação, no longo
neralizar, por situações isoladas, que a definição
prazo, da globalidade das decisões toma-
sexual só possa ser feita em idades mais tardias.
das, e também dos tratamentos e inter-
Sempre restará a possibilidade de um indivíduo
não acompanhar o sexo que lhe foi definido, por venções sofridas. O mesmo deve ser dito
mais rigor que haja nos critérios. Por outro lado, quanto à perspectiva do paciente adulto
uma definição precoce, mas inadequada, também para a avaliação de resultados anatômi-
pode ser desastrosa” (exposição de motivos, Re- cos e funcionais” (Hurwitz, 2011:171).
solução CFM nº 1664, de 2003).
Embora a exposição de motivos no texto da Reso-
Por fim, o documento afirma que lução CFM nº 1664, de 2003, seja enfática quando
reconhece que a proposta de “não-intervenção”
“há quem advogue a causa de não-inter- não encontra estudos “a longo prazo [que apon-
venção até que a pessoa possa autodefi- tem] as repercussões individuais, sociais, legais,
nir-se sexualmente. Entretanto, não exis- afetivas e até mesmo sexuais de uma pessoa
tem a longo prazo estudos sobre as reper- que, enquanto não se definiu sexualmente, viveu
cussões individuais, sociais, legais, afeti-
anos sem um sexo estabelecido”, aquele docu-
vas e até mesmo sexuais de uma pessoa
mento tampouco reconhece que alguns dos mais
que, enquanto não se definiu sexualmen-
importantes pesquisadores do campo - como Dia-
te, viveu anos sem um sexo estabelecido”
mond & Sigmundson (1997)e Hurwitz (2011), por
(exposição de motivos, Resolução CFM nº
exemplo - alertam para o fato de que os estudos
1664, de 2003).
longitudinais existentes - feitos com pessoas que
Em relação aos estudos longitudinais, - frequente- sofreram tais intervenções – não são elucidativos
mente referenciados como instrumento legitima- ou conclusivos quanto à sua inafastável recomen-
dor para a manutenção da realização das inter- dação.
venções médico-cirúrgicas nos corpos de recém-
nascidos e crianças diagnosticadas como porta-
doras de “genitália ambígua” - diz Hurwitz (2011)
Considerações Finais
que os mesmos carecem de padronização e rigor
metodológico em seu esforço de apresentar resul- Não há como deixar de reconhecer que as ques-
tados convincentes. Para o autor, tões aqui levantadas apontam para a vastidão
“salvo se comprovada a documentação e complexidade do campo da intersexualidade.
quanto à anatomia pré-operatória destas Embora inúmeras as controvérsias e a falta de
crianças, os resultados cirúrgicos apre- consenso em tantos pontos centrais, uma coisa é
sentados como resultados das interven- inegável: o sofrimento físico, psíquico e social que
ções efetuadas são confusos. Deve-se acomete as pessoas intersexuais que, ao longo
igualmente relatar as diferentes ADS de sua existência, foram submetidas às mais di-
(‘anomalias do desenvolvimento sexual’) ferentes intervenções médico-cirúrgicas deve ser
de maneira individual, e não agrupá-las considerado por todos aqueles envolvidos nas
para relatar supostos resultados favorá- mais diferentes profissões da área da saúde, in-
veis à tese pretendida. O rigor metodo- clusive por entidades e instituições responsáveis
lógico quanto à uniformização e escalas pela normatização e regulação das diretrizes que
descritivas é essencial para se proceder atuam no gerenciamento da intersexualidade.

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À força do discurso médico hegemônico – que à tona a indesejabilidade da masturbação como


preconiza a urgência na correção de “corpos de- prática sexual.
feituosos” de modo a se prevenir danos futuros
Por fim, é incontestável a legitimidade que têm os
(“sexualidade ambígua”, “desajuste social”, “baixa
sujeitos intersex para, pelo menos, protestar pela
auto-estima”, por exemplo, de acordo com a Re-
interrupção/moratória das recomendações com-
solução CFM nº 1664, de 2003) – opõe-se o tes-
pulsórias para o tratamento dos casos de “genitá-
temunho de pessoas que - como Chase (entrevis-
lia ambígua” em que, efetivamente, não exista ris-
tada por Hegarty, 2000), Holmes (2000), Morland
co de vida. Afinal, a alegada “monstruosidade” de
(2005), Cabral (2004), dentre outros - sofreram
suas genitálias não corresponderia ao que acre-
em seus próprios corpos intervenções médico-ci-
dita William Reiner, membro do Conselho Médico
rúrgicas e que alegam, como sua decorrência, os
da ISNA. Para ele, nenhuma criança considera
mesmos danos futuros que a Resolução CFM nº
sua genitália ambígua mas, “simplesmente, a sua
1664, de 2003, busca prevenir: “intenso sofrimen-
to psíquico e físico”, “insensibilidade genital”, “de- genitália”. A “ambiguidade”, prossegue o médico,
sajuste social” e “baixa auto-estima”. Neste caso, “corresponderiaao sentimento dos adultos para o
não deixa de ser curioso o relato de Hida Viloria problema” (ISNA).
(2012), intersex norte-americana: para ela, o fato
de não ter sofrido intervenção médico-cirúrgica
permitiu-lhe formar sua própria crença “positiva” Data de envio do artigo: 26/02/2013
quanto a seu corpo e identidade.

O recurso à Bioética para se repensar a nature-


za do discurso médico pró-intervenção se justifica
Referências bibliográficas
na medida em que a sua realização, ao menos ACCORD ALLIANCE. (www.accordalliance.org)
em certos casos de genitália ambígua, implica em
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sofrimento evitável, portanto, injustificável. A im-
posição desnecessária da realização de cirurgias AMA - American Medical Association. (www.ama-assn.
em crianças intersexuais, sem que haja qualquer org/)
justificativa da ordem do risco à sua vida deve ser CABRAL, M. 2004. La excepción y la regla. Radar,
objeto de profunda reflexão. Grande parte dessas Página 12, edição de 21/03/2004. Disponível
cirurgias têm objetivos meramente estéticos e em http://www.pagina12.com.ar/imprimir/diario/
suplementos/radar/9-1316-2004-03-21.html
nada mais servem do que contribuir para afastar (acesso em 14/03/2010)
o reconhecimento da possibilidade de qualquer
variação genital, em especial quanto à sua apa- COLAPINTO, J. 2001. Sexo trocado, a história real do
menino criado como menina. Ediouro, Rio de
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que apresentam tal conformação e impõe a he- intersexuais: o que o Consenso de Chicago
contribui para o estado da arte? Arq Bras
teronormatividade a todas as pessoas. De acor-
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construídas de modo a serem penetradas por DIAMOND, M., B.E.H., HG. 2006. The right to be wrong:
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relações unicamente heterossexuais, e o prazer wrong.html (acesso em 13/02/2010)
feminino deveria se limitar muito mais a dar prazer __________, SIGMUNDSON,H.K. March, 1997. Sex
ao homem do que a buscar alcançá-lo, o que traz reassignment at birth: A long-term review and

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