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Trabalhadores e ditaduras
Brasil, Espanha e Portugal
CONSEQUÊNCIA
Coordenação editorial
Consequência Editora
Revisão
Vitor Ribeiro
Capa, projeto gráfico e diagramação
Letra e Imagem
Apoio
cip-brasil. catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, rj
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-64433-18-2 (broch.)
CDD: 321.9
Apresentação .................................................................................................................. 7
Gilberto Calil
1
DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe.
Petrópolis: Vozes, 1981.
13
2
Optamos por não utilizar a expressão “pacto populista” tendo em vista a assimetria entre,
por um lado, a burguesia industrial que conduzia e era a principal beneficiária do proje-
to populista, e de outro os segmentos da classe média e dos trabalhadores urbanos que
apoiavam o projeto e tinham algumas reivindicações atendidas. Justificamos essa opção
em: CALIL, Gilberto. O populismo e a hegemonia burguesa na América Latina. História
& Luta de Classes, Marechal Cândido Rondon, n. 4, julho 2007, p. 27-33.
3
CALIL, Gilberto. Quem derrubou o Estado Novo Brasileiro? Reflexões sobre as cons-
truções historiográficas em torno da democratização de 1945. In: PIMENTEL, Irene; RE-
ZOLA, Maria Inácia. Democracia, Ditadura: Memória e Justiça Política. Lisboa: Tinta da
China, 2013. p.87-107
4
ALMINO, João. Os democratas autoritários. São Paulo: Brasiliense, 1980.
5
DUARTE, Paulo. Editorial. Revista Anhembi, São Paulo, n. 1, p. 3, 1950.
6
CALIL, Gilberto. As disputas acerca da democratização brasileira na década de 1940: luta
de classes e reafirmação da hegemonia burguesa. In: ANTOGNAZZI, Irma; REDONDO,
Nilda. Hacer la Historia, un desafio. Rosario: Grupo de Trabalho Hacer la Historia, 2007.
7
Apud CALIL, Gilberto. O integralismo no processo político brasileiro: O PRP entre 1945 e
1964 – cães de guarda da ordem burguesa. Niterói, 2005. Tese de Doutorado em História
– Universidade Federal Fluminense. 834p.
8
WOOD, Ellen. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico.
São Paulo: Boitempo, 2003.
9
OLIVEIRA, Nilo Dias. A configuração do sistema nacional de repressão ao governo JK
(1956 a 1961). São Paulo, 2013. Tese de Doutorado em História –Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
10
ALMEIDA JÚNIOR, Antônio Mendes. Do declínio do Estado Novo ao suicídio de
Vargas. In: FAUSTO, Bóris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. Volume III:
O Brasil Republicano. Tomo 3: Sociedade e Política 1930-1964. 5a edição. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1991. p. 227-255. P. 244.
11
MARINI, Ruy Mauro. A Dialética da Dependência. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 47.
12
FONTES, Virgínia; MENDONÇA, Sonia. História do Brasil recente, 1964-1980. 2. edi-
ção. São Paulo: Ática, 1991, p. 8-9.
com o que poderia incorporar uma enorme massa de mais de cinco mi-
lhões de trabalhadores rurais ao mercado consumidor brasileiro, abrindo
uma nova fase de expansão da indústria brasileira de bens de consumo
rápido e ampliando as bases do desenvolvimento do capitalismo brasilei-
ro. Esse processo se complementaria com as demais “reformas de base”:
reforço do setor público estratégico, nacionalização do sistema financeiro
e rompimento com Fundo Monetário Internacional, expansão da rede pú-
blica universitária e restrições à remessa de lucros ao exterior. É necessário
reconhecer, no entanto, que tal alternativa estava muito além dos interes-
ses da burguesia brasileira, seja em virtude de seu temor relativo à radica-
lização política dos setores subalternos, seja porque parcelas importantes
dessa burguesia já vislumbravam alternativas menos custosas através do
aprofundamento do vínculo com o grande capital transnacional. A radical
oposição dos demais setores da burguesia (agrária, comercial) e a ingerên-
cia direta do imperialismo, através da embaixada dos Estados Unidos, con-
solidavam a inviabilidade política dessa alternativa que, de forma parcial e
fragmentada, foi empreendida pelo governo João Goulart. Essa alternativa
era inviável nos marcos do populismo, pois a politização e a ação autôno-
ma dos subalternos extrapolavam inteiramente os limites que viabiliza-
vam a aliança política em torno do populismo, e em especial a emergên-
cia política dos trabalhadores rurais potencializava a crise e impulsionava
politicamente a reação. Em síntese, enquanto a mobilização política dos
subalternos explodia os esquemas políticos tradicionais, a proposição de
uma ampla reforma agrária subvertia as bases políticas do populismo.
A outra alternativa – que se efetivou através do Golpe de 1964 e da
instalação da ditadura – tinha sentido social e político diametralmente
oposto. Implicou a efetivação da passagem a uma nova fase de industria-
lização – centrada na produção de bens de consumo durável, de alto valor
agregado, e de bens de capital – através de três medidas básicas tomadas
de forma articulada: a associação subordinada ao capital externo; a radical
contração dos níveis salariais e dos direitos dos trabalhadores, aumentan-
do a taxa de lucro e, com isso, acentuando as “vantagens comparativas”
através das quais se buscava atrair novos capitais; e a promoção de violenta
concentração de renda, criando uma alta classe média com elevado nível
de consumo que constituiria mercado consumidor dos bens de maior valor
agregado que sustentariam esta nova fase. Sobretudo o chamado “Milagre
Brasileiro” dos anos 1970 expressou a efetivação dessa alternativa, ainda
que seu êxito tenha sido efêmero e seus limites conduziram à crise da dí-
vida dos anos 1980.
Observado o processo histórico a partir dessa perspectiva, fica nítido
que não é razoável separar os aspectos políticos, sociais e econômicos da
chamada “crise do populismo”. Só a sua compreensão de forma articula-
da permite superar simplificações empobrecedoras, como, por exemplo, a
responsabilização pessoal de João Goulart – seja acusando-o de “incom-
petente”, seja de “radical” –, que separa o sujeito do processo histórico e da
teia de relações sociais dentro das quais suas ações tomam sentido.13
Além disso, cabe destacar uma questão de fundo: não era possível im-
por as profundas transformações econômicas de que necessitava o capita-
lismo brasileiro – e a regressão social que lhe era intrínseca, em especial no
que se refere à contração da remuneração do trabalho – dentro da ordem
política vigente até 1964, pois a despeito dos limites da democracia então
vigente, a reversão do conjunto das conquistas obtidas pelos trabalhadores
só seria possível em uma ordem aberta e integralmente repressiva, com
plena vigência do terrorismo de Estado contra o conjunto das organiza-
ções e movimentos das classes subalternas. Portanto, do ponto de vista
das classes dominantes e de sua opção histórica então consolidada, era
imprescindível a deflagração de um golpe de Estado e a imposição de uma
Ditadura de Segurança Nacional fundada no terrorismo de Estado. Essa
“racionalidade” do processo não pode ser perdida de vista na análise dos
diferentes movimentos que levaram ao golpe e das diferentes conjunturas
que marcaram a ditadura.
14
Ressaltamos a importância das medidas econômicas implementadas e sua articulação
com as políticas repressivas já durante este primeiro governo da ditadura, tendo em vista
o atual movimento revisionista de relativização de seu caráter ditatorial, conforme discu-
tiremos adiante.
15
DREIFUSS, op. cit., p. 162.
16
Ibid., p. 163.
17
Ibid., p. 163.
18
Ibid., p. 331.
19
Ibid., p. 331.
20
Em São Paulo, embora o IPES/IBAD tenha apoiado um candidato que foi derrotado
(José Bonifácio Coutinho Nogueira), o governador eleito (Adhemar de Barros) incorpo-
rou-se à articulação golpista e teve papel protagônico na articulação da Marcha da Família
com Deus pela Liberdade.
21
Ibid., p. 482.
22
Ibid., p. 482
23
Ibid., p. 483.
24
Ibid., p. 485.
25
Ibid., p. 487.
Uma crítica que teve repercussão importante foi a produzida pela cientista
política Argelina Figueiredo, que de acordo com a avaliação crítica do histo-
riador Demian Bezerra de Melo, “desloca o foco de sua explicação da direita
civil e militar, do IPES, da embaixada dos EUA etc., para corresponsabilizar
aqueles que, em 1964 foram apeados do poder. Ao mesmo tempo, acusa a
tese de Dreifuss de tornar o golpe como algo ‘inevitável’, já que os ‘conspira-
dores são vistos como onipotentes’”26. No entanto, foi na última década que a
interpretação de Dreifuss passou a ser criticada de forma sistemática, a par-
tir de uma orientação claramente amenizadora na forma de compreender a
ditadura e que claramente deixa de pretender uma perspectiva totalizante.
No contexto da preparação para os quarenta anos do golpe, a obra de
Elio Gaspari radicalizou tal perspectiva, afirmando que “Havia dois golpes
em marcha. O de Jango viria amparado no ‘dispositivo militar’ e nas bases
sindicais, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a aprovar um paco-
te de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial”.27
Nessas avaliações, perde-se de vista a perspectiva de totalidade do proces-
so e o seu sentido geral, substituindo-os por uma condenação individual,
que responsabiliza o presidente João Goulart pelo rumo que tomaram os
acontecimentos, seja pela sua suposta incompetência, seja pelo seu suposto
radicalismo ou por seu suposto “golpismo”. Em qualquer destas alterna-
tivas, a crise de acumulação capitalista, os impasses do projeto populista
e as articulações golpistas deixam de ser consideradas ou são relegadas à
condição secundária.
Mais recentemente, no contexto dos cinquenta anos do Golpe de 1964,
alguns historiadores, através de novas publicações e de intervenções no de-
bate público, radicalizaram as perspectivas relativistas em relação ao golpe
e à ditadura, inclusive propondo uma redefinição dos marcos cronológicos
que datam a duração da ditadura, promovendo seu encurtamento.
O historiador Daniel Aarão dos Reis Filho, em livro recentemente lan-
çado,28 defende que a ditadura encerrou-se em 1979, sendo substituída en-
26
MELO, Demian Bezerra. Golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual
da questão. In: MELO, Demian Bezerra (org). A miséria da historiografia: uma crítica ao
revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014. p. 157-188, p. 160.
27
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo, Companhia da Letras, 2002, p. 53
28
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar,
2014.
tão por um período de “transição” que já não mais poderia ser qualificado
como ditadura. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, Aarão é
explícito em sua proposição: “Depois de 1979, deixou de haver um estado
de exceção no Brasil. Subsistiu um Estado de Direito autoritário, sem dú-
vida, marcado pelo chamado “entulho autoritário”, que só seria revogado
pela Constituição de 1988. Entre 1979 e 1988, o país conheceu um período
de transição – ainda não havia um Estado de Direito democrático, mas já
não existia ditadura”.29 Esta perspectiva foi criticada por Mário Maestri
Filho, para quem Reis Filho adota uma perspectiva formalista que con-
funde respeito formal a normas institucionais com democracia. Maestri
Filho contrapõe ao procedimento de Reis Filho o núcleo central da pro-
posição de Dreifuss: “O caráter essencialmente burguês do golpe militar
de 1964 é questão patente para a historiografia não formalista. É ideia há
muito consolidada que, em 1964, a ruptura da gestão civil e a administra-
ção do Estado e da sociedade pelo alto mando militar foi projeto proposto,
avançado e sustentado pelo bloco proprietário dominante no país, já sob
a direção da burguesia industrial, sobretudo paulista”.30 Reis Filho tam-
bém critica a utilização do termo ditadura militar, enfatizando o caráter
“civil-militar” do golpe e da ditadura, em perspectiva claramente distinta
daquela adotada por Dreifuss, conforme aponta Melo: “Em vez de o termo
‘civil-militar’ se ligar à participação de fortes interesses classistas tanto na
articulação golpista quanto no caráter do regime ditatorial, parte da his-
toriografia vem defendendo a mistificação calcada na ideia de algo como
uma cumplicidade da ‘sociedade brasileira’ com a ditadura, como se fosse
possível a existência de uma tal ‘sociedade’, como uma coisa homogênea”.31
Outro autor que vem avançando na proposição de interpretações revi-
sionistas é Marco Antonio Villa, que foi consultor e revisor da obra de Elio
Gaspari e retoma algumas de suas proposições, como a desqualificação
pessoal de João Goulart e o encurtamento da ditadura. Seu recente livro
29
Idem. A ditadura Cronológica. Folha de São Paulo, São Paulo, 26 mar. 2014, p. 3.
30
MAESTRI FILHO, Mário José. O homem que encurtou a democracia. Correio da Cida-
dania, 2014. O artigo citado está na edição 909 de 20/05/2014, disponível em: <http://www.
correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=9627:edi-
cao-909-12052014-a-18052014&catid=35:arquivos-do-correio&Itemid=79>. Acesso em:
20/09/2014.
31
MELO, op. cit., p. 168.
32
VILLA, Marco Antonio. Ditadura à Brasileira. São Paulo: Leya, 2014.
33
MELO, Demian Bezerra. A historieta de Marco Antonio Villa: um negacionismo à bra-
sileira. Blog Convergencia, 2014. Disponível em: <http://blogconvergencia.org/blogcon-
vergencia/?p=2016>. Acesso em: 16 maio 2014. É interessante observar que o livro de Villa
vem sendo muito divulgado em sítios eletrônicos vinculados à ultradireita militar, o que
ressalta a identidade de proposições indicada por Melo. Um exemplo encontra-se no sí-
tio “A verdade sufocada”, disponível em: <http://www.averdadesufocada.com/index.php/
contra-revoluo-de-1964-notcias-106/10314-o60314-ditadura-a-brasileira-marco-antonio-
villa>. Acesso em: 3 abr. 2014.
34
VILLA, Marco Antonio. Jango e o Realismo fantástico. O Globo, Rio de Janeiro, 14 jan.
2014, p. 3.
35
Idem. Ditadura à Brasileira. Folha de São Paulo, São Paulo, 5 mar. 2009, p. 3.
36
Idem. Golpe à Brasileira. O Estado de São Paulo, São Paulo, 19 fev. 2014, p. 3.
Considerações finais
Nosso objetivo neste capítulo foi propor uma interpretação sobre o golpe e
a ditadura, que se fundamenta na contribuição de René Dreifuss e na hipó-
tese de que a grande burguesia brasileira e os capitais externos já então pre-
sentes no país constituíram o bloco multinacional associado que unificou
as classes dominantes em torno do golpe, conduziu as articulações golpis-
tas e determinou os rumos da ditadura instalada em 1964. Esta perspectiva
de análise leva em consideração os impasses do capitalismo brasileiro no
início dos anos 1960, nos marcos da crise do populismo, e as implicações
políticas do processo de mobilização dos trabalhadores rurais e do cresci-
mento das reivindicações e mobilizações dos trabalhadores urbanos. Em
contraposição à simplificação que iguala as ações do bloco reformista e do
bloco golpista compreendendo ambas como parte de um processo de “ra-
Ibid.
37
19850). São Paulo: Xamã, 2009. De acordo com David Maciel, grande parte dos aspectos
essenciais da ditadura “seriam preservados em 1988, consolidando um padrão de demo-
cracia ainda fortemente determinado por uma perspectiva autocrática, apesar de todos os
avanços dos movimentos sociais das classes subalternas nos anos anteriores”. Ibid., p. 326.