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TESE DO

I CONGRESSO DA

REVOLUÇÃO BRASILEIRA
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1 Camarada
2 Você recebe agora a proposta de tese para nosso primeiro congresso. Há dois anos
3 levantamos a esquecida bandeira da Revolução Brasileira no interior da esquerda e
4 rapidamente nos organizamos em escala nacional. O I Congresso da RB é um momento
5 especial para nossa militância e para o conjunto da esquerda brasileira. Em muitas
6 oportunidades reafirmamos que a Revolução Brasileira está em curso em função da
7 enorme crise que se abate sobre os trabalhadores liquidando ilusões que sustentaram
8 grandes contingentes de militantes e organizações políticas supondo que poderia existir
9 alguma modalidade de “inclusão social” nos marcos do desenvolvimento capitalista na
10 periferia latino-americana. É ilusão tanto antiga quanto perniciosa. Há muitas décadas o
11 marxismo latino-americano afirmou que somente o socialismo poderia indicar um
12 caminho seguro para a superação do subdesenvolvimento e da dependência que,
13 finalmente, se configura com uma força nunca antes vista na América Latina.
14 As contradições e antagonismos inerentes a ordem capitalista revelaram na atual
15 conjuntura limites intransponíveis nos marcos do atual sistema político, razão pela qual,
16 o governo encabeçado pelo proto fascista Jair Bolsonaro abriu as postar de uma contra
17 revolução cujas consequências mais profundas a maior parte da esquerda e a totalidade
18 do progressismo é incapaz de perceber. As teses que aqui animam nosso I Congresso
19 pretendem responder cada uma das questões pendentes na conjuntura e indicar caminhos
20 para sua superação desde uma perspectiva revolucionária. O caminho será longo, sem
21 dúvida. Contudo, carregamos a certeza de que o combate que travamos é indispensável
22 para abrir as grandes alamedas pelas quais marchará nosso povo a caminho da vitória
23 final contra a classe dominante.
24 Alertamos que este texto é uma proposta de tese e não a tese final do nosso congresso. A
25 versão final será produto do debate amplo e aberto dos nossos militantes, que só se encerra
26 na etapa presencial do nosso Congresso, a ser realizada em São Paulo nos dias 17, 18 e
27 19 de abril deste ano. Por enquanto, este documento é interno, ou seja, deve circular
28 apenas entre os membros da Revolução Brasileira, que devem discuti-lo e propor
29 quaisquer alterações que julgarem necessárias, sempre visando melhor compreender a
30 realidade com vistas a transformá-la radicalmente. O esforço militante e organizado é
31 condição fundamental para que os revolucionários brasileiros possam influenciar
32 decisivamente nos rumos da revolução que já está em curso.
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34 1- O BRASIL NA DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

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36 1.1- Da colônia para a dependência: o Brasil na divisão internacional do


37 trabalho
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39 A América Latina, em geral, e o Brasil, em particular, adentram o circuito de


40 valorização do capital mundial através da posição de colônias dos países capitalistas
41 centrais. Com o uso da força para expropriar as terras dos indígenas que aqui já habitavam
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1 e da escravidão negra como forma de instaurar um modo de produção de excedente, foi


2 garantido aos colonizadores portugueses um processo de acumulação primitiva colonial,
3 que, através do sistema financeiro já bastante desenvolvido, tratou de impulsionar o
4 desenvolvimento industrial dos países centrais, especialmente a Inglaterra. Em ciclos
5 econômicos sucessivos (pau-brasil, cana de açúcar, algodão, ouro, borracha e café), o
6 Brasil vai se amoldando ao processo de valorização do capital em escala global.
7 Entretanto, desde o início de sua colonização esteve na posição de economia
8 complementar, fornecedora de matérias-primas ao processo de industrialização que
9 ocorria a passos largos para o centro capitalista desenvolvido.

10 Essa posição de colônia do centro europeu passa a entrar em crise já na metade do


11 século XIX. Com a Revolução Francesa, as Guerras Napoleônicas, os processos de
12 independência na América e a Revolução Industrial na Inglaterra, o mundo entra em
13 profundas e rápidas transformações. As principais potências capitalistas, após séculos de
14 um processo de unificação nacional, enfim subordinam definitivamente os Estados-nação
15 aos interesses de suas burguesias nacionais. As barreiras para o amplo desenvolvimento
16 capitalista são derrubadas, fazendo do capital uma força expansiva em nível mundial que
17 passa a revolucionar todas as antigas formas de produção e suas culturas milenares.

18 O fim do tráfico negreiro decretado pela Inglaterra em 1850 é uma das primeiras
19 medidas que tratarão de avançar no desenvolvimento capitalista na América Latina. Em
20 consequência, no Brasil, o Segundo Império aprovou a lei n. 581 em 4 de setembro de
21 1850 proibindo a entrada de escravos no país visando transformar o mundo à imagem e
22 semelhança da potencia imperialista por meio da qual ocorria o início ao processo de
23 substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre em escala mundial. No entanto,
24 poucos dias depois, também aqui se aprova a lei n. 601 em 18 de setembro de 1850 que,
25 na prática, tornava a terra impossível para os escravos libertos. A economia colonial,
26 desde o início subordinada à totalidade do sistema capitalista mercantil, tinha no tráfico
27 negreiro sua principal atividade econômica de sustentação e, portanto, o fim do comércio
28 de escravos tratou de dar início à transformação das relações de produção no Brasil e em
29 toda a América Latina.

30 No mesmo ano de abolição do tráfico negreiro, o Império brasileiro, já


31 formalmente independente de Portugal, aprovou uma nova lei de terras no país. Essa lei,
32 antecipando a inexorável libertação definitiva dos escravos que viria a ocorrer em 1888,
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1 instituiu a terra como mercadoria, como objeto de compra e venda. Desta forma, todas as
2 terras que não contassem com um título de propriedade seriam tratadas como terras
3 devolutas do Estado, podendo ser ocupadas somente mediante títulos reconhecidos pelos
4 cartórios, estes últimos completamente subordinados ao poder político e militar das
5 oligarquias agrárias regionais, erigidas sobre as bases do latifúndio exportador colonial.
6 Isso ocorria em um país de dimensões continentais, ainda contando em seu imenso
7 interior com diversas populações indígenas e atravessado por vários processos de
8 adensamentos populacionais, ocorridos em torno dos ciclos econômicos exportadores,
9 populações que tinham posse efetiva das terras, porém sem nenhum título de propriedade.

10 Essa lei resultou na criação das condições para a refundação do Brasil sobre as
11 bases do trabalho assalariado livre, um processo de modernização feito sob a batuta da
12 própria oligarquia advinda da colônia, ou seja, sem qualquer processo de ruptura com as
13 velhas estruturas econômicas, políticas e sociais. Dali em diante, os negros que passavam
14 a ser libertados das fazendas, obviamente sem qualquer patrimônio acumulado, não
15 tinham outra saída que não engrossarem as massas urbanas nos famosos cortiços do final
16 do século XIX e início do século XX, desde o início compondo uma expressiva população
17 excedente, ocupando as piores colocações sociais e submetidos a processos de elevado
18 grau de exploração. Mesmo livres formalmente, aos oriundos da senzala restou a vida nas
19 futuras favelas que acompanharam o processo de urbanização no Brasil.

20 Ess e processo da nova lei de terras, intensifica a atuação militar do Estado


21 brasileiro, reprimindo toda e qualquer rebelião popular em torno da posse da terra ou da
22 luta contra a profunda miséria do povo que aqui habitava. Não por acaso, a principal força
23 militar da época era a Guarda Nacional, formada por corpos de exército regionais sob o
24 comando das oligarquias rurais, os famosos “coronéis”, e que tinha como principal
25 objetivo garantir a propriedade privada da terra orientada para o latifúndio exportador e
26 para obras de infraestrutura que ampliassem a capacidade de escoamento das safras
27 agrícolas, especialmente ferrovias, armazéns e portos.

28 Estes últimos desenvolvimentos das forças produtivas nacionais, no entanto,


29 começam a ocorrer apenas no último terço do século XIX, sempre orientados para a
30 constituição de corredores de exportação de produtos agrícolas e minerais. Antes disso,
31 por mais de 350 anos, desde o início da colonização portuguesa, praticamente nenhum
32 melhoramento industrial foi feito no país, uma vez que a própria Coroa Portuguesa proibia
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1 até mesmo a criação de engenhos de açúcar no país, sendo o excedente aqui produzido
2 escoado na quase totalidade para os países centrais. Este fato, adicionado ao latifúndio
3 monocultor baseado na escravidão com ampla disponibilidade de força de trabalho
4 escravo por conta do tráfico negreiro, fez com que o grau de desenvolvimento das forças
5 produtivas nacionais chegasse ao último terço do século XIX com modestíssimos
6 avanços. Todos os aprimoramentostécnicos introduzidos a partir daí, por conta deste
7 processo de “desacumulação primitiva” anterior, foram amplamente dependentes do
8 capital estrangeiro oriundo dos países centrais, majoritariamente conferidos em formato
9 de empréstimos e exigindo elevadas contrapartidas financeiras.

10 Com isso, algumas características estruturais da posição subordinada do Brasil na


11 divisão internacional do trabalho se consolidavam desde o início da colônia,
12 permanecendo no período posterior. De um lado, a consolidação de uma região produtora
13 de mercadorias complementares para o desenvolvimento do capitalismo central (ouro,
14 prata, pau-brasil, cana-de-açúcar, café, etc.) e, de outro, uma produção baseada no
15 latifúndio monocultor, conferindo grande poder aos fazendeiros subordinados ao sistema
16 mercantil capitalista internacional e com baixo grau de desenvolvimento das forças
17 produtivas na comparação com as potências industriais dos países centrais. Por sua vez
18 as camadas subalternas formavam-se de majoritariamente pelas classes populares
19 empobrecidas constituindo desde muito cedo uma ampla superpopulação excedente, que
20 facilitaria a introdução do assalariamento sobre as bases da superexploração da força de
21 trabalho.

22 Esta economia colonial – que de maneira atinada Sergio Bagú chamou de


23 capitalismo colonial – passaria por mudanças substanciais com as transformações trazidas
24 após a segunda metade do século XIX, tanto internas quanto do ponto de vista do mercado
25 mundial. Essas transformações atravessariam o ciclo da produção do café e sustentariam
26 a transição da economia colonial para a economia dependente brasileira. A exigência de
27 mão de obra das fazendas de café, especialmente do Rio de Janeiro e de São Paulo, seria
28 suprida através da migração em massa de força de trabalho europeia, especialmente
29 italianos e espanhóis. Esses trabalhadores europeus se somaram aos ex-escravos,
30 compondo uma nova força de trabalho agora assalariada e majoritariamente reunida nas
31 fazendas de café e nas incipientes cidades destas regiões. Com isso, já no final do século
32 XIX, surgiam ali indústrias de produção de bens de consumo para estes novos mercados
33 nascidos da demanda desta nova força de trabalho assalariada. Essas indústrias de
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1 propriedade de alguns imigrantes que chegavam ao Brasil de posse de algum capital


2 anteriormente acumulado, de profissionais liberais que já viviam nas cidades ou até
3 mesmo de fazendeiros que viam na atividade industrial possibilidades de reaplicação do
4 excedente cafeeiro em ramos que passavam a ser lucrativos.

5 Este seria o embrião do processo de industrialização brasileiro, tendo como pilares


6 a propriedade privada da terra e a força de trabalho livre, ambas submetidas à compra e
7 venda, mas também à dependência de capitais estrangeiros por conta do processo anterior
8 de incapacidade de apropriação interna do excedente econômico. O país não abandona o
9 café como principal mercadoria produzida nem os fazendeiros como detentores da
10 orientação última dos esforços do Estado, mas, a partir daí, a atividade cafeeira passaria
11 a conviver com a ampliação do setor industrial no país, majoritariamente nos setores
12 alimentício e de vestuário, e com a ampliação das camadas médias urbanas letradas.

13 Neste sentido, da costela do incipiente processo de industrialização, também


14 surgia uma nova classe operária. A industrialização se alastrava durante todas as últimas
15 décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX, criando novos centros
16 urbanos e desenvolvendo os anteriormente constituídos. Junto do desenvolvimento do
17 operariado industrial brasileiro, também surgiam greves, sindicatos, congressos sindicais
18 nacionais e partidos políticos, entretanto, sempre em iniciativas embrionárias e de pouca
19 abrangência nacional. Os maiores conflitos deste período inicial de industrialização
20 viriam de novas explosões urbanas e conflitos rurais armados, ambos em função do alto
21 grau de pobreza da população, como reedições do que ocorria desde o século XVIII.

22 A aceleração deste processo com maior protagonismo do movimento operário


23 se daria no final da segunda década do século XX, fortemente estimulada pelo
24 crescimento da atividade industrial brasileira por conta do encarecimento da importação
25 de mercadorias industrializadas devido à 1ª Guerra Mundial, com participação das
26 potências capitalistas e também devido à vitória da Revolução Russa, em 1917. Tanto
27 foi assim que, no mesmo ano da vitória dos bolcheviques, no Brasil ocorreria a primeira
28 greve geral da nossa história, puxada especialmente pelo movimento sindical anarquista
29 que era estimulado por imigrantes italianos e espanhóis. Após isso, 1919, seria um ano
30 de ainda maior agitação grevista, muito estimulado pelo aprendizado dos anos anteriores.
31 Contribuíam para isso as constantes crises do café, atividade que já se encontrava em
32 decadência desde o início do novo século e que exigia contrapartidas cada vez maiores
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1 do Estado para sua sustentação, trazendo transtornos para a incipiente atividade industrial
2 e greves explosivas como contrapartida. A década de 20 seria , portanto, um período
3 de profunda instabilidade política no país.

4 De um lado, a oligarquia cafeeira de São Paulo dominava o Estado brasileiro,


5 exigindo que direcionasse seus recursos e energias para a sustentação da atividade
6 cafeeira em decadência. Do outro lado, a indústria incipiente dependente do excedente
7 cafeeiro era também arrastada para crises, que decorriam da constante elevação dos
8 preços dos alimentos trazida pela estrutura agrária voltada para o latifúndio exportador.
9 Assim, promoviam as constantes greves e explosões populares que se acumularam nesta
10 década e geraram ganhos de experiência política dos trabalhadores, com sindicatos mais
11 fortes e com o surgimento do Partido Comunista do Brasil (PCB) em 1922. Dessa
12 ebulição social surge o movimento tenentista, em que os jovens tenentes brasileiros,
13 influenciados pelo movimento operário das cidades, insubordinavam-se contra os
14 velhos coronéis articulados ao poder da oligarquia rural, exigindo melhores condições de
15 vida para o povo e maiores direitos políticos para as classes populares.

16 A contradição da sociedade brasileira se acumulava. De um lado o velho modelo


17 econômico encontrava-se em decadência, do outro, o desenvolvimento das forças
18 produtivas estava em expansão por conta do processo de industrialização.
19 Simultaneamente, ocorria a ascensão do movimento operário e das classes médias
20 democráticas radicalizadas nas cidades. Desta forma, na esteira da profunda crise
21 capitalista global de 1929, viveríamos a Revolução Burguesa de 1930 no Brasil. Getúlio
22 Vargas ascende ao poder apoiado nas oligarquias regionais que estavam fora do consórcio
23 no poder, hegemonizado pela oligarquia cafeeira paulista, mas também contando com o
24 apoio das massas populares que já não toleravam o acúmulo das mazelas sociais trazidas
25 pelas décadas de crise estrutural do modelo econômico anterior.

26 A instabilidade política, entretanto, não terminaria imediatamente. Em primeiro


27 lugar, o antigo consórcio paulista no poder organizaria uma tentativa frustrada de
28 contrarrevolução em 1932, derrotada militarmente pelas forças nacionais. Também pela
29 direita, surgiria o movimento integralista, oriundo de forças civis e, especialmente, de
30 militares de direita alinhados com o fascismo europeu e que não concordavam com os
31 rumos do governo que assumia o poder. Foi nesse contexto que tentaram um levante
32 militar em 1938, também derrotado pelas forças nacionais em torno do governo. Do
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1 outro lado, as forças populares contrárias aos desdobramentos do início do governo


2 Vargas e enfrentando diretamente os integralistas também se organizariam em torno
3 da Aliança Nacional Libertadora (1934-37), hegemonizada pelo PCB e por militantes
4 de esquerda oriundos do movimento tenentista, como Luís Carlos Prestes. Essa iniciativa
5 teria fim após o levante militar frustrado de 1935 e a instauração do Estado Novo em
6 1937, em que a polícia política do governo Getúlio caçaria o registro do PCB, perseguiria,
7 torturaria e mataria diversos militantes de esquerda, o que arrefeceu fortemente o
8 movimento popular que ganhar a força desde 1917.

9 Getúlio Vargas e as forças militares que se organizavam em torno de seu projeto


10 – tendo nomes de destaque em Góes Monteiro (o organizador do exército brasileiro
11 moderno) e Eurico Gaspar Dutra – passariam a centralizar o poder do Estado após 1937,
12 promovendo finalmente o salto necessário no desenvolvimento das forças produtivas
13 nacionais – sempre, obviamente, do ponto de vista burguês de manutenção inalterada da
14 propriedade privada dos meios de produção. Passaria a criar nessa primeira fase que vai
15 de 1937 a 1945 diversas instituições atreladas a este objetivo central, tendo destaque o
16 Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio em 1930, a nova lei sindical em 1932, o
17 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1936, a Justiça do Trabalho em
18 1939, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) em 1941, a companhia mineradora Vale
19 do Rio Doce em 1942 e a Consolidação das Leis do Trabalho em 1943.

20 Em um contexto de Guerra Mundial entre as potências imperialistas, Vargas


21 utilizava-se da barganha entre as potências em guerra para negociar melhores termos na
22 importação de maquinaria e tecnologia e na aquisição de empréstimos internacionais, o
23 que permitia, em contexto de encarecimento dos produtos importados por conta da guerra,
24 promover um processo de substituição de importações na indústria nacional. De um lado
25 se desenvolvia a indústria produtora de bens de consumo para a classe trabalhadora em
26 expansão (alimentos, têxteis, etc.) e, de outro, impulsionava-se a criação de indústrias
27 pesadas estatais, como a CSN, formando -se uma ampla burocracia estatal voltada
28 para o planejamento deste desenvolvimento industrial. Em paralelo a isso, criava
29 instituições para controlar com mais rigor o movimento sindical, tentando enclausurá
30 -lo aos marcos de uma razão de Estado orientada para o processo de industrialização com
31 pactuação de classes, sempre mantendo a propriedade privada como elemento central a
32 ser preservado.
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1 O primeiro governo Vargas dava assim o impulso necessário ao desenvolvimento


2 das forças produtivas antes bloqueadas pelo formato do Estado da República Velha, onde
3 apenas a oligarquia do café tinha seus interesses atendidos . Obviamente, tal tarefa
4 exigia a centralização do poder em uma espécie brasileira de bonapartismo, isso em meio
5 a uma conjuntura de conflito entre as frações da classe dominante e de ascensão do
6 movimento revolucionário dos trabalhadores. Conquistar e centralizar o poder eram
7 tarefas necessárias para desenvolver as forças produtivas no Brasil, sendo que, ao
8 contrário do que havia ocorrido em 1917 na Rússia, a classe trabalhadora brasileira não
9 tinha acumulado as forças políticas necessárias para tomar para si esta tarefa histórica,
10 como ficou claro no fracasso do levante militar de 1935.

11 Com isso, o Estado varguista impulsionou o desenvolvimento das forças


12 produtivas e a implantação definitiva do capitalismo no Brasil, fortalecendo todos os
13 elementos embrionários que se desenvolviam desde o século XIX no país e que
14 pressionavam pela ruptura com o Estado oligárquico. Entretanto, esse processo traria
15 marcas profundamente diferentes do que ocorreu nos países centrais desenvolvidos, o que
16 faria o Brasil abandonar o padrão de acumulação colonial e não iniciar um padrão
17 de desenvolvimento capitalista autônomo e imperialista, mas sim o padrão dependente
18 e subdesenvolvido, o chamado desenvolvimento do subdesenvolvimento.

19 Diferentemente dos países centrais, os recursos utilizados na industrialização do


20 país não foram fruto de um processo histórico de acumulação de capital interno anterior
21 e no uso da transferência de valor das colônias, mas sim fruto da dependência dos preços
22 dos produtos exportados pelo latifúndio (renda da terra) – setor que nunca foi alijado do
23 bloco no poder, mesmo sob o governo de Vargas – e pelo recebimento de capitais
24 imperialistas ingleses, franceses, holandeses e estadunidenses, seja na forma de
25 empréstimos ou na forma de investimento estrangeiro direto. Ou seja, um processo de
26 industrialização já, desde a raiz, vinculado ao mercado mundial dominado pelas
27 potências imperialistas – estas que já haviam feito revoluções burguesas no mínimo
28 um século antes. Por isso mesmo, tal como caracterizou Ruy Mauro Marini, tivemos no
29 Brasil uma industrialização típica de um país dependente.

30 Com isso, mesmo o país se industrializando, o desenvolvimento desigual e


31 combinado da economia mundial não deixou de operar. Enquanto o Brasil absorvia os
32 setores que deram início à revolução industrial inglesa (substituição de importações) e, a
10

1 duras penas, avançava na industrialização pesada (siderurgia e energia), a Europa e,


2 principalmente, os EUA revolucionavam permanentemente as formas de produzir
3 riqueza, avançando para etapas mais desenvolvidas da produção industrial (indústria
4 química, elétrica, de petróleo e de aço, etc.). Ou seja, uma nova característica marcante
5 da economia periférica estava dada: a eterna dependência tecnológica da nossa economia,
6 que não conseguiu e está bloqueada estruturalmente de conseguir internalizar os setores
7 produtores do que há de mais avançado em termos de ciência e tecnologia.

8 Ao final da 2ª Guerra Mundial, o Brasil já havia ingressado em um seleto grupo


9 de países latino-americanos com relativo desenvolvimento industrial. Juntamente com
10 Argentina e México, o Brasil fazia parte de um novo grupo de países, todos eles de
11 dimensões continentais, com um numeroso mercado interno consumidor (ainda que
12 restringido pela situação de dependência e subdesenvolvimento comum a todos) e com
13 considerável desenvolvimento industrial, o que lhes conferia relativo grau de autonomia
14 nas disputas geopolíticas mundiais. Isso marcaria uma distinção em relação aos demais
15 países latino-americanos, que, com exceção da Colômbia e do Chile, limitavam-se ainda
16 a ser economias de enclave, sem qualquer nível de autonomia relativa no sistema mundial
17 de nações.

18 Por isso mesmo, logo após o final da guerra, os Estados Unidos reforçam suas
19 posições na América Latina, entendendo a região como reserva estratégica na disputa
20 internacional, principalmente no enfrentamento contra a potência tecnológica e militar
21 que, naquele momento, representava o bloco socialista de nações, sob a direção da União
22 Soviética. A grande potência do norte dá início, dessa forma, à Escola das Américas, em
23 1946 no Panamá, com o objetivo de dar treinamento e doutrina militar para os oficiais
24 dos exércitos de todos os países latino-americanos. Ao mesmo tempo, aproveita do
25 enorme salto de produtividade de sua economia durante e após a guerra e começa
26 um intenso processo imperialista de exportações de capitais, parte dos quais era
27 direcionada ao próprio processo de industrialização dos países da América Latina,
28 incluindo aí o Brasil. O objetivo era um só: manter a região sob o seu comando, seja pelo
29 desenvolvimento do subdesenvolvimento ou pela força das cúpulas militares cada vez
30 mais entreguistas.

31 Sob este novo panorama ocorre a deposição de Getúlio Vargas logo ao final da 2ª
32 Guerra Mundial em 1945. Mesmo com Getúlio chamando novas eleições, seus dois
11

1 braços direitos dentro das forças armadas, Góes Monteiro e Dutra, tramariam um golpe
2 militar destituindo Vargas do governo, sob a alegação de que havia chegado ao fim a era
3 ditatorial e teríamos início a um novo período liberal e democrático. Se o governo de
4 autonomia relativa de Vargas era feito com base na barganha entre EUA e Alemanha,
5 agora, após o final da guerra, a disputa trataria de ser travada sob os auspícios da Guerra
6 Fria entre EUA e URSS. Diante disso, qualquer governo que buscasse autonomia no seu
7 processo de desenvolvimento, mesmo que sob os limites das relações capitalistas de
8 produção, seria tratado como inimigo do império do norte.

9 O ex-Ministro da Guerra de Vargas, Eurico Gaspar Dutra, trataria de ganhar a


10 eleição presidencial ocorrida logo após a destituição, com o lamentável apoio do próprio
11 Getúlio, que se elegeria senador no mesmo pleito eleitoral. Dutra daria início a uma fase
12 ultraliberal na condução da economia, de abertura comercial e utilização das reservas
13 cambiais brasileiras para beneficiamento da velha oligarquia cafeeira. Se desde a entrada
14 do Brasil na guerra, ao lado das forças aliadas, foi necessário retomar os direitos
15 democráticos, inclusive recolocando o PCB na legalidade, rapidamente o governo de
16 Dutra e dos militares anunciavam quais seriam seus projetos mais íntimos, fechando o
17 regime e recolocando os comunistas na ilegalidade. Seu governo terminaria em 1951, sem
18 qualquer realização politica de relevo e totalmente repudiado pelas camadas populares.

19 Este seria o primeiro ensaio golpista no Brasil, ainda que de curta duração e sem
20 conseguir subverter definitivamente a correlação de forças produzida por um período de
21 intensa expansão da classe trabalhadora brasileira, a qual acompanhava o próprio
22 processo de industrialização. Crescia enormemente o número de entidades sindicais,
23 agora atreladas à razão de Estado desde a lei sindical de 1932, a repressão do Estado Novo
24 e a criação do imposto sindical em 1942 . Sindicatos estes que, mesmo que subsumidos
25 a uma dinâmica de conciliação de classes, passavam a ser influenciados pelas
26 contradições dentro do próprio Estado brasileiro. De um lado, as forças golpistas e
27 entreguistas alinhadasimp ao imperialismo dos EUA e educadas sistematicamente pela
28 Escola das Américas e outras formas de influenciar ideologicamente setores da burocracia
29 estatal e do empresariado do país. De outro, um projeto que se organizava em torno de
30 Getúlio Vargas pelo desenvolvimento de um capitalismo autônomo, de ruptura com a
31 dependência e o subdesenvolvimento, que ganhava contornos anti-imperialistas durante
32 toda a marcha da década de 50 até 1964, ano do golpe militar e da vitória das forças
33 atreladas ao imperialismo.
12

1 1.2- Revolução ou contrarrevolução: respostas para a questão nacional


2

3 O Brasil se industrializou com base na renda da terra e no capital financeiro


4 imperialista. Daí advêm duas características marcantes da estrutura capitalista nacional:
5 a união umbilical entre oligarquia rural, imperialismo e capital urbano, que se consolida
6 definitivamente como projeto de Estado com o golpe militar de 1964. Contrarrevolução
7 preventiva, o golpe de 1964 visou eliminar qualquer vestígio do nacional
8 desenvolvimentismo que cresceu com o processo de industrialização e urbanização
9 brasileiro. Aqui é preciso entender qual o significado desse golpe dado em resposta a um
10 projeto nacional de caráter reformista, capitaneado por João Goulart, o herdeiro político
11 de Getúlio Vargas.

12 Para isso é preciso entender que toda revolução nacional, afirmando-se socialista
13 ou não, na atual fase do capitalismo imperialista que se iniciou no fim do século XIX,
14 conduz necessariamente ao enfrentamento radical da organização imperialista do
15 sistema capitalista de nações. Desta forma, independentemente de suas forças de origem
16 (a pactuação de classes de Vargas), o conflito anti-imperialista só poderia prosperar se
17 apontasse para a conquista definitiva do poder e para a construção do socialismo. Rosa
18 Luxemburgo já havia apreendido esta característica histórica ao analisar a Revolução
19 Russa de 1905 e seu caráter de revolução do proletariado, afirmando que ela inaugurava
20 uma nova fase mundial, em que toda revolução necessariamente ganharia caráter
21 socialista em função da consolidação das potências imperialistas. A posterior Revolução
22 vitoriosa de 1917, por sua vez, cindiu o mundo em dois blocos. A Revolução Cubana de
23 1959, como fato emblemático daquela divisão, inaugurou o socialismo na América
24 Latina.

25 O nacionalismo, na fase imperialista do capitalismo mundial, adquiriu


26 historicamente um caráter eminentemente revolucionário na periferia capitalista, nos
27 países que não fazem parte do seleto clube das potências imperialistas. É ele quem articula
28 a questão nacional com a tomada do poder. É ele quem condensa o tema revolucionário
29 do rompimento com a ordem imperialista, tanto com as potências externas, quanto com
30 seus sócios menores internos. Essa conclusão, no entanto, não subalterniza o horizonte
31 socialista da revolução nacional; ao contrário, a ausência deste objetivo, a ausência do
32 entendimento sobre a necessidade do fim da propriedade privada dos meios de produção,
33 conduziu e continuará conduzindo qualquer vanguarda política inserida em um processo
13

1 revolucionário nacional à derrota. Foi assim na Guatemala de 1954 e também com João
2 Goulart no Brasil em 1964.

3 O ensejo golpista, no entanto, já estava anunciado desde 1945 com o primeiro


4 golpe contra Getúlio Vargas e o subsequente governo de Dutra. Esse governo que foi
5 frustrado, garantido o retorno de Getúlio já nas eleições de 1950. Antes disso, logo após
6 sua deposição, as forças em torno de Vargas criariam o Partido Trabalhista Brasileiro
7 (PTB), tendo como campanha política popular após sua fundação o “Queremismo”, com
8 o mote do “Queremos Getúlio”. O partido foi o que mais cresceu nesse período que
9 antecedeu a ditadura, tendo em sua composição majoritariamente trabalhadores urbanos
10 organizados em torno do sindicalismo oficial, além de intelectuais vinculados ao
11 trabalhismo. Esse partido nasce da costela do próprio sindicalismo atrelado à razão de
12 Estado, tendo aí sua potência (graças ao elevado grau de organização e número de
13 trabalhadores vinculados a estes sindicatos) e também seus limites consolidados no
14 reformismo de suas propostas. Nas palavras do próprio Getúlio, a fundação do PTB
15 serviria como “um anteparo entre os sindicatos e os comunistas”, reafirmando mais uma
16 vez a característica essencial dos governos de Vargas, a despeito de sua importância
17 inegável para a tradição política brasileira.

18 O segundo governo de Vargas (1951-54), por sua vez, trataria de dar ainda mais
19 relevo ao processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais através do papel
20 central do Estado. Seriam criados instrumentos fundamentais para essa função, para além
21 daqueles do seu primeiro governo. Entre os mais relevantes podemos citar a criação do
22 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, atual BNDES) em 1952, a
23 promulgação de um decreto também em 1952 que limitava as remessas de lucro do capital
24 estrangeiro para os seus países de origem a 8% e a promulgação da lei de monopólio
25 estatal na extração e produção de petróleo e a criação da Petrobras, ambas em 1953.
26 Também assinou tratados de cooperação com os EUA, afirmando mais uma vez as
27 contradições de seu governo.

28 O governo, apesar de contraditório, ganhava um caráter marcadamente


29 nacionalista, contando com a forte ideia de desenvolver um capitalismo autônomo de
30 bases nacionais, pautado em um discurso e em uma ação cada vez mais anti-imperialistas.
31 Tanto foi assim que as forças atreladas ao imperialismo estadunidense atuariam
32 sistematicamente para desestabilizar o governo. Tal pressão levaria Getúlio a cometer
14

1 suicídio em 1954, em meio a uma crise política promovida sob a ideia de que seu
2 governo era atravessado pelo “mar de lama” da corrupção e agravada pelo atentado contra
3 Carlos Lacerda, que levaria um conjunto de dezenove generais do exército a escreverem
4 uma carta exigindo sua renúncia. O presidente deixaria sua famosa “Carta Testamento”,
5 onde exporia que a “campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos
6 grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho”, todos articulados
7 contra a soberania do país na criação das estatais e as leis que impediam a livre remessa
8 dos lucros.

9 Entretanto, apesar do suicídio e da comoção popular gerada por sua carta terem
10 impedido o golpe militar que já se armava em 1954, mais uma vez, Vargas não convocava
11 o povo para o confronto definitivo com essas “forças subterrâneas”, preferindo o suicídio
12 e a denúncia ao embate derradeiro. Contudo, se até o final do primeiro governo de Vargas,
13 o desenvolvimento capitalista brasileiro sustentou-se sobre um pacto de cooperação
14 antagônica entre a burguesia industrial nascente e a antiga oligarquia rural, a entrada em
15 cena do capital estrangeiro imperialista, que ocorria em paralelo ao processo de
16 industrialização e ganhava ainda mais relevo após o final da 2ª Guerra Mundial, daria
17 conta de modificar drasticamente o bloco da classe dominante, criando um período de
18 tensão entre o projeto de capitalismo nacional autônomo e o de incorporação definitiva
19 do Brasil na posição dependente em relação aos países centrais, em especial os EUA.

20 De um lado, o latifúndio exportador, nos momentos de baixa do preço


21 internacional do café, produzia subsequentes crises no balanço de pagamentos do país,
22 constrangendo o excedente concentrado no Estado que era destinado para sustentar a
23 atividade cafeeira – o próprio Vargas criou o Instituto Brasileiro do Café em 1952 e
24 firmou diversos acordos com os EUA para garantir a venda dos excedentes cafeeiros
25 irrealizáveis. De outro lado, as remessas de lucro cada vez maiores do capital estrangeiro
26 que se instalava no país também forçavam o balanço de pagamentos, ampliando as crises
27 nos momentos de queda dos preços internacionais. Em resumo, as necessidades de
28 reinverter a mais-valia produzida pelos capitais no Brasil era truncada por essas diversas
29 formas de apropriação do excedente que não era direcionado ao incremento do processo
30 de industrialização. Isso já trazia problemas ao modelo de substituição de importações
31 em vigor desde 1930, mas se agravaria até o ponto de uma crise insolúvel com a
32 necessidade de industrialização pesada da economia brasileira que se inauguravam na
33 década de 50, principalmente a partir do governo de Juscelino Kubitschek (JK).
15

1 Após um curto período com o presidente Café Filho, vice-presidente de Getúlio,


2 JK assumiria a presidência da república em 1956. Mesmo sendo um presidente democrata
3 e orientado para a internacionalização da nossa economia, também ele teria que enfrentar
4 uma tentativa de golpe por parte dos militares, que só não seria vitoriosa por conta da
5 atuação do general Teixeira Lott. Já no primeiro ano de seu mandato, o novo presidente
6 implementa o Plano de Metas, que, mesmo contando com facilidades alfandegárias e
7 incentivos fiscais para o capital nacional, orientou-se majoritariamente para a abertura
8 definitiva da nossa economia para a entrada de capital estrangeiro através da instalação
9 de empresas multinacionais dos países imperialistas. Estas empresas tratariam de
10 modificar a estrutura econômica brasileira, alterando também a própria relação entre as
11 classes sociais e o Estado no país, intensificando as tensões sociais que conduziriam à
12 resolução contrarrevolucionária de 1964.

13 A instalação de empresas produtoras de bens de consumo duráveis, basicamente


14 automóveis, ampliaria o próprio processo de industrialização brasileiro. Com a instalação
15 de uma fábrica da Volkswagen, por exemplo, um conjunto enorme de outras fábricas
16 fornecedoras de insumos para a produção de automóveis – autopeças, pneus, máquinas e
17 equipamentos, motores, etc. – instalava-se nas regiões do entorno, sendo elas tanto de
18 capital nacional como estrangeiro. Este modelo de internalização de cadeias produtivas
19 trataria de dar novo salto ao processo de industrialização, criando inclusive novas regiões
20 industriais em pouquíssimos anos. Criava-se também um novo proletariado empregado
21 nessas novas indústrias, mais bem remunerado e melhor qualificado que a média nacional
22 das demais atividades.

23 Novas demandas ao processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais


24 surgiam desta maneira. Primeiramente, era necessária a ampliação significativa da
25 infraestrutura nacional para oferecer moradia para os novos contingentes da classe
26 trabalhadora que abandonava em massa o campo em busca dos novos empregos
27 industriais das cidades e para comercializar estas novas mercadorias produzidas
28 internamente – o Brasil abandona os parcos trilhos de trem que havia construído desde o
29 final do século XIX e direciona todos os investimento na construção de rodovias para os
30 automóveis e caminhões. Também era preciso assegurar novas e potentes fontes de
31 energia para impulsionar os enormes braços mecânicos das novas fábricas. Por fim, era
32 necessário resolver o problema de desabastecimento destas novas cidades, já que as terras
33 e o recurso estatal cada vez mais direcionados para o latifúndio exportador faziam com
16

1 que a produção de alimentos fosse pífia, o que gerava picos inflacionários gigantescos
2 nos itens de consumo da classe trabalhadora das cidades.

3 Não por acaso verificamos, a partir de 1954, um novo ciclo grevista nas cidades
4 brasileiras, muito em função da radicalidade trazida por taxas de inflação que atingiam
5 mais de 16.000% ao ano. Ciclo grevista que, ao contrário daquele vivenciado a partir de
6 1917, agora contava com uma classe trabalhadora muito mais significativa tanto em
7 número quanto em acúmulo político e teórico. É nesse contexto que se aprofundam os
8 debates em torno da revolução brasileira, que já estavam presentes desde a década de
9 20, mas, a partir da década de 50, ganham fôlego e maior consistência. Tendo de um lado
10 o PCB e de outro o trabalhismo de esquerda, a influência partidária dentro do movimento
11 sindical e das forças armadas ganhava impulso sólido. Também no campo, em meio à
12 profunda pobreza dos camponeses, organizavam-se as ligas camponesas em combate
13 direto com o latifúndio e os antigos coronéis.

14 Somado a isso, em 1959, sairia vitoriosa a Revolução Cubana, quando Fidel


15 Castro, Raúl, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e os guerrilheiros do Movimento 26 de
16 Julho venceriam a guerra contra Fulgêncio Batista e o imperialismo estadunidense. Já em
17 1961, a ilha passaria da guerra de independência nacional para o socialismo, sendo o
18 primeiro país das Américas a anunciar as boas novas no continente. Esta vitória, por sua
19 vez, colocaria em xeque as teses do PCB, que desde o suicídio de Vargas apontavam para
20 a necessidade de aliança com a burguesia nacional como única estratégia na condução da
21 revolução brasileira. Vários rachas surgiriam em função disso, como aqueles vivenciados
22 pelo PCdoB, a AP e a Polop, todos propondo a transição direta ao socialismo e a não
23 aliança com a burguesia nacional. Destaque-se que foi da Polop que surgiram , por sua
24 vez, as mais sólidas interpretações sobre o processo que levaria ao golpe militar de 1964.
25 De outro lado, também os órgãos formuladores associados ao PTB radicalizavam-se
26 em virtude dos acontecimentos em Cuba. Podemos identificar isso na radicalização do
27 pensamento do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), onde intelectuais do
28 calibre de Alvaro Vieira Pinto migravam rapidamente de uma posição nacional-
29 desenvolvimentista para uma postura abertamente anti-imperialista e revolucionária, de
30 claro conteúdo marxista.

31 Deste cenário de profundas contradições, emergem as lutas em torno das famosas


32 reformas de base. Com o fim do governo JK, o Brasil havia avançado fortemente em
17

1 seu processo de industrialização, os famosos “50 anos em 5”. Novas cidades nasciam do
2 desenvolvimento industrial com internalização de cadeias produtivas. O setor
3 metalomecânico era o mais impulsionado, para além dos setores já instalados que
4 produziam bens destinados ao consumo das fileiras cada vez maiores da classe
5 trabalhadora. Diante disso, os constrangimentos trazidos pela dependência faziam-se
6 pesar sobre os ombros do projeto nacional burguês de desenvolvimento. Antes da luta
7 pelas reformas, entretanto, teríamos um curto período com Jânio Quadros assumindo a
8 presidência da república no início de 1961, tendo como seu vice João Goulart, candidato
9 do PTB e ex-Ministro do Trabalho de Vargas. Jânio Quadros, em um governo
10 contraditório, que associava uma política interna liberal com uma política externa
11 independente, chegando até mesmo a condecorar Che Guevara com uma medalha de
12 mérito nacional, renunciaria em poucos meses, em uma manobra frustrada na tentativa de
13 retornar ao governo nos braços do povo e com plenos poderes.

14 O vice-presidente, João Goulart, estava em missão na China no momento desta


15 renúncia. Ali, já em 1961, viveríamos mais um ensaio golpista no Brasil. Os militares
16 tentam tomar o poder e não deixar Jango nem ao menos voltar ao país de sua viagem
17 internacional. Entretanto, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul e
18 cunhado de Jango, organizaria desde Porto Alegre a “Campanha da Legalidade”,
19 convocando em cadeia de rádio nacional as massas a resistirem ao golpe, mobilizando a
20 Brigada Militar gaúcha e armando a população do estado para resistir, até mesmo
21 militarmente, às forças armadas nacionais. A convocatória de Brizola teve eco, e
22 mobilizações populares foram puxadas por sindicatos e movimentos camponeses em
23 grande parte do Brasil. Os generais entreguistas, diante disso, deram ordem de
24 bombardear o Palácio do Piratini e assassinar Brizola. Entretanto, o III Exército invadiu
25 a Base Aérea de Canoas, destituindo o brigadeiro Aureliano Passos e impedindo o
26 bombardeio do Palácio.

27 Simultaneamente a esses acontecimentos, Jango retornava ao Rio Grande do


28 Sul via Uruguai. Diante disso, com o presidente legítimo em solo nacional e com o país
29 prestes a entrar em guerra civil, os militares entreguistas não tiveram coragem de avançar
30 no golpe, negociando com as forças legalistas a posse de Jango. Entretanto, como parte
31 do acordo, o congresso nacional aprovaria o parlamentarismo como substituição ao
32 presidencialismo, na tentativa de limitar os poderes do novo presidente que enfim
33 assumia. A crise política, no entanto, era apenas expressão do momento de decisão que
18

1 se aproximava. A economia brasileira estava estrangulada, e a taxa de investimento


2 declinou significativamente a partir de 1962, paralisando o desenvolvimento industrial e
3 ampliando a pressão do movimento sindical. A pactuação da burguesia com Goulart era
4 a última tentativa de resolver as contradições do desenvolvimento capitalista nacional por
5 meio da manutenção da propriedade privada dos meios de produção e sem romper com a
6 ordem institucional vigente.

7 Já em 1962, uma campanha puxada por militares progressistas, a Central Geral


8 dos Trabalhadores (CGT) e o próprio Jango, trataria de retomar o presidencialismo no
9 Brasil. Mantendo os pactos com a propriedade privada, o governo lançaria o Plano
10 Trienal, gestado pelo economista Celso Furtado, um notório desenvolvimentista liberal.
11 O plano reforçava as contradições do próprio governo, que, por mais que fosse sustentado
12 pelas forças populares do país, atuava no sentido de um clássico ajuste econômico com
13 vistas a reduzir o poder de barganha da classe trabalhadora e rebaixar seus salários.
14 Enquanto isso, a radicalização política acentuava-se em razão do aprofundamento da crise
15 econômica, em que a pressão pelo desenvolvimento das forças produtivas encontrava
16 seu limite na inserção dependente do país na dinâmica imperialista global.

17 O fracasso do governo em diminuir com a pressão dos movimentos populares


18 através do Plano de Metas, fez com que a burguesia, sistematicamente, retirasse o frágil
19 apoio que havia conferido ao governo de Goulart, especialmente quando a radicalização
20 política passou a atingir as forças armadas por meio de vários casos de insubordinação
21 dentro das tropas. A partir daí, Jango finalmente opera uma guinada à esquerda, lançando
22 mão das Reformas de Base através de vários decretos assinados no dia 13 de março de
23 1964 em um comício com mais de 500 mil pessoas no Rio de Janeiro. Entre as reformas,
24 as principais seriam o controle de remessas de lucros para conter a evasão do excedente
25 e permitir a ampliação da taxa de investimento; a reforma agrária para enfrentar a inflação
26 galopante do preço dos alimentos e o poder do latifúndio exportador; a nacionalização
27 das refinarias de petróleo e; a limitação dos preços dos aluguéis.

28 Logo na sequência, a contrarrevolução organizaria sua contraofensiva através da


29 Marcha da Família com Deus pela Liberdade, reunindo também milhares de pessoas
30 contra a suposta “república sindical” que estaria sendo montada no Brasil. A escalada do
31 golpe estava em passos acelerados. De outro lado, Goulart repudiou, até o fim, a
32 possibilidade de armar o povo para a defesa das reformas. Milhares de sindicalistas,
19

1 militantes partidários e membros das forças armadas estavam em trabalho de profunda


2 organização e agitação política. Entretanto, nunca foram convocados para a luta, uma
3 vez que Jango confiou até o fim em seu famoso “dispositivo militar”, um suposto conjunto
4 de oficiais legalistas que não permitiriam o golpe. Ledo engano. O golpe foi deflagrado
5 no primeiro dia de abril de 1964, não contando com capacidade de reação da população,
6 que viria a sangrar durante as duas décadas seguintes sob a repressão do governo militar.

7 No contexto do golpe de 1964, por meio de uma contrarrevolução violenta e


8 baseada na centralização do poder de Estado, a burguesia deu uma solução para as
9 questões nacionais que fomentavam a Revolução Brasileira. Em relação ao problema do
10 latifúndio de baixa produtividade, para o qual os trabalhistas propunham a reforma
11 agrária, os militares implementaram a chamada “revolução verde” através da criação da
12 Embrapa e do cultivo latifundista de alta tecnologia do cerrado brasileiro. Para contornar
13 o problema das remessas de lucros e da ausência de capital disponível para se reinvestir
14 no processo de industrialização pesada, a ditadura promoveu um processo violento de
15 centralização do capital bancário, um aprofundamento dos monopólios articulados com o
16 Estado e a estruturação dos mecanismos financeiros que gerariam a dívida pública como
17 pedra angular do sistema financeiro nacional até hoje vigente. Isso sempre com base nos
18 empréstimos internacionais com o hiper endividamento externo correspondente, e
19 principalmente, no assalto brutal ao fundo salarial dos trabalhadores, através das
20 reformas trabalhistas e da previdência, logo em 1966 e também do congelamento salarial
21 que se transformaria em política de Estado durante todos os anos da ditadura.

22 No lado das pressões sociais, a modernização capitalista da agricultura e o início


23 dos grandes complexos agroindustriais com financiamento estatal rebaixaram o preço dos
24 alimentos para a classe trabalhadora urbana. Já para o problema da habitação, pressionada
25 pelo rápido processo de êxodo rural iniciado nas décadas anteriores, foram criados o
26 BNH e o FGTS para financiar os grandes complexos habitacionais – isso em claro
27 processo de confisco do fundo de salários dos trabalhadores e repasse para as recém-
28 nascidas grandes empreiteiras brasileiras, que viriam a utilizar o mesmo mecanismo
29 para tocar as grandes obras de infraestrutura do fim da ditadura. Com o FGTS, destruíram
30 a estabilidade de emprego dos trabalhadores urbanos, que passaram a encarar a
31 rotatividade estrutural do mercado de trabalho brasileiro, o rebaixamento de seus salários
32 e a miséria estrutural. A despeito de tudo isso, o desenvolvimento das forças produtivas
33 através da industrialização pesada promovida pela ditadura, deu conta de gerar os
20

1 empregos necessários para as massas que saíam do campo e mudavam-se para as cidades,
2 especialmente através da construção pesada. Também foram criadas centenas de
3 empresas estatais para organizar esse processo de modernização capitalista, o que
4 empregaria com elevados salários os setores das camadas médias que estavam
5 radicalizados nos anos anteriores ao golpe. Sendo assim, o projeto de modernização da
6 ditadura, garantia a estabilidade econômica necessária para consolidar o processo de
7 eliminação dos milhares de elementos radicais que atuavam na política brasileira através
8 do terrorismo de Estado.

9 A questão nacional daquele período foi decisiva para a vitória ou fracasso do


10 processo revolucionário que estava em curso. A lumpen-burguesia brasileira mostrou sua
11 verdadeira face, incapaz de tomar a questão nacional em sua acepção positiva,
12 revolucionária. Pela sua origem tardia, nunca esteve apta a este papel e, para conter o
13 avanço do proletariado nos anos que antecederam o golpe, recorreu ao auxílio dos setores
14 militares mais intimamente ligados ao imperialismo estadunidense desde a criação da
15 Escola das Américas em 1946.

16

17 1.3- O fim do processo de industrialização e a emergência da especialização


18 produtiva
19

20 Na ditadura, foram reorganizadas as relações entre as classes e o Estado


21 definitivamente antinacional e atrelado ao imperialismo que então se consolidou. Com
22 base nessas relações, a dependência brasileira se inseriu, a partir dos anos 70, no novo
23 padrão de acumulação de capital global, provocado por um grande desenvolvimento
24 tecnológico dos meios de transporte e de comunicação, com destaque para a
25 microeletrônica, a robótica e a cibernética. Nesse novo paradigma de acumulação, foi
26 possível uma grande expansão geográfica dos processos industriais de extração de mais-
27 valia, com destaque para a política do governo chinês de criação das Zonas Econômicas
28 Especiais. Desta forma, três movimentos do capital global se destacam: 1) a China
29 colocando-se como chão de fábrica mundial, sem que isso afetasse o domínio tecnológico
30 dos EUA; 2) um grande desenvolvimento do capital financeiro, comandado pela
31 facilidade de repassar grandes fluxos de capital-dinheiro e capital-produtivo de um canto
32 a outro do globo e 3) a adoção do neoliberalismo como expressão política da gestão do
33 Estado capitalista.
21

1 Seria a crise global do modo de produção capitalista nos anos 70, somado a essas
2 profundas transformações no padrão de acumulação de capital que promoveriam os
3 condicionantes da crise da ditadura militar e da posterior transição democrática. Não
4 havia mais espaço para as ditaduras de segurança nacional latino americanas. A crise do
5 bloco socialista e as medidas liberalizantes adotadas pela URSS conduziam rapidamente
6 o mundo para o fim da Guerra Fria nos moldes que vigoravam desde o fim da 2ª Guerra
7 Mundial. Os próprios organismos internacionais, como a ONU, adotavam as políticas
8 hipócritas de defesa dos direitos humanos como principais mecanismos de acelerar o
9 desmonte do bloco soviético. A liberalização dos fluxos comerciais e de capital, por sua
10 vez, corroíam o poderio dos Estados nacionais para regularem o capital em seus
11 territórios. Por fim, os dois modelos que comandaram o processo de industrialização
12 brasileiro, o de substituição de importações dos anos 30 e o de internalização de cadeias
13 produtivas dos anos 50, mostravam-se completamente incapazes de competir com o novo
14 cenário global.

15 Por outro lado, a classe trabalhadora nos países avançados, havia sido
16 desarmada materialmente e ideologicamente após os quase 30 anos de vigência da social
17 democracia. Esta havia sido um verdadeiro armistício de guerra, capaz de desarmar os
18 operários dos países centrais da Europa, que haviam participado da guerra como soldados
19 ou estavam organizados nas milícias armadas de resistência ao avanço do nazifascismo.
20 Por sua vez, o Exército Vermelho da URSS havia sido a principal força vitoriosa do
21 conflito, avançando em campanha contra o exército alemão desde o território russo e
22 atingindo a capital francesa, a eterna fonte das luzes europeias. Junto com o exército
23 soviético, avançavam também as ideias revolucionárias, mesmo que, internamente, o
24 bloco já avançasse para a degeneração stalinista da experiência histórica fabulosa que a
25 havia construído. Assim, logo após a guerra, Mao Tsé Tung lideraria o povo
26 chinês no processo da Revolução Chinesa de 1949, evento histórico que se soma a
27 várias experiências revolucionárias de libertação nacional que varreriam a África na luta
28 contra os séculos de colonialismo praticado pelas potências europeias, agora frágeis
29 diante das perdas provocadas pela guerra. Desta forma, o espectro do comunismo mais
30 uma vez rondava a Europa, tal como Marx já havia anunciado em meados do século XIX.

31 Daí surge a necessidade da social democracia como reedição da velha política de


32 cooptação de setores estratégicos da classe operária através de salários mais elevados e
33 direitos sociais e trabalhistas. Isso ocorria por dois fenômenos que atualizavam a
22

1 dinâmica de desenvolvimento do imperialismo em escala global: 1) os processos


2 produtivos de ampliação da mais-valia relativa do centro permitiam que parcela destes
3 ganhos fossem redistribuídos, via Estado, para a constituição da velha aristocracia
4 operária, uma das principais inimigas da revolução social e 2) as trocas desiguais e a
5 dinâmica da dependência na relação com os países periféricos, transferiam valores
6 produzidos nestes países para os países centrais, auxiliando-os a sustentar a social
7 democracia. Por isso mesmo, enquanto o centro capitalista se desenvolvia através do
8 Plano Marshal, que reconstruía a Europa antes devastada pela guerra e ampliava as
9 condições de vida da aristocracia operária, na periferia, vivíamos as ditaduras de
10 segurança nacional, que tinham como principal papel assegurar a vinculação definitiva
11 dos nossos países ao imperialismo.

12 Esse foi o pacto necessário para, durante três décadas de funcionamento da social
13 democracia, desarmar os trabalhadores, que trocavam os fuzis e a consciência
14 revolucionária por direitos sociais e trabalhistas, pela ideia vulgar de que era possível
15 viver bem sob a batuta do capitalismo. Ao final dos anos 70, os trabalhadores
16 encontravam-se completamente desarmados, sendo a queda da URSS o fato que apenas
17 consolidava uma trajetória político-ideológica anterior. Por isso, quando da emergência
18 da nova crise cíclica do capital na década de 70, os próprios países centrais avaliam que,
19 diante de uma classe trabalhadora comportada, havia chegado ao fim a experiência social
20 democrata e elegem Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos EUA
21 como os coveiros do antigo modelo e inaugurando a era chamada de “neoliberal”.

22 Nesse novo paradigma global não havia mais espaço para ditaduras na América
23 Latina, que, apesar de serem antinacionais, visavam desenvolver setores estratégicos
24 internos, como petróleo e siderurgia, para manter a estabilidade do regime político. A
25 abertura comercial ampla aos fluxos de capitais e de mercadorias foi o modelo adotado
26 pela reabertura política. Consolidou-se com isso um enorme processo de falências dos
27 capitais produtivos brasileiros de porte médio, principalmente nos setores têxteis,
28 metalomecânicos, calçadista e moveleiro, enfim, nos setores produtores de bens de
29 consumo da classe trabalhadora, que passavam a ser produzidos na China. Desse processo
30 de falência, que colocava em risco a propriedade privada de amplos setores burgueses da
31 sociedade brasileira, emana o Plano Real como pacto necessário entre as frações do
32 capital que operam no Brasil.
23

1 Cria-se o tripé macroeconômico com o único objetivo de sustentar a propriedade


2 privada de frações que haviam deixado de ser competitivas na nova ordem global de
3 produção. 1) Com o câmbio flutuante, permite-se a transformação dess es capitais
4 produtivos em capitais comerciais, que passaram a valorizar seu capital através dos fluxos
5 de importação e exportação; 2) com a política de superávit primário e; 3) com as metas
6 de inflação, mantém-se o gasto soci al do Estado permanentemente comprimido para
7 poder fazer frente à maior taxa de juros do mundo, remunerando os capitais que deixavam
8 de ser produtivos e migravam para a esfera financeira de valorização.

9 O tripé, por sua vez, só se sustentou até recentemente, por outros dois
10 movimentos. Em primeiro lugar, um aprofundamento da exploração da força de trabalho
11 e da criação de riqueza através da reestruturação produtiva dos anos 80 e 90, por meio
12 da qual a incorporação de novas formas de organização do processo de trabalho, advindas
13 dos avanços tecnológicos dos anos 70, permitiram este clássico movimento de extensão
14 e intensificação da jornada de trabalho, além de um novo assalto ao fundo de salários da
15 classe trabalhadora através da hiperinflação. Em segundo lugar e articulado com o
16 primeiro movimento, a consolidação dos grandes monopólios produtivos domésticos,
17 concentrados basicamente no setor da agroindústria, da indústria automobilística, da
18 construção pesada, do latifúndio, da mineração e dos monopólios da comunicação. Mais
19 recentemente, podemos incorporar a esses monopólios a indústria da educação e da saúde
20 privadas. Nesse processo de concentração e centralização de capital em alguns poucos
21 setores, a exigência de um grande volume de recursos para realizar a reestruturação
22 produtiva através da importação de capital fixo, por sua vez, foi garantida pelo próprio
23 sistema financeiro centralizado – hoje concentrado em apenas cinco grandes bancos e
24 com o BNDES ocupando exclusivamente o papel de emprestador de longo prazo – e pela
25 garantia última do Estado através do exponencial crescimento de sua dívida pública. Este
26 sistema financeiro, organizado pelos bancos, garante a propriedade cruzada entre todas
27 as frações do capital produtivo, com participação destacada para os fundos de pensão dos
28 trabalhadores, como Previ, Funcef e Petros.

29 Assim, a economia brasileira na última quadra histórica passou a ser composta por
30 estes poucos grandes setores monopolistas, todos articulados em torno da ampliação
31 permanente da taxa de exploração da força de trabalho, do saque do Estado através do
32 sistema da dívida pública e de outros mecanismos financeiros e dos fluxos de capital
33 globais e do funcionamento dos mercados externos, ou seja, uma atualização da posição
24

1 de economia dependente. O pequeno e médio capital, que sempre florescem em períodos


2 de expansão da acumulação, são relegados à posição subordinada a esses monopólios,
3 sem possibilidade alguma do desenvolvimento de setores que fujam deste panorama e
4 que tenham potencial para avançar na fronteira científica global e promover um processo
5 de desenvolvimento nacional. Assim, completou-se a especialização produtiva da
6 economia brasileira, que abandona definitivamente o modelo trazido do processo de
7 industrialização do período entre os anos 30 e 70 e adota o bordão atual do “agro é tech,
8 agro é pop, agro é tudo”. No entanto, este padrão de acumulação por especialização
9 produtiva também acabou por viver sua crise após os efeitos da grande crise capitalista
10 de 2008 e seus rebatimentos no Brasil a partir de 2012.

11 1.4- Os desdobramentos políticos da transição

12 O ciclo de greves dos metalúrgicos do ABC paulista, a última experiência de um


13 movimento sindical de massas, encerra-se, não por coincidência, no ano seguinte à
14 fundação do Partido dos Trabalhadores, encabeçado por Lula, a maior expressão daquele
15 movimento. É quase um consenso que cabe ao PT reivindicar para si a origem no
16 movimento sindical e que, por conta disso, tenha aglutinado à sua volta amplos segmentos
17 sociais que em níveis distintos pleiteavam uma mudança social profunda, nomeadamente
18 as parcelas mais combativas do movimento sindical, os setores mais diversos da Igreja
19 Católica, particularmente aqueles ligados às pastorais operárias e à teologia da libertação,
20 militantes egressos das velhas organizações de esquerda, muitos dos quais tinham aderido
21 à luta armada contra a ditadura militar, acadêmicos de diversos matizes à esquerda, além
22 de figuras históricas da luta revolucionária. Esse amálgama de forças diversas, sob o
23 comando inabalável da maior liderança sindical que este país produzira, fazia crer, mesmo
24 a militantes experimentados e que já haviam passado por experiências de luta mais
25 radicalizadas, que algo absolutamente novo nascia no nosso horizonte político. Diante da
26 estatura e do caráter de novidade dessa força, as antigas lideranças que regressavam do
27 exílio ou a ela aderiam – como o fez Apolônio de Carvalho, por exemplo, signatário da
28 ficha número 01 de filiados – ou, recusando a novidade – como fizeram Prestes, Brizola
29 e outros que, como eles, na esfera dos partidos comunistas tradicionais ou do trabalhismo
30 – eram sumariamente remetidos à condição de pertencentes a um tempo passado vencido,
31 reminiscências do pré-64, populistas, caudilhos, autoritários... Da história, o novo partido
32 reivindicava apenas o último lustro, das greves que se iniciam no interior das fábricas de
33 São Bernardo a partir de 1977 como se todas as lutas do pré-64 ou mesmo as grandes
25

1 greves de Contagem e Osasco em 1968 não tivessem, de fato, existido. A história das
2 lutas operárias no Brasil parecia ter começado no ABC paulista e, mais tarde, mesmo essa
3 história seria aviltada ou defenestrada.

4 O PT não era, no entanto, um raio caído de céu azul. Tampouco o foram as greves
5 que lhe deram origem. Na primeira metade da década de setenta, o padrão de acumulação
6 capitalista que sustentara a ditadura militar dava flagrantes sinais de esgotamento e a
7 experiência bonapartista, embora ainda fosse capaz de cometer atrocidades, viu-se na
8 contingência de reformar-se. A crise mundial do capitalismo, que recebe por conta dos
9 conflitos do Oriente Médio o inadequado nome de “Crise do Petróleo”, pusera a nu tal
10 esgotamento e agravara de forma sensível as condições de vida da grande maioria da
11 população e, consequentemente, provocara um desgaste político da ditadura. Já em 1974,
12 com o aparato repressivo ainda a todo vapor, a ditadura sofre um indisfarçável revés
13 eleitoral na escolha dos representantes da Câmara Federal de 1/3 do Senado. Dois anos
14 mais tarde, as urnas mais uma vez demonstrariam a insatisfação popular com o governo
15 militar nas eleições municipais e, em 1978, temendo nova derrota nas eleições para
16 renovação da Câmara federal e de 2/3 do Senado, a ditadura cria a figura do senador
17 biônico, ou seja, 1/3 dos senadores seriam escolhidos diretamente pelo ditador de plantão.

18 A essas frágeis manifestações eleitorais de oposição à ditadura vinham se somar


19 outras ainda no campo da chamada resistência democrática. O movimento estudantil
20 retomou as ruas em 1977 e, ao final daquele ano, recriou a União Nacional dos
21 Estudantes. A imprensa alternativa multiplicou-se com a criação de vários jornais
22 vinculados às organizações de esquerda ainda na clandestinidade, cresceu a campanha
23 pela Anistia dos presos e exilados políticos, assim como as reações aos assassinatos nos
24 porões da ditadura, como foi o caso da grande concentração no culto ecumênico em
25 homenagem ao jornalista Wladimir Herzog morto após torturas no DOPS de São Paulo,
26 em 1975, ou a chegada do corpo de João Goulart, morto no exílio uruguaio, em 1976, e
27 que, apesar da proibição oficial de qualquer manifestação, foi acompanhado para
28 sepultamento em sua cidade natal, São Borja, por mais de três mil pessoas.

29 Mas também revelando que algo novo se gestava, reforçam-se as manifestações


30 do 1º de Maio, e o movimento sindical lentamente se reestrutura a partir das oposições
31 que começam a disputar a direção das entidades que representavam os trabalhadores. A
32 mais antiga delas, a oposição sindical metalúrgica de São Paulo, que existia desde 1967
26

1 e que participara da greve de Osasco, em 1968, e do grande ato de Primeiro de Maio na


2 Praça da Sé, no mesmo ano, quando o palanque em que se encontrava o então governador
3 Abreu Sodré foi atacado e incendiado por manifestantes contrários à ditadura. O
4 movimento ganha, então, uma nova dimensão e visibilidade, ao ampliar sua organização
5 dentro e fora da categoria metalúrgica, atuando junto aos diversos movimentos populares,
6 particularmente o Movimento Contra a Carestia, de forte enraizamento na periferia de
7 São Paulo, responsável pela grande concentração, mais uma vez na Praça da Sé, em 1977,
8 que terminou com violenta agressão do aparato repressivo. O MOMSP (Movimento de
9 Oposição Sindical dos Metalúrgicos de São Paulo), como resultado de anos de inserção
10 no chão da fábrica, chegou a vencer a eleição sindical de 1978 contra o famoso pelego
11 Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, que presidia o Sindicato dos Metalúrgicos
12 de São Paulo, em pleito depois anulado pelo Ministério do Trabalho, além de comandar
13 a grande greve dos metalúrgicos de São Paulo, Guarulhos e Osasco em 1979, durante a
14 qual foi assassinado o líder católico Santo Dias da Silva. Depois disso, o MOMSP passou
15 a sofrer defecções. Segundo sua principal liderança, Waldemar Rossi, militante católico
16 de largo histórico de luta, a primeira ruptura foi do PCB, que se alinhou com Joaquinzão,
17 seguindo uma posição de evitar qualquer radicalização que no entender do partido
18 pudesse prejudicar a chamada abertura política; depois o PC do B, que em 1981,
19 concorreu com chapa própria, assegurando nova vitória do pelego e, por fim, do próprio
20 PT que já via o MOMSP como inimigo a ser combatido. Ainda segundo Rossi, em 1987,
21 ao lançar uma terceira chapa, do PT, ao Sindicato de São Paulo, Lula teria dito a Lúcio
22 Belentani, candidato a presidente: “Vai lá, enterra o MOMSP e o Joaquinzão no mesmo
23 caixão”, demonstrando claramente seu interesse em não permitir que qualquer outra
24 força, mesmo aliada, pudesse ganhar um espaço que consideravam naturalmente
25 pertencente ao PT.

26 Voltando ao final da década de 70, atenta àquela movimentação, a ditadura


27 bonapartista projeta sua autorreforma em um regime capaz de assimilar algumas
28 franquias democráticas sem alterar significativamente as bases em que se dava a
29 acumulação capitalista dependente e periférica. A “distensão lenta, gradual e segura”,
30 supostamente arquitetada por Golbery do Couto e Silva e negociada a duras penas com
31 os setores “linha dura” da ditadura, não deveria obstaculizar, mas sim perpetuar o
32 chamado “modelo econômico”. Em outras palavras, a lenta liberalização do regime
33 político não deveria pôr em risco a arquitetura da acumulação capitalista baseada na
27

1 superexploração do trabalho através do arrocho salarial, da produção voltada


2 majoritariamente para o mercado externo, do latifúndio, da modernização capitalista pelo
3 alto e da mais profunda dependência da economia brasileira às economias capitalistas
4 centrais. Sendo assim, mantidas e aprofundadas, independentemente de qualquer afrouxo
5 na ordem política, as causas da miséria dos trabalhadores brasileiros, era natural que
6 movimentos de reação viessem a espocar aqui ou ali com graus diferenciados de
7 organização. E, ainda, parece claro que esta insatisfação tivesse campo mais fértil para
8 brotar nas grandes plantas da indústria automotiva e linha branca do ABC paulista, onde
9 a organização dos trabalhadores era facilitada pela sua concentração, dando à luta
10 democrática de matiz meramente político um componente inteiramente novo, qual seja,
11 a paralisação do setor produtivo, que atingia em cheio o coração do sistema de
12 superexploração do trabalho.

13 Natural, portanto, que as greves do ABC paulista e, mais tarde, o PT, que se punha
14 como seu mais legítimo herdeiro, catalisassem essa insatisfação popular. A contagiante
15 energia que emanava das grandes assembleias da Vila Euclides punha em marcha a luta
16 de outras tantas categorias, dos cortadores de cana de Guariba (SP) ou Pernambuco, aos
17 bancários de todo Brasil, passando pelos trabalhadores da indústria do couro, das
18 siderúrgicas, professores e empresas estatais. Ainda que sem mais a presença dos
19 metalúrgicos, inaugura-se um período de greves por todo país que, de uma forma ou outra,
20 prossegue até o final da década seguinte.

21 O reverso deste quadro aparentemente otimista reside, no entanto, no fato de que


22 a ditadura militar lograra estabelecer um corte entre este “novo sindicalismo” e as mais
23 radicais experiências da esquerda brasileira no pré-64. Isto se dera, indiscutivelmente,
24 pela brutal repressão exercida contra aqueles que haviam vivenciado o golpe e buscado
25 organizar nos anos seguintes toda forma de enfrentamento. No entanto, há outras causas
26 que contribuem para o fato de que o novo partido, com sua imensa base social junto aos
27 trabalhadores do campo e da cidade, viesse à luz divorciado daquelas experiências e,
28 mais, nascia mesmo em oposição a elas e a toda a política do nacionalismo radical do pré-
29 64 e toda forma de pensar que se aproximasse do marxismo.

30 A despeito da enorme vitória que a ditadura lograra no plano interno, no terreno


31 internacional a situação também não era ideologicamente favorável ao emergir de uma
32 organização partidária que, pautada no marxismo, pleiteasse a transformação
28

1 revolucionária da sociedade. Em primeiro lugar, porque as experiências voltadas à


2 superação do capitalismo e construção de uma sociedade socialista revelavam no período
3 tratado aqui sua irreversível falência enquanto projeto emancipatório. O ideário marxista
4 via-se confrontado pela dura realidade da sua não realização onde quer que tenha se
5 apresentado como tal. As diversas revoluções da década de setenta, no Vietnã, nas guerras
6 de libertação nacional da África, na vitoriosa experiência sandinista, na então possível
7 vitória do povo salvadorenho, além da presença de Cuba – todas elas revoluções
8 realizadas na periferia do mundo capitalista onde o socialismo não poderia se apresentar
9 sequer como uma distante possibilidade históricaa – nenhuma dessas experiências, apesar
10 de seu heroísmo, seria capaz de se contrapor ao flagrante fracasso da Revolução Russa
11 no seu esforço para transitar em direção a uma sociedade pós capitalista. Marcada pelo
12 signo de uma revolução que extingue no plano político a propriedade privada dos meios
13 de produção e junto dela todas as expressões políticas do capitalismo, mas que não
14 consegue assegurar aos trabalhadores a sua livre associação por meio da
15 autodeterminação do trabalho, a sociedade soviética convive com uma contradição cuja
16 resolução política deixava a dever em termos de liberdades individuais à maioria das
17 chamadas “grandes democracias ocidentais”. A ausência de uma crítica radical de
18 orientação marxista que fosse capaz de travar junto aos trabalhadores o embate ideológico
19 acerca do fracasso das experiências pós-revolucionárias impediu que as condições desse
20 fracasso fossem analisadas à luz de suas experiências históricas e não tomadas
21 superficialmente como a derradeira prova do fracasso do ideário comunista.

22 A leitura parcial, meramente política, da tragédia soviética tomou a parte pelo todo
23 e atribuiu ao projeto socialista, no qual tudo estaria supostamente atrelado às estruturas
24 estatais, a emergência um Estado hipertrofiado, assegurando por este viés analítico o
25 vigoroso desempenho da dicotomia democracia (capitalismo) versus totalitarismo
26 (nazismo ou comunismo) identificando estas duas últimas formas em oposição ao ideário
27 político liberal. A derrota militar sofrida no Afeganistão no final da década de 70 foi o
28 último ato dessa tragédia, cujo pano cairia melancolicamente ao final da década seguinte.
29 As experiências russa, chinesa, cubana, coreana, analisadas à margem do entendimento
30 da impossibilidade do socialismo em um só país e, de forma ainda mais dramática, em
31 países subdesenvolvidos, corroboram a supervalorização do aspecto político de viés
32 liberal que privilegia a ideia de liberdade como expressão de uma liberdade individual
33 abstrata sempre em contraste com o Estado resultante do contrato entre estas
29

1 individualidades. A expressão mais sofisticada deste engodo revela-se no que ficou


2 conhecido como o Maio de 68, que mais tarde apresentar-se-ia como um ideário
3 supostamente de esquerda praticamente hegemônico entre os segmentos sociais que
4 reivindicam esta posição política.

5 No continente latino-americano, a derrota também foi significativa: experiências


6 de transição pacífica ao socialismo, como o Chile de Salvador Allende, nacionalistas,
7 como a Bolívia de Juan José Torres ou o Perú de Juan Velasco Alvarado, foram truncadas
8 por golpes militares, assim como também o foram projetos bem menos ambiciosas na
9 Argentina e Uruguai. Exceção feita à efêmera vitória da Revolução Sandinista na
10 Nicarágua, por todo continente latino-americano as derrotas se sucederam não só
11 obstaculizando a efetivação de qualquer projeto mais generoso como, principalmente,
12 repondo a lógica autocrática latino-americana através de ditaduras genocidas sempre a
13 serviço do grande capital.

14 Este estado de coisas, desfavorável em todos os sentidos, sintetiza-se no projeto


15 petista em vários aspectos: o primeiro deles, e talvez o mais importante, é que, sob a
16 batuta de Lula, as energias do movimento sindical do qual ele fora a principal expressão
17 são canalizadas para a formação de um partido político. Àquela época, Lula dizia
18 claramente que o movimento sindical estava completamente esgotado, que o aumento dos
19 salários obtidos através das greves, perdia-se pelo aumento dos preços e que somente a
20 organização política dos trabalhadores poderia produzir resultados satisfatórios. Lula não
21 falava, entretanto, de um partido revolucionário, de massas, contra o capital. Mas, de um
22 partido moldado pelos parâmetros da política burguesa, para nela participar, na melhor
23 das hipóteses, explorando seus limites, mas sem nunca contestá-los ou propor sua
24 superação. Não se trata de nenhuma inflexão do líder sindical ao chefe de partido político,
25 pois à frente das lutas sindicais, Lula nunca expressara qualquer desejo de ir além delas;
26 ao contrário, ao apontar o que poderiam ser seus limites, recuou para as fronteiras do
27 cretinismo parlamentar, ali encontrando o que viria a ser leito seguro de sua longa
28 trajetória de político vulgar.

29 Estes condicionamentos históricos impunham ao PT, desde seu nascimento,


30 parâmetros que o colocavam não como uma superação da consciência sindical que
31 orientara o movimento grevista que fora seu berço, mas um retrocesso das lutas operárias
32 nos segmentos mais avançados da classe para a luta política eleitoral. Nesse caminho,
30

1 urgia ao PT encontrar referências teórico-práticas que consolidassem sua construção. A


2 socialdemocracia europeia, ou mesmo a estrutura sindical da democracia cristã, pareciam
3 um caminho seguro àquelas lideranças sindicais que, desde o primeiro momento,
4 rejeitavam o marxismo como alternativa a ser avaliada. Mas é importante registrar,
5 tratava-se já de uma socialdemocracia europeia atingida pela reestruturação produtiva que
6 via o contingente de seus eleitores minguar à medida que se alterava a composição das
7 massas trabalhadoras. O laceamento de suas propostas em direção à conquista dos votos
8 dos segmentos médios da população e que acabaria por leva-la à completa degradação
9 política, não poderia deixar de atingir seu tardio rebento brasileiro.

10 O mundo acadêmico também deu sua cota de contribuição à construção desta


11 imponente muralha que se construía entre a massa dos trabalhadores e a possibilidade de
12 uma alternativa política radical para o país. As teorias do populismo, do totalitarismo ou
13 do autonomismo, com toda sua bagagem de anti-marxismo, encontravam um partido
14 carente tão carente de elaboração teórica quanto majoritariamente hostil ao socialismo.
15 Realizou-se o infeliz encontro de teorias sem massa com uma organização partidária
16 de massas sem teoria.

17 Nessa perspectiva, não importa que no seu interior muitas organizações marxistas
18 e valentes revolucionários deram a batalha por outorgar futuro distinto ao PT pois, a
19 historia demonstra, jamais conseguiram dobrar Lula e seu estrito apego à ordem burguesa.

20 Há, por certo, quem assegure que o PT nas suas origens era um partido de massas
21 de nítida orientação socialista ou anticapitalista. Mas, é possível que se diga, que nunca o
22 PT pronunciou-se claramente sobre qual seria o seu projeto socialista, qual o seu
23 entendimento sobre o que seria seu projeto socialista. Isso é válido, também, para as
24 correntes que o PT abriga, mesmo as mais radicais à esquerda. Socialismo, dentro do PT,
25 sempre foi uma palavra de ordem de expressivo conteúdo moralista, um dever ser social,
26 um desejo de uma dose maior de igualdade ou justiça social, dentro do qual cabia desde
27 a definição certa vez dada por Lula de que socialismo seria a empregada doméstica que
28 almoçava à mesa junto com os patrões como, também, os intermináveis debates que
29 promoviam suas frações a partir de experiências externas que, de imediato, pouco ou nada
30 informavam sobre a nossa realidade. A julgar pela discussão que norteou o partido desde
31 sua criação até, pelo menos, a primeira eleição presidencial após o fim da ditadura, o
32 socialismo era mais o mote para definir quais seriam os papéis a serem representados
31

1 pelas diversas correntes que se apresentavam como petistas, se o partido se caracterizaria


2 por ser um partido de massas, uma organização de massas que comportaria diversos
3 partidos no seu interior, um partido de frente e outras denominações.

4 Nesses debates, muitas vezes, apresentam-se críticas certeiras ao caráter


5 reformista e conciliatório que os agrupamentos de esquerda, que reivindicavam a herança
6 marxista, nomeadamente, PCB, PCdoB e o à época influente MR-8, adotavam diante do
7 quadro político que caracterizava o momento terminal da ditadura, sem, no entanto,
8 avançar um único centímetro para além da crítica política. O sentido do que seria o
9 socialismo, o fim da propriedade privada e seu séquito de misérias, a abolição do trabalho
10 alienado e sua substituição pelo trabalho associado, o resgate para o conjunto da
11 sociedade da capacidade de autogovernar-se, e qual a estratégia a ser adotada na direção
12 dessas conquistas no interior da ordenação nacional vigente, nunca se pôs como coluna
13 mestra dos debates no interior do partido. Exceto pela defesa de alguns pontos
14 programáticos de uma maior radicalidade, como a reforma agrária ou a auditoria da
15 dívida, por exemplo, o PT sempre privilegiou a tática eleitoral para o crescimento do
16 partido, em detrimento da expansão e adensamento da luta dos trabalhadores.

17 Dois momentos são exemplos significativos desta ausência de radicalidade: em


18 1982, quando a fundação da Central única dos Trabalhadores é adiada para o ano seguinte
19 para não prejudicar o processo eleitoral em que o PT apresentaria Lula como candidato
20 ao governo do estado de São Paulo. O PT criticara a posição dos partidos comunistas,
21 taxando-os corretamente, de reformistas, mas adotou postura semelhante justificando-se
22 a partir do suposto diferencial de que Lula, uma candidatura operária, atuaria como
23 diferencial político. Posição semelhante o partido assume durante a campanha das Diretas
24 Já, em 1983 e 1984. Durante toda campanha, o PT integrou-se ao movimento de forma
25 indiferenciada, sem apontar para o fato de que as Diretas, sem a disputa por um programa
26 econômico, não representariam para o trabalhador qualquer mudança radical em suas
27 vidas. O PT incorporou sem nenhuma objeção o restritíssimo discurso democrático do
28 direito de escolher o presidente sem mobilizar os trabalhadores para a luta contra as
29 difíceis condições de vida por estes enfrentadas como decorrência do arrocho salarial.
30 Com grande contribuição do PT, aquele movimento que contagiava milhões de brasileiros
31 exauridos pelas condições de vida impostas pelo padrão de acumulação capitalista da
32 ditadura não foi capaz de promover a mais modesta mudança naquelas condições de
33 perene miserabilidade das massas. Derrotada a emenda Dante de Oliveira, que previa o
32

1 retorno imediato das eleições presidenciais, o PT ficou satisfeito em boicotar a eleição


2 indireta que teria levado Tancredo Neves à presidência da república, julgando que isto o
3 colocava no rol das agremiações que propunham uma ruptura radical com a ordem.

4 Dessa forma, o PT conviveu com tranquilamente os anos finais da ditadura e da


5 transição marcada pelo governo Sarney. Encontrando no novo ocupante do Palácio
6 Alvorada uma fonte inesgotável para suas críticas, o PT assegurou para si o papel de
7 gendarme da moral e bons costumes políticos do país associado ao de crítico superficial
8 da miséria. Os resultados eleitorais positivos não demoraram a aparecer uma vez que o
9 partido compensava o afastamento dos portões das fábricas com a adesão de crescentes
10 contingentes dos segmentos médios satisfeitos com a cruzada anticorrupção movida pelos
11 defensores da “ética na política”.

12 Nesse compasso, não surpreende que o PT, no início de 1986, assimilasse sem
13 reservas o Plano Cruzado apresentado por Dilson Funaro, empresário da indústria
14 paulista, ocupando o cargo de ministro da Fazenda de José Sarney. Lançado em fevereiro
15 de 1986, o Plano portava a ambição de realizar o controle da inflação mediante o
16 congelamento de preços e salários. Duas referências entre os economistas que haviam
17 aderido à proposta petista – Maria da Conceição Tavares e Aloysio Mercadante – não
18 economizaram lágrimas e elogios ao plano que prometia finalmente atacar com firmeza
19 o eterno problema da inflação. Ficaram famosas as lágrimas emocionadas da primeira ao
20 comentar o Plano em um programa da TV Globo, assim como o vídeo que o segundo
21 gravou em um supermercado frente a uma pilha de pacotes de Maisena. A eles juntaram-
22 se diversas figuras representantes do grande capital nacional e outros, anônimos, que
23 ganharam alguma notoriedade ao fecharem diante de câmeras de televisão os mercados
24 que supostamente estavam a burlar o congelamento de preços previsto no Plano.
25 Tornaram-se os “fiscais do Sarney”, patéticas figuras subitamente alçadas a um
26 imaginário poder de controle sobre o movimento do capital, assegurado pelos bottons que
27 traziam ao peito identificando sua nova função na construção do Brasil novo.

28 Do PT de Lula, Conceição ou Mercadante até Amador Aguiar, presidente do


29 Bradesco, uma grande frente saía em defesa do Plano que tinha sua popularidade e
30 também sua efemeridade dada pelo controle de preços sem qualquer outra ambição maior
31 que pudesse ao menos arranhar as causas reais da inflação, da miséria, da insatisfação
32 popular. Visto assim, sem mexer nas bases de nossa economia, não seria difícil
33

1 compreender que o prazo de validade do referido plano estava dado pelo dia 15 de
2 novembro, quando se realizariam as eleições para escolha dos governador es dos
3 Estados, Senadores e deputados estaduais e federais. A mais do que provável derrota do
4 PMDB, partido do então presidente José Sarney, transmutou-se em uma esmagadora
5 vitória à exceção de um único estado da federação. O Plano Cruzado que iniciara o
6 “milagre de controlar a inflação” no dia 28 de fevereiro frustrou milhões de brasileiros ao
7 liberar os preços até então controlados precisamente dois dias após a abertura das urnas
8 que concedeu maioria na assembleia constituinte ao PMDB e ao governo Sarney.

9 Na oposição, a única voz que se levantara contra o Plano Cruzado fora a de Leonel
10 de Moura Brizola, então governador do Estado do Rio de Janeiro. Ao retornar do exílio,
11 Brizola buscou reconstruir o PTB, legenda da qual, por sua história, seria o legítimo
12 herdeiro. A Justiça Eleitoral da ditadura militar, já em estertores, decidiu entregar a
13 legenda reivindicada por Brizola para Ivete Vargas, que se apresentava como herdeira de
14 Getúlio Vargas, o criador do partido em questão. Era um golpe que se procurava dar em
15 Brizola, para muitos, o inimigo número um da ditadura. Ao ter o PTB definitivamente
16 perdido, Brizola imediatamente reúne seus correligionários e cria em 1980 o PDT, Partido
17 Democrático Trabalhista, e com ele vence a eleição para governador do Rio de janeiro
18 em 1982 depois de desarticular um esquema de fraude nas apurações com o qual se
19 objetivava dar a vitória a seu oponente.

20 No último ano de seu mandato, Brizola já despontava como o grande candidato


21 da primeira eleição presidencial após a ditadura. Sua crítica contundente ao Plano
22 Cruzado, no entanto, acabou por conduzi-lo a um imprevisto isolamento. Nacionalista
23 radical, Brizola apontava, ao criticar o Plano Cruzado, que sem mexer no que ele
24 insistentemente chamava de “perdas internacionais” aquele plano que causava furor entre
25 as massas, deveria ser denunciado como uma fraude, como um embuste eleitoreiro. O
26 então governador do Rio de Janeiro repetidas vezes mencionava a necessidade de se
27 realizar uma amputação da última perna do tripé capital estatal, capital privado nacional
28 e capital estrangeiro que, em sua opinião, sustentava toda estrutura de espoliação da nação
29 e dos trabalhadores brasileiros. Em suas críticas, Brizola resgatava temas caros ao
30 nacionalismo do pré-64, o que o colocava à esquerda das forças que despontavam,
31 particularmente o PT e, no ano seguinte ao Plano Cruzado, o PSDB, mas a falta de uma
32 estrutura partidária mais consistente e seus próprios limites políticos o mantinham
33 emparedado entre as críticas já mencionadas e a impossibilidade de radicalizar suas
34

1 posições em direção a um movimento revolucionário. Dessa forma, Brizola tornou-se


2 alvo não só das forças de direita que tudo fariam para impedir o crescimento de sua
3 influência política, como também dos partidos à esquerda que reconheciam o espaço que
4 sua figura poderia vir a ocupar nesse espectro da política brasileira. Em 1986, em eleições
5 para os governos estaduais em turno único e marcadas pelo signo do suposto sucesso do
6 Plano Cruzado contra o qual Brizola se lançara, Darcy Ribeiro apresenta-se como
7 candidato pelo PDT. O PT, contra Brizola, lança, em frente com o PV, a candidatura de
8 Fernando Gabeira e o PCdoB e o antigo PCB apoiam a candidatura do direitista
9 Wellington Moreira Franco, do PMDB, que, nestas circunstâncias acaba por vencer o
10 pleito. A derrota no Rio de Janeiro não tira Brizola da disputa presidencial que acontecerá
11 em 1989, mas vistas, posteriormente, as condições em que estas se concluíram, foi
12 certamente decisiva para impedir sua passagem ao segundo turno.

13 No entanto, nada poderia ilustrar de maneira mais contunde o fosso criado entre a
14 esquerda nacionalista pré-64 e a “nova esquerda” representada pelo PT, do que a completa
15 incapacidade de Brizola em conquistar influência político e/ou eleitoral no coração
16 burguês do país. O combate operário contra a ditadura, por mais vigoroso que tenha sido,
17 não foi suficientemente forte para recuperar a tradição de luta dos trabalhadores anterior
18 a ditadura.

19 A um ano das eleições presidenciais de 1989, a primeira depois de 29 anos, dois


20 nomes apresentavam-se como favoritos: o ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio
21 de Janeiro, Leonel Brizola, que trazia na sua bagagem estas duas experiências de
22 governança acentuadamente marcadas pelo signo da universalização da educação infantil,
23 mas também o peso de grandes lutas como a Campanha da Legalidade, em 1961, quando
24 o governo do Rio Grande colocou-se intransigente na defesa da posse de João Goulart
25 após a renúncia de Jânio Quadros, erguendo barricadas em torno do Palácio Piratini e
26 armando o povo para a resistência ao golpe que já se desenhava, além da luta vitoriosa
27 pela encampação de poderosas multinacionais da energia e comunicações como a ITT e
28 um bem sucedido programa de reforma agrária que, não por acaso, começara nas terras
29 da família do governador. Ciente de sua trajetória, Brizola, além dos famosos tijolaços,
30 longos artigos que fazia publicar na imprensa do Rio de Janeiro para se contrapor ao
31 incessante ataque que sofria das grandes redes de comunicação, especialmente da Rede
32 Globo, Brizola cunhara a expressão “fio da história”, com a qual denominava alguns
33 materiais impressos de sua luta política, claramente indicando que se considerava o
35

1 legítimo herdeiro daquela quadra histórica que o golpe de abril de 1964 interrompera.
2 Este inevitável recurso à história, sua principal arma na luta política pelo comando do
3 país que já se avizinhava, era também o flanco por onde seus inimigos, à direita e à
4 esquerda, procuravam atingi-lo, estabelecendo uma falsa dicotomia entre o que seriam o
5 velho e moderno, o caudilhismo autoritário e a modernidade democrática liberal.

6 É usando e abusando desta fórmula de apresentar-se como o novo, nascido do


7 movimento de massas, da suposta horizontalidade com que construíra sua agremiação
8 partidária em clara oposição ao velho populista, que Lula procurava ocupar o espaço à
9 esquerda. Espaço que, até aquele momento, 1988, pertencia indiscutivelmente a Leonel
10 Brizola, que, como repetiam à exaustão os seguidores de Lula, ao perder sua antiga sigla,
11 o PTB, criara imediatamente outra, o PDT, de cima para baixo. Pouco importava aos
12 petistas que os argumentos usados contra Brizola muitas vezes coincidissem com os
13 pontos de vistas que os editoriais, reportagens e entrevistas de O Globo ou O Estado de
14 São Paulo publicavam em suas páginas. Roberto Marinho e a família Mesquita eram
15 aliados convenientes naquele momento.

16 Lula, além da sua trajetória como líder sindical de expressão nacional, que lhe
17 garantia o papel de catalisador de forças sociais dispersas, aventurara-se em duas
18 experiências político partidárias de duvidoso êxito: fora candidato, em 1982, ao governo
19 do estado de São Paulo, tendo sido ultrapassado pelo vencedor Franco Montoro, além de
20 Reynaldo de Barros e Jânio Quadros, terminando a corrida eleitoral em quarto lugar com
21 pouco mais de 10% dos votos. Em 1986, Lula não concorre ao governo do Estado,
22 passando a incumbência a Eduardo Suplicy, que obteve um desempenho um pouco
23 melhor, alcançando pouco mais de 11% dos votos. O PDT de Leonel Brizola não lança
24 nenhum candidato ao governo paulista e tampouco consegue preencher as duas
25 candidaturas para a renovação do Senado, revelando a decisiva fragilidade do partido do
26 estado que fizera a contrarrevolução de 1932 contra Getúlio Vargas.

27 Lula, ao contrário, em 1986 lançou-se como candidato a deputado federal obtendo


28 a maior votação do estado, à frente da quase legendária figura de Ulysses Guimarães. Sua
29 performance parlamentar, no entanto, beirou a mediocridade. Nos trabalhos da
30 Assembleia Nacional Constituinte, abertos a 1º de Fevereiro de 1987, Lula não se
31 destacou, permanecendo imerso nas temáticas que seu partido abraçava de corpo e alma
32 referentes aos direitos civis, que dariam mais tarde à Constituição de 1988 o agnome de
36

1 Constituição Cidadã, ainda que boa parte de suas conquistas tivessem permanecido no
2 papel à espera de legislação complementar.

3 Nos trabalhos constituintes, Lula integra, como suplente, a Subcomissão dos


4 Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, da Comissão da Ordem
5 Social e, como titular, a Comissão de Sistematização. Embora líder da bancada petista,
6 Lula praticamente não interferiu nos debates sobre temas econômicos e sociais de maior
7 relevância. Seu partido empenhou-se na coleta de assinaturas das chamadas emendas
8 populares, organizou caravanas na defesa de direitos sociais, mas nunca usou a influência
9 de Lula na denúncia da perpetuação das condições de subalternidade do país e de máxima
10 exploração de sua força de trabalho pelos representantes nacionais e internacionais do
11 capital. Ao final do processo Constituinte, o PT repetiu a fórmula que adotara na eleição
12 indireta que conduzira Tancredo e Sarney à presidência: o PT votou contra o resultado
13 final, mas assinou a nova Constituição, dando-se por satisfeito com isso. No início de
14 1989, o deputado Luís Inácio pede licença para tratar de assuntos pessoais e, mais tarde,
15 já encerrado seu mandato parlamentar, o líder petista avaliando sua tíbia experiência
16 parlamentar quase a justifica com a ingênua denúncia de que o Congresso Nacional reunia
17 uma maioria de uns trezentos picaretas que apenas defendiam interesses próprios. Para
18 além do sucesso obtido pelo grupo musical que consagrou a frase em uma de suas
19 músicas, da passagem de Lula pelo parlamento pouco se pode angariar que não sejam as
20 lacônicas defesas de uma ética na política, o mantra petista durante anos, que agradava os
21 setores médios da população, desarmava ideologicamente os trabalhadores e que, mais
22 tarde, seria fartamente usado para mobilizar grandes manifestações de rua contra Lula,
23 Dilma e o PT.

24 Nessas condições, com Lula demonstrando uma talvez sincera inapetência para as
25 contendas político-eleitorais e Brizola, apesar da derrota sofrida por Darcy Ribeiro no Rio
26 de Janeiro em 1986, parecendo reconstituir sua força política, acendia para a direita
27 brasileira o sinal amarelo de que os direitos ao menos no papel assegurados pela
28 Constituição de 1988, aliados à possível vitória de um candidato à esquerda como era
29 Brizola, poderia representar a abertura de um largo processo de mobilizações por
30 transformações mais profundas de consequências imprevisíveis. O temor era real: Brizola
31 aparecia liderando as pesquisas e a demanda popular por mudanças reais era imensa. Que
32 o velho político rio-grandense saberia usar e adensar tais demandas ninguém duvidava.
33 Mais que isso: embora nunca tivesse se apresentado como representante de um
37

1 nacionalismo revolucionário, Brizola, nos momentos decisivos, quando a luta política o


2 colocou diante de grandes dilemas, nunca procurou a saída mais fácil, sempre colocou-se
3 como adversário ferrenho de políticas de conciliação que se opunham aos interesses
4 nacionais. A burguesia sabia disso. Urgia encontrar um candidato que pudesse apropriar-
5 se do descontentamento popular e se apresentar como alternativa a Leonel Brizola e, em
6 segundo plano, a Lula. Os candidatos que, incialmente, poderiam cumprir este papel, não
7 demonstravam força suficiente: Ulysses Guimarães, Aureliano Chaves, Mário Covas ou
8 Afif Domingos, mais ou menos confiáveis aos diversos setores da burguesia, eram
9 demasiadamente comprometidos com o sistema, vistos como uma continuidade do
10 governo Sarney, que batia, seguidamente, recordes de impopularidade. Exceção talvez
11 pudesse ser feita a Mario Covas, cujo partido, o PSDB, era uma defecção do PMDB,
12 partido de Sarney, mas cuja expressão eleitoral não lhe dava força para ser o candidato
13 de que o capital precisava.

14 O discurso moralista que tanto agradava o PT, ao lado da impopularidade de


15 Sarney, claramente identificado como um governo corrupto, colocou inesperadamente no
16 colo da burguesia o candidato que ela procurava. Oriundo de Alagoas, alcunhado como
17 caçador de Marajás por sua suposta moralização dos serviços públicos ao governar aquele
18 Estado, o desconhecido Fernando Collor de Mello obtém favorável acolhida a ter seu
19 nome anunciado pelos alto-falantes de um Maracanã lotado, em contradição com as
20 sonoras vaias que receberam todas as demais autoridades presentes. Como uma dádiva
21 celestial, resolvia-se a equação presidencial que tirava à burguesia as noites de sono
22 tranquilo. A direita tinha agora um nome. Tinha que ser lapidado, tinha que ser
23 construído, era necessário, mesmo, construir um partido novo que escorasse sua
24 candidatura, mas tinha um nome. Era o que importava.

25 Em pouco tempo, o nome e a figura do Caçador de Marajás ganhava as ruas em


26 busca dos corações e mentes das grandes massas brasileiras. Todos os grandes segmentos
27 do capital reuniam-se à sua volta, a mídia o incensava e o próprio candidato lograva dar
28 sua contribuição pessoal à imagem que dele se procurava construir. A combinação era
29 perfeita e Collor apresentando-se como o anti-Sarney, o anti-político, o inimigo número
30 um da corrupção, supostamente caminhando com independência em relação à grande
31 mídia, enfim, o candidato que transpirava por cada poro de seu corpo um sentimento anti-
32 sistema, em pouco tempo passou a liderar as pesquisas de opinião. Brizola e Lula perdiam
33 espaço para o candidato que se consolidava na liderança, enquanto as demais candidaturas
38

1 reduziam-se cada vez mais à insignificância. Leonel Brizola foi o primeiro a perceber o
2 perigo que representava Collor de Melo. Chega a propor a sua própria renúncia em favor
3 de uma chapa conjunta que tivesse Covas como presidente e Lula como vice. O intento
4 foi frustrado. Ao fazer tal proposição é bem provável que escapasse ao velho caudilho o
5 fato de que os dois interlocutores tivessem com o candidato alagoano menos contradições
6 políticas do que com ele, Leonel Brizola.

7 O fato é que Collor chega ao primeiro turno na condição de líder inconteste. A


8 burguesia, coesa em torno do seu nome, realizara com sucesso a primeira parte de seu
9 plano eleitoral. O mais sistêmico dos candidatos aparecia aos olhos do grande eleitorado
10 como o redentor que o libertaria de séculos de miséria, opressão e exploração. O bordão
11 de Collor deixava bem clara sua intenção: ao repetir seguidamente a expressão “Não me
12 deixem só”, o candidato direitista procurava passar a ideia do Armagedon, da luta final
13 entre o bem, representado por ele, e o mal, representado por todos que à sua volta
14 desejavam impedi-lo de cumprir sua missão.

15 Era preciso, no entanto, exorcizar de vez o perigo vermelho representado na figura


16 de Leonel Brizola. Era preciso encontrar um candidato que pudesse tomar ao ex-
17 governador do Rio de Janeiro a vaga para o segundo turno. A tragicômica solução veio
18 na figura do apresentador de televisão Sílvio Santos que, do nada, com o processo
19 eleitoral em andamento, compra uma indicação de candidato junto ao Partido
20 Municipalista Brasileiro, pertencente Armando Corrêa, um líder evangélico, milionário,
21 que abre mão de sua candidatura em favor do apresentador. Sílvio Santo aparece, já na
22 primeira pesquisa como vice-líder na intenção de votos, mas rouba, em demasia votos do
23 líder Collor de Melo, o que poderia por em risco a candidatura que já se consolidava. A
24 Justiça Eleitoral caça o registro da candidatura de Sílvio Santos e, com o tempo estreito,
25 os esforços do grande capital centram-se em barrar a candidatura de Brizola, nem que
26 para isso fosse necessário levar Lula ao segundo turno.

27 Contra Brizola intensificavam-se os ataques na imprensa. Ganhou notoriedade a


28 expressão “Cartel de Brizolim”, cunhada por um sacripanta portador de alguma
29 notoriedade como jornalista político, a partir da qual o então ex-governador do Rio de
30 Janeiro era identificado com o narcotráfico. O mote para tal identificação foi a mudança
31 para uma postura menos agressiva da Polícia Militar do Rio de Janeiro em suas incursões
32 nas favelas a partir da indicação do Coronel Nazareth Cerqueira para seu comando. A
39

1 corriqueira prática do mandado coletivo de busca, que permitia à polícia invadir todo e
2 qualquer barraco que julgasse suspeito foi abolida durante o comando de Cerqueira e isso
3 era traduzido nas páginas dos grandes jornais do país como incentivo e cumplicidade com
4 o crime. Comandante da Polícia Militar também no segundo governo de Leonel Brizola,
5 o Coronel Cerqueira acabou assassinado por um sargento da PM em circunstância até
6 hoje não esclarecidas.

7 O folclore político do primeiro turno das eleições presidenciais de 1989 tem no


8 seu acervo capítulos notáveis, um deles bastante conhecido: com Lula e Brizola
9 praticamente empatados em segundo lugar, dois dias antes da eleição, o presidente José
10 Sarney, no ponto mais baixo de sua popularidade, vai à televisão em rede nacional
11 comentar a importância da participação de todos brasileiros eleitores naquela “festa da
12 democracia”. Em meio a tantas efusões elogiosas à cidadania, Sarney desanda a atacar as
13 candidaturas de Collor e Lula, poupando aquele que era seu maior crítico desde os tempos
14 do Plano Cruzado, Leonel Brizola. Como um ato orquestrado, a imprensa edita e
15 repercute o discurso de Sarney atacando Collor e Lula. O resultado aparece na última
16 pesquisa de opinião, com Collor apresentando significativo crescimento e Lula
17 consolidando-se na segunda posição. Sarney imola-se no altar da política burguesa,
18 atacando a quem queria proteger e poupando a quem, de fato, desejava derrotar.

19 A este conjunto de ações orquestradas na imprensa, no Alvorada, na Fiesp, nos


20 meios militares, somaram-se os fatos de que a candidatura Brizola enfrentava forte
21 resistência em São Paulo, onde obteve votação pífia, e no nordeste, onde embora tivesse
22 escolhido o pernambucano Fernando Lira, ex-ministro da justiça de Sarney, como vice
23 em sua chapa, não contou com o apoio que seria decisivo de Miguel Arraes que, depois
24 de manter-se aparentemente neutro durante bom período da campanha, acabou decidindo-
25 se pelo apoio à candidatura Lula. Outro aliado histórico do trabalhismo representado pelo
26 PDT de Brizola seria o PCB, mas que, já fraturado por suas lutas internas, preferiu lançar
27 uma candidatura própria na figura do arquioportunista Roberto Freire. Como resultado
28 dessa soma de fatores, Collor e Lula, este com cerca de 0,5% dos votos à frente de Brizola,
29 vão ao segundo turno.

30 A burguesia podia dormir tranquila. Pelo que demonstrara ao longo da campanha


31 eleitoral do primeiro turno, Lula era o candidato ideal para enfrentar Collor de Melo. Nos
32 debates televisivos, assim como nos comícios, Lula especializara-se em atacar Leonel
40

1 Brizola. Embora disputassem a mesma faixa do eleitorado, eram projetos muito diferentes
2 em disputa. Lula abandonara, o que já nunca fora consistente na sua vida, o discurso de
3 classe. Falava aos pobres, aos oprimidos ou quando falava aos aos trabalhadores o fazia
4 de forma muito abstrata. Granjeava com isso importante apoio da igreja progressista e se
5 mostrava confiável à igreja conservadora. Ao contrário de Brizola, a questão nacional era
6 completamente ausente no discurso de Lula. Mais que isso, o candidato do PT intuía no
7 nacionalismo de Brizola, na denúncia das perdas internacionais, os ecos do passado, um
8 passado que ele, assim como Collor de Melo, buscavam enterrar. O imediatismo político
9 é a tônica do debate. A empiria de Lula é o ódio à crítica político-social pautada na
10 história, que grassava, já àquele tempo, nos segmentos políticos postos mais à esquerda;
11 a empiria de Collor era a intuição de classe. No fundo, o carioca, que como filho de
12 senador passara boa parte da vida por Brasília, mas fazia sua carreira política no nordeste
13 falava a mesma língua que o nordestino retirante que construíra seu nome como líder
14 sindicalista em São Bernardo do Campo.

15 O segundo turno é um jogo de cartas marcadas. Apesar do apoio imediato que


16 Lula recebe de Brizola, que vai lhe garantir estrondosas vitórias no Rio de janeiro e Rio
17 Grande do Sul, Collor vai manter-se, no segundo turno, sempre a uma distância segura de
18 seu adversário. Lula não incomoda porque a matriz do seu projeto é a mesma de Collor,
19 embora este explicite com mais vigor a que teria vindo. Collor cultivara a imagem do
20 antissistêmico ao passo que Lula procurava, sempre, mostrar-se confiável ao sistema. O
21 combate à corrupção, aos desmandos governamentais dos quais Sarney era a expressão
22 mais completa, constituíam-se em tema único do segundo turno. Entre a matriz e a filial
23 do moralismo farsesco, o grosso do eleitorado não teve dificuldades em decidir-se pela
24 matriz, dando a vitória a Collor de Melo.

25 A primeira medida anunciada por Fernando Collor de Melo já como presidente


26 foi a adoção de mais um plano de estabilização da economia atacando a liquidez tida
27 como excessiva, recorrendo, na sua face mais visível, ao confisco das cadernetas de
28 poupança. O Plano Brasil Novo, que passou para a história como Plano Collor, não se
29 resumia ao confisco, nem seria o único do curto mandato de Collor: a mudança do nome
30 da moeda de cruzado novo para cruzeiro com a mudança da política cambial, a
31 liberalização da economia com o fim de diversas restrições à importação, investidas
32 contra os trabalhadores dos serviços públicos e privatizações compunham um leque vasto
33 de medidas com as quais o “Caçador de Marajás” anunciava os novos tempos para o país.
41

1 O confisco da poupança teria sido levado à equipe de governo que Collor formava no
2 início de 1990 por Antônio Kandir, economista que integrara a equipe de campanha de
3 Ulisses Guimarães e que, no segundo turno, aproximara-se da equipe de Lula. É provável
4 que a proposta já tivesse sido apresentada e bem recebida pelos dois candidatos que
5 viriam a ser derrotados, o que justificaria a intensidade dos ataques de Collor a Lula nos
6 debates que antecederam a eleição em segundo turno, acusando-o de estar planejando
7 confiscar a poupança. Em que pesem os reiterados desmentidos de Lula e assessores, é
8 bem possível que Collor possuísse informações que confirmassem que o tema estivesse
9 sobre a mesa da equipe petista. Após apresentar a Collor a proposta do confisco, Antônio
10 Kandir teria sido incorporado à equipe do presidente eleito.

11 Uma coisa é certa, o confisco da poupança que supostamente desfecharia o golpe


12 mortal no processo inflacionário encaixava-se perfeitamente no estilo bonapartista que
13 Collor criara durante a corrida presidencial e que pretendia preservar, caso viesse a
14 governar o país. Frases de efeito, como a que se referia aos carros brasileiros como
15 carroças para justificar a liberação de carros importados, as contumazes analogias entre
16 sua forma de governar e seu passado de jovem praticante de karatê, as constantes
17 aparições em que procurava demonstrar seu vigor físico, ora correndo à frente de seu
18 corpo de seguranças, ora fazendo malabarismos sobre um jet ski, além das sutis mas
19 sempre presentes insinuações sobre sua vida sexual, tudo isso se somava ao apelo já
20 mencionado do “não me deixem só!” para caracterizar uma nova forma de governar
21 conectada diretamente com o povo que deixaria para trás os velhos vícios da política
22 corrupta.

23 Ao menos nos primeiros meses a estratégia collorida apresentava resultados


24 positivos na implementação de seu programa de liberalização da economia. Em 1º de
25 Maio de 1990, em protesto contra a anunciada privatização da Companhia Siderúrgica
26 Nacional (CSN), criada no governo Vargas e na época com cerca de 21 mil trabalhadores,
27 realizou-se grande concentração na Praça Juárez Antunes (nome dado em homenagem ao
28 sindicalista morto em circunstâncias até hoje não esclarecidas), com presença de Jair
29 Meneghelli, presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores. Questionado sobre
30 as intenções do governo Collor de trazer novas montadoras ao país e de facilitar a
31 importação de automóveis, o ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São
32 Bernardo surpreendeu os presentes ao defender sem restrições as medidas apresentadas.
33 Na outra ponta, no mesmo dia, o presidente da Anfavea (Associação Nacional dos
42

1 Fabricantes de Veículos Automotores), Jacy Mendonça também, curiosamente,


2 manifesta, em nome das indústrias que representava, sua aprovação às mesmas medidas.
3 Enquanto supostos inimigos de classe manifestavam opiniões semelhantes e favoráveis
4 às medidas que anunciava, Collor recebia na Casa da Dinda, que se tornaria a segunda
5 sede do governo, uma carreata de taxistas aplaudindo a redução de impostos e tarifas na
6 compra de veículos para exercício de sua atividade profissional.

7 Além do confisco da poupança, aposta alta que por certo desagradara boa parte da
8 população, Collor anunciou ataques a direitos trabalhistas no setor privado, como a
9 pretensão de estabelecer a livre negociação entre patrões e trabalhadores; no setor
10 público, efetivou medidas sobre o sistema bancário que causavam transtornos ao
11 cotidiano de quem precisava pagar suas contas, somados à repetição, pelo Plano Collor,
12 dos fracassos dos planos de estabilização anteriores, o que levou o governo à edição de
13 mais dois planos. Essas medidas foram aos poucos corroendo a popularidade daquele que
14 fora o escolhido pelo capital para conter o avanço eleitoral da esquerda. O Caçador de
15 Marajás, em pouco tempo, viraria caça, com seu governo colocado sob os holofotes dos
16 jornalistas que cobriam os mais variados casos de corrupção. Já no início de 1991, a
17 primeira-dama Roseane Collor é acusada de compras superfaturadas de cestas básicas
18 para a LBA (Legião Brasileira de Assistência). Depois, vieram as denúncias que
19 atingiram o ex-presidente da Central Geral dos Trabalhadores, Antônio Rogério Magri,
20 que ocupava a função de ministro do Trabalho e da Previdência Social. Magri, criador do
21 famoso neologismo “imexível” ao se referir aos salários dos trabalhadores, era acusado
22 de receber propina de 30 mil dólares em negociação que envolvia o FGTS.

23 Estas e outras denúncias de corrupção contra o governo Collor deixavam clara a


24 deterioração das relações do presidente com os grupos de mídia que haviam criado e
25 bancado sua candidatura, especialmente os grupos Abril e Globo. Ambos os grupos
26 pleiteavam a imediata privatização da Telebrás e se preparavam para capitanear um
27 consórcio que arrebatasse a empresa. Collor, alegando pressões militares, retardava o
28 quanto podia a abertura do processo de privatização. Oriundo de família que detinha
29 inúmeras concessões de serviços de comunicação no nordeste, Collor era versado na
30 dinâmica entre mídia e o Estado e ganhava tempo para executar um projeto ambicioso de,
31 junto a outras concessionárias pelo país, organizar um grupo que pudesse se contrapor às
32 pretensões dos dois grupos maiores. Quando, em maio de 1992, a Veja estampa em sua
33 capa uma entrevista com o empresário Pedro Collor de Mello, irmão do presidente,
43

1 denunciando com detalhes todo o esquema de corrupção que envolvia, além do primeiro
2 mandatário, o empresário Paulo César Farias, que fora o tesoureiro da campanha de
3 Collor, era evidente que a guerra estava declarada. A essa altura, PC Farias, como ficara
4 conhecido, já colecionava uma série de escândalos de corrupção, que foram denunciados
5 a conta gotas como forma de colocar Collor de Melo contra as cordas. Acuado, em rede
6 nacional, Collor faz um apelo desesperado a que o povo lhe desse uma manifestação de
7 confiança saindo às ruas vestido de verde e amarelo. Quase espontaneamente, milhares
8 de pessoas, no dia marcado, saíram às ruas vestindo preto. O resultado oposto ao que
9 Collor pretendia apontou a seus inimigos o caminho das ruas. A grande mídia passa a
10 incensar o movimento estudantil (a UNE, à época, era presidida por Lindbergh Farias),
11 dando ampla cobertura ao que viria a ser conhecido como o movimento dos caras-
12 pintadas, nome, por sinal, herdado de um movimento golpista militar argentino que
13 ocorrera dois anos antes.

14 Mais uma vez, sem temer o isolamento a que estaria submetido, foi Brizola, então
15 governador do Rio de janeiro pela segunda vez , o único a alertar que por trás daquela
16 cruzada moralista patrocinada pelos Civita e Marinho escondiam-se interesses contrários
17 à vontade do povo brasileiro. Convidado pelo programa Roda Viva, Brizola mais uma
18 vez alertou para o caráter golpista até à medula desses dois conglomerados das
19 comunicações. Sem se deixar pautar pela Globo ou pela Veja, não fez a defesa de Collor,
20 mas recusou-se terminantemente a embarcar no irracional entusiasmo que tomava conta
21 das ruas, mostrando que as denúncias e o processo de impeachment que se abria não
22 tinham por objetivo qualquer restauração de moralidade pública, mas apenas retirar do
23 poder um presidente que conduzia um processo de esbulho do patrimônio público, mas
24 não na velocidade nem na direção que interessava a seus detratores.

25 A morte do presidente da Câmara Federal, Ulisses Guimarães em um acidente de


26 helicóptero, em 12 outubro de 1992 - dez dias após o Senado reconhecer as denúncias e
27 determinar o afastamento provisório de Collor - reforçou os rumores de que havia um
28 intento golpista por trás da abertura do processo de impeachment. Os temores de que o
29 processo de cassação atingiria a chapa Fernando Collor-Itamar Franco, o que somado à
30 morte de Ulisses poderia gerar uma crise sucessória antes que terminasse o mandato do
31 primeiro presidente eleito após 21 anos de ditadura militar, não se confirmaram: a
32 denúncia recaiu apenas sobre Collor de Melo, que diante da iminente derrota no
44

1 Congresso, renunciou a 29 de dezembro de 1992, sendo sucedidono mesmo dia por seu
2 vice, Itamar Franco.

3 Itamar já estava rompido com Collor há algum tempo. Figura histórica da política
4 mineira e nacional, Itamar começou sua carreira no PTB. Mas, foi no MDB, criado após
5 o golpe militar, que obteve suas principais vitórias eleitorais, primeiro para prefeito de
6 Juiz de Fora e, depois, para Senador pelo seu estado. Como parlamentar constituinte,
7 participou da maioria das comissões de caráter econômico e social nas quais defendeu a
8 reforma agrária, limites para pagamentos de juros e amortizações da dívida externa,
9 jornada semanal de 40 horas, entre outros temas. Mais tarde, ingressou no Partido Liberal
10 e, depois, no PRN de Fernando Collor. Tanto do partido quanto do presidente, Itamar já
11 se afastara no início de 1992 por discordar da política econômica em desenvolvimento.
12 No seu discurso de posse, faz um pequeno inventário para denunciar que “nos quase três
13 anos em que se proclamou a falsa modernidade como programa de Governo, o resultado
14 representou alguns passos atrás na economia do País”: o PIB decrescera 3,7% entre
15 dezembro de 1989 e dezembro de 1992 e a renda per capita declinara quase dez por cento.
16 Para o novo presidente, se a busca da modernidade e o combate à inflação poderiam ser
17 metas governamentais, isso não se faria com base em choques, em privatizações e
18 desnacionalização sem freios da economia, nem tampouco com uma política de juros altos
19 que mantinha o país refém de juros e amortizações da dívida pública. Itamar era um
20 legítimo herdeiro do desenvolvimentismo do pré-64. Punha lado a lado a defesa da
21 soberania nacional e o cumprimento dos compromissos com os credores internacionais,
22 denunciava o capitalismo predador, mas contava com o que considerava bom senso dos
23 empresários brasileiros para a construção de uma sociedade mais justa. A partir do que
24 seria uma mudança de orientação ética, daria continuidade, “sem açodamento e sem
25 interrupções” ao programa de privatizações para, por fim salientar que o Brasil nascera
26 com a vocação para o comércio exterior, que fora sua principal fonte de riqueza nos
27 últimos cem anos, embora feito à custa de graves distorções na renda e na riqueza.

28 Para além do folclore político que se fazia em torno de seu topete e de seu suposto
29 anacronismo, ao arcaísmo das posições que defendia, Itamar demonstrava habilidade na
30 condução de seu governo, sabendo das animosidades que provocava nos promotores da
31 derrubada de Fernando Collor e do perigo que representavam figuras como Antônio
32 Carlos Magalhães, eternos defensores daqueles grupos no interior do Congresso.
45

1 Foi durante o governo de Itamar que se cumpriu, em 1993, a determinação da


2 Constituição de 1988 de que fosse realizada uma votação em que o povo brasileiro deveria
3 escolher entre a volta da monarquia ou a manutenção da república e entre a manutenção
4 do presidencialismo ou a volta do parlamentarismo (que só existira na monarquia e no
5 curto período após a renúncia de Jânio Quadros, como condição para que militares e
6 setores mais reacionários aceitassem a posse de João Goulart). O povo brasileiro mais
7 uma vez mostrou sua aversão ao parlamentarismo, a forma mais aperfeiçoada que a
8 política burguesa elaborou para perpetuar o domínio de sua classe sobre o Estado.

9 Contudo, o que mais expressivamente representou o governo de Itamar franco foi


10 a criação do Plano Real, mais um plano de estabilização financeira do país, a partir do
11 qual foram criadas as bases para o largo processo de desmonte das conquistas
12 apresentadas na Constituição de 1988, para a desestatização e desnacionalização da
13 economia, desvinculação de receitas, aumento descontrolado da dívida pública. Como de
14 outras vezes, o sucesso imediato do Plano trouxe dividendos políticos e assegurou a
15 Fernando Henrique Cardoso, que na condição de ministro da Fazenda de Itamar franco
16 se colocara na condição de criador e, obviamente, de condutor mais credenciado da sua
17 continuidade, a vitória em primeiro turno nas eleições presidenciais de 1994. Fernando
18 Henrique Cardoso obteve 54% dos votos, seguido à distância por Lula, com a metade dos
19 votos dados a FHC (27%). Brizola, que se reelegera governador do Rio de Janeiro em
20 1990, parecendo recuperar-se da derrota no ano anterior, sofre um profundo desgaste em
21 sua imagem pelo aumento da sensação de violência descontrolada no estado que
22 governava, provocada em grande parte pelos veículos de comunicação, devido à oposição
23 que Brizola fazia a mais um plano de estabilização, retaliando-o por sua anterior não
24 adesão incondicional ao Fora Collor, pela inamovível resistência paulista ao seu nome e
25 acaba ficando com apenas 3% dos votos, atrás de Orestes Quércia (4,3%) e da histriônica
26 figura de Enéas Carneiro, que lograra o terceiro lugar com pouco mais de 7% dos votos.

27 A popularidade que o Plano Real assegurara ao candidato Fernando Henrique


28 Cardoso na eleição presidencial de 1994 seria utilizada por ele ao longo de seus dois
29 mandatos: a qualquer contestação de sua política econômica, ou mesmo de suas
30 pretensões políticas, como o direito à reeleição para cargos executivos, o risco de ocorrer
31 interrupção nos pilares do Plano era imediatamente levantado pelo governo e pela mídia
32 como um ato de salvação nacional. FHC, o príncipe uspiano dos sociólogos, organizara
33 um pacto de classe entre todas as frações do capital que somente muito mais tarde acusaria
46

1 de maneira clara seus resultados estratégicos. De fato, para além de seu conhecido brado
2 sobre o “fim da era Vargas” a coesão burguesa que atualmente nos governa tem suas
3 raízes em seu governo e, na realidade, mais do que iniciar as políticas “neoliberais”, seu
4 governo plantou as bases para o aprofundamento da dependência e a consolidação do
5 Brasil na divisão internacional do trabalho como mero exportador de produtos agrícolas
6 e minerais. Nesta perspectiva, se pode observar como existem mais coincidências de
7 propósitos entre FHC e os sucessivos governos do PT do que eventuais descontinuidades
8 que supostamente marcariam diferenças de projetos entre eles. Mais cedo do que tarde a
9 configuração do sistema petucano revelaria sua inevitável força com gravíssimas
10 consequências.

11 Não é difícil fazer um resumo do que significaram os governos de FHC:


12 privatizações, desnacionalização da economia, cortes em recursos para os serviços
13 públicos, desvinculação de receitas da União, aumento estratosférico da dívida pública,
14 pressão contra governos estaduais e administrações municipais, monitoramento
15 permanente do FMI, desemprego recorde, política de juros nas alturas,
16 desindustrialização, recessão, fuga de capitais, arrocho contra o ensino superior público
17 e, obviamente, corrupção, como acontece com qualquer governo que execute uma política
18 excludente dos interesses populares. Os casos de corrupção ganhavam alguma
19 visibilidade, , por exemplo, as denúncias que fazia o jornalista Paulo Francis contra o
20 esquema de corrupção na Petrobrás, amplificadas após sua morte decorrente, segundo
21 seus amigos, do processo que lhe moviam diretores da empresa. Também o famoso caso
22 da Pasta Rosa, alusão a uma coletânea de documentos que indicavam doação ilegal de
23 banqueiros às campanhas de aliados do governo; a compra de votos para assegurar a
24 aprovação da emenda que permitiria ao então presidente concorrer a mais um mandato; o
25 caso Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Sistema Financeiro Nacional),
26 que assegurou a transferência de bilhões de reais às instituições bancárias em
27 dificuldades; o Caso Banestado, que envolvia remessa ilegal de recursos para o exterior
28 e que tinha como um dos suspeitos Gustavo Barroso Franco, presidente do Banco Central
29 àquela época.

30 Nos primeiros quatro anos de governo, FHC assestou seguidamente contra a


31 Constituição de 1988, fazendo aprovar nada menos que dezesseis emendas
32 constitucionais, das quais somente duas diziam respeito a aspectos políticos (uma delas a
33 da reeleição para cargos executivos). As demais, invariavelmente voltavam-se à
47

1 desregulamentação dos mercados, à desestatização e à abertura econômica. Desse período


2 são também o Fundo de Estabilização Fiscal, que permitia a já citada desvinculação das
3 receitas e a CPMF, o imposto sobre transações financeiras até hoje posta na ordem do dia
4 sempre que os governos parecem se mover na direção de algumas medidas econômicas.

5 Ao final do primeiro mandato, a popularidade de FHC estava em baixa, mas a


6 impotência que demonstrava a oposição não chegava a pôr em risco sua reeleição: se
7 colocarem um poste para disputar com FHC, o poste ganha. Mas, se derem um nome ao
8 poste, o poste perde, diziam os comentaristas do processo eleitoral que se abria em 1998
9 para acentuar a ausência de uma alternativa eleitoral a FHC. O PT, consolidado como
10 grande partido de oposição, não fora capaz de ir além das já costumeiras cruzadas contra
11 a corrupção. O PIB que crescera 5,9% em 1994, mas foi perdendo força até chegar em
12 1998 com o pífio crescimento de 0,7%. A indústria crescera 0,05%, uma taxa negativa
13 per capita de -1,2% e o desemprego alcançava números recordes nas regiões
14 metropolitanas do país.

15 No entanto, nada disso movia o PT a uma campanha mais radicalizada contra a


16 política econômica de FHC. Leonel Brizola, que cometera o equívoco de oferecer seu
17 nome para compor com Lula a chapa na condição de candidato a vice-presidente, inicia
18 a campanha anunciando em entrevistas a intenção de colocar, em caso de vitória, na pauta
19 do próximo governo a questão da reestatização das empresas que FHC havia privatizado.
20 Aloísio Mercadante, coordenador da campanha de Lula e Brizola, petista que por questões
21 familiares tinha algum acesso a segmentos militares, levou a Lula o recado da caserna,
22 incomodada com o destaque que essas declarações de Brizola vinham ganhando na
23 campanha. Brizola foi literalmente afastado dos palanques e do horário de propaganda
24 eleitoral gratuito, a campanha ganha os ares modorrentos da política da era FHC
25 arrastando-se até à reeleição em primeiro turno do então presidente com 53% dos votos.
26 A chapa Lula Brizola teve 31% dos votos, tendo sido vitoriosa em apenas dois estados da
27 federação, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, tradicionais redutos do brizolismo.

28 O segundo mandato de Fernando Henrique começa com o importante desfalque


29 de Sérgio Motta na equipe ministerial. Motta, conhecido como “trator” pelos
30 simpatizantes e opositores de FHC imprimira um estilo rigorosamente pragmático nas
31 relações políticas do executivo com os outros poderes e viera a falecer em abril de 1998.
32 Em relação ao período anterior, FHC realizou outras mudanças em postos chave, entre
48

1 elas a a continuidade da dança das cadeiras na presidência do Banco Central, por onde
2 haviam passado Pérsio Arida, Gustavo Loyola, Gustavo Barroso Franco (o criador da
3 famosa expressão “pacote de maldades”) onde passaria a ter assento então, Armínio
4 Fraga.

5 A manutenção da taxa de inflação em patamares aceitáveis diante da


6 desvalorização cambial (nos anos seguintes a inflação, que era de 8,94% em 1999, cai
7 para 5,94% em 2000, voltando a crescer nos dois anos seguintes para 7,67% em 2001 e
8 chegando a 12,53%, em 2002), a economia não dava sinais de crescimento e o
9 desemprego continuava em alta. O que pode se observar no período é a renuncia de
10 chances pela oposição especialmente identificada no PT para uma radicalização de suas
11 propostas. A conjuntura internacional se mostrava favorável, com a sequência de crises
12 econômicas, iniciada ainda em 1994 na crise do México, que depois se apresentara em
13 1997 na crise asiática, em 1999 na crise Russa e em 2001 na crise Argentina, todas elas
14 com reflexos na economia e, obviamente, na política brasileira, agravando as já precárias
15 condições de vida dos trabalhadores e fazendo submergir de forma irrecuperável a
16 imagem política de FHC.

17 O maior ato de contestação à política de privatizações e de cumprimento


18 indiscutível dos chamados compromissos fiscais veio de Minas Gerais. O ex-presidente
19 Itamar Franco elegera-se governador daquele estado em 1998. Uma de suas primeiras
20 medidas foi declarar moratória na dívida pública estadual e iniciar o processo de abertura
21 de uma auditoria daquela dívida que assumira proporções paralisantes a partir das
22 mudanças feitas por FHC. O governo federal reagiu ameaçando bloquear verbas
23 destinadas ao governo mineiro e abriu forte campanha apontando a ação de Itamar como
24 irresponsável e capaz de conduzir o Brasil de volta à instabilidade econômica anterior ao
25 plano Real.

26 Mas não se limitou a este ato de rebeldia a ação de Itamar Franco. Ele também
27 colocou-se, literalmente, em posição de combate ao governo federal ao impedira
28 privatização da Cemig e de Furnas, fazendo uso da Polícia Militar,. Nos dois casos, Itamar
29 afirmou que o processo de privatização só se concluiria caso o governo federal fizesse
30 uso das forças armadas e realizasse uma intervenção federal no estado e conseguiu,
31 naquele momento, realizar o seu intento, com a reversão do processo de privatização da
32 Cemig, já em andamento e a associação de Furnas à Eletrobrás. Frise-se que, conforme
49

1 declararia oito anos depois, durante a campanha presidencial de 2006 em que apoiava o
2 peessedebista Geraldo Alckmin, Itamar considerava o ex-vice-governador Walfrido
3 Mares Guia como o político que mais se empenhara no processo de privatização da
4 Cemig. Nessa ocasião, o vice de Eduardo Azeredo já era Ministro do Turismo do primeiro
5 governo Lula.

6 Ao aceitar ocupar o posto de vice-presidente na chapa de Lula em 1998, Brizola


7 finalmente se curvava diante das circunstancias políticas adversas que, a despeito de sua
8 importância histórica no enfrentamento a ditadura, seus ataques constantes à classe
9 dominante na condição de governador fluminense e as denuncias permanentes sobre o
10 “estatuto colonial da economia brasileira”, lhe reservariam um lugar histórico de rebeldia
11 na política nacional. Itamar, em que pese este movimento de resistência à política fiscal
12 e privatista de FHC, sinaliza seu cansaço político ao não se colocar como candidato à
13 reeleição ao governo de Minas em 2002, apoiando a candidatura de Aécio Neves como
14 seu sucessor e apoiando Lula candidato à presidência. Fernando Henrique, terminando
15 aos trancos e barrancos seu segundo mandato, dá mostras cada vez maiores de sua
16 impotência. A um ano das eleições que escolheriam seu sucessor, um caso inesperado
17 adensa ainda mais essa imagem: ao visitar com seu ministro das relações exteriores, Celso
18 Lafer, a embaixada norte-americana por ocasião do atentado contra as Torres Gêmeas,
19 em setembro de 2001, FHC permite que este passe por uma revista feita por um marinner
20 com equipamento para detecção de metais. A humilhante imagem de Celso Laffer,
21 descalço, passando por revista na porta da embaixada, enquanto FHC entrava pela porta
22 ao lado, simbolizava, sem deixar margens a dúvidas, o que representava o governo que
23 apagava suas luzes.

24 Em janeiro de 2002, um último ato ainda movimentaria a política brasileira do


25 final do governo FHC: ao sair de um jantar, o prefeito de Santo André, Celso Daniel, do
26 PT, é sequestrado e posteriormente assassinado. As causas do sequestro e morte de Celso
27 ainda hoje são motivo de controvérsias. As suspeitas de crime político, adensadas quando
28 se levava em conta que o prefeito de Campinas, Antonio da Costa Santos, o Toninho,
29 também do PT, havia sido assassinado em setembro do ano anterior, foram abandonadas
30 pelo partido de ambos assim que o corpo de Celso foi encontrado. O PT, desde o primeiro
31 momento, reforçou a tese de crime comum, por mais que evidências pudessem mostrar o
32 contrário. Era como se o PT fizesse questão de enterrar logo aquele que se projetava como
50

1 coordenador econômico da campanha de Lula que se avizinhava e escolher logo quem o


2 sucederia, para dar continuidade, sem sobressaltos, à sua marcha ao Planalto. No entanto,
3 a decadência moral do PT e também de Lula, seu principal líder, já contavam com outros
4 antecedentes importantes quando Paulo de Tarso Venceslau, militante do PT com historia
5 na esquerda revolucionária – foi quadro importante da Dissidencia Universitária do PCB
6 em São Paulo, militante da ALN que ajudou no sequestro do embaixador estadunidense,
7 preso em 1969, barabaremente torturado e, finalmente liberado em dezembro de 1974 –
8 denunciou ao Diretorio Nacional graves irregularidades na prefeitura de Campinas. Paulo
9 era secretario de finanças do prefeito Jacob Bittar e se recusou a contratar a empresa
10 CPEM, cujo proprietário era Roberto Teixeira, amigo de Lula. Após levar o caso ao
11 diretório nacional, uma comissão formada por Hélio Bicudo, José Eduardo Cardoso e
12 Paul Singer – todas figuras respeitadas no PT – o relatório concluía que os vínculos da
13 CPEM alcançavam outras administrações do PT e que, Paulo Okamoto (atual presidente
14 do Instituto Lula) teria sido intermediário da tal empresa diante da prefeituras petistas.
15 No entanto Lula jamais aceitou o resultado da comissão e, em consequência, o diretório
16 nacional montou outra comissão que não somente chegou a resultados completamente
17 diferentes como recomendou... a expulsão de Paulo de Tarso que, finalmente ocorreria
18 em fevereiro de 1998.

19 Em junho de 2002, Lula apresenta sua Carta ao Povo Brasileiro. Um libelo


20 lampedusiano contra o governo FHC: captando a imensa impopularidade que FHC
21 granjeara entre a população, Lula prega na Carta uma grande mudança para o país, mas,
22 nas entrelinhas, firma seu compromisso com a economia política do Plano Real, a
23 consequente manutenção do superávit primário, assegurando que seu projeto de governo
24 seria resultante da combinação dos diversos interesses das classes distintas e dos
25 segmentos sociais com matizes ideológicas variadas. Enfim, algo deveria mudar para que
26 tudo permanecesse como estava. Lula é o candidato indiscutível da oposição, com forte
27 apoio em SP, MG, RS e Nordeste. O PSDB, quase que a cumprir tabela, lança José Serra
28 e Ciro Gomes também se apresenta como candidato. Mas, as circunstancias políticas, a
29 partir da Carta, já estavam claras: o candidato ungido pelo sistema era aquele que ao longo
30 dos anos apresentara-se como seu maior crítico. Começa a Era Lula.

31
51

1 1.5- O colapso do pacto de classes brasileiro: crise capitalista, guerra de classes e


2 conflito político.

3 O modo de produção capitalista se assenta sobre crises periódicas. Marx, ao


4 evidenciar a lei tendencial de queda da taxa de lucro, deixava clara a natureza de um
5 sistema que se desenvolve com base na contradição radical entre as forças expansivas da
6 produtividade do trabalho humano coletivo e as bases estreitas da propriedade privada
7 burguesa. Nesta contradição, em que o trabalho vivo (capital variável - força de trabalho
8 criadora de valor e mais-valor) diminui relativamente em relação ao trabalho morto
9 (capital constante - máquinas, matérias-primas, materiais auxiliares, etc., que apenas
10 transferem seu valor pretérito para as novas mercadorias), aparece periodicamente a
11 queda da taxa de lucro e a paralisação da produção e circulação do capital, as famosas
12 crises, onde explode na face dos ideólogos a desnecessidade histórica da organização
13 capitalista da vida.

14 Se durante os períodos de expansão do capital cresce a demanda por força de


15 trabalho e pelos materiais componentes do capital constante, nas crises ocorre o oposto,
16 aumento do desemprego, redução de salários e paralisação dos negócios, com diminuição
17 da compra e venda de mercadorias, sejam elas para consumo individual ou para consumo
18 produtivo. Assim, as categorias que antes organizavam a vida das pessoas, emprego e
19 salário no caso dos trabalhadores e a taxa de lucro no caso dos capitalistas, deixam de ter
20 sua força aglutinadora em torno da acumulação de capital, afrouxam assim a unidade da
21 sociedade capitalista, aquela "mão invisível" que antes conduzia todas as pessoas, felizes
22 ou infelizes, em direção ao processo de exploração e reprodução do capital. A crise, neste
23 aspecto, é sempre um momento de decisão, em que os capitalistas podem reafirmar seu
24 projeto de hegemonia perante a sociedade ou os trabalhadores podem avançar na
25 superação das limitações impostas pelo capital.

26 Nos períodos de expansão, quando, bem ou mal a massa do povo consegue se


27 reproduzir enquanto indivíduos trabalhadores e os "papeis do teatro social" estão bem
28 delimitados, organizados, geralmente prepondera a "paz social". Isto não exclui,
29 obviamente, em um país periférico como o Brasil, a violência permanente do Estado
30 diante do enorme contingente do nosso exército industrial de reserva, majoritariamente
31 negro e pobre. Entretanto, nos períodos de expansão da acumulação capitalista, o processo
52

1 de alienação do trabalhador é reforçado através de uma ideologia adequada ao


2 conformismo e à disciplina do processo de trabalho, que ganha força.

3 Quando cai a taxa de lucro e paralisa o processo de acumulação, o capital


4 reage para recompor sua lucratividade. Amplia o exército industrial de reserva e rebaixa
5 os salários dos trabalhadores, refunda o marco regulatório nacional da exploração da força
6 de trabalho, amplia o assalto sobre o orçamento do Estado e sua dívida pública, etc. Em
7 suma, utiliza do seu domínio sobre a produção e do seu Estado para ampliar a taxa de
8 mais-valia, submetendo os trabalhadores ao arrocho de suas condições de vida. Se a
9 guerra é definida a partir do momento em que uma das forças conflitantes assume um
10 objetivo positivo, de conquista diante do território inimigo, os capitalistas deflagram a
11 guerra de classes ao avançar perante as condições de vida da classe trabalhadora.
12 Transformam o que antes era fundo de salário em fundo de acumulação, base para auferir
13 lucros. Subvertem o que até então era “território” de sobrevivência dos trabalhadores em
14 “território” de ampliação da exploração e do afã por lucros dos capitalistas. No entanto,
15 ao fazer isso, a crise desorganiza a vida cotidiana das pessoas, enfraquecendo a ideologia
16 liberal dominante e criando rupturas no bloco antes praticamente monolítico da
17 hegemonia burguesa sobre as formas de pensamento da classe trabalhadora.

18 Estes são os aspectos universais das crises capitalistas, seu conteúdo mais
19 profundo e sua potencialidade revolucionária de refundar um novo tipo de sociedade, não
20 mais baseado na propriedade privada dos meios de produção e na exploração dos
21 despossuídos. Concretamente, no entanto, essas crises eclodem de forma muito variada
22 de acordo com o período histórico em que acontecem e também, sobretudo, de acordo
23 com o espaço nacional onde incidem. Como as condições de vida da classe trabalhadora
24 são definidas objetivamente nos marcos nacionais (históricos, culturais, políticos e
25 legais), é nestes marcos que o capital transnacional tem de atuar para conquistar territórios
26 na guerra de classe. Assim, por mais que existam aparelhos militares e de ideologia que
27 atuam em nível global produzindo ideologia e guerras, basicamente sob o controle das
28 potências imperialistas, é em torno das diversas questões nacionais e dos atores políticos
29 nacionais que a guerra de classes se organiza. O teatro de guerra tem seus limites e
30 potencialidades assentados sobre a correlação de forças entre as classes, seus partidos, o
31 estágio da cultura nacional do povo, a forma específica do Estado e outras variáveis, todas
32 elas limitadas concretamente pelo território nacional.
53

1 1.5.1- A crise global de 2009: impactos e início da dissolução do pacto de


2 classes

3 O pacto estabelecido pelo Plano Real esteve longe de ter um longo período de
4 estabilidade até 2005. De início, durante os governos de FHC, enfrentou oposição
5 parlamentar, popular e sindical das organizações da classe trabalhadora brasileira, como
6 a CUT e, principalmente, o MST. Entretanto, ao estabilizar a inflação – estabelecendo a
7 paridade cambial, multiplicando o endividamento do estado nacional por meio da dívida
8 pública, potencializando a dependência tecnológica e a especialização produtiva
9 agroexportadora, além de ampliar a repressão contra as greves dos anos 90 –, FHC
10 conseguiu constituir um governo de controle da inflação, o que garantiu inclusive a sua
11 reeleição em 1998. A despeito de recorrer ao FMI por duas vezes – aumentando a dívida
12 externa com empréstimos internacionais – a coesão burguesa garantiu a estabilidade
13 política de seus governos.

14 Assim, o Brasil ampliava sua dependência através de um balanço de pagamentos


15 estruturalmente deficitário, sem contrapartida em superávit comercial em função da
16 paridade cambial, o que promovia a necessidade de um altíssimo endividamento externo.
17 A crise capitalista mundial de 1999 impôs aos países dependentes condições mais duras
18 para manter a estabilidade que havia sustentado os primeiros anos de governo FHC. A
19 enorme desvalorização do Real e a adoção do câmbio flutuante, indicava que o processo
20 de importação de capital fixo para mudança da matriz produtiva já havia sido completado
21 pelo capital produtivo alocado no Brasil, sendo agora mais lucrativo desvalorizar o
22 câmbio para um novo ciclo de desnacionalização da economia, atraindo capitais externos
23 para compensar a evasão de divisas sistemáticas que acompanham as crises na periferia
24 capitalista, onde as formas de transferência de valor para o centro se intensificam –
25 preços, dívida pública interna e externa, remessa de lucros, aluguéis de equipamentos,
26 pagamento de fretes, etc.

27 Como contrapartida a mais um ciclo de quebradeira do capital industrial local, a


28 flexibilização do câmbio e dos fluxos financeiros, a ampliação do sistema da dívida
29 pública e as demais formas especulativas e rentísticas de apropriação da mais-valia
30 também se intensificaram, dando possibilidades de valorização aos capitais locais falidos,
31 sempre através da intensificação da posição dependente da lunpem-burguesia brasileira.
54

1 A estabilização inflacionária, migalha entregue à classe trabalhadora durante a


2 segunda metade da década de 90, perdia força. Com câmbio desvalorizado, os preços
3 subiam e encarecia a vida do povo. Por outro lado, a economia se estagnava, com elevados
4 índices de desemprego e incapacidade de fazer frente à política de superávit primário e
5 pagamento religioso da dívida pública. Assim, em 2000, é criada a lei de responsabilidade
6 fiscal para dar segurança ao sistema rentista, promovendo a forte austeridade sobre o povo
7 e a perenização do ajuste sobre o Estado. FHC tornou-se cada vez mais impopular,
8 perdeu a imagem pública de presidente que havia controlado a inflação e passou a ser
9 visto através da sua verdadeira face: privatista, fomentador da miséria e atrelado às elites.
10 Assim chegava ao fim o mito da estabilidade econômica, e abria-se espaço inclusive
11 para o movimento “Fora FHC”, fortemente combatido pela cúpula petista, que, como
12 sempre, já vislumbrava a possibilidade de vitória na eleição de 2002.

13 Lula assume em 2002, com o modo de produção capitalista global iniciando um


14 processo de saída da recessão de 1999-2001. Como estratégia política do partido desde
15 1994, a ampliação do espectro das alianças promoveu uma aproximação com José
16 Alencar, grande capitalista do setor têxtil que veio a ser vice de Lula. Na ideia velha e
17 superada historicamente desde o golpe militar, o petismo se iludia com a ideia de que
18 promoveria o desenvolvimento da indústria nacional, como se isso fosse ainda possível
19 na era da plena afirmação do imperialismo internacional e do rentismo local. Na prática,
20 o que comandava era o pragmatismo de Lula e de seu núcleo político mais próximo. Era
21 preciso isolar os setores radicais do partido e da sociedade, colocar-se como alternativa
22 viável para recomposição do pacto de classes em decomposição desde 1999 e, por fim,
23 administrar o pacto em uma conjuntura que apresentava sinais de recuperação mundial
24 evidentes.

25 Lula, desta forma, escreve a “Carta aos Brasileiros” no período final do processo
26 eleitoral, tranquilizando o capital monopolista que não teria comprometidos seus
27 contratos de assalto ao Estado via dívida pública. Assim que assume, escolhe Henrique
28 Meirelles como presidente do Banco Central e Antônio Pallocci como Ministro da
29 Fazenda. O primeiro mantém as maiores taxas de juros do mundo sob a desculpa de
30 controlar a inflação Já o segundo promove um severo ajuste sobre as contas públicas, com
31 a célebre frase repetida constantemente em seus pronunciamentos: “faremos o superávit
32 primário que for necessário para reduzir a relação dívida/PIB”. Assim, logo de início,
33 Lula deixava claro que seria um mero operador do padrão de reprodução do capital
55

1 local estruturado por FHC com o Plano Real, mantendo-se fiel à lei de
2 responsabilidade fiscal, à política de superávit primário e também ao
3 aprofundamento do processo de endividamento do estado nacional. O sistema
4 petucano de administração do rentismo se configurava, com identidade total nas políticas
5 estruturantes da relação entre Estado, classes sociais e imperialismo, a despeito de
6 qualquer diferença na política social.

7 O “sucesso” dos governos de Lula, no entanto, não tem qualquer relação com sua
8 bem sucedida tarefa de administrar o rentismo e consolidar o consórcio petucano. O
9 sistema rentista sempre foi frágil e, desde sua criação em 93 vive em permanente
10 instabilidade e incapacidade de dar respostas às demandas mais básicas do povo
11 brasileiro. Entretanto, a partir de 2003, com acentuação evidente depois de 2005, os
12 preços dos produtos básicos de exportação brasileiros, o cerne do novo padrão de
13 acumulação de especialização agroexportadora, verificariam uma das maiores altas de
14 sua história, dando sobrevida ao pacto de classe e a coesão burguesa. O mundo capitalista
15 voltava a crescer e o chão de fábrica chinês passava a demandar fortemente os insumos
16 produzidos no Brasil. Segundo dados da Funcex, o índice de preços dos produtos de
17 exportação que estavam estagnados desde 94, cresceu espantosos 162% entre 2003 e
18 2011, enquanto os preços dos produtos importados apenas 92,8%, ou seja, pouco mais da
19 metade. Assim, durante um largo período, foi possível ao governo Lula continuar
20 operando e multiplicando todos os mecanismos do sistema rentista e, mesmo assim,
21 conseguir uma estabilidade através de gigantescos superávits comerciais baseados
22 majoritariamente na exportação de soja, minério de ferro e petróleo bruto.

23 Exemplos da multiplicação do rentismo não faltam, sendo os mais evidentes o


24 crescimento, no período entre 2003 e 2011, de 270% no déficit do balanço de serviços
25 (US$ 85,5 bilhões em 2011) e 634% nas remessas de lucro. Por outro lado, a alta dos
26 preços internacionais dos produtos básicos propiciou ao Brasil um incremento
27 considerável da renda da terra advinda das atividades agropecuárias e mineradoras, que,
28 em parte, foi direcionado via sistema financeiro para a acumulação de capital interna.
29 Expansão concentrada nos grandes conglomerados produtivos viáveis na nova divisão
30 internacional do trabalho, com destaque para o setor automobilístico, a construção pesada,
31 a agroindústria e a mineração. Este crescimento, no entanto, não foi acompanhado de um
32 incremento de dinamismo interno da indústria tradicional, pelo contrário. Os bons termos
33 de troca internacionais, a mudança produtiva iniciada nos anos 70 e o aprofundamento da
56

1 dependência tecnológica fizeram com que a expansão econômica interna acelerasse a


2 própria decadência do velho processo de industrialização que vigorou entre os anos 30 e
3 os 70. Assim, segundo dados do IEDI, enquanto o superávit na balança comercial de
4 produtos básicos (agrícolas e minerais) crescia 1.161%, atingindo US$ 78,6 bilhões em
5 2011, o déficit na transação de produtos de alta tecnologia crescia 565% (US$ -30 bilhões)
6 e nos produtos de média-alta tecnologia crescia 652% (US$ -52,38 bilhões). A
7 acumulação de capital ocorria em função da renda terra e, também, da entrada de
8 investimento externo direto, mas era feita com base em máquinas e insumos vindos de
9 fora, com ampliação do processo de dependência tecnológica.

10 Pelo lado dos trabalhadores, a valorização cambial propiciava uma redução do


11 preço das mercadorias, o crescimento econômico trazia ampliação do emprego e salários
12 – mesmo que concentrado em setores que demandam força de trabalho de baixa
13 qualificação e baixíssimos salários –, o sistema de crédito em expansão implicava em
14 endividamento familiar, que, por sua vez, possibilitava a compra de veículos, mercadorias
15 da linha branca e imóveis. Por fim, a apropriação deste excedente trazido pelo comércio
16 internacional, propiciava ao Estado as sobras orçamentárias para a realização de políticas
17 públicas como o Bolsa Família, o Minha Casa Minha Vida, a compra de produtos da
18 agricultura familiar, o FIES, o REUNI, e um conjunto de outras medidas que, diante dos
19 fabulosos lucros auferidos pelos grandes conglomerados capitalistas, não avançavam para
20 além de uma digestão moral da pobreza, já que em nenhum momento tocaram na estrutura
21 rentista que ampliava sobremaneira a desigualdade na apropriação da riqueza produzida
22 nacionalmente. Por um lado, caía a desigualdade de renda entre os setores da classe
23 trabalhadora (o famoso achatamento da classe média), por outro, crescia dramaticamente
24 a concentração de riqueza, com superexploração da força de trabalho para muitos e
25 propriedade privada na mão de poucos.

26 Assim, partidos, sindicatos, movimentos sociais e movimento estudantil foram


27 buscando acomodação no pacto de classes sustentado no mito do crescimento econômico
28 com distribuição de renda, sem qualquer debate sobre mudanças estruturais no
29 capitalismo brasileiro dependente, transformando a crítica da economia política em algo
30 repudiado pela jornada de otários que comandava a miséria política nacional. Como
31 expressão política da miséria da crítica, o “presidencialismo de coalizão” seria elevado
32 ao grau de dogma político, a “correlação de forças eternamente desfavorável” impedia
33 mudanças estruturais, num verdadeiro ato de fé cega no líder messiânico Lula, que
57

1 supostamente tudo sabia e a tudo previa. A ausência de conflitos passou a educar uma
2 geração inteira de “militantes” sem militância, meros burocratas de baixa capacidade
3 política que passaram a habitar as estruturas do movimento sindical, dos partidos e do
4 movimento estudantil. A razão de Estado comandava a práxis política e as supostas
5 lideranças atuavam no sentido de fragilizar drasticamente a capacidade de defesa da
6 classe trabalhadora para a radical guerra de classes que se avizinhava.

7 O pacto sobreviveu sem abalos de 2003 até 2008, quando o processo de


8 degeneração econômica começa até aprofundar-se em 2011 e levar a seu colapso em
9 2014. Portanto, a crise capitalista global de 2008, tratada como “marolinha” pelo “sábio”
10 Lula, atingiu profundamente o Brasil desde seu início. Em uma primeira fase, entre 2008
11 e 2011, a economia brasileira verifica uma crescente vulnerabilidade financeira. Enquanto
12 os Estados Unidos, epicentro da crise, buscavam impedir uma queima de capital de
13 proporções inimagináveis através da gigantesca estatização do seu sistema financeiro,
14 comprando os chamados “títulos podres” e salvando seus bancos – ou seja, utilizava do
15 orçamento estatal, via enorme endividamento público, para inundar de dólares o mercado
16 mundial –, o Brasil mantinha inalterada suas elevadas taxas de juros para sustentar o
17 sistema rentista. Não só os EUA, mas todas as potências capitalistas mundiais utilizaram
18 do mesmo expediente. Assim, a inundação de capital em função das expansões
19 monetárias dos países centrais, não tardaria em chegar à economia brasileira, o paraíso
20 das maiores taxas de juros do mundo.

21 No período de três anos, o endividamento privado externo das empresas


22 capitalistas operando no Brasil saltava 78%, o investimento estrangeiro direto crescia
23 40% - a sua maior parte não destinada à ampliação da produção, mas sim como forma
24 indireta das matrizes europeias e estadunidenses comprarem títulos públicos brasileiros –
25 e o investimento externo em carteira (títulos, ações, etc.) aumentava em 62%. Todos estes
26 movimentos pressionavam o câmbio, que iniciava um processo permanente de
27 valorização, chegando a atingir um patamar de quase paridade com o dólar (1,5 US$/R$
28 em meados de 2011). Assim, a balança comercial, pelo efeito da crise internacional e do
29 câmbio, despencava sistematicamente, chegando a registrar déficit de US$ 3,9 bilhões em
30 2014. A enxurrada de capitais na economia brasileira turbinava o rentismo, enquanto o
31 “lado” da produção que já acumaulava sinais precários terminaria por explodir a partir de
32 2011.
58

1 As condições que permitiram a Lula comandar o “oba-oba” marqueteiro do país


2 da “nova classe média” enquanto turbinava a estrutura dependente/rentista de nossa
3 economia, desapareciam por completo durante o primeiro mandato de Dilma que
4 demonstrou a total incapacidade dos governos petistas para enfrentarem estruturalmente
5 o tema. A presidente Dilma e sua equipe econômica “neodesenvolvimentista” – Guido
6 Mantega na Fazenda, Alexandre Tombini no Banco Central e Luciano Coutinho no
7 BNDES –, pressionados pela vulnerabilidade crescente e o enorme problema da
8 insolubilidade do sistema financeiro nacional, trataram – com debilidade teórica e política
9 impressionante – de enfrentar o tema do rentismo sem de fato ataca-lo na raíz através da
10 chamada “nova matriz econômica”. Dilma buscaria algo fadado ao fracasso rotundo,
11 como depois ficou demonstrado. Manteria todas as bases estruturais do rentismo e tentaria
12 resolver o problema através de uma política monetária e fiscal dita heterodoxa. O câncer
13 se espalhava pela economia e os neodesenvolvimentistas – estes que agora Ciro Gomes
14 tenta reabilitar – lhe entregavam uma aspirina para diminuir as dores de cabeça e as
15 náuseas. Enquanto à esquerda do espectro político a crítica a política econômica era quase
16 inexistente ou apenas pontual, a direita tomava conta da oposição no terreno intelectual
17 fortalecendo o liberalismo de direita por meio de professores universitários e os institutos
18 liberais.

19 Ao invés de atacar os fundamentos do rentismo, o governo apresenta um pacote


20 composto de combate aos juros ao consumidor final por meio dos Bancos Públicos, um
21 aumento do IOF de 2% para 6% para operações financeiras de curto prazo, o lançamento
22 do Programa de Sustentação do Investimento via BNDES – o PSI, que consistia em
23 empréstimos com taxa de juros de longo prazo de 4% ao ano em uma inflação que estava
24 em torno de 6,5%, ou seja, taxa de juro negativa para os grandes conglomerados
25 capitalistas –, o represamento de preços administrados (luz e combustível) para conter os
26 custos industriais e um conjunto de desonerações tributárias (folha de pagamento, IPI,
27 PIS/Confins, etc.) que atingiria ao final de quatro anos o volume impressionante de R$
28 600 bilhões em renúncias tributárias e financeiras para os grandes capitalistas. No caso
29 da desoneração da folha de pagamento, as políticas beiravam o ridículo pois, se no
30 começo apenas os setores industriais eram beneficiados, no final até mesmo o setor de
31 hotelaria seria agraciado com as desonerações para impulsionar investimentos para a
32 Copa do Mundo e as Olimpíadas. O assalto ao estado era realizado pela combinação
33 nefasta dos lobbies empresariais e a fragilidade ética dos governos petistas. Por fim, e não
59

1 menos importante, o governo promoveu uma queda persistente da taxa Selic, que chegaria
2 à metade de 2012 ao menor patamar da sua história recente, 7,25%.

3 Os academicos submetidos à razão de partido – como André Singer, por exemplo


4 – atribuem a redução dos juros como a razão decisiva para o descontentamento da
5 burguesia rentista brasileira com Dilma. Entretanto, Dilma não mais do que beliscou o
6 sistema rentista, mantendo toda sua estrutura inalterada!! Enfrentar seriamente o tema
7 exigiria uma política muito distante da conciliação de classes e do miserável
8 presidencialismo de coalizão; exigiria radicalismo político, mobilização popular de
9 massas e, em primeiro lugar, uma auditoria da dívida pública, medida que Dilma vetou já
10 no final de seu governo mesmo quando aprovada pelo covil de ladrões do congresso
11 nacional, em mais uma demonstração de servilismo em pleno processo de
12 impeachment. Portanto, a despeito da redução passageira, a partir do fim de 2012, o
13 governo elevava a taxa de juros novamente, não aguentando a mínima pressão
14 empresarial. Os Bancos Públicos, por sua vez, ao invés de pressionarem os privados para
15 rebaixar suas taxas de juros, apenas absorviam o crédito de maior risco e deixavam o “filé
16 mignon” para os demais. Todo o esforço fiscal do Estado, ao invés de ser destinado para
17 investimento produtivo e geração de empregos, como sonhavam os ingênuos
18 neodesenvolvimentistas, serviu de anabolizante para o sistema da dívida pública. O
19 crédito do BNDES, por sua vez, alavancou apenas fusões e aquisições, em um vigoroso
20 processo de centralização de capital e fortalecimento dos monopólios, ou seja, operando
21 a lei geral da acumulação capitalista sob a desculpa esfarrapada de criar “campeões
22 nacionais” com capacidade de competir globalmente – sendo os casos mais escandalosos
23 a criação da J&F, da BRF e das empreiteiras.

24 Não se pode esquecer que desde 2011 os preços dos produtos de exportação
25 passaram a despencar no mercado internacional. Segundo dados da Funcex, a queda dos
26 bens exportados foi de 35,8% entre 2011 e 2016, sendo especialmente vertiginosa a
27 diminuição do preço dos produtos agrominerais (72% no petróleo, 78% no minério de
28 ferro e 46% na soja). Assim, reduziu fortemente os ingressos de capitais trazidos pela
29 balança comercial e pelos investimentos estrangeiros diretos nos setores exportadores.
30 Desta maneira, toda a cadeia produtiva e de consumo brasileira começou a ser afetada,
31 com redução da margem de lucro operacional de amplos setores capitalistas instalados no
32 Brasil e início de diminuição do ritmo da acumulação de capital. A indústria de
33 transformação passa a operar em regime de reprodução simples (andando de lado) desde
60

1 2011 até 2014, despencando 15,6% a partir daí até os dias atuais. Já o setor de máquinas
2 e equipamentos, que já minguava desde os anos 90, caiu 23,1% no mesmo período, sem
3 perspectivas de retomada.

4 O pacto de classe começava a ruir em todas as suas dimensões e a guerra de classes


5 aberta e declarada anunciava sua chegada. A queda na entrada de divisas e a taxa de lucro
6 em queda acirraram a voracidade dos capitalistas sobre a força de trabalho, iniciando uma
7 nova fase da luta de classes nacional. Não por acaso, segundo dados do DIEESE, de uma
8 média de 400 greves anuais entre 1997 e 2011, as greves saltaram para aproximadamente
9 900 em 2012, média de 2 mil ao ano entre 2013 e 2016 e 1,5 mil tanto em 2017 quanto
10 em 2018. Outro dado importante, o caráter das greves exibe importante mudança. As
11 greves que antes eram voltadas para conquista de ganhos salariais, passam a ser
12 meramente defensivas, contra a retirada de vale-alimentação e a revisão de valores de
13 planos de saúde, pelo cumprimento de pagamento de 13º salários atrasados e horas extras,
14 além de outros tantos descumprimentos de acordos coletivos de trabalho. Ou seja, o ajuste
15 sobre os trabalhadores visível aos apologéticos apenas em 2015 com Joaquim Levy na
16 verdade já operava com força desde 2011 por meio da força dos capitalistas contra os
17 trabalhadores na base da economia. O pacto de classes do Plano Real estava com os dias
18 contados. Os sonhos petistas cairiam como castelo de cartas!

19

20 1.5.2- Colapso do pacto de classes e do sistema petucano

21 O roteiro do colapso do capitalismo dependente rentistico estava montado. Por


22 nunca terem enfrentado o dragão da dependência agora sob a forma rentista e, ao
23 contrário, tocarem a manivela de seu poder destrutivo com mais força, os petistas criaram
24 a própria cova abaixo de seus pés. Após o fracasso da “nova matriz econômica”, Dilma
25 imediatamente começa a elevar fortemente a taxa de juros. Em pouco tempo, a taxa de
26 7,25% alcançada em meados de 2013, atingiria 10,75% em 2014. O gasto financeiro do
27 Estado, em parte atrelado à Selic, explode imediatamente. De um ano para o outro,
28 somente com juros da dívida pública – desconsiderando amortizações e refinanciamentos
29 –, o Estado eleva o gasto financeiro de R$ 200 bilhões para R$ 500 bilhões, valor que se
30 repetiu em 2015, ano de início do ajuste recessivo de Joaquim Levy. A relação dívida
31 bruta com o PIB, que expressa de maneira aproximada a capacidade do Estado honrar o
32 pagamento da dívida, saltou entre 2013 e 2015 de 51,7% para 65,1%, atingindo
61

1 atualmente percentual superior aos 70%. Este crescimento explosivo do gasto financeiro,
2 por sua vez, promoveria déficits subsequentes nas contas públicas nacionais, fato
3 raríssimo dentro do sistema rentista que sempre se orgulhou da política de superávit
4 primário. A expansão do déficit foi impressionante: R$ 17,2 bilhões em 2014, R$ 111
5 bilhões em 2015 e R$ 155,7 bilhões em 2016!!! Em resumo, o sistema da dívida atrelado
6 à capacidade do Estado honrá-lo religiosamente estava em risco.

7 Os economistas do PT e também dos partidos que defendem a administração


8 petucana da coesão de classe organizada apartir do Plano Real, calam sobre questões
9 elementares. No entanto, não há outra forma de explicar o estelionato eleitoral promovido
10 por Dilma e o PT senão reconhecendo que foi realizado precisamente para recuperar a
11 capacidade do Estado brasileiro em honrar com a dívida multiplicada por tucanos e
12 petistas ao longo de 2 décadas. A promessa da ex presidente em “não mexer em direitos
13 trabalhistas nem que a vaca tussa” e sua recusa em adotar a política de ajuste divulgada
14 com insistência durante o segundo turno da campanha eleitoral, é substituída rapidamente
15 por um ajuste fiscal regressivo implementado pelo novo Ministro da Fazenda Joaquim
16 Levy – antes diretor executivo do Bradesco –, que buscava desvalorizar capital e força de
17 trabalho, recompondo assim as condições para a elevação das taxas de lucro e a retomada
18 da acumulação. Assim, o governo definiu uma meta de superávit primário para 2014 de
19 1,4% do PIB – totalmente irrealizável diante da crise financeira do Estado –, uma redução
20 dos aportes do Tesouro ao BNDES e aumento da TJLP do banco, um corte de quase 40%
21 nos investimentos públicos, um aumento do IOF nas operações de crédito para pessoa
22 física, a manutenção da elevação da Selic – que chegou a 14,25% ao ano em meados de
23 2015 –, e as mudanças nas regras do seguro desemprego e abono indenizatório,
24 dificultando o acesso dos trabalhadores desempregados a estes direitos.

25 O resultado foi socialmente dramático, aprofundou a crise do sistema rentista e


26 tratou de derrubar o processo interno de acumulação de capital, razão pela qual todos os
27 setores econômicos passaram a registrar profunda queda. O desemprego explodiu, saltou
28 de 4,8% para os atuais mais de 13% - dados da PNAD contínua. O consumo das famílias,
29 segundo as contas nacionais do IBGE, caiu 3,9% em 2015 e 4,2% em 2016. Em uma
30 estrutura tributária regressiva, onde quem tem menos paga mais, o impacto foi drástico
31 sobre a arrecadação, que segundo dados do Tesouro deflacionados pelo IPCA caiu 8,2%
32 em 2014, 7,84% em 2015 e 0,69% em 2016. Em paralelo, a Operação Lava-Jato
33 paralisava o setor da construção civil e da extração de petróleo. Os resultados sociais eram
62

1 insustentáveis, o rentismo só aumentava seu peso e a crise financeira do Estado se


2 aprofundava sobremaneira.

3 Como reflexo imediato da crise, o sistema petucano de gestão do rentismo entra


4 em colapso. O desgaste, do ponto de vista político, já ocorria desde que os governos
5 petistas adotaram para si a política econômica dos governos tucanos. O sentido de
6 representação eleitoral no Brasil se diluía, sendo que a oposição tradicional entre esquerda
7 e direita, que antes da eleição de Lula ainda era marcante na sociedade, sistematicamente
8 deixou de ter qualquer sentido para a grande maioria da população a partir da
9 consolidação do sistema petucano. A política nacional passava lentamente a ser
10 conduzida por uma nota só: a austeridade permanente contra o povo e a centralização da
11 propriedade privada. A população, por sua vez, assistia passivamente sua vida continuar
12 sendo atravessada por todas as mazelas de um país periférico, tendo que se contentar com
13 as migalhas que lhes eram concedidas do grande banquete dos poderosos. A insatisfação
14 era latente, mas as condições políticas ainda não permitiam que ela se expressasse
15 abertamente como movimento de massa. Quando menos se esperava, no entanto, as
16 pequenas e contínuas mudanças quantitativas no sentido de intensificação do padrão de
17 desenvolvimento do rentismo, tratavam de ganhar um salto de qualidade através da
18 irrupção das massas na política após as manifestações de massa de junho de 2013 que, de
19 fato, abririam uma nova conjuntura, ferindo de morte o sistema petucano, sempre
20 orientado pelos acordos de cúpula e à traição das massas.

21 Por mais que as jornadas de junho de 2013 representase uma massa constituída
22 majoritariamente pelas camadas médias e pela juventude, que se moviam em torno da
23 insatisfação com a crise urbana, o clima de agitação tinha origem no mundo do trabalho
24 e apoio aberto ou tácito das massas operárias. Entretanto, a burocracia organizada em
25 torno do lulismo, buscando garantir a governabilidade e a conciliação de classes, na
26 tentativa de deslegitimar o movimento de massas, “jogaria no colo” da grande mídia
27 burguesa a direção do processo que se iniciava em 2013. Agora, como demonstram as
28 sucessivas declarações de Lula, principalmente após deixar a cadeia, as grandes
29 manifestações daquele ano são consideradas nada mais nada menos do que uma ação
30 orientada pelos... Estados Unidos! Lula – como todo o PT e seus apoiadores – segue
31 negando a natureza da crise do sistema petucano e do colapso produzido pela evolução
32 do Plano Real.
63

1 Em primeiro lugar, a maior parte da estrutura organizada do movimento social e


2 sindical simplesmente repudiou as manifestações de junho, tratando de corroborar a
3 narrativa midiática de que se tratava de “jovens irresponsáveis” que vandalizavam a luta
4 nas ruas. Essa postura até hoje custa caro às estruturas sindicais, que permanecem em
5 divórcio com a juventude que inicia na vida política brasileira. Em segundo lugar, e mais
6 importante, a presidente Dilma, os governadores e os prefeitos das grandes capitais, ou
7 seja, o sistema político brasileiro, atua nos entido de esterilizar as demandas para retirar
8 as massas das ruas. Assim, Dilma e seus aliados – dentro e fora do sistema petucano – em
9 comunhão, em um evento divulgado largamente pela grande mídia, anunciam o
10 marketing de um compromisso com cinco pactos nacionais: responsabilidade fiscal,
11 combate a corrupção e melhoria dos transportes, da saúde e da educação. Além disso,
12 emergiu a proposta de convocar uma assembleia constituinte para a realização de uma
13 reforma política que, obviamente, jamais aconteceria. As promessas anunciadas pelo
14 governo correram na mesma medida em que aumentava a repressão nas ruas com a
15 aprovação de uma lei antiterrorismo e da lei das organizações criminosas por Dilma, que
16 serve unicamente para reprimir as lutas populares; enfim, a estratégia do sistema petucano
17 de retirar momentaneamente o povo das ruas funcionou.

18 Em 2014 o movimento de massas brasileiro foi absorvido pela realização da Copa


19 do Mundo e pela dinâmica do processo eleitoral que escolheria o próximo presidente.
20 Dilma se reelege baseada em uma plataforma de campanha introduzindo aspectos
21 radicais no segundo turno. Era necessário fazer frente ao candidato do PSDB, e disposição
22 para mentir descaradamente nunca faltou para os marqueteiros do PT. Vencidas as
23 eleições, dos cinco pactos de 2013, sobra apenas o primeiro: a responsabilidade fiscal,
24 através do ajuste recessivo feito na tentativa de sustentar o sistema da dívida. Dilma perde
25 imediatamente o débil apoio popular que lhe garantiu a apertada eleição do ano anterior.
26 As massas saem novamente às ruas, agora, no entanto, orientadas firmemente no sentido
27 do processo de impeachment.

28 A crise capitalista se aprofundava, o mito do crescimento econômico com


29 distribuição de renda desmoronava e a crença na democracia liberal burguesa e em sua
30 representante máxima naquele momento também. Lula, por sua vez, também desidratou
31 neste processo. Perdeu definitivamente o apoio das camadas médias, principalmente da
32 pequena burguesia, em função dos escândalos de corrupção denunciados pela Lava Jato
33 e da derrubada definitiva da imagem de partido honesto que o PT sustentava antes do
64

1 “mensalão” em 2005. Perdeu apoio de inúmeros setores do proletariado, principalmente


2 dos setores tradicionais que lhe rendiam apoio nas décadas anteriores. Não consegue mais
3 empolgar a nova geração de jovens que ingressou recentemente no mercado de trabalho
4 ou está nas universidades. Entretanto, mantém ainda a hegemonia sobre as burocracias
5 partidárias, sindicais e de movimentos populares organizados.

6 Assim, o lulismo e seus discursos subsidiários, mesmo em declínio e sem


7 perspectiva material de reestabelecer a distribuição de renda como projeto político real,
8 continuam bloqueando a reconstrução de uma vanguarda em torno da revolução
9 brasileira. As massas se radicalizam, mas as burocracias conduzidas por Lula tratam de
10 persistir na prática política da conciliação de classes, que impede a desobstrução completa
11 das energias revolucionárias que se acumulam na sociedade; porém, ao mesmo tempo,
12 envolvem estas burocracias na crise política em função da ruptura com suas bases.

13

14 1.5.3- Profundidade e radicalidade da guerra de classes

15 As saídas adotadas por Dilma para lidar com a crise do capitalismo dependente
16 estavam completamente exauridas já no final de 2015. A ideia de um ajuste recessivo
17 para recompor as condições para a acumulação de capital não tinha dado conta do
18 tamanho do colapso do sistema, fazendo aumentar drasticamente a pressão burguesa por
19 profundas mudanças estruturais. Todas as pautas da burguesia, que ou estavam
20 adormecidas em função das benesses trazidas pelo período de elevada renda da terra ou
21 tinham sido realizadas a conta gotas desde 1994, agora precisavam ser desatadas de forma
22 radical e definitiva. Temer articula o apoio da burguesia ao impeachment através do
23 documento “Uma Ponte para o Futuro”, um projeto totalmente orgânico aos interesses da
24 classe dominante na nova conjuntura do modo de produção capitalista desatada pela crise
25 de 2008. Aquele documento deixa claro os quatro pontos que comandariam seu governo:
26 1) adequação do custo da força de trabalho brasileira aos “padrões internacionais”; 2)
27 reformas do Estado para dar sustentabilidade à relação dívida/PIB; 3) ampliação do
28 processo de privatização e aprofundamento da perda de soberania nacional e; 4)
29 facilitação da expansão do latifúndio.

30 No primeiro ponto, o velho mecanismo de rebaixar salários através da recessão


31 econômica promovido por Dilma não havia dado o resultado esperado para o capital
32 recuperar suas taxas de lucro. Não bastava o aumento do desemprego, crescimento da
65

1 rotatividade e redução dos salários. Era preciso a maior destruição da legislação


2 trabalhista promovida desde sua criação em 1943 para ampliar a taxa de mais-valia para
3 os patamares desejados. No segundo quesito, a PEC 55 que congelou os gastos públicos
4 por 20 anos foi aprovada ainda no final de 2015. Entretanto, o então presidente não
5 conseguiu aprovar a destruição da previdência, sem a qual o congelamento de gastos
6 tornava-se simplesmente inexequível. No terceiro ponto, o fim do monopólio da Petrobrás
7 sobre a exploração do Pré-Sal – aprovado ainda durante o governo de Dilma num acordo
8 entre José Serra, o apoio de parte da bancada petista e da presidenta – e a preparação de
9 um amplo processo de privatização do que sobrou do patrimônio público, necessário para
10 “fazer caixa” e poder pagar a dívida pública.

11 Entretanto, a partir do final de 2017 e início de 2018 o governo Temer perderia


12 totalmente sua força inicial, tornando-se ineficiente para fazer o serviço completo para a
13 classe dominante. A associação do então presidente à corrupção através da divulgação
14 das gravações das suas conversas com Joesley Batista, proprietário da J&F, a intensa
15 mobilização sindical do primeiro semestre de 2017 (greve geral de abril e a marcha até
16 Brasília de maio) e a poderosa greve dos caminhoneiros de maio de 2018 tratariam de
17 liquidar a capacidade do governo liberal e corrupto em fazer avançar a guerra de classes
18 contra o povo brasileiro. Depois de Dilma, também Temer seria descartado pela classe
19 dominante, ou seja, o agora ex-presidente, após décadas de proeminência no jogo do
20 presidencialismo de coalisão, é figura que ocupa apenas os noticiários policiais em torno
21 das operações da Lava-Jato.

22 Era chegada a hora da campanha eleitoral de 2018. Antes disso, no entanto, Lula
23 seria preso após sua condenação em segunda instância em abril, poucos meses antes da
24 eleição. Mais uma vez, no ato político realizado no Sindicato dos Metalúrgicos de São
25 Bernardo do Campo que antecedeu sua prisão, Lula demonstraria sua fé inabalável em
26 torno da democracia e da justiça burguesas. Entregou-se sem nenhuma proposta de
27 enfrentamento à guerra de classes que já assolava o país. No cálculo da cúpula petista, a
28 prisão seria breve. Tal como repetiu várias vezes, todos seus assessores asseguravam que
29 mesmo preso ele poderia ser candidato e, em caso contrário, sairia da cadeia e figuraria
30 como principal cabo eleitoral de Fernando Haddad na campanha presidencial que se
31 aproximava. Afinal, nas contas alegres e irresponsáveis do ex presidente, o PT se elegeria
32 e voltaria nos braços do povo, sendo beneficiado, inclusive, pelo drástico ajuste
33 econômico de Temer, que na vulgata dos economistas do sistema petucano, era
66

1 indispensável para recuperar as bases para um novo ciclo de crescimento econômico e


2 geração de emprego e renda. Ledo engano de Lula e da cúpula do PT, já que a prisão não
3 seria de poucos dias, mas de longos dezenove meses e, como muitos afirmavam, ele
4 jamais poderia ser candidato em função da “lei da ficha limpa” aprovada pelo governo de
5 Dilma em 2010.

6 O PT, que alimentava a narrativa de que o país havia passado por um golpe,
7 validou o processo eleitoral com a candidatura de Haddad, um notório liberal. Como
8 sempre, as campanhas petistas não são movidas por convicções políticas profundas, mas
9 apenas pelas conveniências do cretinismo parlamentar e pela sanha de administrar
10 novamente o pacto petucano. Entretanto, as placas tectônicas da sociedade brasileira já
11 haviam se movido pelas décadas de gestão do Plano Real e pela aceleração do tempo
12 histórico por conta da guerra de classes. O desgaste social depois de quatro anos de crise
13 econômica, altas taxas de desemprego e destruição de direitos sociais e trabalhistas, a
14 ausência completa de perspectiva de futuro para amplos setores da população e o desgaste
15 profundo do sistema petucano, exigiam a partir das contradições deste processo uma
16 candidatura anti-sistêmica que levaria o voto de milhões nas urnas: o proto-fascista Jair
17 Bolsonaro.

18 A Revolução Brasileira já havia anunciado tal fato há bastante tempo. Ainda


19 que não cravássemos a vitória de Jair Bolsonaro, reiteramos em nossos documentos e
20 análises – desde 2015!!! – a avaliação de que o Brasil necessitava um novo radicalismo
21 político. Desta forma, o processo eleitoral demandava uma candidatura que denunciasse
22 o sistema petucano como o gestor dos negócios do capital e o criador da crise. Por isso a
23 crítica e diferenciação em relação ao PT deveria ter orientado o discurso político perante
24 as massas e jamais um tópico secundário ou evitável. Foi por esta razão que lançamos a
25 pré-candidatura de Nildo Ouriques a presidente da república por dentro do PSOL.
26 Acreditávamos, e seguimos convencidos, que o partido nascido de uma ruptura com o PT
27 e a precoce política petucana manifesta na administração de Antonio Palocci no
28 Ministério da Fazenda, deveria radicalizar sua posição de crítica ao sistema, explicando
29 pacientemente para o povo brasileiro a origem de seus dramas e por qual razão,
30 legitimamente, os trabalhadores romperam com a confiança que haviam depositado no
31 Partido dos Trabalhadores durante o longo processo de sua constituição desde os anos 70.
67

1 No entanto, não foi isso que prosperou. Pelo contrário, a escolha de Guilherme
2 Boulos como candidato aproximou o PSOL de Lula e do PT a tal ponto que o partido hoje
3 é conhecido por muita gente como o “puxadinho do PT”. Desde o trágico “boa noite,
4 presidente Lula” no primeiro debate televisivo até a insistência em não criticar o PT e
5 Lula nas questões centrais e, no limite, funcionar como linha acessória de Haddad na
6 camapanha eleitoral, condenou o PSOL a uma derrota política e eleitoral na campanha
7 presidencial. A renúncia ao protagonismo político não permitiu enraizamento política da
8 campanha e menos ainda o fortalecimento da imagem do partido como crítico de esquerda
9 ao petucanismo, razão pela qual a votação de Boulos foi pífia, com o pior resultado
10 histórico do PSOL em todas as suas campanhas presidenciais. De outro lado, Jair
11 Bolsonaro apresentou-se como a candidatura anti-sistema, acusando abertamente tanto
12 tucanos quanto petistas, com o bordão vencedor “vou mudar tudo que está aí”. A virória
13 do protofascista também consolidou-se sobre as bases da moral popular, denunciando a
14 corrupção dos governos anteriores e recuperando a ideia da família contra a degeneração
15 ideológica pós-moderna que tomou conta da esquerda brasileira nos últimos anos e que
16 hoje encontra-se em profunda crise terminal.

17 Portanto, a guerra de classes que se desenvolve desde 2012 e, de forma visível,


18 desde o estelionato eleitoral praticado por Dilma, após anos de destruição das condições
19 de vida da ampla maioria do povo brasileiro, encontrou em Bolsonaro sua mais clara
20 expressão. O novo presidente, mesmo elegendo-se sobre a plataforma da mudança – tal
21 como Lula em 2002 – assume e radicaliza a guerra de classes contra os trabalhadores,
22 dando sequência e aprofundando os projetos implementados desde o segundo governo de
23 Dilma. Destruição da previdência, ampliação do desmonte das leis trabalhistas,
24 privatizações em larga escala, cortes orçamentários em todas as áreas sociais,
25 endurecimento na legislação penal e preparação de um conjunto de novas leis e decretos
26 para ampliar a perseguição sobre os militantes populares são alguns dos exemplos das
27 mudanças realmente implementadas em 2019 pelo presidente em parceria com o
28 “congresso mais reformista de toda nossa história” – tal como falou o “amigo das forças
29 democráticas”, Rodrigo Maia. Desta forma, Bolsonaro é a metamorfose necessária do
30 sistema petucano, que, de fato, precisou mudar sua forma de apresentação para se manter
31 intacto naquilo que é essencial: os pilares de sustentação da propriedade privada dos
32 capitalistas estruturada no sistema rentista que opera de forma desinibida desde o Plano
33 Real,
68

1 Diante do ultraliberalismo praticado pelo governo encabeçado por um


2 protofascista, Bolsonaro perdeu nitidamente popularidade entre parcela expressiva do
3 povo que o elegeu. Entretanto, a nulidade da esquerda brasileira enquanto força que
4 expresse um novo radicalismo político permite que o presidente ainda apresente ares anti-
5 sistêmicos ao preparar o terreno para uma real tentativa de golpe de Estado – tal qual o
6 famoso vídeo das hienas e do leão demonstraram. O liberalismo de esquerda que
7 finalmente hegemoniza a esquerda no país, unificou-se em torno da campanha “Lula
8 livre”, penhorando cada vez mais o seu futuro ao destino do falido sistema petucano. Lula,
9 enfim, está livre. No entanto, ao contrário do que muitos ingenuamente pensavam, não
10 faz senão alimentar todas as ilusões no sistema, preparando o terreno para uma ampla
11 aliança com tudo o que há de miserável no sistema político. Nesse contexto, a esquerda
12 que se soma ao movimento de Lula termina por bloquear as imensas possibilidades que
13 se abrem de criar um novo radicalismo político tao necessário para enfrentar com êxito o
14 governo encabeçado pelo protofascista Bolsonaro.

15 Enquanto isso, nas profundezas da vida real do povo, onde a democracia burguesa
16 é apenas uma ficção de mau gosto, a situação se degenera de forma acelerada. Não existe
17 perspectiva alguma de retomada do emprego e da renda sob as condições do ultra
18 liberalismo, ao contrário. Diante da capacidade ociosa na indústria que varia entre 30 e
19 40% e das novas regras trabalhistas, mesmo diante de qualquer aumento de demanda, esta
20 não será revertida em ampliação do emprego ou do investimento produtivo. A tendência
21 é contrária, o que teremos é a ampliação sobremaneira do subemprego em substituição ao
22 pouco que sobrou do antigo emprego formal, mais uma herança do processo de
23 industrialização brasileiro que vem sendo liquidado desde os anos 90. Isso atinge
24 especialmente as camadas da juventude brasileira, até mesmo aquelas formadas nas
25 universidades, que encontrarão basicamente este tipo de emprego quando ingressarem no
26 mercado de força de trabalho. De outro lado, as taxas estruturais de desemprego
27 permanecerão elevadíssimas, trazendo o desespero para amplas parcelas da população, já
28 que não encontram nem ao menos a mínima estrutura de atendimnto do Estado aos dramas
29 sociais. Por isso mesmo, o caminho mais provável dos próximos anos é o das explosões
30 sociais, como já vêm ocorrendo desde junho de 2013 e a despeito da vontade de Lula,
31 Ciro, Bolsonaro ou quaisquer outros administradores da ordem capitalista brasileira.

32 Desta forma, em uma conjuntura que caminha para a lógica das situações
33 extremas, cada vez com mais clareza as forças da Revolução e da Contrarrevolução
69

1 adentram o cenário de guerra. A crise terminal do sistema petucano – o PSDB quase


2 desapareceu nas últimas eleições – e a acensao do protofacista Bolsonaro, ao contrário de
3 criar uma saída dentro do sistema político potencializou cada uma de suas contraições,
4 exibindo para a maioria do povo que somente contra o atual sistema é possível uma saída
5 para o sofrimento, a morte, a violência de milhões de brasileiros. Ora, posto que os
6 interesses da classe dominante em seu atual estágio rentístico são irrefreáveis, a
7 contrarrevolução torna-se cada vez mais uma saída possível para os setores capitalistas.
8 Por isso mesmo a embaixada de Whashington passa a atuar de forma desinibida na
9 América Latina, voltando a fomentar golpes de Estado pelo continente. De outro lado, a
10 irresponsabilidade do liberalismo de esquerda é imensa ao afirmar a defesa deste sistema
11 falido (que chamam de democracia) contra o “autoritarismo”, terminam ampliando as
12 veredas de avanço da ultradireita. Por isso mesmo, apostamos na necessidade da
13 construção da Revolução Brasileira, a única força que pode aglutinar milhões na crítica
14 definitiva ao sistema capitalista brasileiro assentado na dependência rentística na sua atual
15 fase histórica.

16

17 1.5.4- Concentração e fragmentação dos trabalhadores brasileiros

18 Das profundas mudanças introduzidas nas relações de produção brasileiras após


19 os anos 90, também verificamos uma significativa transformação na classe trabalhadora
20 brasileira. Longe das teses de que vivemos o fim da centralidade do trabalho, o que
21 encontramos é precisamente o oposto: uma massa de trabalhadores altamente concentrada
22 nas grandes cidades brasileiras, porém, desorganizados pela degeneração do movimento
23 sindical e, principalmente, dos partidos da esquerda liberal. Essa desorganização esta
24 produzida pelo abandono internacional do horizonte revolucionário, processo conduzido
25 no caso brasileiro pela hegemonia de Lula e do Partido dos Trabalhadores. Além disso,
26 desde os anos 90, o processo capitalista, que foi marcado pelo aprofundamento da
27 superexploração da força de trabalho, fez aumentar drasticamente o peso relativo dos
28 trabalhadores sem carteira assinada e autônomos – os vulgarmente chamados de
29 “precarizados”.

30 Com base nessas profundas transformações operadas do capitalismo brasileiro,


31 temos atualmente cinco estratos mais ou menos definidos da massa trabalhadora
32 brasileira: 1) trabalhadores empregados em setores estratégicos da acumulação de capital;
70

1 2) base dos servidores públicos; 3) um gigantesco exército industrial de reserva


2 fragmentado, “precarizado” e com pouca capacidade de organização; 4) pequenos e
3 médios agricultores incorporados ao modelo capitalista agroindustrial e; 5) profissionais
4 liberais, pequenos burgueses e aristocracia do servidorismo público, que constituem a
5 camada média da sociedade (apesar de parte destes últimos dois setores serem
6 proprietários de meios de produção e não proletários, as novas formas de centralização
7 do capital comercial e monetário os subordina em uma relação onde o capital monopolista
8 se apropria de parte expressiva do excedente por eles produzido).

9 No primeiro estrato estão incluídos os trabalhadores diretos no setor metalúrgico,


10 na indústria da alimentação, na indústria têxtil, nos bancos, nos transportes, na mineração,
11 na construção pesada, na rede privada de ensino e saúde, na indústria química, nos centros
12 de distribuição das grandes redes de varejo, etc. Ou seja, trabalhadores dos grandes ramos
13 produtivos dominados pela grande indústria moderna com as maiores taxas de
14 exploração, aglomerados em espaços comuns, com expressiva capacidade de organização
15 e realização de greves, com sindicatos estruturados (mesmo que a maioria em crise
16 profunda e dominados pelos “pelegos”) e com um conjunto de direitos e condições de
17 trabalho historicamente conquistados, ainda que atualmente vivendo perdas de largas
18 dimensões.

19 Este primeiro estrato foi justamente o que mais perdeu participação relativa na
20 massa proletária brasileira no período dos últimos 40 anos. A chamada reestruturação
21 produtiva dos anos 90, a introdução de máquinas e equipamentos, a automação e a
22 simplificação das tarefas destes trabalhadores e a massificação do ensino básico e médio,
23 fizeram baixar drasticamente seu peso relativo e o poder de barganha destes
24 trabalhadores. Se, entre os anos 30 e os anos 80, o forte crescimento da atividade
25 industrial brasileira exigia trabalhadores com alta especialização e os aglomerava em
26 fábricas altamente centralizadas, a natureza do processo mudou.

27 Com a automação e as novas tecnologias da informação criadas nos anos 70, o


28 que propicia um maior controle remoto do processo de exploração, desde os anos 90
29 predomina um movimento de “horizontalização” da produção, com criação de inúmeros
30 pequenos empreendimentos prestadores de serviço (o modelo de facções), a terceirização
31 das atividades-meio (asseio e conservação, segurança, manutenção de máquinas, etc.) e a
32 desarticulação do poder de mobilização e barganha das categorias profissionais.
71

1 O exemplo mais clássico deste movimento que ocorreu em todos os setores


2 estratégicos da acumulação foi o setor bancário. De uma categoria gigantesca, poderosa
3 e bem organizada passou para uma categoria muito menos numerosa, com pouco poder
4 de barganha, cada vez mais desorganizada e submetida a um crescimento drástico da sua
5 taxa de exploração. Não por acaso, o uso de correspondentes bancários no varejo, os
6 terminais de autoatendimento e a internet, alinhados às novas formas de controle do
7 trabalho por parte dos bancos e a perda de perspectiva revolucionária dos sindicatos,
8 quebraram a coluna vertebral que constituiu todo o importante modelo sindical bancário
9 surgido nos anos 90 através do Movimento de Oposições Bancárias da CUT.

10 Mesmo assim, com menor poder de organização e queda relativa de participação


11 destes setores estratégicos da acumulação de capital, continuou crescendo o número de
12 trabalhadores em relação às décadas anteriores. Nos setores intensivos em força de
13 trabalho, voltados para o mercado interno e também para a exportação, como o têxtil e o
14 agroindustrial, aumentou sobremaneira o número absoluto de trabalhadores, criando
15 inclusive, na busca por menores salários, novas regiões industriais e urbanas no Brasil,
16 como algumas cidades do Centro-Oeste, por exemplo. Já as velhas cidades industriais
17 como o ABCD paulista, fortemente baseadas na estagnada produção de autopeças e
18 máquinas e equipamentos, continuaram assentadas sobre o trabalho industrial, com
19 crescimento no número dos seus operários, mesmo que com salários e condições de
20 trabalho ainda piores . Viriam a sofrer o impacto mais drástico na recente crise capitalista,
21 sendo que, somente entre 2014 e 2017, com a estagnação profunda do setor automotivo
22 brasileiro, foram fechadas 90 mil vagas de emprego apenas na região do ABCD.

23 O segundo estrato da força de trabalho brasileira, a base dos servidores públicos,


24 passou por processo semelhante ao anterior. Privatizações, precarização das relações
25 de trabalho, terceirização, diminuição do poder de barganha das categorias, extinção de
26 carreiras e inúmeros movimentos no sentido de precarizar o serviço público com vias de
27 privatização. Entretanto, a estabilidade de emprego e as agressões que os governos
28 petistas impuseram contra os servidores – principalmente nos primeiros anos de mandato
29 de Lula –, garantiram um menor grau de passividade diante do Estado, o que manteve as
30 categorias mais organizadas e com maior capacidade de articulação. O contrário, por
31 exemplo, ocorreu no estrato anterior, onde a cooptação aos governos petistas e a
32 colaboração de classes foi largamente verificada, o que hoje cobra enorme preço em
33 termos organizativos.
72

1 São incluídos neste estrato os trabalhadores da educação, da saúde, da assistência


2 social, da previdência e os quadros operacionais do executivo, legislativo, judiciário. Já
3 os trabalhadores em empresas públicas produtivas, como Petrobras, Correios e Eletrobras,
4 apesar de estatuto jurídico do setor público, tem inserção na produção de valor e mais-
5 valia semelhante à dos trabalhadores do primeiro estrato, o que os transforma também
6 em setores estratégicos do ponto de vista da parali sação da acumulação capitalista.

7 O terceiro estrato da classe trabalhadora, o exército industrial de reserva altamente


8 fragmentado, empobrecido e com baixa capacidade de organização, foi o que mais
9 cresceu em termos absolutos e relativos no Brasil das últimas décadas. Nesse estrato,
10 encontram-se desde trabalhadores com carteira assinada, como comerciários, garçons e
11 faxineiros, passando pelos sem carteira assinada, como trabalhadores que realizam
12 serviços domésticos, outros que fazem os famosos “bicos” e aqueles que trabalham de
13 suas casas em modelo de facção com as grandes indústrias, até os trabalhadores
14 autônomos, contando com motoboys, camelôs, motoristas de UBER, vendedores de
15 mercadorias e serviços a domicílio e um conjunto infindável de atividades paralelas e
16 complementares aos setores estratégicos da acumulação de capital.

17 Aqui se encontra a massa sobre a qual atua com mais força a superexploração da
18 força de trabalho. A maioria recebendo menos de dois salários mínimos, morando em
19 bairros pobres e dependendo dos serviços públicos de saúde, educação, transporte,
20 assistência social, etc., para sobreviver com mínima decência. Com baixa capacidade de
21 organização política em seus locais de trabalho, encontram-se quase sempre vulneráveis,
22 tendo que aceitar completamente as condições de exploração. O contrato formal que
23 caracteriza sua relação de exploração pouco importa, alguns são prestadores de serviço,
24 funcionando como microempreendedores individuais (MEI), outros têm contrato de
25 trabalho com carteira assinada e outros tantos não contam com qualquer vínculo formal.

26 Este estrato sempre existiu na sociedade brasileira, composto historicamente pelos


27 negros que saíam das senzalas e ocupavam os cortiços e os morros, criando toda uma rede
28 de economia informal. A grande transformação desde então se dá na total incorporação
29 deste povo ao controle da sua jornada de trabalho e do processo de extração de mais-valia
30 pelo capital monopolista. Isso ocorre pelo fato de que as novas tecnologias de controle
31 impõe a chamada “uberização” da força de trabalho de forma generalizada para todos
32 estes trabalhadores. Encontrando-se completamente “incluídos” à totalidade capitalista
73

1 pela internet, pelo GPS, pelo sistema financeiro e pelo consumo mercantilizado, são
2 efetivamente parte do exército industrial de reserva, pressionando sistematicamente os
3 salários para baixo e servindo como massa disponível para os setores centrais da
4 acumulação de capital no momento de expansão do ciclo econômico. Uma totalidade
5 capitalista completamente desenvolvida e que não apresenta qualquer espaço para uma
6 narrativa cristã em torno dos “pobres excluídos”, são todos força de trabalho disponível
7 para exploração capitalista.

8 O quarto estrato, por sua vez, é a decretação do fim do camponês na sociedade


9 brasileira: os pequenos e médios agricultores integrados à cadeia produtiva da
10 agroindústria. Se em 1964, à época do golpe militar, os camponeses apareciam como a
11 principal fração do povo brasileiro e, nos anos 80 e 90, existiam como uma massa de
12 pessoas recém expulsas do campo que se encontravam em transição entre o rural e o
13 urbano – sem capacidade de encontrar emprego nas cidades e sendo absorvidos na luta
14 pela terra e na fundação do MST –, hoje praticamente não existem mais camponeses.
15 Foram todos integrados à agroindústria como parte da cadeia de industrialização dos
16 alimentos, garantindo saltos enormes de produtividade e redução dos picos inflacionários
17 dos alimentos nos momentos de crise – tal como ocorria sistematicamente até 1964.O
18 modelo foi justamente criado nos anos 70 com o surgimento de empresas como Sadia e
19 Perdigão no oeste catarinense e, posteriormente desenvolvido e expandido através do
20 apoio do Estado para todas as demais atividades de pequena e média agricultura nas
21 demais cadeias produtivas – carne, fumo, grãos, hortifrúti, etc.

22 O modelo consiste na integração dos pequenos e médios agricultores às exigências


23 técnicas das grandes indústrias de beneficiamento alimentar. Pequenos e médios
24 agricultores produzem em modelo industrial, baseado nos financiamentos públicos como
25 o PRONAF (criado nos anos 90) e vendendo sua produção para grandes monopólios da
26 alimentação. Estes definem o preço das mercadorias e, sistematicamente, pelo grau de
27 exigências técnicas, eliminam agricultores que não se adaptam ao novo modelo de
28 produção rural capitalista. Esses pequenos e médios agricultores que permanecem passam
29 a empregar outros trabalhadores, buscando-os exatamente no exército de reserva do
30 terceiro estrato da classe trabalhadora brasileira, basicamente de forma irregular, nos
31 momentos de intensificação da necessidade de trabalho nas colheitas.
74

1 Por fim, o quinto estrato é composto pela camada média da sociedade brasileira,
2 profissionais liberais, pequenos burgueses e “aristocratas” do servidorismo público. Este
3 setor acaba sendo, juntamente com a base dos servidores públicos e de algumas categorias
4 do primeiro estrato, as de maior remuneração e estabilidade, de onde emergem a grande
5 parte dos quadros políticos que passam a administrar o Estado ou lutar contra ele, seja na
6 sua dimensão restrita ou ampliada, a chamada sociedade civil. São majoritariamente
7 formados pelas universidades públicas brasileiras e também, em menor medida por
8 algumas universidades privadas. Tem maior grau de formação, menores jornadas de
9 trabalho e mais disponibilidade de tempo para o exercício da política. Acaba sendo setor
10 decisivo, já que exerce elevado poder de influência sobre a sociedade em geral.

11 Tanto este quinto setor quanto os pequenos e médios agricultores do quarto


12 estrato, estão em constante processo de oscilação entre uma posição de aburguesamento
13 ou de proletarização. Nos momentos de expansão do ciclo capitalista de acumulação,
14 veem melhorados seus negócios e seus rendimentos advindos do trabalho, conseguem
15 transformar renda em propriedade (principalmente investimentos financeiros e
16 propriedades urbanas), e acabam adotando uma posição de aburguesamento,
17 identificando-se com os ideais da burguesia proprietária dos meios de produção. Nos
18 momentos de crise e ajuste, em que os monopólios fazem valer seu poder e rebaixam
19 o valor pago aos seus produtos e serviços, parte deles perde renda e queima as
20 propriedades, engrossando as fileiras do proletariado.

21 O processo é cíclico, mas tem clara direção histórica para a proletarização desde
22 os anos 80. Geração após geração, é possível notar o menor acesso dess es estratos à
23 propriedade, vivendo quase que exclusivamente de seus salários. Sendo o último ciclo de
24 expansão econômica – 2005 a 2014 – marcado por uma exponencial especulação em torno
25 da terra urbana e bloqueio total para aquisição de propriedade para a nova geração destes
26 estratos, a aceleração da proletarização foi visível, o que hoje coloca em profundo
27 desespero a juventude deste estrato que não consegue nem ao menos reproduzir as
28 condições de vida dos seus pais.

29 Como característica geral desta classe trabalhadora brasileira, é possível notar


30 uma elevação no grau de escolaridade da juventude e um predomínio de trabalhadores
31 jovens na faixa entre 20 e 40 anos. Esta nova classe trabalhadora, como já dito, enfrenta
32 um mercado de trabalho muito mais instável e de menor remuneração que o de décadas
75

1 anteriores; um enxugamento drástico das possibilidades de adentrar no serviço público,


2 que vive processo acelerado de privatização e terceirização; está submetido ao caos da
3 crise urbana brasileira, com parte significativa de sua renda comprometida com aluguéis,
4 transporte e alimentação fora de casa; e sente-se acossado pela violência urbana que
5 acompanha a degeneração das condições de vida do povo promovidas pelo
6 desenvolvimento capitalista.

7 Ao contrário da geração anterior, aquela que lutou pela redemocratização, não é


8 uma classe trabalhadora de recente urbanização. A maior parte dos trabalhadores já
9 nasceu e foi criado nas grades cidades, tendo uma cultura urbana fortemente entranhada
10 na formação de sua subjetividade. Mesmo as novas cidades nascidas da expansão da
11 agroindústria, da mineração e das grandes obras de infraestrutura que avançaram sobre a
12 fronteira agrícola do Centro-Oeste, Nordeste e Norte do Brasil, contaram com
13 trabalhadores trazidos de outros centros urbanos. Não foram camponeses que se
14 proletarizaram, tal qual ocorria nos anos do processo de industrialização, mas sim
15 deslocamentos massivos de proletários saindo das grandes cidades decadentes do litoral
16 em busca de novas oportunidades no interior. Entretanto, expressiva parcela do povo
17 ainda continua concentrada nas grandes regiões metropolitanas do país, onde 26 regiões
18 metropolitanas concentram quase 50% da população brasileira. Também é a primeira
19 geração educada em massa na frente das televisões, fortemente alienada pela lógica da
20 propaganda, da mercadoria e da indústria cultural estadunidense.

21 Por fim, é uma classe trabalhadora divorciada dos aparelhos sindicais tradicionais,
22 olhando com profunda desconfiança para uma burocracia sindical envelhecida, associada
23 com o cretinismo parlamentar e que enriqueceu e gozou de estabilidade nas últimas
24 décadas, ocupando as diretorias de sindicatos riquíssimos e de conselhos de administração
25 das grandes empresas e dos fundos de pensão. Além disso, foi educada sob a égide do
26 período democrático burguês, onde a política foi resumida ao voto e ao parlamento. Por
27 conta destes dois fatos, é uma classe trabalhadora que tem pouca ou nenhuma formação
28 política, porém, com o senso de verdade e justiça que emana da condição de vida do povo,
29 olha com desprezo para o sistema político tradicional por perceber a hipocrisia e injustiça
30 que dele emerge.

31 Esta classe trabalhadora emerge para a luta política após as greves que renasceram
32 em 2012 e através das manifestações de junho de 2013, grande momento de ruptura com
76

1 o imobilismo da sociedade brasileira e inauguração de uma dinâmica de massas. Os


2 jovens de 20 e poucos anos, que construíram junho de 2013, começam a se defrontar com
3 o abismo social construído sobre o mundo do trabalho. Além deles, uma geração mais
4 jovem ainda continuou seu legado de politização. As ocupações das escolas de 2016 e as
5 mobilizações nas universidades que se aprofundam, demonstram que em breve uma nova
6 geração, ainda mais combativa, entrará no palco central da luta política. Trarão uma nova
7 energia política e um sentimento de ruptura fundamental, que está em disputa e impõe a
8 tarefa de traduzir este sinal dos novos tempos nos termos do marxismo e da Revolução
9 Brasileira.

10 É com este povo que devemos construir uma aliança pela Revolução Brasileira.
11 Ele representa a larga maioria da população brasileira e está fortemente concentrado em
12 poucas cidades. Povo que não se encontra apenas no local de trabalho, mas em todos os
13 espaços de socialização, atravessados por uma profunda crise civilizatória promovida
14 pelo capital. A Revolução Brasileira não deve vacilar na adoção de um nacionalismo
15 revolucionário que articule a questão nacional com a conquista do poder e a
16 constituição de uma verdadeira democracia socialista.

17

18 2- CONJUNTURA INTERNACIONAL
19
20 2.1- O fim da ordem liberal como projeto do imperialismo

21 Desde a consolidação da hegemonia dos Estados Unidos da América após a


22 Segunda Guerra Mundial, o sistema capitalista se caracterizou pela ordem liberal, pautada
23 em sistemas de governo republicanos, com democracias representativas e a continuidade
24 do predomínio material do ocidente.

25 No entanto, é preciso assinalar: a democracia liberal-representativa como regime


26 e os sistemas republicanos não são as formas políticas naturais do sistema capitalista. Na
27 verdade, o modo de produção capitalista se estruturou historicamente na base de regimes
28 de força, como o absolutismo monárquico na Europa, a plutocracia restritiva de direitos
29 civis nos Estados Unidos e o trabalho compulsório na América Latina sobre os povos
30 originários e africanos.
77

1 A ordem liberal pós-1945, com eleições periódicas, imprensa (burguesa) livre,


2 multipartidarismo e instituições sólidas, portanto, só se fez plenamente possível em pouco
3 menos de uma vintena de países centrais que estruturaram formas sistemáticas de extração
4 de valor das periferias que garantissem a estruturação e a manutenção destas
5 características. Conforme se configurou o fim das eras coloniais clássicas nos países
6 africanos e asiáticos, foi preciso adotar formas mais sofisticadas e menos incisivas de
7 seguir transferindo o excedente dos países dependentes em direção às economias
8 metropolitanas e manter a aparente solidez das conquistas civilizatórias dos países de
9 capitalismo avançado.

10 De 1945 a 1970, configurou-se o auge da disputa inter-imperialista entre o bloco


11 capitalista e o bloco socialista soviético. A nova ordem do imperialismo global estruturou,
12 assim, um conjunto de princípios, normas, regras e instituições que tinha por função
13 organizar as relações entre os Estados nacionais após o conflito mundial. O expoente
14 máximo da governança global comandada pelo imperialismo após a Segunda Grande
15 Guerra é a Organização das Nações Unidas e todo o arcabouço jurídico-institucional a ela
16 vinculado.

17 Por meio do Sistema ONU, foram construídas inúmeras iniciativas de


18 “cooperação para o desenvolvimento”, dirigidas aos países que se localizam abaixo da
19 Linha do Equador. Tais planos pavimentaram processos de industrialização em alguns
20 países periféricos – entre eles o Brasil –, exportando tecnologias que já eram obsoletas no
21 centro, mas que ainda poderiam garantir bons resultados em termos de acumulação de
22 capital para as novas indústrias da periferia.

23 Logo após a Segunda Guerra, esta governança global se notabilizou pela garantia
24 de vultuosos ciclos de acumulação de capital tanto nos países desenvolvidos quanto nos
25 subdesenvolvidos, num processo que se convencionou chamar dos “30 gloriosos”.
26 Beneficiárias máximas do processo, as sociedades dos países imperialistas deparavam-se
27 com um conflito instaurado em seu interior: a experiência socialista soviética com
28 conquistas reais de direitos da classe trabalhadora, aliada à luta dos trabalhadores da
29 própria Europa Ocidental e dos países centrais como um todo, e combinados a um
30 contingente significativo da população armada logo após o Conflito, levou ao
31 estabelecimento de um pacto entre a burguesia e o proletariado, que se convencionou
32 chamar de Estado de Bem-Estar Social. Neste modelo, a garantia de acesso universal a
78

1 uma série de serviços, tais como educação, saúde, transporte, habitação, segurança,
2 previdência e assistência social era negociada entre o conjunto da classe trabalhadora
3 organizada (sindicatos) e os capitalistas, com mediação do Estado burguês.

4 A partir dos anos 70, ocorre uma crise cíclica neste processo de acumulação de
5 capital. Em resposta, as classes dominantes dos países centrais acionam quatro
6 mecanismos principais: em primeiro lugar, de forma sistêmica, passam a deslocar as
7 fábricas em direção às economias subdesenvolvidas, mantendo os centros de produção de
8 inovações tecnológicas sob seu controle e comando; segundo, estabelecem um processo
9 de liberalização financeira, permitindo maior fluxo de capitais entre os países a fim de
10 acelerar a rotatividade do capital, facilitar a captação da mais-valia dos países periféricos
11 industrializados e mitigar a queda das taxas de lucro; terceiro, realizam uma ofensiva
12 contra o Estado de Bem-Estar Social, retirando paulatinamente as conquistas que haviam
13 sido acumuladas pelo conjunto dos trabalhadores nos 30 anos anteriores1; por fim, para
14 garantir a máxima rentabilidade do capital nas periferias do sistema, organizam uma série
15 de golpes militares na América Latina e patrocinam regimes autoritários na África e na
16 Ásia.

17 Durante os anos 80 e 90, três dos quatro mecanismos adotados na década anterior
18 permanecem em pleno vigor, aperfeiçoando-se cada vez mais: antes deslocadas
19 majoritariamente em direção à América Latina, as fábricas dos países imperialistas agora
20 passam a encontrar rentabilidade extraordinária no Sudeste Asiático, notadamente na
21 China; as revoluções nos transportes e na tecnologia da informação e comunicação
22 potencializam de maneira exponencial a liberalização econômica, sobretudo na esfera
23 financeira, permitindo a multiplicação acelerada de grandes conglomerados
24 monopolistas, com altíssimos graus de concentração e centralização de capital; as
25 conquistas sociais de outrora da classe trabalhadora nos países imperialistas passam a ser

1
Este terceiro movimento é também resultado de 30 anos de progresso material que rendeu dividendos
à classe média assalariada e pequeno-proprietária europeia no pós Segunda Guerra Mundial. Deste
processo de acomodação social derivou profunda regressão teórica e política da classe trabalhadora
europeia. Triunfa, após o festejado Maio de 68, uma contrarrevolução burguesa, consubstanciada no
pensamento pós-moderno, retirando o horizonte revolucionário do conjunto dos partidos políticos,
sindicatos e movimentos populares da época, configurando-os como sujeitos autônomos desvinculados
de sua classe social. Não há nada mais fora do mundo do capital e a experiência soviética teria provado a
impraticabilidade do socialismo. Portanto, é preciso questionar, se revoltar, se rebelar contra os exageros
e as injustiças do capitalismo, mas abandonar qualquer perspectiva de luta por um novo modo de
produção e uma nova sociedade.
79

1 incorporadas pelo próprio padrão de reprodução do capital, mediante a incorporação pelo


2 capital dos sistemas de educação, saúde e previdência social, de forma mais tímida nos
3 países europeus de centro (que mantêm a rentabilização ainda sob controle do Estado) e
4 de maneira mais agressiva sobre a Europa do mediterrâneo (que privatiza seus sistemas).

5 As contradições internas dos regimes autoritários na periferia e, principalmente, a


6 derrocada da União Soviética, permitiu aos países imperialistas realizarem uma
7 verdadeira cruzada em nome do liberalismo político, cujo cultivo dos valores
8 democráticos passou a ser um imperativo em todos os países do globo. Sob o verniz
9 democrático, os EUA promovem uma ofensiva em sua agenda de governança global,
10 comandando guerras contra ditadores do leste europeu e da África nos anos 90,
11 estruturando os planos de dominação geopolítica via Guerra às Drogas na América
12 Central e no Caribe e promovendo a Guerra ao Terror no Oriente Médio a partir dos anos
13 2000.

14 O novo século inicia-se, portanto, em consonância com um processo de vasta


15 expansão da acumulação capitalista, acompanhado do discurso de vitória da democracia
16 burguesa, conduzidos pelo arranjo institucional que dá corpo à repaginada ordem liberal.
17 Beneficiária do deslocamento produtivo e conduzindo um plano de desenvolvimento
18 nacional desde a sua Revolução em 1949, a China ressurge no novo milênio com
19 capacidade produtiva impressionante.

20 Aos países latino-americanos, em especial ao Brasil, o deslocamento das fábricas


21 dos países imperialistas em direção ao sudeste asiático trouxe a necessidade de rearticular
22 um padrão de reprodução do capital que fosse compatível com a manutenção do poder
23 político, o prestígio social e a dominação econômica das classes mais abastadas. Após a
24 experiência da dívida externa e da hiperinflação, os títulos da dívida pública federal
25 passaram a ocupar a centralidade do processo de acumulação de capital no país. Com
26 remuneração garantida pelos altos retornos derivados da exportação dos valorizados
27 preços internacionais dos bens agrícolas e minerais, configurou-se no Brasil a República
28 Rentista, que entre 2000 a 2013 permitiu às classes dominantes promover certa “paz
29 social” e alimentar a ilusão segundo a qual estávamos próximos de alcançar um novo
30 patamar no sistema internacional.

31 A crise internacional de 2008 devastou esta e várias outras ilusões, tanto nos países
32 de capitalismo avançado quanto nos dependentes. A destruição de milhões de empregos
80

1 e de enormes massas de capital demandou profunda reorganização das relações mundiais


2 entre capital e trabalho. A recomposição das taxas de lucro do capital se deu com base
3 em ataque final ao que restava do Estado de Bem-Estar Social nos países centrais e numa
4 verdadeira guerra de classes nas economias periféricas.

5 Do ponto de vista político, o desencadear da crise alimentou um processo de


6 polarização política pelo mundo. O liberalismo de esquerda recorreu às instituições
7 internacionais e seu conjunto estruturado pós 2ª Guerra Mundial de “governança global”.
8 No entanto, nenhum dos esforços foi suficiente para conter a ira das populações
9 pauperizadas com o que o sistema político lhe promovera.

10 Assentados sob a lógica da fusão exponencial do capital bancário com o capital


11 industrial, a economia financeirizada garantiu retornos extraordinários ao sistema
12 capitalista nos últimos 40 anos. Entretanto, este padrão de acumulação revela-se
13 intrinsecamente concentrador de renda e capital, impossibilitando que as camadas médias
14 dos países desenvolvidos possam desfrutar minimamente destes resultados excepcionais.

15 Por conta disso, as populações mais pauperizadas do centro, neste fim da segunda
16 década do século XX, deparam-se com uma situação peculiar em que, pela primeira vez
17 desde a segunda guerra mundial, as novas gerações não conseguirão sequer repetir o
18 padrão de vida das gerações de seus pais e avós. Atendendo às demandas do processo de
19 acumulação capitalista, a deterioração da qualidade de vida da classe trabalhadora pelo
20 mundo encontrou nos países centrais uma tradução à extrema-direita, cuja expressão
21 máxima é a eleição de Donald Trump nos EUA em novembro de 2016.

22 O resultado das eleições na maior potência imperialista do planeta remonta a uma


23 nostálgica memória recuperada pelo atual presidente dos EUA de “fazer a América
24 grande de novo”. Em termos práticos, procura-se recuperar o emprego industrial nos
25 Estados Unidos, capaz de reconstituir o poder de compra das classes médias e
26 trabalhadoras, responsabilizando os imigrantes e as minorias políticas pela miséria
27 acelerada para que caminha parte expressiva dos estadunidenses.

28 Nada de novo há no nacionalismo expresso por Donald Trump: nenhum


29 presidente dos Estados Unidos, desde 1776, é alçado a esta condição sem ser um
30 nacionalista. A questão central no momento atual é que a ordem liberal e o conjunto de
31 instituições que até recentemente eram instrumentalizadas para o domínio estadunidense
32 sobre as relações internacionais se esgotou. A perda da funcionalidade desta ordem
81

1 forjada sobre o Sistema ONU é o que faz os Estados Unidos serem refratários à
2 governança global sobre o clima, por exemplo. Outra questão que ilustra este ponto é a
3 chamada guerra comercial entre China e Estados Unidos. A rigor, o sistema internacional
4 de Estados nacionais sempre foi comandado por guerras comerciais. A novidade do
5 cenário contemporâneo é a de que, esgotados os mecanismos da Organização Mundial do
6 Comércio para balizar as transações comerciais pelo globo, os Estados Unidos lançam
7 mão da estratégia primitiva de elevar tarifas, ao invés do sofisticado mecanismo de
8 barreiras não tarifárias, que orientava a liderança material dos EUA até então.

9 No restante dos países centrais, a Europa atual encontra-se espremida por uma
10 ofensiva estadunidense de um lado e sino-russa de outro. Desde o início deste século, a
11 União Europeia se mostrou incapaz de qualquer posição externa autônoma e tem se
12 comportado conforme a bússola do hegemonismo dos Estados Unidos. Apesar disto, o
13 bloco do velho continente ensaia discursos em busca de mais autonomia na seara
14 internacional. A nova Presidente da Comissão Europeia, a alemã Úrsula von der Leyen,
15 afirma em seus discursos querer posicionar a União Europeia como "potência mundial
16 autônoma entre os Estados Unidos e a China". O presidente francês, Emmanuel Macron,
17 diz que "podemos ser aliados inconseqüentes de um ou de outro ou decidir desempenhar
18 nosso próprio papel". Não obstante, se na França e na Alemanha existem gestos e projetos
19 para a autonomia internacional, a leste do continente e no Oriente Média há uma série de
20 Estados que obtêm influência explorando o fantasma do perigo russo, ou sentem-se muito
21 à vontade como vassalos de Washington para barganhar suas posições perante o concerto
22 de nações europeu.

23 Em decorrrência disso, o chamado Por um Renascimento Europeu2, assinado por


24 Emmanuel Macron em março de 2019, apresenta-se como uma desesperada tentativa de

2
O documento lançado pelo presidente francês está centrado em cinco pilares fundamentais: a) A criação
de uma Agência Europeia de Proteção das Democracias, visando proteger os processos eleitorais
nacionais contra os ciberataques e manipulações. Neste espírito de independência, também devemos
proibir o financiamento dos partidos políticos europeus por potências estrangeiras. b) Repensar o Espaço
Schengen (acordo europeu de livre-circulação de pessoas), mediante a criação de uma polícia de
fronteiras comum e um serviço europeu de asilo, sob a autoridade de um Conselho Europeu de Segurança
Interna; c) Um Tratado de Defesa e de Segurança para definir obrigações comuns, coordenar o aumento
das despesas militares e estabelecer uma cláusula de defesa mútua operacionalizada; d) Reforma da nossa
Política de Concorrência, a fim de repensar a política comercial europeia, visando punir ou proibir as
empresas que prejudicam interesses estratégicos e valores essenciais, tais como as normas ambientais, a
proteção dos dados e o justo pagamento do impostos. Além disso, assumir, nas indústrias estratégicas e
nos concursos públicos, uma preferência europeia, tal como o fazem os EUA e a China; e) Criação de um
Banco Europeu do Clima, para financiar a transição ecológica, além de uma força sanitária europeia para
reforçar o controle da circulação de alimentos, bem como o estabelecimento de uma avaliação científica
82

1 salvar o projeto inaugurado após a Segunda Guerra Mundial, diante de um cenário em


2 que boa parte dos países-membro do bloco lança mão do recurso de sua soberania
3 nacional frente a qualquer iniciativa supranacional coordenada. No limite, a crise revelou
4 que, ao fim e ao cabo, a União Europeia nada mais é do que a expressão continental da
5 ordem liberal global, destinada a projetar a sobrevivência de Alemanha e França na
6 concorrência inter-imperialista às custas dos territórios adjacentes. Não por outra razão,
7 limitadas as alternativas intra-continentais, a União Europeia dirige energias para a
8 consecução, nos melhores termos em seu favor – e com profundo êxito, até o momento –
9 , do Acordo de Livre-Comércio com o Mercosul.

10 Precisamente em decorrência disto, após acumular décadas de expansão, o projeto


11 europeu enfrenta graves reveses na conjuntura atual do sistema capitalista. Os países da
12 Europa manifestam sua hostilidade à ordem liberal em seus processos políticos internos.
13 Já há algumas eleições alimentando uma política de coalizões e frentes contra o
14 radicalismo político, a política interna nos países europeus depara-se com o avanço
15 parlamentar da extrema-direita em Portugal (Chega!), na Espanha (Vox), na Grécia
16 (Aurora Dourada), na Bulgária (Patriotas Unidos), na Eslováquia (Nossa Eslováquia) na
17 Holanda (Partido para a Liberdade), na Bélgica (Nova Aliança Flamenga) na Alemanha
18 (AfD) e na França (RN). Além de crescimento expressivo no Parlamento Europeu e nos
19 outrora estáveis países nórdicos. Já em países como a Itália, com Mateo Salvini, a Áustria,
20 com Sebastian Kurz, e a Hungria, com Victor Orbán, as vitórias são já no poder executivo.
21 Todos, sem exceção, centram seus discursos políticos em xenofobia, antiislamismo, e se
22 posicionam contra direitos sociais.

23 Para além da Europa continental, sua parte insular reserva a maior derrota ao
24 projeto supranacional. O Reino Unido, em geral, e a Inglaterra, em específico, nunca
25 foram grandes entusiastas de um projeto de unificação continental. Ainda que a Inglaterra
26 e a França tenham combatido lado a lado nas duas grandes guerras, a secular disputa pelo
27 comando da Europa entre esses dois países faz com que os anglo-saxões sempre tomem
28 com desconfiança o controle de suas diretrizes políticas internas. O Reino Unido, que
29 jamais aceitou dividir sua moeda com outras potências na Europa, entrou tardiamente na

independente das substâncias perigosas para o ambiente e a saúde, que esteja imune a lobbies de grandes
corporações. Disponível em:
https://www.elysee.fr/emmanuel-macron/2019/03/04/por-um-renascimento-europeu.pt
83

1 então Comunidade Europeia (1973) e, dois anos depois, já apresentava um plebiscito a


2 seu povo decidindo a permanência ou não no Bloco.

3 Nos anos 80, era o Partido Trabalhista inglês quem mais pautava o tema, que
4 estava relativamente adormecido até a segunda década dos anos 2000, quando em 2013,
5 o então primeiro-ministro David Cameron compromete-se a discutir formalmente o tema.
6 Colocado em votação em 2016, o processo de saída do Reino Unido da União Europeia
7 foi aprovado pela maioria da população. No cenário de crise, a população do Reino Unido
8 decide pela saída da União Europeia, tomada como uma horda de burocratas incapazes
9 de lidar com os problemas reais da população do velho continente. Comandado
10 atualmente pelo Partido Conservador e sob o comando de Boris Johnson, o processo será
11 concluído e o Reino Unido redefinirá suas relações internacionais: poderá estabelecer
12 conexão ainda mais orgânica com a política estadunidense e buscará posição especial para
13 reconstituir seu poderio no sistema imperialista mundial.

14

15 2.2- A estagnação do processo de acumulação de capital e a iminência de recessão


16 global

17 As dificuldades em recompor o crescimento econômico sustentado após a crise de


18 2008, a despeito dos esforços das economias centrais, faz periclitar a acumulação de
19 capital mundo afora, sinalizando uma iminente recessão global. Na Ásia, por exemplo, o
20 Japão,que cultivou forte progresso tecnológico entre as décadas de 80 e 90, hoje encontra-
21 se com sua economia estagnada, sem grandes capacidades de conduzir um ciclo
22 expressivo de acumulação de capital. O país experimentou recentemente, pela primeira
23 vez em 200 anos, a renúncia de seu Imperador.

24 A Rússia procura, em aliança com a China, projetar seu poder geopolítico e


25 reconstituir a influência perdida sobre a Europa do leste após o fim da União Soviética.
26 Por um lado, o País restabeleceu a ordem interna e interrompeu a degradação da vida
27 social para a qual marchava na virada para o século XXI. No entanto, em nada choca com
28 os interesses burgueses de uma legião de super-ricos, nativos ou estrangeiros, que
29 comanda a acumulação de capital interna.

30 Na queda de braço com a Europa ocidental, a coalizão da OTAN aplica fortes


31 sanções em busca de limitar a influência russa sobre o território do Velho Continente.
84

1 Internamente, a organização política russa apresenta-se como autocrática e atravessada


2 por contradições em seu sistema político e econômico, com eleições quase sem
3 alternativas e que geram protestos internos, dos quais o Ocidente se aproveita para tecer
4 propaganda contra Vladimir Putin. Neste contexto, a estabilidade política russa possui
5 seus riscos, acentuados pelo fato da estrutura econômica russa seguir assentada sobre a
6 exportação de matérias-primas e produtos pouco elaborados.

7 Para fazer frente a este cenário, Putin planeja trabalhar em um novo programa de
8 rearmamento a partir de 2020, que deve prever a criação e entrega ao Exército de armas
9 com base em "novos princípios físicos"3.

10 Posição incerta nesta quadra ocupa a Índia, pois o país compra armas da Rússia e
11 tem disputas regionais com a China, podendo representar um papel de aliado estratégico
12 dos interesses dos Estados Unidos contra a China na região. A China, por seu turno, pela
13 primeira vez em 20 anos, registrará uma taxa de crescimento abaixo de 6% ao ano,
14 acendendo um sinal de alerta para todas as economias do planeta.

15 Na tentativa de reaquecer suas economias após 2008, os países avançados


16 instrumentalizaram seus bancos centrais e os tornaram compradores de títulos públicos e
17 privados, como foram os casos recentes do Federal Reserve nos EUA4 e o Banco Central
18 Europeu. No entanto, a fórmula não conseguiu entregar os resultados esperados, e a
19 recuperação econômica pós-2008 é notadamente vacilante. Mesmo nos países centrais, a
20 regra é cada vez mais o trabalho intermitente, e seu padrão de vida da maioria da
21 população segue depreciado.

22 Atualmente, existem aproximadamente USD 17 trilhões em títulos de


23 rentabilidade negativa nos mercados mundiais, em sua maioria patrocinados por Bancos
24 Centrais. No entanto, a reação dos setores produtivos da economia capitalista segue
25 absolutamente paralisada. Com a desaceleração econômica da China, motor da
26 acumulação capitalista contemporânea, os indicadores econômicos burgueses registram
27 números preocupantes por todos os países avançados. A economia alemã já pode estar
28 em recessão ainda antes de 2020 e novamente o mecanismo de redução das taxas de juros

3
Segundo o presidente russo, a principal tarefa deste novo período consiste em "melhorar as
características quantitativas e qualitativas das armas e equipamentos militares".
4
O FED possui, atualmente, mais de USD 4,5 trilhões em ativos, o equivalente a quase ¼ do total do
Produto Interno Bruto do País.
85

1 é adotado. Já em patamares reais negativos, são muitas as evidências de que o uso da


2 política monetária como mecanismo para reverter crises ou evitar recessões se esgotou.

3 A estas tendências segue-se o fato de que os fluxos internacionais de investimento


4 direto global caíram quase um quinto em 2018, passando de 1,47 trilhão de dólares para
5 1,2 trilhão de dólares. Além disso, o desempenho do comércio mundial de bens pode ser
6 o pior dos últimos dez anos. O recuo no índice de crescimento supera os 50%, passando
7 de 2,7% em 2018 para 1,2% em 2019.

8 O peso da economia dos Estados Unidos no PIB mundial, que era de 45% no final
9 da Segunda Guerra Mundial, passou a 25% na década de 1970, e agora é de 17%. Os
10 indicadores de desempenho econômico da indústria são críticos: o índice geral de
11 atividade industrial caiu para 47,8 em 2019, o nível mais baixo desde junho de 2009, que
12 foi o fundo do poço da crise internacional de 2008, quando o indicador ficou em 46,3.

13 A economia mundial é uma totalidade superior à mera soma das economias


14 nacionais, consistindo em uma estrutura produtiva e de circulação global de mercadorias
15 por países, comandada por grandes empresas transnacionais, sendo as empresas
16 americanas as mais importantes da economia. A marca dos últimos dois anos da economia
17 global é a do aprofundamento da desproporcionalidade, em cada economia nacional, dos
18 diferentes setores econômicos que produzem para o mundo e recebem mercadorias
19 fornecidas do exterior. O aumento das tarifas de importação nos Estados Unidos, e
20 especialmente as importações da China, pode antecipar a nova crise econômica global.

21 Nas economias capitalistas, o crescimento da produção depende


22 fundamentalmente do crescimento do consumo e dos investimentos das empresas. Ambos
23 indicadores registraram queda acelerada nos últimos trimestres. Para o caso
24 estadunidense, a taxa de crescimento do Consumo de Bens diminui, tornando-se
25 ligeiramente negativa em 2019. Para o caso específico do Consumo de Bens Duráveis, a
26 taxa de crescimento diminui acentuadamente até se tornar negativa no primeiro trimestre
27 de 2019 (-4,6%)5

28 Os investimentos são ainda mais decisivos que o consumo para o crescimento do


29 Produto. Nos Estados Unidos, o crescimento do Investimento total cai de 8,0% no
30 primeiro trimestre de 2018 para 1,0% no primeiro trimestre de 2019. Essa queda

5
Dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos
86

1 acentuada se manifesta nos principais componentes do mesmo. O investimento das


2 empresas em edifícios (escritórios) e estruturas (galpões) diminui de 13,9 para 1,0%. O
3 investimento em habitação, que desempenha um papel dinâmico em todas as economias,
4 mostra taxas negativas nos últimos cinco trimestres consecutivos6.

5 Quando comparada ao desempenho de 2014, a performance da indústria de


6 transformação, central para a acumulação capitalista, sofre vertiginosa queda na principal
7 economia do planeta. No setor de máquinas e equipamentos, por exemplo, a massa de
8 lucros diminui de US$ 36,3 bilhões no quarto trimestre de 2014 para US$ 18,3 bilhões no
9 quarto trimestre de 2018. Na produção de computadores e produtos eletrônicos, os lucros
10 diminuem de US$ 70,9 bilhões para US$ 39,3 bilhões entre 2014 e 2018.

11 Na produção de equipamentos e aparelhos elétricos, a massa de lucros diminui de


12 US$ 27,4 bilhões no segundo trimestre de 2015 para US$ 2,5 bilhões de dólares no quarto
13 trimestre de 2018. Já na indústria automotiva, a massa de lucros diminui de US$ 36,4
14 bilhões no quarto trimestre de 2014 para US$ 8,9 bilhões no quarto trimestre de 2018.

15 A rigor, a crise de 2008 representou o fim da ordem liberal no sistema


16 internacional comandada pelo Ocidente e inaugurada em 1945. Os regimes republicanos
17 tradicionais agonizam e o sistema capitalista não consegue garantir vida segura e digna
18 para as massas sequer nos países centrais. O desmonte das políticas sociais no centro em
19 nome da recomposição das taxas de acumulação gera uma multiplicidade de reações
20 sociais. O espaço para movimentos revolucionários está rigorosamente aberto.

21 Os liberais, tanto à esquerda quanto à direita, dedicaram-se, nos anos pós-crise de


22 2008, a realizar a defesa da institucionalidade, buscar soluções dentro do
23 multilateralismo, do multiculturalismo e apostar nas saídas dos regimes internacionais.
24 Acontece que hoje em dia, a defesa desta ordem falida é sinônimo da defesa do caos na
25 política internacional aos olhos das massas pauperizadas. Aqui no Brasil, a defesa da
26 ordem, da cooperação, da tolerância, dos regimes e das instituições internacionais vai
27 sendo feita pela esquerda liberal, enquanto a extrema-direita fica com o monopólio da
28 crítica e arrebata o sistema político. Ao não realizar a crítica à ordem liberal, a esquerda
29 e o pensamento progressista no Brasil abriram espaço para um discurso conservador da

6
Dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos
87

1 extrema-direita que dirige o país internamente e reverbera no Itamaraty, na figura do


2 ignóbil Ernesto Araújo.

3 Araújo é escolhido porque toca nos grandes temas nacionais e discute as grandes
4 questões: enquanto o petismo queria colocar o Brasil na condição de um global player
5 das instituições, o novo chanceler fala em transformar o Brasil de uma nação grande para
6 uma grande nação, dando de ombros para a ordem liberal. Ernesto Araújo se destaca
7 diante de Bolsonaro e seus ideólogos porque retoma a centralidade do debate acerca do
8 nacionalismo nas ciências sociais. A extrema-direita avança na exata medida em que a
9 esquerda não apresenta alternativas consistentes ao povo no cenário atual.

10 Obviamente, é preciso sublinhar que o nacionalismo recuperado por Ernesto


11 Araújo nada pode oferecer ao Brasil atual. Seu enfoque, conforme expresso no artigo
12 “Trump e o Ocidente”, que lhe projetou, é de extração entreguista, pois associa o destino
13 do Brasil ao destino dos EUA. Ao interpretar equivocadamente a potência imperialista e
14 o Brasil como paladinos da defesa da civilização judaico-cristã ocidental e de igual
15 dimensão no sistema internacional, desconsidera-se que os EUA sustentam sua grandeza
16 sobre os escombros da destruição da América Latina, e que tanto mais avança quanto
17 mais o Brasil se comporta como algoz de seus vizinhos e retransmissor das práticas
18 imperialistas capitaneadas desde Washintgon.

19 Precisamente por isto, a política externa brasileira comporta-se, sob Bolsonaro, de


20 maneira errática. No discurso, pretende seguir os passos do rechaço à governança global
21 que emana dos EUA; na prática, a classe dominante internamente necessita da ordem
22 liberal para reproduzir a dependência e o subdesenvolvimento de maneira funcional ao
23 seu feitio. Assim, entre sinalizações simbólicas nos fóruns internacionais e recuos
24 concretos exigidos pela burguesia interna, o Brasil se apresenta diante da encruzilhada da
25 transição entre a ordem liberal e o novo cenário que se desenha no imperialismo
26 contemporâneo.

27 De qualquer modo, ao recorrer aos regimes de extrema-direita, a burguesia não


28 tem garantido vida confortável para seus projetos políticos. Pelo contrário, nos países
29 imperialistas, atualmente, a tônica é a instabilidade política. Donald Trump enfrenta um
30 processo de impeachment nos Estados Unidos, o parlamento do Reino Unido foi fechado
31 por 60 dias pela Rainha, um conjunto de eleições antecipadas sendo convocadas a todo
32 momento na Espanha para garantir mínima governabilidade (além do acirramento da luta
88

1 separatista da província da Catalunha), a solidez da Alemanha de Angela Merkel é posta


2 à prova, protestos de massa – e cada vez mais radicalizados, contra a retirada de direitos
3 trabalhistas e previdenciários – nas ruas da França marcaram os últimos anos desta
4 segunda década do século XXI. A Áustria organizou eleições antecipadas em 2019 e a
5 Itália busca fazer o mesmo.

6 Precisamente por isto, os países imperialistas apertam o torniquete de seu recurso


7 supremo: a captura da riqueza dos países periféricos. Organizada desde o centro e
8 plenamente articulada com a classe dominante nos países periféricos, a ofensiva
9 imperialista apresenta uma agenda agressiva de radicalização da retirada de direitos e
10 garantias fundamentais da classe trabalhadora dos países pobres. Apenas no ano de 2019,
11 pelo menos uma dezena de países pelo mundo viveu situação de revolta social com
12 repercussão internacional7.

13 Caráter peculiar nestas manifestações tem expressão na ilha de Hong Kong.


14 Pertencente ao imperialismo inglês até 1997, o território é a principal forma de conexão
15 do monumental excedente em valor produzido pelo sudeste asiático com o capitalismo
16 ocidental, sob a forma de seu sistema financeiro. Os países centrais do capitalismo
17 ocidental procuram formas de acentuar o fluxo desta riqueza em direção a suas economias
18 e, em virtude disso, alimentam rebeliões populares há mais de 6 meses na Ilha, em busca
19 da desestabilização do governo de Pequim e possibilitando maiores graus de autonomia
20 à província. Não são poucas as evidências de que o imperialismo inglês e estadunidense
21 financiam e potencializam as manifestações em Hong Kong, tratando o território como
22 parte de seu processo de captação de mais-valia em escala global8. Ainda que haja
23 clamores de recorte legítimo e em defesa dos trabalhadores, nenhuma ilusão, portanto,

7
O Iraque, devastado por mais de uma década de intervenção estadunidense, tem sua população nas
ruas contra a corrupção, o desemprego e a decadência dos serviços públicos; o Líbano viveu a renúncia
do governo em 2019 e são muitas as manifestações contra o sistema político atual, até a escolha de um
novo governante; situação semelhante viveu a Argélia no início de 2019, quando o mandatário do País
deixou o poder após 20 anos; o Irã, além de pressionado pelos EUA a não se aproximar ainda mais de
Rússia e China, enfrenta mobilizações de massa contra o aumento dos combustíveis; no Congo, as
manifestações populares direcionam-se sobretudo às forças da ONU que ocupam o território; na Guiné
Bissau eclodem lutas contra o governo articuladas por forças da oposição; no Sudão a população sai às
ruas exigindo o fim de um governo militar e a transferência para civis; na Indonésia são milhões de pessoas
nas ruas protestando contra a reforma do código penal e a corrupção no País, de recorte conservador e
punitivista , além de movimentos separatistas da província de Papua. Na Índia, leis discriminatórias com
relação à concessão de cidadania no País também despertam manifestações de massa.
8
Fazem parte deste cenário de intervenção imperialista organizações como a National Endowment for
Democracy,o Instituto Nacional Democrático de Assuntos Internacionais, a Human Rights Watch, o
Instituto Internacional Republicano, a Freedom House, entre outras.
89

1 deve alimentar a esquerda de que Hong Kong se movimenta por razões humanas em
2 nome da liberdade e da democracia.

3 Se de um lado, os países centrais são impelidos a relativizar seus regimes


4 democrático-burgueses mediante uma série de medidas não-convencionais, na periferia
5 capitalista a burguesia latino-americana não vacila em cancelar despudoradamente as
6 democracias restringidas inauguradas nos anos 80, após a derrocada das ditaduras
7 militares. À esquerda, é preciso ter claro que a crise capitalista demanda um novo tipo de
8 regime político para viabilizar a drenagem de mais-valia em direção aos países
9 imperialistas. É o que se observa no cenário latino-americano, onde a ofensiva
10 contrarrevolucionária promovida pela burguesia faz a região explodir em manifestações
11 populares.

12

13 2.3- O esgotamento da ordem liberal na América Latina e o imperativo


14 revolucionário

15 Na América Central e no Caribe, a ofensiva estadunidense tem como


16 consequência imediata uma explosão no número de imigrantes que partem em direção ao
17 território dos EUA e a desestabilização de seus respectivos governos. Não por outra razão,
18 Donald Trump propõe um acordo migratório junto à Guatemala e procura conter o
19 número de imigrantes já no próprio país, não sem massivos protestos contra a medida 9.
20 Em Honduras, as manifestações se dirigiram contra o presidente, enfraquecido perante as
21 massas e acusado de envolvimento com o narcotráfico. No Haiti, a queda do presidente
22 diante das lutas populares denota a incapacidade do imperialismo de conter a histórica
23 tradição rebelde da primeira nação independente da América Latina, numa revolução
24 comandada pelos negros escravizados. Sempre tolhido da possibilidade de
25 autodeterminação, o Haiti subleva-se uma vez mais em busca de seu próprio destino.

26 No Peru, o presidente Martín Vizcarra apresentou uma proposta de reforma


27 política ao Parlamento que, entre outras coisas, alterava o modo de nomeação dos
28 ministros da Suprema Corte do país. A medida, segundo o presidente, tornava-se
29 necessária diante de um Congresso corrupto e comandado por empresas estrangeiras,

9
O acordo obriga os migrantes que atravessam o País em busca de asilo nos EUA a requerem-no ali, sem
possibilidade de fazê-lo nos Estados Unidos depois.
90

1 como a brasileira Odebrecht. A solicitação de Martín Vizcarra deflagrou embates com o


2 parlamento, que destituiu o presidente e alçou a vice ao posto de mandatária. Em menos
3 de 24h, a nova presidente renunciou e Martín Vizcarra voltou a ser o chefe do poder
4 executivo, ainda que sob ataques também do Poder Judiciário. A lição peruana ao Brasil
5 é a seguinte: nas ruas, os protestos populares manifestam maior apoio ao presidente que
6 se insurge contra a ordem institucional vigente do que o oposto.

7 No Equador, a crise fez com que o presidente Lenin Moreno realizasse um acordo
8 com o Fundo Monetário Internacional. A contrapartida, exigida pelo Fundo, foi a de que
9 Moreno realizasse cortes de investimentos públicos e revogasse os subsídios aos
10 combustíveis que vigoravam há mais de 40 anos no país. Subserviente à agenda
11 implementada desde Washington, a revogação da medida feita por Lenin moreno levou a
12 um súbito aumento de mais de 100% nos preços dos hidrocarbonetos no país. O plano do
13 Fundo era desincentivar o consumo interno e favorecer a injeção de Petróleo no mercado
14 internacional, incrementando a oferta e visando reduzir os preços para as potências
15 imperialistas. Em reação, a população equatoriana saiu às ruas em protestos que foram
16 duramente reprimidos pelas forças policiais do País e o presidente decretou Estado de
17 Exceção, transferindo temporariamente a capital do país para o reduto conservador de
18 Guayaquil. O protagonismo das lutas populares no Equador ficou a cargo da
19 Confederação Nacional dos Indígenas do Equador, a CONAIE. Após sucessivos
20 protestos, a população equatoriana conseguiu reverter o aumento e a implementação da
21 agenda recessiva ao País. O grande diferencial da CONAIE foi a não capitulação sob
22 nenhuma circunstância com a tentativa de Rafael Correa, ex-presidente do país, de
23 aproveitar-se do momento de protesto popular e tentar faturar politicamente sobre o
24 desgaste de Moreno, seu ex vice-presidente. A firme posição da CONAIE em não se
25 deixar confundir com a tentativa oportunista de Rafael Correa fortaleceu o movimento
26 contra o aumento dos preços, fazendo com que o apreço popular acumulado radicalizasse
27 a luta e fizesse Lenin Moreno recuar de suas medidas.

28 No Chile, o governo do homem mais rico do país, Sebastian Piñera, enfrentou a


29 ira popular contra a elevação do custo de vida, manifesta no aumento dos preços das
30 passagens de metrô em Santiago. Mas para além disso, o aumento dos preços do
31 transporte foram o estopim para 40 anos acumulados de uma agenda ultraliberal que
32 privatiza em todas as esferas do serviço público: desde a saúde e a educação até o extremo
33 da previdência social, com o modelo de capitalização completa promovido pelas
91

1 Administradoras de Fundos de Pensão (AFP’s). Tais circunstâncias levaram a população


2 chilena a explodir em protestos de massas no ano de 201910. Revela-se, desta forma, uma
3 contraposição entre o Chile ideologicamente constituído para se configurar como o
4 paraíso das liberdades de mercado e um país mergulhado por completo numa condição
5 de dependência e subdesenvolvimento, em que metade de sua receita de comércio exterior
6 depende das exportações de cobre, cujos preços internacionais se depreciaram
7 enormemente na última década.

8 A encruzilhada pela qual hoje passam os chilenos é enorme: o regime de Augusto


9 Pinochet assassinou mais de 40mil pessoas, entre elas, muitos dirigentes partidários,
10 sindicais e populares. Mesmo com o retorno ao regime democrático, grande parte das
11 lideranças havia desaparecido, o que desarmou a luta social no Chile por longos anos. Em
12 2019, a grande insígnia dos chilenos nos dias atuais é “Chile despertó”. A principal
13 referência política das manifestações é a recuperação da bandeira Mapuche, remetendo
14 aos povos originários da região. A posição é sintomática e expressa o profundo descrédito
15 para com as lideranças populares tradicionais do Chile atual. Há enorme rechaço dos
16 partidos políticos, sindicatos tradicionais e movimentos populares em geral.

17 A esquerda liberal brasileira vê nas manifestações chilenas um prelúdio do que


18 será o Brasil de amanhã, esgotado das reformas de Paulo Guedes e do programa
19 ultraliberal. No entanto, pode-se também desenhar no processo chileno atual, a depender
20 das circunstâncias, um Chile de hoje que remeta ao Brasil de ontem, mais precisamente
21 de 2013, quando a falta de condução política em direção à radicalidade pela esquerda
22 acabou canalizando a maior parte da insatisfação popular dos protestos de rua nas
23 mãos da extrema-direita.

24 O Chile atual é uma incógnita. Algumas lideranças sindicais, por fora do modelo
25 tradicional, procuram dar mais ares de radicalidade ao processo. As forças tradicionais do
26 liberalismo de esquerda, sobretudo no Partido Socialista de Michele Bachelet, não gozam
27 de qualquer apreço popular, pois tiveram seu prestígio consumido ao se revelarem meros
28 administradores da caótica ordem burguesa por dois mandatos presidenciais, sem

10
A primeira-dama do país, Cecília Morel, protagonizou duas frases emblemáticas em um áudio vazado
durante o período das manifestações chilenas que expressam a condição contemporânea do País: em
primeiro lugar, disse que se sentia como se um grupo de alienígenas tivesse invadido o país; na sequência,
afirmou: teremos que abrir mão de nossos privilégios. O próprio presidente Piñera traduziu muito bem o
cenário em pronunciamento à televisão: Estamos em guerra com um inimigo poderoso.
92

1 qualquer pretensão de superá-la definitivamente. O indicativo de uma nova constituição


2 somente poderá se configurar como avanço para a maioria da população chilena se a
3 direção do movimento dos trabalhadores encaminhar os movimentos populares para
4 balizar a luta política e pautar a Carta Magna em defesa dos trabalhadores chilenos. O
5 movimento atual do capitalismo não comportará facilmente a abertura de conquistas de
6 serviços públicos para acesso aos chilenos se não houver muito embate, consciência e luta
7 dos trabalhadores.

8 A derrota da Frente Ampla nas eleições do Uruguai revelou os limites das políticas
9 de coalizão de esquerda sem enfrentamento radical das bases que estruturam o
10 capitalismo dependente. Foram 15 anos acumulados de políticas de administração da
11 ordem burguesa, tendo como principais legados a regulamentação do uso da cannabis e a
12 legalização do aborto. São pautas progressistas, mas incapazes de transformar a
13 correlação de forças políticas em favor da classe trabalhadora. José Mujica nunca se
14 declarou favorável à liberalização das drogas e sempre sustentou que esta era uma medida
15 experimental para enfrentar a escalada dos indicadores de violência no Uruguai,
16 sobretudo nesta década. Também o custo de vida e os indicadores econômicos
17 depreciados aceleraram o descrédito sobre o modelo de governo da frente ampla no País,
18 fortemente ancorado em exportações de carnes e laticínios.

19 Pois bem, os indicadores de violência no Uruguai seguiram subindo e apontando


20 para uma radicalização política que passou a ser interpretada pela direita no país. Não por
21 outra razão, o primeiro turno das eleições no Uruguai ficou dividido não só entre as entre
22 as candidaturas à presidência de Daniel Martínez da Frente Ampla e Luís Lacalle Pou do
23 Partido Nacional (blancos), mas também um plebiscito que acentuava o punitivismo penal
24 no país e estabelecia profundas reformas em termos de segurança pública, tais como:
25 criação de uma guarda nacional com cerca de 2000 militares aposentados,
26 impossibilidade de responder em liberdade para acusados de crimes hediondos e
27 aprovação da prisão perpétua revisionável para todos aqueles condenados a mais de 30
28 anos de reclusão. Vencidas as eleições pela coalizão de direita, muito provavelmente estas
29 mesmas pautas, derrotadas por muito pouco no plebiscito, retornarão à pauta na política
30 uruguaia.

31 Na Argentina, retorna ao governo a centro-esquerda com Alberto Fernandez e


32 Cristina Kirchner e muito pouco os trabalhadores daquele país tem a comemorar. O novo
93

1 ministro da economia argentina é de extração neoliberal e já descartou qualquer mudança


2 estrutural na conduta do país. Em função da crise capitalista nos países centrais, qualquer
3 tentativa de administrar a ordem burguesa na América Latina sem contestações radicais
4 não levará a uma melhor situação da classe trabalhadora argentina.

5 Muitos brasileiros no liberalismo de esquerda também se entusiasmaram com o


6 resultado das eleições argentinas. No entanto, há que se pontuar diferenças fundamentais
7 entre os processos políticos dos dois países na década passada. Por mais que o liberalismo
8 de esquerda predomine em ambos os casos, Néstor e Cristina Kirchner realizaram
9 enfrentamentos em pelo menos 3 magnitudes que o petismo jamais ousou em realizar no
10 Brasil. Em primeiro lugar, apropriou-se de parcela da renda da terra do latifúndio por
11 meio da política das retenciones; em segundo lugar, realizou o controle do sistema de
12 câmbio, ainda que tímido e parcial, defendendo a especulação contra a moeda local; por
13 fim, enfrentou o monopólio da imprensa argentina, numa briga contra o Grupo Clarín,
14 detentor de mais de 300 licenças de concessão para rádios, jornais, revistas, internet e
15 televisão no país, além da propriedade da cadeia de produção de papel. Esta memória de
16 lutas, combinada ao desastroso governo do empresário e liberal de direita Maurício Macri,
17 projetou a centro-esquerda para uma vitória nas urnas em 2019. Pouca semelhança este
18 movimento guarda com o Brasil, onde o petismo perde aceleradamente a disposição e,
19 sobretudo, a capacidade de comandar grandes lutas populares. As massas no Brasil já não
20 depositam esperança num eventual governo petista, que hoje só consegue mobilizar
21 pessoas pelo medo do que a extrema-direita possa apresentar.

22 Esta também é a razão pela qual Andres Manuel Lopez Obrador, no México, não
23 poderá oferecer respostas satisfatórias a todas as urgentes demandas populares de seu
24 povo. Tentará fazer o seu melhor sem revogar a vigência do Acordo de Livre Comércio
25 com os Estados Unidos, sem o qual não há saída possível para a população mexicana. Sua
26 juventude e classe trabalhadora camponesa seguirá refém dos carteis de tráfico de drogas
27 que impõem uma lógica de terror sobre a população mexicana. AMLO esgotará sua
28 reputação diante da impossibilidade de se praticar uma política conciliatória no estágio
29 atual do capitalismo.

30 Em 194 anos de República, a Bolívia teve 88 governos (entre juntas civis e


31 militares) e 68 presidentes, o que deixa o país como sendo um dos mais instáveis
32 politicamente na América Latina, com média de 1 novo governo a cada pouco mais de 2
94

1 anos. Evo Morales, eleito em 2006, experimentou 13 anos de uma administração


2 aparentemente tranquila, que conseguia reunir e manter grandes conquistas sociais,
3 parecia imune às quedas dos preços internacionais dos bens agrícolas e minerais e
4 sustentava indicadores econômicos sólidos. Estes fatores eram completados por uma
5 configuração políticaque parecia infalível: um presidente indígena, sindicalista cocaleiro
6 e líder do Movimento Al Socialismo (MAS), acompanhado de um intelectual marxista
7 que nunca desprezou a teoria para buscar compreender os rumos do processo boliviano.

8 Bastou uma controvérsia em relação às eleições na Bolívia em 2019 e a ofensiva


9 imperialista dos EUA se revelou implacável. Articulações expressas junto a militares,
10 órgãos da diplomacia estadunidense e o empresariado do país impetraram um processo
11 de pressão política gigantesca contra os mandatários bolivianos. Diante dos ataques
12 promovidos por Washington e a burguesia boliviana, o governo de Evo Morales
13 simplesmente abandonou o projeto que havia tocado por 13 anos em pouco mais de 3
14 semanas. Evo, Álvaro Garcia Linera e toda a linha oficial de sucessão renunciou. O
15 projeto boliviano atingiu seu horizonte inexorável e se esgotou, pois não ofereceu de fato
16 uma proposta de tomada do poder pela classe trabalhadora... O processo de golpe de
17 Estado na Bolívia veio locupletado pela classe dominante de forma implacável, num
18 avanço que reuniu os setores reacionários das forças armadas e o fundamentalismo
19 religioso mais vil. Caiu por terra o chamado governo dos movimentos sociais, tese que o
20 ideólogo do regime, Álvaro Garcia Linera, sustentava como modelo de radicalização da
21 democracia a ser seguido por todos os países do continente. A ele e seus partidários, nada
22 restou fazer senão atribuir o processo político de assalto ao poder pela elite boliviana ao
23 elemento de racismo contra os indígenas que, notadamente existindo e sendo um
24 elemento que reforça a condição de ataque a Evo Morales, é absolutamente insuficiente
25 para traduzir o que significou o fracasso de seu governo.

26 Toda esta segunda década dos anos 2000 foi de sucessivos ataques ao processo da
27 Revolução Bolivariana na Venezuela. Desde a morte de Hugo Chávez, sobretudo, o país
28 sofre os mais violentos ataques do imperialismo estadunidense. Particularmente o ano de
29 2019 foi o mais acintoso em termos de violência estrangeira contra a Venezuela, pois o
30 ano se iniciou diante da real iminência de um ataque militar ao território venezuelano no
31 sentido de depor o presidente Nicolás Maduro, colocando o processo político venezuelano
32 sob suspeita e buscando inviabilizar a seu novo mandato.
95

1 Há inúmeras debilidades, falhas, excessos e problemas graves envolvendo a


2 Venezuela atual. No entanto, não é possível emitir qualquer juízo de valor a respeito do
3 processo político venezuelano e a Revolução Bolivariana sem considerar os ataques
4 promovidos pelo imperialismo, comandados desde os Estados Unidos e articulados para
5 sufocar a economia do país e gerar caos social. Bloqueio de contas correntes
6 internacionais, confisco das reservas do país em moeda estrangeira, inviabilização das
7 transações externas venezuelanas por parte dos países centrais, boicotes comerciais de
8 todo tipo e de toda ordem. Hoje em dia, a Venezuela caminha a passos largos para se
9 configurar como um território que está sob um bloqueio criminoso por parte dos Estados
10 Unidos e das forças imperialistas somente comparável àquele já executado há anos contra
11 Cuba.

12 Como grandes legados, a Venezuela declara à América Latina que, mesmo sob
13 circunstancias dramáticas e com enorme sacríficio de seu povo, é possível resistir às
14 investidas do imperialismo. É inegável que a despeito das limitações mais do que
15 evidentes do governo de Maduro, desde a época em que o presidente Chávez comandava
16 a Revolução Bolivariana, as massas trabalhadoras jogam um papel protagonico sem o
17 qual qualquer regime político na América Latina teria sucumbido ao brutal bloqueio
18 promivido pelo imperialismo estadunidense.

19 A Revolução Brasileira só se concretizará a partir de um diagnóstico do cenário


20 internacional. Só assim será possível compreender em que estágio do capitalismo
21 internacional nos encontramos. Além disso, a avaliação criteriosa de todos os chamados
22 “governos progressistas” da América Latina permite-nos perceber que somente os
23 processos revolucionários são aqueles que realmente subsistem e conseguem oferecer
24 saídas concretas à vida dos trabalhadores.

25 Todos os governos que na década passada alimentaram a ilusão de que seria


26 possível garantir conquistas duradouras e permanentes à classe trabalhadora na América
27 Latina passam por crises intensas nos tempos atuais e grande parte deles hoje está fora do
28 governo. Papel particular neste caso teve o Brasil, que preferiu investir na equivocada
29 concepção de que seria possível, no cenário internacional, aplicar uma política externa
30 multilateral, quando a condução adequada para o real enfrentamento da dependência e o
31 subdesenvolvimento no Brasil e na América Latina deve ser de extração antiimperialista.
32 Ao não assumir esta posição protagônica, de fiel da balança do enfrentamento latino-
96

1 americano ao imperialismo, o Brasil permitiu que a todo o acúmulo de forças políticas da


2 década passada, dado sob condições internacionais extraordinárias, fosse sublimado,
3 colocando em risco mesmo as experiências mais avançadas nas outras nações latino-
4 americanas11.

5 Tanto o liberalismo de esquerda (Uruguai, Bolívia, Equador) quanto de direita


6 (Chile, Colômbia, Peru) dão sinais de que não são capazes de solucionar a crise capitalista
7 na América Latina. A burguesia latino-americana, por sua vez, já tem um plano para o
8 continente. A ofensiva sobre a Venezuela, o golpe de Estado na Bolívia, o terrorismo de
9 Estado na Colômbia e o recurso ao Estado de Exceção no Equador e no Chile demonstram
10 que não há espaço para os regimes democráticos liberais e republicanos na América
11 Latina, salvo quando os países centrais assim o permitem. Como a conjuntura de crise
12 capitalista exige um regime político de novo tipo, o cenário de ataques frontais aos
13 direitos históricos dos trabalhadores começa a comandar a tônica do continente.

14

15 3- ESTRATÉGIA E TÁTICA DA REVOLUÇÃO BRASILEIRA

16

17 “E a revolução no Brasil será proletária, ou não será revolução...”


18 (II Congresso da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária,
19 1962).
20

21 Para a elaboração de uma estratégia e tática marxistas da revolução em nosso país


22 – e, por consequência, em nosso continente latino-americano – não basta o simples

11
Neste aspecto, as experiências de fortalecimento do Mercosul, criação da Unasul, constituição do
Conselho Sul Americano de Defesa e encerramento das negociações com a Alca, por exemplo, só
avançaram na medida em que não contrastaram estruturalmente com os interesses do capital
monopolista dos países centrais. O Mercosul fortalecido, na prática, significa o paraíso das negociações a
baixo custo das multinacionais automobilísticas; a Unasul definhou até seu desaparecimento, esvaziada
pelo próprio Brasil; as Forças Armadas mais aparelhadas, mas sem uma doutrina emancipadora atuavam
e atuam sob o condão de Washington, enquanto a Alca foi substituída pela estratégia dos BRICS. Esta
articulação, na prática, liquidou qualquer chance de avanço da integração latino-americana. A criação do
Banco do Sul, por exemplo, foi preterida em nome do Banco dos BRICS, que não garante a solidez das
moedas da região. Além disso, não há integração logística e de infraestrutura autônoma na região, não
se organizou uma política de comunicação independente - recorde-se que o Brasil, sob os governos
petistas, não quis reproduzir aqui o sinal da Telesur. Em detrimento de uma política externa voltada para
a superação de dependência e subdesenvolvimento, o multilateralismo da estratégia brasileira não teve
como saldo mais do que garantir a abertura de espaço para a entrada dos chineses na cobiça pelo
excedente produzido na região.
97

1 abandono das propostas que demonstraram sua ineficácia por meio da atuação dos
2 partidos de esquerda e/ou experiências socialistas que se apresentaram como
3 revolucionárias, no mínimo, desde o século passado. No momento atual, mais do que
4 nunca, é preciso tomar a radicalidade da revolução socialista como transição, sem
5 tergiversar com quaisquer modalidades de “revoluções populares”, “revoluções
6 democrático-burguesas”, “revoluções nacional-democráticas”, e assim por diante.

7 A pergunta a ser feita, em plena década de 20 do século XXI, continua sendo: qual
8 o caminho e o caráter da revolução brasileira?

9 A solução passa pela proposição da estratégia da transição direta ao socialismo,


10 sem o caráter etapista que permeou a maioria das formulações num passado recente. Uma
11 revolução, portanto, de caráter socialista radical e não meramente o chamado “socialismo
12 democrático” que, além de esterilizar a categoria revolução, serviu de simulacro a toda
13 uma geração autonomista e descentralizadora do papel da classe operária, defendido
14 especialmente a partir dos anos 1980 no país.

15 A proposta de transição socialista passa também pelo papel do nacionalismo


16 revolucionário, tão marcante na experiência latino-americana – e que deve
17 necessariamente inspirar a revolução brasileira – pois tem importância fundamental na
18 estratégia socialista no país e no continente. Ademais se não cabe dúvida sobre a vocação
19 universal das revoluções proletárias, tampouco devemos ignorar seu conteúdo nacional.
20 Cada experiência revolucionária socialista é única, e precisa encontrar o seu caráter e o
21 seu caminho, tal qual o brado leninista ecoava há quase um século: não “russifiquem” a
22 Internacional Comunista! Finalmente, tendo clareza de que socialismo é transição e não
23 uma finalidade em si mesma com vistas à constituição futura (e universal) de uma nova
24 forma de produção da existência humana: o comunismo.

25 3.1- O caráter da revolução brasileira

26 A revolução brasileira está em curso. Ela decorre da crise do sistema político


27 brasileiro e das transformações do desenvolvimento capitalista dependente em sua fase
28 rentística. A resposta da classe dominante a essa crise pode ser vista pela eleição do
29 protofascista Bolsonaro a presidência da republica; no entanto, também o fenômeno
30 Bolsonaro deve ser considerado a partir das necessidades da dominação burguesa num
31 tempo de crise e incerteza. A coesão burguesa que nos governa fez uma opção clara ao
32 eleger Bolsonaro e seguir apoiando de maneira decidida seu governo. Nesse contexto, é
98

1 preciso considera-lo como parte da contra-revolução que as distintas frações de classe


2 não vacilaram em acionar para manter o domínio burguês.

3 Isso significaria dizer que nos encontramos diante de uma situação revolucionária
4 ou às vésperas de sua eclosão, na qual as condições para a instalação de um sistema e de
5 um governo socialista já estaria dado? Não. Mas significa constatar que não há mais lugar
6 no país para “governos democráticos”, atuando nos limites da ordem burguesa e de
7 regimes de democracia restringida. Portanto, a natureza da Revolução Brasileira é
8 socialista, isto é, um processo revolucionário que subverta as estruturas do país de forma
9 a reorganizá-la conforme as necessidades históricas da classe trabalhadora.

10 O domínio imperialista mundial não será resolvido dentro das bases da estrutura
11 burguesa capitalista da qual é a própria expressão, como afirma Lenin. Não basta,
12 portanto, atuar em movimentos anticapitalistas. A luta anti-imperialista também é
13 fundamental, mas – ainda assim – sem uma proposta de revolução socialista, fica
14 incompleta. Uma revolução não pode ficar no meio do caminho, produzindo apenas sua
15 própria caricatura: não cabem dúvidas, ou revolução socialista ou caricatura de revolução,
16 conforme advertiu Che Guevara. A história já demonstrou o drama das profundas reações
17 contrarrevolucionárias a que foram levados os países que não radicalizaram seus
18 processos.

19 A revolução socialista se apresenta como uma convocação, um objetivo, na


20 medida em que o ciclo das revoluções burguesas, mesmo tal como existiu de forma
21 limitada nas condições latino-americanas, esgotou-se como fator de progresso social. A
22 rigor, pode-se afirmar que nunca tiveram essa particularidade na história latino-
23 americana. Nosso continente, e consequentemente o Brasil, não tiveram burguesias que
24 pudessem vivenciar, geneticamente, as chamadas tarefas democráticas de caráter político
25 e muito menos efetivar uma autonomia econômica, como ocorreu nos processos inglês
26 (1648-88), francês (1789) e estadunidense (1776). A formação do imperialismo como
27 fase superior do capitalismo no fim do século XIX impediu quaisquer alternativas para
28 essas burguesias, que não a de seu subdesenvolvimento e dependência em relação aos
29 países centrais, resultado do processo de acumulação primitiva de capital que pautou o
30 continente desde pelo menos o século XVI. As lutas de “libertação nacional” no
31 continente, desde a gênese, adquiriram caráter de enfrentamento ao imperialismo,
32 portanto jamais foram burguesas na acepção estrita da palavra. Além disso, nunca houve
99

1 de fato na América Latina qualquer possibilidade de manutenção de regimes social-


2 democratas. Aqui, tanto as democracias restringidas quanto o terrorismo de Estado
3 sempre foram a tônica do domínio burguês (subdesenvolvido e dependente), sobre as
4 massas trabalhadoras por meio da superexploração do trabalho e da repressão: a oposição
5 burguesa é dirigida unicamente contra o sistema de distribuição da mais-valia produzida
6 pelo proletariado do continente, do qual o imperialismo leva a melhor parte, ou seja, a
7 miséria latino-americana é a miséria da própria sociedade capitalista. A burguesia nativa
8 busca melhorar tão somente sua posição na colaboração com o imperialismo.

9 Portanto, nunca houve possibilidade objetiva de processos políticos no Brasil


10 completarem as tarefas burguesas que observamos nos países centrais, fato agravado pela
11 inexistência de burguesias propriamente nacionais na atual ordem econômica mundial.
12 Há, na verdade, apenas frações de classe totalmente dependentes da orquestração
13 econômica imperialista que define o mundo contemporâneo, sem os entraves (para o
14 capital) de uma coexistência de dois blocos antagônicos, como ocorria até a derrocada
15 dos regimes do leste europeu e da União Soviética, nos idos de 1989-92. Este importante
16 aspecto histórico é com frequencia negligenciado nas elaborações estratégicas e táticas
17 da esquerda brasileira – da mesma forma que é completamente ignorado pelo
18 progressismo latino-americano – como meio de alimentar as ilusões do liberalismo de
19 esquerda em contemplar as maiorias nos marcos da ordem burguesa.

20 Por incrível que possa parecer, apesar de seu esgotamento, em alguns setores da
21 esquerda liberal ainda habita um clamor pelo nacional-desenvolvimentismo, como se
22 pudesse existir uma fração industrial da burguesia “nacional” que já desistiu há muito
23 tempo de ser a protagonista de um processo de “industrialização autônoma” no país – se
24 é que um dia o quis. Portanto, a defesa do nacional-desenvolvimentismo significa
25 objetivamente aprofundar a dependência e perpetuar o subdesenvolvimento, tão ao gosto
26 do imperialismo. Desde a chamada “questão agrária” até às “tarefas democráticas”, há
27 uma série de problemas que a sociedade burguesa em decadência não tem como
28 solucionar na América Latina, e, consequentemente, no Brasil. Portanto, a rejeição total
29 da democracia como valor universal é imperativa para a retomada, com força de classe,
30 da estratégia da revolução brasileira.

31 A centralidade operária ou do trabalho segue sendo decisiva para a Revolução


32 Brasileira tal como ilustramos na nova configuração do regime de classes em nosso país.
100

1 Foi precisamente em função desse revisionismo, bastante forte nos anos 1980 que, no
2 Brasil, alimentou grande parte das ilusões do PT como também do PSDB, os dois
3 principais partidos da ordem que, finalmente, configuraram o sistema petucano que as
4 ultimas eleições canceleram para sempre. No caso do PT, “trabalhador vota em
5 trabalhador”, mas não faz revolução. Apenas “vota”.

6 No entanto, não adianta fazer tão somente uma profissão de fé revolucionária. É


7 preciso atuar em consequência. Para os marxistas, as possibilidades históricas e, portanto,
8 os objetivos de um determinado processo revolucionário têm que ser definidos com toda
9 a clareza programática. Em suma, não basta contentar-se com estratégias de “poder
10 popular” ou de “revolução popular”, normalmente maquiadas sob a pecha de uma
11 proposta “democrático-popular”. Normalmente o “popular” adquire contornos de rejeição
12 à explicitação da questão operária, como se fosse algo antigo e fora de moda na esquerda
13 que precisa “rever” a categoria de proletariado, tão ao gosto dos acadêmicos da sociologia
14 do trabalho. A revolução socialista só pode ser realizada pela intervenção das massas
15 populares, sem dúvida. Porém, a condução de vanguarda não está nos movimentos
16 “sociais”, mas com o proletariado – a classe que é a base da estruturação capitalista. Neste
17 sentido, não cabem dúvidas sobre o protagonismo da classe operária.

18 Na sociedade capitalista – insistiu Lenin mais de uma vez – já não podemos falar
19 de povo genericamente. O povo se divide em classes, que se comportam conforme os
20 interesses sociais criados pela sociedade capitalista. Daí que não podemos escamotear sob
21 a alcunha de “popular” o que tem definição de classe, materialmente configurada, na
22 contraposição inalienável do capitalismo, que é capital versus trabalho.

23 Normalmente essa “perspectiva popular” parte de movimentos e lutas de fato


24 importantes em suas especificidades, para chegar tão somente – por meio da formação de
25 “frentes” – ao objetivo de apoio a governos supostamente populares, como se usou e
26 abusou no caso dos governos petistas, levando a uma verdadeira paralisia da classe. A
27 imensa regressão política e organizativa dos trabalhadores nas ultimas décadas revela
28 com dramaticidade essa verdade histórica.

29 A perspectiva revolucionária não pode se limitar em conquistar governos, mas


30 inclui, necessariamente, um projeto de tomada de poder, com vistas à realização de um
31 governo de transição, estabelecendo as táticas para uma ruptura com o sistema. Neste
32 sentido, não basta a esquerda ter uma postura anticapitalista e anti-imperialista, tem que
101

1 ser revolucionária. Nas condições atuais, quando a crise do sistema político nacional
2 aliado a imensa crise econômica levam o conflito social para a lógica das situações
3 extremas, a luta por constituir governos deve, necessesariamente, supor uma estratégia de
4 tomada do poder político.

6 3.2- O caminho da revolução brasileira

7 Para estabelecer o caminho da revolução brasileira é importante discutir: a)


8 autonomia da classe, vanguarda e papel do partido revolucionário, onde serão destacadas
9 as três linhas táticas de atuação da RB como organização revolucionária; b) processo
10 revolucionário, ruptura e governo de transição.

11
12 a) Autonomia da classe, vanguarda e papel do partido revolucionário:

13 Não há revolução sem teoria revolucionária. A negligência das esquerdas


14 contemporâneas sobre o papel da vanguarda na teoria da revolução brasileira não é
15 gratuita. Corresponde a uma minimização – ou muitas vezes um abandono total –da
16 centralidade da classe operária. Mas outra negligência igualmente grave é o
17 desconhecimento sistemático da teoria e da prática contrarrevolucionárias. É sabido que
18 subestimar a posição e a teoria do inimigo – neste caso, inimigo de classe – é meio passo
19 para a construção de uma estratégia ineficaz contra ele. Os desastres táticos oriundos de
20 estratégias equivocadas já ceifaram, inadvertida e dramaticamente, muitas vidas de
21 revolucionários carregados de boas intenções.

22 Por isso temos insistido na necessidade urgente de apresentar um diagnóstico


23 político e econômico da crise atual no Brasil, sua natureza especifica, sem a qual
24 permaneceremos impossibilitados de estabelecer uma estratégia de transição socialista.
25 Nessa transição, a autonomia da classe, a vanguarda e o papel reservado a construção do
26 partido revolucionário são partes inalienáveis da construção da revolução brasileira.

27 Se já não podemos falar de povo genericamente porque ele se dividiu em classes,


28 nosso problema mais urgente é estimular a consciência de classe do proletariado. O
29 caminho para isso é dissipar ilusões e explicitar os interesses de classes existentes no
30 capitalismo, por meio de uma fundamentação teórica, mostrando as consequências
31 práticas, vale dizer, políticas dessa teorização. Para tanto, é necessário estimular o
102

1 pensamento crítico às suas últimas consequências, e insistir no horizionte socialista de


2 nossa revolução social.

3 O carácter socialista da revolução Brasil foi uma das causas fundamentais do


4 surgimento da nossa organização política, Revolução Brasileira (RB), outra, não menos
5 decisiva, é a sua definição proletária. Nesse contexto, é preciso captar claramente o
6 sentido de totalidade para não alimentar ilusões muito presentes nas lutas parciais, todas
7 elas derivadas de contradições reais e próprias da sociedade capitalista – tais como a luta
8 das mulheres, dos negros ou as lutas em defesa do meio ambiente – incapazes por si
9 mesmas de operar transformações radicais em nossa sociedade.

10 Nesse sentido, a revolução socialista significa uma mudança no domínio de classe


11 representada pela derrubada do poder político burguês, tendo como polo fundamental
12 dessa relação o protagonismo da classe historicamente explorada. Os trabalhadores agora
13 sabem mais do que nunca que as possibilidades de encontrar perspectivas para sua
14 libertação por meio de eventuais reformas da atual sociedade são, de fato, inexistentes. O
15 progressismo latino-americano – do qual os governos petistas constituem a versão
16 brasileira do fenômeno – são incapazes de atender as grandes demandas derivadas da
17 miséria e exploração de milhões de trabalhadores, particularmente acentuadas na América
18 Latina e, especialmente agudas, na fase rentista do desenvolvimento capitalista periférico.
19 Essa é uma das razões pelas quais afirmamos que a Revolução Brasileira esta em curso
20 da mesma forma que insistimos na construção de uma vanguarda política capaz de
21 estabelecer uma referência crítica para milhões de trabalhadores que não mais acreditam
22 em mudanças no interior do sistema atual. Aqui se apresenta o terreno histórico que requer
23 um novo radicalismo político somente possível a partir de uma vanguarda capaz de captar
24 o sentido histórico das trasnsformações em curso. Portanto, cabe precisamente ao
25 proletariado tomar para si a luta pela conquista do poder e liderar o processo
26 revolucionário que abolirá toda propriedade privada da produção, bem como lutará pela
27 emancipação de todas as classes oprimidas.

28 O reconhecimento da centralidade da classe operária na revolução brasileira


29 obriga os revolucionários a compreensão do que faz e pensa a classe operária hoje, e a
30 existência concreta do proletariado em todas as suas dimensões. Por isso, ao contrário de
31 certa sociologia do trabalho que navega sem inibição nas filas da esquerda, descrevemos
32 anteriormente o que é para nós a classe operária hoje. Não ignoramos as atuais condições
103

1 da acumulação capitalista dependente no país e a posição da classe operária dentro dela.


2 Em consequência, não aceitamos acriticamente conceituações como precariado,
3 uberização, terceirização que – a despeito de serem esforços teóricos com algum mérito
4 para entender a situação atual – que acabam caindo na “novidade” da tese, que podem
5 levar ao desvio da centralidade do trabalho de forma definitiva e, claro, aprofundando a
6 esterilização do caráter revolucionário de suas proposições. Nesse sentido, todo cuidado
7 teórico é pouco no mar de revisionismo da teoria das classes sociais que permeia de forma
8 mais aguda a contemporaneidade desde, pelo menos, os acontecimentos mundiais do
9 Maio de 1968, especialmente em sua versão francesa.

10 A hegemonia do proletariado na Revolução Brasileira exige como tarefa imediata


11 imposta pela grave crise conomica e política do capitalismo dependente rentístico no
12 Brasil a superação de um obstáculo decisivo: o fim das ilusões da luta no interior do
13 sistema e a mais completa independência de classe do proletariado. Trata-se, obviamente,
14 de uma tarefa de dimensões históricas pois tanto as ilusões quanto a independência de
15 classe eram limitações importantes no período pré-1964 quanto no chamado processo de
16 redemocratização de 1979, quando a perspectiva revolucionária é desvalorizada e
17 abandonada. Portanto, a chamada “colaboração” de classes na antiga estratégia
18 democrático-burguesa (predominantemente pecebista), bem como da – ainda pior –
19 “conciliação” de classes na estratégia “democrático-popular” (predominantemente
20 petista), são as duas ultrapassagens definitivas que urgem no programa de uma revolução
21 brasileira para o século XXI.

22 É importante destacar que, no processo de transformação da classe em si em classe


23 para si, a radicalização das massas ocorre, na maioria das vezes, por motivos de ordem
24 econômico-salarial. O processo de radicalização não quer dizer, necessariamente,
25 conscientização, pois na tradição que defendemos, sem um partido revolucionário não se
26 completa o processo de transformação da classe em si em classe para si. Não por acaso,
27 as teorias autonomistas e anti-vanguardistas do já referido Maio de 1968 – ou mesmo as
28 mais contemporâneas, como a dos mandatos coletivos que subordinam a luta parlamentar
29 a uma atuação em prol de movimentos localizados – desvalorizaram a forma partido e a
30 forma sindicato. No entanto, a História demonstra que essas novidades são, de fato, muito
31 antigas, pois há muito ecoou nas filas do socialismo o brado segundo o qual “o movimento
32 é tudo, o objetivo final é nada” cujas consequências para a luta socialista foram tão
33 trágicas.
104

1 A formação de uma classe operária independente, com seus naturais aliados – os


2 trabalhadores do campo e as camadas radicais e proletarizadas das classes médias – não
3 pode ser confiada à ação espontânea da história, mas por condições objetivas, associadas
4 inalienavelmente às condições subjetivas – a vanguarda revolucionária – que pode vir a
5 se tornar o partido político do proletariado E o partido surge na medida em que a classe
6 operária fornece os quadros para integrá-los e segue a sua orientação na luta. O processo
7 de formação da classe operária independente está estreitamente ligado ao surgimento do
8 partido revolucionário da classe operária e o progresso deste reflete o amadurecimento da
9 classe operária.

10 Na medida em que toda estratégia necessita estabelecer objetivos imediatos e de


11 longo prazo, da mesma forma que necessariamente parte de condições objetivas, a
12 Revolução Brasileira (RB), como organização revolucionária, concentra no momento – e
13 deverá intensificar – todas as suas forças e militantes na orientação nacional em torno de
14 três linhas táticas de atuação: a linha sindical (envolvendo o maior número de militantes
15 da RB com atuação sindical em categorias estratégicas para a realidade brasileira); a linha
16 do movimento estudantil; e a linha de atuação como corrente revolucionária num partido
17 de tendências, que é o PSOL.

18 Independentemente do fato de que a situação esteja ou não madura para lançar a


19 palavra de ordem da revolução socialista, de que as classes exploradas estejam ou não
20 prontas para acatá-la, esse aspecto da questão se relaciona com as tarefas da vanguarda
21 revolucionária, da sua estratégia e tática a seguir. A RB, no atual momento de sua
22 construção, atua com vistas às necessidades da construção de uma vanguarda
23 revolucionária e seus respectivos quadros. Entende que um partido revolucionário é
24 construção que se realizará em consequência da atuação cosnciente das vanguardas.
25 Organizar o proletariado em partido político demanda a penetração da teoria
26 revolucionária nas massas para transformar-se em força material. Portanto, a eventual
27 dicotomia entre partido de quadros versus partido de massas não é, no presente momento,
28 a discussão fundamental para a RB, como organização política, embora faça parte
29 inalienável do horizonte sobre o qual se construirá futuramente a revolução brasileira.
30 Isso porque a questão da concentração de forças não é um princípio do marxismo: trata-
31 se de um problema de relações de forças e do grau de amadurecimento do proletariado.
105

1 Ocupar um espaço de radicalidade de esquerda no atual processo brasileiro não


2 significa negar os aspectos táticos que estejam vinculados e “acumulando” forças na luta
3 no país. Em princípio, apoiamos todas as lutas “parciais”, todo movimento que ajude de
4 fato a objetivos socialistas, quer dizer, nossa estratégia está atenta a aspectos táticos que
5 visem garantir melhor posição da classe trabalhadora para a sua luta pela revolução
6 socialista. É preciso, antes de mais nada, que a classe trabalhadora dissipe suas ilusões
7 frente às ideologias burguesas do reformismo, além de combater o revisionismo típico de
8 uma pseudo-esquerda que atua como porta-voz das ideologias burguesas em suas próprias
9 fileiras. Nesse sentido, não partimos da premissa que, na atual conjuntura, uma derrubada
10 do governo Bolsonaro seja algo que conduza a uma solução socialista imediata; tal
11 objetivo não corresponderia à atual fase da luta de classes no Brasil. O processo
12 revolucionário exige trabalhar sua estratégia e tática. Nenhum salto nesse nível de
13 qualidade pode ser dado de imediato. Implica momentos de ruptura de acordo com um
14 programa da revolução brasileira.

15 Isso instaura o problema do governo de transição.

16

17 b) Processo revolucionário, ruptura e governo de transição

18 A possibilidade um processo de ruptura com a atual ordem foi inaugurado no


19 Brasil com a destituição da presidente Dilma e a eleição do proto fascista Bolsonaro. No
20 momento, esta ruptura aparece como exaustão do sistema polítio corrupto que a classe
21 dominante consolidou após a democratização do país. O auge de legitimação do sistema
22 político da classe dominante ocorreu durante a vigência da polarização entre tucanos e
23 petistas, o sistema petucano. No entanto, por força das próprias determinações inerentes
24 a sua lógica, o sistema foi gradual e inexoravelmente esgotando-se. A destituição de
25 Dilma sem que o petismo convocasse o povo para a defesa do mandato presidencial
26 evidenciou até para os mais devotos adeptos da consciência ingênua o grau de
27 comprometimento do PT, Lula e Dilma com o sistema político corrupto que nos oprime.

28 A direita brasileira operou ainda nos marcos do sistema político atual o primeiro
29 nível de ruptura ao enterrar para sempre o sistema petucano mas, na mesma medida,
30 obstaculizou o proletariado de avançar nessa direção. Nesse contexto, para desencadear
31 o processo de efetiva ruptura, o proletariado e seus aliados teriam que enfrentar a coesão
106

1 burguesa que já não podia mais sustentar o sistema político atual, ainda que a revolução
2 socialista não esteja na ordem no dia.

3 Portanto, a antiga exigência de vincular as ruptura dentro da ordem com a ruptura


4 contra a ordem – essa de caráter socialista – foi uma vez mais adiada e, em certa medida,
5 reforçou o poder da coesão burguesa.

6 Também nesse contexto é essencial exclarecer a realação entre a questão


7 democrática e a revolução socialista. No terreno concreto da América Latina, a revolução
8 democrática somente se estabelece com a ruptura com a ordem burguesa e jamais como
9 seu prolongamento! Portanto, os bordões do liberalismo de esquerda que reproduzem a
10 consciência ingênua apostando na “radicalização da democracia”, na “defesa da
11 instituições e conquistas democráticas”, entre outras bugigangas ideológicas tão caras ao
12 espirito republicano burguês dominante, não fazem menos do que entorpecer a
13 consciência crítica e se constituem como inimigos da revolução brasileira. Uma revolução
14 democrática que não toque radicalmente na propriedade dos meios de produção sempre
15 será uma farsa e, antes que uma condição para a luta socialista, se transformará num
16 obstáculo para o avanço da consciência socialista.

17 Uma vez mais cabe enfatizar que a entrada do país no terreno concreto de uma
18 etapa revolucionária não implica em afirmar que a situação esta madura para que os
19 trabalhadores avancem de imediato para sua concretização mas alerta para o fato de que
20 a luta pelos governos requer desde já uma estratégia para a conquista do poder político.
21 Eis o terreno concreto da transição para o socialismo! É preciso que a esquerda reconheça
22 antes de apontar para as dificuldades inerentes a qualquer correlação de forças que no
23 Brasil – e também em larga medida em outros países latino-americanos – o retrocesso
24 intelectual e político é imenso quando comparado com o grau de consciência da esquerda
25 latino-americana observado na revolução boliviana de 1952, na Cubana de 1959, na
26 Nicaraguense de 1979 e, finalmente, na Revolução Democrática Bolivariana iniciada com
27 o golpe cívico-militar encabeçado por Hugo Chávez em 4 de fevereiro de 1992. A análise
28 desses processos evidencia, de uma maneira ou outra, a relação entre a conquista de
29 governos e seu estreito vinculo com a conquista do poder político e a transição ao
30 socialismo!

31 A conjuntura brasileira produzida pela crise do sistema político e o avanço do


32 desenvolvimento capitalista de caráter rentístico atualizou de forma dramática o tema da
107

1 transição, razão pela qual qualquer governo que não conte com fracasso seguro diante da
2 consciência e tremendas demandas populares, terá que assumir um caráter socialista e
3 disputar a consciência das massas desde uma perspectiva revolucionária.

4 Até agora – com pequenas variações – esta decisiva reflexão foi obstaculizada a
5 partir de considerações conjunturais – especialmente vinculadas a tematização da
6 correlação de forças – e, portanto, mais revelam o raquitismo do diagnóstico da esquerda
7 do que lucidez para enfrentar a disputa política. A cada momento emergia contra a
8 necessidade da ruptura por parte da esquerda o argumento do “acumulo de forças”, das
9 chamadas “condições subjetivas”, do “ descolamento dos partidos de sua base”, do “poder
10 da direita brasileira” como meio de interditar a reflexão que já esta sendo exigida pela
11 crise que condena milhões de trabalhadores ao abismo social. Em cada disputa eleitoral
12 o debate sobre a revolução, a transição ao socialismo, a crítica ao sistema político, a
13 denuncia da corrupção moral e política do liberalismo de esquerda era adiado, deixando
14 o monopólio da crítica para a direita. Ainda hoje, há simulação de da “crítica” à
15 conciliação de classe do representado pelo petismo com o cínico resgate de “seus aspcetos
16 positivos” e a constante e fals alegação que o “anti petismo é uma arma da direita”.

17 Levando em conta as particularidades brasileiras, num processo revolucionário, a


18 constituição de um governo de transição teria o caráter de um “governo revolucionário
19 dos trabalhadores”, a ser formado por uma frente de trabalhadores da cidade e do campo.
20 Este governo se faz necessário, primeiramente, para assegurar a direção política das
21 massas e para garantir a execução das transformações políticas pelas quais se fez a
22 revolução.

23 Tal governo de transição, pressuposto de uma ruptura revolucionária anterior, não


24 poderá ser exercido no “modelo” do sistema dos três poderes da “república” burguesa,
25 que deverão ser neutralizados e eliminados. O fim do sistema bicameral importado dos
26 Estados Unidos – e a corresponde extinção do senado – para dar apenas um exemplo, são
27 absolutamente indispensáveis para o processo de transição. Esse governo precisaria
28 apoiar-se diretamente nas organizações de massas dos trabalhadores e obviamente, teria
29 que contar com força no interior das forças armadas rumo à construção de um exército
30 popular,

31 Tamanha radicalidade desse processo de transformação social terá como resposta


32 uma forte repressão pelo aparelho militar de Estado, hoje mais do que nunca a serviço
108

1 das classes dominantes e com decisiva influência dos Estados Unidos. A violência atual
2 da guerra de classes é que nos mata hoje como trabalhadores. E, lembrando Franklin de
3 Oliveira, sanguinária não é a revolução, mas a reação. Sanguinária, violenta, é a
4 contrarrevolução, que não recua ante o emprego da violência e da selvageria para
5 restabelecer privilégios já de si odiosos. É sabido também que, chegada a necessidade
6 desse momento de enfrentamento, existirá um momento militar em que a força dos
7 trabalhadores e seus aliados terá que contar com apoio entre os militares. Embora aqui
8 não seja espaço para uma discussão aprofundada sobre esse processo, é preciso ter clareza
9 sobre sua necessidade futura, principalmente se consideramos que esta constitui um dos
10 meios pelo qual as massas solucionam seus conflitos históricos, como são tantos os
11 exemplos latino-americanos desde a Venezuela de 1992 até o Equador de 2001.
12 Antecipando-se a isso e levando-se em conta a extrema importância que as organizações
13 militares podem desempenhar num processo revolucionário – na qual inscrevemos os
14 militares nacionalistas e revolucionários que aos milhares existiam no período pré-64 –
15 torna-se elemento estratégico da revolução brasileira a construção anterior de uma
16 aproximação com as Forças Armadas e polícias, compreendendo-as como parte
17 integrante da classe trabalhadora.

18 Os moldes e o caráter desse governo de transição são os pressupostos socialistas


19 que o guiam, desde a ruptura revolucionária do processo de tomada de poder. Essa é a
20 característica principal que distingue o “governo revolucionário dos trabalhadores” dos
21 governos “populares” e “democráticos” que, sob rótulo radical, procuram salvar e
22 conservar o aparelho estatal burguês, ao invés de governar contra ele. Esse erro pode levar
23 à contrarrevolução e à perda de todo o processo revolucionário desencadeado
24 anteriormente. A conservação do aparelho estatal burguês não leva à transição socialista
25 senão a derrota de governos com orientação popular como é caso clássico da renúncia de
26 Evo Morales na Bolívia. A auto-definição de um “governo dos movimentos sociais” foi
27 absolutamente impotente diante da ofensiva mais que anunciada da direita naquele país
28 como também da atuação desinibida da embaixada de Washington na condução do
29 processo.

30 Nos termos do debate clássico, o governo de transição não é um poder socialista


31 nem a ditadura do proletariado, assim como a democracia revolucionária não se identifica
32 com a democracia burguesa. Representa uma encruzilhada no caminho revolucionário.
33 Caso esse governo se limite aos métodos de democracia burguesa, ou tenta restabelecê-
109

1 la, apenas deixa em aberto os caminhos para a restauração do poder burguês. Trata-se,
2 nesse sentido, de superar a democracia burguesa vigente.

3 Este período de transição não pode ser desenhado aqui nos seus mínimos detalhes
4 sem incorrer em grande medida tanto em repetições canônicas quanto idealizações inúteis
5 que ignoram a originalidade das revoluções. Contudo, desde a derrubado de Jacob Arbenz
6 na Guatemala em 1954 quanto as lições emandas da Revolução Cubana de 1959 indicam
7 que não devemos ter qualquer consideração em relação ao sistema político corrupto que
8 sofremos e sua completa incapacidade de renovação nos marcos da ordem atual.

9 No tocante a isso, apenas a título de exemplo – já que a revolução cubana jamais


10 pretendeu “exportar” seu modelo de revolução – registre-se que, mesmo depois da
11 insurreição vitoriosa, o governo revolucionário tentou primeiro expropriar somente os
12 capitalistas estrangeiros, deixando intacta a economia de mercado. Viu-se forçado em
13 seguida a expropriar sua própria burguesia para não pôr em perigo todo o processo
14 revolucionário. A importância primordial da revolução cubana foi ter criado esse fato
15 consumado nas lutas de classes da América Latina, um novo ponto de partida para seu
16 processo revolucionário, e delineou seu objetivo histórico.

17 Portanto, o governo de transição se justifica e se impõe:

18 a) em um momento da luta de classes em que as massas já se encontram em


19 rebelião contra a velha sociedade, mas ainda não alcançaram as consequências
20 práticas para enfrentar a construção de uma nova;
21 b) quando ainda não está compreendido que, para garantir a expropriação das
22 propriedades imperialistas, é necessário também expropriar, econômica e
23 politicamente, a própria burguesia;
24 c) quando não está compreendido ainda que, para acabar com a exploração e a
25 miséria, é necessário trocar as relações de produção com toda sua
26 superestrutura, isto é, justifica-se e impõe-se em um momento em que já há
27 rebelião contra a ordem burguesa, mas essa rebelião se dá ainda dentro do
28 quadro ideológico burguês herdado da velha sociedade;

29 Como consequência, será a própria agudização das contradições sociais durante o


30 governo de transição e o papel impulsionador que a vanguarda revolucionária
31 desempenhará em seu meio, o único modo de elevar a consciência das massas
32 trabalhadoras ao nível necessário para uma revolução socialista.
110

1 O governo de transição não representa uma solução social a longo prazo, seu
2 tempo de vida está limitado, de um modo natural: nenhuma classe operária pode governar
3 por muito tempo com base em uma estrutura social burguesa capitalista, ou seja, é
4 necessário acelerar a transição, dando o passo decisivo rumo a um governo com
5 hegemonia dos trabalhadores sob pena de ser vencido pela própria dinâmica econômica,
6 cedendo lugar à reestruturação burguesa e imperialista.

7 O papel que o governo de transição desempenhará – importante porque decidirá


8 se situações potencialmente revolucionárias desembocarão em transformações sociais ou
9 serão contornadas pela classe dominante – estará na dependência direta da possibilidade
10 de esse governo mobilizar e se apoiar nas massas trabalhadoras e da situação da classe
11 que teoricamente representa a força matriz e hegemônica do próprio processo
12 revolucionário: o proletariado. Isso quer dizer que todo processo revolucionário depende
13 do nível e dos rumos que as atividades das vanguardas estão tomando atualmente no
14 país.

15 Para desempenhar o papel de vanguarda hoje não bastam profissões de fé sobre


16 objetivos socialistas, ou o “socialismo democrático” como resposta a herança das lutas
17 socialistas dos últimos séculços. Tal recurso, na prática, transformou-se num meio de
18 rejeição da proposta socialista mascarada de autonomismo democrático, desviando a
19 classe operária de sua centralidade: a centralidade do trabalho contra o capital.

20

21 3.3- A importância estratégica do nacionalismo revolucionário

22 Uma das contribuições decisivas que o pré-1964 deixou foi a consciência de que a
23 tática e a estratégia da Revolução Brasileira passam necessariamente pela elaboração de
24 uma teoria do Brasil. Isto é, uma teoria que nos guie na compreensão da configuração
25 das classes sociais, do estado, da economia e da cultura num país da periferia capitalista
26 latino-americana com as especificades brasileiras. Afinal, a maneira como ocorre a
27 formação e a reprodução econômica e cultural de um povo é fundamental para apreender
28 suas dinâmicas particulares e reações mais prováveis a processos políticos. Faz-se crucial
29 esclarecer desde o início que a divisão entre “alta cultura” e “baixa cultura”, ou entre o
30 erudito e o popular, tal como a conhecemos hoje, é algo relativamente recente e de certa
31 maneira coincide com os processos nacionais de aburguesamento social. Grosso modo, o
32 regime de assalariamento estabelece um crescente espectro de renda, o que, por sua vez,
111

1 igualmente estabelece um número crescente de estilos de consumo baseados nessa


2 diferenciação de renda - a força de aparente fragmentação do capital também incide sobre
3 a produção cultural de um país. Essa distinção social interminável historicamente
4 produziu abismos entre o que e como se desenvolvem sensibilidades estéticas ao ponto
5 das grandes metrópoles terem se tornado verdadeiros shopping centres culturais,
6 oferecendo quase de tudo. Contudo, vista na sua totalidade, as distintas expressões
7 culturais são impulsos do mesmo fenômeno: o modo, ou a forma, de vida em que
8 vivemos. Trocando em miúdos: desde a mais complexa até a mais simples, todas as
9 manifestações culturais de um povo carregam em si suas misérias e suas esperanças, suas
10 derrotas e suas resiliências; o melhor do erudito e o verdadeiramente popular sempre
11 apresentam contaminações mútuas, pois existe um desejo, ora mais ora menos consciente,
12 de reencontro, que o imperialismo cultural faz de tudo para cientificamente impedir ao
13 projetar uma unidade na divisão do proletariado.

14 Uma teoria do Brasil implica, portanto, uma atenção teórica especial a todos os
15 elementos constitutivos do espaço nacional, sem negligenciar suas relações com o
16 mercado mundial. Tal imbricamento entre o nacional e o internacional já nos fornece
17 características fundamentais da estrutura de classes por aqui, a saber, se por um lado o
18 proletariado pode ser considerado externo, porque a mais-valia obtida da superexploração
19 local se realiza no mercado externo e é remetida primeiramente aos centros
20 metropolitanos do sistema para só então irrigar a economia brasileira com o que sobra
21 desse repasse, por outro lado, a burguesia que se constitui no Brasil pode ser vista
22 meramente como interna, uma vez que é uma classe dominante dominada e caudatária
23 em relação às burguesias estrangeiras centrais. Já no âmbito da formação cultural, o que
24 se observa é, historicamente, uma constituição mais sólida como que servisse de
25 compensação simbólica e psicológica para a miséria material que o subdesenvolvimento
26 e a dependência geram; isso significa que até muito recentemente, a cultura nacional foi
27 valorizada e vista como meio privilegiado de produção de uma coesão territorial. Porém,
28 já há algum tempo, a agudização do subdesenvolvimento e da dependência tem exercido
29 uma pressão sobre a arte e a cultura nacionais de tal forma que os enlatados importados
30 pela indústria cultural interna têm ganhado cada vez mais proeminência ao ponto de terem
31 comprometido a própria produção e circulação do erudito e do popular nacionais. Há de
32 se dizer, no entanto, que a intervenção na vida nacional por meio da indústria cultural não
33 é um fato que diz respeito apenas ao financiamento por parte de capitais estadunidenses,
112

1 que culminaram na fundação da Rede Globo em 1965. Desde pelo menos a chegada do
2 rádio no Brasil dos anos 1920 e da TV nos anos 1950 pode-se encontrar correias de
3 transmissão do imperialismo cultural que vão desde comportamentos, vestimenta, gostos
4 estéticas até hábitos alimentares, especialmente porque a implementação desses aparelhos
5 de telecomunicações de massa no território nacional não visavam o rompimento com a
6 dependência, o subdesenvolvimento ou tampouco apontavam para a libertação nacional
7 e a conquista de soberania por parte do proletariado brasileiro. Ao contrário, embora a
8 instalação dessas máquinas e equipamentos no Brasil, e não do Brasil, tenha sido
9 fundamental para a cristalização de uma unidade nacional mais abstrata - através de
10 símbolos, imagens, chavões etc. -, elas, seguindo o modelo de universidade consagrado
11 com a fundação da USP em 1934, jamais foram prioritariamente orientadas para auxiliar
12 na formação de uma consciência nacional em relação à urgência do país romper com a
13 posição subalterna na ordem internacional. Por fim, não se pode perder de vista que o
14 imperialismo cultural - cujas manifestações mais evidentes em um país como o Brasil são
15 as universidades e a indústria cultural, que vivem de importar ideologias dos centros
16 metropolitanos e exportar cérebros - parte do desenvolvimento científico e tecnológico
17 da manutenção da atual divisão internacional do trabalho.

18 Essa tendência à estrangeirização do panorama cultural brasileiro – desde hábitos


19 alimentares até o urbanismo das pequenas, médias e grandes cidades, passando pelos
20 padrões de composição musical, pelo audiovisual e pela economia linguística – não é um
21 fenômeno completamente novo, mas se acentuou substantivamente graças ao encontro
22 das últimas necessidades globais de reprodução do capital com o desenvolvimento
23 técnico das telecomunicações. Não se trata tampouco do ordinário intercâmbio, a um só
24 tempo, material e cultural entre os diferentes povos, pois o balanço está crescentemente
25 desfavorável, consolidando o Brasil como uma máquina exportadora de matérias-primas
26 e cérebros, e importador não apenas de mercadorias com todos os níveis de densidade
27 tecnológica, mas fundamentalmente de ideologias em geral.

28 Foi por ter isso em mente que Antonio Gramsci buscou trabalhar as noções de
29 nacional e popular, principalmente com o intuito de forjar uma hegemonia diante da
30 ofensiva fascista na Itália dos anos 1930. Colocado de modo mais simples, o marxista
31 italiano percebeu que, diferentemente do que acontecia nos países de objetivação pioneira
32 do capitalismo na Europa – a Inglaterra e a França –, na Itália não havia artistas e
33 intelectuais nacionais (que tivessem alcançado um nível de qualidade de modo que
113

1 fossem alçados ao panteão nacional) e que, ao mesmo tempo, conseguissem se formar no


2 seio das massas italianas. Em outras palavras, o nacional-popular nasceria do entrechoque
3 dialético do culto e do inculto, da tradição gestada no processo de formação nacional, que
4 contaria com os feitos mais notáveis de uma determinada nação, com certa
5 espontaneidade e ingenuidade do popular. Pode-se dizer que o nacional-popular seria uma
6 maneira de organizar os intelectuais e a cultura de tal maneira que não perdessem de vista
7 o imperativo de se formar em conjunto com o movimento de trabalhadores, gerando,
8 assim, as condições para a emergência do que ele viria a chamar de intelectuais orgânicos
9 da classe trabalhadora italiana. A relevância da formação e da organização de intelectuais
10 orgânicos à classe trabalhadora, para Gramsci, estaria no fato de que um dos requisitos
11 para que toda a classe essencial na produção econômica tome para si o poder político, é
12 igualmente necessário que ela forje uma ou mais camadas de intelectuais que lhe darão
13 “homogeneidade” e consciência da própria função e centralidade. Em suma, o intelectual
14 orgânico não é só aquele que se move em direção ao proletariado, mas decisivamente
15 aquele que também está organizado em um partido revolucionário de modo a dar
16 consequência ao seu trabalho e a eliminar a exterioridade entre intelectuais e classe
17 trabalhadora, daí a insistência no termo orgânico. Na mesma direção, o marxista peruano
18 José Carlos Mariátegui indicou de maneira clara a importância da análise crítica e da luta
19 no terreno cultural para firmar as bases de um processo revolucionário, superando a força
20 da indústria cultural metropolitana que na atualidade ganhou ímpeto jamais visto em
21 nossa historia.

22 No Brasil, escritores como Graciliano Ramos, Jorge Amado e Dias Gomes podem ser
23 enxergados como expoentes dessa tentativa, ora mais ora menos consciente, de se
24 construir um nacional-popular à brasileira. Graciliano Ramos encontrou na brutalidade
25 da situação das massas brasileiras a determinação da própria linguagem dos seus escritos,
26 desenvolvendo, desse modo, uma narrativa fortemente reduzida ao necessário e, muitas
27 vezes, até mesmo ao silêncio da desarticulação linguística que a miséria e a fome impõem
28 aos seres humanos. A eloquência do indivíduo embebecido por sua dita autonomia e
29 supostamente dono do seu próprio destino – forma objetiva do romance – no Brasil
30 cederia espaço à desagregação e ao instinto. Jorge Amado, por sua vez, encontrou esse
31 elo com o povo brasileiro de maneiras distintas, notadamente por via da incorporação da
32 informalidade da linguagem, da gíria e do olhar atento para o conhecimento popular
33 acumulado e compartilhado presente na esperteza para viabilizar a sobrevivência,
114

1 sobretudo no contexto urbano. Por fim, Dias Gomes teria se aproximado das camadas
2 populares brasileiras ao incorporar o exame da metafísica religiosa, a qual persiste como
3 elemento praticamente onipresente de norte a sul e de leste a oeste do país. Nos três casos
4 citados, houve igualmente uma aproximação prático-política, já que é notória a militância
5 comunista deles.

6 Já na passagem dos anos 1950 para os anos 1960, o nacional-popular como cultura
7 política alcançaria seu patamar mais radicalizado através da conjunção entre Partido
8 Comunista, movimentos populares (UNE), intelectuais engajados (sociólogos,
9 dramaturgos, etc.) e a linguagem teatral. A mais-valia vai acabar, seu Edgar (1960) com
10 texto de Oduvaldo Vianna Filho (ex-Arena), direção de Chico de Assis (ex-Arena),
11 colaboração de Carlos Estevam Martins (ISEB) e os estudantes do Centro Popular de
12 Cultura ligado à UNE é um bom exemplo de como ocorrera a transição da tematização
13 da situação dos pobres para a tentativa de esclarecimento militante a respeito de aspectos
14 da teoria marxista, notadamente o conceito de mais-valia absoluta. Deve-se mencionar
15 também que todo esse processo teve consequências valorosas para a elaboração estética,
16 já que Revolução na América do Sul (1960) de Augusto Boal conscientemente rompe
17 com os paradigmas formais do drama burguês - abandonando a reprodução da visão de
18 mundo burguesa sedimentada naquelas formas consolidadas de se fazer teatro - e avança
19 rumo a um teatro épico. Em outras palavras, o caldo de cultura que a importação do
20 nacional-popular proporcionou também se traduziu em uma união deveras profícua que
21 deu qualidade política à arte e qualidade artística à militância política. Entretanto, o salto
22 estava sobretudo na percepção de que não era mais suficiente devolver a marginalização
23 do proletariado brasileiro pela via da fruição estética, mas que era necessário explicar de
24 onde brotava e como funcionava aquela superexploração da força de trabalho,
25 instrumentalizando a própria linguagem artística para auxiliar no trabalho de agitação e
26 propaganda políticas. Nesse mesmo período, não por acaso, surgem os Cadernos do povo
27 brasileiro que articulam-se com movimentos populares, intelectuais, artistas e partidos
28 políticos. Por mais ambiciosas e bem-sucedidas que essas experiências tenham sido, o
29 impasse que se produziu foi a questão da agitprop sem a consequência organizativa que
30 ela pressupunha na sua circunstância de origem. Isso significa dizer que o espírito de
31 esclarecimento e de denúncia, que essas iniciativas ensejavam, dificilmente vinha
32 acompanhado de uma perspectiva de organização para a disputa efetiva do poder político
115

1 - por melhor que fossem, em maior ou menor medida, estavam dissociadas da formação
2 de um partido revolucionário que colocasse a questão do poder militar e político em pauta.

3 O programa nacional-popular, ainda assim, tinha e continua a ter uma série de virtudes
4 que devem ser resgatadas. Mencionemos, por exemplo, o fato do nacional-popular atingir
5 o peso desmedido que as discussões mais propriamente acadêmicas têm tido na
6 formulação da política partidária e dos movimentos populares nas últimas décadas. Ao
7 articular a questão da libertação nacional e uma teorização sobre a questão nacional, esse
8 programa tem o potencial inquestionável de atacar certo cosmopolitismo e universalismo
9 alienantes, os quais dinamitam as relações, que devem sempre ser estreitas, entre classe
10 trabalhadora e vanguarda.

11 Na verdade, o problema mais crucial da transposição da política do nacional-popular


12 para o Brasil é que, desde pelo menos a sua matriz italiana, pressupunha-se uma burguesia
13 nacional. Isto é, o impulso de construção nacional seria, por mais difuso que fosse, algo
14 minimamente compartilhado pelas massas proletárias e pela burguesia. Em um país
15 europeu como a Itália, isso até poderia possuir altos graus de plausibilidade, todavia, ao
16 desembarcar no Brasil, tal maneira de organizar os intelectuais e a cultura com fins
17 revolucionários acabou esbarrando em um impedimento pontuado anteriormente: devido
18 ao fato do Brasil contar com uma economia capitalista, subdesenvolvida e dependente, o
19 processo sócio-histórico contínuo de aburguesamento que se vê por aqui não inclui a
20 possibilidade ou o desejo de constituir um capitalismo autônomo e que realize tarefas
21 democráticas e econômicas para tanto. Por mais que volta e meia surjam setores de uma
22 ou outra fração da burguesia interna, que expressam um nacionalismo burguês aliado a
23 um projeto desenvolvimentista, isso não chega nem perto de ser hegemônico nessa classe
24 social que se constituiu por aqui. Portanto, se a esquerda do pré-1964 nos deixa uma série
25 de lições do maior interesse acerca do que fazer, ela também contribui na direção do que
26 deve ser dialeticamente superado e o nacional-popular de matriz italiana é uma delas.

27 O nacionalismo revolucionário é, nesse sentido, uma continuação do nacional-popular


28 e, ao mesmo tempo, uma ruptura, pois deixa desde o início por extenso que aqueles que
29 apostam em uma revolução democrático-burguesa para viabilizar a nação brasileira, estão
30 cultivando ilusões e, no limite, desconhecem um dado fundamental da estruturação da
31 burguesia no Brasil. A revolução brasileira só pode ser efetivada através de uma
32 organização dos intelectuais e da cultura ao redor do nacionalismo revolucionário,
116

1 fundamentalmente porque é a classe trabalhadora que tem verdadeiro interesse, isto é,


2 tem o que ganhar no desenvolvimento do país e no rompimento do ciclo vicioso da
3 dependência. O nacionalismo revolucionário igualmente se distingue do nacionalismo
4 burguês ou dos “programas nacionais de desenvolvimento”, pois apesar de estar na linha
5 de frente da luta anti-imperialista, não deixa de reconhecer que as frações burguesas que
6 atuam dentro dos limites do território nacional são agentes internos do imperialismo. O
7 nacionalismo revolucionário, portanto, se coloca em total oposição ao imperialismo
8 cultural nas suas mais variadas expressões permanentes e transitórias. Ao superar o
9 nacional-popular, o nacionalismo revolucionário se coloca como eixo unificador do
10 partido da Revolução Brasileira em todas as suas frentes de atuação, inclusive e
11 especialmente na orientação dos intelectuais e da cultura, no intuito de ajudar na
12 organização do proletariado brasileiro em sua tarefa histórica de realizar a revolução.

13

14 4- A NATUREZA ESPECÍFICA DA CRISE BRASILEIRA

15 A crise brasileira ganhou notável aceleração nos últimos meses. A esquerda


16 brasileira ainda não percebeu este movimento porque tampouco possui um diagnóstico
17 preciso sobre sua origem e seus desdobramentos. Em consequência, o progressismo em
18 geral e a esquerda em particular, navegam sem bússola, oscilando entre a ingenuidade da
19 luta parlamentar e manifestações puramente caricatas de “resistência”, basicamente sem
20 pressão de massas. A esquerda atua quase que exclusivamente nos marcos do calendário
21 eleitoral, alimentando ilusões sobre as possibilidades da democracia parlamentar, ou seja,
22 atuando dentro do sistema i gnorando sua grave e terminal crise. Nada poderia ser pior!

23 O evidente descompasso entre a aceleração da crise e a falta de percepção da


24 esquerda brasileira obedece a causas que alertamos há tempo: a) o desprezo pela teoria
25 nos partidos de esquerda e a ausência da uma teoria para a revolução brasileira; b) o
26 desprezo pela centralidade da luta dos trabalhadores e seu deslocamento para a defesa de
27 causas: c) o avanço da inocência política e a ascensão do cretinismo parlamentar; d) o
28 reboquismo em relação ao petismo e a Lula que não são observados como obstáculos mas
29 como aliados na luta contra a ofensiva do ultra liberalismo.

30

31
117

1 4.1- Derrota eleitoral e derrota política nas eleições presidenciais

2 A relação entre a crise do capitalismo dependente rentístico e o colapso dos sistemas


3 políticos na América Latina tem sido em larga medida desconsiderada até agora pela
4 esquerda e, especialmente, pelo progressismo. Os liberais de direita repetem o surrado
5 bordão ideológico da “crise das democracias” cujo antídoto não tem sido outro senão o
6 reforço da luta contra as tendências “totalitárias” da sociedade moderna, de tal forma que
7 o fenômeno é observado como uma ameaça à democracia e suas instituições sem qualquer
8 conexão com os interesses das classes dominantes. Por outro lado, o liberalismo de
9 esquerda tem se limitado a “estratégia” da resistência cujo resultado mais perverso não é
10 outro senão a defesa da “ordem democrática” e do “estado de direito”. Nesse contexto, a
11 consequência fatal para a esquerda latino-americana e, em especial, a brasileira, é que o
12 desgaste social produzido pela crise econômica e a rejeição de milhões de trabalhadores
13 a podridão aberta do sistema político – corrupção, violência, concentração da riqueza,
14 elevação da pobreza, etc, - tem sido quase que exclusivamente capitalizado pela direita.

15 A eleição do proto-fascista Bolsonaro é expressão eloquente tanto da ofensiva da


16 direita brasileira quanto da impossibilidade do “progressismo” oferecer uma saída para a
17 crise que se acelera. No entanto, até agora, o progressismo – e mesmo o PSOL – ainda
18 não possui diagnóstico da crise e sua aceleração. Em consequência, atua sem bússola, em
19 meio à grave crise política. No entanto, nossa tese é que Bolsonaro tampouco pode
20 oferecer uma saída para o sistema ou sua renovação nos termos tradicionais. Portanto, a
21 eleição do protofascista aprofunda a crise do sistema, razão pela qual o presidente da
22 república dobra a aposta em seu projeto de poder a cada dia e segue atuando como se
23 estivesse em campanha, acumulando forças para implantar um novo regime político.

24 4.2- A coesão burguesa

25 Uma das características mais importantes da crise atual é a força e consistência da


26 coesão burguesa que orienta os assuntos de estado e da economia. A administração
27 petucana do Plano Real é resultado e premissa da sólida aliança entre todas as frações de
28 classe – capital comercial, agrário, industrial e financeiro – no aprofundamento da
29 dependência e do subdesenvolvimento. É possível observar como as contradições
30 interburguesas são insignificantes na conjuntura atual e, de fato, não representam como
31 em outras épocas, uma possibilidade política para as classes subalternas. A coesão
32 burguesa que se consolidou a partir de 1994 atravessando os governos de FHC, Lula,
118

1 Dilma e Temer chega, finalmente, em seu epílogo: o ultra liberalismo comandado por
2 Paulo Guedes e protagonizado pelo protofascista Bolsonaro. Portanto, antes que
3 evidenciar as diferenças devemos, em primeiro lugar, observar a continuidade das
4 questões centrais e, ademais, identificar com precisão, seu conteúdo de classe. Esta
5 questão decisiva tem sido convenientemente omitida pela interpretação do liberalismo de
6 esquerda que tão somente pretende evidenciar as “diferenças” entre os últimos governos
7 em questões secundárias, particularmente no que denominam generosamente, a “questão
8 social”.

9 Desde 2016 denunciamos a guerra de classes que Temer deflagrou contra o povo
10 brasileiro sem omitir que o chamado “ajuste” promovido pelo governo petista de Dilma
11 Rousseff iniciou o processo após o estelionato eleitoral que Rousseff cometeu ao nomear
12 Joaquim Levy para o ministério da fazenda no primeiro dia de seu segundo mandato.
13 Durante o período , anunciamos repetidas vezes que a guerra de classes seria declarada,
14 fosse pela via lenta (Dilma) ou pela via rápida (Aécio Neves). A badalada sabedoria
15 petista para conciliar interesses era incapaz de conter as determinações impostas pela luta
16 de classes e a ofensiva burguesa representada pelo programa rebaixado de Dilma durante
17 a campanha eleitoral. Embora apresentados como antídoto contra a crise do capitalismo
18 e as exigências próprias de sua fase rentística, as medidas agressivas do governo Dilma
19 contra o povo eram, de fato, produto das necessidades da coesão burguesa que o petismo
20 supunha-se capaz de dirigir eternamente.

21 Portanto, a destituição da presidente Dilma, narrada como “golpe” pelo


22 petismo para ocultar sua impotência política sob a farsa da vitimização – expressou, de
23 maneira clara, a necessidade da coesão burguesa em aprofundar a dependência e adequar
24 a estrutura do estado e a política econômica às novas necessidades do capital. Nesse
25 contexto, revela-se de maneira igualmente evidente a incapacidade do PT (Lula e Dilma)
26 em representar o povo na guerra de classes. Em primeiro lugar, durante todo o processo
27 de destituição, (decorrido entre 2 de dezembro de 2015 e 31 de agosto de 2016) tanto
28 Dilma, Lula, quanto o PT foram incapazes de convocar o povo contra aquilo que mais
29 tarde o PT chamaria de “golpe contra o povo”, representado pelo documento “Ponte para
30 o futuro” do PMDB. O cálculo de Lula – sabemos hoje com clareza – era relativamente
31 simples: na próxima disputa presidencial ele voltaria ao Planalto pelo voto popular. No
32 entanto, a destituição de Dilma ocorreu sem a batalha popular, permanecendo no essencial
33 nas negociações parlamentares que, finalmente, não renderam o resultado esperado pela
119

1 irresponsabilidade e superficialidade da linha adotada pelo PT. A ofensiva burguesa foi


2 completa durante o governo Temer e segue em alta no governo de Bolsonaro. A
3 destituição de Dilma representou nos termos da consciência ingênua derivada do pacto
4 de classes que vigorava até então, imensa derrota política para o progressismo e, em nossa
5 interpretação, a evidência do fracasso histórico do PT para representar os interesses
6 populares. Era o limite histórico do progressismo, que logo se confirmaria em escala
7 continental no Equador, Bolívia, etc.

8 A vitória de Bolsonaro nas ultimas eleições presidenciais revelou algo mais grave:
9 o colapso do sistema político e da democracia representativa, ambos severamente
10 ameaçados. No entanto, a vitória da direita poderia ter assinalado algo essencial que a
11 pré candidatura do Camarada Nildo Ouriques anunciava: as ultimas eleições requeriam
12 um candidato anti-sistêmico que o progressismo era incapaz de apresentar e a esquerda
13 se recusou a fazê-lo. O PT e seus aliados – mesmo a candidatura de Ciro Gomes – estavam
14 aos olhos de milhões vinculados ao que tinha de pior do sistema político dominante; e a
15 esquerda, especialmente o PSOL, apresentou uma candidatura que fez absolutamente
16 tudo para apresentar-se como um “puxadinho do PT”, para utilizar o jargão agora popular.
17 O fracasso do progressismo não seria, não obstante, tão completo quanto o da esquerda
18 representada pelo PSOL, afinal o PT saiu com poderosa bancada eleitoral, alguns
19 governadores eleitos e, especialmente, seguiu sendo a força eleitoral que se opunha ao
20 governo eleito; nessas condições o PT mantinha uma polaridade eleitoral contra
21 Bolsonaro que segue rendendo frutos para um partido da ordem que ainda simula defender
22 o povo.

23 A antiga polaridade PT-PSDB morreu para sempre! O petucanismo – expressão que


24 se tornou de uso estendido para representar a disputa partidária e a comunhão de programa
25 econômico e político – não mais voltará. A emergência da proposta proto fascista –
26 decorrência direta das novas exigências da acumulação de capital – forçou o liberalismo
27 de esquerda a uma ainda titubeante aliança em “defesa da democracia” contra a
28 ofensiva burguesa. Mas é visível que, a cada dia, os pequenos interesses eleitorais se
29 curvam diante da necessidade do liberalismo de esquerda em construir frentes eleitorais
30 como estratégia de sobrevivência política e ilusão em manter a republica rentista nos
31 marcos da democracia burguesa, enquanto a direita e sua coesão burguesa caminham com
32 certa celeridade na redefinição do sistema político em favor de alguma modalidade de
33 estado repressivo.
120

1 Durante e ainda após as prévias que decidiram a candidatura do PSOL nas ultimas
2 eleições presidenciais, em 2018, anunciamos repetidas vezes que o terreno era fértil para
3 uma candidatura anti-sistê mica que obrigasse o partido a assumir a radicalidade da
4 conjuntura. Tal constatação deveria obrigar a esquerda na direção de uma ruptura radical
5 com o petismo, mas a hegemonia no interior do PSOL recusou esse caminho. Foi
6 precisamente esse “espaço” que Bolsonaro ocupou apresentando-se como única
7 candidatura anti-sistê mica nos marcos da disputa eleitoral e razão ú ltima pela qual
8 captou o voto de milhões de trabalhadores castigados tanto pela crise econômica iniciada
9 por Dilma quanto pelo repúdio à podridão das formas burguesas de representação
10 igualmente capturadas pela Lava Jato. O caráter anti-sistêmico da candidatura Bolsonaro
11 segue sendo marca dominante de seu governo, posto que o protofascista semanalmente
12 indica o congresso nacional, os tribunais, a mídia e a esquerda e o comunismo como
13 obstáculos intransponíveis para que seu governo possa atender à s demandas populares
14 crescentes em função do programa ultra liberal que pratica.

15 Em oposição à ofensiva da direita, a nota dominante no progressismo segue sendo


16 a “defesa da democracia” que, aos olhos de milhões, significa – e em larga medida,
17 realmente representa – tão somente a defesa de um sistema político corrupto que começa
18 com Lula e termina no vereador que rouba a merenda escolar num distante município
19 brasileiro. A redução da política à moral praticada como instrumento de dominação
20 política pela direita, cuja maior expressão é a Operação Lava Jato, encabeçada por Sérgio
21 Moro, antes de assumir o ministério de justiça – segue sendo um instrumento valioso de
22 governo na atualidade – revelou que a incapacidade crônica do progressismo encabeçado
23 pelo PT esta sustentado em algo real, cada dia mais presente para milhões de brasileiros:
24 o sistema perdeu a capacidade de auto renovação. Em consequência, a direita ataca os
25 pilares da democracia burguesa enquanto o progressismo se encontra no ridículo e
26 impotente papel de “defender a democracia” e, portanto, as instituições que o
27 sustentam.

28 Eis os fundamentos materiais e políticos da “crise da democracia”, da “onda


29 conservadora” e/ou, finalmente, da “ameaça fascista” que alternam o discurso do
30 progressismo de acordo com a angústia na alma e a manchete do jornal. A “linha” adotada
31 pelo liberalismo de esquerda muda segundo os fatos, os acontecimentos, que não
32 respondem mais a uma lógica determinada e, no limite, é supostamente incapaz de ser
33 captada pela teoria.
121

1 A interpretação do capitalismo dependente realizada pelo marxismo latino-


2 americano indica que as bases materiais do neo-desenvolvimentismo e da democracia
3 representativa estão sendo corroídos de maneira acelerada. A razão pela qual a crise não
4 respeita mais governos de distintas orientações – tão distantes como podemos observar
5 na crise do Chile encabeçada por Sebastián Piñera (direita) quanto na Bolívia de Evo
6 Morales (progressista) – é um sinal evidente que a divisão internacional do trabalho agora
7 arquivou para sempre as possibilidades de projetos desenvolvimentistas na periferia
8 latino-americana. O caráter rentístico do processo de valorização do capital cujo epicentro
9 é o mega endividamento do estado, o aprofundamento da super-exploração da força de
10 trabalho e a internacionalização da produção e do consumo em nossos países, eliminou
11 as bases de um projeto neo-desenvolvimentista já ultrapassado desde a década de
12 sessenta, embora tenha sido requentado por Ciro Gomes, recentemente e pela digestão
13 moral da pobreza de Lula segundo o qual é necessário “colocar os pobres no orçamento”
14 para fazer a máquina da economia girar. Enfim, a fórmula keynesiana não é capaz de
15 enfrentar o aprofundamento da dependência produzida pela administração petucana do
16 Plano Real alternada por FHC/Lula-Dilma.

17 A astúcia do petismo consiste em salientar as diferenças entre petistas e tucanos até


18 a última eleição e, na atualidade, magnificar o passado petista diante de Bolsonaro como
19 via conveniente para ocultar os determinantes materiais que foram gradualmente sendo
20 confeccionados ao longo dos últimos 20 anos pelo consorcio petucano! Portanto, nem a
21 emergência do protesto popular em junho de 2013, o estelionato eleitoral praticado pelo
22 PT/Dilma após as eleições de 2014 e ainda a eleição de Bolsonaro podem ser analisados
23 fora das transformações operadas pelas mudanças no estado, na economia e no regime de
24 classes desde que o Plano Real criou e desenvolveu as bases para a coesão burguesa que
25 estruturou o estado brasileiro. O caráter vulgar da analise petista – em larga medida
26 hegemônica também no PSOL – é que ignora ou faz caso omisso das determinações mais
27 profundas em curso na crise brasileira, razão pela qual a atuação do progressismo em
28 geral e da esquerda em particular confinam sua atuação no triste papel de corregedora da
29 repú blica rentista em crise e jamais de uma vanguarda que anuncia seus limites e sua
30 crise terminal.

31 É fácil constatar tal limitação nos discursos do PT, especialmente de Lula. Este não
32 faz mais do que limitar a esquerda à luta por justiça social eliminando qualquer
33 horizonte socialista que a própria dinâmica da crise exige. Por esta razão, enquanto
122

1 Bolsonaro denuncia os limites do regime, o progressismo sinaliza sua defesa; enquanto a


2 coesão burguesa avança na luta ideológica, denunciando a podridão do regime político, o
3 progressismo figura como seu principal defensor; enquanto a crise produz milhões de
4 desempregados e rebaixa violentamente os salários, o progressismo anuncia promessas
5 irrealizáveis nos marcos da ordem burguesa; e, finalmente, enquanto a coesão burguesa
6 aprofunda o caráter rentístico do processo de acumulação, o progressismo – Lula e Ciro
7 – anunciam as possibilidades supostamente ilimitadas do “neo-desenvolvimentismo” sem
8 sustento de classe entre nós.

10 4.3- Limites e possibilidades do PSOL

11 O PSOL é uma frente política que nasceu em função da crise do petismo no governo.
12 Nasceu, portanto, como criação parlamentar, no contexto da hegemonia petista no
13 movimento de massas e as organizações políticas correspondentes. Nesse sentido, não é
14 fruto de uma crise orgânica de um regime de acumulação e menos ainda de uma grave
15 crise política nacional. Ao contrário, o PSOL nasce num período de estabilidade do
16 regime burguês e de profundo pacto que limitou a consciência de classe dos trabalhadores
17 de maneira grave e profunda. O petismo é, em perspectiva histórica, a despeito de sua
18 origem e das funções construtivas que eventualmente cumpriu nos anos iniciais, um
19 partido da ordem cujo destino foi decidido há muitos anos (provavelmente na disputa
20 presidencial de 1989, a última cujo programa expressou algu m vigor político). Na
21 medida em que a coesão burguesa emanada do Plano Real foi ganhando maior definição,
22 o PT não vacilou em afirmar-se com um partido exclusivamente dentro da ordem,
23 arquivando para sempre o combate contra as determinações burguesa. Nesse vácuo, ainda
24 não ocupado por outro partido político de esquerda, o PSOL ensaiou passos na direção
25 da ruptura sem jamais lograr força de massa. No limite, o PSOL oscila entre a promessa
26 de um partido socialista de massas e o limite de figurar como consciência crítica do
27 petismo em decadência. Na prática, o PSOL nasceu para superar o fracasso histórico do
28 petismo como tentativa de superar a dependência e o subdesenvolvimento nos limites da
29 ordem burguesa mas, gradual e de maneira convicta, afasta-se das reformas e do
30 protagonismo político que teria que encabeçar para alimentar o processo da r evolução
31 b rasileira ora em curso. O PSOL recusa sistematicamente essa condição e, portanto,
32 limita-se a marcar diferenças de caráter eleitoral que o impossibilitam de cumprir funções
123

1 revolucionárias na sociedade brasileira nessa imensa crise em curso. Por essa razão,
2 seguirá sendo uma frente eleitoral com alguma influência nos movimento populares, mas
3 sem capacidade de abrir as grandes alamedas por onde passará a Revolução Brasileira. A
4 propósito, nenhum partido reúne as condições para tal projeto! A criação de um partido
5 revolucionário não encontra nesse momento uma tradução em termos legais, mas tal
6 constatação não elimina – ao contrário, exige! – a constituição de uma vanguarda política
7 capaz de formular tanto a teoria da revolução brasileira quanto de forjar uma nova práxis
8 política junto aos trabalhadores.

9 Não temos dúvida de que, no contexto da aceleração da crise que sofremos, centenas
10 e centenas de militantes buscam uma alternativa militante e orientação/formação teórica
11 para enfrentar a turbulência diária. Não por acaso a RB cresceu de maneira rápida neste
12 curto período da vida nacional, reunindo militantes de larga experiência e sangue novo
13 de centenas de jovens militantes que não vacilam em enfrentar a conjuntura e as tarefas
14 imediatas da RB. A despeito do vigor de nosso crescimento, não podemos como corrente
15 figurar com mais força do que os partidos políticos de registro legal. A disputa das prévias
16 para escolha do candidato a presidente da republica pelo PSOL revelou-se um movimento
17 que a vida confirmou correto pois foi a partir do Manifesto pela Revolução Brasileira que
18 recuperamos a discussão estratégica sobre os rumos do socialismo no país e, lentamente,
19 estamos aglutinando muitos movimentos e organizações dispostos a aprofundar a linha
20 teórica e a renovação da práxis política na direção de sedimentar uma corrente capaz de
21 influenciar decisivamente no curso da crise, especialmente quando as circunstancias
22 políticas exigirem.

23 A afirmação do PSOL como um frente política indica que não temos como propósito
24 imediato – especialmente nas condições atuais – a disputa pela hegemonia do partido.
25 Nas condições atuais, a disputa interna como projeto prioritário consumiria forças de
26 maneira inútil ou nos confinaria na luta por protagonismo parlamentar, o terreno mais
27 fértil para o cretinismo parlamentar denunciado por Marx e Engels em 1848. Temos
28 clareza de que a defesa intransigente da RB garante a nosso esforço tal distinção que
29 ninguém até agora nos confundiu com a hegemonia dominante no interior do PSOL: ao
30 contrário, precisamente por nossa destacada atuação na defesa da Revolução Brasileira,
31 temos garantido audiência multiplicada dentro e fora do partido. Esta tendência
32 certamente se fortalecerá no período que se avizinha tanto no terreno eleitoral quanto na
124

1 disputa no interior dos enormes conflitos que se insinuam no próximo ano em função da
2 crise econômica.

3 Essas determinações estruturais já estavam presentes desde o momento em que


4 Dilma foi destituída. O PSOL ignorou olimpicamente tal diagnóstico e o partido sofreu
5 imensa derrota política e eleitoral na disputa presidencial. A vitória de Bolsonaro
6 tampouco significou alerta algum para a direção majoritária que inclina o partido para
7 participação em “frentes eleitorais” que jogam o PSOL para o descrédito do sistema
8 político ao produzir alianças com o PT, sem falar no engajamento completamente
9 desgastante da “campanha” Lula Livre.

10 Nenhuma das resoluções aprovadas desde o término da disputa eleitoral no


11 diretório nacional (DN) do Partido se sustenta e, invariavelmente, são reconfiguradas
12 em direção oposta nas reuniões posteriores. A primeira realizada para balanço eleitoral a
13 fim de determinar a tática do partido nos segundo turno indicava a “luta contra o golpe
14 e o fascismo” como centralidade tática. Em maio de 2019, a ameaça fascista desapareceu
15 para dar lugar a luta contra o governo “neoliberal e conservador de Bolsonaro”. Na
16 reunião de outubro de 2019, a resolução estava embalada pela vitória eleitoral na
17 Argentina e o centro da discussão foi o anú ncio de “frentes eleitorais” carregadas de
18 otimismo com o possível desgaste do governo Bolsonaro.

19 Vale recordar aqui a derrota eleitoral e política do PSOL na disputa eleitoral. A


20 resolução do Diretório Nacional após o primeiro turno da disputa presidencial, aprovada
21 pela maioria, representa muito bem o labirinto em que se meteu o partido, que
22 nasceu para superar o fracasso histórico do petismo, mas que se recusa a “matar o pai”.
23 No essencial, trata-se de uma resolução na qual se afirmava a “vitória” eleitoral do Partido
24 e, contraditoriamente, alertava para a ascensão do fascismo no país!! Como conciliar os
25 dois fenômenos? Somente o apreço ao cretinismo parlamentar poderia supor que a
26 conquista de dez vagas no parlamento representaria uma vitória eleitoral no contexto
27 de “ascenso do fascismo”!

28 Ao contrário da feliz resolução, as últimas eleições registraram enorme derrota


29 eleitoral e ainda maior derrota política. A derrota eleitoral ficou marcada pela
30 inexpressiva votação de Boulos à presidência da repú blica, meros 0,58% dos votos
31 válidos, disparada, a pior votação na historia do partido. Ademais, em São Paulo, onde
32 ele dirige o MTST, os números são ainda mais cruéis: meros 118 mil votos quando Lisete
125

1 – candidata a governadora – recebeu mais de 507.236 votos (2,51% dos votos válidos!!!).
2 Em São Bernardo do Campo obteve melhor votação com pífios 4.252 votos, superior a
3 Sorocaba com 3,425 nú mero pífio quando comparado com a grande ocupação dos
4 sem tetos!!! O número de votos destinados a Boulos é inferior ao número de sem tetos
5 existentes nas distintas ocupações no coração burguês do país. A “tese” segundo a qual o
6 PSOL teria como candidato “o dirigente do maior movimento social no país” fracassou
7 por completo e demonstra uma vez mais que a apologia dos acadêmicos uspianos e da
8 esquerda católica à s virtudes dos movimentos sociais como meio de alcançar o
9 poder não passa de uma farsa que paralisa o partido na disputa pelo poder político.

10 No entanto, se o resultado eleitoral foi pífio, pior ainda foi o desempenho político
11 da candidatura: no geral, Boulos não passou de pretensão de “mero espirito crítico do
12 petismo” e apêndice do ausente Lula (o inesquecível “boa noite presidente Lula” do
13 debate televisivo), bloqueando o espaço que poderia ter sido ocupado por uma
14 candidatura radical que atacasse tanto o petucanismo quanto as candidaturas de direita.
15 Aquela renúncia, cuja origem não é mais do que um meio de controle político do partido
16 pela corrente majoritária, cancelou oportunidade de ouro e, mesmo que em menor medida,
17 também contribuiu para que o monopólio da crítica ao petucanismo ficasse nas mãos da
18 direita.

19 Ademais, a ausência da crítica de esquerda na disputa presidencial debilitou as


20 possibilidades futuras do PSOL e ajudou na recomposição petista agora em curso,
21 especialmente após a liberação de Lula, que não perde oportunidade para ratificar o
22 hegemonismo típico do PT em qualquer processo eleitoral. Há que compreender que o
23 PT se converteu em extraordinária má quina eleitoral, com presença na maioria absoluta
24 dos municípios brasileiros, controle de estados, enorme fundo partidário, alianças
25 empresariais e políticas, etc. No entanto, a função política do PT no sistema de dominação
26 da burguesia é precisamente a de configurar-se como ala esquerda do liberalismo
27 dominante. Não há ingenuidade possível, especialmente após a saída de Lula da cadeia,
28 pois ele jamais perde oportunidade de repetir a “estratégia de uma aliança interburguesa”
29 em que os trabalhadores não possuem qualquer protagonismo, exceto aquele destinado a
30 aparecer como eleitores nos processos eleitorais.

31 Há algo que é de fácil percepção, pois desde que deixou a cadeia em Curitiba,
32 Lula segue aferrado à política que levou ao colapso econômico do país e segue
126

1 mantendo seus eleitores cativos de uma consciência ingênua que já era nociva nos anos
2 anteriores a crise de 2008/2009 e que, nas circunstâ ncias da guerra de classes,
3 converte-se num confortável colchão de segurança para a classe dominante. A
4 aproximação do PSOL com o PT – especialmente na campanha petista Lula Livre – e a
5 orientação para construir frentes eleitorais nas eleições municipais de 2020 contra o
6 “autoritarismo e o governo neoliberal” de Bolsonaro - liquida momentaneamente as
7 possibilidades de o PSOL cumprir funções críticas e segue deixando o monopólio da
8 crítica aos desastrosos governos do PT com a direita. Ademais, para as novas gerações,
9 milhões de jovens que sofrem com baixos salários e política social raquítica – mera
10 digestão moral da pobreza – o PT segue sendo em larga medida o principal representante
11 do sistema político corrupto que nos governa.

12 Neste contexto, se para nós, revolucionários, a redução da política à moral deve ser
13 sempre denunciada (a apologia à Lava Jato é o núcleo racional dessa política), tampouco
14 podemos permanecer calados diante de uma política sem moral praticada em larga escala
15 pelo petismo nos seus longos treze anos de governo. Há, sempre, na disputa política e
16 na guerra de classes, uma disputa pela moral que não podemos desprezar sob a pena de
17 graves prejuízos para a luta socialista da r evolução b rasileira. Ora, o PT operou
18 uma profunda cisão entre política e moral, com a pretensão de conduzir os assuntos de
19 governo com “eficácia” e “realismo político”. Este procedimento não foi casual nem
20 produto do azar; ao contrário, esta escolha é produto direto de sua longa e inexorável
21 conversão a partido da ordem destinado a dirigir a política de conciliação nos marcos
22 estritos da ordem burguesa. O colapso moral do partido e de suas principais lideranças
23 era tão inevitável quanto previsível e, nesse contexto, não faltaram alertas dentro e fora
24 do PT, que anunciavam o desastre inevitável. Portanto, o recurso ao moralismo – a
25 redução da política a moral operada pela direita – somente foi possível diante do assalto
26 ao estado promovido pela burguesia nos governos petistas. Até o mais ingênuo militante
27 sabe que a corrupção é inerente às relações ultra parasitárias da burguesia e suas frações
28 com o estado e, em ú ltima instancia, afetam diretamente os governos que operam as
29 funções de estado.

30 Ademais, o engodo do chamado presidencialismo de coalizão de origem tucana


31 gozou de boa saúde nos governos do PT e a razão é simples: a conciliação de classe exigia
32 o fortalecimento da consciência ingênua segundo a qual o governo necessitava de maioria
33 parlamentar para sustentar seu projeto. O petismo, em conseqüência, dispensava assim a
127

1 mobilização popular que lhe custaria a liderança caso ativasse as massas no sentido de
2 pressionar por mudanças reais. A destituição de Dilma foi operação fácil para a coesão
3 burguesa posto que a burguesia tinha perdido o medo do petismo e sabia de sua
4 incapacidade de convocar a mobilização popular. A primeira demonstração dessa renú
5 ncia ocorreu nas jornadas de junho quando Dilma poderia ter colocado o protesto popular
6 contra os acordos de cúpula e preferiu precisamente o contrário: fortalecê -lo por meio
7 de um pacto cujo primeiro ponto era precisamente a manutenção da “responsabilidade
8 fiscal”. Aquela extraordinária explosão social iniciada pelo Movimento Passe Livre de
9 SP foi, diante de tal renú ncia, capturada facilmente pela direita e especialmente
10 pela Rede Globo, o principal partido da coesão burguesa.

11 Na atual situação brasileira enganam-se aqueles que supõem ser a corrupção um


12 debate passageiro: tanto a reflexão quanto a agitação pública sobre a corrupção chegaram
13 para ficar e serão, a partir de agora, poderosas armas político-eleitorais! Marx
14 classificou a moral como a “impotência em ação”, mas tal afirmação não deve ser tomada
15 de maneira superficial, especialmente em momentos de grave crise social, econômica e
16 política. A recusa de muitos militantes em enfrentar esse tema implica o fortalecimento
17 da direita brasileira, que seguirá corrupta mas também seguirá atribuindo à esquerda
18 o “privilégio” da corrupção.

19

20 4.4- O regime de classes e a “volta às bases”

21 Incapaz de avançar diante ofensiva burguesa e aferrado à defesa da “ordem


22 democrática”, o progressismo brada de maneira inútil pela “volta às bases”, como se a
23 estrutura de classes da sociedade brasileira ainda fosse a mesma da década de oitenta do
24 século passado. Ora, a emergência do capitalismo dependente rentístico, cuja expressão
25 mais eloqüente é o raquitismo da burguesia industrial, determinou radical mudança na
26 estrutura de classe que anunciamos anteriormente. Há, de fato, uma notável ampliação da
27 classe trabalhadora; no entanto, sua configuração atual contrasta radicalmente com aquela
28 que turbinou o protesto operário contra a ditadura. O bordão segundo o qual é necessário
29 voltar à s bases não passa de engodo e expressão de impotência política, ainda que
30 mantenha muita gente bem intencionada em permanente alienação.

31 Da mesma forma, a apologia da favela como espaço de disputa política prioritário


32 ignora as profundas mudanças no regime de classes, razão pela qual ignora que o
128

1 narcotráfico, as milícias, as igrejas evangélicas e forças policiais dominam a cena e a vida


2 política, especialmente nas grandes cidades. Ademais, não deve passar sem registro que
3 a articulação política entre essas forças não tem sido acidental e, em larga medida, já
4 representa a forma de vida das comunidades periféricas. É claro que o fomento das
5 chamadas políticas compensatórias praticadas durante mais de uma década pelos
6 governos do PT não foram capazes de enfrentar essa trama de alta periculosidade para o
7 projeto revolucionário e de fácil mobilização pelas forças da ordem no cenário de
8 aprofundamento da crise que se avizinha. A crescente privatização dos serviços estatais,
9 o colapso das finanças públicas derivadas da crise financeira do estado, o caráter
10 assistencial da política social petista não somente não impediu como fomentou a
11 degradação nas grandes cidades. O crescimento da população carcerária precisamente
12 durante os governos do PT exibe a fratura de maneira clara. No iní cio desse século
13 (2000) a população carcerária girava em torno dos 230 mil presos, e com a exceção do
14 ano de 2005, o crescimento foi significativo e constante, de em torno de 8% ao ano,
15 chegando a um total de 607 mil em 2014 segundo os dados do CNJ. Os governos do PT
16 foram os que mais encarcer aram na histó ria recente do paí s. As alianças do PT
17 com as igrejas evangélicas em várias eleições – com apoio aberto de Edir Macedo e Silas
18 Malafaia, por exemplo – antes que um “erro político” do PT – expressava precisamente
19 aquelas mudanças estruturais da vida urbana que Lula e Dilma promoveram e, em
20 conseqüência, incorporaram na aliança de classe que julgavam sólida e eterna. No
21 entanto, a degradação da vida social lentamente cobrou seu preço permitindo que o ultra
22 liberalismo tivesse maior campo de manobra e capacidade de soldar alianças com estes
23 segmentos em função do aprofundamento da dependência que abraçaram sem remissão.

24 À esquerda restou o fortalecimento do clamor por causas e a busca de mandatos


25 parlamentares que expressam as lutas de “resistências” ao invés da formulação da real
26 alternativa para enfrentar a ofensiva burguesa e a guerra de classes. O clamor abstrato
27 pela luta da periferia rende votos mas confina a esquerda e o progressismo ao labirinto
28 do cí rculo de ferro das alianças promovidas pelo crime organizado e o Estado no país.
29 Assim, podemos entender as razões pelas quais as associações de moradores, outrora
30 importante mecanismo de mobilização social, tornaram-se quase marginais e irrelevantes
31 nas condições atuais para enfrentar as organizações criminosas e suas associações no
32 interior das comunidades. O assassinato de Marielle não pode ser analisado fora dessa
33 análise geral aqui esboçada em seus determinantes gerais. A luta real por reivindicações
129

1 cedeu espaço para a visão parlamentar de política também no interior das comunidades.
2 No entanto, até mesmo as eleições são controladas pelas milícias ou o narcotráfico, que
3 não vacilam em assassinar candidaturas que não participam de seus negócios e suas
4 alianças. O “espaço democrático” nas comunidades se reduz agudamente. Nesse
5 contexto, como bradar como solução para a esquerda a “volta às bases”? Pela mesma
6 razão, o discurso da esquerda e do progressismo somente pode tocar parcelas minoritárias
7 da população favelada em sua maioria cativa da trama dos negócios do crime e da
8 evangelização do povo.

9 Impossível entender este quadro fora do contexto em que a burguesia industrial


10 definha e o rentismo sob variadas formas avança de maneira acelerada e avassaladora. As
11 modalidades distintas da política lumpem assumem o comando na mesma velocidade em
12 que o “espírito republicano” não poucas vezes reclamado pelo liberalismo de esquerda
13 não encontra mais sustento real. A violência como componente “normal” da política não
14 pode ser enfrentado pela “política do amor” que com freqüência o político vulgar
15 reivindica. A guerra de classes ganha formas definidas e não pode ser mais ser ignorada
16 pela esquerda.

17

18 4.5- A crise se aprofundará no governo Bolsonaro

19 A política do presidente proto-fascista não poderá cumprir nenhuma das


20 promessas de campanha que o levaram a apresentar-se como um candidato anti-
21 sistêmico. Nessa linha de interpretação, a crise se aprofundará tanto no terreno
22 econômico, político , quanto social e moral. A alternativa de Bolsonaro é clara: dobrará
23 a aposta a cada fracasso e buscará responsabilizar as instituições apodrecidas da repú
24 blica burguesa em seu favor.

25 O ultra liberalismo econômico praticado pelo governo tem como objetivo estratégico a
26 drástica redução dos salários, aprofundando a super-exploração da força de trabalho que
27 já é constitutiva do desenvolvimento capitalista dependente. O desemprego crônico, o fim
28 da legislação trabalhista, a desnacionalização da economia já são objetivos conquistados
29 pelo governo em poucos meses. Nesse terreno, o governo Bolsonaro conquistou todas as
30 vitórias possíveis com amplo apoio parlamentar, nos tribunais superiores e igual força no
31 sistema midiático. Não há dúvidas de que sem a rebeldia e o protesto popular Bolsonaro
32 seguirá colhendo vitórias nos próximos meses. Agora, avançará com força redobrada
130

1 no chamado “ajuste do setor público”, não somente privatizando empresas estatais


2 importantes, mas, sobretudo, estendendo a política de arrocho aos estados e municípios.
3 O objetivo é lograr redução drástica dos salários do funcionalismo e degradar ainda mais
4 o serviço público em saúde, educação, saneamento, segurança, cultura, etc, ampliando o
5 processo de acumulação privada em curso no país.

6 É claro que o governo Bolsonaro não poderá atender às demandas populares e


7 pagará certo preço pela ampliação da crise social, mas nada indica que, no curto prazo
8 deixará de conduzir a crise segundo seus interesses e menos ainda que terá uma oposição
9 de esquerda relevante no próximo período, pois tudo indica que a política de “frentes
10 eleitorais” submeterá os partidos de esquerda à hegemonia do progressismo resignado
11 do PT e de Lula. A antiga polaridade petucana funcional à ordem burguesa agora será
12 substituída pela polarização entre a proposta ultra liberal e proto- fascista e a oposição
13 do liberalismo de esquerda de fundo moral de Lula. Ciro Gomes possui margem estreita
14 nesse contexto, razão pela qual decretou guerra aos dois polos como forma de eludir o
15 conflito que o excluiu do protagonismo político.

16 Não podemos desprezar o fato de que Bolsonaro organiza seu próprio partido e
17 poderá contar com forças milicianas com as quais já possui estreita colaboração.
18 Tampouco é irrelevante que tenha conquistado a fidelidade de altos oficiais das três armas
19 com a reforma da previdência, ao outorgar salários vultosos para a alta oficialidade,
20 marginalizando a tropa. Ademais, no C ongresso N acional, tramitam projetos de lei
21 destinados à nova configuração jurídica para controle e repressão que não tê m sido
22 objeto de atenção das bancadas de esquerda e progressistas. O PL 2418/2019 (legaliza
23 monitoramento de aplicativos e troca instantânea de mensagens), o PL 1595/2019
24 (estabelece forças anti- terroristas), o PL 443/2019 ( transforma crimes comuns,
25 militância política e ato pú blico/ocupação em ato terrorista), PL 3389/2019 (obriga
26 vinculação de CPF a cada conta em rede social, acabando com o anonimato em rede) e o
27 DL 10.046/2019 (permite o cruzamento de banco de dados contendo biografia, biometria
28 e até dados genéticos), o PL 473/2017 (supostamente soluciona o problema da
29 desinformação – as conhecidas fake news, fortalecendo a concentração de poder e o
30 punitivismo). A lei anti terrorista apresentada e aprovada durante o governo petista de
31 Dilma Rousseff faz parte desse arsenal de que a burguesia poderá dispor para enfrentar a
32 turbulência social que se avizinha, na medida em que não haverá resposta para questões
131

1 tão relevantes quanto emprego e nível de salários no interior do capitalismo dependente


2 rentístico.

3 O governo Bolsonaro navega, portanto, na lógica das situações extremas e não


4 vacila em radicalizar uma saída pela direita, que poderá resultar em alguma modalidade
5 especifica de terrorismo de estado no Brasil. A Colômbia já possui ess e regime, mas
6 é preciso esclarecer que há diferenças consideráveis entre os dois países; no entanto, a
7 situação geral da América Latina indica que o regime democrático burguês, nas condições
8 do capitalismo dependente rentístico, terá que lançar mão de regimes que os liberais
9 denominariam “fortes” e que têm como alvo as organizações de vanguarda e de massa
10 dos trabalhadores. Portanto, repressão eletiva ou ampliada de acordo com o avanço da
11 consciência de classe no país.

12 Não devemos descartar a possibilidade de o próprio Bolsonaro seguir no


13 comando das ações por largo tempo. As limitações intelectuais e políticas mais do que
14 evidentes do antigo parlamentar, caracterizado pela mediocridade, não foram obstáculo
15 para que vencesse com folga as ú ltimas eleições. O apoio popular com o qual ainda
16 conta, a presença da cúpula militar que o apoia, a força da E mbaixada dos Estados
17 Unidos e seu alinhamento automático nas relações exteriores, a debilidade estrutural da
18 burguesia industrial e a manutenção da coesão burguesa que o sustenta aliada à
19 timidez e despreparo do sindicalismo para enfrentar a guerra de classes em questões
20 elementares, como bem demonstra a chamada reforma da previdência, revelam que o
21 proto- fascista pode manter a condução do processo por muito tempo. A idéia, portanto,
22 segundo a qual Bolsonaro seria apenas um personagem descartável com a aceleração da
23 crise precisa ser colocada sob análise, pois ele reúne todas as condições para manter-
24 se à frente do nascimento de um novo regime político e na condução da coesão
25 burguesa que arquivou para sempre os sonhos dourados do presidencialismo de
26 coalização do período petucano. Não por acaso Rodrigo Maia, presidente da C âmara
27 anuncia todas as semanas que este congresso é o mais afinado com as “reformas
28 estruturais da história do parlamento brasileiro”, assinalando que o projeto de Paulo
29 Guedes de aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento encontra firme
30 apoio parlamentar.

31 Há que se entender o elementar: Bolsonaro atua segundo a lógica das situações


32 extremas porque vivemos uma lógica das situações extremas! Portanto, Bolsonaro
132

1 segue em clima de campanha dobrando a aposta na superação do atual regime político em


2 favor de uma modalidade de “estado policial” ainda não definida. Em cada
3 declaração/ação, Bolsonaro confirma a nota de nosso tempo: o fim das possibilidades da
4 conciliação de classes, iniciada por Lula e concluída por Dilma através do “ajuste
5 fiscal” no iní cio de seu segundo mandato. A guerra de classes aberta estava declarada.
6 Ora, é completamente incompatível afirmar que “a conciliação de classes” chegou ao seu
7 té rmino e seguir postulando frentes eleitorais cuja pretensão é precisamente buscar um
8 “centro” na política com sustento numa aliança de classes! Além de se tratar de notório
9 oportunismo eleitoral, esta linha de atuação não somente é incapaz de captar a atenção e
10 o apoio dos milhões jogados no abismo social da superexploração, como deixa o
11 monopólio da critica nas mãos da... direita!!!!

12 É nesse contexto que o espaço político para a criação da referê ncias críticas na
13 sociedade segue sem ser ocupado pelo PSOL, que se limita, na prática, a ser uma espécie
14 de “espírito crítico” da miserável política do liberalismo de esquerda praticado pelo PT.
15 A hegemonia no interior do PSOL cujos os métodos não asseguram, como em
16 outros tempos, vida serena para ninguém. A atuação numa lógica das situações extremas
17 faz com que as deliberações do DN do PSOL geralmente tenham, no máximo, algumas
18 semanas de vigência. A política de alianças esboçada para as eleições de 2020 carregam
19 consigo imenso prejuízo político e eleitoral, a despeito de eventuais vitórias em algumas
20 cidades ou capitais consideradas “estratégicas”. A exigência feita por Lula de
21 futuras alianças é clara: há que defender o legado petista!!! Em termos claros: a
22 hegemonia no terreno do liberalismo de esquerda deve ser do PT! Eis a razão pela qual
23 Ciro Gomes descolou radicalmente de Lula e do PT. No entanto, Ciro e o PDT não
24 conseguiram ainda afirmar um campo próprio, mas já acumulam força para eventual
25 acordo mais adiante, que de nenhuma maneira pode ser descartado. A dócil submissão do
26 PSOL à hegemonia petista é realmente a prova de que o apetite eleitoral dominante
27 em alguns parlamentares é produto de males mais profundos. Nesse contexto, a despeito
28 de resoluções distintas nas reuniões do DN, a verdade é que caminham na mesma
29 direção, sem intenção de romper com a posição que reserva ao PSOL o colapso do espírito
30 crítico do liberalismo de esquerda.

31 A atuação numa lógica das situações extremas não culmina, de imediato , em


32 uma ditadura. A manutenção da ofensiva política ideológica contra a esquerda no país
33 garante ao protofascista Bolsonaro a possibilidade de convocar uma reforma política que
133

1 colocaria novamente o liberalismo de esquerda cativo do estado policial em construção.


2 Não seria uma novidade, pois 3 deputados do PSOL (Fernanda Melchiona, Samya
3 Bonfim e Marcelo Freixo) votaram favoravelmente ao pacote de Sérgio Moro que
4 fortalece os mecanismos repressivos do estado brasileiro, avançando no punitivismo
5 como solução jurídica para a crise social que se aprofunda. A atuação parlamentar
6 marcada por uma linha de “evitar o pior” não somente caracteriza o cretinismo
7 parlamentar mas inequivocamente indica o perigo que já assola o PSOL ao dividir a
8 bancada em assunto de dimensão estratégica para o futuro de nossa luta contra o governo
9 encabeçado pelo protofascista.

10 É obvio que diante de um sistema completamente apodrecido, a convocatória de


11 uma “reforma política” pelo protofascista colocaria uma enorme parcela da população em
12 apoio potencial ao atual governo, a despeito dos resultados terríveis que o ultra
13 liberalismo produz para os trabalhadores. Afinal, somente um democrata impotente pode
14 supor que o STF, o C ongresso N acional ou a “liberdade de imprensa” gozam de
15 apoio ante ao nosso povo. Nesse contexto, uma reforma política que reforce o
16 presidencialismo não pode ser descartada em hipótese alguma.

17 Ademais, no limite, caso ocorra um fracasso rotundo de Bolsonaro – ou sua


18 responsabilidade direta e comprovada de relações criminosas com a milícia e crimes
19 eleitorais – a possibilidade de novos espaços à direita é a possibilidade mais presente na
20 atualidade na medida em que o PSOL confunde a cada dia os trabalhadores ao se associar
21 numa frente com o PT, PC do B, PSB etc. Novamente aqui reforçamos o elementar:
22 o regime político não pode se regenerar nem mesmo num eventual governo presidido
23 pelo liberalismo de esquerda. A crise do regime é terminal e somente a direita brasileira
24 sustentada pela coesão burguesa entendeu essa característica essencial de nossa
25 conjuntura.

26

27 4.6- O protesto popular poderá emergir?

28 A característica mais importante da crise dos sistemas políticos na América Latina


29 indica claramente que as explosões sociais podem ocorrer por razões elementares e sem
30 controle dos partidos políticos ou sindicatos. Mais ainda: na maioria das vezes o protesto
31 emerge com marcado caráter de repulsa aos partidos políticos e máquinas sindicais. O
32 caráter “espontâneo” da explosão social recente no Chile e a ofensiva da Confederação
134

1 de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) no Equador contra o governo de


2 Lenin Moreno revelam o quanto os partidos políticos de vocação parlamentar não podem
3 representar o protesto popular na atual conjuntura. A jornada de junho de 2013 no Brasil
4 – que segue sendo considerada por Lula como algo misterioso e com origem na influê
5 ncia externa – revela o quanto o político vulgar está despreparado para entender a
6 conjuntura atual e as forças que operam na economia, no estado, na cultura, na política,
7 com diversas feições ideológicas . As explosões de caráter “espontâneo” necessitam
8 de uma avaliação mais precisa, pois ocorrem na medida em que os partidos políticos
9 progressistas não somente são incapazes de expressar a ira popular, mas sobretudo que
10 eles mesmos são cativos da consciência ingênua que criaram como ideologia, ou seja,
11 estão aferrados na digestão moral da alienação.

12 Essa conjuntura segue operando com mais força a cada dia em toda a América
13 Latina e revela o colapso dos sistemas políticos que são de fato incapazes de representar
14 o protesto popular contra governos de distintas orientações que não obstante praticam o
15 mesmo programa de reformas ultra liberais. A proletarização da pequena burguesia, a
16 crescente monopolização e estrangeirização da economia, o empobrecimento das classes
17 médias, o crônico desemprego e a intensificação da superexploração da força de trabalho
18 criam as bases para a elevação do protesto social. A grande questão segue sendo quem
19 poderá dirigi-lo. Nas condições atuais, como revelam todos os países da América
20 Latina, nenhum partido tem capacidade de fazê-lo e a direita no Brasil tem melhores
21 condições de colocar a crise a serviço de seu projeto de redefinição do regime político do
22 que a esquerda liberal. Ninguém pode ingenuamente supor que a mera declaração de que
23 os “tempos de conciliação de classe” já foram superados e devemos criticar “os erros do
24 PT” sem praticar o “anti-petismo” garantirão um espaço de esquerda no país com
25 suficiente autoridade para enfrentar a ascensão da direita. Ninguém mais pode ignorar
26 que o PT e Lula aparecem para milhões de brasileiros como expressão da podridão do
27 sistema político e que tal fenômeno não pode ser superado no curto prazo e nem mesmo
28 com o aprofundamento da miséria de nosso povo.

29 Na disputa política atual o recurso à moral tem sido grave limitação para o avanço
30 da consciência crítica e alimento para a consolidação da consciência ingênua. O
31 moralismo do liberalismo de esquerda – que recusa a revolução brasileira em nome da
32 luta pela justiça social – pretende amealhar legitimação no discurso católico segundo o
33 qual durante os governos petistas “30 milhões de brasileiros chegaram à classe média
135

1 e outros 40 milhões superaram a linha da pobreza. A militância da RB denomina esse


2 processo de “digestão moral da pobreza” pois, incapaz de mudar a realidade da opressão
3 e exploração de milhões de brasileiros, o petismo mudou a metodologia de medição da
4 pobreza aceitando os critérios estabelecidos pelos organismos mundiais da burguesia
5 metropolitana e de seus respectivos estados nacionais. Em conseqüência, adotou o critério
6 do Banco Mundial segundo o qual deixa de ser pobre aquele trabalhador que recebe mais
7 de 1 dólar e 90 centavos por dia! No cambio atual, essa maravilha de medição implica
8 que um trabalhador poderá se reproduzir com 8 reais e 40 centavos diários! Em resumo:
9 menos de 300 reais por mês! Ora, os governos do PT estabeleceram como critério da nova
10 classe mé dia os trabalhadores que recebiam entre R$ 291,00 e 1.019 reais!!!! É possível
11 condescender com estes fatos, senão com boa dose de cinismo, para sustentar a alegada
12 conquista social da redução da pobreza nos governos petistas?!

13 4.7- Nossa militância

14 A militância da RB privilegia três frentes de atuação: o partido (PSOL), o


15 sindicalismo e o movimento estudantil. Algo elementar deve ser assinalado aqui: não se
16 trata de escolher uma frente militante e atuar ali com exclusividade. Ora, as três frentes
17 articulam-se e todo militante deve atuar de maneira decidida nas três!!! Da mesma forma,
18 devemos exigir a renovação da práxis política, razão pela qual a chamada “militância
19 eletrônica” não é senão uma falácia que deve ser combatida com força entre nós. Nada
20 substituiu a ação concreta nos locais de trabalho e militância. Nada!

21 Há, no ativismo político atual, grave descolamento dos partidos políticos da agenda
22 concreta que afeta a vida do povo. Não se trata de afirmar apenas a crítica ao cretinismo
23 parlamentar, mas de observar que a luta das causas implica efetivo descolamento das
24 questões que afetam o povo concretamente para exibir questões que não são capazes de
25 mobilizar o povo para uma luta frontal contra a dominação burguesa, razão pela qual
26 magnatas das altas finanças e organizações dos Estados Unidos apo iam
27 desinibidamente candidatos em toda a Amé rica Latina. Como expressão dessa luta
28 das causas, a elegia ao favelado que observamos no mundo partidário brasileiro, sem
29 aná lise concreta do conflito de classes que orienta a guerra de classes decretada pela
30 burguesia contra o povo, alimenta o liberalismo de esquerda, nutrindo ilusões sobre a
31 solução dos problemas do povo dentro da ordem burguesa.
136

1 Da mesma forma, o brado para “voltar as bases”, que também motiva amplos setores
2 petistas e alimenta consciência ingênua dominante no liberalismo de esquerda – inclusive
3 o PSOL, obviamente – ignora algo essencial: as profundas mudanças no regime das
4 classes sociais produzidas sobre as transformações do capitalismo contemporâneo e
5 aquelas produzidas pela administração petucana do Plano Real. A análise das classes
6 sociais que anunciamos na primeira parte dessa tese indica claramente que ocorreu uma
7 profunda transformação no capitalismo dependente no Brasil, pois país com maior
8 desenvolvimento capitalista relativo na America Latina sofreu acelerado processo de
9 aprofundamento da dependência. Dependência que o liberalismo de esquerda
10 denomina “desindustrialização”, captando apenas a aparência do fenômeno. Na prá
11 tica, a coesão burguesa que verificamos no apoio a Bolsonaro é precisamente expressão
12 do enfraquecimento da fração da burguesia industrial que outrora tanta controvérsia
13 causou na esquerda. Na atualidade, não resta dú vida que o orgulho burguês da fração
14 industrial hoje não passa de uma reminiscência histórica incapaz de liderar ou sequer
15 sugerir um “projeto de nação”. Em conseqüência, não é possível explicar o avanço do
16 narcotráfico, a incidência cada vez maior das igrejas evangélicas na política, a
17 corrupção e a violência dos órgãos policiais, sem fazer referê ncia à quela nova
18 configuração econômica produzida pela administração petucana do Plano Real, embora
19 os dados a esse respeito sejam proposital e cinicamente apresentados de modo eloquente
20 e laudatório.

21

22 5- MOVIMENTO SINDICAL
23
24 5.1- Guerra de classes e organização dos trabalhadores: as greves no Brasil

25 O Brasil viveu um poderoso ciclo grevista entre 2012 e 2018 que ainda não se
26 encerrou. O auge deste processo foi a grande greve geral de abril de 2017 e a marcha
27 sobre Brasília em junho do mesmo ano. Os trabalhadores romperam com o imobilismo
28 das décadas anteriores e colocaram em xeque todas as velhas estruturas políticas que os
29 paralisavam. Os partidos da ordem do sistema petucano foram rejeitados. As direções
30 sindicais burocratizadas foram ultrapassadas. De um lado, a massa proletária, a velha
31 toupeira, emerge ao centro da cena política, de outro, a democracia parlamentar liberal,
32 com suas fraseologias vulgares típicas dos salões da burguesia, entra em ocaso acelerado.
137

1 A liquidação das velhas ilusões com a democracia burguesa, com suas instituições, seus
2 partidos e seus sindicatos da ordem é o produto mais genuíno desse processo.
3 Depois de longos 15 anos (1997-2011) de reduzido número de greves, a
4 conjuntura mudou de maneira acentuada a partir de 2012. Não apenas voltamos aos
5 patamares do último ciclo de expansão grevista (1979-1996), mas ultrapassamos o auge
6 do período anterior (1.962 greves em 1989) durante longos quatro anos consecutivos
7 (2.057, 2.085, 1.964 e 2.114 greves em 2013, 2014, 2015 e 2016, respectivamente).
8 O liberalismo de esquerda se apressou em caracterizar o período como expressão
9 de uma onda conservadora, vivenciamos nos últimos seis anos o significado profundo da
10 centralidade do trabalho na sociedade capitalista e o poder operário de parar a produção.
11 Não apenas greves do funcionalismo público, mas também um grande crescimento das
12 greves na esfera privada e nas empresas estatais. Em resumo, a classe trabalhadora
13 emergiu de um longo período de pouca atividade política e passou a se movimentar
14 largamente nos últimos anos, gravando na própria experiência o processo de desalienação
15 trazido pela participação nos movimentos paredistas.

Número de greves
Brasil, 1983 a 2018
2500

2000

1500

1000

500

Total Empresas Estatais Funcionalismo Público Esfera Privada


16
17 Fonte: Dieese
18
19 Álvaro Vieira Pinto em seu clássico livro “Por que os ricos não fazem greve?”, de
20 1962, demonstrava que, se na aparência as greves eram o mero ato de cruzar os braços e
21 parar de trabalhar, na essência se tratavam de um momento fundamental de ganho de
22 consciência para a classe trabalhadora. A classe deixava de trabalhar para outrem,
138

1 servindo de objeto da exploração capitalista, para trabalhar para si mesma. Mesmo


2 quando a greve se restringe aos aspectos econômicos corporativos imediatos, ela não se
3 limita a apenas isso. Na prática, pela vivência organizada dos trabalhadores em confronto
4 direto com o capital e o Estado, ela é o desvelamento embrionário dos pressupostos do
5 socialismo: a emancipação dos trabalhadores e da sociedade12.
6 Mais claramente, nas palavras de Lenin13:
7 “Durante cada greve cresce e desenvolve-se nos operários a consciência de que o governo
8 é seu inimigo e de que a classe operária deve preparar-se para lutar contra ele pelos
9 direitos do povo.
10 Assim, as greves ensinam os operários a unirem-se, as greves fazem-nos ver que somente
11 unidos podem aguentar a luta contra os capitalistas, as greves ensinam os operários a
12 pensarem na luta de toda a classe operária contra toda a classe patronal e contra o governo
13 autocrático e policial. Exatamente por isso, os socialistas chamam as greves de “escola
14 de guerra”, escola em que os operários aprendem a desfechar a guerra contra seus
15 inimigos, pela emancipação de todo o povo e de todos os trabalhadores do jugo dos
16 funcionários e do jugo do capital. ”
17
18 Se a greve isolada é capaz de cumprir este papel nos trabalhadores que nela
19 participam, o que está em curso no Brasil não é apenas um movimento grevista localizado
20 em um ou outro setor da produção, mas uma conjuntura de greves de massas. Tal como
21 formulou Rosa Luxemburgo, esta conjuntura deve ser entendida não como uma ação
22 única, mas como um período de luta de classes que se estende por vários anos, às
23 vezes por décadas, onde os elementos econômicos e políticos se entrelaçam, abrindo-se
24 uma conjuntura de radicais mudanças e impondo o debate sobre as forças
25 organizadas que tomarão a direção política deste processo14. Em outras palavras,
26 vivemos uma época de transformações revolucionárias15, em que a disputa pela
27 direção deste processo está em pleno curso, emergindo sobre os escombros da direção
28 anterior.

12
PINTO, Álvaro Vieira. Por que os ricos não fazem greve?
13
LENIN, Vladimir Ilich. Sobre as greves. Disponível em
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1899/mes/greves.htm.
14
LUXEMBURGO, Rosa. Greve de massas, partido e sindicatos.
15
Uma época revolucionária não necessariamente pressupõe que estejamos em meio a um momento
revolucionário, onde a conquista do poder transforma-se em uma questão técnica. Pelo contrário,
momentos contrarrevolucionários podem atravessar essa conjuntura de greves de massas, onde os
trabalhadores, destituídos de um partido revolucionário como vanguarda, podem inclusive apoiar saídas
reacionárias.
139

1 Este ciclo grevista iniciado silenciosamente em 2012 foi a base de onde


2 explodiram as manifestações de massas com forte caráter político. Neste período
3 presenciamos as gigantescas manifestações da juventude em junho de 2013, o movimento
4 “não vai ter Copa” em 2014, as mobilizações da pequena burguesia que contaram com a
5 adesão popular passiva em torno do impeachment da presidente Dilma em 2015 e 2016,
6 o movimento secundarista de ocupação das escolas também em 2016, a greve geral e a
7 marcha sobre Brasília em 2017 e a greve dos caminhoneiros de 2018. A conjuntura de
8 greve de massas, ao expressar um profundo descontentamento e radicalismo da classe
9 trabalhadora diante do sistema capitalista e dos governos dos partidos da ordem (sistema
10 petucano), é a estrutura profunda que sustenta estes eventos aparentemente espontâneos
11 que aparecem na superfície.
12 A indigência teórica do liberalismo de esquerda evita a análise dessa conjuntura
13 ao inscrevê-la numa simples luta contra o “neoliberalismo” como meio de justificar e
14 manter a conciliação de classe dos partidos da ordem em nome da “resistência”. No
15 entanto, para nós, esse período, marcado por intenso conflito de classe, acelerou os
16 dinamismos inerentes à Revolução Brasileira.
17
18 5.2- O assalariamento e as transformações recentes na situação da classe
19 trabalhadora brasileira
20 Se a relação trabalhista é caracterizada pelo assalariamento – a venda da força de
21 trabalho ao capitalista que dela faz uso no processo de produção de valor e mais-valia –o
22 pressuposto para as políticas de conciliação de classe que fundaram a “paz social” que o
23 petismo alegou vigorar entre 1998 e 2011 deve-se ao fato de que as condições de
24 reprodução da força de trabalho estavam menos desfavoráveis aos trabalhadores.
25 Em primeiro lugar, o Plano Real de FHC reduziu os preços das mercadorias
26 consumidas pela classe trabalhadora por meio da importação barata de bens de consumo
27 (1998-2004). Em um segundo momento, quando as medidas do Plano Real mostraram
28 seu fracasso ao produzirem o aprofundamento da dependência e do subdesenvolvimento,
29 o governo Lula se beneficiou de uma conjuntura altamente favorável do preço das
30 mercadorias brasileiras vendidas no mercado mundial (soja, minério de ferro, petróleo
31 cru e carnes, basicamente) além da gigantesca desvalorização do real promovida por FHC
32 ao deixar o governo. Este fato permitiu ao país internalizar, por meio da renda da terra,
33 parcela expressiva do excedente produzido globalmente, o que novamente ocultou e
140

1 compensou momentaneamente os efeitos cumulativos da posição dependente do Brasil


2 na divisão internacional do trabalho.
3 A estrutural transferência de valor característica de um país dependente foi
4 conjunturalmente compensada com base na maior expansão da fronteira agrícola da nossa
5 história recente. Isso garantiu, de um lado, acumulação ampliada de capital com
6 crescimento da demanda por força de trabalho e, pela própria pressão da concorrência,
7 pequeno aumento de salários. Por outro lado, o excedente internalizado e centralizado no
8 sistema financeiro favoreceu a concessão de crédito facilitado para financiar o consumo
9 da classe trabalhadora, estabelecendo as bases de toda a ideologia da “nova classe média”,
10 propagada a plenos pulmões pelo petismo.
11 Apesar das diferenças conjunturais, PT e PSDB, expressão de partidos da ordem,
12 foram funcionais ao avanço do subdesenvolvimento brasileiro. O PT, ao mesmo tempo
13 que controlava a classe trabalhadora, garantia a expansão do crédito por meio da
14 hipertrofia do sistema da dívida pública e de várias medidas de liberalização financeira.
15 Além disso, como contraparte necessária a este desenvolvimento, garantia a expropriação
16 sistemática dos fundos salariais da classe trabalhadora, destinando-os à esfera privada das
17 finanças16.
18 Este desenvolvimento da acumulação capitalista via sistema de crédito, a despeito
19 de melhorar momentaneamente as condições de assalariamento da classe trabalhadora,
20 trouxe repercussões estruturais sob o ponto de vista do acesso dos trabalhadores à
21 propriedade e aos direitos sociais. O que caracteriza o desenvolvimento do sistema de
22 crédito é justamente a centralização de enorme massa de capital-monetário disponível
23 tanto para ser emprestado quanto para fins especulativos. Especula-se não apenas com
24 dinheiro, mas com qualquer título de propriedade que possa servir de reserva de valor,
25 seja ela propriedade de capital produtivo (ações) ou propriedade sobre a terra (urbana e
26 rural).
27 Desta maneira, todo este período foi acompanhado por uma valorização sem
28 precedentes do preço da propriedade urbana e rural, o que incidiu decisivamente sobre as
29 condições básicas de vida da classe trabalhadora. De um lado, o processo de centralização
30 da propriedade rural se acelerou, criando uma massa de novos proletários urbanos que

16
Vide a expansão gigantesca dos fundos de previdência complementar privados (Funcef, Previ, Petros,
etc.), as reformas da previdência contra o funcionalismo público tocadas tanto por FHC quanto por Lula e
a manutenção intocável da austeridade contra o serviço público para fazer frente aos encargos da dívida
pública.
141

1 persiste em crescer desde os anos 90. Por outro lado, ficou inacessível a compra da casa
2 própria e esta, quando de fato adquirida, localizava-se em regiões distantes dos locais de
3 trabalho. Assim, o custo financeiro da aquisição passava a ser um peso enorme no
4 orçamento doméstico, ou seja, uma forma do sistema financeiro apropriar-se de parcela
5 ainda maior do fundo de salário dos trabalhadores – o que aconteceu no consumo de bens
6 duráveis (automóveis) e semiduráveis (geladeiras, máquinas de lavar, etc.).
7 Também o desenvolvimento do sistema da dívida pública, com seu
8 estrangulamento estrutural sobre as finanças do Estado brasileiro, promoveu a sistemática
9 reestruturação das condições de trabalho do funcionalismo público e a perda continuada
10 de direitos sociais por parte dos trabalhadores. Em geral, desde os anos 90 a classe sofre
11 a deterioração da proteção e regulação trabalhista, das condições previdenciárias, da
12 saúde, educação e segurança públicas, etc. Tanto tucanos quanto petistas foram
13 extremamente disciplinados na administração intocável da Lei de Responsabilidade
14 Fiscal e da Desvinculação das Receitas da União - DRU, as regras de ouro que
15 impuseram a austeridade permanente contra o povo.
16 Por fim, a centralização de recursos financeiros permitiu a setores chave da
17 acumulação de capital (indústria automobilística, setor bancário, cadeias integradas de
18 produção agrícola centralizadas nas agroindústrias, indústria têxtil, setor petroleiro, etc.)
19 a promoção de larga reestruturação produtiva nos anos 1990 até 2000. Estes setores
20 importaram tecnologia de ponta do mercado mundial visando à ampliação do grau de
21 exploração da força de trabalho empregada por meio do maior controle e intensidade da
22 jornada de trabalho, da expansão da terceirização e da rotatividade da força de trabalho.
23 Desta forma, não apenas se reconfigurou o modelo de acumulação de capital
24 dependente brasileiro, mas também transformaram-se profundamente as relações
25 materiais que criam e recriam a própria classe trabalhadora. Isto aparece claramente na
26 comparação das condições de reprodução entre as gerações dos trabalhadores. Enquanto
27 o que configurava um “trabalhador padrão” (metalúrgico, bancário, trabalhador rural,
28 servidor público, etc.) até os anos 80 era sua relativa estabilidade, garantida pela maior
29 permanência no emprego e pela capacidade de transformar renda salarial em imóveis,
30 veículos e até mesmo uma pequena poupança, os novos trabalhadores produzidos pelo
31 sistema petucano inserem-se atualmente no mercado de trabalho sob a égide da completa
32 instabilidade, permanecendo pouquíssimo tempo nos empregos e sem qualquer
33 possibilidade de adquirir propriedade dos meios de consumo duráveis. Nos termos de
34 Marx, o processo de reprodução capitalista não produz apenas valor e mais-valia, mas
142

1 reproduz permanentemente proprietários (capitalistas) e não proprietários (trabalhadores)


2 dos meios de produção.
3 É claro que os economistas da ordem – tanto no governo quanto na oposição –
4 não poderiam revelar as raízes da “paz social” dos governos de então e se limitavam
5 felizes em festejar a “sólida” melhoria da distribuição da renda e do acesso ao consumo
6 vía expansão do crédito, ocultando que nas entranhas do processo social estavam sendo
7 criadas novas condições objetivas de vida para a classe trabalhadora. Trata-se de novos
8 trabalhadores, na faixa etária dos 30 a 40 anos, completamente vulneráveis aos efeitos
9 destrutivos das periódicas crises capitalistas, sem nenhum tipo de proteção do Estado e
10 sem nenhuma propriedade privada de meios de consumo duráveis ou poupança financeira
11 como seguro para atravessar o período de adversidade. Assim, de um lado, a propaganda
12 oficial do sistema petucano falava em melhor distribuição de renda, de outro, nos
13 subterrâneos da vida real dos trabalhadores, o que se sentia era a centralização brutal da
14 propriedade na mão de poucos bilionários e a massa de trabalhadores e novos
15 trabalhadores jogados às instabilidades dos ciclos da acumulação capitalista. Esse ciclo
16 se concluiria com a entrada na fase de crise e recessão a partir de 2011/2012.
17
18 5.3- Crise capitalista e guerra de classes
19 Ademais das contradições inerentes ao desenvolvimento capitalista, a crise tem
20 início com a queda vertiginosa do preço das mercadorias de exportação. A Funcex indica
21 queda de 35,8% entre 2011 (auge dos preços) e 2016 e foi especialmente vertiginosa a
22 diminuição do preço dos produtos agrominerais. O petróleo teve queda de 23% durante o
23 ano de 2012, estabilizou-se até meados de 2014 e experimentou nova queda brutal de
24 72% entre o segundo semestre de 2014 e o início de 2016. O minério de ferro, no mesmo
25 sentido, caiu 78% entre 2011 e 2016. O açúcar, 55%; o café, 51%; e, por fim, a soja, 46%.
26 O único produto de exportação de maior peso na balança comercial brasileira que se
27 manteve com preços valorizados no mercado internacional foi a carne de aves, gado e
28 porco.
29 Com esta queda vertiginosa dos preços estava liquidado o motor que sustentou a
30 ilusão do Brasil potência, país que tinha supostamente superado o subdesenvolvimento e
31 a dependência e que passava a frequentar o rol dos países dominantes. A crise se
32 estabelecia e, imediatamente, refletia-se nas margens de lucro das multinacionais que
33 operam no mercado mundial e no ingresso de divisas para o Estado. Com isso, o capital
143

1 dá início à preparação para a guerra de classes que viveríamos a partir de 2015, com o
2 ajuste fiscal de Dilma.
3 Portanto, a preparação da guerra de classes aberta começa em 2012, quando as
4 greves começam a crscer. Metade delas de caráter ofensivo (basicamente por reajustes
5 salariais acima da inflação) e a outra metade já de caráter defensivo (contra
6 descumprimento de direitos ou pela manutenção de condições de trabalho). Com o
7 desenrolar dos anos, ampliaram-se as greves defensivas e diminuíram as greves ofensivas,
8 em movimento contrário ao verificado no ciclo grevista dos 80/90.
9 Anunciava-se assim que a guerra de classes era inexorável. O capital avançava
10 sobre as condições de remuneração e trabalho da classe trabalhadora para ampliar a taxa
11 de exploração e recompor as taxas de lucro. A esta dinâmica soma-se a chamada “crise
12 do setor externo”, particularmente aguda porque a partir de 2014 a indústria
13 automobilística entra em crise de superprodução de capital, com sua faceta mais visível
14 nos pátios abarrotados das montadoras de veículos não vendidos. Alguns anos de arrocho
15 sobre a classe trabalhadora e de estrangulamento da renda da terra que impulsionara o
16 sistema de crédito, foram suficientes para transformar a ideologia do país de classe média
17 consumidora na realidade das famílias fortemente endividadas e sem capacidade de
18 pagamento e nova expansão do consumo.
19 O primeiro evento decorrente dessa nova conjuntura de greve de massas foi
20 justamente o forte protesto popular de junho de 2013. A crise já em curso encontrava a
21 nova juventude brasileira sem propriedade e sem perspectiva de futuro. Filhos da classe
22 trabalhadora tradicional dos anos 80, dos pequenos empresários que quebraram na
23 abertura comercial dos anos 90 e dos profissionais liberais que já não encontravam as
24 mesmas oportunidades de antigamente, a juventude proletarizada, em meio a um processo
25 histórico de profunda decadência material, sai às ruas contra as condições deploráveis de
26 vida nas cidades, tendo o Movimento Passe Livre como catalisador desta insatisfação
27 latente. Apresentava-se, aos olhos de todos, o novo radicalismo político que emergia das
28 entranhas da crise capitalista, das novas condições de vida da classe trabalhadora e da
29 completa exaustão do sistema petucano de gestão do capitalismo dependente brasileiro.
30 A insistência de Lula e o PT em negar a legitimidade popular das chamadas jornadas de
31 junho deve-se exclusivamente ao fato de que não podem reconhecer a natureza específica
32 da crise que ajudaram a criar!
33 Ademais, Dilma e o petismo fizeram mais uma vez a opção pela classe dominante
34 naquela crise. A juventude estava nas ruas, contando com a adesão passiva da classe
144

1 trabalhadora, clamando de forma difusa por profundas mudanças. Dilma, ao invés de


2 aproveitar a nova conjuntura para capitanear um programa de ruptura com o
3 “presidencialismo de coalizão”, reúne os governadores de todos os estados da União e os
4 prefeitos das grandes capitais, ou seja, o sistema político brasileiro em suas diversas cores
5 partidárias, e eterniza a proposta de responsabilidade fiscal que aplicaria logo no início
6 de seu segundo mandato com o banqueiro Joaquim Levy na condução da economia. Além
7 disso, como resposta à perda de controle das ruas e locais de trabalho, o governo de
8 Dilma aprovou a lei antiterrorismo e a lei das organizações criminosas, em um claro
9 movimento de construção de um novo Estado policial que ganha atualmente novos
10 contornos no governo de Bolsonaro.
11 Em paralelo aos acontecimentos de junho de 2013, o governo de Dilma também
12 atuou na tentativa de postergar a explosão definitiva da crise fazendo uma clara opção
13 pelos setores monopolistas. A presidente direcionou o orçamento do Estado para garantir
14 a venda dos estoques irrealizáveis das multinacionais, na tentativa de solucionar a crise
15 de superprodução de capital. Estimativas de auditores da Receita Federal deram conta de
16 que R$ 458 bilhões foram entregues em renúncias fiscais para os grandes empresários17.
17 Entre elas, a política de redução de IPI para veículos e linha branca, o crédito barato do
18 BNDES subsidiado pelo Tesouro Nacional e utilizado para realizar fusões e aquisições
19 (vide o exemplo da BRF e da JBS) e os programa “Minha Casa Minha Vida” e PAC –
20 Programa de Aceleração do Crescimento, como formas de impulsionar as grandes
21 construtoras.
22 Conjuntamente ao montante gigantesco de renúncias fiscais e financeiras, o
23 mecanismo da dívida pública continuou atuando e consumindo metade do orçamento
24 anual da União após a elevação dos juros em 2014. Diante disso, a manutenção da queda
25 dos preços internacionais e a crise dos setores monopolistas industriais internos fizeram
26 com que Dilma, seguindo na dinâmica de um governo de um partido da ordem,
27 promovesse o estelionato eleitoral logo após a vitória em 2014.
28 O governo petista declarou definitivamente a guerra de classes contra os
29 trabalhadores, promovendo um severo ajuste. O novo rumo da política econômica
30 paralisa a já cambaleante economia brasileira e eleva o desemprego de 4,5% no final de
31 2014 para 12% ao fim de 2015. Por outro lado – a despeito das insistentes afirmações de

17
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/09/1678317-dilma-deu-r-458-bilhoes-em-
desoneracoes.shtml.
145

1 Dilma durante o período eleitoral de que não faria o ajuste – por meio de medidas
2 provisórias, a presidente retirou direitos da classe trabalhadora ao rever as regras para o
3 abono indenizatório e o seguro desemprego. Além disso, também já estava sendo
4 desenhada a reforma da previdência e um novo ciclo de privatizações, apresentado na
5 bancada do Jornal Nacional pelo ministro Levy com o belo nome de “plano de
6 concessões”. Findava-se definitivamente qualquer resquício de união entre a classe
7 trabalhadora e os governos petistas.
8 O ajuste de Dilma foi, essencialmente, uma forma de elevar a taxa de desemprego
9 no Brasil. A reclamação recorrente dos setores empresariais era justamente esta: o
10 desemprego em torno dos 5% dificultava o processo de redução do valor da força de
11 trabalho que o capital tentava colocar em prática desde 2012. Os ajustes dos capitalistas
12 na tentativa de rebaixar salários provocaram greves em profusão, já que o desemprego
13 estrutural não debilitava a classe trabalhadora. Assim sendo, a política adotada por Dilma
14 foi uma forma de ampliar o exército industrial de reserva no país, posto que,
15 historicamente, sempre foi a principal arma dos capitalistas para enfrentar o movimento
16 grevista.
17 Em paralelo também foram adotadas mudanças legais nas formas de contratação
18 da força de trabalho, flexibilizando os contratos de trabalho tradicionais celetistas e
19 fortalecendo a ideologia do empreendedorismo e do empoderamento individuais. Isso era
20 fundamental, já que o país verificou, justamente nesse período, a invasão das plataformas
21 de exploração de força de trabalho em massa por meio de aplicativos de celular, a famosa
22 “uberização”. Também com as gigantescas fusões entre multinacionais, um conjunto de
23 demissões foi realizado nos cargos intermediários – basicamente de gestão e controle –,
24 implementando as novas tecnologias de exploração remota da força de trabalho. Com
25 isso, o capital montou o cenário completo da guerra de classes: ajuste fiscal e
26 aumento do desemprego; importação de tecnologia de ponta desenvolvida
27 anteriormente no centro capitalista e aumento das taxas de exploração da força de
28 trabalho; e ataque aos direitos trabalhistas e sociais.
29 Entretanto, a classe trabalhadora já vivia quatro anos de movimento grevista e não
30 estava disposta a aceitar passivamente as novas condições implementadas pelo governo
31 do PT. Dilma viu a si mesma sem nenhum apoio popular pois o PT se limitou a justificar
32 o estelionato eleitoral enquanto a Lava Jato rapidamente se colocou como direção moral
33 das massas revoltadas com a guerra de classes. A presidente perdeu rapidamente qualquer
34 capacidade de implementar as medidas de ajuste que anunciou, tornando-se um governo
146

1 descartável para a classe dominante. Grandes manifestações pelo impeachment foram


2 convocadas e realizadas pelos órgãos de imprensa da burguesia e pelas entidades
3 empresariais, pressionando pelo fim antecipado do ciclo petista no governo.
4 Contribuiu para esse fim antecipado do governo petista o descrédito absoluto das
5 direções dos sindicatos oficiais perante as massas. Foram longos anos em que a CUT e
6 seus sindicatos defenderam sistematicamente os governos petistas e suas medidas de
7 administração do sistema petucano. Justamente por isso, a nova geração da classe
8 trabalhadora, que ingressou no mercado de trabalho após os anos 2000, já não estava
9 dentro dos sindicatos há bastante tempo. Com o estelionato eleitoral de 2015, por sua vez,
10 o sindicalismo perdeu o restante de credibilidade moral que detinha diante de setores
11 tradicionais da classe trabalhadora. A essência desse processo é uma só: o aparelhismo
12 do PT sobre o sindicalismo brasileiro, esterilizando o vigor registrado no ciclo
13 grevista dos anos 70, 80 e 90.
14 Nesse contexto, também a figura política de Lula se inviabilizou como “fiel da
15 balança” do pacto de classes. O ex-presidente perdeu definitivamente o apoio das
16 camadas médias, principalmente da pequena burguesia, através dos escândalos de
17 corrupção propagandeados pela Lava Jato e da derrubada definitiva da imagem de partido
18 honesto que o PT sustentava antes do “mensalão” em 2005. Perdeu também o apoio de
19 amplos setores do proletariado, principalmente dos mais afetados pela crise capitalista e
20 pelo desemprego. Além disso, o ex-presidente não consegue mais empolgar a ampla
21 maioria da nova geração de jovens que adentrou recentemente o mercado de trabalho ou
22 está nas universidades. Mantendo apenas a hegemonia sobre as burocracias decadentes
23 de sindicatos, movimento estudantil e movimentos populares.
24
25 5.4- As mobilizações operárias de 2017: o salto da luta de classes
26 O movimento sindical oficial viveria seu canto de cisne em 2017 pois já não mais
27 carregava o fardo de defender o governo Dilma. Verificamos ali uma mudança de
28 qualidade na conjuntura de greve de massas no Brasil em torno da luta contra a reforma
29 da previdência de Michel Temer. O acúmulo quantitativo de greves entre 2013 e 2016
30 acabou por transformar-se qualitativamente neste importante embate da guerra de classes.
31 O projeto de Temer vinha no mesmo sentido das outras contrarreformas da
32 previdência feitas por FHC (1998) e Lula (2003). Entretanto, diferentemente dos
33 presidentes anteriores, a conjuntura era de crise capitalista e de expansão da luta popular
34 e das greves. Ainda que o sentimento preponderante nas encasteladas burocracias
147

1 sindicais fosse o de letargia diante da impotência em bloquear o impeachment de Dilma,


2 o ano começou com grandes manifestações contra o governo de Temer. Assim,
3 rapidamente, o vice-presidente, um notório corrupto e liberal escolhido por Lula,
4 experimentava uma rejeição recorde diante da população.
5 Com base na evidência de que havia disponibilidade de luta por parte das massas
6 e desamarrados da necessidade de defender o impopular governo de Dilma, as centrais
7 sindicais reúnem-se no dia 27 de março, convocando para 28 de abril a greve geral.
8 Depois de décadas em que as principais centrais sindicais do país “faziam de conta” que
9 mobilizavam as bases, o chamado para a greve geral de abril daquele ano foi verdadeiro.
10 As nove centrais sindicais reunidas (CUT, UGT, Força Sindical, CSB, CTB, NCST,
11 CGTB, Intersindical e CSP-Conlutas) iniciaram um largo processo de agitação política
12 perante a classe trabalhadora. A enorme máquina sindical, que nas últimas décadas só se
13 movia verdadeiramente nos processos eleitorais, enfim entrou verdadeiramente na guerra
14 de classes.
15 A palavra de ordem da mobilização era unitária e de simples acesso ao povo: “se
16 a reforma passar, você irá trabalhar até morrer”. No dia 28 de abril o clima na sociedade
17 era de plena aceitação e adesão à greve geral. Categorias estratégicas, como trabalhadores
18 dos transportes urbanos e portuários, realizaram assembleias e decidiram em conjunto
19 cruzar os braços. Outros setores de maior tradição organizativa também deliberaram pela
20 paralisação, como bancários, metalúrgicos, petroleiros, professores, trabalhadores da
21 saúde, etc. Movimentos populares, por sua vez, davam suporte às ações.
22 O dia da greve geral amanheceu e o resultado de todo o processo de agitação
23 política se fez notar. Metrôs e ônibus parados nas diversas capitais do país, indústrias com
24 piquetes em seus portões de entrada, vias urbanas fechadas por manifestantes e, o
25 principal, a adesão passiva da enorme massa trabalhadora. Não havia pressão da massa
26 desorganizada sobre os setores organizados para que eles liberassem os piquetes, pelo
27 contrário, a maioria dos trabalhadores nem ao menos saiu de casa.
28 Os prejuízos à classe dominante foram enormes. Apenas o comércio varejista
29 brasileiro perdeu R$ 5 bilhões naquele dia18, isso sem contar o prejuízo para os demais
30 setores. O capital sentia a força do golpe unificado da classe trabalhadora. As pesquisas
31 de opinião, divulgadas no início de maio, indicaram que os trabalhadores haviam vencido

18
https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2017/04/29/internas_economia,866028/greve-
provocou-rombo-de-r-5-bi-no-comercio-brasileiro-diz-fecomercio.shtml.
148

1 os monopólios da comunicação e a mídia oficial do governo. Mais de 70% da população


2 brasileira era totalmente contrária à reforma da previdência19.
3 Desta forma, em reunião após a vitória de 28 de abril, as centrais sindicais
4 convocaram uma marcha à Brasília para o dia 24 de maio de 2017. O novo processo de
5 agitação levou, segundo a CUT, em torno de 200 mil pessoas à capital federal. O conflito
6 se instalou abertamente na Esplanada dos Ministérios. Diante do radicalismo manifesto,
7 as direções de centrais como UGT, Força Sindical, NST e NCST orientaram suas bases a
8 debandar. A direção da CUT, por sua vez, em comando dado de maneira unificada aos
9 seus sete caminhões de som, determinou que seus sindicalistas de base não avançassem
10 em direção ao confronto. O conjunto das tensões de mais de cinco anos de conjuntura de
11 greve de massas entravam em choque com as contraditórias e vacilantes direções
12 sindicais. Parte dos sindicalistas da Força Sindical, da UGT e, principalmente, da CUT,
13 decidiram por avançar, a despeito da ordem das cúpulas.
14 Acendeu assim o sinal de alerta para as burocracias das principais centrais
15 sindicais, pois perceberam que a agitação política consequente contra o governo Temer
16 estava provocando a radicalização de suas bases. A radicalização colocava em xeque as
17 próprias direções burocratizadas da maioria das centrais. Com o faro político
18 característico de dirigentes que construíram vidas inteiras assentadas sobre os aparelhos
19 sindicais, perceberam que era hora de boicotar a ascensão das lutas dos trabalhadores.
20 Duas foram as estratégias utilizadas para desmobilizar a luta proletária: de um
21 lado, subverteram a pauta das mobilizações. Por outro, postergaram a data da nova
22 paralisação. Em consequência, se no início do ano tratava-se de combater a reforma da
23 previdência e denunciar a podridão do sistema, passaram a propor as “Diretas Já”, o
24 embrião da fracassada campanha “Lula livre”. A operação já havia sido iniciada uma
25 semana antes da marcha à Brasília, quando o escândalo da gravação da conversa entre
26 Joesley Batista (dono da JBS) e Michel Temer havia estourado. O presidente vivia seu
27 período de maior instabilidade e, imediatamente, os setores petistas do sindicalismo
28 passaram a pedir as “Diretas Já”, na esperança que Lula pudesse retornar à presidência.
29 Diante desta impostura, a classe trabalhadora imediatamente retomou a velha
30 desconfiança perante os dirigentes sindicais. Já haviam rompido com o petismo e com
31 Lula ao apoiarem o impeachment de Dilma em 2015 e já tinham votado em massa contra

19
http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/05/1880384-reforma-da-previdencia-e-
rejeitada-por-71-dos-brasileiros.shtml.
149

1 as candidaturas petistas nas eleições municipais do final de 2016 (as cidades onde o
2 petismo foi mais rechaçado foram justamente aquelas de maior presença operária).
3 O ímpeto da sociedade já não era mais afeito a mudanças bruscas de rota no
4 sentido da conciliação de classes e da defesa do sistema democrático burguês. Era, de
5 fato, uma posição em busca de uma ruptura e não de reconstituição da velha forma de
6 governo, que já havia sido testada e reprovada na dura prova da História. O sentimento
7 generalizado era “contra tudo e contra todos”, contra o sistema político em sua totalidade,
8 contra petistas e tucanos, os representantes do governo nos 25 anos anteriores. Para uma
9 geração inteira da classe trabalhadora, que cresceu e se acostumou a sentir na pele a
10 persistente deterioração das condições de vida, resultado direto da própria administração
11 do sistema petucano, a tentativa de reconstituir um de seus polos como horizonte político
12 é justamente jogar água fria na ascensão das mobilizações populares.
13 Por outro lado, como estratégia complementar a mudança da pauta, as maiores
14 centrais trataram de postergar a nova data de mobilização nacional. Nova greve geral seria
15 proposta apenas para o tardio dia 30 de junho de 2017. A data, no entanto, foi apenas
16 formal. Na prática as grandes centrais trataram de não movimentar suas bases e seus
17 recursos como haviam feito desde o início do ano. As direções mostraram seus
18 verdadeiros interesses e seus limites históricos: a ausência de perspectiva revolucionária
19 e a adequação à ordem democrática burguesa. Assim chegava melancolicamente ao fim,
20 por insuficiência política das direções do movimento sindical, o maior processo de
21 agitação grevista dos últimos anos.
22 A energia acumulada desde o início do ano, ao não mudar de forma e adquirir
23 conteúdo efetivamente revolucionário, tratou de se dissipar nas massas. A partir de então,
24 um sentimento de profunda frustração comandou o segundo semestre de 2017. Nas
25 massas trabalhadoras venceu a ideia de que nada poderia ser mudado, impondo um
26 momentâneo clima de desmobilização. As direções do movimento sindical, por sua vez,
27 trataram de criar as condições para seu próprio fim. Ao desmobilizarem a luta política
28 dos trabalhadores abriram o flanco necessário para a classe dominante retomar a ofensiva.
29 As mobilizações realizadas durante todo o primeiro semestre de 2017 paralisaram
30 o governo Temer mediante o protagonismo dos trabalhadores que ganhavam as ruas e
31 colocavam em xeque a reforma da previdência; no entanto, assim que as centrais puxaram
32 o freio na mobilização o governo tratou de reconstituir a ofensiva em outro front de
33 batalha. Aprovou, sem qualquer resistência, a reforma trabalhista em julho de 2017, que
34 passou a vigorar na sequência, logo em novembro. Entre um conjunto brutal de leis
150

1 destinadas à destruição de direitos dos trabalhadores, passou também o fim do imposto


2 sindical e das taxas negociais e assistenciais, o que reduziu em mais de 90% as receitas
3 das centrais sindicais a partir do início de 2018.
4 Terminava assim o confronto de 2017. As forças em luta, governo Temer de um
5 lado, sindicatos de outro, não tiveram condições de levar o confronto até seu momento de
6 decisão final e, por isso mesmo, foram triturados, logo na sequência, pelo moinho da
7 época revolucionária que vivemos no Brasil. Temer saiu de cena repudiado pela
8 população (encerra seu mandato com mais de 95% de índice de rejeição) e perseguido
9 pela própria máquina estatal de repressão, apoiada na Lava Jato e nas casernas militares.
10 De outro lado, o grande produto da incapacidade de condução da guerra pelas centrais
11 sindicais seria a própria liquidação do seu principal, senão único, pilar de sustentação: o
12 imposto sindical. Era o desfecho de mais uma etapa que anunciava o fim dos velhos
13 tempos da conciliação de classes e amplificava as bases da guerra de classes. Os velhos
14 comandos, nascidos ambos da mesma costela da democracia burguesa, hesitantes e
15 acostumados aos conchavos dos salões, precisavam dar lugar aos novos generais, mais
16 agressivos e preparados para a cruenta luta entre revolução e contrarrevolução.
17
18 5.5- Limites e crise da burocracia sindical diante da guerra de classes
19 Longe de uma onda conservadora ou da ascensão do fascismo, vivemos desde
20 2012 uma conjuntura em que a dinâmica capitalista apresenta uma profunda crise e impõe
21 uma guerra de classes contra os trabalhadores brasileiros. Cria-se, assim, fissuras e
22 contradições no próprio domínio burguês. As taxas de desemprego elevadas, o enorme
23 contingente de subempregados, a queda da massa salarial e os problemas sociais
24 decorrentes da necessidade do capital recompor suas taxas de lucro estão na raiz da
25 instabilidade política que liquidou com a hegemonia inconteste do sistema petucano.
26 A velha forma de organizar a sociedade burguesa, assentada na farsa das
27 fraseologias e intrigas palacianas do Estado democrático de direito, não pode mais dar
28 conta dos novos tempos de guerra de classes. A guerra tratou de colocar a nu as ideologias.
29 Nela não há espaço para disputas meramente narrativas. Os lados em luta revelam todas
30 as suas forças e suas fraquezas. A violência impõe o realismo como pressuposto da ação
31 consequente. “Tudo que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo que era sagrado é
151

1 profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição
2 social e as suas relações com outros homens.”20
3 É nesse sentido que as burocracias sindicais, arraigadas às formas passadas de
4 condução da atividade política, desmoronaram diante da intensificação da guerra de
5 classes. A crise sindical não é produto da mera “atuação da direita ou do golpe”, como se
6 fosse um deus ex machina que surge ao final do terceiro ato para explicar esotericamente
7 as origens da falência de uma estrutura sindical completamente conformada à ordem
8 burguesa. A crise é fruto da história das lutas sindicais no país, de seu ressurgimento
9 original no final da década de 70, do limite de sua direção petista e cutista e de sua
10 sistemática decadência a partir dos anos 90.
11 Esta crise que veio à tona na ofensiva da classe dominante e na impotência das
12 direções sindicais lhe fazerem frente não é de agora. Ocorre que, desde o final dos anos
13 80, vigora uma trajetória política dentro da principal central sindical brasileira, a CUT,
14 que tratou de eliminar todos os elementos revolucionários de sua fundação. A central,
15 comandada pela sua direção vinculada ao projeto lulista, adequou-se à ordem democrática
16 burguesa brasileira. De movimento e organização de ruptura com o sistema no final dos
17 anos 70 e início dos anos 80 (período de sua fundação), passou a consolidar-se como
18 instituição operacional dentro da razão de Estado, como parte do sistema petucano.
19 O final dos anos 70 e o início dos anos 80 foram de emergência do protagonismo
20 operário. A velha toupeira, que estava nas profundezas da sociedade brasileira após a
21 violenta repressão às greves de 1968, ressurgiu dez anos depois. As greves dos
22 metalúrgicos do ABC paulista do final dos anos 70, o vitorioso movimento de oposição
23 bancária (MOB) nos anos 80, a criação do sindicalismo do setor público após o fim da
24 ditadura, a organização dos trabalhadores rurais em torno da CONTAG e do MST e outras
25 significativas vitórias políticas da classe trabalhadora contra o capital foram as fontes
26 vitais da criação do PT (1980) e da CUT (1983).
27 Aquela explosão política revolucionária que emergia da crise mundial do capital
28 dos anos 70, que colocou em xeque a ditadura militar e tencionou pelo seu fim, tratou de
29 ser canalizada para a criação dos poderosos instrumentos organizativos da classe: o
30 partido e a central sindical. Novos dirigentes sindicais sem experiência de luta anterior,
31 católicos radicais inspirados pela teologia da libertação, intelectuais que voltavam do

20
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.
152

1 exílio e ex-combatentes da luta armada se somavam no esforço de criação destes


2 importantes instrumentos de luta da classe trabalhadora.
3 Também era comum dentro da CUT, principalmente em seu setor hegemônico
4 articulado em torno de Lula e do dito “novo sindicalismo”, a negação do passado de lutas
5 da classe trabalhadora no pré-64. Criava-se a poderosa ideologia de que uma grande
6 novidade havia surgido no Brasil, visando jogar na lata do lixo a profunda experiência
7 comunista e trabalhista que havia se desenvolvido no sindicalismo brasileiro. Combatia-
8 se desta forma figuras como a de Luís Carlos Prestes e, principalmente, Leonel Brizola,
9 afirmando Lula como a grande novidade daquele período.
10 Rapidamente, no entanto, a radicalidade originária da central foi apagada e, a
11 “grande novidade”, tratava-se apenas da tentativa de reedição do decadente sindicalismo
12 socialdemocrata importando da Alemanha e dos Estados Unidos, isso sem levar em conta
13 o subdesenvolvimento e a dependência que é constitutivo da formação da classe
14 trabalhadora brasileira. Já no III Concut de 1988, por influência decisiva da ascendência
15 de Lula e seus apoiadores, a central filiava-se à Confederação Internacional de
16 Organizações Sindicais Livres – CIOSL. Esta confederação, que aglutinava todas as
17 forças contrarrevolucionárias e revisionistas inspiradas pela socialdemocracia europeia e
18 pelo sindicalismo estadunidense, propunha um movimento sindical de tipo propositivo e
19 negociador, que negava as experiências clássicas de conquista do poder pelos
20 trabalhadores e apostava nos “diálogos sociais e nas mesas tripartite (trabalhadores,
21 patrões e Estado)” como forma de melhorar as condições de vida da classe.
22 A CUT, orientada pela estratégia de capitulação à ordem burguesa democrática
23 que obtinha sistematicamente a hegemonia dentro do PT, negava a história da classe
24 trabalhadora em nome da modernidade capitalista: o aperfeiçoamento do sistema salarial
25 de exploração. Em âmbito nacional, repudiava a experiência sindical e política do pré-64.
26 No terreno internacional, tratava como autoritárias e atrasadas as revoluções socialistas
27 do século XX. Enfim, ao negar a superação radical do modo de produção capitalista,
28 regredia historicamente e politicamente na aproximação com as experiências fracassadas
29 de negociação e pactuação dentro da ordem.
30 A central sindical que surgiu do que havia de mais orgânico na luta de classes
31 brasileira, passava por um profundo transformismo. No início, a questão era tão somente
32 abdicar do passado anterior ao seu surgimento mas, no desenrolar do desenvolvimento da
33 própria central, a questão passou a ser negar a história dela mesma. Ao derrotar a
153

1 “esquerda da CUT” já no Concut de 1988, a entidade rapidamente se aproximava das


2 práticas dos pelegos que tanto criticou em sua origem.
3 A fundação da Força Sindical em 1994, por sua vez, viria sepultar definitivamente
4 qualquer ímpeto revolucionário da CUT. Fundada com recursos da burguesia paulista e
5 com práticas orientadas para o “sindicalismo de resultados”, a “concorrência” da Força
6 trataria de acelerar o posicionamento da central pela não radicalização política. Decidiu
7 por assemelhar-se ao adversário e estabelecer um “pacto de não agressão”, através do
8 qual, desde aquele período, extinguiram-se os movimentos massivos de oposições
9 sindicais, cada qual protegendo os seus sindicatos entendidos como propriedade privada.
10 Se de um lado a trajetória política da CUT rapidamente se definia e encaminhava
11 para a negação da sua força originária, por outro, a manutenção do imposto sindical
12 moldava a construção de um imenso contingente de neopelegos. Novos sindicatos de
13 gaveta e novos sindicalistas oportunistas que veem a estrutura sindical como mero espaço
14 de beneficiamento pessoal multiplicavam-se como moscas diante da carcaça do que já
15 havia sido um sindicalismo vivo.
16 Juntamente por conta disso, a classe dominante tratou de dar uma resposta aos
17 movimentos grevistas massivos dos anos 70 e 80. Um conjunto de mudanças nas relações
18 de trabalho foi implementado na virada dos 80 para os 90, a chamada reestruturação
19 produtiva. Transformações profundas na forma de contratar e explorar a força de trabalho,
20 que afetaram diretamente os setores mais avançados da classe trabalhadora, prejudicando
21 enormemente a capacidade de organização das categorias que haviam sido a vanguarda
22 do movimento operário na redemocratização.
23 Quando da chegada de Lula ao governo em 2002, em meio a um esvaziamento da
24 conjuntura de greves desde 1998, seria desferido o tiro de morte em qualquer ímpeto
25 radical que ainda subsistia. A adequação da maioria dos sindicatos à razão de Estado foi
26 quase completa, passando a operar como mera correia de transmissão do governo e dos
27 parlamentares petistas. Logo no primeiro ano de Lula, parte expressiva do movimento
28 sindical apoiaria a nefasta reforma da previdência de 2003, o severo ajuste fiscal e as
29 reformas do ministro da fazenda, Antônio Palocci. Nos períodos eleitorais, por sua vez, a
30 máquina sindical se mobilizava, multiplicando o número de cabos eleitorais e
31 contribuindo para reeleger os candidatos petistas. Rendia-se totalmente ao cretinismo
32 parlamentar, resumindo sua atividade política à luta dentro do parlamento.
33 A partir de 2005, com a conjuntura de elevação dos preços internacionais dos
34 produtos de exportação, um ciclo de forte geração de empregos seria iniciado,
154

1 estendendo-se até 2014. A natureza deste emprego, no entanto, não era de caráter
2 industrial nos moldes dos empregos dos anos 80. Esses setores já haviam passado pela
3 reestruturação produtiva, necessitando de menos trabalhadores em seus processos de
4 produção. Preponderou o emprego terceirizado no setor de serviços, o que, em uma
5 estrutura de financiamento baseada no imposto sindical recolhido sobre um dia do salário
6 de cada trabalhador, iria enriquecer brutalmente os sindicatos que representavam estas
7 categorias. Sindicatos que, majoritariamente, são meros cartórios de registro, com
8 práticas de domínio da estrutura sindical que em alguns casos assemelham-se ao
9 “gangsterismo”, sem qualquer tipo de trabalho de mobilização e politização das
10 categorias.
11 Estava criada assim a hegemonia completa do neopeleguismo, já que estes
12 sindicatos, federações e confederações, com seu enorme poder financeiro e de liberação
13 de dirigentes, passava a ser central na estratégia parlamentar, diminuindo a expressão
14 política e isolando os poucos sindicatos que mantiveram uma posição combativa mesmo
15 diante do governo de Lula e Dilma. Por fim, em 2008, através da lei nº 11.648/2018
16 promulgada por Lula, as centrais sindicais, que até então nunca haviam tido acesso ao
17 imposto sindical, também passavam a receber este recurso. Sem projeto político de
18 ruptura com a ordem capitalista, o dinheiro passava a ser utilizado única e exclusivamente
19 para ampliar os quadros burocráticos, multiplicar o número de centrais sindicais e dar boa
20 vida aos ditos dirigentes. Esta estrutura, apodrecida por anos de estratégia social liberal
21 inspirada na decadência da social democracia dos países centrais, trataria de se mostrar
22 completamente podre apenas no momento de ressurgimento da velha toupeira.
23 Dessa forma, as greves de massas a partir de 2013 e o seu apogeu em 2017 tiveram
24 como principal produto a superação histórica destas burocracias sindicais por parte dos
25 trabalhadores. Os aparelhos já não controlam as massas proletárias e várias greves foram
26 tocadas pelas bases, muitas vezes contra as direções sindicais21. Diante desta
27 incapacidade histórica de operarem como conciliadores, como o “algodão entre os
28 cristais”, não restou qualquer dúvida ao Estado burguês: era hora de dar fim ao próprio
29 imposto sindical que sustentava uma casta impotente para enfrentar os novos tempos.
30
31

21
Dois exemplos claros disso são a greve dos garis do Rio de janeiro em 2013 e a greve dos caminhoneiros
de 2018.
155

1 5.6- Centralidade da classe trabalhadora e crise dos partidos


2 A despeito dos limites de suas direções, a conjuntura recente demonstrou que os
3 sindicatos e as centrais sindicais, quando orientados por um claro projeto classista e
4 radical, são as principais forças políticas de massas capazes de se opor à classe
5 dominante. Não foram as frentes de movimentos sociais (Povo Sem Medo e Brasil
6 Popular) e os coletivos organizados em torno de causas (mulheres, negros, LGBT, meio
7 ambiente, etc.) que puxaram as batalhas mais consequentes da guerra de classes. Aliás,
8 estes movimentos de caráter fragmentário, que negam a totalidade do capital, mostraram
9 justamente seu profundo esgotamento no processo eleitoral de 2018.
10 Essa ideologia comandou a estruturação dos partidos políticos de esquerda na
11 última década, chegando ao cúmulo na derrotada candidatura à presidência da república
12 do PSOL em 2018. O discurso que presidiu a estratégia foi o da dita aliança entre
13 “movimentos sociais, partidos, intelectuais, artistas, coletivos de mídia, etc.” em uma
14 chapa encabeçada por Guilherme Boulos (movimento social pela moradia) e Sonia
15 Guajajara (causa indígena). Esta estratégia, no entanto, levaria o PSOL a pior derrota
16 política e eleitoral de sua curta história.
17 Longe de uma fragmentação da classe trabalhadora, que impossibilitaria a
18 organização dos operários em torno dos sindicatos, vivemos na atualidade a maior
19 centralização de trabalhadores da história do Brasil. O país tem um índice de 90% de
20 urbanização, com concentração de 50% da população brasileira em 26 regiões
21 metropolitanas e a massificação dos meios de comunicação, o que estreitou as distâncias
22 entre a classe22.
23 Obviamente, esta fuga para os movimentos sociais também é expressão da
24 falência da burocracia sindical que está em marcha desde os anos 90. Diante da sua
25 adequação à ordem e ao fechamento de suas portas para a nova geração da classe
26 trabalhadora – radicalizada por sua inserção sem propriedade no mercado de trabalho –,
27 a juventude tratou de direcionar seu ímpeto revolucionário para os coletivos ativistas e
28 para os movimentos populares, em um movimento que recorrentemente gera frustração
29 política e estreitamento da vida útil do militante. Este adentra a luta ativista no movimento
30 estudantil e, assim que encerra seu ciclo universitário e precisa ingressar no mercado de
31 trabalho, abandona ou minimiza em muito a sua militância já que não encontra
32 instrumentos políticos para permanecer atuando.

22
Dados do IBGE.
156

1 Também é sustentáculo da ideologia da fragmentação a profunda crise dos


2 partidos originalmente de esquerda, que perderam a capacidade intelectual de formular
3 teoria para aglutinar a militância em torno de um projeto nacional revolucionário. Não se
4 trata mais de revolucionar a sociedade capitalista e atacar o sistema, trata-se de encontrar
5 melhores formas de incorporação/inclusão das “minorias” dentro da ordem institucional
6 burguesa, sempre na luta pelo direito individual ou, quando muito, do direito coletivo de
7 determinado “setor social”. No fundo, é o cálculo parlamentar que sustenta esta dinâmica,
8 aproveitando-se do fato de que movimentos sociais e ativismo em torno de causas são
9 bastante efetivos para conquistar votos nos guetos progressistas da sociedade, sustentando
10 assim a eleição de novos parlamentares que não conseguem adentrar no terreno sindical,
11 já dominado pelos parlamentares da “velha guarda petista”.
12 Não há dúvidas que movimentos populares e ativismo em torno de causas são
13 importantes, porém, desde que estejam subordinados e secundarizados a uma totalidade
14 estruturada em torno do trabalho. Não qualquer trabalho sem concretude histórica, mas o
15 trabalho subordinado ao capital, o trabalho assalariado. Este não se resume àquele de
16 carteira assinada, mas também a todas as demais formas de exploração de força de
17 trabalho, tenham elas contrato formal ou não. Esta totalidade em torno do trabalho, por
18 sua vez, não pode ser confundida com a luta meramente sindical. Esta também, mesmo
19 que em enfrentamento direto com as condições capitalistas objetivas de criação da
20 riqueza, apresenta caráter parcial e limitado.
21 O que aglutina a enorme maioria da população brasileira, os trabalhadores, não
22 são as pautas fragmentárias, mas sim as pautas que constituem o drama do povo brasileiro.
23 Na crise capitalista, estes trabalhadores não encontram emprego, se desesperam perante
24 o alto preço da comida, choram os mortos da violência urbana, carecem de atendimento
25 público na saúde e educação e assim por diante. O programa para dar solução a estes
26 dramas só pode ser estabelecido pelo partido de caráter revolucionário, entendendo que
27 apenas através da libertação violenta do trabalho do jugo do capital, ou seja, do fim
28 da propriedade privada dos meios de produção, é possível resolver todos os
29 elementos da questão nacional.
30 Não se trata assim da soma de todas as pautas particulares, mas da leitura
31 totalizante que estabelece um programa estratégico a ser levado em frente nos diferentes
32 espaços de enfrentamento ao capital. Isso sem perder de vista, obviamente, que algumas
33 frentes de atuação, pela sua própria capacidade de impor perdas reais ao capital, são
34 prioritárias em relação a outras. Por isso a centralidade dos sindicatos e de movimentos
157

1 populares que organizam trabalhadores e a secundarização do ativismo em torno das


2 causas e de movimentos sociais.
3 Dessa forma, a crise que de fato faz emergir a fragmentação da classe é a crise
4 intelectual dos partidos de esquerda, que, desde há muito tempo, exterminaram a
5 perspectiva revolucionária de suas formulações. Reféns da fragmentação da dinâmica
6 parlamentar e incapacitados para discutir a questão nacional que aflige o povo brasileiro,
7 os vários setores do progressismo de esquerda foram surpreendidos pela potência das
8 greves de massa desde 2013, da greve geral de 2017 e pela surpreendente e poderosa
9 greve dos caminhoneiros de 2018. Ficaram “a ver navios”, agarrados ao “vitimismo”
10 impotente da narrativa do golpe e da campanha “Lula livre” e convocando
11 sistematicamente atos e marchas que não fazem mais que cócegas no poder
12 institucionalizado da classe dominante.
13
14 5.7- O que fazer?
15 O desfecho do combate decisivo de 2017 fez ambas as forças em luta caírem no
16 campo de batalha. Em essência, foi o último suspiro do liberalismo, tanto de esquerda
17 quanto de direita. A greve dos caminhoneiros, logo no início de 2018, seria a evidência
18 deste novo cenário. Após um segundo semestre monótono, típico de uma promessa de
19 radicalização frustrada pela hesitação das direções sindicais, os caminhoneiros
20 recolocariam o radicalismo político no centro da cena. Desesperados pela perda eminente
21 de seus caminhões23, os caminhoneiros autônomos puxaram uma greve de magnitude
22 nacional que paralisou a produção de riqueza no Brasil e colocou a faca no pescoço da
23 república.
24 Contraditoriamente, não foi nenhuma força de esquerda que dirigiu o movimento
25 grevista. Mais uma vez a esquerda liberal caracterizou a reivindicação legítima dos
26 caminhoneiros como uma nova etapa do “golpe”. Diante de mais essa incapacidade da
27 esquerda liberal de compreender as contradições do real, a direita radical, alicerçada pela
28 vitória dos caminhoneiros, passou a dar as cartas mais nitidamente. Um parlamentar do
29 baixo clero, tenente degenerado do exército e proto-fascista defensor da tortura se
30 apresentou como o crítico de “tudo que está aí”. A direita liberal, tucana e emedebista,

23
Para análise mais profunda da greve dos caminhoneiros de 2018, a Coordenação Nacional da
Revolução Brasileira escreveu texto no momento dos acontecimentos. Disponível em:
https://revolucaobrasileira.org/25/05/2018/nota-do-programa-da-revolucao-brasileira-sobre-a-greve-
dos-caminhoneiros/.
158

1 encontraria em Jair Bolsonaro sua superação. Um sujeito tosco e, exatamente por isso,
2 mais preparado para conduzir a guerra de classes do que os acadêmicos tucanos de alta
3 plumagem.
4 De outro lado, a esquerda ainda não encontrou a sua expressão de radicalismo. A
5 crença nas ilusões do petismo permanece como um impeditivo para esse necessário
6 avanço. Enquanto força organizada, a esquerda liberal tem perdido aceleradamente o
7 apoio dos sindicatos oficiais. A queda de receita verificada nas centrais sindicais oscilou
8 e encontra-se em mais de 90%, uma drástica redução do principal pilar de sustentação do
9 poderio da burocracia sindical: a disponibilidade de recursos e de militantes liberados
10 para a política.
11 Por isso mesmo, durante o ano de 2019, várias centrais sindicais (como a UGT, a
12 Força e até mesmo a CUT) fizeram reuniões de aproximação com o governo de
13 Bolsonaro, sendo que do conteúdo destas reuniões muito pouco foi divulgado. A
14 burocracia sindical, defrontando-se com o fato de que não tem vigor e disposição para o
15 tamanho da luta exigida em meio à guerra de classes, busca desesperadamente reeditar
16 um passado negocial que não existe mais. O mesmo ocorre diante dos processos de
17 radicalização das campanhas salariais, em que parte expressiva dos sindicatos insiste em
18 buscar o diálogo com a classe dominante e desmobilizar os enfrentamentos políticos
19 radicais.
20 Entretanto, se a guerra de classes encontrou eleitoralmente em Bolsonaro um
21 tradutor do sentimento antissistema, agora ela entra em nova fase. O governo do capitão,
22 dos generais, dos pastores e do juiz passa a ser a ponta de lança do ultraliberalismo:
23 radicalização da lógica da austeridade sobre o povo brasileiro, das privatizações e da
24 incapacidade de recuperar as mínimas condições de emprego e salário. Por isso mesmo o
25 governo já começa a entrar em contradições, apresentando um conjunto de medidas
26 altamente impopulares em meio aos resultados regressivos da economia brasileira. Por
27 isso mesmo, a popularidade do governo caiu entre os trabalhadores durante todo o ano de
28 2019.
29 O sindicalismo, diante desse contexto, pode ressurgir. Pode cumprir um papel de
30 vanguarda na organização e direcionamento da luta dos trabalhadores urbanos e rurais
31 nas greves que certamente irão permanecer diante de condições de vida cada vez mais
32 precárias. Sinais de que as velhas direções apodrecidas têm cada vez menos capacidade
33 de barrar as greves foram dados pela última pesquisa de greves do Dieese, que mostrou
34 que, de cada dez greves no setor privado, sete ocorrem em categorias e empresas
159

1 terceirizadas, com baixíssima organização sindical tradicional. Outro sinal são os ensaios
2 para grandes greves nacionais que ocorreram em várias categorias estratégicas em 2019,
3 como caminhoneiros, servidores públicos, petroleiros, trabalhadores dos Correios, etc.
4 Diante disso, o papel dos revolucionários, antes de atuar desesperadamente na
5 tentativa de disputar estruturas sindicais burocratizadas e ineficazes para a guerra de
6 classes, é reconstituir uma vanguarda política revolucionária no Brasil. Nas lutas
7 concretas dos trabalhadores, especialmente nas greves que certamente continuarão a dar
8 a tônica da luta dos trabalhadores nos próximos anos, devemos orientar nossa atuação
9 pela crítica sistemática e radical à experiência democrática liberal recente. Assim, é
10 preciso avançar na formação desta vanguarda que compreenda e formule sobre esta época
11 histórica onde revolução e contrarrevolução medem forças. Se Bolsonaro foi a superação
12 do liberalismo de direita por meio do avanço da contrarrevolução, precisamos
13 urgentemente construir a expressão política da revolução brasileira, que só pode ocorrer
14 em meio às lutas concretas da classe trabalhadora.
15 E assim sendo, no interior da luta sindical, é preciso não ceder um milímetro
16 sequer para a decadente burocracia sindical e partidária, que procura desesperadamente
17 reconstituir o passado idealizado de benesses dos governos petistas. Os exemplos se
18 sucedem desde 2013 e comprovam a tese de que a classe está divorciada do PT enquanto
19 partido da ordem e de Lula, sua principal expressão pública. Se essa burocracia ainda tem
20 força para definir os rumos da esquerda institucionalmente, não apresenta mais qualquer
21 capacidade de ler os acontecimentos vindouros. Com isso, conjunturalmente, é
22 preciso ter a clareza e coragem necessárias para defender publicamente que a campanha
23 “Lula livre”, assim como as “Diretas já” em 2017, concorreram para a desmobilização da
24 classe trabalhadora em 2019.
25 A classe efetivamente não acredita mais nas lideranças que se forjaram no
26 processo de redemocratização. Muito menos em sua crença em torno da institucionalidade
27 e da ordem democrática burguesa. A crise da democracia parlamentar é completa e tende
28 a apenas deteriorar as condições sociais e ampliar o radicalismo da luta política. Por isso
29 mesmo, campanhas como a de que “ninguém solta a mão de ninguém”, “em defesa da
30 democracia” e outras tantas ilusões em torno da ordem burguesa, apenas servem para criar
31 repúdio da classe trabalhadora, que não aguenta mais os já seis anos acumulados de crise
32 e as quatro décadas de depredação das suas condições de vida e trabalho.
33 A ideia de uma unidade abstrata em defesa da democracia, envolvendo todos os
34 partidos progressistas e absorvendo suas pautas, é um verdadeiro suicídio político. Os
160

1 revolucionários devem gozar de absoluta independência em relação às forças que


2 compuseram os batalhões da ordem burguesa durante quase duas décadas e agora voltam
3 para as ruas munidos de bandeiras ditas democráticas. Frente única apenas nas lutas
4 concretas: contra a reforma da previdência, o aprofundamento da reforma trabalhista, as
5 privatizações, a destruição do serviço público e os ataques específicos contra as
6 categorias. Unidade para defender bandeiras alheias aos anseios da classe ou unidade no
7 parlamento serve apenas para confundir e desorientar os trabalhadores. Por isso mesmo,
8 nenhum suposto isolamento pode ser visto como definitivo. Esta vanguarda
9 revolucionária a ser construída, do qual a Revolução Brasileira é um esforço fundamental,
10 precisa ser capaz de estabelecer uma clara ruptura com o petucanismo em meio ao
11 confronto com Bolsonaro e à contrarrevolução. A conjuntura revolucionária permanecerá
12 nos próximos anos e esta vanguarda organizada será o fiel da balança da reorganização
13 do movimento sindical. A superação das ilusões liberais, desta maneira, é a única forma
14 de recuperar a capacidade dos sindicatos atuarem como os fundamentais aríetes contra as
15 fortalezas do capital.
16
17 6- MOVIMENTO ESTUDANTIL – ESTRATÉGIA E TÁTICA
18
19 6.1- A universidade brasileira

20 As formas políticas que tomam a institucionalidade no Estado burguês nunca


21 devem ser entendidas de maneira independente, mas sim através das necessidades
22 estabelecidas pela burguesia com vistas à acumulação de capital, contra as necessidades
23 concorrentes dos trabalhadores frente ao processo de exploração a que são submetidos .
24 Neste sentido a crise capitalista mundial, que tem seu desenrolar desde o final dos anos
25 60 e expressa-se no país no final dos anos 70 e começo de 80 com o processo
26 hiperinflacionário e a falência do II PND, coloca a ditadura militar contra a parede,
27 iniciando, então, uma abertura gradual para a transição ao “Estado Democrático”. O
28 contexto mais amplo dessa crise do capital, decorrente da impossibilidade de aumentar as
29 forças produtivas e, por consequência, as taxas de lucro, demanda novas formas para
30 garantir a ampliação e reprodução do capital. Dentre essas novas formas está a
31 reconfiguração do papel do Estado, com restrição de sua ação nas diversas esferas da vida
32 social. Esse processo de crise é resolvido pela burguesia brasileira em 1994, com o Plano
33 Real, quando a abertura de capitais e a dívida pública, através das altas taxas de juros e
161

1 da Lei de Responsabilidade Fiscal alguns anos depois, tomam a forma de apropriação dos
2 capitais e de garantia de rentabilidade, uma vez que os ganhos advindos do processo
3 hiperinflacionário já tornavam-se inviáveis dada a instabilidade social por ele gerada.

4 A nova conjunção político-econômica que se expressa através do Estado brasileiro


5 com o Plano Real abre o processo de consolidação do capital privado na educação
6 brasileira, que tivera lastro na ditadura militar - período em que as matrículas do setor
7 privado ultrapassam pela primeira vez as matrículas do setor público no ensino superior
8 brasileiro. A mudança na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 1996,
9 coloca o Estado no controle e gestão das políticas de ensino superior, em alinhamento
10 com as políticas determinadas pelos órgãos supranacionais a serviço do imperialismo
11 estadunidense para garantir o controle e expansão dos grandes monopólios. Em
12 observância às determinações desses órgãos, quais sejam, a Organização Mundial do
13 Comércio (OMC), a Organização das Nações Unidas (através da UNESCO), o Banco
14 Mundial (BM), etc., o Estado brasileiro efetua a abertura para a privatização do ensino,
15 dando a tônica da forma como o capitalismo rentístico, que se estrutura a partir do Plano
16 Real, tem na sua estrutura a ampliação do sistema educacional.

17 Desde o Plano Real, todos os governos reforçam e difundem amplamente o


18 ensino privado na educação brasileira. A política de Lula, ou seja do Partido dos
19 Trabalhadores, de continuidade do Plano Real - que é a base de fundo do pacto entre
20 petistas e tucanos - prevê o repasse de dinheiro público para as instituições privadas,
21 fomentando a grande concentração de capitais no ensino superior brasileiro. Assim, o
22 Estado dá estabilidade aos investimentos privados através de programas como o FIES e
23 o PROUNI, que garantem a rentabilidade das empresas, simultaneamente inflando os
24 dados estatísticos da administração petista relativos à expansão do acesso à universidade,
25 os quais passam a ser tratados por Lula e Dilma Rousseff como “políticas de inclusão”.
26 É incontestável, contudo, que a trajetória histórica dessa investida petucana privatista na
27 esfera educacional é expressão inequívoca da subserviência do Brasil às determinações
28 de organização estatal e de política educacional indicadas pelo conjunto de órgãos
29 internacionais do imperialismo estadunidense para os países periféricos.

30 Nesse contexto de crise do capital, desde os anos 1970 e marcado, em 1990, pelo
31 Consenso de Washington, o aprofundamento de nossa dependência em todos os setores
32 traduziu-se, particularmente na esfera educacional, pela incorporação de uma série de
162

1 orientações oriundas de órgãos internacionais, através de documentos diversos 24, quais


2 sejam, 1) O Ensino Superior: as lições derivadas da experiência – BM 1994; 2) Relatório
3 sobre o desenvolvimento mundial: conhecimento para o desenvolvimento – BM 1997; 3)
4 Documento da Conferência Mundial sobre Educação Superior no século XXI – UNESCO
5 1998; 4) Documento estratégico do Banco Mundial: a educação na América Latina e
6 Caribe – BM 1999; 5) Política de mudança e desenvolvimento no ensino superior –
7 UNESCO 1999 ; 6) Documento Serviços de Educação – OMC 1998; 7) Documento
8 Comunicação dos Estados Unidos – serviços de educação – OMC 1998; 8) Declaração
9 de Bolonha – 1999; 9) Relatório Sintético sobre as tendências e desenvolvimentos na
10 educação superior desde a Conferência Mundial sobre Educação Superior – UNESCO
11 2003; 10) Um ajuste Justo – BM 2017.

12 A concentração de capitais na educação superior brasileira deu-se


13 simultaneamente à expansão econômica do país, no assim chamado “boom das
14 commodities”, quando o preço de produtos como petróleo, metais e da produção
15 latifundiária aumentam por conta da demanda internacional, gerando altos ganhos através
16 do setor externo para o país. Esses ganhos se materializam no país com o fortalecimento
17 da burguesia latifundiária, para a qual a ideologia do “agro é tech, agro é pop e agro é
18 tudo” tem substância na expansão da fronteira agrícola e na subsunção das pesquisas
19 científicas do país ao setor exportador. É essa base que pôde dar ao Estado a possibilidade
20 de expansão do ensino superior, desde a capacidade de amplo financiamento do ensino
21 privado até à ampliação - sempre menor no número de matrículas - do ensino público,
22 com políticas de ampliação de verbas e de vagas, como o REUNI.

23 Deste modo, o projeto de universidade desde a ditadura militar não teve qualquer
24 modificação, pelo contrário, seguiu as demandas e necessidades do capital, mantendo a
25 mesma tendência de dar o suporte através do Estado à ampliação da educação superior
26 privada e de estruturar as universidades federais com os polos da indústria de exportação,
27 ou seja, se estabelecem dentro do próprio movimento de desenvolvimento do
28 subdesenvolvimento. O sistema de graduação e pós-graduação brasileiros têm ligação
29 umbilical com a dependência do país, sendo submetidos através da CAPES e CNPq a
30 uma estrutura de produção de conhecimento que sujeita as pesquisas e publicações

24
O mapeamento desses documentos foi realizado pelo Sindicato Nacional de Docentes das Instituições
de Ensino Superior (ANDES-SN)
163

1 nacionais às grandes revistas dos países imperialistas, ou seja submete o grosso de nossa
2 produção científicas aos países troncais do capitalismo bem como os nossos
3 pesquisadores. Expressão máxima desta estrutura alienante do povo brasileiro, que é a
4 universidade, foi o programa petista Ciência Sem Fronteiras, que institucionalizou o
5 colonialismo cultural e a fuga de cérebros.

6 A universidade que temos atualmente diante de nós é uma instituição que se


7 reproduz através da alienação, alienação da classe trabalhadora brasileira, não tendo como
8 centro um projeto de análise científica e crítica da realidade brasileira, como também das
9 possibilidades de superação do caráter dependente de nosso país. Pelo contrário, o que
10 temos aqui é uma separação completa da miséria brasileira por parte dessas instituições,
11 onde os currículos alienantes conduzem uma educação completamente voltada às
12 tendências acadêmicas que se apresentam como dominantes e alimentam o sistema de
13 produção científico e intelectual dos países imperialistas; o esquema de reprodução sendo
14 a tônica apresenta um problema pedagógico gigantesco; a produção cultural é tão
15 vacilante como antinacional, assim como a produção intelectual, que já não consegue
16 criar intelectuais públicos, mas sim, meros reprodutores da ordem dominante,
17 distanciados do povo. Isso ocasiona não só uma fuga de cérebros gigantesca, mas também
18 a incapacidade dos centros de ensino terem a possibilidade de se constituírem como
19 centros de excelência na pesquisa e na produção científica - e os poucos que chegam perto
20 desse patamar são condicionados à apropriação estrangeira da produção nacional, através
21 da compra de patentes pelos países imperialistas.

22 É por isso que não há qualquer possibilidade de defendermos a atual instituição


23 que aí está. A única forma de avanço frente aos ataques perpetrados pela burguesia à
24 universidade se dá não caindo na falsa dicotomia de defesa abstrata da universidade tal
25 como ela hoje se apresenta, mas sim colocando na ordem do dia um novo projeto de
26 universidade: o projeto da Universidade Necessária.

27

28 6.2- A crise brasileira como a crise da universidade

29 A guerra de classes aberta com o grande aperto fiscal de Dilma Rousseff em 2015
30 marca o ponto de não retorno do projeto estruturado por petistas e tucanos na
31 administração econômica através do Plano Real do capitalismo rentístico brasileiro. O
32 espaço fiscal que o “boom das commodities” abriu e que deu ao PT a possibilidade de
164

1 colocar os pobres no orçamento, vinha desde 2008 - com a eclosão da crise financeira
2 capitalista - apertando. Em 2011, o número de greves visando à manutenção de direitos
3 antes estabelecidos já tem aumento expressivo e, em 2013, estouram as grandes
4 mobilizações que põem em xeque a ideologia petista do Brasil como um país de classe
5 média e espelho do “país do futuro”. Neste escopo, temos, em 2015, o maior corte no
6 orçamento para a educação implantado pelo governo que se identificava pela alcunha de
7 “Pátria Educadora”, escancarando um dos primeiros passos para o que se consolidaria
8 mais tarde como o novo projeto da burguesia para a educação.

9 Em 2016, um ano depois, o governo do ex-vice presidente - então presidente -


10 Michel Temer aprofunda a guerra de classes com a Emenda Constitucional (EC) 95,
11 forçando ainda mais a apropriação do espaço fiscal do Estado s pelos diversos capitais
12 através dos repasses em pagamentos da dívida pública. O ajuste fiscal, em consonância
13 com a EC 95, abre o caminho que estruturará a política econômica ultraliberal de Jair
14 Bolsonaro.

15 A vitória do proto-fascista Bolsonaro na disputa à presidência da república em


16 2018 demonstrou que o pacto petucano já não se sustentava mais, a crise imposta à
17 sociedade brasileira que abriu a guerra de classes da burguesia sobre a classe trabalhadora
18 com a ajuda dos partidos da ordem - dentro ou fora do governo - fez crescer o rechaço da
19 população ao “sistema” já completamente corroído pela corrupção e deslegitimado pelos
20 seguidos ataques contra os trabalhadores. O país que em 2015 caiu em uma crise
21 econômica e política sem precedentes não viu germinar qualquer alternativa ao sistema
22 petucano à esquerda, pelo contrário, foi Jair Bolsonaro que emergiu catalisando o rechaço
23 popular, porém pelo lado da burguesia ultraliberal. Sua eleição representa não só uma
24 derrota eleitoral mas também política para a esquerda como um todo, esta que se
25 encastelou em um discurso liberal de “universalização de valores”, a partir da defesa das
26 instituições políticas burguesas, justamente essas que se puseram contra os trabalhadores,
27 jogando-os dia-a-dia em números cada vez maiores na miséria.

28 Sem um partido de vanguarda e desarmada ideologicamente, a classe


29 trabalhadora, vê então, a vitória de Bolsonaro como uma vitória anti-sistêmica, porém, na
30 prática, o que ocorre é o aprofundamento da guerra de classes. A guerra “comercial”
31 imperialista que ao refazer as fronteiras políticas e econômicas do mundo a fim dos
32 estados imperialistas conseguirem manter sua captação de excedente dos países
165

1 dependentes, fortifica ainda mais os laços entre a burguesia brasileira e a estadunidense,


2 aprofundando ainda mais o nosso patamar de mero exportador de “commodities”, e
3 abrindo grande parte de nossas empresas estatais e do nosso território nacional ao usufruto
4 dos países imperialistas. Esse aprofundamento do país dentro da divisão internacional do
5 trabalho rearticula e reforma diversas necessidades da burguesia brasileira, entre as quais
6 está a universidade pública.

7 Os ataques do governo Bolsonaro às universidades federais têm apenas aparência


8 obscurantista. Na verdade trata-se de expressar a inutilidade frente às necessidades da
9 acumulação de capital brasileira da estrutura hoje posta de universidades públicas. Isso
10 se dá não apenas pelo papel dependente do país que tem um preço cada vez mais alto,
11 mas também porque toda a estruturação de universidades privadas no país, construídas
12 com velocidade “nunca antes vista neste país” na administração burguesa do Partido dos
13 Trabalhadores, tem hoje a capacidade de absorver a demanda que a falta de universidades
14 federais abriria. Esse movimento inclusive daria ainda mais sustentabilidade aos grandes
15 monopólios que se formaram após a crise de 2008, quando o processo de concentração e
16 centralização de capital na educação privada brasileira se consolidou, criando os maiores
17 oligopólios de educação privada do mundo. O excedente repassado pelo Estado na
18 consolidação desses grandes monopólios também foi o que possibilitou ao governo
19 Bolsonaro fazer um programa de “privatização” das universidades federais efetivada na
20 forma de “gestão de patrimônio por Organizações Sociais (OS), eixo constitutivo do
21 Programa Future-se, ainda que não restrito a ele.

22 Chamado de “Future-se”, o programa para as universidades federais do governo


23 ultraliberal de Bolsonaro é mais que um projeto de privatização, é a resolução política da
24 crise no âmbito educacional, a consolidação do projeto educacional da burguesia
25 brasileira. A explosão das contradições postas pela crise são resolvidas pela força política
26 da burguesia através deste projeto.

27 Longe de ser um programa extremamente novo, este é, na verdade, a consolidação


28 do projeto gestado anos a fio. Dentro das Universidades já havia largo campo para os
29 capitais privados, seja através das “empresas juniores” dominando os cursos, das
30 fundações privadas que atraeam grande montante de recursos para a consecução de
31 projetos para o Estado, ou da própria adesão das Universidades a programas que
32 sustentam a ideologia do empreendedorismo e da suposta “internacionalização”. Em
166

1 grande medida, a base do programa “Future-se” já vinha sendo aplicada pelas próprias
2 Universidades. O rechaço em um primeiro momento de grande partes dos reitores deveu-
3 se ao fato deque a administração dos recursos da abertura de capital que o programa
4 possibilitaria ficaria para uma empresa OS, e não na mão dos atuais gestores. Não houve,
5 portanto, em si, real disputa no essencial por um projeto de universidade nesta atual
6 “cruzada” de muitas universidades contra o “Future-se”, apenas uma briga pela
7 administração dos recursos dentro do mesmo projeto.

8 É portanto imperativo que a luta do movimento estudantil hoje não se limite


9 apenas a bater de frente com o projeto “Future-se”, mas sim que faça uma crítica
10 contundente à atual universidade, pois a universidade que “está aí” é ela própria a
11 universidade do “Future-se”, que não pode existir sem a base da primeira, e a primeira é,
12 por conseguinte, forma primária deste último. A Universidade Necessária como um novo
13 projeto que supere este modelo alienante que está dado hoje é a única possibilidade para
14 de fato salvar a Universidade Pública Brasileira.

15

16 6.3- O movimento estudantil e a luta pela universidade necessária

17 O movimento estudantil hoje se conformou em grande medida a uma atuação


18 meramente reativa frente aos sucessivos ataques, dos mais distintos governos, que vem
19 sofrendo a universidade. Sem projeto político e regido em grande medida por uma lógica
20 parlamentar que inscreve a luta estudantil no terreno da política vulgar, em que o máximo
21 das reivindicações se dá na disputa por um pedaço do quinhão orçamentário, o movimento
22 estudantil vem acumulando, ano após ano, derrotas históricas e cada vez mais
23 deslegitimação perante a massa estudantil e grande parte da classe trabalhadora brasileira.

24

25 Hoje, 80% dos jovens brasileiros entre 18 e 24 anos estão fora da Universidade
26 euma porcentagem ainda maior está fora das universidades federais. Grande parte dessa
27 massa que está fora da universidade nunca teve nem terá possibilidade do acesso à
28 universidade, seja por não ter nem mesmo completado o ciclo básico e médio de ensino,
29 seja porque são cortados já de forma precoce nos exames vestibulares. A universidade é
30 portanto uma instituição exclusiva, seja pelo próprio projeto de educação brasileira como
31 um todo, ou pela estruturação da seleção universitária. Nesse sentido o ponto inicial da
167

1 pauta do movimento estudantil não pode ser os problemas internos da universidade, mas
2 o seu início é por fora da instituição, pois é a exclusão de grande parte da massa da
3 população jovem do país a primeira relação desta instituição com o povo. Torna-se,
4 portanto, de primeira necessidade colocar em pauta o projeto de Universidade que tem
5 como base a exclusão e como seu instrumento primário o vestibular. A pauta sobre o fim
6 do vestibular e a exclamação do porquê o ensino superior público é restritivo a menos de
7 20% da população jovem do país deve ser o ponto de partida para o movimento estudantil
8 se reorientar para a crítica ao projeto universitário atualmente em vigor.

9 Portanto, o fim do vestibular e um novo projeto de universidade, o da


10 Universidade Necessária, estão intimamente ligados.

11 Neste sentido, ao movimento estudantil não cabe a defesa da universidade que


12 está posta, mas a consolidação de um projeto, um projeto que seja dinamizado pela dura
13 realidade brasileira, e que não pode se prender a meros discursos de ampliação do ensino,
14 sem questionar sua própria base, pois é esta que alimenta o problema em si da restrição
15 de vagas.

16 Frente a isso, o movimento estudantil nada tem a dizer. Em um ano como 2019,
17 em que houve diversas manifestações frente aos ataques, nada se conseguiu fazer além
18 de reiterar o mesmo projeto de universidade completamente falho. Após a crise estourar,
19 vimos o drástico aumento do desemprego no país, que jogou grande parte daquela massa
20 que se formava nas universidades no desalento ou na informalidade, mesmo aqueles
21 formados para profissões qualificadas. Hoje, apenas cerca de 30% dos formados
22 trabalham na área em que de fato se formaram. A compressão do mercado de trabalho
23 demonstrou que, na prática, os programas de expansão universitária, ao simplesmente
24 colocar estudantes em instituições que reproduzem o desenvolvimento do
25 subdesenvolvimento, serviu, na verdade, para rebaixar o salário dos trabalhadores
26 qualificados com o aumento da concorrência através da expansão do exército industrial
27 de reserva que a crise gerou.

28 O quadro nas universidades hoje é de ampla proletarização estudantil. A maioria


29 daqueles que estão na universidade tem como renda familiar até três salários mínimos,
30 tornando impossível que se mantenham enquanto estudantes “livres de trabalho” e sem
31 políticas de auxílio estudantil. Neste contexto, quando há concessão de bolsas, funcionam
32 como uma máscara para o desemprego generalizado e a única renda de grande parte dos
168

1 estudantes. A luta pela bolsa aparece mutatis mutandis como a luta por manter um salário
2 e determinadas condições de vida. De um lado o desemprego e, de outro, o corte nas
3 bolsas e a precarização dos auxílios socio-econômicos impõe ao estudante uma ausência
4 de futuro impulsionando - como vimos no ano de 2019, a letárgica pós-graduação
5 brasileira através de seus estudantes que mobilizaram-se nacionalmente frente ao corte de
6 bolsas - muitos estudantes voltaram-se à política o que abre a possibilidade de um amplo
7 movimento de massas estudantil. O sonho da universidade como fator de ascensão social
8 foi solapado com a crise e coloca então a própria universidade em crise. A ideologia da
9 “abertura da universidade” a partir de políticas como as cotas sociais e raciais se depara
10 hoje com uma universidade onde mais de 50% dos estudantes matriculados são negros e
11 grande parte de baixa renda, porém estes estudantes se deparam com um mercado de
12 trabalho ultra-ocioso, onde o subemprego comanda a vida de grande parte da juventude
13 recém-formada e em vias de formação com salários baixíssimos e sem qualquer tipo de
14 segurança formal trabalhista ou previdenciária futura. É aqui então que se demonstram os
15 limites próprios das políticas de inclusão social gestadas no último período que
16 sustentaram o discurso de “democratização da universidade”, pois é onde a universidade
17 se encontra com a realidade brasileira.

18 A crise da universidade não é nada mais que a expressão da crise da sociedade


19 brasileira. O movimento estudantil hoje não pode deixar de ter uma leitura robusta,
20 portanto, sobre a crise da sociedade brasileira a fim de entender e traduzir os problemas
21 para a massa estudantil sem ter quaisquer ilusões a respeito da universidade. O projeto
22 em crise já tem sua falência explicitada pelo governo de Jair Bolsonaro com os ataques
23 constantes às universidades federais. O seu motivo não é obviamente o motivo que
24 devemos trazer em pauta na crítica à atual universidade, porém os ataques do governo
25 não podem nos fazer defender uma instituição ultrapassada, precisamos, diante disso,
26 disputar um novo projeto de universidade, colocando a Universidade Necessária como
27 pauta para a discussão e teorização do movimento estudantil, recolocando os termos do
28 debate crítico às meras políticas públicas as quais o atual movimento estudantil tem hoje
29 como fim de seu programa.

30 Para isso, a disputa pelas entidades historicamente construídas e que conseguem


31 ter apoio de massa dos estudantes é fundamental. Centros Acadêmicos, Diretórios
32 Acadêmicos, Diretórios Centrais dos Estudantes, União Estaduais dos Estudantes e a
33 União Nacional dos Estudantes são entidades que conformam ou já conformaram a luta
169

1 de massas do movimento estudantil. Cabe a nós entender o seu papel histórico nos últimos
2 anos e os seus limites na atual conjuntura para se ter a capacidade, se necessário, de
3 disputá-las a fim de conseguir consolidar dentro do movimento estudantil uma vanguarda
4 que dê sentido totalizante à luta do movimento estudantil dentro do projeto da revolução
5 brasileira.

7 6.4- As entidades estudantis e a revolução brasileira: a União Nacional dos


8 Estudantes

9 O papel histórico das entidades estudantis tem sua potencialidade demonstrada no


10 terreno da luta de classes, principalmente com o papel que a União Nacional dos
11 Estudantes no período pré-1964, quando se articulava a massa dos estudantes em um
12 projeto de reforma universitária cuja atuação política ia desde a construção de centros de
13 alfabetização, passando pela produção cultural, que tinha a realidade brasileira exposta
14 de forma crítica por meio dos centros popular de cultura, até o trabalho de educação
15 política com a produção e distribuição dos Cadernos do Povo Brasileiro, criticando a
16 impossibilidade do acesso à universidade do povo brasileiro como parte de um projeto
17 político de educação, exigindo o fim dos exames vestibulares. O projeto de reforma
18 universitária era expressão da capacidade de leitura da crise pela qual passava a sociedade
19 brasileira e se interrelacionava com o período de reformas políticas as quais a classe
20 trabalhadora organizada imputa à sociedade, como a reforma agrária, reforma bancária,
21 lei da remessa de lucros, etc. Hoje, porém, a UNE tem cumprido um papel deletério frente
22 à luta de classes e a organização estudantil; reproduzindo a política burguesa, reduz os
23 horizontes da luta estudantil aos horizontes da política parlamentar, transforma a luta de
24 classes em política de identidade, a discussão sobre o acesso universal e o fim do
25 vestibular à política de cotas, e a discussão profunda e crítica sobre a sociedade brasileira
26 e a superação de suas mazelas próprias do subdesenvolvimento à luta por políticas
27 públicas. Esse limite da política burguesa vulgar faz com que a entidade tenha com o
28 parlamento corrupto e apodrecido uma relação promíscua, expressa na participação de
29 Rodrigo Maia em atividades do PCdoB e UJS, e na necessidade de se recorrer a acordões
30 internos no parlamento para travar uma possível CPI da UNE. Essa prática parlamentar
31 joga hoje a entidade ao lugar comum da política burguesa e tem na corrupção a medida
32 prática possível para ter suas pautas políticas aceitas.
170

1 Essas práticas são cotidianamente expostas na forma refratária que a União


2 Nacional dos Estudantes age no seio das universidades, onde a fraude para se manter na
3 entidade é a lei prática da disputa de seu congresso; onde o distanciamento dos estudantes
4 é a norma que ratifica a política parlamentar, sempre retraindo os movimentos
5 espontâneos da massa estudantil; e aparelhando todas as entidades possíveis,
6 submetendo-as de forma programática a uma razão de partido, que por sua vez, atende
7 aos interesses parlamentares. Não se trata portanto de uma crítica meramente ao
8 “aparelhamento” em abstrato, mas à forma alegadamente necessária para reger a política
9 estudantil a partir das circunscrições burguesas e dos limites possíveis da prática
10 parlamentar. A crítica à UNE e à sua direção atual, portanto, não pode se dar fora de uma
11 crítica programática, à sua leitura da crise brasileira, aos seus limites políticos decorrentes
12 dessa leitura e ao projeto de universidade que a entidade defende, pois este é o germe de
13 sua política aparelhista e não meramente uma “forma de agir moral”. Toda a oposição
14 que não tocar nesses pontos apenas emula uma crítica, mas se compadece da mesma
15 política e não consegue superar as formas ultrapassadas de atuação do movimento
16 estudantil hoje.

17 Devemos saber, portanto, que hoje a UNE não representa os anseios nem as
18 possibilidades da massa estudantil, pelo contrário, os limita e é, portanto, uma entidade
19 que renegaa sua história. Não devemos portanto tentar salvar a UNE, mas sim apontar
20 todas as suas capitulações, sabendo que a construção de uma entidade nacional se dará
21 fora dos marcos dessa hoje estabelecida e completamente degenerada. Porém, devemos
22 nos apresentar na disputa interna e nos seus processos de eleição, pois estes são
23 imprescindíveis hoje para conseguirmos e apontar a necessidade da construção de um
24 novo projeto de universidade, a Universidade Necessária, e, levantando as bandeiras
25 históricas do movimento estudantil confrontar a política medíocre e rebaixada que hoje
26 circunda tanto a direção da entidade como também a sua oposição unificada.

27

28 6.5- Diretório Central dos Estudantes

29 Os Diretórios Centrais de Estudantes (DCEs) têm papel chave na articulação de


30 um movimento estudantil de massas, que consiga unificar os centros acadêmicos e
31 direcionar a política universitária local para um fim totalizante, pautando de forma
32 contundente a partir das condições degradadas gerais das universidades - desde a
171

1 permanência, aos problemas do restaurante universitário, da falta de professores e do


2 grave problema pedagógico. Devem articular essas pautas a uma crítica e atuação
3 conjunta da massa estudantil, demonstrando não só a força dos estudantes, mas suas
4 possibilidades de organização, e então dar inteligibilidade a partir destas questões à
5 totalidade social, e apontar como solução para tal uma mudança estrutural no projeto de
6 educação posto. Esse projeto de educação não deve se furtar de fazer uma crítica certeira
7 à produção cultural e à falta dela dentro das universidades, questão que hoje se
8 circunscreve apenas às festas, igualando cultura e integração, tem-se que retomar a
9 capacidade crítica do movimento estudantil através de intensa atividade e produção
10 cultural, a fim de interrelacionar a universidade e a sociedade brasileira em crise com o
11 programa da revolução brasileira.

12

13 6.6- Centros e Diretórios Acadêmicos

14 Os Centros e Diretórios Acadêmicos (CAs e DAs) são muitas vezes o primeiro


15 contato político do estudante na universidade ou mesmo na vida. Daí, sua importância ,
16 pois estabelece contato mais direto com os estudantes de várias áreas, de fato articulando,
17 através de cada curso, a massa dos estudantes. Cabe às entidades de base congregar as
18 questões mais prementes dos estudantes em cada curso, desde problemas com bebedouros
19 até questões importantes com relação ao currículos dos cursos, aos problemas estruturais
20 da aprendizagem com o mercado de trabalho, à crítica às políticas refratárias que as
21 entidades tomarem, etc., sem contudo cair em um praticismo mecânico, ou seja, as
22 entidades devem ter papel formativo junto aos estudantes, apresentando-se como
23 liderança política que capilarize o debate sobre os problemas, construa uma ação unitária
24 com o curso para a resolução desses problemas e traga, a partir destes conflitos, a
25 mediação com a totalidade política posta.

26 As entidades de base portanto não podem ser cercos aparelhados de organizações,


27 mas ter abrangência no curso e direcionar a tratar e levantar questões a fim de educar os
28 estudantes e mobilizá-los a partir dos confrontos e conflitos que emergem na
29 cotidianidade dos cursos. A ação unitária com o curso e com outros centros acadêmicos
30 é imprescindível na luta estudantil, principalmente nos momentos de política de massas
31 que se põe hoje dentro das universidades.

32
172

1 6.7- Sobre o programa político das entidades e as alianças políticas

2 A importância das entidades de base na elevação da consciência dos estudantes e


3 na capacidade de tradução política dos problemas impões à construção de seu programa
4 político a necessidade de sair do lugar comum da esquerda liberal. Em outras palavras,
5 as entidades de base não devem reproduzir a prática de ampliar as pautas ao máximo a
6 fim de se esquivar de qualquer compromisso programático com os estudantes impondo-
7 lhes o programa da própria organização. Isso tanto apartada os estudantes das entidades
8 quanto garante a elas a atuação dentro de uma razão de partido. O programa de disputa
9 dos militantes da revolução brasileira deve ser portanto coeso e levantar os pontos centrais
10 que dão unidade a partir dos problemas reais dos cursos ou da própria universidade a fim
11 de dar substância e responsabilidade àqueles que se colocam na disputa política.

12 Por esta razão, nossas alianças dentro das entidades nacionais e centrais devem
13 ser muito bem construídas, demodo a não rebaixar o programa para iludir os estudantes e
14 apagar os conflitos postos, mas sim se pautar a partir do programa máximo, pois para nós
15 não adianta a aliança com outros organizações se essa não representar de fato para os
16 estudantes um salto de qualidade político e organizativo. A aliança deve ser portanto com
17 a massa estudantil em primeira ordem, sem medo de apresentar as críticas e divergências
18 e sem cair em apoios críticos que de fato nada representam para a política estudantil como
19 um todo. Portanto, nossa política não deve ser pautada nas outras organizações.

20 Dentro dos CAs e DAs também se deve ter o máximo de cuidado possível na
21 política de alianças e na proposta programática. No contexto próprio da forma de disputa
22 nos cursos às vezes, há apenas um militante nosso em determinado curso, solicitando que
23 avaliemos cuidadosamente a possibilidade de inserção de nosso debate de modo a elevar
24 a qualidade política e teórica dentro do centro acadêmico.

25 Em qualquer dos momentos não se negam, como princípio, as alianças, mas sim
26 o rebaixamento da política para fazê-las, pois isso blinda tanto os nossos militantes como
27 o restante dos estudantes dos conflitos reais postos, das diferentes perspectivas em disputa
28 e acaba fazendo com que a política universitária se torne uma massa amorfa deslegitimada
29 pela grande massa estudantil, que se torna, então, indiferente à política.

30

31
173

1 7- ASPECTOS ÉTICO-FORMAIS DA ORGANIZAÇÃO


2
3 7.1- Organização e revolução

5 Pensar a organização política que trabalha pela realização da revolução brasileira


6 é tarefa central na atual conjuntura de guerra de classes. Sem uma vanguarda política,
7 munida de uma teoria revolucionária, é esforço inútil clamar pela revolução. Assim ,
8 um debate sobre a organização necessária para a revolução brasileira deve se iniciar por
9 uma discussão sobre a própria natureza das organizações humanas.

10 Organizar-se não é algo novo nem estranho para a humanidade. Pelo contrário, é
11 uma condição mais que necessária para a vida humana em sociedade, seja ela qual for.
12 Entretanto, em contraste com os demais animais que também se organizam, há algo
13 singular na organização humana, algo que emana da própria natureza específica do
14 trabalho humano. Enquanto espécie, somos capazes de produzir um efeito de acordo com
15 um plano previamente elaborado em nossas mentes. Assim, o ser humano pode,
16 permanentemente, alterar o meio em que vive de acordo com seus interesses, com seus
17 desígnios ou com suas vontades. A natureza do trabalho humano, desta forma, só pode
18 ser entendida como práxis revolucionária, práxis que rompe constantemente com as
19 formas de organização anteriormente constituídas e, por consequência, pressiona pela
20 criação de novas relações sociais. Assim, o específico no ser humano não é a sua
21 organização estática, o status quo, mas sim, o desenvolvimento permanente de suas
22 formas organizativas e a maneira como uma forma se transforma em outra: o seu
23 desenvolvimento.

24 Este desenvolvimento, entretanto, não se dá mediante um processo harmônico,


25 como pretende a teoria do evolucionismo social. Ocorre por meio de contradições
26 permanentes, que geram sucessivos conflitos entre as distintas classes sociais e seus
27 setores, que, por sua vez, representam os interesses materiais emanados do próprio modo
28 de produzir a riqueza das sociedades determinadas. Como o ser humano revoluciona
29 permanentemente as forças produtivas, a relação entre as classes que produzem e vivem
30 da produção é constantemente alterada, acumulando conflitos e produzindo situações-
31 limite : as crises e as rupturas. Nas crises, momentos de decisão política, abre-se a
32 possibilidade da transformação revolucionária de uma organização social já datada,
174

1 ultrapassada, em um novo regime social, que seja, enfim, adequado às novas formas de
2 produção.

3 Esta transformação revolucionária, por sua vez, só pode ser conduzida pela classe
4 que não se beneficia da estrutura social anterior, ou seja, pela classe que traz em si o
5 embrião de uma nova organização social e a negação da velha; traz em seu devir
6 histórico as novas relações sociais. A revolução, entretanto, somente pode ser vitoriosa
7 mediante duas condições fundamentais: 1) a classe antes dominada passa a deter o
8 exercício do poder político, tomando para si os instrumentos de execução deste poder,
9 basicamente o Estado e a propriedade dos meios de produção; e 2) a classe vitoriosa é
10 investida de legitimidade para representar os interesses da maioria do povo.

11

12 7.2- A Revolução Brasileira

13 A revolução não é algo pronto e acabado, caminho já trilhado e devidamente


14 documentado. Este tipo de concepção de revolução a partir de um modelo exterior
15 a ser seguido não passa de uma forma para enclausurar a originalidade da práxis humana
16 revolucionária. Entretanto, iss o não legitima uma posição contrária às experiências
17 revolucionárias já vividas pela humanidade. Sem saber teórico não há capacidade de
18 captar o universalismo que se expressa em cada experiência revolucionária singular. A
19 atividade humana é justamente esta união dialética entre saber teórico e atividade
20 criadora, a essência da práxis política. Assim, relembrando Lenin: “Sem teoria
21 revolucionária, não há movimento revolucionário.”.

22 Se as revoluções modernas começam burguesas (Inglaterra, EUA, França,


23 Alemanha, Itália e Japão), o socialismo passa a ser o objetivo político das revoluções
24 posteriores à consolidação das relações capitalistas de produção na totalidade das nações.
25 Objetivo este definido pela crítica da economia política desenvolvida por Marx e Engels.
26 Já que o modo de produção capitalista criou o mercado mundial e o trabalhador coletivo
27 universal como pressupostos históricos dos nossos tempos, nascem as bases para a
28 socialização da produção em escala global e a possibilidade da superação das relações de
29 produção capitalistas pelas socialistas e, posteriormente, comunistas.

30 Em última instância, esta transformação exige ferir os interesses concretos da


31 classe dominante, que obviamente não entrega seu poder facilmente. Assim, a violência
175

1 continua sendo a parteira da humanidade, tornando impossível dar sequência a uma


2 revolução sem seu necessário desdobramento em ditadura do proletariado. A conquista
3 do poder, desta forma, é condição fundamental para dar início à construção do
4 comunismo.

5 Assim, a conquista do poder aparece como exigência prática da transição de


6 qualidade entre os dois momentos revolucionários, como horizonte estratégico em torno
7 do qual se trava a batalha decisiva entre o proletariado e os capitalistas.

8 Desde o surgimento da sociedade de classes existiram diversas rebeliões


9 populares. Essas revoltas também contaram com forças organizadas, mas, pelo fato de
10 não conterem em si mesmo o embrião do mundo sem classes, acabaram por apenas
11 substituir as antigas elites dirigentes por novas. Foram organizações políticas de doutrina
12 negativa, constituindo-se apenas na negação ao existente, sem capacidade de afirmação
13 de um novo mundo.

14 Somente com a ascensão da grande indústria moderna e da transformação do


15 proletariado na principal classe da sociedade, que esta situação transformou-se. Com os
16 sistemas fabris e a elevação da ciência como princípio da produção, tivemos como
17 consequência a subordinação plena do ato de produzir à organização racional do trabalho.
18 Assim, também ocorre uma mutação profunda do perfil das revoltas populares. Surge a
19 classe trabalhadora e sua concepção materialista do mundo, fundamentada no princípio
20 racional do trabalho e que aponta para a necessidade da construção da organização
21 revolucionária como meio de superar a organização capitalista. Ou seja, uma ética
22 positiva, baseada na negação da negação.

23 Os estudos de Marx e Engels e o Manifesto do Partido Comunista, desta forma,


24 delimitam uma ruptura histórica, um momento de elevação da rebeldia trazida pela
25 opressão da humanidade pelas classes dominantes a um patamar superior de luta, o
26 patamar revolucionário.

27 Esta ética rebelde positiva, a elevação da organização dos revolucionários como


28 pressuposto para a luta contra a própria organização capitalista, passou por diversos
29 experimentos históricos. Lenin e a revolução russa, neste contexto histórico, configuram-
30 se na primeira experiência vitoriosa de elevação deste novo paradigma da luta pela
31 emancipação do proletariado, não apenas conquistando o poder, como também o
32 preservando perante a agressão imperialista. A teoria leninista da organização do partido,
176

1 desta maneira, passou a ser referência fundamental da luta dos trabalhadores em todas as
2 nações onde já havia um movimento operário.

3 Tendo em vista a efetividade revolucionária da teoria leninista do partido,


4 assumimos seus fundamentos como necessários para a organização política para a
5 revolução brasileira. Baseamos esta teoria em quatro pilares básicos: 1) um partido de
6 vanguarda; 2) baseado em militantes revolucionários (os quadros políticos); 3) que se
7 dedicam com afinco à construção, em fusão com as massas, das linhas estabelecidas
8 pelos debates internos da organização sobre a conjuntura, a estratégia e a tática a ser
9 defendida; e 4) que tê m na sua direção a instância de coordenação e comando das
10 atividades necessárias para fazer avançarem as linhas políticas definidas em conjunto nos
11 seus momentos congressuais. Com base nesta definição e no atual estágio da economia e
12 sociedade brasileira, propomos as linhas de atuação política elencadas abaixo. Tendo
13 como objetivo a aliança com o povo brasileiro e tendo em vista o fato de que a ampla
14 maioria do povo é hoje composta pelos trabalhadores, dividimos, na tese do congresso, o
15 proletariado brasileiro em cinco estratos, a relembrar:

16 1. Trabalhadores empregados em setores estratégicos da acumulação de capital;


17 2. Base dos servidores públicos;
18 3. Gigantesco exército industrial de reserva pulverizado e com pouca capacidade de
19 organização;
20 4. Pequenos e médios agricultores incorporados ao modelo capitalista
21 agroindustrial;
22 5. Profissionais liberais, pequenos burgueses e aristocracia do serviço público, que
23 constituem a camada média da sociedade.

24 Organizar este povo brasileiro é o que estrutura a definição das linhas de atuação
25 que abaixo seguem:

26

27 7.2.1- Linha sindical (prioritária)

28 A conquista dos aparelhos sindicais historicamente constituídos (estratos 1, 2, 4 e


29 parte do estrato 3 onde houver viabilidade) é fundamental. Apesar disso, é preciso ter
30 sempre em vista seus limites corporativos que devem ser superados com base em uma
31 ruptura radical com a dinâmica contrarrevolucionária que hoje domina suas burocracias.
177

1 Assim, temos que buscar a construção de sindicatos realmente revolucionários, em


2 simbiose total com os trabalhadores, pautados nos conselhos operários, na construção de
3 lideranças com referencial teórico marxista e nacionalista revolucionário e que
4 possibilitem a formação permanente de suas bases no sentido da superação do momento
5 corporativo para o momento ético-político superior.

6 Também é possível, de forma complementar a conquista dos sindicatos


7 historicamente constituídos ou a formação de novos sindicatos que emanem das lutas
8 trabalhistas, criar novos instrumentos organizativos paralelos aos sindicatos, que formem
9 e organizem novos quadros com capacidade de ruptura com a atual paralisia dos aparelhos
10 tradicionais – exemplos disso são coletivos de comunicação ou os próprios núcleos da
11 Auditoria Cidadã da Dívida, que servem como ponte altamente profícua com a luta
12 sindical, embora seja preciso ter a clareza de seus limites na incapacidade de superar os
13 limites da propriedade privada.

14 Também orientamos que devemos criar frentes de ação nacionais nos diversos
15 ramos específicos da acumulação de capital, com coordenações próprias e subordinadas
16 diretamente ao Comitê Central. Estes grupos de ação devem ser organizados como tarefa
17 do Comitê Central em parceria com os Comitês Estaduais para o próximo mandato, tendo
18 como exemplo o trabalho embrionariamente feito no grupo de petroleiros e de
19 trabalhadores da educação.

20

21 7.2.2- Linha de movimentos populares (auxiliar)

22 Atuação em movimentos populares de luta por causas do cotidiano do povo


23 brasileiro (moradia, terra, transporte, saúde, educação, mulheres, negros, etc.), dentro de
24 uma concepção materialista, entendendo a necessidade de um projeto totalizante para
25 resolver tais causas. Pela natureza deste trabalho, não serão criados grupos de ação
26 nacional, ficando seu trabalho subordinado aos Comitês Estaduais.

27

28 7.2.3- Relação entre as linhas sindical e de movimentos populares

29 A relação entre a linha sindical (prioritária) e a linha de movimentos populares


30 (auxiliar) é explicada pela capacidade da primeira linha em paralisar o processo de
31 extração de mais-valia e o próprio ciclo de acumulação do capital, além de consolidar
178

1 instrumentos organizativos poderosos e estáveis. Já a segunda linha apresenta grande


2 volatilidade e pouca capacidade de criar organizações sólidas em um prazo mais longo,
3 além de ser mais vulnerável ao controle do Estado burguês, que, ao resolver os problemas
4 que engendraram um movimento popular, acaba tendo maior capacidade de debelar o
5 movimento ou, até mesmo, cooptar suas lideranças.

6 Não podemos desprezar também os sindicatos como espaço fundamental de


7 recrutamento de quadros qualificados para a luta política. Por outro lado, a maioria do
8 povo brasileiro se encontra hoje dentro do exército industrial de reserva, parte dele tendo
9 pouca capacidade de organização sindical. Entretanto, em momento de decisão na guerra
10 revolucionária, a superioridade numérica é a principal variável a ser levada em
11 consideração. Por isso mesmo, não podemos deixar de buscar formas de organizar estes
12 trabalhadores para além do clássico movimento operário.

13 Assim, a linha sindical é fundamental para a estruturação e ampliação de uma


14 organização de vanguarda, que ao passo que a linha de movimentos populares deve
15 estar em constante mobilidade tática para manter a maioria do povo, de difícil
16 organização, em movimento.

17 7.2.4- Linha do movimento estudantil

18 O movimento estudantil é um espaço privilegiado no recrutamento de quadros


19 revolucionários. Trata-se de um momento fundamental na definição da personalidade dos
20 jovens que ali atuam, onde são forjadas as referências teóricas, éticas e políticas
21 fundamentais que serão levadas para o resto da vida militante. Na luta pela formação
22 educacional necessária, os estudantes e professores se envolvem no debate de vanguarda
23 sobre as definições dos rumos da nação, que, obviamente, podem e devem ser
24 revolucionários.

25 Esta linha envolve os estudantes universitários, de escolas técnicas e


26 secundaristas. Setores sociais que emergem principalmente do estrato 5 – mas também de
27 todos os demais – e que têm tempo disponível para construir-se enquanto revolucionários.

28 Também fazem parte desta linha os militantes que exerçam o papel de professores
29 nestas instituições, formando através da sua referência política, novos quadros estudantis.

30 Têm como espaços de atuação as universidades públicas e privadas, institutos de


31 educação e escolas de nível médio e básico.
179

1 A linha estudantil, além da disputa em torno de uma educação emancipadora, tem


2 o papel de criar quadros para futuramente atuarem nas demais linhas organizativas.

4 7.2.5- Linha partidária

5 O PSOL é um espaço de disputa e com potencial na atração de quadros políticos


6 revolucionários, principalmente da juventude. O partido propiciou, com todos seus vícios
7 parlamentares e seu profundo afastamento de amplos estratos do povo brasileiro, enorme
8 crescimento organizativo para a Revolução Brasileira.

9 Vencida esta primeira etapa, é perceptível que o partido não apresenta uma
10 hegemonia intelectual firme que unifique os inúmeros militantes que atuam em suas
11 bases. É possível realizar atividades de formação política, identificar quadros
12 revolucionários e projetar novas lideranças sem qualquer impedimento por parte das
13 burocracias parlamentares.

14 Entretanto, para disputar a hegemonia na sociedade, principalmente nos


15 processos eleitorais, é preciso atuar organizadamente em suas instâncias de decisão. Esta
16 disputa nas instâncias de decisão, no entanto, deve ser entendida em sua possibilidade de
17 ampliar a agitação, propaganda e organização da Revolução Brasileira diante das massas,
18 recusando o cretinismo parlamentar e não caindo nas armadilhas das disputas meramente
19 burocráticas no interior do partido. Para ficar claro, disputar apenas processos que
20 extrapolem o âmbito burocrático partidário.

21 Como espaços de atuação, elencamos as instâncias de direção e deliberação; os


22 diretórios municipais, estaduais e nacional; congressos, encontros e reuniões abertas; e
23 eleições, visando eleger candidatos da RB que possam contribuir para ultrapassar a
24 barreira da atual ausência de referência crítica revolucionária na sociedade brasileira.

25

26 7.3- Formato da organização

27 Os militantes se definem na sua relação com as massas e com os demais membros


28 que compõem a organização. A organização deve ser o embrião da nova sociedade
29 comunista, pressupondo a livre associação entre os produtores regidos por novos laços
30 sociais, não mais condicionados ao poder exterior do capital. Entretanto, existe o
180

1 momento da conquista do poder político que antecede o processo de busca da


2 emancipação humana, por isso, a organização também deve conter em si mesma os
3 elementos embrionários da ditadura do proletariado, que vise conquistar o poder para
4 poder definhá-lo através da abolição da sociedade de classes.

5 A arte de uma organização efetiva para a construção da revolução consiste em


6 empregar plenamente as diferentes habilidades de cada um de seus membros de forma
7 conjunta e coordenada. Ou seja, as forças individuais e coletivas devem ser organizadas
8 como um corpo único, com uma direção que supere a falsa lógica horizontal do
9 liberalismo e que, nas palavras de Lenin, se imponha “não pela força do poder, mas pela
10 força da autoridade, por energia, maior experiência, ampliação de cultura, habilidade”.

11 Temos assim, nas células organizativas, os espaços fundamentais onde todos os


12 membros da organização devem atuar, empregando a totalidade do trabalho de seus
13 membros na intervenção coletiva diante das massas. Nas células se discute criticamente
14 a conjuntura, a validade prática das linhas adotadas pela organização e o enriquecimento
15 teórico coletivo através das experiências colhidas no espaço de atuação. Na célula, os
16 militantes organizados definem os planos de ação para sua atividade perante as massas,
17 respeitando a linha geral da organização, mas com espaço para criar e improvisar diante
18 da mutabilidade e das especificidades do cotidiano.

19 A célula é o espaço fundamental para o enriquecimento da linha tática e estratégica


20 da organização. A respeito das as experiências de militância organizada, é possível,
21 atentando para os princípios e método marxista, aprimorar a capacidade de intervenção
22 criativa sobre a realidade. A célula, no entanto, não pode substituir o trabalho intelectual
23 dos militantes da organização em nome de uma sobrevalorização da prática sem teoria e
24 do “tarefismo”.

25 Na impossibilidade da existência de consenso, aparece a figura necessária do


26 centralismo da democracia, pelo qual a maioria decide congressualmente qual será a
27 linha adotada. A linha é testada e, caso demonstre insuficiências na prática, é retomado
28 o debate com a tentativa de estabelecer novo consenso ou nova maioria em torno de nova
29 posição.

30 As células são organizadas de acordo com a disponibilidade de militantes e


31 divididas regionalmente e por linha de atuação. Quanto mais células existirem na
181

1 organização, maior será a capacidade de leitura e intervenção diante da realidade, na


2 construção da revolução brasileira.

3 Como primeira instância de articulação entre as células, precisamos de


4 coordenações organizadas por região ou por frente de atuação. Nelas se encontram
5 membros de diversas células, que travam luta comum em municípios, no movimento
6 sindical de uma região, no movimento estudantil ou em outro espaço que possa ser
7 definido como prioritário. A existência de uma coordenação de células exige o
8 agrupamento de mais de uma célula, estando estas fortemente enraizadas nos espaços de
9 massa. Estas coordenações têm a função de articular a atuação das células, dando
10 organicidade aos objetivos táticos e estratégicos da organização.

11 Cada célula e coordenação devem contar, ao menos, com um coordenador geral


12 das atividades e de um coordenador financeiro. O coordenador geral deve conduzir os
13 trabalhos, mantendo a unidade de ação da célula ou da coordenação setorial ou regional,
14 marcando reuniões periódicas e organizando a pauta dos debates. Já o coordenador
15 financeiro deve centralizar a arrecadação das contribuições financeiras militantes ou de
16 apoiadores, repassando os percentuais definidos para as instâncias superiores e
17 administrando os recursos que ficarem nas células e coordenações.

18 Nos locais onde existirem militantes interessados na organização, mas que ainda
19 não tenham a convicção nas nossas linhas políticas e teóricas, devem ser criados núcleos
20 de recrutamento de potenciais novos militantes. Estes núcleos precisam funcionar
21 sempre em torno de alguma tarefa concreta, auxiliando na realização de atividades das
22 células ou até mesmo tocando atividades próprias do núcleo. Algum camarada da célula
23 deve ser destacado para acompanhar as ações do grupo, identificando militantes
24 destacados que podem ser recrutados para a estrutura regular da organização ou, até
25 mesmo, a transformação do próprio núcleo em célula orgânica da RB.

26 Além desses núcleos, as células precisam organizar listas com nomes de pessoas,
27 sejam elas militantes ou não, que sejam parte da nossa zona de influência. Nessa zona
28 de influência é sempre preciso fidelizar estas pessoas, seja distribuindo material teórico
29 da organização, chamando-os para participarem de atividades políticas ou, especialmente,
30 contribuindo financeiramente com a RB.

31 Acima das células e coordenações, em relação dialética com elas, temos as


32 instâncias de direção da organização. Estas devem ter capacidade dirigente, tanto
182

1 operacional quanto intelectual. Agrupam os revolucionários mais experimentados das


2 células, aqueles com maior experiência e capacidade política e intelectual.

3 Na tradição leninista, dois centros dirigentes devem existir e atuar na mais


4 absoluta organicidade: o Comitê Central (CC) e o Órgão Central (OC). O primeiro tem
5 a função de dirigir prática e diretamente as atividades da organização, já o segundo, deve
6 dirigir ideologicamente o movimento. O CC deve articular o trabalho das células e
7 coordenações, definir e encaminhar tarefas coletivas, encaminhar a formação dos quadros
8 revolucionários pelo funcionamento da escola de quadros, garantir a estrutura financeira
9 da organização, coordenar a distribuição de literatura e a elaboração de panfletos, nomear
10 membros da RB para ocupar cargos específicos, destacar militantes para
11 empreendimentos especiais, preparar manifestações, etc. Já o OC deve desenvolver as
12 verdades teóricas da organização, centralizar a concepção da tática e estratégia do
13 movimento, elaborar literatura de formação dos quadros revolucionários e formular sobre
14 a concepção organizativa interna.

15 Para a maior efetividade possível de ambos os centros dirigentes, é preciso que


16 estes tenham o conhecimento da totalidade da atuação das células e coordenações e,
17 assim, maior capacidade de leitura em relação ao contexto econômico, social e político
18 que se desenvolve em cada espaço de atuação. Para isso, é indispensável que todas as
19 células e coordenações elaborem informes críticos sobre sua atuação, formulando sobre
20 os resultados práticos das linhas teóricas desenvolvidas pela organização. Somente assim,
21 com todos os membros da organização, sejam eles dirigentes ou não, refletindo
22 criticamente sobre suas práxis política, é possível romper com a alienação do trabalho
23 militante, corporificado no “tarefismo”.

24 Devemos ter um CC e um OC de âmbito nacional e reproduzir apenas a estrutura


25 de CC nos estados (ou regiões) onde estivermos solidamente enraizados e organizados,
26 evitando ao máximo constituir estruturas meramente dirigentes sem uma ampla atuação
27 em células e núcleos. A decisão de criar um CC regional será de responsabilidade do OC.

28 O OC será o conselho editorial de três órgãos de agitação e propaganda


29 integrados: uma revista teórica mensal, um jornal e um site de gerenciamento de conteúdo
30 diário (onde será centralizada toda a produção realizada nas diversas plataformas, como
31 YouTube, Facebook, Instagram, etc.). A revista deverá ter regularidade quadrimestral e
32 produzir textos de análise profunda sobre a realidade brasileira e internacional, apontando
183

1 as linhas políticas de interpretação e intervenção revolucionária. O site e o jornal devem


2 concentrar as análises de conjuntura diante de acontecimentos pontuais da realidade, as
3 notas políticas, os manifestos de massa, os informes de coordenações e células, etc. Todos
4 os membros da organização, e também apoiadores externos da Revolução Brasileira,
5 podem elaborar material para os órgãos de imprensa, sendo estes aprovados e editados
6 pelo OC.

7 Também será tarefa do OC oferecer o conteúdo da escola de quadros, articulada


8 com o Instituto Superior de Estudos da Revolução Brasileira (ISERB) e os Núcleos de
9 Estudos da Revolução Brasileira (NERB). O ISERB será um organismo de pesquisas
10 sobre tudo que envolva a construção dos caminhos da revolução brasileira. Dividido por
11 áreas de conhecimento, deve ter produção editorial de peso, com artigos e livros
12 produzidos, sendo que a revista teórica da RB será editada também pelo Instituto. Seu
13 objetivo é incidir decisivamente na historiografia brasileira, combatendo as ideologias
14 contrarrevolucionárias que estão infiltradas no pensamento da esquerda nacional e
15 internacional.

16 Já os NERB serão núcleos de estudo voltados para os jovens nas instituições de


17 ensino. Não serão fechados apenas aos membros da RB, mas abertos para todo e qualquer
18 estudante que se interessar em participar. Terão formato de grupo de estudos e seu papel
19 será de apresentar uma bibliografia que se encontra proscrita das universidades
20 brasileiras: o marxismo crítico e o nacionalismo revolucionário. O OC centralizará a
21 literatura e caberá aos membros da RB da linha estudantil (sejam estudantes ou
22 professores) promover o NERB em todas as instituições de ensino onde tivermos
23 presença.

24 Os CCs serão organizados nacionalmente e regionalmente, de acordo com a


25 exigência prática concreta. O CC nacional terá a função de aprovar e auxiliar na
26 implantação e organização de CCs regionais, que podem ser compostos por apenas uma
27 unidade da federação ou por várias, a depender da disponibilidade de revolucionários
28 efetivamente enraizados nas bases e organizados. Os CCs regionais, por sua vez, devem
29 se reportar ao CC nacional, mantendo a centralização de operações da organização. Os
30 CCs funcionam em formato de divisão de tarefas, visando a maior agilidade na tomada
31 de decisão e execução das tarefas deliberadas.
184

1 Com base nestas instâncias integradas dialeticamente de ação e decisão, é possível


2 cumprir o princípio leninista fundamental: a conciliação do máximo de centralização da
3 direção do movimento com a maior descentralização possível da responsabilidade ante a
4 organização de seus membros individualmente.

5 Assim, de forma sucinta, recomendamos para debate o seguinte formato


6 organizativo, onde todos os militantes podem atuar em uma ou mais funções
7 determinadas pela estrutura interna:
185

Livros

Linhas de pesquisa

ISERB Artigos

Conteúdo do NERB

Site
Órgão central

Conselho Editorial Jornal

Currículos da Escola
Revista
de Quadros

Distribuição dos
Articulação política
materiais

Comitês estaduais e Coordenações de


Organização interna Células Núcleos
regionais frentes ou regionais

Coordenação Coordenação
Finanças financeira estadual financeira das Zona de influência
ou regional células

Comitê central Escola de Quadros

Agitação e
propaganda

Movimento sindical Frentes sindicais


e popular nacionais

Juventude pela
Juventude Revolução Brasileira
(JRB)

1
186

1 7.4- Eleições dos membros da direção


2
3 a) Os membros do Comitê Central, dos Comitês regionais e do OC devem ser eleitos
4 em processo congressual bianual, contando com todos os membros ativos da
5 organização e quites com a política financeira;
6 b) O número de membros dos órgãos dirigentes será definido pelo OC;
7 c) No ano que não houver congresso, será realizada uma plenária nacional, contando
8 com 1/3 do número de delegados presentes no congresso nacional anterior, e que terá
9 a função de avaliar o trabalho das direções e propor alterações de membros ou a
10 revalidação dos membros;
11 d) As células regulares elegem os membros que participarão do congresso nacional e da
12 plenária nacional;
13 e) Os congressos devem deliberar sobre as teses da organização, produzidas pelo OC;
14 f) Os Comitês regionais têm a função de organizar os processos de congresso e plenária.

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