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XI MICC
Elaboração:
Amélia de Hollanda
Carolina Meliande
Felipe Abreu
Gabriel Salomão
Giovanna Moscatelli
Júlia Bahri
Mariana Abranches
Revisão:
Antonio Brito
Rio de Janeiro
2024
Sumário
1. CARTA AOS DELEGADOS...............................................................................................4
2. OS ANOS DE FUMAÇA..................................................................................................... 5
2.1. O SUICÍDIO: MORRE O PAI DOS TRABALHADORES......................................... 7
2.2. JUSCELINO KUBITSCHEK: O BRASIL SOBRE QUATRO RODAS................... 10
2.2.1. Cinquenta anos em cinco: o Plano de Metas..................................................11
2.2.2.1. A construção de Brasília........................................................................... 12
2.2.2. O abre-alas: relações internacionais e a dívida externa................................13
2.2.3. JK e os militares............................................................................................... 14
2.3. O INTERREGNO JÂNIO QUADROS.......................................................................14
2.3.1. “Me diga aonde você vai, que eu vou varrendo”: a despedida do
Vassourinha.................................................................................................................16
3. OS ANOS DE BRASA....................................................................................................... 16
3.1. O REVOLUCIONÁRIO VAI À CHINA.................................................................... 16
3.2. UNIÃO, DEMOCRACIA E REFORMAS: O PLANO DE GOVERNO DE JANGO..
……………………………………………………………………………………………19
3.3. AS REFORMAS DE BASE........................................................................................20
3.4.. ENFIM, OS MILITARES SAEM DOS POSTOS..................................................... 22
4. OS ANOS DE CHUMBO.................................................................................................. 23
4.1. GOVERNO CASTELO BRANCO.............................................................................24
4.1.1. Os Legalistas e a Linha Dura.......................................................................... 25
4.2. GOVERNO COSTA E SILVA.................................................................................... 27
4.2.1. O início do Milagre Econômico.......................................................................27
4.2.2. A resistência...................................................................................................... 28
4.2.3. A repressão........................................................................................................28
4.3. JUNTA MILITAR....................................................................................................... 29
4.4. GOVERNO MÉDICI.................................................................................................. 34
4.4.1. O Primeiro Plano de Desenvolvimento Econômico (I PND)........................ 35
4.4.2. Mais repressão.................................................................................................. 39
4.4.3. Mais resistência.................................................................................................46
4.5. GOVERNO GEISEL...................................................................................................50
4.5.1. O Segundo Plano de Desenvolvimento Econômico (II PND)....................... 51
4.5.2. A transição democrática: “ampla, gradual e segura”...................................54
5. OS ANOS DE HOJE.......................................................................................................... 57
5.1. A BOMBA NO COLO DE JOÃO FIGUEIREDO..................................................... 57
5.2. PARA ONDE FOI O “MILAGRE ECONÔMICO”?................................................. 58
5.3. CULPA OU ANISTIA................................................................................................ 60
5.4. DIRETAS OU INDIRETAS........................................................................................61
5.5. REPRESSÃO OU RESISTÊNCIA............................................................................. 62
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................... 65
1. CARTA AOS DELEGADOS
Bem vindos queridos delegados participantes do XII MICC!
Mais uma edição do MICC se aproxima e, com ela, o comitê que se remete a uma das
mais importantes movimentações políticas da história do Brasil: a Redemocratização
brasileira!
Durante o momento em que se passa o comitê, o Brasil passava pelo momento final
da Ditadura Militar, contemplando, assim, dois grupos beligerantes: aqueles que desejavam
seu fim e o restabelecimento da democracia; e aqueles que participavam do governo militar,
visando a se manter no poder pelo máximo de tempo possível. Assim, nosso comitê se
dividirá em dois: o Gabinete Presidencial, no qual os ministros deverão, com unhas e dentes,
trabalhar para a manutenção do status quo do momento, prestando devida atenção aos
detalhes que podem influenciar a opinião pública; e a Câmara dos Deputados, que por sua vez
terá como papel a votação e debate sobre o Projeto de Emenda Constitucional nº 5, no ímpeto
do processo de redemocratizar o país.
O movimento foi um marco na história política brasileira, marcado por manifestações
massivas, comícios históricos e um clamor uníssono por um processo eleitoral mais direto e
representativo. Foi um período em que os cidadãos brasileiros, de diversas classes e
ideologias, se uniram para reivindicar o direito fundamental de escolherem democraticamente
seus líderes.
Além da reflexão sobre o movimento, é imperativo que cada um de vocês, como
representantes de diferentes partidos e interesses, compreendam a profundidade do impacto
desse movimento na construção da democracia no Brasil. As Diretas Já representaram não
apenas uma luta por eleições diretas, mas um clamor por participação cívica, liberdade e
justiça.
Ao debaterem e analisarem as nuances desse movimento histórico, convidamos todos
os delegados a mergulharem nas complexidades políticas e sociais que envolveram as Diretas
Já. Que esta discussão não seja apenas uma reflexão acadêmica, mas também uma
oportunidade de inspiração para o fortalecimento contínuo das instituições democráticas em
todo o mundo.
Estamos ansiosos para testemunhar as discussões construtivas que certamente
surgirão deste tópico histórico e inspirador.
Cordialmente,
A Mesa Diretora
2. OS ANOS DE FUMAÇA
Após a queda de Getúlio Vargas e do Estado Novo em 1945, o Brasil passou, em
dezembro daquele mesmo ano, por novas eleições presidenciais. O general Eurico Gaspar
Dutra, graças ao apoio de Vargas, foi eleito presidente da República. No ano seguinte, após
meses de discussões na Assembleia Constituinte, que havia sido convocada, foi promulgada
uma nova Constituição.
Antes mesmo de Dutra chegar na metade de seu governo, foram iniciadas as
articulações para a sucessão presidencial, e desta vez, Getúlio seria candidato à presidência.
Em sua campanha, o pai dos trabalhadores – como ficou conhecido desde que criou a
legislação trabalhista em 1932 – defendeu a industrialização e a necessidade de se ampliar a
legislação trabalhista. Além disso, Vargas recebeu o inesperado apoio do governador de São
Paulo, Ademar de Barros, conquistando uma importante base eleitoral em São Paulo, estado
onde posteriormente veio a conquistar significativo número de votos nas eleições. Vargas saiu
vitorioso nas eleições de outubro de 1950.
Getúlio assumiu a presidência em janeiro de 1951. A União Democrática Nacional
(UDN) tentou boicotar a eleição de Vargas, chegando a pedir uma intervenção militar, porém,
não obtiveram êxito, uma vez que as Forças Armadas ainda pendiam para uma manutenção
do estabelecimento democrático. Vale ressaltar que tais circunstâncias evidenciam uma
dependência da democracia em relação ao apoio militar.
O novo presidente começou seu governo tentando mediar as relações entre as divisões
que havia na sociedade e que tinham tomado uma divisão específica no interior do Exército.
Tal divisão refere-se a duas correntes, a nacionalista e a entreguista, com opiniões
conflitantes para com temas da política econômica nacional e da política externa brasileira.
Em suma, os nacionalistas defendiam um desenvolvimento baseado na
industrialização, aliada à criação de um sistema econômico nacional independente do sistema
capitalista internacional. Possuíam uma abordagem aberta à utilização do capital estrangeiro,
porém, o encaravam com ressalvas, uma vez que acreditavam que seu uso poderia representar
um risco para a soberania nacional. Sendo assim, acreditavam que o Estado deveria exercer
um papel de investidor em áreas estrategistas, como a área de transporte e de petróleo. No
âmbito da política externa eram favoráveis a um afastamento dos EUA.
Em oposição, os entreguistas não viam a industrialização como prioridade e
sustentavam a ideia de um desenvolvimento baseado na abertura controlada ao capital
estrangeiro. Defendiam também uma menor intervenção do Estado na economia e um
combate à inflação por meio do controle da emissão de moeda e do equilíbrio dos gastos do
governo. No plano das relações internacionais eram favoráveis a um alinhamento com os
EUA no combate ao comunismo.
Vale ressaltar que, os acontecimentos no Clube Militar, especialmente as eleições
internas, serviam como um termômetro das tensões internas do Exército e do peso das
correntes do nacionalismo e do entreguismo. Ainda no governo Dutra, em 1950, foram eleitos
para presidente e para vice dois militares nacionalistas; no entanto, nas eleições de 1952, já
no governo Vargas, os vencedores eram de uma chapa entreguista. As eleições de 1952 do
clube evidenciaram a politização do Exército e a cada vez maior tendência favorável ao
alinhamento com os EUA.
No plano da política financeira o governo promoveu, no início da década de 50,
diversas medidas a fim de incentivar o desenvolvimento econômico da nação, dando maior
foco na industrialização. Nesse sentido foi criado em 1952 o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico (BNDE), cujo objetivo era dinamizar o processo de
diversificação industrial. Cabe constar que o desenvolvimento da indústria era incentivado
pela concessão de crédito fácil ao setor privado.
Paralelamente, nas tentativas de dinamização e desenvolvimento da economia, o
governo Vargas precisava lidar com um problema de enorme repercussão social, a crescente
inflação. Os motivos para o aumento da inflação eram diversos, entre eles podemos citar: A
contração de dívidas no exterior decorrente da Guerra das Coreias que havia se iniciado e o
fato de que o estímulo à expansão industrial gerava elevações nos custos e no preço final dos
produtos. Vale evidenciar que devido à natureza dos investimentos realizados pelo governo
em infraestrutura, especialmente nos sistemas de transporte e de energia, os resultados
positivos surgiriam a médio e longo prazo.
Getúlio se via encurralado de certa forma, afinal, não podia ignorar as reivindicações
dos trabalhadores que haviam sido atingidos pela inflação e pela alta do custo de vida, porém,
por outro lado, era necessário tomar medidas impopulares para conter a inflação. Sob essas
circunstâncias, em 1953, Vargas indica um jovem político e amigo de sua família chamado
João Goulart para assumir o Ministério do Trabalho. Goulart era ligado aos meios sindicais
do PTB e surgia como alguém capaz de combater a crescente influência comunista nos
sindicatos. Vale salientar que na época, o novo ministro era visto pela UDN e por partes dos
setores militares como um defensor da “República sindicalista”.
Para o Ministério da Fazenda, Getúlio indicou seu velho aliado, Osvaldo Aranha,
que iniciou um programa econômico, chamado Plano Aranha, que tinha como objetivo
controlar a expansão do crédito e o câmbio nas transações com o exterior, estabelecendo
assim, uma maior flexibilidade cambial. Esta por sua vez, tinha como um de seus objetivos
favorecer as importações de bens considerados básicos para o desenvolvimento da economia
nacional.
Ainda no ano de 1953, foi introduzido no Brasil o confisco cambial, que fixou uma
menor valorização do dólar ao ser convertido em Cruzeiros recebido pelos exportadores de
café, assim fazendo com que o Estado passasse a ficar com parte dos dólares obtidos pela
exportação do café. A partir dessa medida, o governo passou a utilizar o dinheiro adquirido
com a exportação do café para investir em outras áreas, principalmente na indústria.
Revoltados, os cafeicultores tentaram realizar protestos políticos, porém, foram impedidos
pelo Exército.
Apesar dos maus resultados no setor, Vargas não abandonou a cafeicultura. O
Presidente realizou uma política de sustentação de preços altos no exterior que, inclusive,
provocou os EUA. Diante deste cenário começaram a surgir pressões internas contra o Plano
Aranha e, paralelamente a isso, houve uma mudança na presidência americana, em virtude da
qual, o novo governo abandonou a assistência estatal dada aos países em desenvolvimento,
passando a dar preferência aos investimentos privados. Fazendo com que o Brasil não mais
negociasse com o Estado americano, mas sim com seus bancos privados.
Getúlio não se esquecera de tomar medidas em prol dos trabalhadores urbanos. O
Presidente incentivou a organização sindical dos trabalhadores e facilitou a entrada para os
sindicatos, favorecendo assim, a volta dos comunistas que haviam sido cassados durante o
governo Dutra. Porém, Vargas não tinha total controle sobre o operariado, e, em 1953,
decorrentes da liberalização sindical e do alto custo de vida, estouraram diversas greves no
país.
Uma das maiores greves eclodiu em março, no estado de São Paulo, porém, nesse
mesmo mês, houve em São Paulo outro significativo acontecimento político, cuja real
proporção se revelaria alguns anos à frente. O evento em questão é a eleição de um ex-
professor chamado Jânio Quadros para a prefeitura paulistana. Jânio foi eleito por uma
pequena coalizão de somente duas siglas, derrotando candidatos de partidos
consideravelmente maiores e mais influentes. A maior parte do discurso populista de sua
campanha baseou-se na luta contra a corrupção e teve como símbolo uma vassoura.
Getúlio estava certo, ele entrou na história, e ficou na memória dos trabalhadores
como um defensor dos humildes, tendo as repercussões de sua morte como imediatas. A
massa trabalhadora foi às ruas, atacando caminhões que carregavam edições do jornal
antigetulista O Globo. Da mesma forma, a Embaixada dos Estados Unidos no Rio foi
vandalizada. Vale destacar a presença dos comunistas nas manifestações, marcando uma
reviravolta, tendo em vista que ao longo de todo o último governo, foram oposição. A partir
do marco da morte de Getúlio, passaram a cada vez mais apoiar o nacionalismo populista.
Havia um plano da Aeronáutica de instalar a chamada República do Galeão, na qual
os membros da aeronáutica “purificariam” a democracia, tal qual defendia Lacerda. Porém, a
cúpula do exército e o impacto gerado pelas manifestações populares asseguraram a
democracia, tendo como resultado a posse do vice-presidente Café Filho, que assumiu a
presidência e garantiu a realização de eleições presidenciais em outubro de 1955.
2.2.3. JK e os militares
As relações entre JK e os militares foram relativamente amistosas. Após a tentativa de
derrubada do Presidente ser impedida pelo golpe preventivo do General Lott, a cúpula militar
se acalmou, mantendo uma relação pacífica com o executivo. Logo no começo de seu
governo, Juscelino frisou a necessidade de desenvolver objetivos que eram compatíveis aos
das forças armadas, no caso, “ desenvolvimento e ordem”.
Juscelino também atendeu às velhas reivindicações dos militares no âmbito dos
equipamentos, além disso, passou a indicar cada vez mais militares para postos estratégicos
do governo. Apesar desta aparente calmaria durante o período de JK, houverem sim atos de
insubordinação no interior das Forças Armadas, como a Revolta de Jacareacanga. Porém, tais
ações ocorreram longe das grandes e influentes metrópoles, ou seja, representaram mais um
desconforto de uma parcela do que uma ameaça à democracia.
2.3.1. “Me diga aonde você vai, que eu vou varrendo”: a despedida do Vassourinha
Desde o início de seu governo, Jânio não contava com uma base política de apoio
forte. O PSD e o PTB dominavam o Congresso, além disso, Lacerda passou para a oposição e
a UDN começou a queixar-se do governo.
Em 24 de agosto de 1961, Lacerda, em um discurso transmitido pelo rádio,
denunciou uma tentativa de golpe janista, articulado pelo ministro Pedroso Horta, ao qual
teria sido convidado a participar. No dia seguinte, Jânio Quadros comunicou ao Congresso
sua renúncia ao cargo de presidente da República. A renúncia não chegou a ser esclarecida,
Pedroso Horta negou a acusação, e Jânio nunca deu uma explicação clara acerca de suas
motivações, alegando apenas que “forças terríveis” o levaram ao ato.
3. OS ANOS DE BRASA
3.1. O REVOLUCIONÁRIO VAI À CHINA
No momento da renúncia de Jânio Quadros à presidência da república, seu vice, João
Goulart, se encontrava na China para uma viagem de objetivos comerciais. No entanto,
mesmo que a sua posse estivesse prevista no artigo 79 da Constituição de 1946, os três
ministros das forças armadas Odílio Denys, Silvio Heck e Gabriel Grun Moss decidiram ir
contra às claras determinações constitucionais e vetar o retorno de João Goulart ao Brasil.
Assim, assume como chefe do executivo o então presidente da Câmara dos
Deputados, Ranieri Mazzilli, que no dia 28 de agosto de 1961, comunicou oficialmente à
população brasileira que o vice-presidente João Goulart não estava autorizado para voltar a
solo brasileiro. O comunicado na íntegra dita:
1
BRASIL. Câmara dos Deputados. Programa de rádio "Janio Quadros renuncia: Começa o parlamentarismo".
Brasília, DF, 1961. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/radio/programas/279426-janio-quadros-renuncia-comeca-o-parlamentarismo/.
Acesso em: 18 jan. 2024.
2
Câmara Municipal de Porto Alegre. Sessão solene lembra os 61 anos do Movimento da Legalidade. 2024.
Disponível em:
https://www.camarapoa.rs.gov.br/noticias/sessao-solene-lembra-os-61-anos-do-movimento-da-legalidade.
Acesso em: 02 de janeiro de 2024.
Visto que os nervos estavam se acalorando por todo o território brasileiro, que já se
encontrava na beira de uma guerra civil, a Câmara dos Deputados decidiu agir por meio da
Emenda Constitucional no. 43, que estabeleceu o parlamentarismo no Brasil. A Emenda4
funcionava de forma que Jango não possuiria poder político de fato, o que agradava as elites
que temiam com a sua proximidade com a esquerda, mas também não o tirava
completamente do poder, sendo assim uma manobra política da Câmara que ocorre sem
nenhuma participação popular, funcionando apenas como uma medida paliativa.
A última investida militar ocorrida ligada à campanha da legalidade foi a operação
mosquito, que tentou derrubar o SE 210 Caravelle da Varig no qual João Goulart estava
embarcado à caminho do Brasil. No entanto, o avião chegou a voar a 11100 pés, sendo alto
demais para que os radares da época detectassem o veículo. Mesmo com a tentativa de abate,
Jango desembarcou em Brasília e foi recepcionado pelo Gen. Ernesto Geisel no aeroporto, de
onde ambos foram diretamente para posse do mais novo presidente de enfeite.
O parlamentarismo brasileiro teve, logo em sua única disposição preliminar, a
explicitação de que o presidente trabalharia juntamente à um grupo chamado de Conselho de
Ministros, que possui suas atribuições arroladas no primeiro artigo da Emenda Constitucional
nº 4, que dita: “Art. 1º: O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República e pelo
Conselho de Ministros, cabendo a este a direção e a responsabilidade política do governo,
assim como da administração federal.”
Dentre o Conselho de Ministros, a figura análoga ao primeiro-ministro foi ocupada
primeiramente por Tancredo Neves, responsável pela própria Emenda nº 4. Tancredo
defendeu a pauta da reforma agrária em seu governo, questão abordada profundamente por
Jango em toda a sua carreira política (Oreiro, 2019). Paralelamente, Neves se comprometeu
com questões trabalhistas nas quais haviam vácuos deixados por Vargas na CLT de 1941,
como o Estatuto do Trabalhador Rural, antes ignorado pela legislação federal e a
promulgação do 13o salário, o que agradou profundamente a classe trabalhadora. No entanto,
o parlamentarismo já perdia força política, pois as medidas tomadas por Tancredo Neves não
eram tão populares no plenário quanto nas ruas (Oreiro, 2019).
3
BRASIL. Câmara dos Deputados. Emenda Parlamentarista. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/destaque-de-materias/em
enda-parlamentarista. Acesso em: 05/01/2024
4
BRASIL. Emenda Constitucional nº 4, de 2 de setembro de 1961. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 3 set.
1961. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/1960-1969/emendaconstitucional-4-2-setembro-1961-349692-pub
licacaooriginal-1-pl.html. Acesso em: 07/01/2024
Assim, após 290 dias de mandato, Neves e seu gabinete renunciaram, iniciando um
novo processo de busca por um presidente do Conselho de Ministros. Após duas tentativas
frustradas de Goulart para que fosse colocado alguém que estivesse alinhado à ele, foi
escolhido o político do PSD do Rio Grande do Sul, Francisco Brochado da Rocha.
Brochado teve durante seu governo taxas altíssimas de inflação acumulada, chegando
a 34,7%5, fazendo com que sua política se voltasse mais à questão econômica que qualquer
outra coisa. No entanto, as medidas trabalhistas de Tancredo fizeram com que houvesse uma
maior reivindicação por melhorias, principalmente salariais. Mesmo que populares entre a
população, a manutenção dessas garantias recorrentemente presentes em reivindicações ao
presidente do Conselho de Ministros não eram amigáveis aos integrantes do Poder
Legislativo. Visto que sua política não seria aceita e comprometido com os ideais de Jango e
Brizola, Brochado pediu ao Congresso para que fosse adiantado o plebiscito que definiria se a
população desejava ou não a volta do presidencialismo, tendo seu pedido negado. Não
suportando o rígido cenário que se estabelecera, Brochado da Rocha renunciou em 14 de
setembro de 1962, falecendo apenas 12 dias depois. Com o segundo abandono de cargo
seguido, o Congresso começou a compreender que o plebiscito teria que ser adiantado ,ao
contrário do prazo estabelecido anteriormente, em 1965.
O terceiro e último presidente do Conselho de Ministros foi Hermes Lima, que durou
pouquíssimo tempo no poder, visto que no primeiro dia após a sua posse já se iniciou uma
greve dos partidos que concordavam com Brochado da Rocha e esperavam reformas salariais.
Hermes Lima atuou sendo basicamente um "tampão" até que fosse feito o plebiscito.
Mesmo que a participação de todos não tenha sido obrigatória nessa votação, 11 dos
18 milhões de eleitores foram às urnas e decidiram pela volta do presidencialismo em
território brasileiro, visto que o parlamentarismo havia sido imposto ao povo, que ficava cada
vez mais sem participação efetiva na política. Ao mesmo tempo, o Brasil se estabelecia como
bicampeão mundial de futebol, vencendo de 3 a 1 da Tchecoslováquia.
5
FOLHA DE S. PAULO. Almanaque Folha - Dinheiro nos Anos 60. Disponível em:
http://almanaque.folha.uol.com.br/dinheiro60.htm. Acesso em: 09/01/2024.
diretamente da população, e não das outras áreas da política brasileira, tal qual o Poder
Legislativo, que inclusive lutava contra grande parte das medidas propostas por Goulart.
Com a proposta de um reformismo social, Jango desejava que se instaurasse no Brasil
uma democracia política6. Para que as suas medidas fossem aceitas, o mandato de João
Goulart foi chamado de “governo trapézio”, adotando caráter conciliador, tendo em seus
ministérios membros de diversas alas políticas. Um claro exemplo do caráter do governo
Jango é a sua interação com a UDN, que pedia medidas de estabilização econômica, que logo
foram adotadas como políticas de contenção salarial, mesmo que isso fosse contra os
interesses sindicalistas. Para completar o caos político no momento, o Brasil vivia ao mesmo
tempo uma enorme crise financeira, o que trouxe uma tácita insatisfação que aos poucos se
espalhou por todo o governo (NEVES, 2010).
Assim, com a liderança de Celso Furtado, foi formulado em dois meses o Plano
Trienal de 1962, que possuía como objetivo retomar o crescimento do Produto Interno Bruto
brasileiro para 7%. Para que isso ocorresse, foram alocados 3,5 trilhões de cruzeiros para o
desenvolvimento da indústria e aumento da renda per capita. No entanto, o plano teve sua
aplicação e planejamento muito corridos, fazendo com que questões vitais ao crescimento
econômico fossem ignoradas, como impostos e normas regulatórias, garantindo assim o
fracasso das medidas.
Ao mesmo tempo, Jango procurava cumprir seus compromissos com a população e a
classe trabalhadora, focando assim parte das suas políticas na defesa da necessidade das
Reformas de Base, que englobaram a reforma agrária e a tentativa de estabelecimento de um
“capitalismo nacional e progressista”.
Economicamente, o plano de Goulart se baseava em “combater a inflação com
desenvolvimento”, no entanto, não foi dada atenção suficiente aos produtos necessários para
a subsistência da população, como trigo e petróleo, o que aumentou exponencialmente os
seus preços e, com eles, tanto a alimentação quanto o transporte se tornavam mais caros,
trazendo insatisfação de todas as classes populares.
6
Delgado, Lucilia de Almeida Neves. "O Governo João Goulart e o golpe de 1964: memória, história e
historiografia." Editora Tempo 14 (2010).
basearam no entendimento de que tais problemas deveriam ser resolvidos para que ocorresse
a consolidação devida da democracia em território brasileiro.7.
A primeira reforma proposta e talvez a mais importante foi a Reforma Agrária. A
Constituição vigente na época, principalmente em seu artigo 141, garantia direito inviolável à
propriedade, o que tornava impossível que se consolidasse a proposta de redistribuição de
terras de Goulart. Durante todo o seu governo, Jango pediu ao Congresso para que fossem
aceitas as mudanças constitucionais que viabilizassem a reforma agrária. No entanto, o Poder
Legislativo se mostrou profundamente descontente e irredutível com os pedidos do chefe do
executivo.
Além do Congresso, os grandes proprietários rurais também se colocaram contra a
Reforma Agrária, entendendo o ato como uma violência possessória estatal. Com o objetivo
de proteger suas terras, os latifundiários ainda afirmaram por meio das suas representações
políticas que iriam utilizar a força para evitar que ocorresse qualquer desapropriação de suas
terras, mesmo mediante indenização.
Visto que a Reforma Agrária não seria facilmente aceita, mas era uma das principais
pautas de governo de João Goulart, o mesmo emitiu um decreto que desapropriava terras às
margens de barragens, de ferrovias e rodovias federais. Tal movimentação política gerou um
impasse entre o Congresso e a Presidência, visto que nesse momento já havia uma imensa
importância atrelada ao papel dos latifúndios na economia brasileira e, sendo assim, seus
interesses já possuíam ferrenhos defensores em cargos de representação política. Desta forma,
se formava um cenário cada vez mais tenso entre o chefe do Poder Executivo e o Legislativo.
Outra área englobada pelas reformas de Goulart era a econômica. Primeiramente, o
foco foi a questão bancária, com a criação do Conselho Monetário Nacional e o Banco
Central, com o objetivo de enquadrar o sistema monetário brasileiro nos moldes definidos
pelos Estados Unidos e pelo Fundo Monetário Internacional. Ainda no escopo econômico,
Jango propôs uma reforma tributária, com a regulação da Lei de Remessa de Lucros, criada
durante o parlamentarismo. O maior objetivo da presidência ao lidar com questões tributárias
era melhorar a distribuição de renda e combater a sonegação fiscal, o que mais uma vez
trouxe descontentamento das elites quanto ao seu governo.
João Goulart também abordou uma questão extremamente relevante no quesito da
ampliação do acesso à democracia, enviando ao Congresso uma proposta de reforma política,
especificamente sobre o direito de voto, que não era dado aos analfabetos e a alguns
7
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Verbete 6355: Reformas de Base. Atlas Histórico. Disponível em:
https://atlas.fgv.br/verbete/6355. Acesso em: 05/01/2024.
militares. A partir desta movimentação de Goulart, foi aprovada a mudança ao artigo 135 da
Constituição Federal de 1946, garantindo direito de voto a todos, menos incapazes civis
absolutos e condenados criminalmente.
Vendo que grande parte das suas propostas de reforma estavam sendo rejeitadas pelo
Congresso, João Goulart inaugurou um movimento conhecido como Comício das Reformas,
no qual a população foi convocada para ir às ruas, manifestando sua aprovação às mudanças
constitucionais pedidas por Jango. O movimento contou com a ajuda de Leonel Brizola, neste
momento deputado federal, e Miguel Arraes, governador de Pernambuco.
No entanto, mesmo que existissem movimentos populares à favor de João Goulart,
grande parte das elites econômicas estava contra o governo do mesmo, iniciando assim um
momento profundamente tenso na política brasileira. Diversos veículos de comunicação já
colocavam Jango como um potencial golpista nos mesmos moldes de Vargas, mas com viés
comunista. O Jornal do Brasil, um dos mais influentes periódicos da época, chegou a publicar
um editorial com o título “Basta!”, no qual as forças armadas brasileiras eram exaltadas e era
pedido intervenção das mesmas para que, ironicamente, fossem preservadas as instituições
democráticas. Ainda no âmbito da imprensa, ao mesmo tempo que ocorriam estas
manifestações contrárias à Jango, Carlos Lacerda foi aos Estados Unidos e deu uma
entrevista ao jornal Los Angeles Times, afirmando que o governo federal brasileiro estava
contaminado por forças comunistas e pedindo intervenção estadunidense para que a
democracia fosse mantida no Brasil.
4. OS ANOS DE CHUMBO
Como resultado do golpe sofrido no dia 31 de março de 1964, iniciou-se a ditadura
militar no Brasil. Nos mesmos anos em que se viu o milagre econômico, via-se também
tortura e violência, resultados do abuso do poder das autoridades vigentes. Andavam juntos o
combate contra os comunistas e a repressão em nome da ordem, gerando inúmeras revoltas
populares. Essas manifestações eram respondidas com hostilidade, na forma de terrorismo,
prisão e tiros. Para essa época, foi dado o nome “Anos de Chumbo”, principal matéria-prima
das balas de armas de fogo, letais símbolos da regência verde-oliva. Inserido o presente
comitê no alvorecer democrático que sucedeu a regência militar que golpeou o Brasil, é
fundamental destrinchar a escuridão da ditadura a partir de seu crepúsculo: o que planejavam
as Forças Armadas depois de tomar de volta a república que fundaram 75 anos antes?
Foi por meio delas que, no dia 15 de abril de 1964, o general Humberto de Alencar Castelo
Branco foi eleito Presidente da República, tendo concorrido com Juarez Távora e Eurico
Gaspar Dutra.
Como uma de suas primeiras medidas, lançou uma política econômica chamada
Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), feita sob a gestão de Roberto Campos,
ministro do Planejamento, e de Otávio Gouveia de Bulhões, ministro da Fazenda. O objetivo
era a manutenção, ou recuperação, das taxas de crescimento da economia, que se encontrava
enfraquecida naquele momento, e esse programa de contenção inflacionária pretendia
resolvê-la. Entre seus objetivos mais específicos, estava a redução do déficit público, uma
medida que apresentou certo sucesso, resultados positivos desde o início. Para esse fim,
procurou-se controlar os gastos do Estado e apoiar as empresas públicas através do aumento
de tarifas de serviços, além de aumentar a arrecadação de impostos através de medidas como,
por exemplo, a introdução da correção monetária para o seu pagamento.
Ademais, o direito à greve foi regulado por meio de lei específica, aprovada no
mesmo ano da posse de Castelo Branco, que prescreveu condições para essas paralisações de
modo a tornar o exercício de manifestações legais quase impraticável. Desse modo, criava-se
um obstáculo para reações às medidas econômicas executadas às custas das camadas
populares, uma vez que, junto ao aumento dos impostos, a redução do salário mínimo e a
elevação do preço da gasolina e do pão davam motivo para reação. Segundo o historiador
Boris Fausto (2002), “ Foi o regime autoritário que permitiu a Campos e Bulhões tomar
medidas que resultaram em sacrifícios forçados, especialmente para a classe trabalhadora,
sem que esta tivesse condições de resistir.”
Como resultado dessas medidas, a inflação iniciou um ciclo de redução e a atividade
industrial experimentou forte recuperação. O déficit público foi controlado pela política fiscal
estabelecida no PAEG, o que permitiu alguma simplificação tributária, como por exemplo a
substituição do antigo imposto sobre vendas e consignações pelo imposto sobre venda e
circulação de mercadorias. Mais adiante, já no governo Costa e Silva, o crescimento
econômico começou a superar a inflação,permitindo ao governo ajustar a política monetária,
reduzindo o rigor até então parte do programa econômico.
8
FOLHA DE SÃO PAULO. Delfim Netto, Os Personagens do AI-5, disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/folha/treinamento/hotsites/ai5/personas/delfimNetto.html>
4.2.2. A resistência
No ano de 1968, a oposição mostrou resistência ao regime como nunca vista antes.
Conhecido como “o ano que não acabou”, foi um tempo de revolta, no qual a insatisfação do
povo superou o medo da repressão. Desde declarações de figuras políticas e religiosas, até
manifestações populares com milhares de pessoas, o governo encarou forte rejeição. No
contexto político, destaca-se a criação da Frente Ampla, por Carlos Lacerda, acompanhado de
Jango e de Juscelino Kubitschek. Lacerda era um jornalista e político que, apesar de ter
mostrado apoio ao golpe em seus primeiros anos, tornou-se um defensor do fim do regime
militar pela redemocratização. O movimento tinha justamente este objetivo: defender a
democracia – muito embora não seja segredo, também, sua latente intenção de fortalecer a
própria imagem para uma possível futura candidatura à presidência.
No município de Contagem (MG), houve uma greve operária com a participação de
quinze mil trabalhadores. Inicialmente, eram menos de dois mil, porém o tempo trouxe a
adesão de mais pessoas com o mesmo interesse. O objetivo era conseguir um reajuste salarial,
de pelo menos 25%, tendo em vista a inflação ainda não completamente solucionada pelos
planos do governo. Apesar da conquista de apenas 10% de reajuste, o movimento teve que
encarar um trato novo do Estado com a tradição política há décadas inflamada da
sindicalização brasileira. Osasco (SP) também foi palco para manifestações do mesmo
gênero, porém levou um fim ainda menos animador. A greve, liderada pelos líderes do
sindicato dos metalúrgicos também exigia reajuste salarial, baseando-se na ocupação da
Companhia Brasileira de Metal Ferroviário, a Cobrasma, por um grupo de três mil
trabalhadores e estudantes. Apesar do esforço, durou apenas três dias, e não obteve resultados
positivos, terminando com manifestantes sendo expulsos da fábrica e alguns até presos.
4.2.3. A repressão
As insurreições populares da época provocaram reações violentas do governo vigente.
Eram muitas as revoltas estudantis, trabalhistas e por pautas liberais. Um caso notório que
desencadeou manifestações de rua foi o de Edson Luís. Trata-se de um estudante que foi
morto pela Polícia Militar em um protesto contra a má qualidade da alimentação fornecida
para os alunos da rede pública. Com a chegada dos policiais, alguns foram imediatamente
presos, e, devido à resistência de outros, houve disparos. Nesse meio, foi morto o estudante, e
o acontecimento se tornou muito conhecido, despertando a indignação da população com o
regime.
Além desse evento, houve a passeata que ficou conhecida como Sexta-feira
Sangrenta. Foi organizada uma manifestação para o dia 21 de junho com o objetivo de
protestar contra a prisão de Jean Marc van der Weid, líder estudantil preso em uma
manifestação em frente à sede do Ministério da Educação e Cultura. Entretanto, no dia
marcado, o evento foi respondido com uma brutalidade exacerbada da polícia, que resultou
em 28 mortes, além de muitos feridos e presos. Mesmo assim, a população não se intimidou
e, dias depois, houve a Passeata dos cem mil, protesto que é provavelmente o mais marcante
da época da ditadura.
A resposta final do governo Costa e Silva, em dezembro de 1968, foi o AI-5. O quinto
e mais severo ato institucional até o momento marcou o início do tempo mais duro da
ditadura. Logo no dia de sua edição, foi decretado recesso do Congresso Nacional, por tempo
indeterminado. Nessa esteira, a medida conferiu ao Executivo, entre outras atribuições, o
poder de suspensão de direitos políticos e cassação de mandatos eletivos de qualquer unidade
da federação sem as limitações constitucionais. A suspensão dos direitos políticos poderia
incluir o direito ao voto, a manifestação política e até a aplicação de medidas restritivas de
segurança. Foi facilitada também a intervenção do Presidente da República nos estados e nos
municípios, bem como a declaração de estado de sítio, em qualquer dos casos previstos pela
Constituição. Quanto a outros direitos da população, foram suspensas garantias
constitucionais ou legais, além da garantia do habeas corpus em caso de crimes políticos,
eliminando uma importante proteção judicial ao direito de liberdade do indivíduo (Gaspari,
2002).
A interferência sobre os demais Poderes ficou claramente configurada pela cassação
de congressistas e de ministros do Supremo Tribunal Federal, o que foi contra uma
característica essencial da República, consistente na separação dos Poderes.
A vida e a morte do Sr. Embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela atender a
duas exigências, o Sr. Burke Elbrick será libertado. Caso contrário, seremos
obrigados a cumprir a justiça revolucionária. [...] Os quinze companheiros devem
ser libertados, estejam ou não condenados. Esta é uma ‘situação excepcional’. E nas
‘situações excepcionais’ os juristas da ditadura sempre arranjam uma fórmula para
resolver as coisas, como se viu agora na subida da junta militar. (Tavares, 1977
apud Gaspari, 2002b, p. 90).
Os ainda incompletos cinco dias de governo, permeados por tentativas de fingir ao povo a
recuperação de Costa e Silva – recuperação muito distante de ser real –, eram instáveis
demais para lidar com tamanho caos e tamanha ironia dos curupiras da oposição. À noite, a
carta foi lida nas televisões e nas rádios de todo o país, como uma das exigências da própria
carta; no dia seguinte, a Junta cedeu e prometeu entregar os prisioneiros; no meio desse dia,
baixas e altas patentes do comando militar se posicionaram contra a libertação dos
prisioneiros e até a favor de sua execução; mais um dia depois, oficiais se recusaram a
desfilar no Sete de Setembro, inconformados com a bagunça ocasionada pela parca Junta
Militar; mais tarde, os quinze eram liberados no Aeroporto Galeão, a caminho do exílio na
Cidade do México, ao que os revolucionários responderam com a desova de Elbrick vendado,
barbeado, engravatado e vivo na Zona Norte do Rio de Janeiro (Gaspari, 2002b).
Figura 1 – Fotografia enviada aos sequestradores como prova do embarque dos exilados
A Castello Branco a ditadura parecera um mal. Para Costa e Silva, fora uma
conveniência. Para Medici, um fator neutro, instrumento de ação burocrática, fonte
de poder e depósito de força. Não só se orgulhou de ter namorado o AI-5 desde
antes de sua edição, como sempre viu nele um verdadeiro elixir: “Eu posso. Eu
tenho o AI-5 nas mãos e, com ele, posso tudo”, disse certa vez a um de seus
ministros. “Eu tinha o AI-5, podia tudo”, rememorou na única entrevista que
concedeu. Teve uma relação natural com a ditadura, como se ela fizesse parte de um
manual de instrução. Nos dias inquietos do conclave militar, apresentou-se ao país
com um discurso suave, anunciando que “chegou a hora de fazermos o jogo da
verdade” e prometendo que, “ao término do meu período administrativo, espero
deixar definitivamente instaurada a democracia em nosso país”. Menos de dois
meses depois, numa reunião secreta do ministério, explicou-se: “Para fazermos o
jogo da verdade dispomos de órgãos especializados: o presidente da República, de
seu SNI, e os senhores ministros, de suas divisões de segurança e informações”.
Sustentando a ideia de ser diferente de seus antecessores, Emílio governou em silêncio, sem
grandes movimentações e sempre recitando palavras escritas por outros – isso ao menos para
o público, dessa forma, conquistou a estimada estabilidade política que tanto almejava
(Gaspari, 2002b). A despretensão com que governou o general tinha a contrastiva missão –
que cumpriu muito bem – de repôr a ordem política dentro das Forças Militares por meio da
restauração da firmeza com que o regime tinha o costume de lidar com todas as suas tópicas.
Além disso, teve seu governo voltado para o nacionalismo e para o
desenvolvimentismo, iniciando grandes projetos de infraestrutura no escopo do que ficaria
conhecido como I Plano Nacional de Desenvolvimento (Lago, 1989). A mentirosa liberdade
que chegaria com o “milagre econômico”, ainda o faria ganhar apoio popular por uma falsa
promessa de fazer o Brasil virar uma grande potência mundial. Tendo abdicado de seu salário
e de demais regalias – símbolo do homem silencioso e desprendido que sempre fora –, fez-se
parecer simples e preocupado com o futuro econômico do país; mas aos olhos de quem
realmente o enxergava, não passava de uma farsa para esconder o que acontecia por detrás
das cortinas e dentro dos porões (Fausto, 2006; Gaspari, 2002b). Era um general sem a real
vontade de conciliar forças políticas, disposto às maquiagens e à repressão sem limites para
manter as rédeas leves em suas mãos – nas quais, vale acrescentar, caía agora o poder
repressivo contido entre as linhas dos Atos Institucionais, notavelmente o AI-5, que se
tornava mais perigoso sob a frieza do Presidente.
O avanço econômico herdado por seus antecessores prosseguiu em um novo patamar,
relacionando-se com o trato político em um duvidoso contraste. Nessa tônica, Médici
imprimiu sua postura tranquila e reclusa à intensificação blasé dos investimentos públicos, da
asseguração da hierarquia política verde-oliva e da cruel violência estatal. Foi para essas três
áreas que o italiano abriu caminho para sua resolução: para a economia, continuava o já
bem-sucedido Delfim Netto; para o ministério do Exército, o inteligentíssimo – embora de
aromas castelistas – Orlando Geisel; e, para a política, o jurista e ministro da Casa Civil João
Leitão de Abreu, cunhado de Lyra Tavares, ex-ministro das Juntas (Fausto, 2006; Gaspari,
2002b; Skidmore, 1991).
A oposição, que fora às passeatas de 1968 com faixas pedindo “Democracia e
desenvolvimento”, o que sugeria que sem uma não haveria o outro, vira-se diante de
um governo que oferecia ditadura e progresso. [...] Um em cada dois brasileiros
achava que o seu nível de vida estava melhorando, e sete em cada dez achavam que
1971 seria um ano de prosperidade econômica superior a [1970]. Era o Milagre
Brasileiro. O século XX terminaria sem que o país passasse por semelhante período
de prosperidade.
O governo festejava o progresso associando-o ao imaginário do impávido colosso,
gigante pela própria natureza. Potência nuclear? O Ministério de Minas e Energia
revelara a descoberta de excepcionais jazidas de urânio no Nordeste e anunciara a
compra de uma usina atômica, a ser montada em Angra dos Reis. Integração
nacional? Medici determinara a construção da rodovia Transamazônica, que
rasgaria 2280 quilômetros de mata tropical, ligando o Maranhão ao Acre. Gigante
soberano? Estendeu-se a duzentas milhas da costa o limite das águas territoriais
brasileiras. Tecnologia nacional? A Embraer recebera 230 milhões de dólares para
fabricar o primeiro jato brasileiro. Obras históricas? Acelerou-se a abertura dos
metrôs do Rio de Janeiro e de São Paulo, e anunciou-se o início da construção da
ponte que atravessaria a baía de Guanabara, ligando a praia do Caju a Niterói.
Não havia motivo aparente para repudiar os meios ditatoriais de estabelecimento do poder
militar quando deparando-se com uma decolagem tão pujante da economia brasileira9. A
9
O crescimento do PIB costuma ser o indicativo mais acessado para se diagnosticar a expansão da economia de
um país, e o milagre econômico contava com uma média incrível de 11,2% entre 1968 e 1973, com uma
máxima de 14% em 1973 (Almeida, 2006, p. 211). Vale aprofundar-se na elencagem de dados que Lago (1989,
democracia já dera o que tinha que dar: décadas de crescimento aos solavancos,
acompanhado de crises de inflação, de crédito e de dívida externa entre 1945 e 1964; agora
era vez da oposição encarar fatos duros que comprovaram a capacidade da firmeza
verde-oliva em oferecer os fundamentos para o "impávido colosso" que representava o Brasil
militar – pago com o temerário preço da censura e da repressão (Gaspari, 2002b).
Além disso, o país também brilhava para o exterior como uma alternativa de
alavancagem financeira explosiva, com taxas extraordinárias de crescimento da bolsa de
valores (Gaspari, 2002b), o que dava sinais de prosperidade para qualquer investimento
estrangeiro que pudesse ser feito, isto é, uma quantidade maciça de dólares eram emprestados
ao Brasil anualmente para realização das obras megalomaníacas e dos investimentos na
incipiente e promissora indústria brasileira. É aqui, contudo, que chegamos ao revés
envolvido no milagre econômico: o endividamento externo. É notável que eventos externos
foram cruciais para os bons resultados da balança comercial10, mas a participação
surpreendente da nossa produção no total de transações do mercado internacional foi o que
gerou confiança para uma quadruplicação da dívida externa até 1973 (tomando como
referência 1966), principalmente, mas não exclusivamente, por parte das empresas públicas
(Lago, 1989).
Por fim, vale a pena levar em conta o início do milagre econômico – sob a lente, aqui,
do I PND – pelo caminho do sucesso social, o que pode denotar certo progresso em termos
brutos, mas um fracasso desigualitário em termos relativos. Evidentemente, o avanço
industrial na produção de bens de consumo – especialmente, bens de consumo duráveis –
considerado na análise de Lago (1989) é um indicativo latente de uma modernização das
condições de vida da população brasileira, sobretudo de classe média, que agora tinha acesso
facilitado pela produção interna e pelos baixos juros a meios de transporte particulares e a
eletrodomésticos, sem contar com a pujante indústria de construção e os bem-sucedidos
programas de crédito à habitação. Por outro lado, Fausto (2006) argumenta na direção de
compreender o colossal avanço econômico apenas como o símbolo do progresso, de um
Brasil em constante avanço praticado pela rigidez de uma ditadura militar tropical, analisando
dados que flagram a desigualdade mantida no país até 1973, como os 75% dos cidadãos
Fonte: O PASQUIM. Leila Diniz: &$£7! O Pasquim, 20-26 nov. 1969, nº 22. Disponível em:
https://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=124745&pagfis=145
Importante como a censura, porque vale manter-se neste nível por mais um parágrafo
antes de descer mais um andar nas catacumbas verde-oliva, foi a propaganda de Médici. Os
artistas brasileiros – Caetano, Chico, Gil – estavam exilados, embora suas canções, antes de
terem sua circulação vetada e seus discos destruídos, chegavam a atingir mais de 100 mil
exemplares; ademais, a chamada "imprensa nanica", jornais recentemente fundados e de
circulação limitada, fazia um certo sucesso nas bancas, espalhando pelas cidades grandes suas
charges, entrevistas, colunas e reportagens acentuadamente irônicas, como as canções da voz
tropicalista (Gaspari, 2002b). No entanto, não tinham relevância frente ao establishment da
propagando. Afora isso, os desfiles organizados pela ditadura em cooperação com a grande
mídia – sobretudo, na figura da Rede Globo – eram um sucesso (Gaspari, 2002b). Skidmore
(1991, p. 284) avalia as propagandas veiculadas pelo governo coadunado com a mídia
empresarial:
Em 1960 apenas 9,5 por cento das residências urbanas tinham TV, mas em 1970 já
chegavam a 40 por cento. Quando Médici assumiu, o Brasil tinha 45 emissoras de
TV licenciadas. Seu governo concedeu mais 20 licenças e nesse processo ajudou
consideravelmente o crescimento da Rede Globo. Criada por um império
jornalístico conservador muito bem sucedido, a TV Globo aceitara anteriormente
financiamento parcial das organizações Time-Life. Seus adversários - especialmente
aqueles ligados a uma rede de TV concorrente que estava perdendo suas licenças
para a TV Globo - denunciaram que os laços financeiros desta com Time-Life
violavam a lei brasileira de telecomunicações que proíbe a propriedade por
estrangeiros de órgãos de comunicação. O governo rejeitou a denúncia, e a TV
Globo continuou a crescer, ultrapassando suas concorrentes como líder de
audiência. Diziam seus críticos que esta ascensão podia ser explicada pela defesa
dos interesses oficiais através da programação da Rede Globo durante o governo
Medici.
Quem fosse inteligente, notaria que a fórmula residia em caminhar com o governo –
cujo país "Ninguém Segura" – e manter rodando as engrenagens dessa locomotiva. Os acenos
à direita – com a vigilância ao empresariado – e à esquerda – com a prisão de professores –
tinham a intenção de cumprir a missão para a qual o italiano foi comissionado: reorganizar a
cena política, militar e econômica nas mãos do regime.
A ditadura assumira o controle das chaves dos cárceres e dos cofres, os partidos
políticos estavam inertes, a atividade parlamentar resumira-se ao exercício de
investigação dos limites do Congresso, e os empresários faziam seus negócios no
varejo enquanto seus órgãos de classe banqueteavam o regime no atacado.
Concluíra-se o processo de desmobilização da sociedade brasileira (Gaspari, 2002b,
p. 241)
Entre 1964 e 1968 foram 308 as denúncias de torturas apresentadas por presos
políticos às cortes militares. Durante o ano de 1969 elas somaram 1027 e em 70,
1206. De 1964 a 1968 instauraram-se sessenta [Inquéritos Policiais Militares] contra
organizações de esquerda; só em 69 abriram-se 83 novos inquéritos. O da ALN
formou doze volumes, com 3 mil páginas e 143 indiciados. Em apenas cinco meses,
de setembro de 1969 a janeiro de 70, foram estourados 66 aparelhos, encarceradas
320 pessoas e apreendidas mais de trezentas armas.
O temerário início do governo Médici era símbolo de terror para os resistentes, que já
sufocavam. No ímpeto da reordenação da estrutura de poderes, a grande inovação que o
general trouxe à tona, ao lado de seu ministro Orlando Geisel, foi a criação dos
Departamentos de Operações em Informação (DOIs), um órgão subordinado ao Exército em
que se concentravam todas as atividades relacionadas à repressão e ao controle dos inimigos
do Estado. Da mesma maneira que órgãos que o antecederam, como a Oban – com a exceção
de o destacamento novo ser jurisdição do Exército –, os DOIs encerravam em si todas as
atribuições necessárias à legalidade de uma perseguição: a investigação, a análise, o
mandado, a busca e a punição, da maneira que fosse necessária. Para aplacar os ânimos no
meio das demais Forças Militares, Médici articulou a divisão dos DOIs por zonas, sobre as
quais a responsabilidade não estaria sujeita à patente, mas à nomeação, sujeita ao Exército;
atrelado a eles, havia os Centros de Operações de Defesa Interna (CODI), colegiados
chefiados por oficiais do Exército, mas com alguma participação, embora parva, das demais
forças. Os DOI-CODIs foram estabelecidos a partir de julho de 1970 em cada estado, entre os
quais o paulista e o fluminense eram, de longe, os mais movimentados; as instalações foram
finalizadas em 1971, quando o sistema já se tinha espalhado por todo o Brasil (Gaspari,
2002b).
Gaspari (2002b, pp. 183-184), enquanto detalha as funções de cada destacamento do
DOI-CODI, trata daquele relacionado à análise e à informação:
5. OS ANOS DE HOJE
5.1. A BOMBA NO COLO DE JOÃO FIGUEIREDO
João Figueiredo é indicado por Geisel para ser seu sucessor na Presidência da
República do Brasil, por meio das eleições indiretas como era de praxe na ditadura.
Figueiredo, assim como fora Médici, presidia o Serviço Nacional de Informações (SNI) até
então, um órgão governamental que atuava no monitoramento de indivíduos vistos como
potenciais inimigos do regime.
O governo do recém eleito presidente foi marcado pela continuação da abertura
política iniciada no governo de seu antecessor e por críticas e pressões pelas constantes
violações aos direitos humanos. Além das crises sociais e políticas, a instabilidade econômica
também foi um fenômeno importante para compreender o governo de João Figueiredo e as
crescentes insatisfações.
11
Em outubro de 1973, os países árabes exportadores proclamaram um embargo às nações aliadas de Israel na
Guerra do Yom Kipur, conflito militar entre estados árabes liderados por Egito e Síria contra Israel. Em cinco
meses de embargo, o preço do barril de petróleo subiu de US$3 para quase US$12 dólares no mundo inteiro.
Nesse período era crescente o consumo de petróleo nos países industrializados, sendo o grande motivo do
primeiro choque do petróleo.
“milagre”. Tal plano de desenvolvimento, implementado ao final de 1974 durante o governo
de Geisel, teve como finalidade estimular os setores de bens de capital, fortalecer as
indústrias nacionais e investir em infraestrutura, alimentos e energia. Sendo assim,
substituíram-se as importações e aumentaram as exportações, diminuindo a dependência
externa do Brasil.
Em 1979 ocorreu o segundo choque do petróleo12, e como na época o Brasil dependia
de mais da metade da produção externa do petróleo, principalmente para área industrial
crescente no cenário brasileiro, o impacto econômico foi maior ainda. Contudo, o acréscimo
na dívida não foi exclusivamente ocasionado pelo choque do petróleo, mas também por uma
relação com a grande modificação da composição da economia do país até então, como por
exemplo o II PND.
Outrossim, o grande acúmulo de renda não se restringiu apenas às camadas
populacionais mais altas das sociedade, mas também havia uma grande disparidade de
acúmulo de renda ao se comparar regiões do Brasil. O nordeste por exemplo, era
extremamente dependente do Centro-Sul, não conseguindo ser auto-suficiente e tendo sua
industrialização como uma expansão do Centro-Sul. Outro fator que gerou um caos
econômico no final do período militar foram os planejamentos equivocados e as grandes
obras que necessitam de empréstimos internacionais, aumentando cada vez mais a dívida
externa.
Por fim, as rendas das classes ricas foram as mais privilegiadas e os mais pobres
foram penalizados, aumentando a desigualdade social. O crescimento que foi formulado no
período militar trouxe para as classes sociais uma grande desigualdade: um grupo de pessoas
bem pequeno favorecidas e o restante, que é a maioria, desfavorecido. Furtado (1981, apud
Fernandes, 2009, p. 14) revela portanto:
O que se identificou foi que no período militar a desigualdade social ficou bem mais
nítida, ocasionada pelo autoritarismo militar e também pelos os altos custos planos e
planejamentos dos Governos que eram voltados para o crescimento econômico em
geral, sem abranger o social e sem se preocupar com a distribuição das riquezas
geradas.
12
A segunda crise do petróleo, também conhecida como segundo choque do petróleo, foi o corte na venda e
distribuição de petróleo do Irã, elevando o preço médio do barril ao equivalente a US$80 atuais.. O Irã era o
segundo maior produtor de petróleo no mundo. Sendo que, a crise ocorreu na revolução fundamentalista,
também chamada Revolução Iraniana, que substituiu a monarquia iraniana por uma república islâmica teocrática
em 1979.
5.3. CULPA OU ANISTIA
A Lei da Anistia Brasileira (lei n. 6.683, de 1979) foi um marco legal fundante da
transição política brasileira, contudo foi uma transição feita enquanto os militares ainda
estavam no poder. Ao mesmo tempo que se estabelece de certa forma o Estado de direito com
essa nova lei, a impunidade do autoritarismo governamental se mantém. Dessa forma, fica
evidente o forte controle do regime sobre a democracia emergente e esse movimento de
abertura, que teve como principal símbolo a Lei da Anistia de 1979. Ao mesmo tempo que
essa lei pressupõe e impõe burocraticamente o conceito de perdão, no qual os ofensores
perdoariam os ofendidos, não há tentativa de reparação dos danos. Apesar de aprovada, essa
lei não prevê uma unanimidade, sendo definida por uma pequena maioria. O silêncio sobre a
tortura e os torturadores, o silêncio sobre o apoio da sociedade à ditadura e o silêncio sobre as
propostas revolucionárias de esquerda não são discutidas e acabam entrando numa caixa de
esquecimento da sociedade brasileira, o famosos perdoar e esquecer.
Com o agravamento das crises econômicas e sociais, tende-se a motivar atos
revolucionários e por isso, nestas condições, aqueles no poder passam a priorizar a proteção e
a preservação de seus postos e de suas riquezas. A anistia, portanto, pode ser entendida como
um instrumento para viabilizar tal preservação dentro do contexto de insurgências
revolucionárias mais efetivas e crises políticas. Assim sendo, ao mesmo tempo que se
permitia uma abertura, a política governamental brasileira ainda se encontrava dentro do
amparo dos militares.
Os discursos de medo dispersados pelo governo em si e por esses agentes políticos,
tem em vista desestabilizar a resistência e apontar a luta armada contra o governo militar
como atos terroristas e comunistas, isso ajudou a fundar o medo e o caos na sociedade em
geral, e na necessidade de progresso econômico (fazendo alusão ao chamado “milagre
econômico”) que se desenvolve o argumento dos opositores como inimigos e posteriormente
da anistia como um necessário pacto político de conciliação entre ambos os lados, sob
ameaça de nova instabilidade institucional .
A negociação da anistia implica o confronto entre os diversos projetos políticos
voltados para a conjuntura de transição democrática vivida pelo país. Desde que, ao assumir a
Presidência da República em 1974, o general Ernesto Geisel anunciou um programa de
“abertura lenta, gradual e segura”, o processo político nacional passou a ser polarizado pela
agenda da transição de regime. Os anos que seguiram foram marcados pelo crescimento de
movimentos civis em favor da redemocratização do país, como o surgimento do Movimento
Feminino pela Anistia, em 1975, e do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), em 1978.
O “perdão preventivo” se deu graças à extensão dos benefícios da anistia aos delitos
“conexos” aos crimes políticos. Concedido pela Lei nº 6683 a formuladores e agentes da
política repressiva, evitou que os mesmos fossem responsabilizados criminalmente por
torturas e assassinatos reproduzindo as condições de impunidade. A esquerda exigia uma
“anistia ampla, geral e irrestrita”, acompanhada da apuração dos crimes praticados por
funcionários do Estado contra opositores políticos e punição dos culpados. Questionava-se,
assim, o caráter recíproco da lei de anistia, porque não pode ser considerado anistiado de
determinado crime quem nunca foi oficialmente acusado de sua prática, já que nenhum
agente estatal do regime militar chegou a confessar algum crime cometido, sempre negando
discursos de tal natureza. Evidencia-se, portanto, a natureza contratual de tal lei, na qual seria
teoricamente estabelecido por iguais, mas imposta aos inferiorizados da ordem.
Por fim, a tese de anistia recíproca construída pelo regime militar teve como objetivo
principal contornar as contradições entre os grupos dominantes, tendo a ordem como alvo
final. A atitude conciliadora subentende, em geral, uma reivindicação à harmonia
conservadora, pois o pedir perdão seria reconhecer a culpa e o regime militar, em sua visão
não foi culpado de atos ilegais. Faz-se silêncio sobre a saga revolucionária e diz-se haver um
consentimento geral da impunidade. A admissão de culpa coletiva, muitas vezes, tem como
efeito a não culpa de todos, e a anistia cai sob o manto de “pacificação nacional”.
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